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FOLHA 21-04-2015 LUIZ FERNANDO VIANNA Desvios de conduta RIO DE JANEIRO - A chacina de Vigário Geral (21 pessoas mortas por policiais em 29 de agosto de 1993) é o alicerce sobre o qual se ergueu o Grupo Cultural AfroReggae, nascido na favela carioca. Nestes mais de 20 anos, a ONG amealhou parceiros poderosos, entre empresas, políticos e artistas. Seu líder, José Junior, virou ícone do que pode ser chamado de ativismo sociocultural. Em 2 de abril, quando Eduardo de Jesus Ferreira, morador do Complexo do Alemão, foi morto por um tiro de fuzil aos 10 anos, Junior escreveu no Facebook: "Esse menino, segundo informações, era bandido. Provavelmente, se fosse bandido, poderia ter matado um policial se tivesse oportunidade". Depois, alegou que suas palavras foram distorcidas e pediu desculpas aos pais da criança. Não foi um caso isolado. Junior se tornou figura próxima do governo do Estado do Rio, sobretudo da área de segurança. Militou na campanha de Aécio Neves para presidente. E, agora, está associado a movimentos que pedem o impeachment de Dilma Rousseff. Ele tem todo o direito de defender o que acredita. Mas, com essas atitudes, perdeu o equilíbrio para prosseguir no que fazia bem: mediar partes em conflito; apontar caminhos para quem vive em situação de risco. Tornou-se força auxiliar e legitimadora de projetos políticos que, ao menos em parte, vão contra o que pregava. Exemplo: Aécio defende a redução da maioridade penal, algo que Junior sempre combateu. Outros ativistas também posam ao lado de políticos conservadores, engajam-se em campanhas eleitorais, almejam cargos públicos, transformam suas ações socioculturais em trampolim para ambições pessoais. Mantêm relações com jornais e jornalistas para que suas mudanças de rumo não sejam apontadas e seus nomes permaneçam bem tratados. Vendem-se como novidade, mas já estão envelhecidos. MAURICIO DE SOUSA TENDÊNCIAS/DEBATES Quadrinho é literatura

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Page 1: FOLHA 20-04-2015

FOLHA 21-04-2015

LUIZ FERNANDO VIANNA

Desvios de conduta

RIO DE JANEIRO - A chacina de Vigário Geral (21 pessoas mortas por policiais em 29 de agosto de 1993) é o alicerce sobre o qual se ergueu o Grupo Cultural AfroReggae, nascido na favela carioca. Nestes mais de 20 anos, a ONG amealhou parceiros poderosos, entre empresas, políticos e artistas. Seu líder, José Junior, virou ícone do que pode ser chamado de ativismo sociocultural.

Em 2 de abril, quando Eduardo de Jesus Ferreira, morador do Complexo do Alemão, foi morto por um tiro de fuzil aos 10 anos, Junior escreveu no Facebook: "Esse menino, segundo informações, era bandido. Provavelmente, se fosse bandido, poderia ter matado um policial se tivesse oportunidade". Depois, alegou que suas palavras foram distorcidas e pediu desculpas aos pais da criança.

Não foi um caso isolado. Junior se tornou figura próxima do governo do Estado do Rio, sobretudo da área de segurança. Militou na campanha de Aécio Neves para presidente. E, agora, está associado a movimentos que pedem o impeachment de Dilma Rousseff.

Ele tem todo o direito de defender o que acredita. Mas, com essas atitudes, perdeu o equilíbrio para prosseguir no que fazia bem: mediar partes em conflito; apontar caminhos para quem vive em situação de risco. Tornou-se força auxiliar e legitimadora de projetos políticos que, ao menos em parte, vão contra o que pregava. Exemplo: Aécio defende a redução da maioridade penal, algo que Junior sempre combateu.

Outros ativistas também posam ao lado de políticos conservadores, engajam-se em campanhas eleitorais, almejam cargos públicos, transformam suas ações socioculturais em trampolim para ambições pessoais. Mantêm relações com jornais e jornalistas para que suas mudanças de rumo não sejam apontadas e seus nomes permaneçam bem tratados. Vendem-se como novidade, mas já estão envelhecidos.

MAURICIO DE SOUSA

TENDÊNCIAS/DEBATES

Quadrinho é literatura

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Histórias em quadrinhos são uma cartilha não oficial para alfabetizar

milhares de crianças, criando leitores para todo o tipo de leitura

Comemorou-se o Dia Nacional do Livro Infantil no último sábado. A data é festejada em 18 de abril porque é o dia em que nasceu Monteiro Lobato, o autor que criou e nos deu de presente o mundo do "Sítio do Picapau Amarelo", com a boneca de pano mais espevitada que alguém poderia conhecer, a Emília.

Monteiro Lobato sabia que um leitor se cria desde a tenra infância. E, portanto, nunca mais ele abandonará seu amigo livro.

Meu caminho para também virar um contador de histórias passou por esse autor. Meus pais, poetas e sempre valorizando a leitura, começaram a me alimentar de revistas em quadrinhos pelas quais fui me alfabetizando, tanto nas letras como nas cores e nos traços.

Algum tempo depois não bastavam os quadrinhos e eu virei um leitor voraz. Monteiro Lobato, então, era um dos meus preferidos. Cheguei a ler um livro por dia de tanto que aquilo me arrebatou.

Hoje sei que esse processo continuou durante décadas para muitas crianças e ainda não mudou. O mundo vem se tornando mais visual a cada dia, principalmente pelos meios eletrônicos. E para que crianças ainda se interessem pela leitura, é preciso cativá-las com uma boa dose de visual. A linguagem dos quadrinhos tem essa mágica.

O gosto de ler sobre o papel se torna uma experiência inédita e única. Hoje, o que se imprime é mais nobre do que as leituras vindas das nuvens para uma tela digital.

Segundo estudo da Universidade de Brasília, sob o título "Retrato da Escola", "alunos que leem HQ's têm melhor desempenho escolar do que os que se atêm somente ao livro didático. A concentração é maior pois o envolvimento é maior".

Um jovem tem vários equipamentos eletrônicos funcionando ao mesmo tempo ao seu redor, como o celular, o computador, o aparelho de som e a televisão. Quando se está lendo, o máximo de interferência seria um som. Talvez nem isso.

Em encontros com meus leitores, nas bienais do livro, a toda hora escuto de um pai que ele aprendeu a ler com as minhas histórias e que agora é seu filho quem passa por esse processo. Vejo meus leitores repetirem o que também aconteceu comigo quando criança.

E, agora, diante de meus quase 80 anos, sei que é uma forma que passa pelas gerações. As histórias em quadrinhos são uma cartilha não oficial para alfabetizar milhares de crianças, criando leitores para todo o tipo de leitura.

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Quando fui convidado para integrar a Academia Paulista de Letras, em 2011 --algo inédito no mundo por se tratar de um autor de quadrinhos--, percebi que a base dos autores de HQs sempre foi a literatura e que a literatura também bebe nas criações dos quadrinhos.

Hoje há adaptações de grandes obras literárias na arte das HQs que estimulam jovens ao conhecimento dos autores dessas obras.

Nesses 55 anos de publicações e mantendo um grande público cada vez mais exigente, posso garantir que --não por acaso-- história em quadrinhos é o gênero que sobrevive desde as primeiras sequências desenhadas nas cavernas, no início da história da humanidade, até as mais modernas tecnologias dos dias de hoje, como uma linguagem atemporal e definitiva.

MAURICIO DE SOUSA, 79, desenhista e empresário, é o criador da "Turma da Mônica" e membro da Academia Paulista de Letras

RICARDO MELO

Impeachment... Para Gilmar Mendes

Ministro do STF faz pouco caso das leis que deveria defender e age como um

ditador de toga

No tiroteio generalizado em que se transformou a agenda política, é difícil identificar consensos. Assim funciona o jogo democrático formal. Até o momento em que uma maioria se estabeleça, seja nas urnas, seja em tribunais.

O Brasil assiste a um espetáculo digno das repúblicas bananeiras de outrora. Há mais de um ano, por 6 a 1, o Supremo Tribunal Federal decidiu proibir o financiamento privado de campanhas. Rendeu-se ao óbvio: grandes empresas despejam milhões e milhões em siglas investindo no futuro --delas, é claro.

Uma engrenagem sem fim, pouco importa o governo. Os números de doações eleitorais são eloquentes quanto à "democratização" deste financiamento. Tem para todo mundo, do PT ao PSDB, do PMDB ao PP, e assim por diante. Do Metrô de SP à Petrobras, de Furnas à Telemar, de Marcos Valério a Eduardo Azeredo.

Sob a pressão legítima contra a corrupção institucionalizada, o STF resolveu tomar alguma providência. Ninguém garante, longe disso, que a limitação da promiscuidade entre empresas e candidatos possa ser estancada com uma canetada. Mas inibe, e a redução de danos é o máximo que um sistema como o nosso poderia almejar no momento.

Mas, pelo jeito, nem disso estamos perto. O ministro Gilmar Mendes atenta abertamente contra a Constituição e o regimento do STF e decide,

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ditatorialmente, que pouco interessa a voz da maioria. Pede vistas de uma votação já decidida, faz campanha pública contra os pares e impede a aplicação de uma sentença praticamente julgada. A democracia formal reza que a cada um, cabe um voto. Na "gilmarocracia", a cada um, ele, cabem todos os votos.

O espantoso é observar o silêncio obsequioso do próprio Supremo, do Congresso, das instituições da sociedade civil em geral. Rápido no gatilho quando se trata de conceder habeas corpus para banqueiros graúdos, Gilmar se permite o desfrute de determinar o que pode ou não ser votado no tribunal: "Não podemos falar em financiamento público ou privado sem saber qual é o modelo eleitoral [...] Isso não é competência do Supremo, é do Congresso." E ainda humilha os colegas: "O tribunal não servirá de nada se não tiver um juiz que tenha coragem de dar um habeas corpus, de pedir vista."

A história está cheia de exemplos de megalomaníacos. Idi Amin Dada, o ditador de Uganda, adorava se fantasiar de escocês enquanto massacrava opositores. Nero tocou fogo em Roma. Dispensável citar aquele austríaco tristemente famoso e os nossos generais-presidentes.

Enquanto personagem histórico, Gilmar Mendes, claro, não está à altura de nenhum deles. Como disse Joaquim Barbosa antes de aderir ao panfletarismo eletrônico, o ministro Gilmar pensava que o país funcionava sob o jugo dos jagunços dele. Barbosa se foi. Gilmar e sua tropa ficaram. Enquanto isso, a oposição fala em derrubar Dilma porque ela resolveu se endividar para pagar em dia o Bolsa Família, programas de habitação e o seguro desemprego.

A VIDA COMEÇA AOS 70

O deputado estadual Barros Munhoz (PSDB-SP) acaba de se livrar da acusação de apropriação e desvio de recursos públicos quando era prefeito da cidade de Itapira. Motivo: sua pena prescreveu porque completou 70 anos em 2014, conforme nos informou o sempre vigilante jornalista Frederico Vasconcelos, desta Folha. O espertalhão já havia escapado, também por prescrição, de crimes como formação de quadrilha, fraude em licitações e omissão de informação ao Ministério Público.

O pulo do tucano: um desembargador, Armando de Toledo, sentou em cima de processos contra Munhoz por três anos, tempo suficiente para as acusações perderem efeito. Qualquer semelhança com os ritos do mensalão tucano não é mera coincidência.

ANÁLISE

Jovens podem ser os mais prejudicados por queda na economia

MAURO PAULINODIRETOR-GERAL DO DATAFOLHAALESSANDRO JANONIDIRETOR DE PESQUISAS DO DATAFOLHA

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Muito se fala nos reflexos da inflação e da queda do poder de compra no perfil do mercado de trabalho, especialmente para os jovens que passariam a buscar mais inclusão por conta de perdas na renda familiar. O fenômeno geraria, segundo alguns, aumento da taxa de desemprego na população economicamente ativa, já que boa parte desse segmento que só estuda passaria a buscar emprego em cenário desfavorável.

Mas limitar a análise ao universo dos que exclusivamente são estudantes é subestimar o potencial de impacto da economia e, principalmente, de eventuais mudanças na lei de terceirização sobre a maioria do segmento --o conjunto dos jovens que já trabalham.

Segundo a última pesquisa nacional do Datafolha, a grande maioria dos brasileiros que têm de 16 a 24 anos faz parte da população economicamente ativa e a maior parcela (31%) é de assalariados com registro em carteira. O mercado informal (sem registro ou free-lance), que há 19 anos caracterizava o estrato, totaliza hoje 21% e a taxa dos que só estudam é de 25%. Estão buscando um emprego 8%.

Entre os jovens de 1996, pela base de dados do Datafolha, a situação era inversa: 22% tinham registro em carteira e 32% estavam no mercado informal. Nos anos seguintes, a situação piorou e a informalidade, somada à busca por um emprego, atormentou a realidade da maior parte dos jovens de 2003. Na ocasião, o desemprego cresceu acima da média no estrato e chegou a bater 14%.

O grau de escolaridade do segmento aumentou significativamente a partir do final da década de 1990. Há 19 anos, a maioria tinha apenas o ensino fundamental e a taxa de nível superior era de somente 5%. Hoje, 65% têm o nível médio e 22% cursam ou cursaram uma faculdade.

Nos últimos 12 anos, os jovens apresentaram taxas de inclusão na população economicamente ativa acima da média, especialmente no mercado formal. De 2002 em diante, o crescimento de participação de assalariados registrados na composição total da população subiu 9 pontos percentuais, enquanto entre os mais jovens, essa taxa foi de 14 pontos.

Por talvez ter conhecido apenas essa realidade, o estrato se apresenta um pouco menos pessimista do que as outras faixas etárias quanto ao aumento do desemprego e à queda no poder de compra.

Por outro lado, predominante nas jornadas de junho de 2013, esse é hoje o segmento mais apartidário, mais favorável aos protestos contra o governo e o que mais pede abertura do processo de impeachment de Dilma, apesar de quase 1/3 não ter votado na última eleição e de 35% avaliá-la como regular no cargo. Mesmo que crianças e adolescentes na maior parte das gestões petistas, é o grupo que mais cita Lula como o melhor presidente da história e o que mais aponta a educação como principal problema do país.

Cortes em políticas da educação, mudanças na lei de terceirização e a diminuição da maioridade penal, a depender dos formatos adotados, têm um

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potencial muito maior de frustrar esse segmento do que qualquer outro estrato da população.

Se a meta é, de fato, gerar maior inclusão e diminuir a violência, deve-se atentar também para a ameaça de se armar uma bomba relógio demográfica, capaz de recrudescer o que se comunica combater, agravando ainda mais a crise de representação.

Chacina em sede de torcida corintiana deixa 8 mortos

Disputa pelo tráfico de drogas é a principal linha de investigação da polícia

Integrantes da Pavilhão Nove, com idades entre 19 e 34 anos, foram assassinados com tiros na cabeça no sábado

DE SÃO PAULO

Uma disputa pelo tráfico de drogas é a principal linha de investigação para o assassinato de oito homens, com idades entre 19 e 34, na noite de sábado (18), na sede da torcida corintiana Pavilhão Nove, na zona oeste paulistana.

Até o final da noite deste domingo (19), ninguém tinha sido preso. Segundo a polícia, quatro dos mortos já responderam por crimes de tráfico de drogas ou de roubo.

Esse foi o quarto caso de assassinatos em série na capital em menos de dois meses. Nos outros três (dois na zona sul e outro na norte), 20 pessoas foram mortas a tiros.

O caso de sábado ocorreu por volta das 23h, ao final de uma festa na torcida.

Segundo relato de testemunhas à polícia, três homens de pele branca --que não estavam encapuzados-- entraram armados na sede.

Ao menos quatro integrantes da torcida conseguiram escapar. Um faxineiro foi poupado pelos assassinos (leia na pág. C3) e os oito restantes acabaram rendidos.

Forçados a deitar no chão, receberam tiros na parte posterior da cabeça.

Seis vítimas foram atingidas por um tiro na nuca e uma delas também foi acertada no braço direito. Outro homem levou quatro tiros --um no ombro direito, um nas costas, um no maxilar esquerdo e um na coxa direita. E outra vítima foi atingida no tórax.

Sete morreram no local. O músico Mydras Schmidt Rizzo, 38, mesmo ferido, correu e pediu ajuda num posto de combustíveis. Morreu minutos depois no hospital.

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Cápsulas de pistola 9 mm foram encontradas próximo aos corpos das vítimas, que se preparavam para pintar novas bandeiras da torcida --os panos brancos estavam já esticados no chão da quadra.

BOLÍVIA

A torcida foi fundada em setembro de 1990, numa homenagem de amigos corintianos ao time de futebol da antiga casa de detenção do Carandiru. A entidade tem como símbolo a figura de um dos irmãos Metralha, da Disney, e atua também como bloco carnavalesco paulistano.

De acordo com o delegado Arlindo José Negrão Vaz, do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), por ora está descartada a hipótese de relação da chacina com briga de torcida.

Paulo Castilho, promotor do Ministério Público que trata das torcidas organizadas, também rejeitou a ligação.

A relação das torcidas organizadas com o tráfico tem sido alvo de investigações da polícia. Facções que atuam em presídios, segundo as apurações, atuariam infiltradas nas torcidas. Também é apurada a hipótese de o crime ser uma vingança por causa de dois homicídios em Osasco (Grande SP), há um mês.

Entre os mortos está Fábio Neves Domingos, 34. Ele foi um dos corintianos detidos em 2013 em Oruro, após um jovem boliviano ter sido morto por um sinalizador que saiu da torcida corintiana.

Os corpos das vítimas devem ser enterrados nesta segunda-feira (20).

FOCO

Literatura de cordel ajuda a montar a história do Alemão

LUIZA FRANCODO RIO

"E é aqui que começa/a história verdadeira/Lampião tinha missão/não estava para brincadeira/conseguia ver nas casas/a descendência guerreira." Assim se inicia o cordel, nome dado às histórias do romanceiro popular do sertão nordestino, "A chegada de Lampião no Complexo do Alemão".

No conjunto de 15 favelas na zona norte do Rio, que tem 60.555 pessoas (segundo Censo de 2010), muitas delas imigrantes nordestinos, foram surgindo ao longo dos anos diversos cordelistas.

No Alemão, há representantes de várias vertentes: da poesia-reportagem ao romance. O autor de "Lampião", o vendedor de livros José Franklin, 55, é o que os cordelistas chamam de poeta-repórter. Carioca, é de uma nova safra de cordelistas.

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Em versos e rimas, Franklin narra o dia a dia do complexo, tido como um dos lugares mais violentos da cidade. Foi lá que morreu, no último dia 2, Eduardo de Jesus, 10, com um tiro na cabeça.

Apesar de já ter feito cordéis sobre a morte de outros moradores, como a do mototaxista Caio Moraes da Silva, 20, baleado em 2014, Franklin diz que, por ora, não pretende contar essa história.

"Os cordéis que fiz em homenagem a outros mortos ficaram muito tristes. Agora, só faço se a família pedir."

Ele já tratou da ocupação do complexo pela polícia para a instalação da UPP, em 2010, e do temporal que deixou famílias desabrigadas em dezembro de 2013.

Imaginou ainda, em cordel, como seria o discurso de posse de René Silva, jovem que ficou famoso por narrar em tempo real a ocupação do Alemão. Costuma vender os livros nos fins de semana, por R$ 2 cada um. Seus leitores são moradores e turistas.

Entre os primeiros, "Apocalipse no Complexo do Alemão" conta como a queda de um balão sobre fios elétricos, em 1988, fez alguns moradores acreditarem que chegara o fim do mundo. Já os turistas preferem "Lampião".

Franklin também faz cordéis sobre outros assuntos: há um sobre a rebelião de presidiários na ilha Anchieta, em São Paulo, em 1952, outros contam histórias de ficção científica e até sobre a socialite Narcisa Tamborindeguy.

Tudo começou numa época em que vendia material de construção. "Comecei a escrever um livro sobre casos de pequenos negócios que deram certo. Tomei gosto pela escrita, mas a produção do livro ficou cara para mim. Aí, eu passei a fazer cordel."

HERANÇA NORDESTINA

Trabalhadores imigrantes do Nordeste foram atraídos para a área quando ocorreu a abertura da avenida Brasil, em 1946, e a região se transformou em polo industrial.

Apesar de ser da Bahia, foi no Rio, como morador do Alemão, que Nilton José da Silva, 69, tomou gosto pelos cordéis. Se encantou ao ler uma matéria sobre os cordelistas da Feira de São Cristóvão, tradicional ponto de encontro de nordestinos do Rio.

É conhecido como poeta do amor. Seus cordéis contam histórias épicas, com princesas, cavaleiros e muito sexo.

"É uma coisa criada, trabalhada, demoro muito tempo para completar", diz Silva. "Não faço coisas apelativas", afirma ele, que pleiteia uma vaga na Academia Brasileira de Literatura de Cordel, com sede em Santa Teresa, no Rio.

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Professor de SP tem reajuste, mas ganha menos que servidores

Em greve há 36 dias, docentes da rede estadual de ensino tiveram aumentos acima da inflação desde 2011

Categoria tem salário médio de R$ 2.725, inferior ao de outras carreiras dentro do governo do Estado

FÁBIO TAKAHASHIDE SÃO PAULO

Os salários dos professores da rede estadual paulista subiram mais do que a inflação nos últimos anos. Mas os docentes ainda ganham menos do que outros profissionais com formação semelhante.

As informações foram levantadas pela Folha em base de dados oficiais. Os professores estão em greve parcial há 36 dias, reivindicando um reajuste salarial de 75%.

De junho de 2012 --folha de pagamento mais antiga divulgada pelo governo Geraldo Alckmin (PSDB)-- a fevereiro deste ano, o salário médio dos professores das escolas estaduais subiu 28%.

Nesse período, a inflação foi de 16%, segundo o indicador IPC-Fipe, em São Paulo, e de 19,5%, segundo o IPCA.

Considerando o início do mandato anterior do tucano (2011) até fevereiro de 2015, o reajuste salarial foi de 45%, segundo dados tabulados pelo próprio governo, ante uma inflação de 25% (IPC).

Logo no início do mandato anterior, Alckmin aprovou lei que estabeleceu política de aumentos até 2014.

DEFASAGEM

Entretanto, apesar desses reajustes, os salários médios dos docentes ainda segue abaixo de profissionais com ensino superior no Estado.

A remuneração média dos docentes é de R$ 2.725. Já a população do Estado com ensino superior (ao menos 15 anos de escolarização) é de R$ 4.449, segundo dados de 2013 do IBGE atualizados pela inflação --diferença de 39%.

Considerando apenas os professores dos anos finais do ensino fundamental e do médio, com jornada de 40 horas semanais, o salário médio sobe para R$ 4.416, segundo tabulação do governo.

Mesmo esse grupo, cujo tamanho não foi informado, tem remuneração média inferior à de outras carreiras dentro do governo do Estado.

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A média salarial dos sargentos da PM (que exige ensino superior) é de R$ 5.692; médicos da Secretaria da Saúde têm vencimento médio de R$ 7.339; agentes penitenciários (não exige ensino superior) ganham R$ 4.503.

Analistas ouvidos pela reportagem dizem ser necessário aumentar o salário docente, mas que é impossível tirar a defasagem imediatamente.

"É uma categoria com 200 mil pessoas, qualquer mudança causa impacto imenso no Orçamento do Estado", disse o pesquisador de administração pública Fernando Abrúcio, da FGV-SP.

Sobre a greve, ele afirma que mobilização tão extensa, em geral, tem mais motivações do que o reajuste. "Há muita insatisfação com o tamanho das turmas."

Coordenadora da ONG Todos pela Educação, Alejandra Velasco diz que o pedido de reajuste salarial faz sentido, "até porque a equiparação é uma das metas do Plano Nacional de Educação".

A lei federal, aprovada em 2014, determina que, em até seis anos, a média salarial dos professores da rede pública deve ser equiparada à dos demais profissionais com escolaridade equivalente.

"Mas não há orçamento que aguente o pedido de reajuste dos professores. Poderia ser algo escalonado."

Os professores, além do pedido salarial e outros pontos, também reclamam do fechamento de escolas e das salas superlotadas (querem no máximo 25 alunos por classe).

55 anos depois

Santos e Palmeiras voltam, enfim, a fazer uma final direta após decisão do Paulista de 1959, que aconteceu em janeiro de 1960

BERNARDO ITRIDO PAINEL FCRAFAEL REISENVIADO ESPECIAL A SANTOS

Palmeiras e Santos farão jogos de peso histórico para definir o campeão do Paulista de 2015.

Os dois clubes vão se reencontrar em uma final direta pela primeira vez desde o Estadual de 1959, quando o Palmeiras conquistou o título.

Esse duelo aconteceu há 55 anos --a partida final foi disputada em janeiro de 1960, embora o campeonato fosse o de 1959.

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Foi um confronto de gigantes: o Palmeiras dispunha de Djalma Santos e Julinho Botelho, já o Santos tinha nada menos do que Pelé (leia mais no texto abaixo).

Para a nova decisão, no entanto, o cenário é outro.

As equipes se reencontram após enfrentar a desconfiança da torcida em meio à reconstrução do elenco. Saem, contudo, com crédito deste domingo (dia 20) após terem deixado para trás Corinthians e São Paulo.

Os derrotados --alvinegros e tricolores-- eram tidos como os favoritos para a conquista do Paulista.

Palmeiras e Santos despertavam expectativa bem menor do que seus rivais, devido ao grande reformulação pelos quais passaram no início deste ano.

O Palmeiras trocou praticamente todo seu elenco entre dezembro e janeiro e deu ao técnico Oswaldo de Oliveira, recém-contratado, a missão de montar um time que fosse competitivo.

Aqui, aliás, há uma curiosidade: o técnico do Palmeiras há 55 anos era um xará do atual. Quem comandava o time era o gaúcho Osvaldo Brandão (1916-1989).

O Oswaldo de 2015, carioca, se apoiou em jogadores experientes, como Zé Roberto, e na velocidade de jovens, como Dudu, para fazer o seu time engrenar.

Já o Santos perdeu seus principais atletas por falta de pagamento, como Arouca, que rumou para o Palmeiras. Teve de se remontar durante o Campeonato Paulista.

Sobrou para Robinho, Ricardo Oliveira, Geuvânio e Lucas Lima conduzirem o time até a decisão.

VILA OU PACAEMBU?

O primeiro jogo acontece no estádio do Palmeiras no domingo (26 de abril). A segunda partida será no domingo seguinte (3 de maio)

Por ter realizado a melhor campanha na primeira fase do campeonato, o Santos tem o direito de fazer a partida final em casa. Escolherá entre a Vila Belmiro e o Pacaembu.

Os jogadores e o técnico, Marcelo Fernandes, já avisaram o presidente Modesto Roma Jr. que querem disputar a segunda partida na Vila.

No entanto, a Federação Paulista de Futebol (FPF) pode optar por realizar a partida no Pacaembu para atrair público e receita maiores.

A definição será divulgada nesta segunda (dia 20).

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E-mails da Sony dizem que brasileiro gosta mesmo é dos vilões

Organizados pelo WikiLeaks, mensagens hackeadas revelam lobbies, críticas ao governo e rixa com Ancine

Homem-Aranha seria mais querido que Capitão América no país; multinacional não quis se pronunciar

GUILHERME GENESTRETIDE SÃO PAULO

Os brasileiros gostam mais do Homem-Aranha do que do Capitão América, que acham "careta e piegas", e exigem mais vilões do que beijos e romances nos filmes de super-herói. Já a manobra de Dilma para regular o uso da internet? "Ascensão bolchevique."

É um pouco do que revelam mensagens confidenciais dos estúdios Sony sobre o Brasil.

Na quinta-feira (16), mais de 30 mil documentos e 173 mil e-mails dessa multinacional, que haviam vazado em novembro de 2014, foram organizados em um sistema de buscas pelo WikiLeaks, o grupo de Julian Assange que publica informações secretas de governos e corporações.

Entre os e-mails vazados, 1.052 mencionam o "Brazil". A reportagem daFolha leu todos. A maioria relata o desempenho de filmes da Sony no país, mas também há mensagens sobre os gostos dos nativos, críticas ao governo Dilma e até queixas do diretor José Padilha ("Robocop").

Os dados caíram na rede no ano passado após ataque hacker motivado pela estreia do filme "A Entrevista", cuja trama trata do assassinato do ditador norte-coreano Kim Jong-un. O material foi retirado do ar na época, mas agora foi republicado no site de Assange.

"Os arquivos da Sony mostram que nos bastidores há uma corporação influente, com relações com a Casa Branca, capacidade de influenciar leis e políticas e com conexões com o complexo militar e industrial dos EUA", diz comunicado do WikiLeaks em sua página oficial.

O texto justifica a publicação dos dados afirmando que a Sony mantém relações com o Partido Democrata, organizando jantares com Barack Obama e fazendo lobby em questões como acordos comerciais, regulação da internet, pirataria e direito autoral. "Os dados pertencem ao público, e o WikiLeaks vai garantir que isso assim permaneça", diz Assange no comunicado.

CRÍTICAS AO GOVERNO

Entre os dados vazados sobre o país, há detalhes sobre a repercussão na imprensa de filmes da Sony e gastos com viagens patrocinadas para jornalistas cobrirem lançamentos de longas no exterior.

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Um exemplo: uma passagem de R$ 3.798 mais R$ 4.875 de hotel para um repórter da "Ilustrada" ir a Los Angeles entrevistar a equipe de "O Espetacular Homem-Aranha 2" em 2013. Como é de praxe, a Folha informou na ocasião que o jornalista tinha viajado a convite.

As mensagens também revelam embates dos estúdios com o governo brasileiro.

O e-mail de um chefe de tecnologia da Sony classifica de "ascensão bolchevique" a iniciativa da presidente Dilma Rousseff de regular o uso da internet por meio do Marco Civil, aprovado em abril de 2014.

Também há mensagens sobre uma rixa entre a Sony e a Ancine, a agência que regula o setor audiovisual no Brasil.

A disputa diz respeito à digitalização de salas de cinema do país. A transição de tecnologia envolve contratos entre os exibidores e os distribuidores (como a Sony). Mas a Ancine fiscaliza os acordos para evitar a formação de cartéis.

Quando a agência abriu consulta pública em seu site para debater os termos da digitalização, alguns dos executivos da Sony acharam melhor que a empresa não se manifestasse. "Estão preocupados que comentar seria o mesmo que admitir que a Ancine tem poder nessa área", informa uma das mensagens vazadas.

A MPA (Motion Picture Association), que reúne os seis maiores estúdios de cinema hollywoodianos --Disney, Warner, Sony, Fox, Paramount e Universal-- também manteve reuniões com parlamentares e secretários de governo, segundo revelam os e-mails.

A entidade teria frisado questões como "proteção da propriedade intelectual" em encontro com o então senador Rodrigo Rollemberg (PSB-DF), que presidia a comissão para a reforma do Código de Defesa do Consumidor no Senado.

Com Mario Borgneth, ex-secretário do Audiovisual do Ministério da Cultura, a MPA buscava apoio federal para um programa de treinamento --a mensagem não dá mais detalhes sobre como seria.

A Folha tentou entrevistar Ricardo Castanheira, presidente da MPA na América Latina e que teria participado das reuniões, mas foi informada que ele está em viagem.

Procurado, o diretor-presidente da Ancine, Manoel Rangel, não foi localizado até o encerramento desta edição. A reportagem questionou a Sony sobre os e-mails, mas a assessoria informou que a empresa não se pronunciará.

Perdida entre tantas mensagens vazadas, há uma queixa de um cliente brasileiro, insatisfeito com sua TV, que acionou a cúpula da Sony: "Quero uma nova urgentemente", escreve. Os e-mails não revelam se conseguiu.

CRÍTICA CINEMA/DRAMA

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Embate entre estilos de vida sustenta filme

Longa italiano sobre agricultor que participa de um concurso de televisão expõe dilemas da identidade europeia

INÁCIO ARAUJOCRÍTICO DA FOLHA

De vez em quando, o cinema italiano tem um sobressalto e consegue trazer ao espectador algo de novo ou, ao menos, diferente. Ou, em todo caso, uma questão.

No caso de "As Maravilhas", a questão que deixa para seus espectadores o filme de Alice Rohrwacher diz respeito, em grande medida, à Europa e seu destino. Ao mesmo tempo, formula um problema de identidade. Ou seja: o que é a Europa?

No filme temos uma família de pequenos fazendeiros liderada por Wolfgang, alemão casado com uma francesa. Eles vivem na Itália. Estão aí implicados três países-chave da União Europeia.

O apicultor Wofgang é uma mistura de libertário e autoritário. Dirige as atividades familiares com mão de ferro, mas não suporta que alguém venha a dizer às suas garotas que fiquem em silêncio: "Minhas filhas são livres", responde. No mais, seu mel é absolutamente natural.

Wolfgang verá que a liberdade não existe. Existem os controles sanitários cada vez mais fortes. Eles se manifestarão aqui via um concurso de televisão destinado a escolher e premiar o melhor agricultor.

O homem nunca entraria nessa: nem TV ele tem em casa. Mas as meninas se deixam fascinar por uma gravação feita perto de onde moram.

Queira ou não, ele entrará, então, no registro do espetáculo. E do espetáculo da TV italiana, ou seja: o ridículo.

Wolfgang e família vivem entre um passado artesanal que já não se sustenta e um futuro regido por leis às quais se acomoda mal. Eis um dilema bem europeu (tanto quanto a oscilação entre o libertário e o autoritário), ao qual Rohrwacher dá forma ficcional.

Existe ainda um personagem bem misterioso no filme: o jovem contraventor que nem ao menos fala a língua local, que vai trabalhar na fazenda como modo de ressocialização. Incômodo personagem sem identidade.

Quem seria ele? Metáfora, aparentemente, dos imigrantes que vivem clandestinamente e em condição de trabalho quase escravo.

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Claro, esses sentidos alegóricos podem ser um distúrbio de visão do espectador. O que sustenta o filme, para além deles, é a beleza das paisagens e o choque entre dois modos de vida forçados a conviver no mesmo espaço.

GREGORIO DUVIVIER

Contra a corrupção!

Desconfio de quem se diz contra a corrupção. A razão é: ninguém é

abertamente a favor da corrupção

"Chega. Não quero nunca mais tocar neste assunto de petróleo. Amargurou-me doze anos de vida, levou-me à cadeia --mas isso não foi o pior. O pior foi a incoercível sensação de repugnância que desde então passei a sentir sempre que leio ou ouço a expressão 'Governo Brasileiro'"¦".

Em 1936, Monteiro Lobato escrevia "O Escândalo do Petróleo", em que denunciava a corrupção do Serviço Geológico Nacional --quase 20 anos antes da criação da Petrobras. Foi preso e sua prisão o levou à falência, da qual nunca se recuperou. Morreu aos 66 anos.

Nos anos 90 foi a vez de Paulo Francis denunciar a corrupção da estatal e morrer afundado em dívidas decorrentes do processo.

"Para acabar com a corrupção é preciso varrer o PT do país", disse Aécio Neves (PSDB), que pelo visto acredita piamente na idoneidade do PP, do PR, do DEM, do PMDB. Um dos problemas da oposição é que ela superestima o PT. O PT não inventou nem o Bolsa Família (salve Cristovam Buarque), principal bandeira do partido --imagina se teria inventividade para inaugurar a corrupção.

Bradar contra a corrupção é a forma mais rápida de se eleger no país. Foi essa bandeira que elegeu, entre outros, Fernando Collor de Mello --o "caçador de marajás". Collor não tinha história nem ideologia, tinha só a fama --bancada pelos principais meios de comunicação-- de guardião da moralidade.

Desconfio de qualquer pessoa que se diga contra a corrupção. A razão é uma só: ninguém é abertamente a favor da corrupção, logo não faz sentido protestar contra ela. Um protesto sem oposição é um protesto chapa-branca, porque não atinge ninguém diretamente. É como protestar contra o câncer. "Abaixo o carcinoma!"

O câncer não tem bancada no Congresso. Protestar contra ele não vai ofender ninguém. É preciso atacar o amianto, o glutamato monossódico, os agrotóxicos e as tantas substâncias cancerígenas defendidas por muita gente e consumidas por todos nós.

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A corrupção no Brasil é permitida e incentivada pela lei --e a lei não deve mudar tão cedo. Quem poderia mudar a legislação é quem mais lucra com ela. Não é de se espantar que Eduardo Cunha (PMDB) --o homem-amianto--, que arrecadou (declaradamente) milhões de mineradoras, faça tudo para impedir um novo código da mineração e o fim do financiamento privado de campanha. Enquanto os políticos forem eleitos por empresas, vão continuar governando para elas.

LUIZ FELIPE PONDÉ

Da natureza das coisas

Não queira pegar todas as mulheres do mundo, mas cuide bem daquelas que

vierem a sua cama

Em nosso mundo, não há natureza das coisas, entende-se que tudo seja uma construção social.

Delírio puro. Prefiro os antigos, justamente por perceberem que são os limites que nos humanizam, e não o desejo sem limites.

Os inteligentinhos dirão coisas como "conservador!". Mas a vida segue, o mundo se acabará um dia, e os inteligentinhos dirão, em seu último grito de agonia, "opressão!".

Mas não quero falar de política, que trato apenas como quem lida com uma ferida para que ela não se infeccione em demasia.

Quero falar de epicurismo. Não a ideia banal de epicurista como alguém que vai muito ao shopping ou come todas as gostosas do mundo (o sonho de qualquer cara normal). Falo do epicurismo antigo, do filósofo grego Epicuro (341 a.C. "" 270 a.C.). De Lucrécio (cerca de 96 a.C. "" cerca de 55 a.C.), filósofo latino, autor do poema "Da Natureza das Coisas".

Para ambos, a natureza da realidade é ser contingente. Isso quer dizer que "o fundo da realidade" é o acaso (que é a mesma coisa que contingência em filosofia).

Esse acaso é o movimento livre e sem ordem dos átomos. Portanto, tanto Epicuro quanto Lucrécio eram atomistas, o que é a mesma coisa de dizer que eram materialistas. A alma, esse "ar", se perde no momento da morte.

Como dizia Epicuro, quando eu estou, a morte não está, quando ela está, não estou. Ou seja: não há o que temer na morte porque ela é uma libertação da eterna contingência que move um destino cego. E a melhor coisa nisso é que a "consciência" desaparece.

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Essa ideia me parece insuperável como liberdade. Ter a pedra como destino é meu sonho de eternidade.

Sendo assim, morreu, acabou. Muita gente teme uma possibilidade como essa.

Eu tendo a achá-la sedutora principalmente quando suspeito que viver para sempre seria como ser obrigado a beber água para sempre, mesmo tendo passado a sede.

Vejo beleza nisso tudo. A contingência liberta, mas não no sentido moderninho de que por isso podemos nos "inventar" ao bel prazer. Isso é coisa de "teenager".

Mas, justamente o contrário: meu desejo também é contingente, como tudo mais. Dar asas a ele é ter fé de que eu, diferentemente do resto do universo, não sou também feito à semelhança do acaso.

Só os iniciantes confiam em si próprios. Meu desejo é a porta de entrada por onde a contingência se instala do seio da minha alma.

Não, a beleza está no que os antigos epicuristas viam nessa condição: sem deuses, sem eternidade, fruto do acaso, essa é a natureza das coisas, ser cega.

O prazer de Epicuro era justamente o de escapar da escravidão do desejo, não essa ideia contemporânea de que viver a realização contínua do desejo é a felicidade.

A concepção contemporânea de felicidade é brega, coisa de gente que se emociona quando um novo shopping é aberto na cidade.

Lucrécio entendia que a cegueira da natureza é a natureza das coisas.

É dela não carregar sentido em si mesma, e por isso é tão importante: porque me lembra continuamente que a vaidade e as expectativas, com o tempo, se tornam um tormento.

Não é totalmente absurdo escutarmos aqui o sábio israelita, também antigo, que escreveu o "Eclesiastes" (Velho Testamento): "vaidade, tudo é vaidade".

A grande questão é como se sustenta uma vida feliz decorrente dessa natureza das coisas. Podemos dizer que decorre, antes de tudo, do "relaxamento" do desejo que a consciência da contingência traz: a sabedoria da natureza é ela ser puro átomo e não uma lei.

Não há "missão" na vida. Viver segundo os prazeres do trabalho, da mesa e do corpo da mulher é tudo que podemos fazer. O puro prazer de existir.

Sem excessos, do contrário, nos tornamos escravos do trabalho, da mesa e do corpo da mulher.

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Não porque uma danação eterna nos espera (ninguém nos vigia), mas porque o excesso do desejo destrói seu próprio usufruto na medida em que nos desesperamos com a possível falta do objeto desse desejo.

Dito de forma simples: não queira pegar todas as mulheres do mundo, mas cuide bem daquelas que, por graça da contingência, vierem a sua cama.