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Flausina no espelho: imagem insólita de menina em Esses Lopes Noeli Reck Maggi (Professora Titular/UniRitter/Porto Alegre) Regina da Costa da Silveira (Professora Titular/UniRitter/Porto Alegre) Resumo: Dentre os quarenta contos publicados em Tutaméia terceiras estórias, “Esses Lopes” é um dos poucos contos com narrativa em primeira pessoa. Flausina é personagem que renega seu nome, pensando em se chamar “Maria Miss”. Em apenas três páginas, João Guimarães Rosa delineia o perfil biográfico da protagonista. Da infância, passa-se aos sonhos e imagens de uma adolescente imersa na pobreza, cedida para os Lopes. O texto encaminha o leitor pelos meandros do simbólico. Nesse sentido, nossa proposta de análise articula as ideias da psicanálise e da literatura. Palavras-chave: narrativa literária; simbólico; linguagem. Abstract: Among the 40 short stories published in Tutameia Third Stories, "Esses Lopes" [These Lopes] is one of a very few that has a first-person narrator. Flausina is the chatacter who renegades her name, wondering to be called "Maria Miss". In only three pages, João Guimarães Rosa draws the biographical profile of the protagonist. Starting at her childhood, it goes to the dreams and images of a young teenager immersed in poverty, who was donated to the Lopes. The text takes the reader through the symbolic intricacies.This way, our proposal of analysis articulates ideas of psychoanalysis and literature. Keywords: literary narrative; symbolic; language. 1 - Tutaméia terceiras estórias: os leitores e a crítica A composição da obra com seus quatro prefácios e um glossário, que agrega algumas palavras não utilizadas no texto, antecipa de certa forma o caráter insólito em Tutaméia terceiras estórias, último livro publicado em junho de 1967, por João Guimarães Rosa, falecido em novembro do mesmo ano. Dentre os quarenta contos aí publicados, “Esses Lopes” é um dos poucos que vêm narrados em primeira pessoa. Sobre a fortuna crítica da obra, Vera Novis (1989:21) já afirmava que, à época de sua publicação, o livro não merecera “mais que uma dúzia e meia de artigos e, segundo consta, uma tese universitária [...]. Enquanto a bibliografia crítica dos outros livros cresce mais e mais, Tutaméia permanece um livro pouco estudado”. Também se constata que o número de livros sobre Tutaméia era igualmente reduzido durante a década de 80, sobressaindo-se a publicação de Vera Novis e a de Irene Gilberto Simões (1988). Assim foi que o livro passou mesmo a receber a atenção dos pesquisadores a partir dos anos 90. Por essa época, os estudiosos dos contos de Rosa evidenciam descobertas significativas ligadas a um simbolismo que se inscreve de

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Flausina no espelho: imagem insólita de menina em Esses Lopes

Noeli Reck Maggi (Professora Titular/UniRitter/Porto Alegre)

Regina da Costa da Silveira (Professora Titular/UniRitter/Porto Alegre)

Resumo: Dentre os quarenta contos publicados em Tutaméia terceiras estórias, “Esses Lopes” é um dos

poucos contos com narrativa em primeira pessoa. Flausina é personagem que renega seu nome, pensando

em se chamar “Maria Miss”. Em apenas três páginas, João Guimarães Rosa delineia o perfil biográfico da

protagonista. Da infância, passa-se aos sonhos e imagens de uma adolescente imersa na pobreza, cedida

para os Lopes. O texto encaminha o leitor pelos meandros do simbólico. Nesse sentido, nossa proposta de

análise articula as ideias da psicanálise e da literatura.

Palavras-chave: narrativa literária; simbólico; linguagem.

Abstract: Among the 40 short stories published in Tutameia Third Stories, "Esses Lopes" [These Lopes]

is one of a very few that has a first-person narrator. Flausina is the chatacter who renegades her name,

wondering to be called "Maria Miss". In only three pages, João Guimarães Rosa draws the biographical

profile of the protagonist. Starting at her childhood, it goes to the dreams and images of a young teenager

immersed in poverty, who was donated to the Lopes. The text takes the reader through the symbolic

intricacies.This way, our proposal of analysis articulates ideas of psychoanalysis and literature.

Keywords: literary narrative; symbolic; language.

1 - Tutaméia terceiras estórias: os leitores e a crítica

A composição da obra com seus quatro prefácios e um glossário, que agrega

algumas palavras não utilizadas no texto, antecipa de certa forma o caráter insólito em

Tutaméia terceiras estórias, último livro publicado em junho de 1967, por João

Guimarães Rosa, falecido em novembro do mesmo ano. Dentre os quarenta contos aí

publicados, “Esses Lopes” é um dos poucos que vêm narrados em primeira pessoa.

Sobre a fortuna crítica da obra, Vera Novis (1989:21) já afirmava que, à época de sua

publicação, o livro não merecera “mais que uma dúzia e meia de artigos e, segundo

consta, uma tese universitária [...]. Enquanto a bibliografia crítica dos outros livros

cresce mais e mais, Tutaméia permanece um livro pouco estudado”.

Também se constata que o número de livros sobre Tutaméia era igualmente

reduzido durante a década de 80, sobressaindo-se a publicação de Vera Novis e a de

Irene Gilberto Simões (1988). Assim foi que o livro passou mesmo a receber a atenção

dos pesquisadores a partir dos anos 90. Por essa época, os estudiosos dos contos de

Rosa evidenciam descobertas significativas ligadas a um simbolismo que se inscreve de

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modo especial na tradição hermético-alquímica e que pode ser descoberto à luz da

psicanálise. Tome-se, por exemplo, o livro de Monique Balbuena (1994), Poe e Rosa à

luz da cabala; o de José Maria Martins, Guimarães Rosa: a alquimia do coração

(1994); o de Francis Utéza, Metafísica do Grande Sertão (1994); O Roteiro de Deus

(1996), escrito por Heloíza Vilhena de Araújo, sem enumerar aqui os que surgiram nas

décadas seguintes. Mas devemos mesmo a Benedito Nunes os primeiros estudos

filosóficos, publicados em O Dorso do Tigre (1976), que aproximam a obra de

Guimarães Rosa a Platão, Plotino, ao Upanishads e à alquimia.

2 – Flausina no espelho

A leitura que fazemos do conto “Esses Lopes” centra-se em Flausina, menina

com uma pintinha no queixo que renega seu nome, pensando em se chamar desde cedo

“Maria Miss”. Em apenas três páginas, João Guimarães Rosa delineia o perfil biográfico

da protagonista. Da infância, passa-se aos sonhos e imagens de uma adolescente imersa

na pobreza, cedida para quatro homens de uma mesma família, os Lopes. O texto

encaminha o leitor pelos meandros do simbólico. Nessa direção, uma leitura sustentada

por princípios psicanalíticos destaca a criatividade da personagem esculpida por

Guimarães Rosa, bem como os mecanismos adaptativos utilizados para enfrentar

tensões e conflitos ao longo de sua juventude junto aos parceiros na luta pela aquisição

de bens e na busca de um verdadeiro amor.

Sempre em primeira pessoa, a narrativa reencena o itinerário da personagem,

com ritos de partida, iniciação e retorno bem definidos, assim, pela própria Flausina. De

início, foram-lhes instituídas perspectivas de ideais comuns às jovens da época: “Mas

primeiro, os outros obram a história da gente” (ROSA,1994:523)1 como o desfrutar de

“noivado”, “enxoval”, “cortesias”, “igreja” e “virgindade”. Sentencia a protagonista:

“Eu era menina, me via vestida de flores”, “Mocinha fiquei, sem da inocência me

destruir, tirava junto cantigas de roda e modinhas de sentimento” (p. 523). Em sua fase

de partida, a jovem mulher vê-se privada das figurações da infância, quando seu retrato

e seus sonhos paradisíacos foram substituídos por uma imagem grotesca: “linda eu era

até a remirar minha cara na gamela dos porcos, na lavagem”. À menina vestida de

sonhos e “de flores” - “eu me via vestida de flores”, “queria enxoval, ao menos, feito as

1 Todas as citações do conto pertencem à mesma edição. Citaremos, a seguir, apenas o

número da página.

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outras, ilusão de noivado. Tive algum? Cortesias nem igreja.” (p. 523) - sobrevém a

imagem borrada pela imundície turva da lavagem. Uma falta de transparência e de

nitidez que pode ser traduzida na metáfora do homem a quem Flausina fora doada pelos

pais: Zé Lopes, “o pior, rompente, sedutor”, “chapéu grandão, aba desabada” (Ibidem).

E a entrega da menina justifica-se, de certa forma no texto, porque “o que mais cedo

desponta é a pobreza” e porque, afinal, “de que valia ter pai e mãe sendo órfã de

dinheiro?” (Idem, ibidem).

Sobre o primeiro Lopes, que foi quem deu origem à iniciação de um périplo

calculado, medido, Flausina assevera: “me viu e me botou na cabeça”, “me pegou com

fortes braços e quentes mãos”, “aguentei aquele caso corporal”. De certo modo,

previne-se ela contra o mal que em sua vida se instaura mediante a conivência de seus

pais: “A gente tem é de ser miúda, mansa, feito botão de flor. Mãe e pai não deram para

punir por mim.” (Idem).

A partir daí, sua iniciação se propaga pelo enredo do conto, cujo final ou retorno

já de antemão o leitor fica sabendo: Flausina livra-se dos Lopes, um por um, cada um a

seu modo e a seu grau: “Por sopro do demo, se vê, uns homens caçam é isso”, provê de

dinheiro os filhos “para longe [...] viajarem gado” (p. 563) e desposa um marido jovem.

De início, a narradora declara que “A maior prenda que há é ser virgem”, ao

mesmo tempo em que expõe sua situação do presente: “Ainda achei o fundo do meu

coração”, “Livre, por velha nem revogada não me dou, idade é a qualidade. Amo um

homem.” (Idem, ibidem). Assim, ao retornar para o tempo presente da narrativa, a

narradora declara: “e eu sou de me constar em folhinhas e datas?” (p.565). Ao celebrar

sua liberdade diante do poder dos Lopes e da pobreza, ela reconquista a imagem de

mulher amada, pintinha no queixo, botão de flor.

Flausina age de modo ardiloso. Por isso, uma das leituras do conto “Esses

Lopes” a designa como “assassina” dos Lopes, “tão perigosa ou igual a qualquer

jagunço, mas que, femininamente, não confronta, nem parte para a luta” (FORTES,

2007:148). Uma designação amparada em fatos que remetem à contraindicação dos chás

e das comidas preparadas por Flausina, ao excesso de sexo a um dos Lopes, o mais

velho, e às manobras que mediaram os enfrentamentos entre os irmãos.

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Não obstante, essa riqueza do enredo criado por Guimarães Rosa possibilita

diversos olhares para a mesma personagem. Para isso, vale recordar as declarações da

protagonista, quando se refere ao “governo da vida”, à sua sujeição aos homens que

primeiro “obraram” a sua vida: “Anos me foram de gentil sujeição, custoso que nem

guardar chuva em cabaça, picar fininho a couve”, afirmando que os Lopes não lhe

davam sossego, do que resulta sua transformação: “Virei cria de cobra”. E, dando

ciência ao leitor de suas manobras, a narradora por vezes se redime: “Nem confirmo que

seja crime” (p. 564). De resto, sua vida “foi muito fatal”, casa varrida, cisco jogado

para a rua, metáfora da liberdade que a morte dos quatro homens lhe propicia, livrando-

a “do tradicional arquétipo patriarcal de mulher cordata, passiva e submissa ao domínio

masculino.” (FORTES, 2007:149). Os ritos de partida e de iniciação de Flausina vêm

moldados pela carência, sujeição e maldade, e nisso se diferem do retorno que, por sua

vez, pode ser lido como passagem restauradora do sonho, do poder e da voz da

personagem, interpretação que se alinha à leitura feita por Maria Beatriz Pacca, quando

esta sintetiza de modo objetivo e claro o destino da protagonista: “ao final de uma

sofrida jornada nas mãos de quatro homens de uma mesma família – os Lopes -,

consegue recuperar o mando de sua vida e de sua voz (PACCA, 2002:449-450).

A realidade ambiental dessa personagem tanto a potencializou em sua

subjetividade, quanto lhe possibilitou reconhecer dificuldades pessoais para convívio

com homens reconhecidamente arbitrários na forma de viver. Revela, conforme aqui se

observou, ter sido linda, até “remirar” sua “cara na gamela dos porcos, na lavagem”.

Percebe desde cedo que, embora tendo pai e mãe, era órfã de dinheiro. Era mocinha e

ainda inocente quando foi concedida pelos seus pais aos homens que possuíam dinheiro,

bens materiais, alguns vinténs, de “gente de má paz”, que “tudo adquiriam ou

tomavam”.

3 – Da remirada insólita ao impulso criativo

Se tomarmos como referência as concepções teóricas de Winnicott (1983), o ser

humano é acolhido desde o início da sua vida por um ambiente, que sendo facilitador e

capaz de sustentar a ansiedade ocasionada pela própria condição de fragilidade, confere-

lhe expectativa para poder desejar e se constituir no sentido pleno.

Flausina não sucumbe à dominação e à opressão dos Lopes. Antes disso, nutre a

esperança de desfrutar da “ilusão de noivado”. Sua criatividade é realçada desde o

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momento em que preserva seu objetivo que é obter herança, um bem de valor e

necessário para sua independência, até a escolha do objeto de amor quando decide viver

com um jovem que não corresponde à sua faixa etária, concebida formalmente para

convívio, àquela época. Constitui família, atende às exigências de homens viris, mas

subjacente a todas as promessas mantém vivo o desejo de ser livre e de usufruir de um

verdadeiro “self”2, ou seja, de manter uma vida com predomínio de espontaneidade e

liberdade pessoal.

Ao tomar parte da comunidade em que os Lopes dominavam – ao agir entre

personagens secundárias, tais como a criada Si Ana, posta para vigiá-la, as crianças da

escola, auxiliares em sua aprendizagem de ler e escrever -, a personagem rosiana

evidencia que sua vida ativa não se deixou abalar por fatores ambientais adversos que

poderiam ter sufocado seus processos criativos, como sói ocorrer, conforme Winnicott,

“com prisioneiros ou vítimas da perseguição de um regime político cruel”, mas também

“com indivíduos dominados no lar”. Flausina delineia seu próprio itinerário, reescreve a

tradição, quando reencena sua nova vida e, nesses casos de coação e de domínio, afirma

Winnicott, “somente algumas dessas vítimas permanecem criativas”. (1975:99)

Ao se referir à constituição da subjetividade a partir de um “verdadeiro self”,

Winnicott (1983) afirma que este recorre a um “falso self”, desde que as circunstâncias

ambientais assim o exigirem. Flausina se submete ao “Zé, o pior” dos Lopes, embora

tendo de se parecer com “gente miúda, mansa, feito botão de flor”.

A personagem sobrevive à situação tendo de calar “muitos prantos”, fortalecida

internamente pela esperança de amar um homem e de ser admirada pelos seus “bons

préstimos”.

Carvalho (2001) nos fala que:

A multiplicidade de personas no texto literário ilustra bem o drama teorizado

por Freud a respeito das tentativas que fazemos, para nos representar na

linguagem. Para Freud, o discurso é sempre parcial, devido à divisão entre

consciente e inconsciente e pela interferência mútua entre aquilo que dizemos

e aquilo que é excluído do nosso discurso. Toda auto-representação será,

portanto, precária e provisória, mas, ao mesmo tempo, marcada pela

singularidade de uma subjetividade que não cessa de inscrever-se e de

2 “O gesto espontâneo é o self verdadeiro em ação. Somente o self verdadeiro pode ser

criativo e se sentir real.” (WINNICOTT, 1983:135).

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inventar-se em cada uma de suas formas de expressão e construção.

(CARVALHO, 2011:257)

Flausina revela ser amante dedicada para seus companheiros, entretanto tratava-

se de um amor prático, condicionado a algumas possibilidades materiais como

“enxoval”, “ilusão de noivado” como tantas moças da época desfrutavam. Diz que não

teve nenhum agrado ou “cortesias” e tampouco “igreja” para registrar e concretizar os

ideais de menina “virgem”, ideal que ela mesma expressa, ao afirmar que a maior

prenda que há é ser virgem. A jovem ainda menina, por meio do olhar soturno dos pais,

foi entregue ao homem mais “rompente” e também “sedutor”. “O homem me pegou,

com quentes mãos e curtos braços, me levou para uma casa, para a cama dele. Mais

aprendi lição de ter juízo. Calei prantos. Agüentei aquele caso corporal.” (p.523).

Winnicott (1983) destaca o ambiente facilitador como elemento importante para

que o sujeito se constitua com um eu capaz de suportar as frustrações. É indispensável

que esta facilitação não seja plena e que o sujeito enfrente certas resistências para que,

diante de possíveis desadaptações, possa viver a experiência de modo criativo e

espontâneo com a realidade. Flausina não esconde seus ressentimentos por ter sido

usada por esse Lopes de “chapéu grandão e de aba desabada.”

O afeto de Flausina estava pulsando internamente e necessitava ser deslocado

para um objeto de amor que correspondesse ao que estava sendo gestado internamente

como: “Eu era menina, me via vestida de flores. [...] Eu queria me chamar Maria Miss”.

Esse afeto não poderia ser esquecido, reprimido ou banalizado uma vez que eram

muitos os ideais a serem alcançados e experimentados a partir do reconhecimento da

sua origem humilde junto da sua família. Sobre a relação entre o afeto em seu duplo

aspecto e a linguagem, podemos ler o seguinte comentário:

Como nos mostra Julia Kristeva, isso se deve ao fato de que, sendo

irredutível aos sentimentos, o afeto no seu duplo aspecto de fluxo energético

e de inscrição psíquica, embora fora da linguagem, traduz-se com uma

extraordinária fidelidade: “o afeto não passa pela linguagem, e quando esta se

refere a ele, este não se liga à linguagem como se liga a uma idéia. A

verbalização dos afetos (inconscientes ou não) não tem a mesma economia

que a das ideias (inconscientes ou não)”. (CARVALHO, 2011:272)

O fortalecimento de um ego grandioso emprestado pela força dos cuidadores

também auxiliou a protagonista rosiana a confrontar-se com o desafio dos Lopes: a

entrega da menina para uma suposta vida melhor, por dinheiro e por outras regalias.

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Ao ler o conto de Guimarães Rosa, pensamos no significado e no sentido

atribuído ao personagem e:

O sentido é aquilo que não está nem pode estar dado, que vai além do dado.

[...] busca-se o sentido, mas ele atravessa sonoridades, associações

vocabulares, sintáticas, semânticas, estilísticas e o mais, quando submetido

ao cristal de diferentes línguas, épocas e sensibilidades. Ele permanece

singular: adere e escapa ao mesmo tempo à língua e à sensibilidade que o

convocam. Este o movimento pelo qual a obra vem à vida – sua abertura

indeterminada, sempre pronta a dizer outra coisa, e outra mais. (LUZ, 2007:

14-15)

Quanto a nós, leitores, procuramos encontrar o sentido do texto a partir de

nossas percepções. Estas nos encaminham para a leitura e interpretação das metáforas e

das conotações diversas que geram a chamada polissemia. Buscar o sentido do texto é

reconhecer sua abertura, “pronta a dizer outra coisa”, mas é também perceber que a

polissemia será sempre neutralizada pelo contexto da narrativa.

4 – Literatura e supra-senso

Para usar os termos “literário” e “literatura”, Terry Eagleton define-os segundo

várias concepções: uma escrita imaginativa, oposição estabelecida entre verdade

“histórica” e verdade “artística”, entre outras. Sobre a estranheza, que para alguns

formalistas russos caracterizava o texto literário, Eagleton afirma que “todos os tipos de

escrita podem, se trabalhados com a devida engenhosidade, ser considerados

estranhos”. Isso porque “O discurso literário torna estranha, aliena a fala comum; ao

fazê-lo, porém, paradoxalmente nos leva a vivenciar a experiência de maneira mais

íntima, mais intensa” (EAGLETON, 1983:5). Adiante, o autor trata da especificidade do

texto literário, afirmando:

Alguns textos nascem literários, outros atingem a condição de

literários, e a outros tal condição é imposta. Sob esse aspecto, a

produção do texto é muito mais importante do que o seu nascimento.

O que importa pode não ser a origem do texto, mas o modo pelo qual

as pessoas o consideram. [...] Nesse sentido, podemos pensar na

literatura menos como uma qualidade inerente, ou como um conjunto

de qualidades evidenciadas por certos tipos de escritos [...] do que

como várias maneiras pelas quais as pessoas se relacionam com a

escrita.” (EAGLETON, 1990:12-15).

Inscrita como revitalizadora da linguagem, a literatura rosiana engaja o leitor

justo diante do estranhamento que o incita a procurar sentido e, ao fazê-lo, “reflete sobre

o sentido existencial”, a ponto de vir “a se transformar de mero consumidor num

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participante ativo do processo criador” (COUTINHO, 1994:14). Ao prefaciar a obra

Ficção Completa, Eduardo Coutinho lança sua remirada sobre a obra rosiana,

assinalando que Guimarães Rosa fornece ao leitor a palavra, “por meio das inovações

que introduz, e, ao estimular sua reflexão e consequente participação na construção da

própria obra, faz dele um grande questionador, um desbravador de caminhos”. E

acrescenta:

O leitor, para Guimarães Rosa, como aliás todo ser humano, é sempre

um perseguidor, um indivíduo inteiramente construído sob o signo da

busca, e é esta indagação que deve ser constantemente estimulada pelo

escritor. A Rosa não basta, por exemplo, tecer, como haviam feito

autores da geração anterior, uma crítica, por mais veemente que seja, a

determinada realidade, se esta crítica não se fizer acompanhar de uma

reestruturação da linguagem sobre a qual se erige. A revolução da

literatura deve partir de dentro, da própria forma literária, se se quer

atingir o leitor de maneira mais plena, e é este o sentido último da

revolução estética levada a cabo por Guimarães Rosa. (COUTINHO,

1994:14)

No texto crítico de Maria Beatriz Pacca (2003), A Revitalização da Linguagem

em "Esses Lopes", a autora parte do nível morfológico e chega ao sintático em sua

metodologia. No nível morfológico, ela trata dos neologismos e dos arcaísmos dentre os

exemplos encontrados no conto “Esses Lopes”; no nível sintático, verifica as expressões

em que ocorrem a subversão da ordem e a modificação dos clichês. Também é possível

examinar nesse conto a economia de conetivos e o uso revitalizado dos pronomes

possessivos. Para Coutinho:

Exemplos de processos de revitalização da linguagem podem ser extraídos de

cada linha das narrativas de Guimarães Rosa e já foram exaustivamente

listados e examinados em estudos dedicados pela crítica sobre aos aspectos

linguísticos e filológicos de sua obra. (1994:15)

Não se pode esquecer do caráter de brevidade que têm os contos, em sua maioria

escritos em apenas três páginas, extensão imposta pela Revista Pulso, em que eles foram

publicados antes de se somarem aos quatro prefácios3 para compor Tutaméia. Paulo

Rónai (In: ROSA, 1976:162) assegura ao leitor que, nesse livro de quarenta contos,

“Longe de constituir um convite à ligeireza, o tamanho reduzido obrigou o escritor a

3 Sobre a incógnita de haver quatro prefácios em Tutaméia, Maria Lucia Guimarães de Faria, em “Do cômico ao excelso: um

prefácio rosiano”, busca significados no imaginário simbólico: “Prefaciar-se quatro vezes significa ver-se sob quatro pontos de vista

diferentes, em quatro momentos diversos de escritor, atitude que coloca a criação sob um perspectivismo, que divulga o quanto ela tem de brincadeira, de confissão, de autobiografia, de ebriedade, de caos, cuja mistura, num caldeirão mágico, compõe o subsolo

selvagem da obra, infenso a qualquer determinismo lógico e afeito àquela loucura sagrada que constitui a verdadeira fonte da

inspiração. Quatro vezes prefaciar-se significa, também, incessantemente recomeçar, de modo a jamais se enquistar numa modalidade única de criar e de sentir, mas abrir-se aos quatro ventos, endereçar-se às quatro direções cardeais, buscando sempre o

princípio quaterniforme sobre o qual se assenta a harmonia do universo.” (http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/garrafa8/na-

marialucia.htm)

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excessiva concentração. Por menores que sejam, esses contos não se aproximam da

crônica. [...] Nem desta vez a tarefa do leitor é facilitada.”

Na transfiguração do real em que o mito e a fantasia transcendem a lógica

racionalista, Tutaméia se inscreve como obra que contém as confissões mais íntimas de

seus narradores envolvidos poeticamente em metamorfoses lexicais e sintáticas. É o

caso da narradora-protagonista de “Esses Lopes”. Não por acaso, esse conto compõe o

conjunto encabeçado pelo primeiro prefácio, “Aletria e Hermenêutica”, uma pequena

antologia de anedotas insólitas que versa sobre o absurdo ou o nonsense. Aletria é uma

massa fina que bem cozida serve para fazer doce, mas no título do prefácio o termo

remete à arte de ler a vida em seu supra-senso; Hermenêutica, por sua vez, é a arte de

tecer a vida, “Sintetiza em si [...] o mecanismo dos mitos – sua formulação sensificadora

e concretizante, de malhas para captar o incognoscível” (p. 519). A proposta nesse

prefácio é de se ler a vida em seu “supra-senso” ou no “não-senso”, porque “o não-

senso, crê-se, reflete por um triz a coerência do mistério geral, que nos envolve e cria. A

vida também é para ser lida. Não literalmente, mas em seu supra-senso. Está-se a achar

que se ri. Veja-se Platão, que nos dá o ‘Mito da Caverna’”. (p. 519)

Ao contrário de uma narrativa tradicional em que o ambiente é o centro e o

homem fica em segundo plano como seu mero representante, no conto em questão,

Flausina é um ser múltiplo que tem merecido olhares contraditórios, ela própria é quem

delineia o seu itinerário, constituindo-se no eixo motriz da narrativa, por isso paisagem

e ambiente só são vistos pelo leitor através dela, personagem que escancha os planos da

lógica. Em sua tipicidade, a personagem causa estranhamento ao leitor, provoca-lhe ao

mesmo tempo o riso e o susto, propondo a leitura de um périplo insólito em que o

sublime dribla com o grotesco, e assim a trama se constrói por caminhos diversos que se

bifurcam em sua interpretação. No Prefácio, lê-se:

Nem será sem razão que a palavra ‘graça’ guarde os sentidos de gracejo, de

dom sobrenatural, de atrativo. No terreno do humor, imenso em confins vários,

pressentem-se mui hábeis pontos e caminhos. E que na prática da arte

comicidade e humorismo atuem como catalizadores ou sensibilizantes ao

alegórico espiritual e ao não-prosaico, é verdade que se confere de modo

grande. (ROSA, 1994:519)

Catalizadora da atenção do leitor de modo ora cômico ora trágico, a

protagonista-narradora dele não esconde suas artimanhas ao declarar: “Fiz que quis:

saquei malinas lábias.” (p. 563), ou: “Regi de alisar por fora a vida. Deitada é que eu

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achava o somenos do mundo, camisolas do demônio” (p. 564). Representada assim, a

vida de Flausina passa a ser vista por ela mesma no espelho, uma vida que requer outra

leitura, pois, como diz o Prefácio “Aletria e Hermenêutica”, “A vida é para ser lida.

Não literalmente, mas em seu supra-senso” e “a gente, por enquanto, só a lê por tortas

linhas”. Um convite a que seja removido o caráter monovalente do símbolo da mulher

como a submissa ao mundo masculino, ou, antes disso, catalisadora do mal, a criatura

que enreda e mata, e que a esse símbolo se agregue sua outra face, não apenas remirada

“na gamela da lavagem dos porcos”, mas revitalizada na imagem de mulher amada,

menina com a pintinha no queixo, “vestida de flores”.

Nem faltou no Prefácio uma reflexão acerca do símbolo, que diz: “Movente

importante símbolo, porém, exprimindo possivelmente – e de modo novo original - a

busca de Deus (ou de algum Éden pré-prisco, ou da restituição de qualquer de nós à

invulnerabilidade e plenitude primordiais)” (p. 519). Conforme declara a personagem,

ela ainda achou o fundo do seu coração, ao amar um homem bem mais jovem que vive

de admirar seus bons préstimos, “boca cheia d’água” (p. 563), situação que remete à

plenitude primordial, ao Éden pré-prisco, lugar de delícias, jardim em que Adão e Eva

viveram em tempo muito antigo, anterior a priscas eras.

Pela ampla dimensão humana do tema, não apenas a linguagem, mas o mito

também se revitaliza, de tal forma que situações criativas são reinventadas mediante

condições ambientais adversas em que o bem e o mal regem a vida, literalmente, por

dentro e por fora, uma ambivalência sempre pronta para ser lida em seu supra-senso.

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