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FOLHA – FRONTEIRAS DO PENSAMENTO Como viver juntos De que maneira recuperar o senso de comunidade e de cooperação perdido em tempos de globalização, acirramento de diferenças, desigualdade e individualismo? Projeto Fronteiras do Pensamento inspira reflexão sobre desafios do convívio A estética da cooperação Entre a utópica aldeia global e o 'flá-flu' das redes sociais, ciclo de debates busca ideias que nos ajudem a viver juntos A cooperação supõe uma estética. Kant já sabia disso quando insistia que deveríamos fazer um uso público da razão como "eruditos", com ideias "bem examinadas" e preferencialmente "por escrito". São sugestões feitas nos termos do final do século 18, mas seu sentido é claro: o exercício intelectual supõe cuidado. Há nele um elemento precário. É um esforço cooperativo que pode perder-se, de uma hora para outra. Eis um tema para a cultura contemporânea. Talvez nos tenhamos esquecido da ideia do cuidado. A internet se transforma, como bem definiu Cass Sustein, em um "imenso universo do nós-contra-eles". Arrisco-me a dizer que se trata de uma circunstância inesperada. No início dos 1990, quando o mundo digital ainda se desenhava, e, talvez na euforia pós-queda do Muro de Berlim, havia a esperança de que a internet pavimentasse a estrada para a "grande ágora global". Ainda me lembro do projeto WAM, que conheci em um sótão de Barcelona, em 1997. Seu objetivo era produzir uma música global, feita da fusão de ritmos de todo o planeta, para ser ouvida nas primeiras horas do ano 2000. Ciberutopia feita por gente jovem, perfeita para aqueles tempos. Seria o primeiro ato da "sociedade civil mundial". O projeto pode não ter vingado, mas está surgindo algo próximo a uma sociedade civil mundial. Com seus anjos e seus demônios. ONGs como a Oxfand multiplicaram sua capacidade de arrecadar e financiar projetos, e o vídeo Kony 2012 foi visto por mais de 100 milhões, ajudando a frear a ação do genocida Joseph Kony, em Uganda. Ao mesmo tempo, mais de 50 mil contas no Twitter apoiam o Estado Islâmico, e exemplos se multiplicam nesta direção.

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FOLHA – FRONTEIRAS DO PENSAMENTO

Como viver juntos

De que maneira recuperar o senso de comunidade e de cooperação perdido em tempos de globalização, acirramento de diferenças, desigualdade e individualismo?

Projeto Fronteiras do Pensamento inspira reflexão sobre desafios do convívio

A estética da cooperação

Entre a utópica aldeia global e o 'flá-flu' das redes sociais, ciclo de debates busca ideias que nos ajudem a viver juntos

A cooperação supõe uma estética. Kant já sabia disso quando insistia que deveríamos fazer um uso público da razão como "eruditos", com ideias "bem examinadas" e preferencialmente "por escrito".

São sugestões feitas nos termos do final do século 18, mas seu sentido é claro: o exercício intelectual supõe cuidado. Há nele um elemento precário. É um esforço cooperativo que pode perder-se, de uma hora para outra.

Eis um tema para a cultura contemporânea. Talvez nos tenhamos esquecido da ideia do cuidado. A internet se transforma, como bem definiu Cass Sustein, em um "imenso universo do nós-contra-eles". Arrisco-me a dizer que se trata de uma circunstância inesperada. No início dos 1990, quando o mundo digital ainda se desenhava, e, talvez na euforia pós-queda do Muro de Berlim, havia a esperança de que a internet pavimentasse a estrada para a "grande ágora global".

Ainda me lembro do projeto WAM, que conheci em um sótão de Barcelona, em 1997. Seu objetivo era produzir uma música global, feita da fusão de ritmos de todo o planeta, para ser ouvida nas primeiras horas do ano 2000. Ciberutopia feita por gente jovem, perfeita para aqueles tempos. Seria o primeiro ato da "sociedade civil mundial".

O projeto pode não ter vingado, mas está surgindo algo próximo a uma sociedade civil mundial. Com seus anjos e seus demônios. ONGs como a Oxfand multiplicaram sua capacidade de arrecadar e financiar projetos, e o vídeo Kony 2012 foi visto por mais de 100 milhões, ajudando a frear a ação do genocida Joseph Kony, em Uganda. Ao mesmo tempo, mais de 50 mil contas no Twitter apoiam o Estado Islâmico, e exemplos se multiplicam nesta direção.

O ponto crucial é: a internet torna crescentemente visível o que antes era invisível. E nos condena a viver juntos. Com nossos humores, idiossincrasias e impaciências.

Na vida cotidiana, antes de tudo. O sujeito acorda e dá de cara, na rede social, com o velho amigo da faculdade chamando de "ladrão" seu político favorito. O colega do escritório diz que todos os que foram à passeata eram "coxinhas". E você estava lá.

Pode ser pior. Alguém fará piada com suas crenças mais arraigadas no tocante a religião, orientação sexual ou valores éticos. Você terá que observar em silêncio. Exercer a complacência. Ou, quem sabe, apostar no conflito.

Uma alternativa é a exclusão da diferença. Richard Sennett, em "Juntos", cita um estudo de Robert Puttnam mostrando como a vivência com a diferença, em vez de nos aproximar do outro, nos incentiva ao retiro e produz um movimento contínuo de tribalização da vida social.

A ideia de tribalização foi pensada, originalmente, para a vida nas grandes cidades. Mas a lógica se repete no mundo digital. Redes sociais funcionam como máquinas simplificadoras, para retirar complexidade do pensamento. Retirar a nuance, o tom, fechar o espaço da dúvida. Reagir a isso supõe estar disposto a concessões. O uso do subjuntivo, por exemplo. Sennett observa que um "talvez" pode transformar uma conversa em exercício cooperativo. "A máquina social", diz, "funciona melhor quando as pessoas não se comportam com excesso de ênfase".

Vai aí um dos desafios da série Fronteiras do Pensamento deste ano: criar um espaço em que a dúvida, o prazer das ideias e o gosto pela cooperação intelectual vençam o jogo. E Sennett é um dos convidados. Quem sabe um bom exercício sobre "como viver juntos".

FERNANDO L. SCHÜLER é curador do Fronteiras do Pensamento e professor titular da cátedra Palavra Aberta, do Insper

ENTREVISTA - CAMILLE PAGLIA

Chatas x coitadinhos

Mulher deve ser maternal e ter pena de homem, em vez de cobrar perfeição dele, provoca a ensaísta, que aqui se declara transexual e ataca as feministas

FERNANDA MENADE SÃO PAULO

Camille Paglia, a mais antifeminista entre as feministas, aposta na revalorização do lado maternal da mulher como chave para um reencontro afetivo entre os sexos.

Para a ensaísta, enquanto a mulher de qualidade maternal exerce poder sobre os homens ao ter "pena de suas fraquezas", a mulher de perfil profissional exige deles, em casa, a perfeição do mundo dos escritórios.

Em entrevista à Folha, Paglia se declara transexual, critica a produção da arte contemporânea e diz que Madonna deve parar de competir com as mulheres mais jovens.

Folha - Você é feminista ou antifeminista? Camille Paglia - Sou 100% feminista, mas discordo de boa parte das feministas atuais. Eu me formei estudando as sufragistas dos anos 1920 e 1930. Aquela geração não insultava os homens. Hoje, feministas culpam os homens por tudo! Exigem que mudem, que pensem e ajam como elas. É uma ideologia doente e neurótica. E não permite à mulher ser feliz.

Por que esse feminismo impede a felicidade das mulheres? Na história da humanidade, mulheres viveram entre si e homens viveram entre si. Eram mundos separados. Agora que as mulheres entraram no mundo burguês do escritório, homem e mulher têm de convergir numa unidade de trabalho.

A infelicidade da mulher se deve à dificuldade em conectar vida no trabalho com vida emocional, na qual as habilidades exercidas no escritório não funcionam! Querem que os homens, em casa, se comuniquem com elas como suas amigas o fazem. Cobram deles a perfeição que a vida no escritório exige. Não dá. A mulher ganhou poder, e a sexualidade dos homens foi neutralizada. Se hoje seu trabalho pode ser feito por mulher, em que consiste sua masculinidade?

Quais as consequências disso? Tenho me preocupado muito com a epidemia de jihadismo. A ideologia da jihad emerge numa era de vácuo da masculinidade. O Estado Islâmico usa vídeos para projetar esse romance: jovens podem abandonar suas casas, integrar a irmandade e se lançar numa aventura masculina na qual correm risco de morte. Parte desse fascínio entre jovens ocidentais é fruto de revolta e busca de sentido para sua masculinidade.

Como reverter o desencontro atual entre homens e mulheres? Toda pessoa emerge do útero, e a segunda onda do feminismo cometeu um tremendo erro ao desvalorizar a esposa e a mãe. A imagem mitológica da mãe é poderosa para os homens no nível psicológico.

Todo menino precisa se libertar de sua mãe. E todo homem que penetra uma mulher retorna ao útero. Por isso, há e sempre haverá ambivalência na relação homem-mulher. Ele deseja a mulher, e quer se livrar dela ao mesmo tempo. Muitos comportamentos machistas, sempre arrogantes e estúpidos, são uma maneira torta de o homem dizer que não está sob o poder da mulher, que não é mais bebê. O feminismo racionalizou esses e outros mecanismos que são consequência direta da biologia.

A biologia deveria ter mais espaço nas relações? Claro! Não dá para acreditar nessa estupidez toda que deriva das ideias do [filósofo] Michel Foucault (1926-1984) e nega a existência dos gêneros, que seriam algo socialmente construído. Mulheres têm poder sobre homens, que são frágeis psicologicamente. Quando elas renunciam à maternidade, perdem parte enorme do poder. Mulheres que pedem aos homens que mudem são nervosas, derivativas, brutais. Mulheres de qualidade maternal entendem as fraquezas masculinas e têm pena deles. Tratam os homens com humor, entendem suas necessidades, nutrindo-os.

Como o debate sobre transgêneros se encaixa na dicotomia homem-mulher? Vou dizer algo controverso, mas real: eu me identifico como transgênero. Quando era mais nova, o termo não existia. Eu tinha vergonha do meu gênero biológico, me sentia alienada por ser menina. Mas estou preocupada com a tendência de mudança do corpo por cirurgia. Se essa ideia estivesse no ar quando eu era jovem, teria sido convencida de que era a resposta para meus problemas com a sociedade e sua rigidez sexual. Eu teria cometido um engano terrível.

Por quê? Transformar o corpo cirurgicamente é uma ilusão, porque todas as células permanecem com as informações do gênero biológico. Não é verdade que você mudou de gênero. Cada um tem poder sobre o próprio corpo --e sou libertária neste sentido. Mas ninguém me convence de que Chaz Bono, a filha transgênero da atriz Cher, é um homem. Ele precisa tomar hormônios todos os dias para ser o que é.

Hoje os gêneros são fluidos, há vários tipos de androginia. Adoro, mas essa flexibilidade não pode ser tratada como indício de saúde e progresso social. São sintomas de declínio da nossa cultura, que não tem produzido avanço nas artes, por exemplo. Os artistas estão obcecados consigo mesmos. O ego se tornou um trabalho artístico em si. É o novo narcisismo, assim como o é a obsessão por gênero e orientação sexual. Uma doença contemporânea.

O que acha de protestos-topless, como Marcha das Vadias e grupo Femen? Essas meninas são incoerentes ideologicamente. Femen é algo fabricado, não tem consistência política. Uma mulher com belos seios e palavras desenhadas pelo corpo deveria estar apoiando a prostituição e a pornografia, não protestando contra a indústria do sexo. É ridículo, demonstra o nível de insanidade do feminismo radical.

A Marcha das Vadias é outra incoerência das meninas burguesas e universitárias de hoje. Fui uma das feministas que levantaram a bandeira pró-sexo nos 1990. Escrevi que Madonna se expunha ao mesmo tempo em que assumia a responsabilidade de se defender. Você tem o direito de se vestir como Madonna na rua às 3h da madrugada, mas tem de bancar as consequências, porque está dizendo: "Gosto de sexo, estou pronta para receber ofertas".

Por que você foi tão crítica ao ensaio recente em que Madonna mostra os seios? Madonna é uma das figuras mais importantes da cultura contemporânea. Seus vídeos antigos são obras de arte. Ela tornou possível às mulheres assumir o comando de sua sexualidade. Achei o ensaio feio. Já vimos seu corpo no auge, e era magnífico. Por que expor o corpo na sua idade em fotos horrorosas? Foi uma desgraça artística.

Mulheres mais maduras não devem mostrar o corpo? Se você o mostra de um modo belo e sexy, OK. Mas aquelas fotos eram embaraçosas. Madonna parecia uma prostituta decadente que não sabe que está na sarjeta. Ela é uma estrela global, não deveria competir com jovens. Precisamos deixar as jovens dominarem o mundo da beleza e buscar novos papéis para as mais velhas, criando personas para elas na cultura de hoje. Não há como congelar o processo de envelhecimento, quanto mais as mulheres lutarem contra ele, mais infelizes serão.

QUEM VEM

Uma voz contra o 'feminismo narcisista'

Principal teórica do pós-feminismo, Camille Paglia observa, na sua produção, os efeitos que as representações artísticas e culturais têm sobre comportamento, política e sexualidade. Ao inserir a cultura popular na academia, ela produz ensaios sempre controversos e de grande reverberação. Para Paglia, o feminismo errou ao vitimizar a mulher, ignorar diferenças biológicas entre os sexos e glorificar a profissional. A autora de "Personas Sexuais" e "Vampes e Vadias", entre outros títulos, rejeita o que chama de "feminismo da vitimologia narcisista" e se opõe a qualquer proteção especial para mulheres.

Camille Paglia, 68, ensaísta e crítica cultural norte-americana

FRONTEIRAS: 16.set, 20h30

Guerra colaborativa

Exemplo de cooperação, Wikipédia é o ringue de 'inclusionistas', 'delecionistas', catedráticos e torcedores do Vasco

DHIEGO MAIAGALENO LIMADE SÃO PAULO

Como fazer juntos? No caso da Wikipédia, enciclopédia on-line e maior exemplo de trabalho colaborativo, a resposta é esta: com disputa, negociação e pouco consenso.

O resultado desse esforço, hoje, são 35 milhões de artigos em 288 línguas. Sob a patrulha de 53 milhões de usuários, cada verbete publicado cai no banco dos réus. Só sai de lá após ter dados padronizados e erros sanados.

Sanar equívocos é um processo lento. Aconteceu com o nome de batismo da top model Gisele Bündchen --e o erro é reproduzido até hoje, embora tenha sido corrigido na fonte. É que um usuário da Wikipédia incluiu o sobrenome "Nonnenmacher" na biografia da modelo, no dia 1º de abril de 2006. "Devo ter visto em algum jornal ou site o sobrenome da mãe dela e supus, incorretamente, que ela também o possuísse", escreveu 'Dantadd' (apelido virtual) à Folha, sem se identificar.

Patrícia, irmã de Gisele, tentou desfazer o erro na própria enciclopédia, sem sucesso. Ela contou que a correção só foi feita dois anos depois, após um pedido de alteração do verbete e um post no site oficial da modelo.

Tudo na Wikipédia envolve discussão. A disputa principal se dá entre "delecionistas" e "inclusionistas". Os primeiros são editores que pregam a exclusão de artigos considerados triviais. Os outros defendem o espaço também para temas menos importantes. Vence o argumento com mais votos.

Quando não deletado, um verbete entra numa guerra de edições. Na versão em português, o artigo que sofreu mais intervenções foi o do Club de Regatas Vasco da Gama: 9.748 modificações. Paixão, sacanagem da torcida adversária e militância futebolística devem explicar o recorde.

"A Wikipédia é um coletivo negociando o tempo todo sua narrativa. É falsa a ideia de que a cooperação agrega iguais", diz Beatriz Martins, especialista da Fiocruz em autoria em rede.

A gestão do que fica ou é removido é feita por uma casta editorial, à qual se chega por mérito. No topo, está o administrador, que, entre outros poderes, barra vandalismos em artigos de figuras públicas.

"A Wikipédia é um microcosmo que reflete as tensões do mundo real. Definir o que é enciclopédico é como nomear um ornitorrinco, ninguém sabe", diz o brasileiro Célio Costa Filho, um dos 4.048 administradores.

A enciclopédia não esconde a tensão. Com humor, pede aos experientes para "não morder os mais novos" em um 'wikidrama' (discussão).

A "enciclopédia livre que todos podem editar", como diz o slogan, atraiu a aposentada Jurema Oliveira, 67, autora do primeiro verbete sobre candomblé em português.

"Nas discussões, diziam que candomblé era seita e não deveria estar entre as religiões." O artigo ganhou adendos de pais de santo e sobrevive. Mas a aposentada continua brigando por ele. "É complicado. Não posso discutir com catedrático, não falo a língua dele."

A pesquisadora em educação Bianca Santana frustrou -se ao tentar inserir a plataforma num curso de alfabetização de adultos na periferia de São Paulo. "A ideia de autoria em grupo atraiu a turma, mas o verbete sobre o projeto foi excluído, classificado de panfletário."

"O que é marginalizado fora o é também no mundo virtual", diz Telma Jonhson, pesquisadora de novas tecnologias da Universidade Federal de Juiz de Fora.

Segundo Oona Castro, 33, ex-representante nacional da Wikimedia Foundation (entidade que gere a enciclopédia), a falta de consenso emperrou projetos que aproximariam a Wikipédia de mais brasileiros. "Consenso não é unanimidade, mas é ceder, buscando negociação em torno de princípios básicos."

O pesquisador de políticas públicas Pablo Ortellado diz que a Wikipédia é uma vítima do próprio êxito tentando preservar seu espírito. Não há paralelo, na vida real, para o efeito obtido até hoje com essa colaboração "parcelada", diz. "Quando partes divergentes têm um mínimo de tolerância, dá para produzir resultados de impacto."

Se a Wikipédia é um laboratório da democracia, precisa avançar mais no experimento da convivência, crê a pesquisadora Beatriz Martins. A ferramenta deveria dar uma visão mais ampla de temas controversos. "Seria como a Faixa de Gaza vista por judeus e palestinos."

QUEM VEM

Criador da narrativa coletiva

Wales é cofundador da Wikipédia, enciclopédia colaborativa, on-line e gratuita acessada por quase 500 milhões de pessoas. Ativista do direito ao acesso à informação, ele busca acordos para financiar a expansão de seu site a países pobres e, recentemente, posicionou-se contra leis que determinam a remoção de conteúdo on-line em nome do "direito de ser esquecido".

Jimmy Wales, 48, empreendedor americano

FRONTEIRAS 24.jun, 20h30

LUIZ FELIPE PONDÉ

Das cavernas às redes sociais, a vida em grupo só piora

Apesar das inúmeras utopias sociais e políticas fracassadas desde a obra do filósofo Jean-Jacques Rousseau (século 18), que abre o surto utópico com a noção de "natureza perfeita", passando por autores como Marx (século 19) e chegando ao movimento hippie no século 20, o fato é que o mercado de ideias sobre o que fazer para vivermos juntos só vai aumentar, justamente porque a vida em conjunto é cada vez pior.

Muitos dos convidados para o ciclo Fronteiras do Pensamento São Paulo 2015 são especialistas em algumas dessas dificuldades. O viver juntos parece funcionar melhor quando o que está em jogo é a partilha de ferramentas para a resolução de problemas, como no caso da Wikipedia, cofundada pelo empreendedor americano Jimmy Wales, um dos convidados.

As dificuldades contemporâneas para uma vida compartilhada emergem de variadas fontes. Partindo do individualismo burguês, pautado pela lógica da eficácia em detrimento de noções como vínculo afetivo e moral, objeto de reflexão do filósofo espanhol Fernando Savater, passando pela violência vulcânica das redes sociais, essa masmorra virtual, e chegando aos dramas narcisistas vividos embaixo dos lençóis, as dificuldades formam um labirinto interminável de problemas e de teorias sobre esses problemas.

Mesmo no terreno das relações entre homens e mulheres, a ambivalência dos avanços é seguida pelo surgimento de efeitos colaterais nefastos. A expectativa das mulheres emancipadas de que seus homens sejam "meninas", pensando e sentindo como elas, tem sido objeto de atenção da ensaísta Camille Paglia há anos.

Já autores como o biólogo evolucionista Richard Dawkins, que também virá a São Paulo, pensam que a herança iluminista permanece sendo a melhor solução, pois troca as certezas intolerantes das religiões pelo conhecimento partilhado da ciência.

A seu favor está o gigantesco avanço do mundo tecnocientífico, mas contra ele surge o fato de que a ciência está longe de fornecer parâmetros morais claros para o convívio humano, como bem mostrou o século 20.

Uma das maiores dificuldades para a vida contemporânea estaria na estúpida fé do homem em sua suposta superioridade moral em relação à experiência animal total na Terra. Essa constatação do "ruído dos homens" em oposição ao "silêncio dos animais" (título de sua recente obra) leva John Gray, filósofo britânico trágico, a fazer a crítica da empáfia técnica e material contemporânea.

Das cavernas às redes sociais, o viver juntos não parece ter melhorado muito, principalmente quando falamos de bilhões de humanos ruidosos.

LUIZ FELIPE PONDÉ é filósofo e colunista da Folha

A volta dos tribalistas

Redes sociais devolvem o poder às mãos da multidão e são a praça de humilhação pública e linchamentos virtuais

WALTER PORTODE SÃO PAULO

"Tomara que leve um tiro na cara, vagabunda". Até hoje, mensagens assim são publicadas na página do Facebook criada para infernizar a vida de Mayara Petruso, a estudante que, quatro anos atrás, tuitou ofensas a nordestinos. Por causa dos comentários que a tornaram conhecida e odiada, ela perdeu o emprego, saiu da faculdade, mudou de São Paulo, foi condenada pela Justiça a prestar serviços comunitários e excluiu todas as suas contas em redes sociais. Nem assim foi esquecida na internet.

É um exemplo típico de linchamento virtual: em vez do apedrejamento e da violência física dos tempos medievais, a massa agride o suposto transgressor com avalanches de mensagens hostis na internet até obter seu assassinato social.

Para o mal e para o bem, "a internet colocou o poder de volta nas mãos das multidões", resume Jennifer Jacquet, professora do departamento de estudos ambientais da New York University especializada em dilemas de cooperação em larga escala.

Segundo essa especialista, o linchamento virtual de indivíduos comuns é problemático não só pela exposição pública da pessoa mas pela desproporção entre o delito e a punição, "a falta do devido processo legal e a indestrutibilidade das informações".

VERGONHA

A agonia do linchado pode durar muito, como atesta a ex-estagiária da Casa Branca Monica Lewinsky, que, em palestra no mês passado, se definiu como a primeira vítima da perda de reputação em escala global --seu envolvimento sexual com o então presidente dos EUA, Bill Clinton, eclodiu em 1998, junto com a popularização da internet no país.

Dezessete anos depois, Lewinsky diz ainda sofrer com a repercussão do episódio. Ela se emocionou ao lembrar que houve um período em que seus pais temiam que ela se suicidasse pela incapacidade de lidar com a vergonha. Eles chegavam a exigir que tomasse banho de porta aberta para que pudessem vigiá-la.

Por aqui, um sujeito que as redes sociais amaram odiar foi o mineiro Idelber Avelar, aquele professor de literatura da Universidade de Tulane (EUA) que acabou acusado de assédio sexual por duas mulheres na praça pública da internet. Segundo uma delas, ele a abordou em chats privados e subiu o tom das conversas ao enviar, sem autorização, mensagens e fotos de forte teor sexual.

O caso ainda corre na Justiça, mas ninguém esperou que a culpa ficasse provada ou que se estabelecesse a diferença entre sedução e assédio sexual para fazer o julgamento moral de Avelar, tachado de misógino e predador.

O professor disse à Folha que o episódio fez com que ele desenvolvesse um quadro de depressão, além de prejudicar sua reputação e sua carreira.

"Quebrou-se boa parte dos meus laços sociais, porque mesmo quem percebeu a injustiça passou a ter medo de se associar ao linchado", queixa-se.

ÓDIO DE GRUPO

O ambiente virtual favorece também a formação de aglomerações espontâneas que se dedicam tanto a fustigar pessoas específicas quanto a atacar grupos sociais.

Diretor do laboratório da natureza humana da Universidade Yale, o sociólogo e médico Nicholas Christakis explica o fenômeno com base no chamado "viés de grupo", tendência que temos a temer ou a odiar aqueles que não enxergamos como semelhantes.

É um conceito similar ao que o sociólogo americano Richard Sennett chama de tribalização: o impulso natural, animalesco, de solidariedade com os parecidos e agressão aos diferentes.

Um exemplo do modo como se manifesta essa emoção tribal foi visto logo depois da queda do avião da Germanwings nos Alpes franceses, em março. Nacionalistas espanhóis não demoraram a espalhar tuítes comemorando a tragédia que matou 150 pessoas --incluindo um grande número de catalães.

Nem por isso se pode demonizar a web, como alerta Christakis. "A internet não muda nossa humanidade, não nos está tornando mais rancorosos, mas permite que expressemos nosso ódio em maior escala", completa.

Em seu livro "Is Shame Necessary?" ("A Vergonha É Necessária?", ainda sem tradução no Brasil), a professora Jennifer Jacquet enxerga o lado positivo do fenômeno. Segundo ela, o constrangimento público facilitado pela tecnologia pode ser útil para que a sociedade civil exponha autoridades e empresas, reprovando ações que considere nocivas.

"A punição pela exposição pública age não apenas para desestimular um indivíduo a repetir comportamentos, mas para sinalizar à sociedade que um comportamento não é apropriado", reforça.

Seja como for, é melhor evitar exposição do que virar alvo de propaganda negativa na internet. É isso que aconselha Juliana Abrusio, professora do Mackenzie especializada em direito digital. Ela lembra que há mecanismos legais para pedir indenização na maioria dos casos, mas pondera a efetividade dessas medidas.

"A internet sufoca a dignidade da pessoa e não existe processo judicial que vá compensar isso", afirma. "Mesmo quem erra tem direito à dignidade."

QUEM VEM

Militante da cooperação

Sennett, defensor da cooperação social, acredita que o avanço da sociedade se baseia na convergência das diferenças, e não em uma utópica unidade. Autor de "Juntos", alerta para a tendência atual de agrupamento em tribos, em que cada indivíduo procura encontrar seus semelhantes e rejeita tudo o que considera o outro.

RICHARD SENNETT, 72 sociólogo americano

FRONTEIRAS 26.ago, 20h30

QUEM VEM

Tradutora da cidade global

Sassen é conhecida por seus trabalhos sobre globalização, migração urbana e mudanças provocadas pelas novas tecnologias. No livro "A Cidade Global", ela explica como os centros urbanos se adaptaram à economia mundial, funcionando como polos do capitalismo, que desestabilizam as relações de classe e deslocam quem não entra na nova lógica.

SASKIA SASSEN, 66 socióloga holandesa

FRONTEIRAS 26.ago, 20h30

Alô, alô, comunidade

Para resgatar a convivência e a cooperação, famílias americanas vivem em um tipo de condomínio com ambientes compartilhados

GIULIANA VALLONEDE NOVA YORK

"A casa de um homem é seu castelo, mas as mudanças econômicas e demográficas transformaram nossos castelos em ilhas." A frase é do arquiteto americano Charles Durrett, que, ao lado da mulher, Kathryn McCamant, levou aos EUA o conceito de "cohousing" ("coabitação", em português).

Nos anos 1980, recém-casados e frustrados com a perspectiva de uma vida isolada e atribulada, foram à Dinamarca pesquisar mais sobre estilos de vivência em comunidade.

Voltaram decididos a implantar os conceitos aprendidos e, em 1988, lançaram o livro "Cohousing: a Contemporary Approach to Housing Ourselves" ("Cohousing: uma Abordagem Contemporânea para a Habitação"), considerado a "bíblia" do modelo nos EUA.

A ideia é misturar a vida privada com a convivência comunitária. Para isso, as comunidades são construídas com pequenas casas para cada família e uma residência maior, em que os moradores compartilham quase diariamente espaços comuns, como uma cozinha maior e uma lavanderia.

O modelo requer a participação dos futuros residentes em todas as etapas da construção, um jeito de uni-los em torno de um objetivo comum.

"Estamos vivendo um estilo de vida cada vez mais privado e, com isso, perdemos o que antes vinha naturalmente, a cooperação entre as famílias", diz McCamant. "O cohousing é uma tentativa de resgatar o senso de comunidade de um jeito moderno."

A convivência próxima com os vizinhos, parecida com a de sua infância em Brasília, foi o que fez a brasileira Mariana Almeida, 45, procurar o cohousing nos EUA --onde vive há mais 30 anos.

Ela mora em uma comunidade em Berkeley, na Califórnia, desde 2004, com o marido e a filha, de 8 anos. Ao todo, são 32 pessoas em 15 casas. "A parte mais interessante é o apoio mútuo. Tenho ajuda com a minha filha, todos fazem refeições juntos, ajudamos os mais velhos."

Mas, se viver em família já é complicado, é possível dar certo com desconhecidos? "Não é perfeito, é claro. Há reuniões em que tudo funciona e outras em que você sente que está batendo a cabeça contra uma parede", diz Kathryn McCamant.

Mariana admite que chegar a um consenso para fazer coisas simples, como consertar um equipamento ou construir uma cerca, pode ser desgastante. Mas não pensa em deixar esse estilo de vida.

De acordo com a Associação de Cohousing dos Estados Unidos (Coho/US, na sigla em inglês), há hoje 140 comunidades do tipo no país.

Depois de uma parada na construção de condomínios, com a recessão econômica de 2008, a expectativa é de que os números voltem a crescer.

Esse aumento, segundo a diretora-executiva da Coho/US, Alice Alexander, 57, será impulsionado pela geração baby boom (nascidos após a Segunda Guerra Mundial), que buscam formas de envelhecer melhor.

Mas, para o professor da Universidade da Flórida Stephen Golant, autor de "Aging in the Right Place" ("Envelhecendo no Lugar Certo", sem tradução para o português), a probabilidade de que o modelo se popularize é baixa.

"Grande parte da população não tem a paciência ou o tempo necessário para se engajar na construção de uma comunidade."

QUEM VEM

Mais ética, menos nação

Ensaísta, dramaturgo e professor, Savater é um pensador com foco na educação e na ética. O autor de "Política para Meu Filho" abordará na palestra no Brasil conceitos de cidadania e democracia e criticará o fervor nacionalista, que acredita estar na base de muitas crises.

FERNANDO SAVATER, 67, ensaísta e professor de ética espanhol

FRONTEIRAS: 28.out, 20h30

QUEM VEM

Inventor de realidades

Autor de "Poema Sujo" e precursor da poesia concreta, Gullar é um dos mais importantes escritores brasileiros vivos. Sobre sua obra de viés político, renega o rótulo de "engajado", explicando que só refletia o tempo da ditadura e dizendo-se um inventor de realidades. Crítico de arte e colunista da Folha, acha o capitalismo injusto, mas inevitável.

FERREIRA GULLAR, 84, poeta brasileiro

FRONTEIRAS: 30.SET, 20h30

Casa coletiva não se adapta ao contexto das grandes cidades

RICARDO BUNDUKYDE SÃO PAULO

Uma mulher mexe o risoto em uma grande panela na cozinha. A refeição será servida para outras 11 pessoas. Nenhuma delas faz parte da sua família.

A cena é parte do dia a dia em um sobrado na zona oeste de São Paulo, onde vivem oito adultos e quatro crianças. Cada morador tem seu quarto, mas sala, banheiros e cozinha são de uso coletivo. Os eletrodomésticos também são usados por todos.

"Cada um tem a sua rotina, mas temos o compromisso de manter a casa em ordem, para que não vire uma república de estudantes", diz a atriz Paula Lisboa, 37.

Mãe de um menino e uma menina, de seis e nove anos, ela vê os benefícios da vida em grupo na criação dos filhos. "Eles aprendem a respeitar as diferenças. Não têm apenas o pai ou a mãe para lhes mostrar o mundo."

A ideia de morar em comunidade, em oposição ao modelo de família nuclear, surgiu no movimento hippie da década de 1960. Mas as tentativas atuais de viver de outro jeito guardam pouca relação com a "sociedade alternativa" daquele período.

Se mesmo em ambientes controlados, como as ecovilas, essas experiências nem sempre sobrevivem a conflitos, que dirá no contexto de grandes cidades.

O professor de história do urbanismo Renato Cymbalista, da FAU-USP, afirma que esse modelo de casa compartilhada é pouco adaptado às metrópoles, onde o preço da terra e dos recursos é mais alto e se gasta muito tempo no trabalho, o que rouba a energia que seria necessária para a vida comunitária. "Desenvolvemos uma tendência de privatizar, de individualizar as coisas."

Na visão do urbanista, o formato comunitário não perdura no contexto urbano.

Cymbalista lembra que, para se adaptar ao preço do metro quadrado em São Paulo, o mercado tem apostado em imóveis com equipamentos compartilhados, como lavanderias e escritórios. Isso, contudo, está ligado à racionalização do espaço, não ao ideal de vida comunitária.

A outra proposta que busca estreitar a convivência entre famílias, só que com mais privacidade, o "cohousing", ainda não chegou ao Brasil.

A arquiteta Lilian Lubochinski, 66, conheceu o modelo quando se especializava em soluções arquitetônicas para a terceira idade. Tornou-se a maior divulgadora do conceito no Brasil.

"É um assunto que está latente, as pessoas só não sabiam que tem um nome", diz Lubochinski. "O grande atrativo é que os seus vizinhos são seus amigos, você já começa em um grupo que quer morar perto. Essa é a diferença em relação a um condomínio qualquer."

Desde 2013, ela deu mais de 20 palestras de introdução ao cohousing em cidades como São Paulo, Rio, Curitiba e Porto Alegre, e abriu páginas de discussão sobre o tema no Facebook.

Segundo ela, a ideia é procurada por idosos e casais com filhos pequenos.

Em Piracicaba (SP), o arquiteto Rodrigo Munhoz, 36, criou um projeto com sete casas que inclui piscina e telhados verdes. Ele diz que já tem famílias interessadas em número suficiente para dar andamento ao que seria o primeiro experimento brasileiro de cohousing. Falta parceria para comprar um terreno.

Brasileiro é tão bonzinho

Questões culturais, históricas e legais ajudam a explicar a escassez de doações no país, que tem cerca de 300 mil entidades voltadas a ações sociais

BRUNO BENEVIDESDE SÃO PAULO

O brasileiro só é solidário na tragédia --já disse, de um outro jeito, Nelson Rodrigues. Especialistas ouvidos pela Folha afirmam que doações desinteressadas aparecem quando há catástrofes, como enchentes, mas mínguam quando a proposta é enfrentar problemas cotidianos.

Quem tem dinheiro, no Brasil, prefere investir em programas que já contam com uma estrutura pronta. "Os poucos milionários brasileiros que doam o fazem no exterior, dão para universidades americanas", afirma o antropólogo Roberto DaMatta.

A diretora-executiva do Instituto Rio, Graciela Hopstein, concorda e acrescenta: "No Brasil, quem doa é o pobre, não o rico". Muitas vezes ela mesma vai buscar lá fora o dinheiro para financiar seus projetos sociais.

Andre Degenszajn, secretário-geral do Gife (organização que reúne os principais investidores sociais do país), aponta a recente estruturação do terceiro setor por aqui como uma das causas dessa fragilidade da filantropia.

Segundo os últimos dados da organização, de 2011, só 3% dos recursos das entidades filantrópicas saem de doadores individuais. Nos EUA, segundo o Center Foundation, 74% dos US$ 300 bilhões movimentados ao ano no terceiro setor vêm de doações individuais. Não se sabe quanto as 300 mil ONGs brasileiras movimentam, mas o Gife informa que seus 129 associados investem R$ 2,4 bilhões por ano.

Dados do IBGE em 2012 mostravam que, em média, as organizações brasileiras nessa área estavam ativas havia só 12 anos. Faz falta às ONGs a base de doadores fixos que existe em nações onde o terceiro setor está consolidado.

DaMatta traz à tona o que ele vê como uma tradição nacional: a sociedade sempre vai atrás do poder público para tentar resolver seus problemas, o que dificulta a formação de uma cultura de estímulo às doações privadas."O Estado é o grande patrão do país e da sociedade." Comum no Brasil não é a filantropia, diz ele, mas, sim, a caridade.

As duas são palavras que designam amor ao próximo: "caridade" vem do latim "caritas", que é estima, afeto, e "filantropia" vem do grego "philos" (aquele que

gosta de) e "anthropos" (homem). A diferença é que, na primeira, a doação é feita com foco em Deus e em recompensas espirituais, dentro da tradição católica, enquanto a segunda é centrada em problemas concretos e imediatos da sociedade.

Questões comportamentais e históricas não são as únicas fontes de problemas que as entidades filantrópicas enfrentam no país. O Estado vem se mostrando um empecilho, na visão de Degenszajn.

Ele reclama de que o dinheiro destinado à filantropia, com algumas exceções, não dá direito a desconto em impostos --diferentemente do que ocorre nos EUA e na Europa. "A questão legal não ajuda a criar a cultura de doação da qual precisamos".

O economista Luiz Carlos Merege, ex-diretor da FGV-SP, estima que o terceiro setor movimente entre 2% e 4% do PIB brasileiro --menos que a média europeia e que a norte-americana, que fica em torno de 11%.

Momentos de crise econômica acabam afetando ainda mais as doações, segundo Merege. O PIB desestimulante da economia brasileira nos últimos anos veio acompanhado de uma crise na captação para projetos sociais.

Degenszajn lembra que setores específicos, como o da educação, concentram a maior parte dos recursos de filantropia no país. Hopstein, do Instituto Rio, se queixa de que é difícil conseguir financiamento para outras iniciativas, como o combate à desigualdade.

O matemático Nílson José Machado, que parte da perspectiva da Faculdade de Educação da USP, onde leciona, pondera que os recursos para o setor são prejudicados pela falta de cooperação entre as múltiplas ações educacionais operantes no país.

"Essas contribuições são feitas de maneira errática". afirma ele, defendendo o trabalho conjunto das ONGs com o governo. "Não adianta termos uma cereja linda se não temos um bolo".

QUEM VEM

sacerdote do novo ateísmo

Defensor ferrenho do ateísmo, em especial na obra "Deus, um Delírio", este biólogo crê que é papel da educação fomentar o pensamento livre e desconstruir dogmas. Autor de "O Gene Egoísta", ele popularizou a ideia do gene como principal ator da seleção natural.

RICHARD DAWKINS, 74, biólogo britânico

FRONTEIRAS: 27.mai, 20h30

REINALDO JOSÉ LOPES

'Gene egoísta' também é cooperação

Os mais afoitos talvez achem um despropósito que o cientista célebre por um livro chamado "O Gene Egoísta" seja um dos nomes de um evento sobre cooperação. É difícil reduzir o pensamento de Richard Dawkins a estereótipos, no entanto --ao menos na maior parte do tempo.

Longe de defender a competição desalmada que às vezes predomina na natureza, "O Gene Egoísta" pode ser lido como antídoto a essa tendência. Tanto que, como afirma o zoólogo britânico, um título igualmente apropriado seria "O Gene Cooperativo".

A metáfora central da obra-prima de Dawkins, na verdade, tem menos a ver com egoísmo ou cooperação e mais com permanência.

O autor parte do princípio de que os genes, unidades mínimas de DNA que contêm a "receita" para determinada característica, viajam de forma relativamente independente de uma geração para outra por meio do sexo.

Em média, nossos filhos têm 50% de nossos genes, enquanto a proporção cai para 25% em nossos netos --e assim por diante. Por causa do sexo, genes que estão no mesmo corpo na primeira ou na segunda geração podem muito bem acabar parando em corpos diferentes nas seguintes.

Isso significa que cada gene pode ter um "interesse" (metaforicamente, é claro, já que não têm cérebro), conduzindo o organismo (de novo, inconscientemente) a buscar o sucesso na reprodução para que mais cópias dele circulem pelo mundo --daí o "egoísta" do título.

Ocorre que, como Dawkins explica, isso acontece por meio de variadas estratégias. Algumas se encaixam na nossa definição antropocêntrica de egoísmo --homens que traem as parceiras e geram filhos fora do casamento--, enquanto outras são altruístas.

A colaboração dentro de grupos sociais, por exemplo, também pode ser ótima para os genes de todo mundo que está participando, desde que existam regras para premiar os bons meninos e punir os trapaceiros.

Dawkins tem prestado imensos serviços ao elucidar para o grande público essas e outras facetas da evolução. Mas é discutível se sua outra persona pública, a de cruzado antirreligião, tenha efeito tão positivo.

Com a publicação de "Deus, um Delírio" (2006), ele se tornou uma das maiores vozes do novo ateísmo, segundo o qual boa parte dos problemas do mundo desapareceriam se a religião deixasse de existir.

Ao adotar esse ponto de vista, Dawkins esnoba a crescente literatura científica segundo a qual as crenças podem funcionar como poderoso estímulo de cooperação e coesão social.

É exagero pintar o zoólogo como fundamentalista científico, já que suas armas são a razão e a argumentação. Mas a maneira como ele reage à religião é, por vezes, tão estereotipada e contraproducente quanto as reações dos críticos que leram apenas o título de seu clássico.

REINALDO JOSÉ LOPES é jornalista, escritor e colunista da Folha

EXPLOSÃO DEMOGRÁFICA

Um passinho à frente

Para enfrentar o adensamento, cidades têm dois modelos de futuro: um prega a ocupação dos espaços públicos; outro, a vida em condomínios

ANDREA VIALLICOLABORAÇÃO PARA A FOLHA

As projeções das Nações Unidas sobre os rumos da população mundial em 2050 não deixam dúvidas: os humanos serão ainda mais numerosos e, em sua maioria, viverão em cidades superpopulosas sob ameaça de escassez de recursos naturais.

Para responder às demandas das próximas décadas, na opinião do urbanista Anderson Kazuo Nakano, professor da FGV, a população e o poder público irão articular-se em torno de duas tendências opostas, já em curso: o isolamento e a busca por convívio.

A primeira, do autoconfinamento e da vida intramuros, expressa-se na proliferação de condomínios fechados, nas torres de escritórios e na hegemonia do carro. Esse modelo, inspirado em cidades norte-americanas, começou a se disseminar no Brasil na década de 1970 e ganhou força nos últimos anos. "Ele reflete a segregação dos espaços baseada na vida 'entre iguais' e requer controle do acesso e sistemas de vigilância", diz ele.

A segunda tendência é a da valorização da convivência da diversidade. São reflexos dessa vertente a apropriação de espaços públicos para eventos, o uso de bicicletas, a proliferação dos coletivos culturais e as ecovilas urbanas.

Segundo Nakano, os dois movimentos devem continuar existindo nas próximas décadas. "Mas arrisco-me a dizer que a tendência de ocupação dos espaços públicos deve se fortalecer por vontade das pessoas, que não querem mais viver confinadas em espaços privatizados."

Fora do Brasil, esse movimento vem sendo chamado de "new urbanism" (novo urbanismo). Ele influencia a criação de zonas mistas, onde comércio e

residências se misturam, as calçadas são amplas e há locais de uso coletivo, favorecendo a convivência entre os moradores.

O caminho para um espaço urbano que facilite a interação, no entanto, não será rápido, na visão de Rosa Alegria, especialista em prospectiva estratégica (área que estuda tendências do futuro).

Na visão dela, a transição para um modelo mais colaborativo de cidades só será possível depois que o atual padrão competitivo e centrado no indivíduo entrar em colapso. "Esse modelo é a base do sistema econômico em que vivemos hoje e está refletido na organização das grandes cidades", afirma.

O arquiteto e urbanista Carlos Leite, autor de "Cidades Sustentáveis, Cidades Inteligentes", diz que o fato de o mundo caminhar para cidades mais adensadas não significa necessariamente um futuro de metrópoles mais segregadas. "As pessoas buscarão mais interação, pois é da concentração de características socioculturais diversas que emergem as oportunidades de inovação, o microempreendedorismo, a economia criativa."

A "cidade para pessoas" é uma forte tendência, segundo Leite: "Ela se revela em espaços de convivência, zonas de uso misto, wi-fi, transporte público de qualidade e parcerias público-privadas para que esses investimentos se realizem".

QUEM VEM

Filósofo do apocalipse

Gray é famoso por suas críticas ao humanismo. Em suas obras, como "Cachorro de Palha", desafia a ideia de que a humanidade ocupa um lugar especial na Terra e defende a tese de que o ser humano é incapaz, como qualquer animal, de controlar seu destino. Para ele, o planeta já está tentando se livrar da espécie, por processos como o aquecimento global e a escassez de recursos.

JOHN GRAY, 67 filósofo britânico

FRONTEIRAS: 6.jul, 20h30

QUEM VEM

De olho na desigualdade

Prêmio Nobel, Stiglitz critica a teoria de livre mercado de Adam Smith, dizendo que a "mão invisível" do mercado não funciona porque alguns atores econômicos sempre têm mais informações que outros. Em "O Preço da Desigualdade", ele mostra que países mais desiguais têm mais problemas de

crescimento. Sua palestra em São Paulo deve abordar a ideia de uma economia fundada na inovação.

JOSEPH STIGLITZ, 72 economista americano

FRONTEIRAS: 04.nov, 20h30

GUILHERME WISNIK

Conflito é atributo essencial da cidade viva

"O ar da cidade liberta", diz um conhecido provérbio alemão do fim da Idade Média. Depois, no início do século 20, pensadores como Georg Simmel e Walter Benjamin mostraram como a grande cidade, lugar impessoal da massa, é, paradoxalmente, o lugar da individualidade. Pois, no contexto de comunidades pequenas, a liberdade individual está sempre tolhida pelo olhar e o julgamento do vizinho. Já na cidade, ao contrário, o sujeito é anônimo na multidão, por isso está livre para ser ele mesmo, isto é, ser outro, aquilo que não se esperaria dele.

A mistura de classes sociais, culturas, línguas, etnias e religiões que se dá na cidade é o melhor antídoto que inventamos até hoje contra a intolerância e os fundamentalismos. Filha e irmã da imigração, a cidade quebra os laços estamentais e a mentalidade paroquial dos clãs, colocando as pessoas em relação imanente e horizontal: moeda, comércio, indivíduo, democracia. O mercado, porém, não coincide com a política. Enquanto o consumo é balizado pelo poder aquisitivo e tende à desigualdade, a política existe para garantir certa equalização na multiplicidade, regulando a expansão do consumo e da desigualdade, assim como uma praça deveria ser lugar que não fosse ocupado pela "casa" ou "nome" de ninguém.

Toda a graça da cidade, por isso, repousa no fato de que ela existe para dar espaço à individualidade, não ao individualismo. Lugar da coletividade, ela se funda sobre as noções de comum e de público. Na cidade, vivemos com uma multidão que não escolhemos. A convivência com esses outros depende da aceitação da diferença como algo estruturante. Aqui está o ponto crucial. A aceitação radical da diferença supõe a empatia, mas não a simpatia nem a recusa. É o que Richard Sennett, em "Juntos", define como conversa dialógica. Uma conversa que não supõe uma concordância total, mas uma gestão orquestrada de conflitos. Como na música, em que a frase em contraponto de um violonista significa um comentário eloquente à frase anterior do pianista.

Daí que o atributo essencial de um espaço público vivo seja o conflito, não a falsa harmonia. Igualmente, o temor da violência urbana, pretensamente protegido atrás de muros e cercas elétricas, aparentemente não enxerga o quanto acaba sendo, ele mesmo, produtor de violência, pois a cidade não pode ser segura apenas para alguns. Sua lição histórica é a de que a defesa do interesse individual não deve ser antagônica a uma visão solidária da coletividade.

GUILHERME WISNIK é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP