flausina no espelho: imagem insólita de menina em esses...
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Flausina no espelho: imagem insólita de menina em Esses Lopes
Noeli Reck Maggi (Professora Titular/UniRitter/Porto Alegre)
Regina da Costa da Silveira (Professora Titular/UniRitter/Porto Alegre)
Resumo: Dentre os quarenta contos publicados em Tutaméia terceiras estórias, “Esses Lopes” é um dos
poucos contos com narrativa em primeira pessoa. Flausina é personagem que renega seu nome, pensando
em se chamar “Maria Miss”. Em apenas três páginas, João Guimarães Rosa delineia o perfil biográfico da
protagonista. Da infância, passa-se aos sonhos e imagens de uma adolescente imersa na pobreza, cedida
para os Lopes. O texto encaminha o leitor pelos meandros do simbólico. Nesse sentido, nossa proposta de
análise articula as ideias da psicanálise e da literatura.
Palavras-chave: narrativa literária; simbólico; linguagem.
Abstract: Among the 40 short stories published in Tutameia Third Stories, "Esses Lopes" [These Lopes]
is one of a very few that has a first-person narrator. Flausina is the chatacter who renegades her name,
wondering to be called "Maria Miss". In only three pages, João Guimarães Rosa draws the biographical
profile of the protagonist. Starting at her childhood, it goes to the dreams and images of a young teenager
immersed in poverty, who was donated to the Lopes. The text takes the reader through the symbolic
intricacies.This way, our proposal of analysis articulates ideas of psychoanalysis and literature.
Keywords: literary narrative; symbolic; language.
1 - Tutaméia terceiras estórias: os leitores e a crítica
A composição da obra com seus quatro prefácios e um glossário, que agrega
algumas palavras não utilizadas no texto, antecipa de certa forma o caráter insólito em
Tutaméia terceiras estórias, último livro publicado em junho de 1967, por João
Guimarães Rosa, falecido em novembro do mesmo ano. Dentre os quarenta contos aí
publicados, “Esses Lopes” é um dos poucos que vêm narrados em primeira pessoa.
Sobre a fortuna crítica da obra, Vera Novis (1989:21) já afirmava que, à época de sua
publicação, o livro não merecera “mais que uma dúzia e meia de artigos e, segundo
consta, uma tese universitária [...]. Enquanto a bibliografia crítica dos outros livros
cresce mais e mais, Tutaméia permanece um livro pouco estudado”.
Também se constata que o número de livros sobre Tutaméia era igualmente
reduzido durante a década de 80, sobressaindo-se a publicação de Vera Novis e a de
Irene Gilberto Simões (1988). Assim foi que o livro passou mesmo a receber a atenção
dos pesquisadores a partir dos anos 90. Por essa época, os estudiosos dos contos de
Rosa evidenciam descobertas significativas ligadas a um simbolismo que se inscreve de
modo especial na tradição hermético-alquímica e que pode ser descoberto à luz da
psicanálise. Tome-se, por exemplo, o livro de Monique Balbuena (1994), Poe e Rosa à
luz da cabala; o de José Maria Martins, Guimarães Rosa: a alquimia do coração
(1994); o de Francis Utéza, Metafísica do Grande Sertão (1994); O Roteiro de Deus
(1996), escrito por Heloíza Vilhena de Araújo, sem enumerar aqui os que surgiram nas
décadas seguintes. Mas devemos mesmo a Benedito Nunes os primeiros estudos
filosóficos, publicados em O Dorso do Tigre (1976), que aproximam a obra de
Guimarães Rosa a Platão, Plotino, ao Upanishads e à alquimia.
2 – Flausina no espelho
A leitura que fazemos do conto “Esses Lopes” centra-se em Flausina, menina
com uma pintinha no queixo que renega seu nome, pensando em se chamar desde cedo
“Maria Miss”. Em apenas três páginas, João Guimarães Rosa delineia o perfil biográfico
da protagonista. Da infância, passa-se aos sonhos e imagens de uma adolescente imersa
na pobreza, cedida para quatro homens de uma mesma família, os Lopes. O texto
encaminha o leitor pelos meandros do simbólico. Nessa direção, uma leitura sustentada
por princípios psicanalíticos destaca a criatividade da personagem esculpida por
Guimarães Rosa, bem como os mecanismos adaptativos utilizados para enfrentar
tensões e conflitos ao longo de sua juventude junto aos parceiros na luta pela aquisição
de bens e na busca de um verdadeiro amor.
Sempre em primeira pessoa, a narrativa reencena o itinerário da personagem,
com ritos de partida, iniciação e retorno bem definidos, assim, pela própria Flausina. De
início, foram-lhes instituídas perspectivas de ideais comuns às jovens da época: “Mas
primeiro, os outros obram a história da gente” (ROSA,1994:523)1 como o desfrutar de
“noivado”, “enxoval”, “cortesias”, “igreja” e “virgindade”. Sentencia a protagonista:
“Eu era menina, me via vestida de flores”, “Mocinha fiquei, sem da inocência me
destruir, tirava junto cantigas de roda e modinhas de sentimento” (p. 523). Em sua fase
de partida, a jovem mulher vê-se privada das figurações da infância, quando seu retrato
e seus sonhos paradisíacos foram substituídos por uma imagem grotesca: “linda eu era
até a remirar minha cara na gamela dos porcos, na lavagem”. À menina vestida de
sonhos e “de flores” - “eu me via vestida de flores”, “queria enxoval, ao menos, feito as
1 Todas as citações do conto pertencem à mesma edição. Citaremos, a seguir, apenas o
número da página.
outras, ilusão de noivado. Tive algum? Cortesias nem igreja.” (p. 523) - sobrevém a
imagem borrada pela imundície turva da lavagem. Uma falta de transparência e de
nitidez que pode ser traduzida na metáfora do homem a quem Flausina fora doada pelos
pais: Zé Lopes, “o pior, rompente, sedutor”, “chapéu grandão, aba desabada” (Ibidem).
E a entrega da menina justifica-se, de certa forma no texto, porque “o que mais cedo
desponta é a pobreza” e porque, afinal, “de que valia ter pai e mãe sendo órfã de
dinheiro?” (Idem, ibidem).
Sobre o primeiro Lopes, que foi quem deu origem à iniciação de um périplo
calculado, medido, Flausina assevera: “me viu e me botou na cabeça”, “me pegou com
fortes braços e quentes mãos”, “aguentei aquele caso corporal”. De certo modo,
previne-se ela contra o mal que em sua vida se instaura mediante a conivência de seus
pais: “A gente tem é de ser miúda, mansa, feito botão de flor. Mãe e pai não deram para
punir por mim.” (Idem).
A partir daí, sua iniciação se propaga pelo enredo do conto, cujo final ou retorno
já de antemão o leitor fica sabendo: Flausina livra-se dos Lopes, um por um, cada um a
seu modo e a seu grau: “Por sopro do demo, se vê, uns homens caçam é isso”, provê de
dinheiro os filhos “para longe [...] viajarem gado” (p. 563) e desposa um marido jovem.
De início, a narradora declara que “A maior prenda que há é ser virgem”, ao
mesmo tempo em que expõe sua situação do presente: “Ainda achei o fundo do meu
coração”, “Livre, por velha nem revogada não me dou, idade é a qualidade. Amo um
homem.” (Idem, ibidem). Assim, ao retornar para o tempo presente da narrativa, a
narradora declara: “e eu sou de me constar em folhinhas e datas?” (p.565). Ao celebrar
sua liberdade diante do poder dos Lopes e da pobreza, ela reconquista a imagem de
mulher amada, pintinha no queixo, botão de flor.
Flausina age de modo ardiloso. Por isso, uma das leituras do conto “Esses
Lopes” a designa como “assassina” dos Lopes, “tão perigosa ou igual a qualquer
jagunço, mas que, femininamente, não confronta, nem parte para a luta” (FORTES,
2007:148). Uma designação amparada em fatos que remetem à contraindicação dos chás
e das comidas preparadas por Flausina, ao excesso de sexo a um dos Lopes, o mais
velho, e às manobras que mediaram os enfrentamentos entre os irmãos.
Não obstante, essa riqueza do enredo criado por Guimarães Rosa possibilita
diversos olhares para a mesma personagem. Para isso, vale recordar as declarações da
protagonista, quando se refere ao “governo da vida”, à sua sujeição aos homens que
primeiro “obraram” a sua vida: “Anos me foram de gentil sujeição, custoso que nem
guardar chuva em cabaça, picar fininho a couve”, afirmando que os Lopes não lhe
davam sossego, do que resulta sua transformação: “Virei cria de cobra”. E, dando
ciência ao leitor de suas manobras, a narradora por vezes se redime: “Nem confirmo que
seja crime” (p. 564). De resto, sua vida “foi muito fatal”, casa varrida, cisco jogado
para a rua, metáfora da liberdade que a morte dos quatro homens lhe propicia, livrando-
a “do tradicional arquétipo patriarcal de mulher cordata, passiva e submissa ao domínio
masculino.” (FORTES, 2007:149). Os ritos de partida e de iniciação de Flausina vêm
moldados pela carência, sujeição e maldade, e nisso se diferem do retorno que, por sua
vez, pode ser lido como passagem restauradora do sonho, do poder e da voz da
personagem, interpretação que se alinha à leitura feita por Maria Beatriz Pacca, quando
esta sintetiza de modo objetivo e claro o destino da protagonista: “ao final de uma
sofrida jornada nas mãos de quatro homens de uma mesma família – os Lopes -,
consegue recuperar o mando de sua vida e de sua voz (PACCA, 2002:449-450).
A realidade ambiental dessa personagem tanto a potencializou em sua
subjetividade, quanto lhe possibilitou reconhecer dificuldades pessoais para convívio
com homens reconhecidamente arbitrários na forma de viver. Revela, conforme aqui se
observou, ter sido linda, até “remirar” sua “cara na gamela dos porcos, na lavagem”.
Percebe desde cedo que, embora tendo pai e mãe, era órfã de dinheiro. Era mocinha e
ainda inocente quando foi concedida pelos seus pais aos homens que possuíam dinheiro,
bens materiais, alguns vinténs, de “gente de má paz”, que “tudo adquiriam ou
tomavam”.
3 – Da remirada insólita ao impulso criativo
Se tomarmos como referência as concepções teóricas de Winnicott (1983), o ser
humano é acolhido desde o início da sua vida por um ambiente, que sendo facilitador e
capaz de sustentar a ansiedade ocasionada pela própria condição de fragilidade, confere-
lhe expectativa para poder desejar e se constituir no sentido pleno.
Flausina não sucumbe à dominação e à opressão dos Lopes. Antes disso, nutre a
esperança de desfrutar da “ilusão de noivado”. Sua criatividade é realçada desde o
momento em que preserva seu objetivo que é obter herança, um bem de valor e
necessário para sua independência, até a escolha do objeto de amor quando decide viver
com um jovem que não corresponde à sua faixa etária, concebida formalmente para
convívio, àquela época. Constitui família, atende às exigências de homens viris, mas
subjacente a todas as promessas mantém vivo o desejo de ser livre e de usufruir de um
verdadeiro “self”2, ou seja, de manter uma vida com predomínio de espontaneidade e
liberdade pessoal.
Ao tomar parte da comunidade em que os Lopes dominavam – ao agir entre
personagens secundárias, tais como a criada Si Ana, posta para vigiá-la, as crianças da
escola, auxiliares em sua aprendizagem de ler e escrever -, a personagem rosiana
evidencia que sua vida ativa não se deixou abalar por fatores ambientais adversos que
poderiam ter sufocado seus processos criativos, como sói ocorrer, conforme Winnicott,
“com prisioneiros ou vítimas da perseguição de um regime político cruel”, mas também
“com indivíduos dominados no lar”. Flausina delineia seu próprio itinerário, reescreve a
tradição, quando reencena sua nova vida e, nesses casos de coação e de domínio, afirma
Winnicott, “somente algumas dessas vítimas permanecem criativas”. (1975:99)
Ao se referir à constituição da subjetividade a partir de um “verdadeiro self”,
Winnicott (1983) afirma que este recorre a um “falso self”, desde que as circunstâncias
ambientais assim o exigirem. Flausina se submete ao “Zé, o pior” dos Lopes, embora
tendo de se parecer com “gente miúda, mansa, feito botão de flor”.
A personagem sobrevive à situação tendo de calar “muitos prantos”, fortalecida
internamente pela esperança de amar um homem e de ser admirada pelos seus “bons
préstimos”.
Carvalho (2001) nos fala que:
A multiplicidade de personas no texto literário ilustra bem o drama teorizado
por Freud a respeito das tentativas que fazemos, para nos representar na
linguagem. Para Freud, o discurso é sempre parcial, devido à divisão entre
consciente e inconsciente e pela interferência mútua entre aquilo que dizemos
e aquilo que é excluído do nosso discurso. Toda auto-representação será,
portanto, precária e provisória, mas, ao mesmo tempo, marcada pela
singularidade de uma subjetividade que não cessa de inscrever-se e de
2 “O gesto espontâneo é o self verdadeiro em ação. Somente o self verdadeiro pode ser
criativo e se sentir real.” (WINNICOTT, 1983:135).
inventar-se em cada uma de suas formas de expressão e construção.
(CARVALHO, 2011:257)
Flausina revela ser amante dedicada para seus companheiros, entretanto tratava-
se de um amor prático, condicionado a algumas possibilidades materiais como
“enxoval”, “ilusão de noivado” como tantas moças da época desfrutavam. Diz que não
teve nenhum agrado ou “cortesias” e tampouco “igreja” para registrar e concretizar os
ideais de menina “virgem”, ideal que ela mesma expressa, ao afirmar que a maior
prenda que há é ser virgem. A jovem ainda menina, por meio do olhar soturno dos pais,
foi entregue ao homem mais “rompente” e também “sedutor”. “O homem me pegou,
com quentes mãos e curtos braços, me levou para uma casa, para a cama dele. Mais
aprendi lição de ter juízo. Calei prantos. Agüentei aquele caso corporal.” (p.523).
Winnicott (1983) destaca o ambiente facilitador como elemento importante para
que o sujeito se constitua com um eu capaz de suportar as frustrações. É indispensável
que esta facilitação não seja plena e que o sujeito enfrente certas resistências para que,
diante de possíveis desadaptações, possa viver a experiência de modo criativo e
espontâneo com a realidade. Flausina não esconde seus ressentimentos por ter sido
usada por esse Lopes de “chapéu grandão e de aba desabada.”
O afeto de Flausina estava pulsando internamente e necessitava ser deslocado
para um objeto de amor que correspondesse ao que estava sendo gestado internamente
como: “Eu era menina, me via vestida de flores. [...] Eu queria me chamar Maria Miss”.
Esse afeto não poderia ser esquecido, reprimido ou banalizado uma vez que eram
muitos os ideais a serem alcançados e experimentados a partir do reconhecimento da
sua origem humilde junto da sua família. Sobre a relação entre o afeto em seu duplo
aspecto e a linguagem, podemos ler o seguinte comentário:
Como nos mostra Julia Kristeva, isso se deve ao fato de que, sendo
irredutível aos sentimentos, o afeto no seu duplo aspecto de fluxo energético
e de inscrição psíquica, embora fora da linguagem, traduz-se com uma
extraordinária fidelidade: “o afeto não passa pela linguagem, e quando esta se
refere a ele, este não se liga à linguagem como se liga a uma idéia. A
verbalização dos afetos (inconscientes ou não) não tem a mesma economia
que a das ideias (inconscientes ou não)”. (CARVALHO, 2011:272)
O fortalecimento de um ego grandioso emprestado pela força dos cuidadores
também auxiliou a protagonista rosiana a confrontar-se com o desafio dos Lopes: a
entrega da menina para uma suposta vida melhor, por dinheiro e por outras regalias.
Ao ler o conto de Guimarães Rosa, pensamos no significado e no sentido
atribuído ao personagem e:
O sentido é aquilo que não está nem pode estar dado, que vai além do dado.
[...] busca-se o sentido, mas ele atravessa sonoridades, associações
vocabulares, sintáticas, semânticas, estilísticas e o mais, quando submetido
ao cristal de diferentes línguas, épocas e sensibilidades. Ele permanece
singular: adere e escapa ao mesmo tempo à língua e à sensibilidade que o
convocam. Este o movimento pelo qual a obra vem à vida – sua abertura
indeterminada, sempre pronta a dizer outra coisa, e outra mais. (LUZ, 2007:
14-15)
Quanto a nós, leitores, procuramos encontrar o sentido do texto a partir de
nossas percepções. Estas nos encaminham para a leitura e interpretação das metáforas e
das conotações diversas que geram a chamada polissemia. Buscar o sentido do texto é
reconhecer sua abertura, “pronta a dizer outra coisa”, mas é também perceber que a
polissemia será sempre neutralizada pelo contexto da narrativa.
4 – Literatura e supra-senso
Para usar os termos “literário” e “literatura”, Terry Eagleton define-os segundo
várias concepções: uma escrita imaginativa, oposição estabelecida entre verdade
“histórica” e verdade “artística”, entre outras. Sobre a estranheza, que para alguns
formalistas russos caracterizava o texto literário, Eagleton afirma que “todos os tipos de
escrita podem, se trabalhados com a devida engenhosidade, ser considerados
estranhos”. Isso porque “O discurso literário torna estranha, aliena a fala comum; ao
fazê-lo, porém, paradoxalmente nos leva a vivenciar a experiência de maneira mais
íntima, mais intensa” (EAGLETON, 1983:5). Adiante, o autor trata da especificidade do
texto literário, afirmando:
Alguns textos nascem literários, outros atingem a condição de
literários, e a outros tal condição é imposta. Sob esse aspecto, a
produção do texto é muito mais importante do que o seu nascimento.
O que importa pode não ser a origem do texto, mas o modo pelo qual
as pessoas o consideram. [...] Nesse sentido, podemos pensar na
literatura menos como uma qualidade inerente, ou como um conjunto
de qualidades evidenciadas por certos tipos de escritos [...] do que
como várias maneiras pelas quais as pessoas se relacionam com a
escrita.” (EAGLETON, 1990:12-15).
Inscrita como revitalizadora da linguagem, a literatura rosiana engaja o leitor
justo diante do estranhamento que o incita a procurar sentido e, ao fazê-lo, “reflete sobre
o sentido existencial”, a ponto de vir “a se transformar de mero consumidor num
participante ativo do processo criador” (COUTINHO, 1994:14). Ao prefaciar a obra
Ficção Completa, Eduardo Coutinho lança sua remirada sobre a obra rosiana,
assinalando que Guimarães Rosa fornece ao leitor a palavra, “por meio das inovações
que introduz, e, ao estimular sua reflexão e consequente participação na construção da
própria obra, faz dele um grande questionador, um desbravador de caminhos”. E
acrescenta:
O leitor, para Guimarães Rosa, como aliás todo ser humano, é sempre
um perseguidor, um indivíduo inteiramente construído sob o signo da
busca, e é esta indagação que deve ser constantemente estimulada pelo
escritor. A Rosa não basta, por exemplo, tecer, como haviam feito
autores da geração anterior, uma crítica, por mais veemente que seja, a
determinada realidade, se esta crítica não se fizer acompanhar de uma
reestruturação da linguagem sobre a qual se erige. A revolução da
literatura deve partir de dentro, da própria forma literária, se se quer
atingir o leitor de maneira mais plena, e é este o sentido último da
revolução estética levada a cabo por Guimarães Rosa. (COUTINHO,
1994:14)
No texto crítico de Maria Beatriz Pacca (2003), A Revitalização da Linguagem
em "Esses Lopes", a autora parte do nível morfológico e chega ao sintático em sua
metodologia. No nível morfológico, ela trata dos neologismos e dos arcaísmos dentre os
exemplos encontrados no conto “Esses Lopes”; no nível sintático, verifica as expressões
em que ocorrem a subversão da ordem e a modificação dos clichês. Também é possível
examinar nesse conto a economia de conetivos e o uso revitalizado dos pronomes
possessivos. Para Coutinho:
Exemplos de processos de revitalização da linguagem podem ser extraídos de
cada linha das narrativas de Guimarães Rosa e já foram exaustivamente
listados e examinados em estudos dedicados pela crítica sobre aos aspectos
linguísticos e filológicos de sua obra. (1994:15)
Não se pode esquecer do caráter de brevidade que têm os contos, em sua maioria
escritos em apenas três páginas, extensão imposta pela Revista Pulso, em que eles foram
publicados antes de se somarem aos quatro prefácios3 para compor Tutaméia. Paulo
Rónai (In: ROSA, 1976:162) assegura ao leitor que, nesse livro de quarenta contos,
“Longe de constituir um convite à ligeireza, o tamanho reduzido obrigou o escritor a
3 Sobre a incógnita de haver quatro prefácios em Tutaméia, Maria Lucia Guimarães de Faria, em “Do cômico ao excelso: um
prefácio rosiano”, busca significados no imaginário simbólico: “Prefaciar-se quatro vezes significa ver-se sob quatro pontos de vista
diferentes, em quatro momentos diversos de escritor, atitude que coloca a criação sob um perspectivismo, que divulga o quanto ela tem de brincadeira, de confissão, de autobiografia, de ebriedade, de caos, cuja mistura, num caldeirão mágico, compõe o subsolo
selvagem da obra, infenso a qualquer determinismo lógico e afeito àquela loucura sagrada que constitui a verdadeira fonte da
inspiração. Quatro vezes prefaciar-se significa, também, incessantemente recomeçar, de modo a jamais se enquistar numa modalidade única de criar e de sentir, mas abrir-se aos quatro ventos, endereçar-se às quatro direções cardeais, buscando sempre o
princípio quaterniforme sobre o qual se assenta a harmonia do universo.” (http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/garrafa8/na-
marialucia.htm)
excessiva concentração. Por menores que sejam, esses contos não se aproximam da
crônica. [...] Nem desta vez a tarefa do leitor é facilitada.”
Na transfiguração do real em que o mito e a fantasia transcendem a lógica
racionalista, Tutaméia se inscreve como obra que contém as confissões mais íntimas de
seus narradores envolvidos poeticamente em metamorfoses lexicais e sintáticas. É o
caso da narradora-protagonista de “Esses Lopes”. Não por acaso, esse conto compõe o
conjunto encabeçado pelo primeiro prefácio, “Aletria e Hermenêutica”, uma pequena
antologia de anedotas insólitas que versa sobre o absurdo ou o nonsense. Aletria é uma
massa fina que bem cozida serve para fazer doce, mas no título do prefácio o termo
remete à arte de ler a vida em seu supra-senso; Hermenêutica, por sua vez, é a arte de
tecer a vida, “Sintetiza em si [...] o mecanismo dos mitos – sua formulação sensificadora
e concretizante, de malhas para captar o incognoscível” (p. 519). A proposta nesse
prefácio é de se ler a vida em seu “supra-senso” ou no “não-senso”, porque “o não-
senso, crê-se, reflete por um triz a coerência do mistério geral, que nos envolve e cria. A
vida também é para ser lida. Não literalmente, mas em seu supra-senso. Está-se a achar
que se ri. Veja-se Platão, que nos dá o ‘Mito da Caverna’”. (p. 519)
Ao contrário de uma narrativa tradicional em que o ambiente é o centro e o
homem fica em segundo plano como seu mero representante, no conto em questão,
Flausina é um ser múltiplo que tem merecido olhares contraditórios, ela própria é quem
delineia o seu itinerário, constituindo-se no eixo motriz da narrativa, por isso paisagem
e ambiente só são vistos pelo leitor através dela, personagem que escancha os planos da
lógica. Em sua tipicidade, a personagem causa estranhamento ao leitor, provoca-lhe ao
mesmo tempo o riso e o susto, propondo a leitura de um périplo insólito em que o
sublime dribla com o grotesco, e assim a trama se constrói por caminhos diversos que se
bifurcam em sua interpretação. No Prefácio, lê-se:
Nem será sem razão que a palavra ‘graça’ guarde os sentidos de gracejo, de
dom sobrenatural, de atrativo. No terreno do humor, imenso em confins vários,
pressentem-se mui hábeis pontos e caminhos. E que na prática da arte
comicidade e humorismo atuem como catalizadores ou sensibilizantes ao
alegórico espiritual e ao não-prosaico, é verdade que se confere de modo
grande. (ROSA, 1994:519)
Catalizadora da atenção do leitor de modo ora cômico ora trágico, a
protagonista-narradora dele não esconde suas artimanhas ao declarar: “Fiz que quis:
saquei malinas lábias.” (p. 563), ou: “Regi de alisar por fora a vida. Deitada é que eu
achava o somenos do mundo, camisolas do demônio” (p. 564). Representada assim, a
vida de Flausina passa a ser vista por ela mesma no espelho, uma vida que requer outra
leitura, pois, como diz o Prefácio “Aletria e Hermenêutica”, “A vida é para ser lida.
Não literalmente, mas em seu supra-senso” e “a gente, por enquanto, só a lê por tortas
linhas”. Um convite a que seja removido o caráter monovalente do símbolo da mulher
como a submissa ao mundo masculino, ou, antes disso, catalisadora do mal, a criatura
que enreda e mata, e que a esse símbolo se agregue sua outra face, não apenas remirada
“na gamela da lavagem dos porcos”, mas revitalizada na imagem de mulher amada,
menina com a pintinha no queixo, “vestida de flores”.
Nem faltou no Prefácio uma reflexão acerca do símbolo, que diz: “Movente
importante símbolo, porém, exprimindo possivelmente – e de modo novo original - a
busca de Deus (ou de algum Éden pré-prisco, ou da restituição de qualquer de nós à
invulnerabilidade e plenitude primordiais)” (p. 519). Conforme declara a personagem,
ela ainda achou o fundo do seu coração, ao amar um homem bem mais jovem que vive
de admirar seus bons préstimos, “boca cheia d’água” (p. 563), situação que remete à
plenitude primordial, ao Éden pré-prisco, lugar de delícias, jardim em que Adão e Eva
viveram em tempo muito antigo, anterior a priscas eras.
Pela ampla dimensão humana do tema, não apenas a linguagem, mas o mito
também se revitaliza, de tal forma que situações criativas são reinventadas mediante
condições ambientais adversas em que o bem e o mal regem a vida, literalmente, por
dentro e por fora, uma ambivalência sempre pronta para ser lida em seu supra-senso.
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