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RELIGIOSIDADE INDIGENATRANSCRIPT
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Religies e Religiosidades no Rio Grande do Sul
(Volume 3)
Manifestaes da Religiosidade Indgena
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- Religies e Religiosidades no Rio Grande do Sul
- Volume 3 - Manifestaes da Religiosidade Indgena
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- Religies e Religiosidades no Rio Grande do Sul
- Volume 3 - Manifestaes da Religiosidade Indgena
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Religies e Religiosidades
no Rio Grande do Sul
(Volume 3)
Manifestaes da Religiosidade Indgena
1. edio
Organizao:
Eliane Cristina Deckmann Fleck
So Paulo/ SP - 2014
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- Religies e Religiosidades no Rio Grande do Sul
- Volume 3 - Manifestaes da Religiosidade Indgena
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R382 Religies e religiosidades no Rio Grande do Sul : manifestaes da religiosidade indgena / organizao: Eliane Cristina Deckmann Fleck. So Paulo: ANPUH, 2014. v.3 : il.; 23 cm. (Coleo Memria & Cultura NEMEC/PPGH) ISBN 978-85-98711-13-3 v.1 - (ISBN 978-85-64144-04-0) v.2 - (ISBN 978-85-98711-12-6) 1. Histria - Religio 2. Religio 3. Religiosidade 4. Histria Rio Grande do Sul 5. Religiosidade indgena I. Fleck, Eliane Cristina Deckmann (org.) II. Srie. CDU 94:21(816.5)
Ficha catalogrfica elaborada por Simone G. Maisonave CRB 10/1733
Capa: Antnio Augusto Pereira da Silva Email de contato: [email protected] Imagem de capa: Foto de Raquel Heidrich Disponvel em:
http://www.clicrbs.com.br/rbs/image/6232478.jpg Editorao: Gizele Zanotto Reviso tcnica: Gizele Zanotto
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- Religies e Religiosidades no Rio Grande do Sul
- Volume 3 - Manifestaes da Religiosidade Indgena
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Os estudos sobre Memria e Cultura (em suas variadas expresses materiais e imateriais) articulam vrias abordagens, problemticas e propostas de pesquisa desenvolvidas na rea das Cincias Humanas. Coadunando perspectivas terico-metodolgicas com anlises empricas, suas repercusses incidem no perceber e compreender como as relaes sociais e histricas se articulam, dinamizam, desenvolvem e se cristalizam na perspectiva de seus agentes e da sociedade ampla que integram. Neste sentido, as repercusses das pesquisas excedem o espectro especfico das discusses historiogrficas para abranger, tambm, anlises sociolgicas, filosficas, institucionais, do cotidiano, das vises de mundo e das aes decorrentes de tais compreenses. A coleo proposta pelo Ncleo de Estudos de Memria e Cultura (NEMEC), vinculado ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade de Passo Fundo (PPGH-UPF).
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PUBLICAES DO GTHRR/RS
1) Histria das Religies e Religiosidades Volume 1. Org. Gizele Zanotto. Passo Fundo: PPGH/UPF, 2012 Disponvel para aquisio impresso ou ebook em https://clubedeautores.com.br
2) Histria das Religies e Religiosidades: espiritismo e religies medinicas Volume 2. Orgs. Beatriz Teixeira Weber e Gizele Zanotto. So Paulo: ANPUH, 2013. Disponvel para aquisio impresso ou ebook em https://clubedeautores.com.br
3) Histria das Religies e Religiosidades: Manifestaes da Religiosidade Indgena Volume 3. Org. Eliane Cristina Deckmann Fleck, 2014. Disponvel para aquisio impresso ou ebook em https://clubedeautores.com.br
4) Em produo: Histria das Religies e Religiosidades: Neopentecolstalismo Volume 4. Orgs. Vitor Biasoli e Gizele Zanotto.
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GTHRR/RS
O Grupo de Trabalho de Histria das Religies e das Religiosidades Ncleo Rio Grande do Sul, foi constitudo em 2011. A partir de ento vem progressivamente congregando pesquisadores e estudantes que se dedicam anlise e compreenso das tradies religiosas e culturais no estado.
GESTES DO GTHRR/RS
2011/2012 Presidente: Gizele Zanotto (UPF) Vice-presidente: Marta Rosa Borin (UFSM) 1. Secretrio: Gabriel de Paula Brasil (FAPA) 2. Secretrio: Anna Paula Bonnenberg dos Santos (UNISINOS) 2013/2014 Presidente: Gizele Zanotto (UPF) Vice-presidente: Marta Rosa Borin (UFSM) 1. Secretrio: Anna Paula Bonnenberg dos Santos (UNISINOS) 2. Secretrio: Vincius Marcelo Silva (FAPA) Divulgao: Gabriel de Paula Brasil (FAPA)
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SUMRIO
Apresentao Eliane Cristina Deckmann Fleck
11
Aspectos Fundamentais da Religio Guarani Graciela Chamorro
25
Histria e religiosidade indgena: reflexes sobre um campo e um tema Luisa Tombini Wittmann
47
Xamanismo e ontologia entre coletivos kaingang no Rio Grande do Sul Sergio Baptista da Silva
69
O xamanismo kaingang: a relao dos kuj com os espritos animais/vegetais da floresta e os santos do panteo do catolicismo popular Rogrio Rosa
97
O processo de luta pela terra e a atuao dos anderu (lideranas religiosas) Kaiow e Guarani em Mato Grosso do Sul Rosa Colman
129
O discurso Mby-Guarani sobre as religies dos brancos Martin Cesar Tempass
153
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O caminho encantado ao Xam Guarani das Cinco Onas: vivncia prtica da espiritualidade M'bya Cludio Baptista Carle
177
Os mitos indgenas como construo da realidade: anlise do contato com os espanhis atravs do entendimento mitolgico chaquenho no sculo 18 Guilherme Galhegos Felippe
205
Pelos aldeamentos e rancheros: remanescncias da religiosidade dos ndios missioneiros Jacqueline Ahlert
235
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Apresentao
Entre as inmeras representaes sobre os ndios sul-americanos,
prevaleceu a de que eram srios e melanclicos habitantes da selva. Segundo
alguns antroplogos do sculo XIX, em nenhuma parte do mundo teriam sido
ouvidos, antes de 1492, risos menos alegres do que na Amrica. O chamado
homem vermelho seria igual sob qualquer clima do continente, e do mesmo
modo, seria sombrio em todos os lugares. Silencioso, ensimesmado, um ser com
uma segurana e grave atitude. Foi assim, tambm, que alguns ilustres
representantes da historiografia brasileira do incio do sculo XIX descreveram
os ndios americanos. Sorumbticos e taciturnos como os portugueses, os ndios
se oporiam aos negros e aos mestios, que alegrariam o cotidiano da colnia
com suas danas lascivas. Para outros, no entanto, o riso ocuparia lugar especial
nas emoes e no cotidiano dos ndios, que levavam vida feliz, serena e sem
tormentos entre festas, danas, cantos e guerras e no possuam outro objetivo
que o de pr prova sua coragem e bravura.
Na Carta de Caminha, tida por muitos historiadores como viso
inaugural do Brasil e de suas gentes, encontramos registradas as primeiras
situaes de contato entre marinheiros e indgenas que viriam determinar a
descrio dos indgenas como naturalmente alegres e muito dados ao folguedo.
Na narrativa do escrivo, encontramos tambm menes ao reconhecimento
das diferenas e semelhanas e, muito especialmente, de certa predisposio dos
indgenas converso, pois nos pareceu a todos que nenhuma idolatria, nem
adorao tm. (...) o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que ser
salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela
deve lanar.
Iniciada a colonizao, os registros feitos por autoridades e os cronistas
coloniais passariam a destacar distines entre os grupos indgenas contatados,
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as quais viriam determinar representaes como a do cinzento
acabrunhamento dos Guarani e a da cultura alegre e sorridente dos povos
Tupi.1 A alternncia de descries sobre os indgenas, ora apresentados como
folgazes e muito alegres, ora como agressivos e belicosos viria reforar a
consagrada e tambm contestada inconstncia da alma selvagem, to brilhantemente
analisada pelo antroplogo Eduardo Viveiros de Castro.2
luz dos debates teolgico-filosficos e jurdicos em curso no sculo
XVI, os indgenas foram percebidos como um ramo separado da humanidade
comum que teria esquecido os preceitos divinos recebidos originalmente,3
razo pela qual seriam classificados como selvagens, homens da natureza e
gente sem histria, se tornando, assim, um campo aberto e privilegiado para
as intervenes civilizadoras e evangelizadoras que viriam a se dar a partir do
sculo XVI4. Este aspecto pode ser observado na obra Histria da Provncia de
1 SOUZA, Mrcio. Teatro sem palavras - Pindorama no primeiro sculo. In: NOVAES, Adauto. A Outra margem do Ocidente. So Paulo: Cia. das Letras, 1999, p. 105. 2 Segundo o antroplogo Viveiros de Castro, a pregao escatolgica dos jesutas fez grande sucesso, ao menos no incio, pois ela vinha ao encontro de questo-chave da religio indgena, a recusa da mortalidade pessoal. No entanto, a explicao para a receptividade (inconstante) ao discurso europeu, segundo este antroplogo, no deve ser procurada apenas ou principalmente no plano dos contedos ideolgicos, mas naquele das formas de relao com a cultura ou tradio, de um lado, e naquele das estruturas sociais e cosmolgicas globais, de outro. Esta imagem construda a partir das crnicas coloniais criticada pelo antroplogo, pois de acordo com esta percepo, os indgenas teriam obtido vantagens materiais e a sua tranqilidade atravs de gestos de fachada e da pura e simples adeso verbal, reforando a imagem de venalidade e leviandade indgenas, associadas a um instrumentalismo auto-esclarecido. Para Viveiros de Castro, os indgenas Tupinamb faziam tudo quanto lhes diziam profetas e padres exceto o que no queriam. Ele adverte que preciso, contudo, no tomar a consagrada viso da inconstncia da alma selvagem como inteiramente falsa, mas como um argumento insuficiente, na medida em que ignora, sobretudo, que a cultura estrangeira foi muitas vezes visada em seu todo como um valor a ser apropriado e domesticado, como um signo a ser assumido e praticado enquanto tal. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O mrmore e a murta. Revista de Antropologia, So Paulo, USP, v. 35, p. 38, 1992, p. 32-3. 3 MENGET, Patrick. Entre Memria e Histria. In: NOVAES, Adauto. A Outra margem do Ocidente. So Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.154. 4 Para Franois Hartog, Dizer o outro enunci-lo como diferente [...] Mas a diferena no se torna interessante seno a partir do momento em que [os dois termos] entram num mesmo sistema. A partir da relao fundamental que a diferena significativa instaura entre os dois conjuntos, pode-se desenvolver uma retrica da alteridade prpria das narrativas que falam, sobretudo, do outro [...]. Para traduzir a diferena, um dos recursos disposio do viajante a figura cmoda da inverso, em que a alteridade se transcreve como um antiprprio [...] O princpio da inverso , portanto, uma maneira de transcrever a alteridade, tornando-a fcil de apreender no mundo em que
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Santa Cruz (1576), do cronista Pero de Magalhes Gndavo, em que os ndios
so descritos como selvagens e bestiais, por promoverem guerra uns com os
outros. Se para o frade franciscano francs Andr Thevet, os ndios eram
bestas irracionais, no tinham f, lei ou religio, nem civilidade, por viverem
nos matos e nos campos quase ao modo de animais brutos,5 para o senhor de
engenho portugus Gabriel Soares de Sousa, eles no adoram nenhuma coisa
nem tm nenhum conhecimento da verdade nem sabem mais seno que viver e
morrer () falta-lhes trs letras do ABC, que so FLR ().6 Forjava-se, assim,
a partir destas primeiras crnicas coloniais, outra das mais consagradas
representaes sobre os nativos americanos: a de que no tinham religio.
J as descries feitas por missionrios da Companhia de Jesus ao
longo dos sculos XVI e XVII se caracterizariam tanto pelo desencanto diante
da constatao de inexistncia de religio, quanto pelo alento diante de indcios
de um prvio conhecimento da f crist pelos indgenas. Em razo disso, as
narrativas epistolares e as crnicas jesuticas revelam a preocupao que os
padres tiveram em definir as inclinaes favorveis e as inaptides naturais dos
indgenas, e, tambm, em justificar sua utilizao ou erradicao para o xito do
projeto de civilizao e de evangelizao. Por estarem mergulhados na mstica
salvacionista da Contra-Reforma, estes religiosos no se furtaram em registrar o
seu estranhamento e a condenao da violncia, da licenciosidade e do
desregramento associados aos cantos, bailes e bebedeiras, bem como sua
se conta. HARTOG, Franois. O Espelho de Herdoto: ensaio sobre a representao do outro. Belo Horizonte: UFMG, 1999, p. 229-231. A descoberta de uma nova humanidade no Novo Mundo, segundo Puntoni, fez com que o processo de construo da alteridade e de identificao do espao da barbrie caminhasse pari passu ao de integrao dos novos membros. Afinal, no se dominam povos porque so diferentes, mas sim, os tornam diferentes para domin-los. [...] O projeto evangelizador [...] pretendia inserir esta nova humanidade na economia divina, o que implica inseri-la na genealogia dos povos. PUNTONI, Pedro. Tupi ou no Tupi? Uma contribuio ao estudo da etnohistria dos povos indgenas no Brasil Colnia. In: RISRIO, Antnio. Inveno do Brasil. Salvador: MADE, 1997, p. 52. 5 Apud SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. So Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 151-152. 6 SOUSA, Gabriel Soares de. Notcia do Brasil. Lisboa: Publicaes Alfa S. A., 1989, p. 128. A passagem sobre a falta de F, L e R entre os ndios e a conseqente explicao, repete-se em inmeros cronistas e historiadores dos primeiros tempos da colnia. Ver tambm GANDAVO, Pero de Magalhes. Tratado da Terra do Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; So Paulo: Ed. da Universidade de So Paulo, 1980, p. 48 a 53.
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incompreenso em relao aos rituais e sentimentos expressos pelos indgenas
diante das doenas e da morte. Esta percepo os levou a descrever os indgenas
como a encarnao perfeita do xito do Demnio, na medida em que
praticavam, abertamente, atos anti-sociais e antinaturais, que se expressavam
nos gritos medonhos, nos transes dos xams, nos ritos antropofgicos e nas
prticas curativas adotadas.7
Preocupados em narrar com pormenores os progressos da
evangelizao, os jesutas pouco se preocuparam em descrever as crenas
indgenas, identificando apenas Tup como uma espcie de deus. Ao afirmarem
que os ndios no tinham religio, os missionrios reforavam sua percepo e
convico de que assim eles estariam ainda mais capacitados a receber a que
lhes ofereciam. Em sua primeira avaliao, aps chegar ao Brasil em 1549, o
padre Manuel da Nbrega8 negou qualquer indcio de religiosidade nos ndios:
gente que nenhum conhecimento tem de Deus, nem dolos, fazem tudo
quanto lhe dizem. Em carta deste mesmo ano, ao Padre Simo Rodrigues de
Azevedo, ele informa no ter encontrado no curto espao de uma semana
palavras religiosas em tupi: Trabalhei por tirar em sua lngua as oraes e
algumas prticas de Nosso Senhor, e nem posso achar lngua que mo saiba
dizer, porque so eles to brutos que nem vocbulos tm.9
Ao padre Navarro, informa que os ndios nenhum Deus tm certo, e
qualquer que lhe digam ser Deus o acreditam. E continua: Poucas letras
bastariam aqui, porque tudo papel branco, e no h que fazer outra coisa,
seno escrever vontade, e esta gentilidade nenhuma coisa adora, nem
conhece a Deus. Mas, em outro momento revelando conscincia em relao
aos limites da evangelizao Nbrega chega a pedir orientao a Simo
7 MENGET, Patrick. A Poltica do Esprito. In: NOVAES, op.cit., p. 170. 8 O padre Manuel de Nbrega chegou Bahia, em 1549, na comitiva de Tom de Sousa que veio fundar a cidade de Salvador e implantar o Governo Geral. Na trajetria de Nbrega se nota a passagem do humanista esperanoso das primeiras cartas, em que chega a exaltar as qualidades dos ndios, para o administrador pragmtico das ltimas, em que prefere depreci-los. Antes de se tornar um homem desencantado, Nbrega iniciava suas cartas ressaltando o quanto se sentia grato por ter sido enviado, como se constata nesta dirigida, em 1549, ao Dr. Navarro, seu mestre em Coimbra: a estas terras do Brasil, para dar princpio ao conhecimento e louvor de seu santo nome nestas regies. Carta IV In: MOREAU, Filipe Eduardo. Os ndios nas Cartas de Nbrega e Anchieta. So Paulo: Annablume, 2003, p. 113. 9 Carta I [1549] In: MOREAU, op. cit., 2003, p. 113.
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Rodrigues, pois como este gentio no adora coisa alguma, no cr em nada,
tudo o que lhe dizeis se fica em nada.10 Tambm Jos de Anchieta11 escreve
que: nenhuma criatura adoram por Deus, somente os troves cuidam que so
Deus, mas nem por isso lhes fazem honra alguma, nem comumente tm dolos
nem sortes [...]12, no tm juramento nem dolos13 A pgina em branco ou
ausncia de qualquer crena ou religio foi quase sempre tida como favorvel
cristianizao. Mais tarde, no entanto, esta percepo se alteraria, j que este
gentio no adora coisa alguma, no cr em nada, tudo o que lhe dizeis se fica em
nada.14
Na primeira referncia que faz a Tup, Nbrega relata o encontro que
teve com um paj que dizia ter nascido Deus [...] e que aquele Deus dos cus
era seu amigo e lhe aparecia freqentes vezes nas nuvens, nos troves e raios.
Assim, o jesuta concluiu que somente aos troves chama Tupane, que como
quem diz cousa divina. E assim ns no temos outro vocbulo mais conveniente
para os trazer ao conhecimento de Deus, que chamar-lhe pa Tupane.15 Estes
registros, mais do que apontar para uma dinmica indgena de absoro e
reelaborao da mensagem crist, atestam que o projeto de catequese exigiu a
elaborao de uma linguagem de mediao, uma linguagem simblica negociada,
inteligvel dos dois lados do encontro.16
A suposta inclinao dos indgenas ao Cristianismo aparece com
freqncia nas primeiras correspondncias, como nesta passagem em que
10 Carta XI [1552] In: MOREAU, op. cit., 2003, p. 113- 114. 11 Jos de Anchieta nasceu em 1534, nas Canrias e com 14 anos foi estudar em Coimbra no perodo ureo do Humanismo. Em 1551, ingressou na Companhia, tendo sido enviado para o Brasil, em 1553, com 20 anos de idade, para atuar junto a Manuel da Nbrega. Doente, o padre seguiu a recomendao de buscar os ares saudveis da Amrica, onde permaneceu por mais de 44 anos. Chegando ao Brasil, sua sade, efetivamente, deu sinais de melhora. Da Bahia, foi enviado a So Vicente. Em 1554, participou da fundao de Piratininga. Foi um escritor prolixo, tendo produzido uma documentao rica para anlise da natureza americana, de seus habitantes e de suas tradies culturais. 12 Carta XL [1584] In: MOREAU, 2003, op. cit., p. 112. 13 Carta XLI [1585] In: MOREAU, 2003, op. cit., p. 114. 14 Carta XI [1552] In: MOREAU, 2003, op. cit., p. 114. 15 NBREGA, Manuel da. Informaes das Partes do Brasil, [1549]. HUE, Sheila Moura. (Introduo e Notas). Primeiras Cartas do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p. 95-96. 16 POMPA, Cristina. Por uma antropologia histrica das misses. In: MONTERO, Paula (org.). Deus na Aldeia. Missionrios, ndios e mediao cultural. So Paulo, Globo, 2006, p. 123.
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Nbrega diz: Os gentios vm de muito longe para ver-nos, pela fama que
temos, e todos mostram grandes desejos. 17 Para o Nbrega otimista dos
primeiros tempos, os ndios recebem os padres com familiaridade e confiana,
vo s missas, procisses e festas catlicas com alegria e espontaneidade, pois
querem ser como ns18: com quantos gentios tenho falado nesta costa, em
nenhum achei repugnncia ao que lhes dizia. Todos querem e desejam ser
cristos, mas deixar seus maus costumes lhes parece spero. Vo, contudo,
pouco a pouco caindo na Verdade.19
Por terem informao de que os carijs eram receptivos pregao e
converso, os jesutas fizeram vrias entradas em direo ao Sul para contat-los,
uma vez que o melhor gentio que h nesta costa aquele aos quais foram, h
no muitos anos, dois frades castelhanos ensinar-lhes, e to bem tomaram a
doutrina que tinham j casas de recolhimento para mulheres como freiras e
outras de homens, como frades. E isso durou muito tempo, at que o demnio
levou l uma nau de salteadores [...].20 Definia-se, a partir de ento, a distino
entre os ndios que aceitavam as entradas dos missionrios o melhor gentio
e os que resistiam pregao do Evangelho os indomveis tapuias21 ,
percepo que se tornou recorrente e difundida atravs da literatura jesutica.22
17 Carta VIII [1551] In: MOREAU, op. cit., 2003, p. 185. 18 Hansen nos lembra que nos sculos XVI e XVII, nas misses jesuticas [...] a iniciativa de fazer da pregao oral o instrumento privilegiado de divulgao da Palavra divina pressupunha que a luz natural da Graa inata ilumina a mente dos gentios objeto da catequese , tornando-os predispostos converso. HANSEN, Joo Adolfo. A Civilizao pela Palavra. In: LOPES, Eliane; FARIA FILHO, Luciano; VEIGA, Cynthia. (orgs.). 500 Anos de Educao no Brasil. Belo Horizonte: Autntica, 2000, 2000, p. 21. 19 Carta I [1549] In: MOREAU, op.cit., 2003, p. 184. 20 NBREGA, Manuel da. Informaes das Partes do Brasil, [1549]. In: HUE, op. cit., 2006, p. 33-34. 21 Segundo Cristina Pompa, A noo de tapuias constri-se assim colada noo de serto, espao do imaginrio em que a conquista e a colonizao vo incorporando aos poucos, em posio subalterna, ao mundo colonial. Ao passo que as aldeias de ndios conquistados vo descendo para mais perto da palavra crist dos missionrios, os currais ou os engenhos, os Tapuia vo se afastando, nas serras inacessveis ou, para usar as palavras de Jaboato, nas brenhas do centro dos sertes. POMPA, Cristina. Religio como Traduo. Missionrios, tupi e Tapuia no Brasil colonial. Bauru, SP: EDUSC, 2003, p. 229. O historiador Pedro Puntoni, por sua vez, ressalta que o termo Tapuia no pode ser compreendido como um etnnimo, mas sim como noo historicamente construda. Seu significado bsico est associado a uma noo de barbrie duplamente construda. So brbaros aqueles assim considerados pelos Outros que podem ser integrados mais imediatamente Cristandade: os Tupi. [...] a integrao, ou aceitao abstrata dos Tupi como a humanidade a ser incorporada, implicava na inscrio dos Tapuia como a barbrie. PUNTONI,
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Os escritos de Nbrega e Anchieta revelam, portanto, a incorporao
de tradies e a rejeio de outras e a inscrio dos ndios na linhagem crist
de que teriam se esquecido para justificar a sua receptividade doutrina crist.
Uma representao idealizada dos indgenas servir, em razo disso, para
constituir uma imagem dos cristos como o verdadeiro ideal a ser
compreendido e imitado, permitindo um retorno da Cristandade
Cristandade,23 condicionado ao abandono das falsas memrias e a
comportamentos que expressassem a Vontade indizvel de Deus.
Assim, os missionrios jesutas acabaram por definir no apenas o que
deveria ser tido como verdadeiro ou falso, mas, tambm, quais as condutas que
levariam os indgenas a pouco a pouco carem na Verdade, a manterem-se
nela e a se transformarem na imagem restaurada da piedade crist.24 Da
mesma forma como os Apstolos dos primeiros tempos da Cristandade, os
missionrios jesutas acreditavam estar autorizado(s) a falar porque era um
emissrio inspirado pelo Esprito Santo, conhecendo as autoridades que deviam
necessariamente ser lembradas no ato, segundo os gneros, a circunstncia e as
pessoas a quem sua fala era dirigida.25
Como pode-se constatar europeus e ndios avaliaram-se e avaliam-se
a si mesmos e aos outros a partir de referenciais distintos. E isto fica evidente,
sobretudo, na forma como ambos explicaram e explicam a criao do mundo e
dos homens. Em carta de 1549, Nbrega chegou a escrever que: Sabem do
dilvio de No, se bem que no conforme a verdadeira histria [...], pois dizem
Pedro. Tupi ou no tupi? Uma contribuio para a etnohistria dos povos indgenas no Brasil colonial. Ethnos, Recife, v. 2, p. 5-19, 1997, p. 50. 22 As implicaes desse procedimento foram analisadas por Pedro Puntoni que afirmou: no caso da histria indgena, onde interesse ou desinteresse, preconceitos e comportamentos influram na definio de etnnimos, das descries de carter mais etnogrfico ou mesmo especulativo. Por vezes, o desconhecimento ou a reduo simplificadora da diversidade encontrada tambm contriburam para a imparcialidade das informaes. [...] Destaca-se recorrentemente [...] a classificao destes povos em duas unidades culturais (ou mesmo raciais) que funcionam como plos antagnicos: os Tupi e os Tapuia. Assim, no seria exagero afirmar que este binmio tem sido a chave classificatria fundamental a perpassar a documentao e a historiografia dos cronistas do sculo XVI at mesmo aos trabalhos coevos. PUNTONI, op. cit., 1997, p. 49. 23 BRAGA-PINTO, Csar. As Promessas da Histria. Discursos profticos e assimilao no Brasil colonial (1500-1700). So Paulo: EDUSP 2003, p. 50. 24 BRAGA-PINTO, op. cit., 2003, p. 76. 25 HANSEN, op. cit., 2000, p. 33.
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que todos morreram, exceto uma velha que escapou em uma rvore. E em
uma carta posterior, retomaria a associao: Tm memria do dilvio, porm
falsamente porque dizem que cobrindo-se a terra dgua, uma mulher com seu
marido, subiram em um pinheiro e, depois, de minguadas as guas, desceram, e
destes procederam todos os homens e mulheres.26 Tambm Jos de Anchieta
afirmou que os ndios tm alguma notcia do dilvio, mas muito confusa, por
lhes ficar de mo em mo dos maiores que contam a histria de diversas
maneiras.27
As manifestaes da religiosidade indgena descritas na documentao
jesutica produzida no sculo XVI e que apontam para as aproximaes que
os missionrios da Companhia de Jesus estabeleceram entre os mitos indgenas
e a narrativa bblica da criao j foram alvo de inmeros estudos realizados
por antroplogos, dentre os quais podemos destacar os de Alfred Mtraux,
Egon Schaden e de Curt Unkel Nimuendaju.28 Para muitos destes antroplogos,
os jesutas procuraram estabelecer conexes entre as "crenas" dos indgenas e
as tradies judaico-crists e esta teria sido a razo para terem registrado e
assimilado da mitologia indgena apenas os temas que pudessem ser
interpretados nos termos da religio crist, retendo da tradio oral indgena as
entidades csmicas (Tup) ou ento heris civilizadores (Sum), capazes de se
identificarem, sob algum aspecto com as figuras pessoais e bblicas de um Deus
Criador ou de seu Filho Salvador.29
Inserindo-se nos debates atuais sobre traduo e hibridismo cultural, o
historiador Adone Agnolin debrua-se sobre o encontro sacramental e ritual
entre missionrios jesutas e ndios Tupi, nos espaos coloniais da Amrica
Portuguesa durante o sculo XVI, privilegiando a noo de espao
compartilhado, no qual os inevitveis equvocos e mal-entendidos foram sendo
ajustados, na medida em que se construiu um alargamento dos instrumentos
conceituais e lingsticos necessrios para a catequese. A partir desta tica, os textos
26 Carta V In: MOREAU, op. cit., 2003, p. 127. 27 Carta XXXIX [1584] In: MOREAU, op. cit., 2003, p. 127. 28 Ver MTRAUX, Alfred. A religio dos tupinambs, So Paulo, Companhia Editora Nacional, 1950; SCHADEN, Egon. Aspectos fundamentais da cultura guarani, So Paulo, EPU/Edusp, 1974; NIMUENDAJ, Curt. As lendas da criao e destruio do mundo como fundamentos da religio dos Apapocuva-Guarani, So Paulo, Hucitec, 1987. 29 BOSI, Alfredo. Dialtica da Colonizao. So Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 68.
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- Religies e Religiosidades no Rio Grande do Sul
- Volume 3 - Manifestaes da Religiosidade Indgena
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jesuticos catecismos, vocabulrios, autos dramticos permitem entrever mais
do que as estratgias missionrias, pois permitem identificar tambm algumas posturas dos
ndios.30
Para a historiadora e antroploga Cristina Pompa, os missionrios
construram, a partir dos mitos e ritos nativos e das estruturas do paganismo
clssico e do milenarismo medieval, toda uma religio indgena, com seus
"deuses" (como Tup, figura menor na cosmogonia tupi), seus dilvios e
apocalipses, e seus "sacerdotes", em uma atitude absolutamente necessria para
a superao da principal dificuldade encontrada pelos missionrios no Brasil: a
ausncia de uma religio pag, com a qual o cristianismo tridentino pudesse se
defrontar para, ento, derrot-lo. Para Pompa, os indgenas mostraram-se
propensos a aceitar essas construes dos missionrios, mas modificaram seus
sentidos, colocando-as em seus prprios termos. Assim, as "santidades" dos
Tupinamb (com suas "igrejas", "papas" e "mes de Deus") representariam
tradues indgenas dos ritos e da mitologia crist.31 Os textos produzidos pelos
missionrios estariam, segundo ela, marcados pela polifonia, isto , pelas vozes
dos padres e pelas dos nativos, que possibilitam ao pesquisador a
reconstituio da dinmica pela qual o evento histrico da evangelizao foi
absorvido e transformado pelas culturas nativas a partir de suas prprias
representaes. Para Pompa, a relao entre missionrios e indgenas foi um
complexo e articulado trabalho de traduo recproca e de organizao dos
smbolos, frequentemente isolados e fragmentados pelo impacto cultural, numa
nova ordem significativa, que ela denomina de percurso de mediaes32
A antroploga Paula Montero, por sua vez, afirma que, diferentemente
dos cronistas coloniais, os missionrios pelo domnio das lnguas nativas
introduziram uma forma especfica e mais eficaz de dizer o Outro e inscrev-
lo, dedicando-se traduo do modo de ser do Outro. Assim, ela prope que
no deve-se buscar na documentao produzida pelos missionrios,
30AGNOLIN, Adone. Jesutas e Selvagens: a Negociao da F no encontro catequtico-ritual americano-tupi (sc. XVI-XVII). So Paulo: Humanitas / FAPESP, 2007, p. 56. 31 Ver mais em POMPA, Cristina. Religio como traduo: missionrios, Tupi e Tapuia no Brasil colonial. Bauru, SP: EDUSC/ANPOCS, 2003. 32 POMPA, op. Cit., 2003, p. 136-140.
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- Religies e Religiosidades no Rio Grande do Sul
- Volume 3 - Manifestaes da Religiosidade Indgena
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essencialmente, a originalidade indgena, mas indcios de uma dinmica de
transformao recproca em decorrncia do encontro.33
Para o historiador John Manuel Monteiro, a temtica indgena sempre
esteve presente, de uma maneira ou outra na historiografia brasileira, mas so os
antroplogos que mais se interessam pela histria indgena, isto , sobre as
perspectivas indgenas acerca de seu prprio passado. Esta arguta percepo de
Monteiro se confirma na expressiva colaborao de antroplogos neste terceiro
volume, que nos oferecem no apenas uma viso original a respeito de um tema
crucial para a historiografia e para a antropologia histrica no Brasil o das
religies e das religiosidades indgenas , como tambm apontam para a
vitalidade e a qualidade dos estudos que vm sendo realizados sobre esta
temtica nas universidades do Rio Grande do Sul. Os trabalhos divulgados neste
volume revelam, ainda, que os processos de hibridismo ou de traduo cultural,
desencadeados a partir do contato que os indgenas tiveram com a pregao
crist face implantao da colonizao no Brasil do sculo XVI e daquele
que os europeus tiveram com as mais diversas manifestaes de religiosidade
indgena, continuam sendo alvo da ateno de antroplogos e de historiadores.
Neste terceiro volume da Coletnea mantida pelo Grupo de Trabalho
Histria das Religies e das Religiosidades Ncleo da ANPUH-RS, damos
continuidade bem sucedida iniciativa de alguns integrantes do grupo, da qual
resultou o primeiro volume, lanado em 2012 e que reuniu trabalhos sobre o
tema Religies e religiosidades no Rio Grande do Sul, seguido de uma edio do ano
seguinte dedicada ao Espiritismo e Religies Medinicas. Desta vez, reunindo
trabalhos que tematizam as Manifestaes de religiosidade indgena, ele se inicia,
justamente, com uma reflexo intitulada Aspectos Fundamentais da Religio
Guarani, realizada pela teloga e historiadora Graciela Chamorro, professora de
Histria Indgena na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Mato
Grosso do Sul. Sua ateno, contudo, se volta para o estudo das experincias
religiosas e das teologias formuladas pelos povos indgenas Guarani
contemporneos, sobretudo, daqueles que habitam no Brasil e nas reas
contguas. Chamorro parte de uma reflexo sobre o que estes grupos entendem
33 Ver mais em MONTERO, Paula. Deus na Aldeia. Missionrios, ndios e mediao cultural. So Paulo, Globo, 2006,
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- Religies e Religiosidades no Rio Grande do Sul
- Volume 3 - Manifestaes da Religiosidade Indgena
[ 21 ]
por religio para, na sequncia, se deter em alguns aspectos fundamentais da sua
religio: a centralidade do conceito palavra e de como ela estrutura a
antropologia teolgica e cosmolgica dos povos guarani, os relatos das origens,
os seres sobrenaturais e sua relao com os humanos e com os demais seres, a
questo do mal e da sua superao, as experincias histricas e as imagens
utpicas.
O prximo texto da historiadora Lusa Tombini Wittmann,
professora adjunta de Histria do Brasil na Universidade do Estado de Santa
Catarina (UDESC), e intitula-se Histria e religiosidade indgena: reflexes sobre um
campo e um tema. Nele, a historiadora, a partir do referencial terico e
metodolgico da Histria Indgena, analisa fontes escritas por cronistas e
missionrios da Companhia de Jesus que atuaram na Amrica Portuguesa no
sculo XVI, com o intuito de reconstituir as experincias religiosas indgenas e
de demonstrar que a apropriao de elementos cristos fez parte do processo de
(re)construo de suas identidades.
Em Cosmo-ontologia e Xamanismo entre coletivos kaingang no Rio Grande do
Sul, Sergio Baptista da Silva, professor Programa de Ps-graduao em
Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
destaca que a cosmo-ontologia kaingang se caracteriza pela fluidez e
multiplicidade das exterioridades, sendo tambm intensamente relacional, na
medida em que coloca em comunicao seres humanos e no humanos, que
esto em constante ao e reao uns sobre os outros. Os corpos e as pessoas
kaingang so construdos, compostos, transformados e destrudos em um
contnuo processo temporal devir e ritual, que objetiva adquirir e incorporar
essncias e qualidades das alteridades predadas. Corpos e pessoas necessitam de
um constante cuidado ritual para sua formao, que para alm da obteno de
sade e proteo, precisam adquirir, na relao com as alteridades, uma
identidade prpria que as distinga das outras identidades que povoam o cosmos,
que tm corpos e naturezas diferentes, mas que possuem essncias e
propriedades imateriais necessrias constituio dos corpos e pessoas kaingang.
Segundo Baptista da Silva, o final do processo de composio ou de dividuao
do corpo e da pessoa humana culmina com a destruio deste corpo, com todos
os investimentos rituais vinculados morte e ao morto.
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- Religies e Religiosidades no Rio Grande do Sul
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J o texto O xamanismo kaingang e o poder da floresta e Deus: uma anlise da
relao dos Kuj (xams) com seus Jagr (espritos auxiliares), de Rogrio Reus
Gonalves da Rosa, etnlogo e professor do Bacharelado em Antropologia e do
Mestrado em Antropologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), inicia
com uma breve apresentao etnolgica dos Kaingang e das noes norteadoras
do xamanismo praticado nas terras baixas da Amrica Latina, para, em seguida,
caracterizar o xamanismo kaingang no sul do Brasil, detendo-se, em especial, na
anlise do poder dos xams, cuja energia advm da floresta e atravessa o devir
dos no-humanos (espritos-auxiliares), dos super-humanos (kuj/curandor) e
dos humanos (pessoas) kaingang em seus espaos. De acordo com Rosa, na
lgica do xamanismo kaingang, a floresta (a igreja verde) onde se manifesta o
tg, o poder, o agente, Deus.
O texto de Rosa S. Colman, doutoranda em Demografia junto a
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), intitula-se O processo de luta
pela terra e a atuao dos anderu (lideranas religiosas) Kaiow e Guarani em Mato
Grosso do Sul e apresenta os resultados de uma pesquisa de campo e relatos de
autores envolvidos no processo de reocupao da terra indgena Yvy Katu,
municpio de Japor, MS. Nele, sua autora aborda a atuao das lideranas
religiosas Kaiow e Guarani nos processos de luta que visam recuperao de
territrios tradicionais, tidos tambm como fundamentais para a continuidade
de suas prprias prticas religiosas. De acordo com Colman, para os
entrevistados, a presena e a participao dos rezadores, os anderu, nas
retomadas de terras de ocupao tradicional dos Kaiow e dos Guarani, so
percebidas como indispensveis para o seu sucesso.
Em Os Mby-Guarani e a religio dos brancos, o antroplogo e Ps-
doutorando DOCFIX-FAPERGS/CAPES, junto ao Programa de Ps-
Graduao em Antropologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel),
Mrtin Cesar Tempass, apresenta os resultados de uma pesquisa etnogrfica
sobre as representaes e prticas alimentares em vrias aldeias Mby-Guarani
do Rio Grande do Sul, iniciada em 2004. De acordo com Tempass, no
pensamento Mby-Guarani existe apenas um sistema xamnico-cosmolgico,
que tambm abarca os brancos que entram no esquema cosmolgico da
mesma forma como os animais. Assim, para os Mby-Guarani, apesar de as
divindades serem as mesmas, as religies podem ser diferentes, porque os
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- Volume 3 - Manifestaes da Religiosidade Indgena
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brancos desconhecem esse sistema.
O artigo O caminho encantado ao Xam Guarani das Cinco Onas: vivncia
prtica da espiritualidade M'bya, do professor do Departamento de Antropologia e
Arqueologia da UFPel Cludio Baptista Carle, reconstitui, a partir do referencial
terico de Gilbert Durand em especial, do conceito de bacia semntica do
imaginrio , a visita que fez Aldeia Alvorecer, So Miguel das Misses, no
ano de 2010. Na ocasio, os alunos do Bacharelado em Antropologia da UFPel
foram guiados pelo cacique Ariel Ortega, que lhes apresentou a cosmologia e a
religio sob a perspectiva Mbya, conduzindo-os pelos espaos da aldeia e
colocando-os, tambm, em contato com um xam, cuja fama era a de ter
matado cinco onas. A esta experincia oportunizada pelo cacique Ariel que
os guiou pelos caminhos que levavam casa da reza, mata, ao rio e casa do
kara , Carle denominou de vivncia prtica da espiritualidade Guarani.
O prximo texto, que intitula-se Os mitos indgenas como construo da
realidade: anlise do contato com os espanhis atravs do entendimento mitolgico chaquenho
no sculo XVIII, foi escrito por Guilherme Galhegos Felippe, Doutor em
Histria pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), e
contempla as reflexes que fez em um dos captulos de sua Tese de Doutorado,
defendida em 2013. Valendo-se do cotejo entre as narrativas mitolgicas
coletadas pelos jesutas que conviveram com grupos indgenas do Chaco ao
longo do sculo XVIII e os dados revelados atravs do trabalho de campo
realizado por antroplogos junto a grupos nativos contemporneos, Felippe
demonstra que a mitologia indgena, ao contrrio do que muitos acreditam, no
uma narrativa fantstica que serve como uma reserva de explicaes
metafsicas para suprir carncias filosficas de povos incapazes de descobrir o
mundo por sua prpria investigao. Os mitos, segundo ele, formavam um
sistema de referncia do conhecimento prtico e conceitual que, alm de prover
os ndios de importantes saberes a respeito dos seres e do ambiente no qual
estavam inseridos, lhes permitiam um grau de interao com a realidade
justamente porque eram operados a partir de um pensamento cosmolgico
prprio, que colocava humanos e no-humanos em uma mesma categoria de
relao social.
Finalizando o dossi, temos o artigo de Jacqueline Ahlert, que se
intitula Pelos aldeamentos e rancheros: remanescncias da religiosidade dos ndios
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- Volume 3 - Manifestaes da Religiosidade Indgena
[ 24 ]
missioneiros. Nele, a professora da Universidade de Passo Fundo (UPF)
questiona a verso do massivo retorno dos indgenas dos povoados
missioneiros orientais s matas existentes junto ao rio Uruguai, logo aps o
decreto de expulso dos jesutas em meados do sculo XVIII, e,
consequentemente, a verso do abandono das prticas religiosas por eles
vivenciadas nas misses jesuticas, apresentando e analisando indcios da
permanncia desta religiosidade em alguns espaos urbanos e rurais da regio
missioneira.
Que os artigos reunidos neste volume instiguem seus leitores a
"repensar[em], de forma crtica, tanto o passado, quanto o futuro dos povos
indgenas neste pas", como era o desejo de John Manuel Monteiro, uma das
mais decisivas e marcantes influncias neste processo de renovao das
abordagens histrico-antropolgicas, que tem promovido novas compreenses
sobre o lugar dos ndios em nossa histria.
Boa leitura!
Prof. Dra. Eliane Cristina Deckmann Fleck
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- Volume 3 - Manifestaes da Religiosidade Indgena
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Aspectos Fundamentais da Religio Guarani
Graciela Chamorro1
1- Os diversos povos guarani
Com o termo Guarani denominam-se vrias etnias falantes de lnguas
da famlia lingustica tupi-guarani, sub grupo guarani. Nas fontes histricas e
historiogrficas ele muitas vezes usado para denominar, no antigo Paraguai,
grupos guaranizados pelos prprios indgenas guarani falantes, pelos
missionrios e pelos cronistas e historiadores, que atriburam, s vezes
indiscriminadamente, o nome aos grupos que iam sendo integrados na
sociedade colonial, pois Guarani tinha passado a ser sinnimo de ndio bom e
cristianizado. Mas antes disso, parece que os grupos indgenas Guarani eram
conhecidos por nomes muito mais locais e regionais, sendo Guarani um entre
muitos nomes, como Guarambare, Tobatim, Guaira, Crio, Itatim, Carij,
Paran, Tape, Uruguai, etc. O nome Guarani prevaleceu sobre os outros nomes
certamente porque assim ficou denominado o conjunto de lnguas faladas por
esses grupos aparentados, porque essa lngua se tornou lngua oficial da misso
desde 1573 e porque os jesutas e demais conquistadores investiram na
consolidao da lngua guarani e de seus falantes, entre as bem afamadas
lnguas e bem afamados povos do mundo.
De modo que o termo Guarani tambm contribuiu para diluir as
especificidades tnicas de vrios grupos, ao longo da histria. Como nem todos
os grupos guarani falantes foram contactados ou permaneceram em situao de
1 Professora de Histria Indgena na Universidade Federal da Grande Dourados, MS.
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- Volume 3 - Manifestaes da Religiosidade Indgena
[ 26 ]
contacto no perodo colonial, nos sculos XIX e XX eles reaparecem com
nomes distintos: Tarum, Ka'agua (Caingu), Cayuz, Apapokva, Apuitir,
Baticlas ou Baaber, Chirip, etc. (Rengger 1835: 104; Ambrosseti 1895: 663).
Na classificao proposta por Egon Schaden (1974: 2), na dcada de
1940, so trs os povos indgenas guarani falantes do Brasil: Kaiowa, Nhandva e
Mbya. Kaiow uma das corruptelas de Ka'agu, denominao genrica e
depreciativa dada aos ndios que viviam margem da sociedade, da religio e da
cultura colonial, desde o sculo XVII. Nhandva significa ns; deriva do
pronome da primeira pessoa do plural, nhande, que, inclui a pessoa com quem se
fala. Mbya significa 'gente'. Esses trs correspondem, na classificao proposta,
j em 1934, por Franz Mller (1989: 12-13) para a populao indgena guarani
falante da Argentina e do Paraguai oriental, a Pa (hoje Pa), Chirip e Mby.
Para Schaden, a diviso em trs subgrupos se justifica por diferenas,
sobretudo, lingusticas, mas, tambm, por peculiaridades na cultura material e
no-material. Franz Mller apontou a cestaria tradicional de cada grupo como
elemento de distino entre os trs grupos, correspondendo ao Pa (o Kayov
de Schaden, hoje Pa-Tavyter no Paraguai e Kaiowa no Brasil) o mynaku, ao
Chirip (o Nhandva de Schaden) o adjo e ao Mby o adjaka.
Embora internamente esses grupos afirmem ser distintos entre si,
recorrente o uso do termo Guarani por indgenas e indigenistas, para unir e
fortalecer a luta por direitos comuns. Fala-se assim em Povo Guarani Grande
Povo pensando em todas as etnias dos cinco pases: Mbya (Argentina, Brasil,
Paraguai e Uruguai), Nhandeva (Argentina, Brasil e Paraguai), Kaiowa ou Pa-
Tavyter (Brasil e Paraguai), Guarajo, Sirion e Chiriguano (Bolvia).
No Brasil, dado os crescentes estudos sobre a etnia mby, ocorre
muitas vezes uma mbyaizao das demais etnias guarani falantes, no sentido
de projetar-se sobre elas o que se sabe dos Mby. Diante disso, necessrio
reconhecer e dar visibilidade s diferenas entre essas etnias, no esquecer que
elas reagiram de forma distinta s experincias histricas. Isso precisamente
importante considerar hoje, quando, para se distinguirem entre si, esses grupos
apontam seus rituais e seus cantos, suas narrativas mticas, suas formas de se
apropriarem da tradio religiosa, entre outros.
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- Religies e Religiosidades no Rio Grande do Sul
- Volume 3 - Manifestaes da Religiosidade Indgena
[ 27 ]
Cabe observar ainda que adultos e jovens kaiowa, que tradicionalmente
entendiam ser o apelativo Guarani como exclusivo dos grupos chamados
andva por Schaden, comeam a se autodenominar Guarani-Kaiow;
certamente em consequncia do novo apelativo introduzido por no indgenas
nas aldeias, para com isso explicitar que seus projetos contemplam ambas as
etnias. De certa forma, na denominao guarani-kaiow, guarani-nhandva e
guarani-mby, procura-se marcar, no sem problemas, a unidade e a diversidade
desses povos. Neste artigo, o termo Guarani usado para marcar os aspectos
comuns s diversas etnias e para especificar o povo de Mato Grosso do Sul
denominado nhandva por Schaden e Chirip no sul do Brasil. As
particularidades dos Kaiowa e dos Mbya so por sua vez indicadas pelos
respectivos etnnimos.
O termo religio, a rigor, no existe em guarani. O que existe um
conjunto de prticas, mitos, crenas, histrias e prescries que os Guarani,
Kaiow e Mby atuais identificam como seu bom modo de ser, ande reko
katu. Isso mostra que o que ns chamamos 'religio' esses grupos indgenas no
o separam dos demais componentes do seu 'sistema cultural', teko, nem a vivem
numa lgica heteronmica, sob o imperativo de satisfazer a vontade de
entidades exteriores e todo-poderosas, como ocorre em outras religies. Outra
expresso aproximada de religio 'nosso modo de virtuoso de viver, ande reko
marngatu. Como em outras religies, h uma verso mais cotidiana, popular, por
assim dizer, e uma mais filosfica, de religio.
2- Verso mtico-histrico-filosfica da religio
Nesta perspectiva mais filosfica, a linguagem mtico-potica
fundamental. Para aceder a esta forma de compreender religio central
compreender o que os guarani falantes entendem por palavra, a unidade mais
densa que explica como se trama esse sistema religioso e como eles tentam, com
essa categoria-existncia, compreender a complexidade da existncia humana e
da vida como um todo. Fontes sobre esse tema so Nimuendaj ([1914], 1987),
Cadogan ([1956], 1992), Schaden ([1954], 1974), Meli & F. e G. Gruenberg
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- Religies e Religiosidades no Rio Grande do Sul
- Volume 3 - Manifestaes da Religiosidade Indgena
[ 28 ]
([1976], 2008), Meli (1987, 1989) Chamorro (1995, 1998, 2004, 2008, 2010),
entre outros.
Os principais termos indgenas traduzidos por palavra so , e e
ayvu, que latu senso significam 'voz, fala, alma, nome, vida, desgnio inicial,
personalidade'. A vastido do campo semntico se explica porque com esses
termos os indgenas tentam dar conta de questes que lhes coloca a vida.
O dizer como elo entre o divino e o humano no exclui faculdades
como o ver e o sonhar do mbito das experincias espirituais. Ouvir, hendu,
e ver, hecha, originam, para os indgenas, duas formas de perceber e transmitir a
palavra. As ohendva so pessoas que escutaram a palavra da boca de outras
pessoas, suas mestras. As ohechva viram a palavra, no a aprenderam de outrem
mas a receberam por inspirao, s vezes em sonhos. A primeira experincia de
palavra mediada, condicionada; a segunda direta, incondicionada. Essas
formas de apreenso fundam dois tipos de experincias e epistemologias de
saberes espirituais. Embora todas as pessoas sejam portadoras em maior ou
menor grau de saber espiritual. A grande maioria as desenvolve no mbito do
ouvir. Poucos se submetem a exerccios espirituais que lhes proporcionam a
oportunidade de contemplar a palavra; so os ohechva.
[Os Seres Humanos no Mundo]
Os termos , e e ayvu se desdobram em diversos significados,
medida que os Guarani, Kaiow e Mby tentam explicar toda sua vida e a si
mesmos como experincias de palavra. Assim, a concepo vista como ato de
sonhar a palavra e o nascimento como ocasio na qual a palavra 'se senta' no
novo ser, oemboapyka. Esta expresso significa literalmente 'providenciar para si
um assento'. O ritual pelo qual a comunidade recebe oficialmente a nova palavra
na comunidade o mit mbo'ry, entre os Kaiowa, ocasio em que revelado o
nome divino ou divinizador da criana, ituprry. Entre os Mbya e os Guarani
durante o ritual do mitngarai, que se revela o nome do mato do menino ou da
menina, hra ka'aguy. O nome revelado nestes rituais como um pequeno verso
que a criana ir desenvolver ao longo de sua vida. Ele seu vnculo com a
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- Religies e Religiosidades no Rio Grande do Sul
- Volume 3 - Manifestaes da Religiosidade Indgena
[ 29 ]
comunidade de indgenas e com a dos seres donos-protetores da vida, tekojra,
no plano sobrenatural. Mais tarde, esse nome ser apoteoticamente confirmado
nos meninos no ritual do kunumi pepy e nas meninas no da kua koty, na
adolescncia.
As crises, tekoaku, os males e doenas da vida, mar, so explicados
como bifurcao da palavra, como dissociao entre a palavra divinizadora e a
pessoa, o que ocorre muitas vezes por influncia da sua alma de origem terrena
ou animal, ngue, que no aspira a plenificao e muito apegada ao terrenal.
Sob sua ao, o ser humano fica triste, doente e s. Perde sua verticalidade e
tende a agir como animal, encantado pela sua alma terrena. E quando sobrevm
a grande crise, a morte, e a pessoa perde definitivamente sua verticalidade e se
torna uma ex-palavra, ayvukue, eengue.
Entre os episdios mtico-histricos que fundaram o mal e bifurcaram
a Palavra ou o Dizer figuram a ira (de Nosso Pai com a Nossa Me, de Nossa
Me com Nosso Irmo Mais Velho, de Nosso Irmo mais Velho com a Nossa
Me), o desacato (de Nossa Me com o Nosso Pai), o abandono (da Nossa Me
pelo Nosso Pai), a violncia fsica (que resultou num assassinato praticado por
um ndio bbado) e a quebra de uma relao sexual proibitiva. Nas ltimas
dcadas, os episdios mais evocados como causa da bifurcao da palavra so os
sucessivos sarambi, espalhamentos e aldeamentos compulsrios das
comunidades indgenas, causados por sua vez pelos karai, no indgenas, que
adquiram as terras indgenas postas venda pelo Estado.
O processo de superao das consequncias destes males nas pessoas
que as sofreram e nas que as causaram os Guarani, Kaiow e Mby explicam
como redeno do dizer. Por isso, a principal funo dos rezadores e das
rezadoras trazer de volta, voltar a sentar a palavra na pessoa, devolvendo-
lhe assim a sade e o bem estar.
Essa redeno do dizer se expressa em vrias metforas. 'Erguer-se'
uma delas; ao lado de opu', a raiz verbal e, 'dizer', a que indica que a palavra
flui novamente pelos ossos da pessoa e isso faz com que o ser humano fique em
p, como os Seres Criadores. Buscar 'grandeza de corao, coragem', pya guasu,
outra consequncia da ao da palavra. Ela dota os seres humanos de
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- Religies e Religiosidades no Rio Grande do Sul
- Volume 3 - Manifestaes da Religiosidade Indgena
[ 30 ]
capacidade de resistir. Aspirar a 'plenificao' ou aguyje outro indicador de que
a palavra est agindo. Isso faz com que a pessoa se empenhe na busca da
perfeio/plenificao pessoal, social e ecolgica.
A serenidade a virtude mais cobiada pelos Guarani, Kaiow e Mby;
no mbito social, a reciprocidade e o entendimento; no cosmolgico, a
recuperao das virtudes gerativas originais da terra, hoje nua, cansada, doente e
desgastada pelo uso abusivo de adubos qumicos e defensivos agrcolas ou
agrotxicos. Assim, o discurso religioso uma das grandes vertentes de
imagens, de fora e de coragem, que impulsionam os Guarani, Kaiow e Mby a
se reaproximarem de seus antigos tekoha ou tekoa, hoje propriedade de no
indgenas ou reas de proteo ambiental, e a buscarem lugares favorveis para
seu modo de cultivo, caa e pesca, sua produo artesanal e sua festas.
Concebida como um corpo murmurante e transformada em lugar de
infortnio por humanos que carecem da boa cincia, os Guarani, Kaiow e
Mby anseiam uma 'terra boa', yvy por, 'terra nova', yvy pyahu, onde
definitivamente lhes seja possvel no s caar, pescar e plantar como fizeram os
personagens exemplares de sua histria, mas tambm onde possam alcanar a
palavra boa (e marae) e aproveitar as oportunidades que hoje dispem para
integrar-se como trabalhadores indgenas na sociedade no indgena.
A redeno do dizer no algo que os Guarani, Kaiow e Mby
recebem atravs de um redentor. No plano pessoal, o recebem mediante seu
empenho pessoal para desenvolver o desgnio inicial do qual cada indivduo
portador natural; no mbito social e ecolgico, mediante o esforo coletivo para
melhorar a convivncia e os meios de subsistncia na comunidade, assim como
organizando-se, especialmente entre os Kaiowa e os Guarani, em assembleias
gerais, aty guasu, que ritualizam a esperana do grupo e tentam interferir nas
polticas dos governos, atravs do contato direto com seus representantes,
atravs de cartas e manifestaes pblicas.
A plenificao em todos os mbitos, mas sobretudo no social e
ecolgico, pressupe o acesso a terras boas, frteis, cobertas de mata e bem
irrigadas. sobretudo o discurso e o empenho dos Mbya, que tm percorrido
longas distncias na esperana de encontrar terras com essas caractersticas que
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- Religies e Religiosidades no Rio Grande do Sul
- Volume 3 - Manifestaes da Religiosidade Indgena
[ 31 ]
eles possam ocupar. J para os Kaiowa e Guarani, a plenificao social e
ecolgica implica na recuperao de suas terras tradicionais, que precisam
repousar para recuperar suas virtudes gerativas. Eles no percorrem longas
distncias, mas fazem o caminho de volta. Eles saem das reservas e aldeias
criadas pelo Estado no sculo XX para os indgenas, a fim de liberar suas terras
para a ocupao 'de' e a venda 'a' no indgenas, e acampam perto das
propriedades particulares surgidas sobre seus antigos tekoha.
[Seres Divinos e Divinizados no Mundo Original]
Na verso potico-filosfica de religio, os seres humanos so uma
espcie de emanao da Palavra Fundante e Original, dos Verdadeiros Pais e das
Verdadeiras Mes das Palavras-Almas, como disseram os Mby do Alto Paran a
Len Cadogan (1992). Os humanos se distinguem, assim, dos demais seres no
seu ser ereto, que por sua vez o torna semelhante aos Seres Criadores, pois estes
criaram a terra precisamente para terem um lugar onde firmar seus ps e
poderem se levantar. Os Seres Criadores so seres completos, plenificados. Eles
so seres da plena Palavra. Neles coincide potncia e ato. Sua fala um canto.
Seu andar, um gorjeio, uma dana. Os seres humanos de certa forma vivem o
desafio e a inspirao constante de se tornarem como eles: alcanar palavras
inspiradas, poesias, cantos; atravs de exerccios espirituais perder o peso do
corpo e voar.
Entre os Seres Criadores contam-se: Jasuka ou Jasukva, 'O Princpio
Ativo do Universo'; uma srie de ande Ru, Nosso Pai; de ande Sy, Nossa Me;
ande Ryke'y ha ande Ryvy, Nossos Irmos, o Mais Velho e o Mais Novo; uma
srie de e' Ru Ete e e' Sy Ete, Verdadeiros Pais e Verdadeiras Mes das
Palavras.
Jasuka ou Jasukva a Origem. Ser impessoal - chuva mansa ou neblina
- em alguns relatos; em outros, um ser feminino, uma av da humanidade.
Substncia de vida, em todo caso, de suas seivas se alimenta o Ser Criador.
ande Ru Kura, Nossos Pais, aparecem nos relatos protagonizando a
criao do mundo. O Ser Criador pegou na sua mo uma pequena poro da
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- Volume 3 - Manifestaes da Religiosidade Indgena
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futura terra, yvy arysapy kui kuei, a soprou, oipeju, e a terra se levantou (foi
criada), precisamente porque Nossos Pais precisavam de um lugar para pr seus
ps. Quando foram criados os humanos, a terra foi esticada, ojepyso yvyr, para
que indgenas e no-indgenas tivessem um lugar para pr seus ps e poderem
se erguer e se sustentar fsica e espiritualmente. Nossos Pais entram de acordo
para a criao da mulher. Mas na verdade eles no a criam, eles a descobrem,
debaixo de uma grande panela, japepo guasu; em outros relatos, debaixo de uma
cesta, ajo, mynak, ajaka. Em todo caso, ela j estava l.
ande Ru, Nosso Pai, e ande Sy, Nossa Me, fazem a primeira roa,
fundam a agricultura. Mas eles se desentendem quando entra em cena outro
personagem, Mba'ekuaa, Aquele ou Aquela que sabe. Em outros relatos ele
aparece como Papa Ri, uma personagem mtica de origem colonial que rene a
figura do papa e do rei. ande Ru ficou com cime, suspeitou que ele tivesse
namorado sua mulher. Outro motivo de desentendimento foi ele ter pedido
sua esposa para colher milho na roa e ela ter achado descabido. Ele se ofende
com o desacato da esposa e decide abandon-la. Ela, grvida, lhe diz que fosse
embora e que ele no era o pai do filho que ela levava no ventre. Crise passional.
ande Ru envia o vento destruidor, marny. ande Sy resiste ao vento com seu
canto e salva o mundo da destruio. Tendo superado a fria do vento, ela segue
em ps de seu marido e se torna a primeira viandante. Seu filho lhe pede uma
flor no caminho, precisamente o girassol, pa poty. Ela lhe d. Ele e de pede
outro. Ela tenta quebrar a haste e picada por uma vespa. Irada, ela repreende
bruscamente o filho, que se enfeza e promete vingana. Ao chegar numa
encruzilhada, ela lhe pergunta pelo caminho que deviam tomar e ele lhe indica o
caminho errado, o que leva casa da ona. Nossa me devorada e seus filhos
gmeos nascem rfos.
ande Ryke'y e Tyvry ou ande Ryvy crescem na casa da v ona, sem
saber que a mesma devorara sua me. Conhecem o mundo, descobrem as
plantas e os animais, lhes do nome e se tornam expertos na caa e na coleta.
Certa vez, o papagaio lhes contou que a v, que eles mimavam com frutas e
animais silvestres, era a assassina de sua me. Transtornados, os gmeos saem
procura dos ossos da sua genitora. Encontram-nos e se entregam tarefa de
ressuscitar a ande Sy e romper o falso parentesco que os unia aos jaguarete,
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extinguindo a v e sua famlia. Com certo insucesso nesses projetos na terra,
eles iro se reencontrar com a me e com o pai nas esferas celestes, de onde
continuaram a olhar os felinos vidos de sangue humano, pois eles no tinham
conseguido exterminar a todos. Nas alturas, o Nosso Irmo Mais Velho recebe
as vestes litrgicas, a maraca e a cruz, at hoje usados pelos homens kaiowa.
Recebe diversas atribuies de ordem social, religiosa e csmica. Nosso Irmo
Mais Novo pde finalmente se aninhar no colo de ande Sy. Ambos os Nossos
Irmos se deliciaram com comidas feitas de milho. O mais velho vela pela terra
de dia e o mais novo de noite, na forma de sol e lua, Pai Kuara ou Kuarahy e Jasy.
Mas estes seres divinos ou humanos divinizados, ande Ypykue ou
Nossos Ancestrais, no esto ss. Eles coexistem com os outros seres, com eles
vivem na terra e percorrem diversas outras plataformas imaginrias, no tempo
das origens. O ser humano parece ser a medida. Os seres divinos ou divinizados
so como eles, se casam, se reproduzem e trabalham pela sua sobrevivncia. As
divindades so como Nossos Avs, ane Rami, e Nossas Avs, ande Jari. A
diferena est em que, no momento do relato, esses seres originais j esto
plenificados. Os animais e as plantas tambm foram humanos no princpio. O
lder religioso da comunidade kaiowa de Panambizinho costuma dizer que nisto
est uma das grandes diferenas entre indgenas e no indgenas. Estes
entendem que o ser humano est no final de uma cadeia evolutiva que comeou
com os animais microscpicos. Aqueles entendem que primeiro existiu o ser
humano e que dele procedem os animais e as plantas. Por isso, eventualmente,
ainda hoje, as plantas e os animais podem falar e se apresentar aos humanos
como humanos. Em todo caso, a matriz de cada ser continua sendo humana.
Diferente de ns outros, os Guarani se relacionam com a natureza no
como se eles fossem uma fora exterior natureza, podendo agir sobre ela
como quiser. Eles concedem natureza caractersticas humanas e incluem-na no
seu sistema social. A terra como um corpo murmurante e falante, ela se alarga
e se estende. Ela v, ouve, fala, sente, se espreguia, se alarga, se enfeita, se
cansa, adoece, viva! E pode morrer. Pode se dizer que os Guarani tm esta
autocompreenso holstica por terem sido invadidos e possudos por algo meta-
humano, por uma realidade metafsica que se expe conscincia. Dessa forma,
como o fazem outros povos, para eles, o mundo hierofnico e seus mitos
etiolgicos completam a concepo de uma natureza sagrada.
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Assim como os humanos so estruturados numa poro da sabedoria
criadora, a palavra divina, tambm a terra no encontra outro suporte vlido a
no ser nessa palavra. Para as estudantes Guarani e Kaiow da Licenciatura
Intercultural Indgena de Mato Grosso do Sul, quando se altera tragicamente o
meio ambiente at a reza e o canto ficam lerdos e tristes. E se hoje a terra est
cansada e decadente porque com o desmatamento de suas terras por no
indgenas, tambm os seres protetores das plantas e dos animais foram tambm
expulsos dessas reas.
Em fim, a ritualizao da palavra uma das formas pelas quais os
Guarani, Kaiow e Mby religam sua existncia atual, em alguns casos carente
dos bens materiais essenciais para a vida tribal, com a vida nos mitos criacionais,
onde a abundncia um dos smbolos mais destacados. Ao cantar e rezar a
palavra, por ocasio da revelao do nome das crianas, da colocao do enfeite
labial nos adolescentes, na festa dos frutos maduros, especialmente do milho,
etc., eles sustentam o mundo, imitam o ato primordial, fundam-no novamente.
Descuidar os rituais como tirar da terra seu prprio suporte (Nosso Primeiro
Pai cria o mundo num ato litrgico), provocando sua instabilidade e iminente
destruio (Meli 1988: 339).
Os Tekojra ou donos-protetores dos seres terrenos
A realidade se divide para os Guarani em seres plenos, ijaguyjvae, e
verdadeiros, heko etvae, e seres terrenos a caminho da plenificao ou perfeio,
yvypra ou yvypry. Cada ser tem duas verses: a terrena e imperfeita e a plena e
verdadeira. Esta ltima verso do ser o dono-protetor daquela, ijra. Num
jargo que se aproxima do platonismo, Cadogan considera que, para os Guarani,
os animais atuais so apenas imagens perecveis dos animais eternos
(Cadogan, 1968, p. 80). Todos os seres da cosmologia indgena, cujo manejo
de domnio indgena, tm donos-protetores, inclusive algumas faculdades do ser
humano, como o entendimento, arakuaa jra, e a fertilidade, mit jra. Mas o
eucalipto, o milho transgnico, a soja e o gado bovino no os tm, eles so de
outro sistema, no tm histria (mitos de origem), no tm palavra-alma.
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Esses donos-protetores so seres realizados, cheios de histrias prontas para
contar, so as medidas daquilo que seus duplos terrenos podem chegar a ser, se
desenvolverem, omboasojavo, ao mximo suas possibilidades de ser. Em algumas
circunstncias, parecem marcar o limite entre seres sobrenaturais e naturais.
Como os demais seres plenificados as divindades ou os seres criadores
os tekojra, so os seres enfeitados por excelncia. O enfeite, jegua, no um
acessrio, algo suprfluo ou complementar; mas algo essencial, o corao dos
seres. Por isso o enfeitar-se indispensvel no processo de aperfeioamento e
aproximao de seus pares verdadeiros. Ao escutarem suas histrias, sua palavra
original, os seres se defrontam com seu verdadeiro modo de ser; no caso do
milho terreno: com o milho que produz espigas grandes, boas e maduras; no
caso das pessoas: com seus duplos que acederam a palavras inspiradas, se
tornaram serenas e grandes de corao.
Na terra plenificada dos Kaiowa, todos os seres, tambm os humanos, so
marne, originais, vivem de acordo com os donos ou protetores de seu ser,
tekojra.
3- Experincias mais arcaicas e mais cotidianas de religio
Segundo Meli (1989, p. 322), precisamente no mbito da
personificao dos poderes da natureza que na taxionomia ocidental
corresponderia a entidades inferiores que atuam positiva ou negativamente
sobre o ser humano que se do as formas mais cotidianas da religiosidade
indgena. De fato, parte das prticas religiosas mais populares e familiares
deriva da crena nos tekojra, chamados tambm de espritos, hoje. Os
espritos so os cuidadores e guardas, herekua, ijra, dos animais e das plantas,
explica um indgena. A mata exerce um poder ambguo sobre os indgenas. Ela
fonte de vida e de perigo, por causa dos tekojra. Por isso as pessoas tm que
cultivar amizade com eles. Alm dos espritos de plantas e animais de caa, h
tambm os guardas das matas e dos montes, temidos pelos humanos, por serem
impiedosos com os que derrubam as matas e caam os animais. Os humanos
tentam aplacar a ira desses espritos tutelares atravs de rituais familiares que
celebram uma espcie de missa em favor do protetor e do animal que querem
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caar. provvel que esses guardas da natureza representem as crenas
religiosas mais arcaicas, relacionadas com uma forma de vida e uma economia
de coletores e caadores (Meli, 1989, p. 328).
Essas formas arcaicas de relao com a natureza parecem ser
experincias no nvel de conscincia da no-dualidade entre objeto-sujeito, ser
humano-divindade, ser humano-natureza. H nelas uma vivncia religiosa em
que a natureza se torna teofania e em que a ao humana sempre ritual (Csar,
1988, p. 84). Entre os Kaiowa, um tipo de canto chamado guahu ai exemplo da
profunda reverncia que os animais recebem dos indgenas. Nesses cantos, o
mais importante no o que se canta, mas o cantar em si. O significado de
guahu pranto e, de fato, neste contexto, o canto uma espcie de lamento ritual,
um tipo de funeral pelos animais, sua encomendao. Esses cantos so entoados
geralmente antes de sair para a caa, seja para enamorar/atrair o animal para a
armadilha, seja para afastar outros caadores da trilha. relativamente evidente
que neste limite entre natural e sobrenatural, os povos guarani experimentam
com frequncia muitos medos.
Outro aspecto da cultura indgena que marca bastante o cotidiano e
poderia ser tratado como uma verso, por assim dizer, mais popular da
religio, o feitio, baseada na palavra m, na m cincia, no juzo dos filsofos
e telogos guarani nas cincias da religio. O feiticeiro sempre o outro. Este
sabe manipular a palavra para causar o mal diretamente pessoa em vista, por
exemplo, causar-lhe a morte, ou mobilizar nela as foras autodestruidoras, que
podem lev-la tristeza, a ter desejos descontrolados, a querer beber lcool, a se
drogar, a se suicidar. O feitio muito temido e as pessoas incautas podem cair
facilmente na sua rede. Uma simples gripe pode despertar a suspeita de que a
pessoa doente foi vtima de feitio. Se no for removida a suspeita, busca-se um
feiticeiro ou uma feiticeira para operar um contrafeitio. A feitiaria uma
prtica muito combatida pelos intelectuais do grupo.
Embora este artigo no se ocupe com o pentecostalismo indgena, vale
a pena indicar que provavelmente o fascnio exercido pelas igrejas pentecostais
entre os Guarani seja por elas combaterem a feitiaria atravs de uma espcie de
contrafeitio cristo, que por um lado tenta exorcizar o medo e por outro o
alimenta.
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4- A terra sem males: uma entre vrias imagens utpicas
Terra sem males um tema que tem dominado o imaginrio dos estudiosos
dos povos guarani, indicando s vezes uma espcie de compulso: onde se fala
de guarani tem que se falar de migrao em busca da terra sem males. Escrevi
um artigo (Chamorro 2010) precisamente para mostrar que os diversos grupos
guarani descrevem e concebem suas utopias de vrias formas e que as mesmas
no lhes roubam a dimenso histrico-social da experincia religiosa, como em
muitos estudos.
A expresso yvy marne foi registrada j por Ruiz de Montoya ([1639]1876:
209), como 'solo intato' e mata virgen, com um claro sentido econmico e
ecolgico. Isso j no foi o caso de Nimuendaj, que traduziu a expresso por
terra sem males e o situou exclusivamente no campo religioso. Meli (1989: 17-
29) chama a ateno para essa transformao semntica. No sculo XVII, a
busca da terra sem males teria sido de fato a procura de uma terra nova para
ocupar e colonizar, pois quando a terra estava cansada, mudava-se o local da
roa, entrava-se na mata ainda intacta e abria se nela uma clareira, para roar e
plantar. A rotao dos cultivos e das roas para lugares mais distantes
certamente implicava tambm na rotao das moradias e dos lugares de coleta e
caa. Essa forma de ocupar o espao permitia manter certo equilbrio entre a
populao e os recursos. Quando a expresso reaparece, no sculo XX,
prevalece nela a dimenso transcendente, no sentido de indicar algo alm
deste mundo, pois as condies de vida deixadas pelas histrias coloniais
entravam cada vez mais a mobilidade tradicional dos grupos indgenas. A seguir
as diversas imagens utpicas dos Guarani.
Apaokva e Nhandva
Entre os Apapokva a busca da terra sem males esteve vinculada a um
deslocamento por longas distncias, inspirada em revelaes recebidas em
sonhos e motivada pela imagem de que no oeste a terra j comeara a ser
destruda. Nessas circunstncias, eles relataram ao indigenista que os
acompanhava, Nimuendaj, o que seus ancestrais fizeram no passado para fugir
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do mal. Eles teriam construdo uma casa de madeira, entrado nela e comeado a
danar e a cantar, enquanto a inundao avanava sobre a terra. Nosso Pai teria
ento lhes dito que se cuidaram e que no tivessem medo, mas que resistam
com coragem. A casa teria ento se movido, girado e flutuado sobre as guas;
teria subido e partido em direo outra margem da grande gua, a porta das
esferas celestes, onde eles desembarcaram. E precisamente esse lugar que
recebeu o nome de yvy mare, que Nimuendaj traduziu por 'Terra sem Males'.
Nela, segundo o relato indgena, as plantas nascem por si s, os frutos da terra
se auto-processam e se transformam em pratos tradicionais da culinria
apreciada pelo grupo, a caa chega aos ps do caador j abatida, as pessoas no
sofrem, nem envelhecem, nem morrem (Nimuendaj 1987: 154, 156).
Os parentes linguisticamente mais prximos dos desaparecidos Apapokva
so os Guarani (Nhandeva). Estes usam ainda hoje a expresso yvy mare, sem,
contudo, associ-la a um deslocamento geogrfico, com ou sem motivaes
religiosas. Mesmo nas aldeias do litoral que resultaram de fluxos migratrios
ocorridos nos sculos passados, no h, desde 1950, notcias de que grupos
Nhandva tenham estado em movimento na busca de uma Terra sem Males
(Ladeira (2007: 48). Como j o prprio Schaden observara, no final dos anos
quarenta e incio dos cinqenta, as migraes Nhandva j tinham cessado h
decnios, a populao tinha se conformado com a inexeqibilidade de seu plano
(Schaden 1974: 172).
Segundo Ladeira (2007: 44), na atualidade h mesmo uma posio explcita
das comunidades Nhandva contra os Mby viandantes do Brasil. Elas
manifestam claramente aos brancos suas objees com relao ao
comportamento dos Mbya. As pequenas roas Mby no litoral, seus
assentamentos em diversos pontos e a conservao das relaes com seus
parentes do Rio Grande do Sul e da Argentina implicam em um movimento e
trnsito inaceitvel e perturbador para os Nhandva, na medida em que a estes
lhes incontrolvel a passagem dos Mby por suas terras.
Outra expresso que eventualmente usada com o significado aproximado
de Terra sem Males, pela populao Guarani ou Nhandva do Brasil e, s vezes,
tambm pelos grupos Kaiow, yvy omimbyre, que significa 'terra guardada'.
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Apaokva e Mbya
A expresso yvy mare, 'terra sem males', usada pelos Mbya2.
Procedentes do Sul do Brasil meridional, da Argentina e do Paraguai, eles,
atrados pelo mar, para, e pelo alm mar, para rovi, ocupam a costa brasileira,
preferencialmente as reas que fazem parte das Unidades de Conservao e
Proteo Integral (UCPI). Segundo o atlas sobre as terras guarani do litoral (CTI
2004) h na costa brasileira setenta e cinco reas de ocupao Mby. A estes
setenta e cinco agrupamentos devem ser somados os assentamentos Mby dos
estados do Norte do Brasil.
Em seu livro, O caminhar sob a luz, Ladeira (2007: 66-67) pondera que,
na dcada de 1980, o motor mtico-religioso da mobilidade Mby no era
considerado nos estudos etnolgicos. A autora se props, assim, a preencher
com seu trabalho essa lacuna e considerar as narrativas mticas Mby como
registro histrico da presena Mby no litoral e como fonte dos preceitos e
pressupostos que mobilizam essa populao (Ladeira 2007: 26). interessante
observar nessa obra e em outras que nos muitos usos da expresso mare, sem
males, alternam o aqui e o alhures. As imagens que ela suscita dizem respeito
tanto terra como espao fsico e base biolgica como terra enquanto espao
primordial, onde se inaugura e renova a existncia.
Aplicada vegetao nativa e aos cultivares, mare indica dois espaos
bem diferenciados, a mata e a roa. Segundo um interlocutor, W.T., de Clvis
Antonio Brighenti (2010: 162), a terra deve ser suficiente, ter terra boa com
mato, com gua, suficiente para vida cultural. O indgena aponta para a terra
vermelha, para indicar que essa a terra boa, em contraposio terra
arenosa. Ele explica, pensando em sua famlia extensa, que a terra suficiente
quando uns doze casais com crianas podem tirar dela o seu sustento. A terra
deve possibilitar vida cultural. Deve ser plana, de fcil acesso para os parentes
se visitarem. O mato faz parte da vida cultural. Segundo o interlocutor, a relao
2 Cabe lembrar que estes grupos no so homogneos. Os Mby do litoral, minoritrios em relao do interior, por exemplo, so mais viandantes que os do interior dos Estados brasileiros sulinos. Estes interioranos, embora se desloquem eventualmente ao litoral para visitar seus parentes, mantm
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de seu povo com o mato ainda no foi suficientemente aprofundada nos
estudos, porque no se sabe nem se imagina a importncia que o mato tem.
Alm de ser fonte de alimento e remdio, o mato o local onde se aprende as
tcnicas e os saberes tradicionais. Mare afirma ainda a sociabilidade e o ideal
pacifista do grupo.
Duas canes do CD gravado 1998 pelos grupos Mby de So Paulo e
Rio de Janeiro fazem referncia a essa terra e sua localizao, no alm mar.
Uma mulher canta meu irmozinho, che kyvyi, voc que partiu, ereo rire,
volte logo para irmos (...) juntos ao outro lado do mar, ejevy voi jaa agu (...)
jaamavy joupivei para rovi.3 Em outra cano, os cantores pedem a Nosso Pai
que lhes ensine o caminho que conduz sua morada, caminho pelo qual pode
se transpor o mar, para rovi japyr agu.
Que esse alm-mar no est descolado de um aqum nos indica o
canto nove do CD j mencionado. Nele, as crianas cantam para a sociedade:
Devolvam, devolvam a nossa terra que vocs tomaram, para que o povo Mby
viva novamente. Gravada e publicada nos anos noventa, a cano era ento
uma novidade no hbito Mby. Por muito tempo esse povo foi relativamente
avesso demarcao (Ladeira 2007). Os procedimentos administrativos
implicados na demarcao e na luta pela demarcao eram incompatveis com a
imagem de uma terra sem limites predominante no imaginrio e na lembrana
das pessoas mais velhas. No entanto, nos anos noventa, a demarcao e os
estudos em vista demarcao vm sendo aceitos para assim conseguir
espaos mnimos para sobreviver (Brighenti 2010: 161).
Nesse sentido, vale observar que, nos ltimos anos, entre os lderes
indgenas nascidos e socializados nas aldeias do litoral, h aqueles que parecem
menos engajados ao estar a caminho e mais propensos a fixar residncia nos
locais que esto sendo regularizados e lhes parecem bons para se viver. De igual
forma, a implementao da educao escolar indgena e de outros projetos nas
nas regies contguas ao rio Paran, nas reservas florestais da regio e nos seus antigos tekoa, suas referencias espaciais mais significativas. 3Canes de contedo semelhante foram recolhidas na dcada de quarenta por Egon Schaden (1974: 158) e nos anos oitenta por Maria Ins Ladeira (2007: 151).
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comunidades Mby parecem ter causado mudana de atitude nesses viandantes
perante a sociedade no indgena e suas instituies.
Durante as ltimas cinco dcadas, cercada pela monocultura sobre suas
aldeias no Oeste brasileiro, no Leste do Paraguai e, parcialmente, no nordeste
argentino, parte da populao mbya preferiu partir em busca de uma terra nova
sem males a permanecer e servir aos seus algozes.
Mby e Kaiowa
A expresso yvy marne ou yvy mare4 usada apenas eventualmente
entre os Kaiow de Mato Grosso do Sul, precisamente por aqueles a ouviram
nos ambientes indigenista e acadmico.5 Marne, 'sem males, so, virgem', de
uso corrente entre os Kaiowa, com os significados de novo, sem uso,
resguardado, primordial e virgem. Assim, por ocasio da festa de iniciao dos
meninos, o kunumi pepy, a expresso marne indica que os apetrechos rituais
foram recm confeccionados e decorados, que eles esto resguardados e que
sero usados pela primeira vez, na cerimnia que est por acontecer. A
expresso indica ainda a qualidade boa das pessoas e dos outros seres. Mas, para
indicar a imagem espacial para onde so projetadas as esperanas, esses grupos
indgenas no falam numa yvy marne, 'terra sem males', mas em uma yvy
araguyje, 'terra plenificada', 'terra do tempo-espao perfeitos', 'terra madura'.
Sendo yvy, terra, ra, tempo-espao, e aguyje, plenitude, maturidade, a yvy
araguyje a terra que oferece condies propcias para o desenvolvimento fsico,
social e espiritual da pessoa. Essa terra impulsiona a caminhada Kaiow, mas de
uma forma distinta dos Mby. Nisto se distinguem os Kaiowa dos Mby e dos
Guarani (Nhandva).
Os Kaiowa no propem uma mobilidade geogrfica, como os Mby
viandantes; no pretendem percorrer longas distncias, mas aproximar-se das
reas ocupadas por seus familiares no passado. Para ele o caminho em direo
terra boa no revelado em sonhos, mas percorrido ritualmente. A motivao
4 Na lngua mbya, nhandva e apapokva: yvy mare; em kaiow: marne.
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para reocupar suas terras no exclusivamente religiosa, mas tambm histrica,
econmica e ecolgica. O litoral e o mar no so as referncias que lhes
permitem antever sua yvy araguyje. As famlias kaiow avistam sua terra madura
quando acampam perto das fazendas que outrora foram seus tekoha,6 e quando,
desde seus acampamentos, namoram seus espaos perdidos. Mais do que de
mobilidade, talvez seja mais adequado se falar em movimento.
Os Kaiow compartilham com os Mby o desejo de se aproximarem
de um lugar onde julgam poder viver melhor. Mas do ponto de vista dos
espaos percorridos nesse aproximar-se, a yvy araguyje impulsiona uma
movimentao mais centrpeta e a yvy mare motiva uma mobilidade mais
centrfuga. J do ponto de vista da temporalidade, h que se destacar que ambas
as etnias associam essa terra ao ym guare ou tempos primeiros e ao futuro,
pois desejam alcana-la.
Consideraes finais
Estes dados sobre a religio guarani no podem nos induzir a pensar
que os povos guarani esto todo o tempo rezando e filosofando. Nem tudo
religio. E, embora pela religio os indgenas tentem explicar todas as grandes
questes da vida, sabemos que a vida mesma, na sua concretude se d tambm
fora desses discursos e dessas prticas. Muito do que est expresso em
linguagem religiosa se joga hoje no campo do direito e da poltica. Outro mal
entendido a evitar imaginar-se que nestas sociedades indgenas as prticas
tico-religiosas garantem a paz e a harmonia propaladas no discurso religioso.
N