florestan fernandes
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52 NOVA ESCOLA ● GRANDES PENSADORES 2
REALISMO
F lorestan Fernandes (1920-1995)
foi um dos mais influentes soció-
logos brasileiros, mas muitos o chama-
vam de educador sem saber que isso o
incomodava em sua modéstia. O equí-
voco tinha razão de ser. Vários escritos
de Florestan tiveram a educação como
tema e sua atuação na Câmara dos De-
putados, já no fim da vida, se concen-
trou na área do ensino. Além disso, a
preocupação com a instrução era um
desdobramento natural de sua obra de
sociólogo. “Em nossa época, o cientis-
ta precisa tomar consciência da utilida-
de social e do destino prático reserva-
do a suas descobertas”, escreveu.
Como o italiano Antonio Gramsci
(1891-1937), Florestan militava em
favor do socialismo e não separava o
trabalho teórico de suas convicções
ideológicas. Ainda que com aborda-
gens diferentes, ambos acreditavam
que a educação e a ciência têm, poten-
cialmente, uma grande capacidade
transformadora. Por isso, deveriam ser
instrumentos de elevação cultural e
desenvolvimento social das camadas
mais pobres da população. “Um povo
educado não aceitaria as condições de
miséria e desemprego como as que te-
mos”, disse ele em entrevista a NOVA
ESCOLA em 1991. “A escola de qua-
lidade, para Florestan, não era reden-
tora da humanidade, mas um instru-
mento fundamental para a emancipa-
ção dos trabalhadores”, diz Ana Hec-
kert, docente da Universidade Fede-
ral do Espírito Santo.
Florestan tomou para si a tarefa de
romper com a tradição de pseudoneu-
tralidade das ciências humanas e re-
construir uma análise do Brasil aberta-
mente comprometida com a mudança
social. Segundo sua análise, uma clas-
se burguesa controlava os mecanismos
sociais no Brasil, como acontecia em
quase todos os países do Ocidente. No
entanto – por causa de fatores históri-
cos como a escravidão tardia, a heran-
ça colonial e a dependência em relação
ao capital externo –, a burguesia brasi-
leira era mais resistente às mudanças
sociais do que as classes dominantes
dos países desenvolvidos.
Revolução incompleta Segundo Florestan, a revolução bur-
guesa, cujo exemplo emblemático é a
de 1789 na França, não teria se com-
pletado no Brasil. Enquanto os revo-
lucionários franceses do século 18 exi-
giam ensino público e universal, as eli-
UM MILITANTEDO ENSINODEMOCRATICO
FLORESTAN FERNANDES
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O sociólogo nãosó refletiu sobre aescola brasileira,apontando seu caráterelitista, como atuoupessoalmente emdefesa da educaçãopara todos
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53GRANDES PENSADORES 2 ● NOVA ESCOLA
tes brasileiras do século 20 ainda que-
riam controlar a educação para man-
ter a maioria da população cultural-
mente alienada e afastada das decisões
políticas. Por isso, uma das principais
lutas de Florestan foi pela manuten-
ção e pela ampliação do ensino públi-
co (leia quadro na página 54). “Ele acre-
ditava que o sucateamento da escola,
com péssimas condições de trabalho
e estudo, fazia parte das tentativas de
sufocar a democratização da socieda-
de por meio da restrição do acesso à
cultura e à pesquisa”, diz a pesquisa-
dora Ana Heckert.
O Brasil, dizia o sociólogo, era atra-
sado também em relação ao que ele
chamava de cultura cívica, ou seja, um
compromisso em torno do mínimo in-
MESTRE DE UMA GERAÇÃO DESBRAVADORA Florestan Fernandes integrou aprimeira geração de sociólogosformados pela Universidade deSão Paulo, da qual também fezparte o crítico literário AntonioCandido. Foi mestre da terceirageração, que incluía Octavio Iannie o futuro presidente FernandoHenrique Cardoso. De um modoou de outro, tanto veteranosquanto seus discípulos viveramgrande parte de sua existênciasob longas ditaduras – primeiro ade Getulio Vargas (1937-1945),
que havia sido precedida degovernos apenas parcialmentedemocráticos, e depois o regimemilitar, iniciado em 1964 eencerrado com eleições indiretasem 1984. Não é de espantar queo período de liberdade civilanterior a 1964, em especial ogoverno Juscelino Kubitschek(1956-1960), tenha sido tãoprodutivo para todos essesintelectuais. Algumas das maisimportantes reflexões sobre o
Brasil datamdessa época, tantonas ciênciashumanas comonas artes (comexemplos comoa Bossa Nova e oCinema Novo).
Juscelino Kubitschek (àdir.) comemora a vitóriana eleição presidencial:oásis democrático
OR
LAN
DO
BR
ITO
teresse comum. Para Florestan, não
havia tal cultura no Brasil por dois mo-
tivos: ela estimularia as massas popu-
lares a participar politicamente e ao
mesmo tempo tiraria das classes do-
minantes a prerrogativa de fazer tudo
o que quisessem sem precisar dar sa-
tisfações ao conjunto da população.
Florestan bateu-se também pela de-
mocratização do ensino, entendendo
a democracia como liberdade de edu-
car e direito irrestrito de estudar. Em
seus dois mandatos de deputado fe-
deral, nos anos 1980 e 1990, o soció-
logo esteve envolvido em todos os de-
bates mais importantes que ocorreram
no Congresso no campo da educação.
Participou ativamente da discussão,
elaboração e tramitação da Lei de Di-
retrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB), que só seria aprovada em 1996,
um ano depois de sua morte.
Florestan defendia propostas mais
radicais do que as que acabaram in-
cluídas na lei aprovada, cujo mentor
foi o antropólogo e senador Darcy Ri-
Florestan Fernandes nasceu em 1920em São Paulo, filho de uma imigranteportuguesa analfabeta, que o criousozinha, trabalhando comoempregada doméstica.Aos 6 anos, Florestan tambémcomeçou a trabalhar, primeiro comoengraxate, depois em vários outrosofícios. Mais tarde, ele diria que essefoi o início de sua aprendizagemsociológica, pelo contato que tevecom os habitantes da cidade.Aos 9 anos, a necessidade de ganhardinheiro o fez abandonar os estudos,que só recuperaria com um cursosupletivo. Aos 18, foi aprovado para ocurso de Ciências Sociais daUniversidade de São Paulo e, poressa época, iniciou sua militância emgrupos de esquerda. Depois do golpemilitar de 1964, Florestan enviouuma carta à polícia protestandocontra o tratamento dado a seuscolegas presos e foi, ele também,para a prisão. Em 1969 foi cassadopelo regime militar. Sem podertrabalhar, deixou o Brasil e lecionouem universidades do Canadá e dosEstados Unidos. Depois daredemocratização, filiado ao Partidodos Trabalhadores, elegeu-sedeputado federal em 1986 e 1990.Florestan morreu em 1995, decâncer. Publicou quase 80 livrosdurante a vida, nos campos dasociologia, da antropologia e daeducação. A Revolução Burguesa noBrasil e Sociedade de Classese Subdesenvolvimento estão entre ostítulos mais importantes.
BIOGRAFIA
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trabalho propriamente didático, as es-
colas deveriam formar “um sistema co-
munitário de instituições sociais”.
Florestan também se preocupou em
criticar a prática em sala de aula, com
ênfase em três pontos: a concepção do
professor como mero transmissor do
saber, que, para ele, fragilizava o pro-
fissional da educação; a idéia de que
o aluno é apenas receptor do conhe-
cimento, quando o aprendizado deve-
ria ser construído conjuntamente na
escola; e o ensino discriminatório, que
trata o aluno pobre como cidadão de
segunda classe. “Para Florestan Fer-
nandes, a educação transformadora se
faz com uma escola capaz de se desfa-
zer, por si mesma, do autoritarismo,
da hierarquização e das práticas de ser-
vidão”, diz Ana Heckert.
54 NOVA ESCOLA ● GRANDES PENSADORES 2
beiro (1922-1997). O sociólogo pro-
punha que a lei incluísse o princípio
de escola única, que abrangesse Edu-
cação Infantil, Ensino Fundamental e
Ensino Médio, conjugada com educa-
ção profissional, e possibilitasse uma
escolaridade maior aos setores caren-
tes da população. Florestan também
pretendia, como meio de dar autono-
mia às escolas, que os diretores fossem
eleitos por professores, pais e alunos.
Ele queria ainda incluir na LDB um pi-
so salarial para os professores.
Contra o autoritarismo Não eram só as condições estruturais
do sistema educacional que atraíam a
atenção rigorosa do cientista social. No
intervalo democrático entre 1945 e
1964 no Brasil, Florestan notou que a
educação havia ganho papel crucial na
busca “do equilíbrio e da paz social”,
mas isso se devia a conquistas sociais
e não a políticas dos governos, que, se-
gundo ele, continuavam não investin-
do em educação pública. Além da des-
tinação de verbas, o passo mais urgen-
te então seria integrar as escolas para
que sua função progressista se multi-
plicasse e ganhasse solidez. Ao lado do
QUER SABER MAIS?�Democracia e Educação em FlorestanFernandes, Osmar Fávero, 246 págs., Ed. Au-tores Associados/EdUff, tel. (19) 3289-5930,39 reais � Educação e Sociedade no Brasil,Florestan Fernandes, 614 págs., Ed. Domi-nus/Edusp, tel. (11) 2091-4150, edição esgo-tada � O Desafio Educacional, Florestan Fer-nandes, 264 págs., Ed. Cortez/Ed. Autores As-sociados, tel. (11) 3864-6111, edição esgotada
A BRIGA POLÍTICA PELA ESCOLA PÚBLICAMuitos intelectuais participaram,nas décadas de 1940 e 1950, daCampanha em Defesa da EscolaPública, que teve origem nasdiscussões para a aprovação daprimeira LDB. Nenhum foi maisativo do que Florestan Fernandes.De início, o tema principal do debateera a centralização oudescentralização do ensino. A
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DOLacerda: a serviço dos
interesses do ensinoprivado e religioso
Na sala deaula, o professorprecisa ser umcidadão e um serhumano rebelde
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Florestan Fernandes acreditavaque a educação deveria ser, paraos alunos, uma experiênciatransformadora que desenvolvessea criatividade, dando condições dese libertar da opressão social.Mas, para isso, a escola deveriadeixar de reproduzir osmecanismos de dominação declasse da sociedade. Você já seanalisou sob esse ângulo? Seráque, vez ou outra, já não confundiusua legítima autoridade deprofessor com autoritarismo?
PARA PENSARpolêmica seguiu acirrada até que,em seu ponto máximo de tensão, odeputado Carlos Lacerdaapresentou no Congresso umsubstitutivo para atender aosinteresses das escolas particularese das instituições religiosas deensino, que pretendiam ganhar odireito a embolsar verbas doEstado. Florestan publicou nessaépoca vários escritos em quecombatia as pretensões da escolaprivada e também desenvolvia suasidéias sobre a necessidade dedemocratizar o ensino. Osubstitutivo de Lacerda acabousendo aprovado. Mas, no longoprazo, quem ganhou foi Florestan –suas idéias são, hoje, praticamenteconsenso entre os dirigentes daeducação pública.