francilaide de queiroz ronsi a mística cristã e o …...francilaide de queiroz ronsi a mística...
TRANSCRIPT
Francilaide de Queiroz Ronsi
A mística cristã e o diálogo inter-religioso em
Thomas Merton e em Raimon Panikkar Para uma maturidade cristã e uma mística inter-religiosa
Tese de Doutorado
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Teologia Sistemática do Departamento de Teologia da PUC-Rio.
Orientadora: Profa. Maria Clara Lucchetti Bingemer
Volume I
Rio de Janeiro Dezembro de 2014
Francilaide de Queiroz Ronsi
A mística cristã e o diálogo inter-religioso em Thomas Merton e em Raimon Panikkar
Para uma maturidade cristã e uma mística inter-religiosa
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Teologia do Departamento de Teologia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Profa. Maria Clara Lucchetti Bingemer
Orientadora Departamento de Teologia - PUC-Rio
Prof. Luís Corrêa Lima
Departamento de Teologia - PUC-Rio
Profa. Lúcia Pedrosa de Pádua
Departamento de Teologia - PUC-Rio
Prof. Gilbraz de Souza Aragão UNICAP
Prof. Sibélius Cefas Pereira PUC-MG
Profa. Denise Berruezo Portinari
Coordenadora Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa do Centro de Teologia e Ciências Humanas - PUC-Rio.
Rio de Janeiro, 11 de dezembro de 2014
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial
do trabalho sem autorização da universidade, ou da autora e da
orientadora.
Francilaide de Queiroz Ronsi
Graduou-se em Teologia Sistemática pela Universidade Católica de
Pernambuco (UNICAP), em 2007. Desenvolveu pelo Programa de
Iniciação Científica, uma pesquisa sobre a cultura e religiosidade
afro-brasileira, utilizando-se da metodologia transdisciplinar.
Aprimorou seu interesse científico pelo diálogo inter-religioso com o
Mestrado em Teologia, pela Pontifícia Universidade do Rio de
Janeiro (PUC-Rio), em 2009.
Ficha Catalográfica
CDD: 200
Ronsi, Francilaide de Queiroz A mística cristã e o diálogo inter-religioso em Thomas Merton e em Raimon Panikkar: para uma maturidade cristã e uma mística inter-religiosa / Francilaide de Queiroz Ronsi; orientadora: Maria Clara Lucchetti Bingemer. – 2014. 2 v. ; 30 cm Tese (doutorado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Teologia, 2014. Inclui bibliografia 1. Teologia – Teses. 2. Pluralismo. 3. Diálogo inter-religioso. 4. Mística. 5. Experiência. 6. Religião. 7. Revelação. I. Bingemer, Maria Clara Lucchetti. II. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Teologia. III. Título.
Agradecimentos
A Deus por seu cuidado sempre presente em todas as circunstâncias de minha
vida, e por me conduzir à Sua presença nesta oportunidade de crescimento
intelectual.
À minha orientadora Maria Clara Bingemer, que, com maestria, conduziu-me na
realização desta tese.
Ao meu querido pai Francisco Ronsi Neto 'in memoriam' e a minha querida mãe
Alaíde de Queiroz Ronsi, pelo carinho, paciência, confiança e estímulo.
Às minhas irmãs, ao meu irmão e sobrinhos por todo carinho e confiança.
Ao professor Gilbraz Aragão e aos demais professores da UNICAP por
acreditarem em mim.
Aos professores e funcionários do Departamento de Teologia da PUC-Rio pelo
apoio e acolhida fraterna.
Aos professores da Comissão examinadora que acompanharam pacientemente a
realização desta tese com importantes colaborações.
À PROLIC e a PUC-Rio pelo auxílio financeiro durante este período de estudo.
Aos amigos e amigas conquistados no Rio de Janeiro e no Recife, os quais, pela
presença fraterna e orações, me animaram nesta caminhada.
A todos da minha família pelo estímulo e confiança.
Resumo
Ronsi, Francilaide de Queiroz; Bingemer, Maria Clara Lucchetti. A
mística cristã e o diálogo inter-religioso em Thomas Merton e em
Raimon Panikkar. Para uma maturidade cristã e uma mística inter-
religiosa. Rio de Janeiro, 2014. 343p. Tese de Doutorado. Departamento
de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
O reconhecimento da realidade religiosa, ricamente plural em que nos
encontramos, nos convida a buscar formas para que seja possibilitado o convívio
harmonioso em nossa sociedade. Para o Cristianismo, em especial, lhe é
proporcionado a busca por uma intensa experiência nas mais profundas raízes de
sua origem religiosa e a compreensão do significado dessa pluralidade religiosa no
projeto salvífico de Deus e sua relação com o mistério de Jesus Cristo. Por isso,
acreditamos que, para o diálogo fecundo e acolhedor com as demais religiões, é de
extrema importância a contribuição de um caminho espiritual enraizado na
experiência de união com Deus, como possibilidade para que não se viva uma
religiosidade muito epidérmica, recuperando a dimensão da experiência íntima do
mistério de Deus e da experiência da unidade com ela. As experiências vividas
por Thomas Merton e Raimon Panikkar, radicadas no cristianismo, de profunda
intimidade com Deus, nos apresentam um caminho para um diálogo inter-
religioso realizado a partir de uma madura experiência religiosa. A experiência de
Thomas Merton é profundamente inseparável do amor a Deus e à humanidade, em
um seguimento aos ensinamentos de Jesus Cristo na dedicação ao seu ministério
de sacerdote, monge e eremita, ricamente fortalecida pelo amor aos humanos. Em
Raimon Panikkar, encontramos uma pessoa marcada por quatro identidades
religiosas, sem que lhe fosse negada sua primeira origem, o cristianismo,
caracterizada por uma profunda experiência de encontro com Deus. Para Raimon
Panikkar este é o kairós do milênio que recém se abriu para todas as religiões e
continuar com pequenas reformas não tem sentido. É necessária uma grande
transformação, porém profunda, uma metanóia! Segundo Thomas Merton e
Raimon Panikkar o diálogo entre as experiências religiosas não se resume a uma
conversão vazia, mas que os interlocutores tenham de fato, penetrado com a
máxima seriedade em sua própria tradição, assumindo a dimensão espiritual como
o nível mais fecundo para a abertura e compreensão no diálogo inter-religioso. A
partir destas experiências, sugerimos que o diálogo inter-religioso ultrapasse as
fronteiras que separam as religiões em uma sincera e fecunda acolhida das mais
diversas tradições, a partir de uma madura experiência religiosa. Através das
contribuições de Juan Martin Velasco e de Andrés Torres Queiruga, confirma-se a
importância que têm a dimensão espiritual e a experiência interior que possuem
todas as religiões diante da autêntica necessidade do diálogo inter-religioso. Em
todas as religiões existe a experiência mística unicamente graças ao convite de
Deus, que deseja tornar-se conhecido e, acolhendo esta Presença, o ser humano
tem a possibilidade de atingir sua autêntica realização. Sem fazer oposição à
singularidade cristã na interpretação positiva das outras religiões e do pluralismo
religioso, acreditamos que a maturidade da experiência religiosa do cristão
contribui para aproximá-lo da realidade de ser imagem de Deus, que se dá na
experiência mais profunda do ser religioso a partir de uma íntima relação com
Deus.
Palavras-chave
Pluralismo; diálogo inter-religioso; mística; experiência; religião; revelação.
Abstract
Ronsi, Francilaide de Queiroz; Bingemer, Maria Clara Lucchetti. The
Christian mystical and interreligious dialogue in Thomas Merton and
Raimon Panikkar. For a Christian maturity and an interreligious
mystical. Rio de Janeiro, 2014. 343p. PhD thesis. Departamento de
Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
The recognition of religious reality, richly plural, invites us to seek ways to
make possible the harmonious coexistence in our society. For Christianity, in
particular, it is provided to search for an intense experience in the deepest roots of
their religious background and understanding of the significance of religious
plurality in the salvific plan of God and their relationship with the mystery of
Jesus Christ. Therefore, we believe that for the fruitful and friendly dialogue with
other religions, it is extremely important the contribution of a spiritual path rooted
in the bonding experience with God, as a possibility for not living a very
epidermic religiosity, recovering the dimension of an intimate experience of
God’s mystery and the unit experience with it. The experiences of Thomas Merton
and Raimon Panikkar, rooted in Christianity, of deeper intimacy with God, show
us the way to interreligious dialogue held from a mature religious experience.
Thomas Merton’s experience is deeply inseparable from the love for God and
humanity, followed up to Jesus Christ’s teachings in the dedication to his ministry
as a priest, monk and hermit, richly strengthened by the love for human. In
Raimon Panikkar, we find a person marked by four religious identities, without
deny his first origin, Christianity, characterized by a deep experience of
encountering God. For Raimon Panikkar this is the kairós of the millennium that
has just opened to all religions and continue with small reforms is meaningless. It
is required a great transformation, but a deep one, a metanoia! According to
Thomas Merton and Raimon Panikkar the dialogue between religious experiences
is not limited to an empty conversion, but the interlocutors have indeed penetrated
with the utmost seriousness in your own tradition, assuming the spiritual
dimension as the most fruitful level for an opening and understanding in the
interreligious dialogue. Based on these experiences, we suggest that interreligious
dialogue beyond the boundaries that separate religions in a sincere and fruitful
reception of the most diverse traditions, from a mature religious experience.
Through the contributions of Juan Martin Velasco and Andres Torres Queiruga,
confirms the importance of the spiritual dimension and the inner experience that
all religions have for the authentic necessity interreligious dialogue. In all
religions there is a mystical experience exclusively thanks to God’s call, who
wants to become known and, by welcoming the Presence, the human being is able
to reach an authentic realization. Without making opposition to Christian
uniqueness in positive interpretation of other religions and religious pluralism, we
believe that the maturity of the religious experience of the Christian contributes to
alignment with the reality of being in God's image, which gives the deepest
experience of being religious from an intimate relationship with God.
Keywords
Pluralism; interreligious dialogue; mystic; experience; religious; revelation.
Sumário
Introdução..................................................................................................14
I. Parte
A teologia e o contexto religioso................................................................ 21
1. O pluralismo religioso e a teologia das religiões ...................................21
1.1 Os desafios do pluralismo religioso..................................................... 24
1.2 O pluralismo religioso: uma questão teológica.................................... 28
1.3 Teologia das religiões e teologia do pluralismo religioso.................... 29
1.4 A teologia cristã das religiões.............................................................. 33
1.5 A busca por um novo paradigma teológico......................................... 41
2. O fenômeno religioso e místico............................................................. 46
2.1 Um desafio às religiões....................................................................... 50
2.2 O ser humano chamado a viver a partir do seu interior...................... 53
2.3 A religião e sua reafirmação................................................................ 55
2.4 Fenomenologia mística...................................................................... 59
2.5 A mística cristã.................................................................................... 67
2.6 A religião para além de si mesma.......................................................75
Conclusão.................................................................................................. 81
II. Parte
Um possível caminho................................................................................ 82
1. A mística como paradigma.................................................................... 82
1.1 “Em todas as religiões existe experiência mística”..............................83
1.2 O ser humano, um ser com um mistério no coração...........................83
1.3 A mística e sua linguagem humana.....................................................86
1.4 A presença originante.......................................................................... 90
1.5 As características da experiência mística..........................................102
1.6 O núcleo originário da experiência mística........................................ 110
1.7 Mística, condição de existência para a religião.................................121
2. “Todas as religiões são verdadeiras”...................................................123
2.1 A Revelação como maiêutica histórica.............................................. 125
2.2 A hermenêutica do amor....................................................................132
2.3 A eleição e a universalidade de Deus................................................134
2.4 O cristianismo e outras religiões........................................................139
2.5 O não absolutismo do cristianismo.................................................... 141
2.6 A necessidade de novas categorias.................................................. 142
2.7 A verdade entre as religiões.............................................................. 153
Conclusão................................................................................................ 156
III. Parte
Experiência Cristã de Deus em Thomas Merton..................................... 158
1. O itinerário de uma vida.......................................................................159
1.1 Convém recordar............................................................................... 164
1.2 A história de uma vocação................................................................ 168
1.3 "Entre os quatro muros da minha nova liberdade"............................ 172
1.4 Um monge, escritor e poeta para o mundo....................................... 174
1.5 Entre uma paixão e o mosteiro.......................................................... 180
2. Cristão: "Filho de Deus" criado livre para o amor................................ 181
2.1 Meu lugar no mundo: solidão e compaixão....................................... 188
2.2 "O eu interior: nossa realidade substancial"...................................... 192
2.3 "Para um contemplativo toda a vida é contemplação"...................... 196
2.4 A viagem ao Oriente: "...dela tirar proveito, aprender, mudar."......... 206
Conclusão................................................................................................ 216
Cronologia da vida de Thomas Merton....................................................218
IV. Parte
Experiência Cristã de Deus em Raimon Panikkar................................... 220
1. O itinerário de vida de Raimon Panikkar............................................. 225
1.1 O encontro com a Índia e seu descobrimento como cristão,
hindu e budista, período de 1954 até 196...............................................227
1.2 A volta para Catalunha e seu retorno à "sua casa"
em 1987 até 2010...................................................................................231
1.3 Igreja, "comunhão de Deus com todo o povo"................................. 233
1.4 Um Panikkar ou vários Panikkar?..................................................... 235
2. Buscar a unidade harmônica de toda a realidade............................... 241
2.1 Toda realidade é cosmoteândrica..................................................... 249
2.2 O ser humano, uma realidade cosmoteândrica................................ 251
2.3 No ser humano, tudo é totalidade..................................................... 254
2.4 O ser humano, um ser religioso e místico......................................... 256
2.4.1 Mística, plenitude da vida............................................................... 261
2.4.2 Mística e a experiência de Deus.................................................... 264
2.5 Espiritualidade cosmoteândrica....................................................... 269
2.6 O monge, arquétipo do ser humano.................................................. 272
2.7 "Toda realidade é uma cristofania".................................................. 274
Conclusão................................................................................................ 280
Glossário................................................................................................. 283
Cronologia da vida de Raimon Panikkar................................................. 285
V. Parte
A mística cristã na perspectiva do diálogo inter-religioso
em Thomas Merton e Raimon Panikkar..................................................286
1. Thomas Merton................................................................................... 286
Encontrar Deus nas outras pessoas....................................................... 286
1.1 Diálogo entre as religiões.................................................................. 293
2. Raimon Panikkar................................................................................. 302
A harmonia invisível................................................................................ 302
2.1 Ecumenismo-ecumênico................................................................... 304
2.2 O diálogo, uma necessidade vital..................................................... 306
2.3 Pluralismo não significa pluralidade................................................. 314
Conclusão................................................................................................ 318
Considerações finais............................................................................... 322
Perspectivas para uma maturidade cristã e uma mística
inter-religiosa - Caminhos apontados por Thomas Merton
e Raimon Panikkar………………………………………............................322
Referências Bibliográficas....................................................................... 331
Abreviações Documentos da Igreja
AG - Ad Gentes
DV - Dei Verbum
GS- Gaudium et Spes
LG- Lumen Gentium
NA- Nostra Aetate
RM- Redemptoris Missio
DH- Dignitatis Humanae
UR- Unitatis Redintegratio
DA- Diálogo e Anúncio
DM- Diálogo e Missão
“É uma verdade incontornável que o Espírito de Deus está agindo em todas as religiões
tradicionais. Dialogar é então uma viagem em companhia do Espírito para descobrir de
onde vem e para onde vai sua graça. O que explica por que se trata de um ato espiritual e que só pode efetuar essa viagem estando aberto ao Espírito e sensível à sua voz”.
FEDERAÇÃO das Conferências Episcopais da Ásia. O que o Espírito diz às Igrejas. Sedoc, v. 33, n. 281, julho/agosto de 2000, p. 46.
Introdução
Esta tese visa produzir uma reflexão que possa aprofundar o fortalecimento
da maturidade cristã, aproximando a pessoa religiosa cada vez mais da realidade
de ser imagem de Deus. Deseja, assim, contribuir para desenvolver uma mística
inter-religiosa que impulsione um pensar sério para além de uma simples troca de
ideias, conhecimento conceitual ou formulações de verdades entre as religiões.
Diante da indiscutível realidade plural em que vivemos, procuraremos, no
que diz respeito às religiões, e em especial ao Cristianismo, criar condições para
uma apreciação positiva das demais religiões, através de um diálogo fecundo e
acolhedor. Para isso, acreditamos que a realização de um caminho espiritual
enraizado na experiência de união com Deus abre possibilidades para a
maturidade da experiência cristã e uma mística inter-religiosa. Quando nos
deparamos com as experiências de Thomas Merton e de Raimon Panikkar em seu
diálogo com as religiões Orientais, nos damos conta de que o verdadeiro caminho
trilhado por estes e por tantos outros/as cristãos/ãs no diálogo inter-religioso está
aberto a todos que procuram manter com Deus uma relação de intimidade.
A teologia é chamada a refletir diante do atual contexto, as questões
fundamentais que exigem dela mesma compreender o significado da pluralidade
religiosa no projeto salvífico de Deus e sua relação com o mistério de Jesus Cristo
e com o cristianismo. O que temos presenciado com o pluralismo religioso
implica para as religiões o reconhecimento da dignidade e do valor do diferente de
si. Exige o respeito ao direito de ser diverso e assume a acolhida como valor
fundamental. Supõe compreensão nova da capacidade humana de captar a
verdade, sempre parcial, provisória e sujeita a enriquecimento, revisão e
ampliação.
Hoje essa situação é denunciada por homens e mulheres. Aqui é por Thomas
Merton e Raimon Panikkar, os quais, ao viverem em profundidade sua fé e terem
estado em contato com as religiões e espiritualidade oriental, chamam a atenção
acerca da nova situação em que se encontra o cristianismo e, ao mesmo tempo,
todas as religiões: desafiadas a dar um salto a um nível mais alto.
Sugere nova atitude diante da realidade de pluralismo: acolhimento e
valorização da consciência da pluralidade, acompanhada de profunda atitude de
15
diálogo real no qual todos aprendem. A partir de uma mudança que se dá por meio
de uma transformação religiosa, através de uma profunda experiência de Deus.
Porque a consciência religiosa, mais lúcida e desperta pede hoje uma
transformação profunda em direção ao Mistério que a envolve e a sustenta.
Estudando Thomas Merton e Raimon Panikkar, os quais apresentam
caminhos para uma mística inter-religiosa através de uma profunda experiência de
Deus, poderemos apontar caminhos para que, no interior das religiões, a pessoa
religiosa possa também realizar seu percurso de intimidade com Deus e, através
desta, possa exercer a compaixão e acolhida às demais religiões.
Queremos propor que o diálogo entre as experiências religiosas não se
resuma a uma conversão vazia, mas que os interlocutores tenham, de fato,
penetrado com a máxima seriedade em sua própria tradição, em especial os
cristãos. Apontamos ainda a dimensão espiritual como o nível mais fecundo para a
abertura e compreensão no diálogo inter-religioso, encontrando meios que possam
contribuir para que não se viva uma religiosidade epidérmica, recuperando a
dimensão da experiência íntima do mistério de Deus e da experiência da unidade
com ela.
Acreditamos que o mútuo reconhecimento da singularidade e das
características próprias de cada tradição religiosa é condição indispensável à
experiência de um diálogo inter-religioso que supera o simples reconhecimento
conceitual. Além disso, cremos que a experiência mística dos fiéis das diferentes
tradições religiosas fundamenta a abertura ao diálogo que supera as diferenças e
remete à preocupação pela melhoria e pelo progresso da humanidade.
Desta forma, acreditamos que as experiências de pessoas como Thomas
Merton e Raimon Panikkar podem colaborar para uma madura experiência cristã e
uma mística inter-religiosa, pois ambos viveram o fecundo diálogo com as
religiões do Oriente, profundamente ancorados em sua experiência cristã.
Estas experiências, através de um profundo encontro com Deus, indicarão
possíveis caminhos para que, no interior do Cristianismo, a pessoa religiosa possa
também realizar seu percurso de intimidade com Deus, e, através desta, possa
exercer a humildade na acolhida às demais religiões, em uma rica e madura
experiência cristã aproximando-se da imagem que é de Deus.
Estaremos também em constante diálogo com o filósofo da religião Juan
Martin Velasco e o teólogo Andrés Torres Queiruga. Juan Martin Velasco nos
16
apresenta a importância que está adquirindo no diálogo inter-religioso a dimensão
espiritual e a experiência interior que comportam todas as religiões. Destacamos
exatamente a experiência mística como importância decisiva no diálogo. Andrés
Torres Queiruga nos afirma a autêntica necessidade de um encontro com as
religiões, partindo da concepção de que todas as religiões como tematização da
constitutiva relação salvífica do homem com Deus.
Esta confrontação nos permitirá reconhecer a plausibilidade de semelhanças
entre os místicos de diferentes tradições religiosas, sem desconhecer ou relegar o
que há de único e irrevogável em cada religião. E possibilitará o convívio com a
diversidade, reconhecendo suas singularidades e características específicas,
essenciais de cada uma em particular, bem como sua irredutível alteridade.
Procuraremos encontrar uma base para a reflexão teológica que possibilite à
fé cristã o reconhecimento positivo, justo e respeitoso da pluralidade e da
diversidade religiosas, sem abandonar a identidade cristã. Para isto, a nossa
metodologia nos possibilitará uma compreensão complexa e não dualista das
aparentes contradições nas tradições religiosas, para um encontro e diálogo entre
as diferentes verdades existentes. No entanto, o mais importante de nossa reflexão
pretende dar-se em outro nível, na experiência de Deus, na qual se acredita poder
estabelecer uma ética capaz de corresponder aos anseios do ser humano, como
condição insubstituível para sua liberdade e responsabilidade.
Para uma melhor realização do nosso objetivo, a tese será dividida em cinco
partes. Na primeira parte, no primeiro capítulo, contrapondo-se ao crescimento
secular imposto pelo avanço da chamada pós-modernidade, nos defrontaremos
com o pluralismo religioso que nos convida a buscar formas de possibilitar o
convívio harmonioso em nossa sociedade. Veremos que essa realidade para o
cristianismo em particular, com sua atual configuração, o provoca mais do que em
outra época a abrir-se para o reconhecimento das outras religiões. No que diz
respeito ao diálogo inter-religioso, cria condições para uma apreciação positiva
das mesmas em sua pluralidade e especificidade. Veremos que esta realidade é
uma oportunidade para que ocorra uma atitude de respeito e amizade entre
pessoas e comunidades distintas, em um conhecimento mútuo e um recíproco
enriquecimento entre as religiões.
No segundo capítulo desta primeira parte, abordaremos o fenômeno
religioso e místico. Nesse capítulo, sinalizaremos a necessidade que tem cada
17
religião de avançar mais além das características externas, como o credo, os ritos
etc. pelas quais é reconhecida e através das quais é transmitida, a ultrapassar as
fronteiras de si mesma. Isto permitirá ao diálogo inter-religioso não se deter “nas
diferenças, às vezes profundas, mas confiar-se com humildade em Deus, que é
maior do que o nosso coração”1. Dentre os níveis de encontro com suas
respectivas formas de diálogo que o cristianismo tem buscado concretizar,
apontaremos a mística por alcançar o nível mais profundo, por uma “comunhão
acima do nível das palavras”2. Neste nível, os homens e as mulheres são
chamados a “compartilhar as suas experiências de oração, de contemplação, de fé
e de compromisso, expressão e caminhos da busca do Absoluto”3. Nessa
experiência do sagrado, o místico torna-se peregrino de seu próprio interior,
descobre uma nova maneira de perceber o mundo: contempla-o com os olhos de
Deus.
Procuraremos delinear uma concepção de mística a partir da experiência
religiosa nas religiões, na tentativa de uma compreensão mais inclusiva da
realidade plural religiosa de que o outro é condição de possibilidade de viver mais
profunda e radicalmente a própria fé, sem perder sua essência. Para isto, despertar
a necessidade de viver com intimidade uma relação com Deus, sem medo de
abrir-se ao novo, e também de aprender com o que o outro é capaz de dar.
Através desta experiência, poderemos encontrar os sinais para que uma religião
possa chegar a ir além de si mesma, por assimilar um Mistério sempre maior e ser
o ponto de partida para um fecundo diálogo inter-religioso, por se entender que as
religiões são caminhos por onde as pessoas são conduzidas à sua origem, ao que
“chamamos nosso ser mais profundo, o divino em nós e em tudo o que existe”4.
Na segunda parte, será a oportunidade para abordarmos as reflexões de
Velasco e Queiruga. No primeiro momento teremos a reflexão de Velasco.
Veremos que em meio a tantas experiências religiosas, esta é uma oportunidade
para se desfazer de tudo que se tinha adquirido por ‘se ouvir dizer’ sobre Deus.
Este é o momento para descobrir, pela própria experiência, as pegadas de sua
Presença em nossa situação, aparentemente dominada pela incredulidade e tomar
1 SECRETARIADO para os Não-Cristãos. A igreja e as outras religiões. São Paulo: Paulinas,
2001. (DM) 35. 2 MERTON, Thomas. O diário da Ásia. Belo Horizonte: Vega, 1978. p. 248. 3 DM 35. 4 MELLONI, Javier. Las religiones, más allá de sí mismas. In: MELLONI, Javier (org.). El no-
lugar del encontro religioso. Ed. Trotta, Madri, 2008. p. 178.
18
consciência de sua silenciosa, porém real, ativa e inconfundível presença no fundo
do real, no âmago de cada ser humano. E assim, encontrar a autêntica fonte de
existir da religião, nessa experiência de abertura a esta Presença, que expressando-
se segundo a época, cultura e educação, tem se dado de diferentes formas nas
tradições religiosas.
Nessa experiência, o ser humano é provocado a um aprofundamento de si, e
neste encontro consigo descobre-se no desapego que o impulsiona para o
exercício da alteridade5, pois a experiência mística não se fecha no encontro
amoroso do fiel com Deus. Ao contrário, esta experiência tem como consequência
um descentrar-se, um sair de si, para reconhecer o outro e, nesse reconhecimento,
chegar ao Totalmente Outro.
No segundo momento, com a contribuição de Queiruga, entenderemos que a
revelação de Deus ao homem implica um intenso encontro consigo mesmo, que se
desdobra numa maior percepção sobre a vida e numa melhor contribuição na
construção da história. E essa experiência se dá a partir da revelação acontecendo
maieuticamente na história. Perceberemos que, a partir desta nova perspectiva da
revelação, a experiência de Deus torna-se diferente, não mais acontecendo como
um ditado divino, mas se apoiando na novidade da origem histórica e na livre
iniciativa divina.
Para Queiruga, na revelação, “não se manifesta o que o homem é por si
mesmo, e sim o que começa a ser por livre iniciativa divina. Não se trata de um
desdobrar imanente de sua essência, mas de uma determinação realizada por Deus
na história” 6. O fiel, ao se deixar interpelar por esta Presença, apreende a
profundidade de sua realidade, abre-se a uma experiência singular da revelação e
se descobre no ‘próprio-ser-apartir-Deus-no-mundo’. Essa é uma ação que parte
sempre de Deus em direção ao homem, que, quando acolhe a presença reveladora
de Deus, que estava desde sempre já aí, possibilita através desse seu ato uma
abertura ao seu próprio crescimento, à sua realização humana.
E dentre os/as grandes personagens cristãos/ãs que percorreram ou que
continuam a percorrer um caminho de profunda intimidade com Deus, optamos
por dois místicos: Thomas Merton e Raimon Panikkar, os quais apresentaremos
5 Cf. BINGEMER, M. Clara. Alteridade e vulnerabilidade. Experiência de Deus e pluralismo
religioso no moderno em crise. São Paulo: Loyola, 1993. pp. 82-84. 6 QUEIRUGA, A. Torres. A revelação de Deus na realização humana. São Paulo: Paulus, 1995. p.
115.
19
na terceira parte de nossa pesquisa. São homens que no seu itinerário espiritual
desbravaram as fronteiras entre as religiões e mantiveram um diálogo aberto e
acolhedor com outras tradições religiosas. Acreditamos que é possível
enveredarmos por uma mística inter-religiosa quando nos deparamos com as tais
experiências que revelam a manifestação do próprio Deus.
Mergulharemos na experiência de encontro com Deus que teve Thomas
Merton, um monge contemplativo recolhido ao diálogo silencioso da oração e da
meditação, que não se furtou ao diálogo com o mundo, abrindo sua alma e
coração com rara franqueza e honestidade. Como mestre espiritual que foi,
tornou-se uma referência incontornável nos estudos da espiritualidade cristã e da
experiência religiosa num sentido mais geral. Pode-se mesmo afirmar que sua
decisiva contribuição para o cristianismo contemporâneo foi promover uma
renovação e redimensionamento da vida contemplativa.
Encontraremos em Thomas Merton uma experiência religiosa oriunda de
dois inseparáveis amores: o amor a Deus e à humanidade. O seguimento de Jesus
em Merton possui essa dupla abertura: paixão infinita por Deus, na dedicação
incondicional como monge, sacerdote e eremita e no profundo amor aos humanos.
Na quarta parte de nosso texto, encontraremos em Raimon Panikkar alguém
que ao longo de sua vida assumiu quatro identidades: o Cristianismo, religião em
que nasceu e foi educado; o Hinduísmo que formava também parte de sua origem,
porém foi descobrindo pouco a pouco, e assim ele mesmo diz: “há que deixá-lo
emergir em mim”; o Budismo, que foi se desenvolvendo nele de forma natural
como resultado do trabalho interior; e, por fim, sua identidade secular, como
resultado do seu contato com o mundo ocidental.
As identidades encontradas em Raimon Panikkar nascem de uma
personalidade fecundada pelas quatro tradições mencionadas, até o ponto de que
não podemos compreendê-lo sem conhecer o que supõe para nosso autor o
profundo diálogo interior que tem desejado e querido estabelecer.
Na penúltima parte de nossa pesquisa, apresentaremos o que para Thomas
Merton e Raimon Panikkar significou o diálogo inter-religioso e o que cada um
apontou como caminho para essa experiência. Veremos que estes místicos se
transformaram em peregrinos na busca constante do encontro com Deus.
Seguiram animados, inspirados e fortalecidos na sua busca no encontro com
outras religiões, descobrindo-se cada vez mais cristãos.
20
Por último, procuraremos concluir com uma reflexão que nos possibilite
buscar na experiência cristã de encontro com Deus, uma maturidade capaz de
romper fronteiras que ainda possam impedir o diálogo inter-religioso.
I - Parte
A teologia e o contexto religioso
1. O pluralismo religioso e a teologia das religiões
As questões referentes à problemática do pluralismo religioso ocupam hoje
nova relevância dentro de um novo contexto. No entanto, o pluralismo religioso,
enquanto problema teológico, não é novo. Ainda com os Apóstolos, o cristianismo
nascente teve de apresentar a sua mensagem. Primeiro, em relação ao Judaísmo e,
depois, em relação às outras religiões que encontrou em seu caminho7. Segundo
Jacques Dupuis, o que é “novo é a consciência aguda que o nosso mundo adquiriu
do pluralismo das culturas e das tradições religiosas, bem como do direito à
diferença que é própria de cada uma delas”8.
A teologia do pluralismo religioso surge então, nesse contexto, como um
novo nome adotado para a teologia das religiões, cujo desenvolvimento começou
na década de 609. Sua reflexão se realiza a luz da fé sobre o pluralismo religioso,
ou seja, sobre a pluralidade das religiões, sobre o fato de existir não apenas uma
religião, mas, muitas.
Essa teologia possui o encanto da novidade, da abertura a horizontes
desconhecidos, provocando assim proposições que, às vezes, no cristianismo,
comovem as convicções mais profundas, pois o que seu estudo proporciona não é
somente uma aquisição de novos conhecimentos, mas uma reconstrução do
conhecimento religioso já adquirido, uma renovação de convicções religiosas
básicas, possibilitando uma nova forma de viver a religião.
Surge, então, a necessidade de um novo paradigma, ou seja, uma nova
forma global de articular e combinar os elementos da fé a partir de bases novas, de
suposições gerais inéditas10
, pois se percebe que “a marcha do mundo e de sua
cultura, assim como o contato vivo entre as diversas religiões, têm-nos feito muito
7 Cf. At 17,19-34 (Todas as passagens bíblicas serão tiradas da Bíblia de Jerusalém); Cf. DUPUIS, Jacques. O cristianismo e as religiões. Do desencontro ao encontro. São Paulo: Loyola, 2004. p.
273. Referiremo-nos a este autor, no corpo do texto, apenas como Dupuis. 8 Ibid., p. 273. 9 VIGIL, J. Maria. Teologia do pluralismo religioso. Para uma releitura pluralista do cristianismo.
São Paulo: Paulus, 2006. p. 13. 10 Ibid., p. 14.
22
conscientes de que a vivência religiosa encontra-se em uma situação nova; e, em
aspectos importantes, radicalmente nova”11
.
O pluralismo religioso não é um tema simplesmente teórico nascido das
especulações de intelectuais que o estejam querendo transmitir à sociedade.
Provém da própria realidade do mundo de hoje. É um fato que se aproxima cada
vez mais em todos os âmbitos: na sociedade, na cidade, no trabalho, na
comunicação e até mesmo na família, ninguém pode subtrair-se ao
reconhecimento desta nova paisagem humana12
.
Sem procurarmos expor os fatores que se encontram na origem desta nova
realidade, sinalizamos apenas que se encontra vinculada ao amplo fenômeno da
globalização, na medida em que proporciona uma aproximação virtual e real entre
os diferentes povos. Essa aproximação, ocasionada pelo avanço dos meios de
comunicação nas sociedades, vem realizando uma interação de conhecimentos
mútuos, num processo que vem se acelerando exponencialmente13
. Nesse
processo, todos os elementos e dimensões das sociedades do planeta estão se
inter-relacionando e fazendo-se mutuamente dependentes.
Esta interpretação das sociedades, com suas culturas e religiões, fazendo-se
presentes umas nas outras, é um fenômeno novo14
, o que acentua o fato de que as
religiões e as culturas vejam-se obrigadas a conviver, pois muitas sociedades são
pluriculturais, ou seja, compostas por grupos procedentes de vários países. Assim,
“pelo contato efetivo das religiões”15
, todas estão presentes umas nas outras,
inevitavelmente.
As novas sociedades provocam uma transformação que supõe uma
“verdadeira revolução na consciência religiosa da humanidade; estamos vivendo
um momento da história no qual o acesso às diferentes religiões tem uma
amplitude e uma profundidade sem precedentes”16
.
Para Jean Claude Basset,
11 QUEIRUGA, A. Torres. El dialogo de las religiones en el mundo actual. El Vaticano III.
Barcelona, Herber-El Ciervo, 2001. p. 69. Apud. VIGIL, J. Maria. Teologia do pluralismo
religioso, p. 29. 12 Cf. VIGIL, J. Maria. Teologia do pluralismo religioso, p. 27. 13 Cf. MIRANDA, M. de França. O cristianismo em face das religiões. Religiões em diálogo. São
Paulo: Loyola, 1998. p. 12 e p. 38. 14 Cf. VIGIL, J. Maria. Teologia do pluralismo religioso, p. 31. 15 QUEIRUGA, A. Torres. O diálogo das religiões. São Paulo: Paulus, 1997. p. 61. 16ARTHUR, Chris. Religious Pluralism. A metaphorical approach. The Davies group. Aurora,
Colorado, 2000. p. 1. Apud. VIGIL, J. Maria. Teologia do pluralismo religioso, p. 29.
23
a visão do mundo coerente e segura se encontra perturbada pelo contato com outras
perspectivas, a escala de valores estabelecida sofre a competição de outros valores e
outras normas. Não somente tem-se ampliado o campo dos conhecimentos, mas
também põe-se em dúvida a própria noção de verdade. A filosofia ocidental se converte numa corrente de pensamento entre outras, como a mulçumana, a hindu, a
chinesa, etc17
.
No entanto, como vimos, mesmo que o processo de globalização gere uma
cultura global e a homogeneização da cultura sob determinados aspectos, ela
também cria um cenário favorável para o conhecimento e a manifestação das
diferenças18
. A esses fatores acrescenta-se a mudança de consciência e de
mentalidade na cultura ocidental, decorrente da conhecida crise da modernidade19
.
Esta nova situação nos coloca face a face com a pluralidade religiosa, pois se faz
urgente uma posição em relação às outras religiões, não só no que diz respeito ao
caráter teológico, mas também por questões de caráter sociocultural e político.
No que diz respeito ao caráter teológico, faz-se necessário partir de sua
contextualização, ou seja, da teologia e do modelo a que esse princípio dá origem,
chamado de teologia hermenêutica. Essa teologia se utiliza de um método
indutivo que significa partir da realidade histórica e vivida, deixando-se
questionar por ela e procurando lançar sobre ela a luz da Palavra revelada20
.
Segundo C. Geffré, a teologia hermenêutica é “um novo ato de interpretação
do evento Jesus Cristo com base numa correlação crítica entre a fundamental
experiência cristã de que a tradição dá testemunho à experiência humana
contemporânea”21
.
Diante de uma realidade marcada pelo pluralismo religioso, não pode ser
promissora, com efeito, uma reflexão teológica a partir de um discurso ‘sobre os
17 BASSET, Jean-Claude. El diálogo interreligioso. Desclée. Bilbao, 1999. p. 7. 18 Cf. PACE, E. Religião e Globalização. In: ORO, A. P. – STEIL, C. A. (orgs.). Globalização e
Religião. Petrópolis: Vozes, 1997. pp. 25-42; VELHO, O. Globalização: antropologia e religião.
In: Ibid., pp. 43-61; PRANDI, R. A religião do planeta global. In: Ibid., pp. 63-70. 19 Cf. LIBÂNIO, João B. As lógicas da cidade. O impacto sobre a fé e sob o impacto da fé. São
Paulo: Loyola, 2001. 20 Diferente do que tradicionalmente foi empregado pela teologia como método dogmático
dedutivo. A partir do conteúdo doutrinal das enunciações dogmáticas da Igreja, fundamentadas em
citações das escrituras construíam-se conclusões teológicas precisas que consistiam em partir de
princípios gerais para chegar às suas aplicações concretas, aos problemas hodiernos. O perigo
desse método estava no fato de que quanto mais deduções se faziam dos princípios abstratos tanto
mais real era o risco de ficarem isoladas da realidade. No que tange à teologia das religiões, partindo-se do dado dogmático da salvação universal da humanidade em Jesus Cristo, deduzia-se
com surpreendente facilidade a exclusão a priori de qualquer valor salvífico das outras tradições
religiosas, a partir dos textos selecionados do Novo Testamento. Cf. DUPUIS, Jacques. O
cristianismo e as religiões, pp. 25-27. 21 GEFFRÉ, C. Le christianisme au risque de l’interprétation. Cerf, Paris, 1983. p. 71. Apud.
DUPUIS, Jacques. O cristianismo e as religiões, p. 25.
24
outros’. Pois se o princípio da contextualização e do método teológico
interpretativo é aplicado seriamente à realidade religiosa do mundo, compreende-
se imediatamente que a teologia das religiões não pode ser vista simplesmente
como um novo assunto ou sujeito sobre o qual se deve refletir teologicamente22
.
Dupuis diz sobre a ‘teologia das religiões’ ou do ‘pluralismo religioso’ que,
mais do que como um novo tema para a reflexão teológica, deve ser vista como
um novo modo de fazer teologia numa situação de pluralismo religioso. Para ele,
essa teologia hermenêutica ‘inter-religiosa’ é um convite a alargar o horizonte do
discurso teológico e apresenta-se como “um novo método para fazer teologia”.
Segundo esse autor, se “conserva uma atitude dialógica em cada estágio da sua
reflexão: é reflexão teológica sobre o diálogo e no diálogo. É teologia dialógica
inter-religiosa”23
.
A teologia se vê, então, confrontada de uma maneira inédita em sua história
com a tarefa da interpretação das religiões e do próprio fato do pluralismo
religioso à luz da revelação cristã; e com uma re-interpretação da fé cristã dentro
do horizonte hermenêutico fornecido pela realidade inter-religiosa atual.
Procuraremos, então, situar os principais desafios do pluralismo religioso hoje à
teologia, à fé e a práxis cristã, seguindo-se uma exposição sintética do percurso da
teologia culminando, numa contextualização do debate atual.
1.1 Os desafios do pluralismo religioso
Diante do tema do pluralismo, é possível dizer que a sociedade hoje
adquiriu, de alguma forma, certa noção de pluralismo e tolerância, ainda que
superficialmente, visto que a história da qual viemos é de milênios de atitudes
contrárias ao pluralismo24
.
Segundo Schillebeeckx, o pluralismo passou a ser um pressuposto cognitivo
da consciência individual, tornando-o constitutivo da estrutura interior da
personalidade das pessoas25
.
Nossa cultura contemporânea já nasceu plural. O pluralismo que foi gestado
na modernidade26
chega na “pós-modernidade” 27
ao seu auge. Nessa cultura,
22 Cf. DUPUIS, Jacques. O cristianismo e as religiões, p. 29. 23 Ibid., p. 29. (grifo do autor). 24 Cf. VIGIL, J. Maria. Teologia do pluralismo religioso, p. 35. 25Para Schillebeeckx “o pluralismo se apoderou de nós como realidade cognitiva”. Cf.
SCHILLEBEECKX, E. História humana. Revelação de Deus. São Paulo: Paulus, 1994. p. 96.
25
apresenta-se, do ponto de vista empírico, a pluralidade sob diferentes aspectos:
pluralidade de confissão religiosa (pluralismo religioso), de valores (pluralismo
axiológico), pluralidade de grupos sociais e culturais (pluralismo sociocultural) e
de organizações políticas (pluralismo político)28
.
Logo, é claro que a situação de pluralismo religioso, inédita na história
humana, da forma como está acontecendo, com grande eloquência e facilidade de
se fazer emergir uma nova expressão, torna-se uma característica desta sociedade
contemporânea29
. Para Geffré, “o pluralismo religioso é um desafio mais
amedrontador para a fé cristã do que o ateísmo moderno”30
.
Nesta cultura, já não se admitem pretensões absolutistas, totalitárias e
nenhuma forma de dogmatismo, seja em relação à religião ou a qualquer outro
sistema que queira possuir o monopólio da verdade31
. No entanto, exige-se passar
da constatação factual da pluralidade religiosa para o pluralismo enquanto atitude
de reconhecimento do valor, do significado e da riqueza das diferenças, superando
tendências de dominação e desprezo e abrindo-se ao diálogo32
.
No caso do cristianismo, deve “compreender-se e compreender:
compreender-se a si mesmo a partir das demais religiões e compreender as demais
religiões a partir da vivência e da interpretação da religião à qual se pertence”33
.
Entretanto, nesse novo contexto em que se inserem todas as tradições
religiosas, são suscitadas novas questões e a partir destas se abrem novas
perspectivas e novas possibilidades de explicação sobre elementos presentes em
cada religião e sua relação com as demais tradições. Mas é preciso ressaltar que
26 Sobre a modernidade ver: AZEVEDO, Marcelo de C. Modernidade e cristianismo. São Paulo: Loyola, 1981. 27 Cf. LIPOVETSKY, G. A era do vazio. Lisboa: Relógio d’água, 1989. Segundo este autor,
vivemos na passagem de uma sociedade que se centralizou nas ideias, na razão, para uma
sociedade que tem as imagens no seu centro. 28 Cf. EICHER, Peter. Pluralismo. In: Dicionários de Conceptos teológicos. Vol. II. Barcelona:
Herber, 1990. pp. 237-242; EICHER, Peter. Excelência da teologia em conflito com seu
pluralismo. Concilium, v. 191, n.1, 1980. p.15; LIBÂNIO, J. B. As lógicas da cidade, pp. 113-143. 29 Cf. MIRANDA, M. de França. Um homem perplexo. O cristão na atual sociedade. São Paulo:
Loyola, 1989. 30 GREFFRÉ, C. O lugar das religiões no plano da salvação. In: TEIXEIRA, Faustino (org.). O
diálogo inter-religioso como afirmação da vida. São Paulo: Paulinas, 1997. p. 112 31 Cf. STIEL, C. A. O diálogo inter-religioso numa perspectiva antropológica. In: TEIXEIRA, Faustino (org.). Diálogo de pássaros. Nos caminhos do diálogo inter-religioso. São Paulo:
Paulinas, 1993, pp. 25-26; Cf. SCHILLEBEECKX, E. Religião e violência. Concilium, 272. 1997.
p. 168. 32 Sobre a distinção entre pluralismo e pluralidade, cf. AZEVEDO, M., Prólogo de: TEIXEIRA,
Faustino. Diálogo dos pássaros, p. 11. 33 QUEIRUGA, A. Torres. O diálogo das religiões, p. 12.
26
para compreender esse novo contexto dependerá do ângulo sob o qual seja
contemplado, porque essa situação pode ser caracterizada como um problema ou
como alternativa possível de sobrevivência da fé. Sobre as questões que são
levantadas no caso do cristianismo, referem-se a elementos que lhe são
fundamentais e dizem respeito à relação entre a revelação cristã e as outras
religiões34
.
Na ordem sócio-política, o pluralismo religioso também apresenta algumas
questões. Abordaremos apenas a questão da relação entre a violência e religião,
como uma das principais preocupações no que diz respeito à convivência inter-
religiosa e à função das religiões na sociedade35
.
Embora as religiões se caracterizem por sua função salvífica e humanizante,
é conhecida pelo mundo afora a ocorrência de grandes conflitos justificados com
motivações de ordem religiosa pelos mais diversos interesses36
. No entanto, não
se limita desta forma à violência religiosa; ela se apresenta, também, na forma
mais sutil no cotidiano da convivência das pessoas presente na linguagem, no
comportamento e em diferentes maneiras de ridicularização da religião alheia.
De certo, mesmo que a ligação entre a religião e a violência seja um
fenômeno complexo, cuja compreensão global requer uma analise
interdisciplinar37
, é sabido que existem obstáculos criados pelas próprias religiões
para uma convivência inter-religiosa harmônica.
Essa realidade provoca um grande desafio para o diálogo inter-religioso, por
pretender apontar a possibilidade de um horizonte de conversação alternativa; pois
revela que a violência religiosa não faz parte da essência da religião, mas é um
desvio ou traição do dinamismo mais profundo que anima a relação do ser
humano com o Absoluto38
.
No entanto, se as tradições religiosas têm contribuído para situações de
violência, a História também tem dado amplo testemunho do papel positivo que
podem desempenhar na sociedade. Quando essas assumem sua função
34 Desenvolveremos essa questão quando aprofundarmos as reflexões de Andrés Torres Queiruga,
no segundo capítulo da segunda parte de nossa pesquisa. 35 Cf. BINGEMER, Maria C. (org.) Violência e religião. Cristianismo, islamismo, judaísmo. São Paulo: Loyola, 2002. 36 Cf. AMALADOSS, M. Religiões: violência ou diálogo? Perspectiva teológica. v. 34, n. 93,
2002. pp. 179-196. 37 Os estudos acima apontam neste sentido. 38 Cf. TEIXEIRA, Faustino. Diálogo inter-religioso: o desafio da acolhida da diferença. In:
Perspectiva teológica. v. 34, n. 93, 2002. p.155.
27
humanizante e salvífica, “criando orientação, consolo, e uma ética de empatia” e
constituem-se em “pontos de referência” de “redes de solidariedade, de ajuda
mútua e de resistência”39
, e em caminho de superação de situações injustas e de
violência e de construção da paz40
. É certo que “a relação autêntica com o
Absoluto como tal não é violenta sob nenhum aspecto, antes pelo contrário. Ela
desperta a coragem inabalável para produzir mais humanidade em todos os setores
da vida”41
.
Identificamos, assim, que os principais desafios da relação entre as religiões
estão relacionados à questão da convivência e do diálogo entre as mesmas e da
comum responsabilidade na superação da violência, de situações de injustiça e na
construção de uma cultura de paz42
.
O cristianismo é provocado a realizar profundas mudanças, pois, mais do
que em qualquer outra época de sua história, é desafiado a abrir-se para o
reconhecimento das outras religiões em sua identidade e para o diálogo inter-
religioso. Estabelece-se uma oportunidade para uma ‘comunicação recíproca’, em
‘atitude de respeito e amizade’ como “conjunto de relações inter-religiosas,
positivas e construtivas, com pessoas e comunidades de outros credos para um
conhecimento mútuo e um recíproco enriquecimento”43
.
No entanto, para esta comunicação, é preciso o desenvolvimento de uma
inteligibilidade das religiões e de sua autocompreensão, para que sejam superadas
atitudes de discriminação e intolerância e, ao mesmo tempo, uma apreciação
positiva das mesmas em sua pluralidade e especificidade, pois, em se tratando do
cristianismo, “no diálogo inter-religioso, o cristão não deve ocultar a própria
identidade ao mesmo tempo em que se cuida com todo respeito da identidade
alheia”44
.
Estando assim, cada tradição religiosa, enriquecida por sua
autocompreensão, se descobre, como falou João Paulo II, que “o genuíno
39 HÄRING, S. Superar a violência em nome da religião. Concilium. nº. 272, 1997. 4, p. 683. 40 Cf. HÜNG, H. Teologia a caminho. Fundamentação para o diálogo ecumênico. São Paulo:
Paulinas, 1999. pp. 261-288. 41 SCHILLEBEECK. E. Religião e violência. Concilium. nº. 272. 1997. 4, p. 171. 42 Segundo Hans Küng: “não haverá paz no mundo sem uma paz entre as religiões”. Cf. KÜNG,
H. Projeto de ética mundial. Uma moral ecumênica em vista da sobrevivência humana. São Paulo:
Paulinas, 1992, p. 108. 43DA, 9. 44 QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreensão cristã. Dialogo das religiões. São Paulo: Paulinas,
2007. p. 12.
28
sentimento religioso conduz de fato a perceber o mistério de Deus, fonte da
bondade, e isto constitui uma fonte de respeito e de harmonia entre os povos”45
.
Entretanto, como veremos logo em seguida, o pluralismo religioso provoca a
teologia em questões que lhe são essenciais e exige que a teologia compreenda o
significado da pluralidade religiosa dentro do projeto salvífico de Deus e sua
relação com o mistério de Jesus Cristo e com o cristianismo.
1.2 O pluralismo religioso: uma questão teológica
O pluralismo religioso convoca a teologia a “se conscientizar da excelência
do tema que lhe é próprio dentro da Igreja e diante da sociedade, isto é, da
excelência da própria palavra de Deus que se fez história”46
. Tal perspectiva exige
também uma nova referência paradigmática.
Certamente, a mudança sociocultural provocada pelo pluralismo levou a
teologia a uma profunda transformação, principalmente em relação ao
cristianismo, que deve repensar sua atuação na sociedade, sem perder sua
identidade singular – a revelação expressa pela encarnação de Jesus Cristo – e sua
abertura ao diálogo com outras tradições religiosas, à “procura da unidade na
diversidade”47
. É preciso que procure ir além das fronteiras confessionais, pois
todas as tradições religiosas aspiram “a uma Realidade Última, além dos limites
dessa história e a aspiração a uma libertação ou a uma salvação em relação aos
diversos males da condição humana”48
.
A atual diversidade religiosa e a autoafirmação das outras religiões como
mediadoras da salvação constitui um fator de tensão que dificulta a aproximação e
o diálogo. Logo, se percebe que do ponto de vista teológico, o desafio que se
coloca é: como compreender e interpretar a vontade salvífica universal de Deus
sem negar a mediação de Jesus Cristo?
A questão fundamental desta problemática teológica, que se encontra no
centro das discussões a respeito das religiões, é a questão da unicidade de
universalidade salvífica do evento Jesus Cristo. Muitos são os questionamentos já
apresentados por muitos estudiosos desta temática. Por exemplo: Como se situa
45 JOÃO PAULO II. Discorso di Giovanni Paolo II. Il Regno-Documeni. n. 3, 2002, p. 76. Apud.
TEIXEIRA, Faustino. Diálogo inter-religioso, p. 155. 46 EICHER, Peter. Pluralismo, p. 18. 47 GEFFRÉ, C. O lugar das religiões no plano da salvação. In: TEIXEIRA, Faustino. O diálogo
inter-religioso, p. 115. 48 Ibid., p. 116.
29
esta afirmação cristã frente à diversidade de religiões? Como se situa Jesus Cristo
no plano salvífico de Deus e que consequências essa sua posição tem para a
interpretação das outras religiões? É possível à reflexão teológica cristã resolver
este conflito sem renunciar à identidade cristã?
Para essas e tantas outras questões a esse respeito se faz necessária uma
reinterpretação do cristianismo e de suas afirmações fundamentais em confronto
com as questões suscitadas pelo pluralismo religioso. O problema principal a ser
resolvido pela teologia cristã das religiões é a questão da singularidade e
universalidade salvífica de Jesus Cristo em conexão com a vontade salvífica
universal de Deus e sua correlação com a diversidade religiosa.
Estamos conscientes, no entanto, de que a busca de respostas à problemática
cristológica suscitada pelo pluralismo religioso deva ser coerente com a fé cristã e
aberta à questão do encontro e diálogo inter-religioso, “emoldurado em um regime
de dom e gratuidade”49
.
Para isso, acreditamos que a possibilidade para uma resposta que seja
coerente com a fé cristã se encontre na reinterpretação das afirmações centrais da
fé cristã de uma maneira que preserve sua identidade e possibilite uma apreciação
positiva das outras religiões. Nesse sentido, “o pluralismo interno da teologia
moderna desafia a compreensão clássica de suas pretensões à verdade e introduz a
necessidade da mais fundamental revisão em sua autocompreensão disciplinar”50
.
Como veremos a seguir, algumas reflexões teológicas recentes sobre este
assunto apontam caminhos possíveis nesse sentido. O desafio principal que se
impõe é encontrar uma base para a reflexão teológica que possibilite à fé cristã o
reconhecimento positivo, justo e respeitoso da pluralidade e diversidade religiosa,
porém, sem abandonar a identidade cristã.
1.3 Teologia das religiões e teologia do pluralismo religioso
Teologia das religiões é o ramo da teologia que faz das religiões o objeto de
sua reflexão, que pensa sobre o significado das religiões, seu sentido no plano de
Deus, sua validez salvífica, suas inter-relações e seus pontos em comum.51
49 QUEIRUGA, A. Torres. Diálogo das religiões, p. 22. (grifo do autor). 50 THEIL, John. Pluralismo na verdade teológica. Concilium. v. 256, n. 6, 1994. p. 77. 51 Cf. VIGIL, J. Maria. Teologia do pluralismo religioso, p. 60.
30
Durante vinte séculos, o cristianismo sempre se preocupou com o tema da
presença da Salvação nas religiões não cristãs. No entanto, nunca houve um
conjunto de doutrina como reflexão sistemática sobre as religiões, ou seja, uma
verdadeira teologia das religiões. Essa teologia surgiu apenas na última metade do
século XX, próximo ao Concílio Vaticano II52
. Segundo alguns autores, a primeira
obra de teologia das religiões foi a de Heinz Robert Schlette, intitulada
precisamente “As religiões como tema da teologia”, publicada em 196353
.
O surgimento dessa teologia se coloca na esteira de estudos das religiões já
iniciados anteriormente por outras ciências da religião como a história das
religiões, a psicologia da religião, a fenomenologia da religião, a filosofia da
religião e a sociologia religiosa. Essa constatação indica que seu ponto de partida
situa-se na renovação teológica dos anos pré-conciliares54
.
Porém, se para o estudo das religiões o seu ‘objeto material’ é o mesmo das
outras disciplinas, a teologia das religiões delas se distingue quanto ao seu ‘objeto
formal’. Assim como as outras ciências abordam as religiões a partir do ponto de
vista que lhes é próprio, a teologia, por sua vez, interessa-se pelo seu aspecto
histórico-salvífico, interpretando-as à luz da história salvífico-cristã, à luz da
revelação cristã e, portanto, à luz da fé cristã55
.
A teologia das religiões, a partir de sua especificidade, deixa claro que,
necessariamente carregará consigo um caráter confessional. Para isso, mesmo que
se pense na possibilidade de existir uma teologia universal56
, é certo, no entanto,
52 Cf. MIRANDA, M. de França. O cristianismo em face das religiões, p. 16. 53 Cf. VIGIL, J. Maria. Teologia do pluralismo religioso, p. 61. 54 Sobre a teologia das religiões antes do Concílio, cf. SARTORI, L. Teologia de las religiones no cristianas. In: Diccionario Teológico Interdisciplinar. v. 4, Salamanca: Sígueme, 1987. pp. 423-
428. 55 Cf. BOUBLINK, V. Teologia delle religione. Roma: Studium, 1973. p. 41 Apud. DUPUIS, J.
Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso. São Paulo: Paulinas, 1999. p. 17. Esta é uma
das mais importantes obras dentre as publicações sobre a teologia das religiões. Citaremos esta
obra ao longo deste capítulo. Referiremo-nos a este autor como Dupuis;; TEIXEIRA, Faustino.
Teologia das religiões: uma visão panorâmica. São Paulo: Paulinas, 1995. p. 12. 56 Esta teologia universal pensada por alguns autores incluiria contribuições de todas as religiões e
da fé em suas diferentes expressões religiosas, e, desta forma, se dirigiria não a uma religião
específica, mas a todas as comunidades religiosas. Como podemos encontrar em José Maria Vigil,
em seu esboço para uma teologia multireligiosa e pluralista da libertação. Segundo Vigil, "é
possível pensar no nascimento de uma teologia nova, uma teologia pós-religiões que vá além não de uma religião, mas das religiões enquanto tal, enquanto configuração sócio-histórica humana
congruente com o período 'agrário' da humanidade, período que já está perto do fim,
progressivamente substituído pela 'sociedade do conhecimento'". Cf. VIGIL, José Maria. Por uma
teologia planetária. São Paulo: Paulinas, 2011. Cf. DHAVAMONY, M. Teologia das religiões. In:
LATOURELLE, R. – FISICHELLA, R. Dicionário de Teologia Fundamental. Petrópolis: Vozes;
São Paulo: Santuário, 1994. p. 807; DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã, p. 18.
31
que toda fé religiosa conta com um conteúdo que lhe é especifico e implica uma
adesão total da pessoa, o que resulta inegavelmente numa diversidade de teologia.
Então, necessariamente, toda teologia é ‘confessional’, atributo este que “indica a
adesão da fé da pessoa ou da comunidade, que é o tema do próprio fazer
teológico”57
.
A constatação da diversidade teológica possibilita reconhecer a legitimidade
de outras teologias confessionais das religiões e contribuir para que elas se
desenvolvam, pois as tradições religiosas desenvolvem sua teologia “na medida
em que seguidores destas diferentes religiões refletem sobre o encontro com as
outras religiões do mundo, ou então, sobre a relação de sua religião específica
com as demais religiões, à luz de sua fé”58
.
A teologia do pluralismo religioso está se impondo porque os teólogos estão
descobrindo que a realidade do pluralismo religioso, ou seja, a pluralidade de
religiões – o fato de que sejam muitas e não uma – é o tema central hoje nesta
teologia59
e que, consequentemente, não é mais possível fazer teologia cristã sem
dialogar com outras tradições. Logo, tendo em vista o diálogo inter-religioso, faz-
se necessário um empreendimento teológico que se orienta pela “sincera admissão
da pluralidade e da diversidade de crenças, e da recíproca aceitação dos outros
exatamente em sua alteridade”60
.
Portanto, construir uma teologia cristã das religiões baseada na adesão
pessoal da própria fé não significa fechamento e oposição à confissão de fé
diferente, e sim, tomada de posição frente a elas, desde o próprio lugar religioso e
teológico. Enfim, “a adesão pessoal à própria fé e a abertura à fé dos outros não
precisam se excluir mutuamente. Deveriam, pelo contrário, crescer
proporcionalmente uma em relação à outra”61
.
A teologia das religiões se distingue da teologia da religião. Para o teólogo
Dupuis, a teologia da religião busca compreender teologicamente o que é a
religião, interpretar a experiência religiosa universal da humanidade e estudar as
relações revelação-fé, fé-religião, fé-salvação, enquanto a teologia das religiões
está voltada para a variedade de tradições religiosas, procurando compreender o
57 DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã, p. 19. 58 DHAVAMONY, M. Teologia das religiões, p. 807. 59 Cf. VIGIL, J. Maria. Teologia do pluralismo religioso, p. 60. 60 DUPUIS, Jacques. Op. cit., p. 20. 61 Ibid., p. 20.
32
significado do pluralismo religioso dentro do plano salvífico de Deus para toda a
humanidade e na sua relação com o mistério de Jesus Cristo e com a Igreja62
.
Nessa perspectiva, a teologia das religiões se desdobra em dois momentos:
uma teologia das várias religiões, que se volta para as tradições religiosas
particulares63
, e uma teologia geral das religiões, que aborda as tradições
religiosas em conjunto no seu significado dentro do plano salvífico de Deus. Essa
teologia geral das religiões é anterior às teologias particulares na medida em que
coloca as questões gerais relativas a todos os casos, que precedem as “questões
especificas relativas ao diálogo cristão com tradições religiosas especificas”64
.
Nos últimos anos, a expressão ‘teologia das religiões’ está sendo cada vez
mais substituída ou ampliada pela expressão ‘teologia do pluralismo religioso’,
apontando para uma mudança na perspectiva teológica. Isso porque a grande
questão em debate, hoje em dia, passou a ser a pluralidade das religiões, o
pluralismo religioso65
. Como consequência, “em uma teologia das religiões, a
pluralidade das religiões não pode deixar de ser, definitivamente, uma teologia do
pluralismo religioso”66
.
A reflexão teológica, que antes priorizava o problema da salvação, desloca-
se para o próprio fenômeno do pluralismo religioso, para, assim, compreender e
valorizar positivamente a pluralidade religiosa à luz do mistério de Deus e o seu
significado teológico. Essa nova reflexão provoca uma convergência das várias
religiões, pautadas no reconhecimento e respeito pelas suas diferenças e no
enriquecimento mútuo67
.
Assim, o pluralismo religioso poderá ser mais que um desafio para a
teologia; ele pode ser uma chance68
para que o cristianismo reveja suas posturas
teológicas, eclesiológicas e pastorais. Desta forma, a teologia cristã, iluminada por
sua raiz histórica e pelo contexto atual, pode renovar-se tendo em vista uma maior
percepção da revelação de Deus, que deseja ser conhecido em máxima medida.
62 Cf. DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã, p. 21. 63 Cf. Ibid., p. 22ss. Ele apresenta como exemplo, a existência de uma teologia cristã do judaísmo e
do encontro entre o Budismo e o Cristianismo. 64 Ibid., p. 23s. 65 Cf., Ibid., p. 19. 66 Ibid., p. 271. 67 Cf. Ibid., p. 26. 68 Cf. MIRANDA, M. de França. O pluralismo religioso como desafio e chance. REB. v. 55, n.
218, 1995. p. 322.
33
Abordaremos, no item seguinte, como se desenvolveu a teologia cristã das
religiões. Veremos como a teologia cristã tem procurado relacionar-se com as
demais tradições religiosas.
1.4 A teologia cristã das religiões
Desde seu surgimento, a teologia das religiões conheceu um significativo
desenvolvimento, provocado, sobretudo, pelo aprofundamento do conhecimento
das outras religiões, tanto no nível científico mediante estudos especializados
sobre diversas religiões, quanto no nível experiencial mediante o contato, a
comunicação e a convivência inter-religiosa69
.
Foi o Concílio Vaticano II que, com ousadia, deu um grande salto com
relação às outras religiões70
. Seu ensino sobre as religiões se caracterizou por uma
atitude positiva diante das outras religiões, possibilitando renovação teológica pré-
conciliar71
. O Concílio afirmou respeitar e valorizar tudo de bom e santo que é
suscitado pelo Espírito em outras tradições, declarando o caráter “verdadeiro e
santo” das outras religiões, reconhecendo elementos positivos de vida e santidade
presentes nas religiões não cristãs72
. Reconheceu que a salvação dos seres
humanos vai muito além dos limites da Igreja. Por intermédio do Espírito Santo,
Deus “opera de modo invisível” e oferece a todos a salvação73
, admitindo e
proclamando que Deus salva a humanidade “por caminhos só por ele
conhecidos”74
.
Esse Concílio marcou uma abertura sem precedentes nos posicionamentos
oficiais da Igreja, determinando uma nova fase em sua relação com os não-
cristãos75
. A partir dessa posição, estabelece-se uma oportunidade decisiva para o
desenvolvimento da teologia das religiões nos anos pós-conciliares, pois nele se
69 Cf. DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã, p. 26; MIRANDA, M. de França. Jesus
Cristo, um obstáculo ao diálogo inter-religioso? REB. 57 (1997), p. 243-264; Id.,, O cristianismo
em face das religiões;TEIXEIRA, Faustino (org.) Diálogo dos pássaros; Id., Teologia das
religiões: uma visão panorâmica. São Paulo: Paulinas, 1995. 70 Cf. VIGIL, J. Maria. Teologia do pluralismo religioso, p. 77. 71 Cf. LG, 16 e 17; AG, 3, 9 e 11; Também NA; DV e DH apresentam importantes contribuições à questão. 72 Cf. NA, 2; UR, 3; LG,13. 73 Cf. GS, 22. 74 GS, 22. 75 Sobre a teologia das religiões no Magistério da Igreja após o Concílio, Cf. DUPUIS, Jacques.
Rumo a uma teologia cristã, p. 250ss. TEIXEIRA, Faustino. Teologia das Religiões, pp. 138-179.
34
falou sobre as religiões não-cristãs de um modo mais positivo do que nenhum
outro documento oficial da Igreja Católica havia feito antes76
.
No entanto, o Concílio não teve tempo de ir mais além. Ele não questionou
se era possível afirmar que as próprias religiões não cristãs são caminhos de
salvação para seus membros por si mesmas, e não por uma participação sua no
mistério de Cristo. Sua preocupação manteve-se em promover a compreensão, o
diálogo, a acolhida e a cooperação entre o cristianismo e as religiões, suscitando,
ao mesmo tempo, uma mudança de atitude por parte da Igreja e dos cristãos em
relação às mesmas77
.
O Concílio foi uma ocasião em que uma Igreja cristã tomou a sério e se
pronunciou sobre as religiões não-cristãs de uma forma sem precedentes nem
paralelos em toda a história. Suas afirmações significaram uma porta aberta aos
teólogos, que se encontravam diante de um tema inédito, numa etapa nova de
relação entre mais diversas tradições religiosas78
. Embora tenha reconhecido o
juízo teológico claro sobre o sentido salvífico das mesmas79
e sobre o significado
do pluralismo religioso, deixou como tarefa para a reflexão teológica posterior
examinar o alcance e tirar as consequências das afirmações desenvolvidas no
mesmo.
Uma das mais famosas publicações de teologia das religiões, que reflete este
espírito ainda em construção é: “Rumo a uma teologia cristã do pluralismo
religioso”80
. O adjetivo ‘cristã’ que leva o título desta obra, permite entender que,
em todas as religiões, há uma reflexão feita a partir da fé, uma fé que busca
compreender e pensar mais ou menos sistematicamente. Num sentido legítimo,
que a teologia das religiões não se dá apenas entre cristãos. Não há apenas uma
teologia das religiões cristãs81
. Podemos falar, então, de teologias das religiões
feitas a partir de outras plataformas religiosas distintas do cristianismo.
76 Cf. VIGIL, J. Maria. Teologia do pluralismo religioso, p. 81. 77 Cf. DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã, p. 224. 78 Cf. SULLIVAN, Francis A.¿Hay salvación fuera de la Iglesia?. Desclée, Bilbao. 1999. Apud.
VIGIL, J. Maria. Teologia do pluralismo religioso, p. 61. 79 Cf. MIRANDA, M. de França. O cristianismo em face das religiões, p. 13. 80 Esta obra, já citada anteriormente (ver nota 57), é a mais representativa de Jacques Dupuis e de
grande importância para a teologia das religiões. 81 Cf. VIGIL, J. Maria. Teologia do pluralismo religioso, p. 61.
35
Esta realidade provoca, segundo uma diversidade de posicionamentos, as
mais diversas classificações na tentativa de construir uma teologia das religiões82
.
Propusemo-nos identificar os principais ‘paradigmas’ que dominaram a
tentativa de construir uma teologia das religiões e do pluralismo religioso.
Colocaremos, em primeiro plano, uma classificação tripartite universalmente
aceita por sua clareza e simplicidade, ainda que alguns teólogos considerem esta
classificação insuficiente83
, tendo em vista que foi de um modo ou de outro,
universalmente admitida. Dos modelos ou posições no âmbito da teologia das
religiões, esta classificação distingue três perspectivas fundamentais:
eclesiocêntrica, cristocêntrica e teocêntrica. A estas três perspectivas
correspondem três posições básicas, respectivamente: exclusivismo, inclusivismo
e pluralismo84
. Essas distinções correspondem a uma dupla mudança de
paradigma85
.
Procuraremos aqui, seguindo Dupuis, explicar as pressões que fizeram com
que a teologia das religiões passasse por uma dupla mudança de paradigma, do
eclesiocentrismo ao cristocentrismo, e do cristocentrismo ao teocentrismo, o que
torna evidente que a questão cristológica, que originalmente se encontrava no
centro de toda discussão da teologia das religiões, tende, na opinião de muitos –
com ou sem razão –, a uma progressiva marginalização. Será preciso “ir à procura
de um modelo praticável para uma teologia sintética das religiões que seja ao
mesmo tempo cristã e aberta”86
.
Nessa classificação, o exclusivismo, como paradigma de teologia das
religiões, é equivalente ao eclesiocentrismo: a Igreja se converte em centro da
ação missionária ou mediação obrigatória da salvação. Essa foi a posição
teológica hegemônica no cristianismo. Em uma “história tão dilatada no tempo e
no espaço não é difícil encontrar pensadores e correntes eclesiais nos quais se
82 Cf. VIGIL, J. Maria. Teologia do pluralismo religioso, p. 65; Cf. PANIKKAR, Raimon. Il
dialogo intrareligioso. Assis: Cittadella, 2001. Apud. VIGIL, J. Maria. Teologia do pluralismo
religioso, p. 61; TAMAYO, Juan José. Fundamentalismo y dialogo entre religiones. Madri:
Trotta, 2005; KÜNG, H. Para uma teologia ecumênica das religiões. In: Concilium. nº. 161, 1986.
pp. 124-131. 83 Cf. Por exemplo: VIGIL, J. Maria. Teologia do pluralismo religioso, p. 62. 84Cf. DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã, pp. 257-264; MIRANDA, M. de França. O
cristianismo em face das religiões, pp. 16-19; TEIXEIRA, Faustino. Teologia das religiões, pp.
37-77. 85 Cf. DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã, pp. 106-107. 86 Ibid., p. 107.
36
vislumbram traços de uma concepção mais ampla da salvação”87
. No mundo
católico, esse paradigma foi sustentado por vinte séculos e teve como expressão
simbólica máxima a famosa sentença Extra ecclesium nulla salus (fora da Igreja
não há salvação)88
.
Se, na sua origem, este axioma, ao afirmar o papel da Igreja, não
reivindicava sua exclusividade, ao longo da história, recebeu uma interpretação
rígida, que resultou na negação da possibilidade de salvação fora da Igreja e num
olhar pessimista com relação às outras religiões89
.
No campo protestante, o exclusivismo adquire uma forma não
eclesiocêntrica, porém centrada no tríplice princípio sola fide, sola gratia, sola
scriptura (só a fé, só a graça, só a escritura). Para K. Barth, as religiões – todas,
menos a religião bíblico-cristã – são, definitivamente, um esforço humano, uma
tentativa de captar a benevolência de Deus. E a salvação vem unicamente pela
entrega do ser humano – mediante a fé – à graça que o próprio Deus lhe oferece
em Jesus Cristo. Para ele, somente a aceitação da graça de Deus vinda por Jesus
Cristo pode salvar o ser humano90
.
Esta posição foi oficialmente condenada pelo magistério da Igreja mediante
a condenação do Santo Ofício da interpretação estreita da expressão ‘fora da
Igreja, não há salvação’91
. Foi efetivamente descartada pelas afirmações do
Vaticano II sobre a vontade salvífica universal de Deus e sobre os valores
positivos presentes nas outras religiões, juntamente com a possibilidade de
salvação fora da Igreja92
. No entanto, permanece a questão da função salvífica de
Jesus Cristo e a universalidade da vontade salvífica de Deus.
O Concílio Vaticano II marcou a mudança de paradigma quando rompeu
com o exclusivismo do eclesiocentrismo. Nesse contexto, surge o inclusivismo
assumindo o cristocentrismo, posição segundo a qual, ainda que a verdade e a
87 VIGIL, J. Maria. Teologia do pluralismo religioso, p. 73. 88 Cf. Ibid., p. 74. 89 Sobre a história deste axioma Cf. DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã, pp. 123-155. 90 Cf. BARTH, Karl. La revelación como abolición de la religión. Madri: Morova, 1973. Apud.
VIGIL, J. Maria. Teologia do pluralismo religioso, p. 75. Karl Barth (1886-1968) foi um teólogo
cristão-protestante, pastor da Igreja Reformada, e um dos líderes da teologia dialética e da neo-ortodoxia protestante. Em um momento de sua carreira teológica, migra da teologia puramente
dialética e passa a utilizar a analogia da fé. Para ele, a analogia seria a única forma viável de se
falar de Deus. 91Cf. MIRANDA, M. de França. O cristianismo em face das religiões, p. 157; TEIXEIRA,
Faustino. Teologia das religiões, pp. 39-40. 92Cf. DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã, p. 159.
37
salvação estejam plenamente presentes numa determinada religião, também se faz
presente – de modo mais ou menos deficiente ou imperfeito – nas outras religiões,
porém como participação na verdade e na salvação presentes na única religião
verdadeira, reconhecendo, então, que a salvação pode se dar nas demais religiões,
sem, no entanto, reconhecer nelas autonomia salvífica93
.
O cristocentrismo coloca no centro da reflexão o mistério de Jesus Cristo, o
que implica um ‘des-centramento’ da Igreja e um ‘re-centramento’ em Jesus
Cristo. “É este último, e não a Igreja, que está no centro do mistério cristão; a
Igreja é, ao contrário, um mistério derivado, relativo, que encontra n’Ele sua razão
de ser”94
.
O cristocentrismo adquiriu os seguintes contornos: somente a religião cristã
tem a verdade e a salvação; ainda que em outras religiões também haja elementos
de Verdade. Participando, pois, da salvação também os não-cristãos, porém não
por uma suposta validez de suas próprias religiões, e sim pelo poder de Cristo, que
alcança a salvação para eles “de uma maneira somente conhecida de Deus”95
. Esta
posição abriu um novo caminho no mundo teológico, em especial no campo
católico, após o Concílio Vaticano II.
Entretanto, foram duas posições teológicas que prepararam o caminho até
este Concílio e que ainda se desdobram no cristocentrismo: a teoria do
cumprimento e a teoria da presença de Cristo nas religiões96
.
A teoria do cumprimento sustentava que, para todas as religiões, o
cristianismo vem a ser seu cumprimento, ou seja, sua consumação e, nesse
sentido, seu acabamento, sua plenitude e, também sua superação. Esta teoria
considerava que as religiões não-cristãs não têm capacidade salvífica por si
mesmas, pois seriam religiões ‘naturais’, obra do ser humano que busca a Deus. E
segundo Vigil, nesta corrente estão, com diferentes matizes, Jean Daniélou, Henri
de Lubac e Hans Urs von Balthasar, teólogos do período pré-conciliar e
conciliar97
.
A teoria da presença de Cristo nas religiões, que significa para Karl Rahner
dizer que todos os que “aceitam livremente a oferta da auto-comunicação de Deus
93 Cf. MIRANDA, M. de França. O cristianismo em face das religiões, p. 17. 94 DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã, p. 259. 95 GS, 22. 96 Cf. VIGIL, J. Maria. Teologia do pluralismo religioso, p. 77. 97 Cf. Ibid., p. 78.
38
mediante a fé, a esperança e o amor, entram na categoria de ‘cristãos
anônimos’”98
, ou seja, que toda a humanidade estava inserida na salvação de
Cristo.
Foi o pensamento de K. Rahner99
que mais influiu no Concílio Vaticano II.
Rahner afirmava que as religiões têm valores salvíficos positivos, já que, por elas,
a graça de Cristo efetivamente alcança seus membros. Foi a primeira vez que, no
cristianismo, se dizia de um momento tão explícito e fundamentado que a graça e
o mistério de Cristo superavam inteiramente a Igreja. Era uma visão cheia de
otimismo diante do pessimismo da visão exclusivista100
. Os principais
representantes desta teoria são, além de K. Rahner, Raimon Panikkar, Hans Küng
e Gustavo Thils101
.
No entanto, mesmo que provocando um grande salto qualitativo, esta
posição, segundo alguns teólogos, permanece problemática. Isso se deve à noção
de que, ao sustentar o caráter absoluto de Jesus Cristo, acaba afirmando a
superioridade do Cristianismo com relação às outras tradições religiosas. Esta
superioridade representa um obstáculo para o diálogo inter-religioso. Por isso, na
busca de solução desta problemática, alguns autores começaram a defender uma
nova e mais radical mudança de paradigma, propondo a superação do
cristocentrismo com o teocentrismo102
.
Surge o teocentrismo, uma posição pluralista103
, que, em relação ao
exclusivismo no qual se afirma que só uma religião é verdadeira e todas são
falsas, seria dito nesta nova posição necessariamente o contrário, ou seja, que
todas as religiões são igualmente verdadeiras e equivalentes e estão todas
equidistantes da verdade104
. Ao seu redor estão todas as religiões que se
relacionam com Deus diretamente, sem a mediação cristã.
98 VIGIL, J. Maria. Teologia do pluralismo religioso, p. 79. 99 Karl Rahner (1904-1984), um dos maiores teólogos do séc. XX. Rahner está entre os pensadores
cristãos que procuraram estabelecer uma ponte entre o tomismo, (tradicionalmente cultivado pela
intelectualidade católica) e a filosofia moderna (Kant, Hegel, Heidegger), filiando-se, assim, ao
que se convencionou chamar de Tomismo Transcendental. 100 Cf. VIGIL, J. Maria. Op. cit., pp. 78-79. 101 Cf. DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã, pp. 219-221. 102 Cf. Ibid., pp. 260-264; TEIXEIRA. Faustino. Teologia das religiões, pp. 58-74. 103 Aqui pluralismo não significa pluralidade das religiões, e sim um paradigma de pensamento da
teologia das religiões. Sobre a distinção entre pluralismo e pluralidade. Cf. JAYANTH, Mathew.
De la pluralidad al pluralismo. In: Selecciones de Teologia. 163, 2002, pp. 163-176. Apud. VIGIL,
J. Maria. Teologia do pluralismo religioso, p. 63. 104 Cf. VIGIL, J. Maria. Teologia do pluralismo religioso, p. 88.
39
Logo, esta mudança do cristocentrismo para o teocentrismo implica na
rejeição da centralidade de Jesus Cristo. Com efeito, “para salvar um pluralismo
salvífico era necessário romper o vínculo salvífico de Jesus Cristo com Deus
como único e exclusivo, era preciso separar Cristo-logia de teo-logia”105
.
Pluralismo é a posição teológica segundo a qual todas as religiões
participam da salvação de Deus. Nessa posição, sustenta-se que uma sincera busca
cristã do diálogo com as outras religiões requer a renúncia a toda pretensão de
unicidade salvífica para a pessoa e a obra de Jesus Cristo. Para esta posição
teológica, somente Deus está no centro. Em todas as religiões, Deus sai ao
encontro do ser humano, sem que haja apenas uma única religião verdadeira. Isto
implica uma mudança radical no cristianismo106
.
No entanto, todos esses paradigmas mostraram-se insuficientes para resolver
o duplo desafio da relação do cristianismo com as outras religiões. Irão surgir
outros modelos procurando salvaguardar a identidade cristã, os quais articulem os
dois axiomas fundamentais da fé cristã – a vontade salvífica universal por parte de
Deus e a necessária mediação de Cristo – sem, contudo, se fecharem à novidade
proposta por outras tradições religiosas reconhecendo-as em sua alteridade.
Observamos que o exclusivismo, ao dar uma ênfase unilateral ao segundo
axioma, entra em sérias contradições teológicas e não tem sustentação bíblica107
.
É descartada entre os teólogos católicos a posição exclusivista-eclesiocêntrica.
Sobre o inclusivismo, Knitter questiona um dos seus pilares, que é o caráter único
da pessoa de Jesus Cristo como critério para a salvação universal. Segundo ele,
“Jesus realmente é a Palavra da Verdade de Deus, essencial para todos os povos, e
não que Ele seja a única palavra de Verdade, essencial para todos os povos”108
.
Os inclusivistas questionam as afirmações pluralistas, mesmo que acreditem
nas suas importantes contribuições. Para esses, as afirmações pluralistas orientam-
se pelo axioma da vontade salvífica universal de Deus e deixam de lado a
mediação de Jesus Cristo.
105 MIRANDA, M. de França. O encontro das religiões. In: Perspectiva Teológica. 68, 1994. p. 20. 106 Cf. VIGIL, J. Maria. Teologia do pluralismo religioso, pp. 63-64. 107 Cf. DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã, p. 269. 108 KNITTER, Paul. Diálogo inter-religioso e ação missionária: preparai os caminhos. São Paulo:
CNBB: COMINA, 1994. p. 09. Paul F. Knitter é professor de Teologia, Religião e Cultura no
Mundo União Theological Seminary na Cidade de Nova Iorque. Desde a publicação do seu livro,
nenhum outro nome? (1985), Knitter foi amplamente conhecido por seu pluralismo religioso junto
com seu amigo e colega, o filósofo da religião protestante John Hick.
40
Entretanto, é certo que, embora a pretensão de unicidade e universalidade da
salvação cristã apresente dificuldades para o diálogo inter-religioso, não pode, no
entanto, uma teologia cristã das religiões desprezar as afirmações do Novo
Testamento e de toda a tradição de experiências cristã sobre a revelação divina
decisiva e definitiva em Jesus Cristo. Essa posição colocaria em jogo os aspectos
fundamentais da fé cristã e separaria teologia e cristologia, o que é impossível
numa teologia cristã109
.
O pluralismo teocêntrico incorre numa interpretação nominalista das
religiões, interpretando-as como diversas expressões de uma mesma realidade e
numa interpretação essencialista das mesmas ao abordá-la sob o pressuposto de
um denominador comum110
.
No entanto, diante dessas questões teológicas, irão surgir outros modelos
ligados ao paradigma teocêntrico. Emergem o ‘reinocentrismo’ e
‘soteriocentrismo’, perspectivas nas quais nem a Igreja, nem Jesus Cristo, nem
Deus são centros. O centro é o objeto da pregação de Jesus Cristo: o Reino de
Deus e a salvação. Em torno desse é que se devem centrar a reflexão e a prática
das religiões111
.
Ao colocar o Reino de Deus no centro, o reinocentrismo interpreta as
religiões numa perspectiva escatológica, segundo a qual Deus e o Reino são a
meta da história comum a todas as religiões. Possibilita, assim, uma interpretação
fecunda, na medida em que reconhece que os membros de outras religiões,
juntamente com os cristãos, “já são membros do Reino de Deus na história [...]
dirigindo-se, todos juntos, para a plenitude escatológica de Deus”112
. No entanto,
o reinocentrismo continua se apoiando num conceito de Deus típico do
monoteísmo, mas especificamente no conceito cristão, e coloca-se mais na linha
do cristocentrismo.
Nesse contexto, outra tentativa foi superar o inclusivismo com o
‘logocentrismo’ e o ‘pneumatocentrismo’, que se baseiam na presença e na ação
universal do Verbo e do Espírito de Deus, como dois modelos que poderiam
109 Cf. DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã, p. 270; AMALADOSS, M. O pluralismo
das religiões e significado de Cristo. In: TEIXEIRA, Faustino. Diálogo de pássaros, p. 91s. 110 Cf. AMALADOSS, M. O pluralismo das religiões e significado de Cristo, p. 92. 111 Cf. DUPUIS, J. O cristianismo e as religiões, pp.111-113; Id., Rumo a uma teologia cristã, pp.
270-272. 112 Ibid., pp. 114-116; Id., Rumo a uma teologia Cristã, p. 272.
41
substituir o cristocentrismo113
. Entretanto, estão intrinsecamente vinculados com o
cristocentrismo numa única economia e não podem representar uma importante
contribuição para a teologia das religiões114
.
Um novo modelo surge para ser o que podemos considerar o ‘ponto de
equilíbrio’ entre o inclusivismo e o pluralismo: é o “inclusivismo aberto”115
.
Mesmo que desenvolvido para encontrar o “equilíbrio”116
, este novo modelo irá
tender ao cristocentrismo ou ao teocentrismo. Há uma propensão em afirmar,
nesse novo paradigma, a autonomia salvífica das religiões, ao mesmo tempo em
que se assegura o caráter único e particular que Jesus Cristo exerce na História da
Humanidade e, por consequência, na história da salvação, pois, “fora do mundo,
não há salvação”117
. O mundo aí é entendido como plenitude não fechada no
cristianismo, mas de forma “relativa e aberta”118
.
Chegar ao equilíbrio talvez seja difícil, mas reconhecemos o esforço
demonstrado por todos esses paradigmas, procurando ser fiel à identidade cristã e
à revelação de Deus, em querer fundamentar o diálogo inter-religioso e colaborar
no crescimento de cada uma das tradições religiosas que se dispõem ao diálogo.
No entanto, o debate não para. As discussões e a procura por um paradigma
que possa corresponder às necessidades, sem cair no absolutismo e nem no
relativismo, são cada vez impulsionadas por uma inegável realidade, o pluralismo.
Este deve ser levado a sério como lugar no desígnio de Deus para a salvação da
humanidade.
1.5 A busca por um novo paradigma teológico
O debate persiste. Hoje, diante desta inegável realidade plural, em que
“praticamente todas as religiões entraram em contato”119
e todas estão presentes
umas às outras, inevitavelmente, surgem da teologia asiática novas abordagens
113 Cf. DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã, pp. 173-277. 114 Dupuis propõe a não-separação, mas a interligação entre esses paradigmas. Para ele, Jesus
Cristo, Reino de Deus e Espírito Santo são realidades inseparáveis. Cf. DUPUIS, J. O debate
cristológico no contexto do pluralismo religioso, p. 75ss; KNITTER, Paul. Diálogo inter-religioso
e ação missionária; Id., A teologia católica das religiões numa encruzilhada. Concilium, v. 203, n. 1, p.112. 115 Nomenclatura presente em: TEIXEIRA, Faustino. Teologia das religiões, p.78ss. 116 AMALADOSS, M. O pluralismo das religiões e o significado de Cristo, p. 107. 117 SCHILLEBEECK, E. História humana. Revelação de Deus. São Paulo: Paulus, 1994. p. 21. 118 QUEIRUGA, A. Torres. O diálogo das religiões, p. 27. 119 Ibid., p. 61.
42
sobre a problemática inter-religiosa, provenientes da prática do diálogo, das
experiências de encontro e da convivência com outras tradições religiosas120
.
Dupuis cita A. Pieris que diz: “Eu me vi apropriando-me gradualmente de
uma tendência da Ásia, que adota um paradigma em que as três supracitadas
categorias [exclusivismo, inclusivismo e pluralismo] são desprovidas de
sentido”121
.
As novas abordagens, então, possibilitadas por esses e tantos outros
testemunhos, caracterizam-se pelo esforço em descobrir e reconhecer a
especificidade e singularidade das outras religiões e uma maior atenção ao fato do
pluralismo religioso a partir da própria perspectiva de fé, pois, “o pluralismo
religioso – sugere-se – mergulha suas raízes na profundidade do próprio Mistério
divino e nas variadas formas com que as culturas humanas lhe responderam”122
.
Assim, Deus criador torna-se presente e ativo na pluralidade das religiões.
Dessa forma “se quisermos ter alguma esperança de construir uma teologia
das religiões que não se funde em contradições e oposições recíprocas, mas em
harmonia, convergência e unidade, a problemática ocidental deve ser
abandonada”123
. Nesse sentido, provocaria uma nova busca para a reflexão,
procurando reconhecer a especificidade e singularidade de cada tradição religiosa.
Segundo a Declaração publicada pela XIII Reunião Anual da Associação
Teológica Indiana, são criticadas as categorias em uso na teologia das religiões,
por abordarem a religião dos outros de modo abstrato, acadêmico e especulativo e
do ponto de vista de uma única cultura religiosa124
. Elas [as categorias] traem “a
aproximação teórica à fé de outras pessoas”, que nascem “de uma sociedade
caracterizada por uma só cultura religiosa e por um ponto de vista meramente
acadêmico e especulativo”125
.
Nesta nova perspectiva, vários teólogos ocidentais responderam
positivamente, como D. Tracy e M. Barnes, por exemplo. Barnes sustenta a
120 Cf. DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã, p. 278; Cf. AMALADOSS, M. Pela
estrada da vida. Prática do diálogo inter-religioso. São Paulo: Paulinas, 1996. Nessa obra, o autor
reúne vários artigos que têm como base a experiência de encontro e convivência entre pessoas de
diferentes religiões. 121 PIERIS, A. Na Asian Paradigm. Interreligious Dialogue and the Theology of Religions. In: The Month 26, 1993. 130. Apud. DUPUIS, Jacques. O cristianismo e as religiões, p. 117. 122 DUPUIS, Jacques. O cristianismo e as religiões, p. 117. 123 Ibid., p. 117. 124 Cf. Ibid., p.118. 125 Declaração da XII reunião anual da associação de teólogos da Índia, em 28 a 31 de dezembro
de 1989. n. 4. Apud. DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã, p. 118.
43
necessidade de uma nova “rota de fuga da rígida esquematização do paradigma
tripartite”. De acordo com esse pensador, a resposta está “além do pluralismo”126
,
resultando numa pluralidade de iniciativas que situam a teologia das religiões
numa nova perspectiva, em que o diálogo acontece no reconhecimento de cada
membro da tradição religiosa em sua alteridade, e admitindo a legitimidade de sua
fé127
. Para Tracy, deve ser empreendida uma ‘teologia do diálogo’ e não apenas
uma ‘teologia para o diálogo’128
.
No entanto, surgem outros teólogos que convergem ao dizer que é
necessário ir além da alternativa entre o inclusivismo e pluralismo, entre o
cristocentrismo e teocentrismo. Segundo DiNoia, tanto o inclusivismo como o
pluralismo acabam minimizando as diferenças dos outros, prejudicando o diálogo.
Para esse autor, deve-se partir para uma “teologia em diálogo”129
, em que não se
deve “servir ao objetivo de abrir potencialidades afins ao cristianismo”, mas
“considerar essas doutrinas como ensinamentos alternativos autoconscientes a
propósito daquilo sobre que deveria ser focalizada a vida humana”130
.
Diante desta situação, outro autor, Fredericks apresenta uma nova proposta
para a reflexão. Ele fala da necessidade de um “estudo comparativo das
religiões”131
. Para esse autor, os três paradigmas faliram em dois critérios, que
validam a teologia cristã das religiões: na fidelidade à tradição cristã e na
habilidade em impelir os cristãos a manter relações positivas e profícuas com os
‘outros’132
. São muitas, no entanto, as vozes que se levantam apontando um novo
caminho. Uma destas vozes é a de Dupuis, que apresenta para esta problemática
uma cristologia trinitária133
.
126 Cf. BARNES, M. Theology of Religions in a Post-Moden World, in The Month 28, 1994. p.
270-274; 325-330. Apud. DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã, p. 118. 127 Cf. BARNES, M. Theology of religions in a post-moderm world. The month 28 (1994), p. 273.
Apud. DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã, p. 119. 128 Cf. TRACY, D. Dialogue with the Other. The Interreligious Dialogue. Peeters Press, Louvain,
1990. Apud. DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã, p. 119. 129 DINOIA, J. A. The diversity of religions. A chistian perspective. The catholic university of
America press, Washington, 1992, 127.111. Apud. DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã,
p. 119. 130 Ibid., p. 119. 131 FREDERICKS, J. L. Faith among faiths. Chistian theology and non-chistian religions, Paulist press, Nova York, 1999. Apud. DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã, p. 119. 132 Cf. DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã, p. 120. 133 Segundo Dupuis, por “cristologia trinitária se entende uma cristologia que, por um lado, faça
sobressair as relações interpessoais entre Jesus Cristo e o Deus que Ele chama de Pai e, de outro, o
Espírito que lhe impele e que ele, por sua vez, envia. Relações intrínsecas ao mistério da pessoa de
Jesus e de sua obra”. Cf. Ibid., pp. 259-531.
44
Todavia, neste momento, na teologia cristã das religiões, que tem procurado
superar suas muitas contradições, parece estar emergindo um consenso para evitar
qualquer tipo de absolutismo ou relativismo. Isso se deve ao fato de se reconhecer
que a grande questão em debate, hoje, passou a ser a pluralidade das religiões, o
pluralismo religioso. Entende-se, então, que “uma teologia das religiões, não pode
deixar de ser, definitivamente, uma teologia do pluralismo religioso”134
. O que
acaba sendo um novo nome adotado em nossos dias para a teologia das religiões,
novo ramo da teologia.
Tal mudança terminológica demarca uma mudança na perspectiva teológica,
que procura superar as categorias de inclusivismo e pluralismo por um ‘novo
paradigma teológico’135
. Desloca-se, assim, a reflexão teológica, do problema da
salvação mediante as outras religiões para o próprio fenômeno do pluralismo
religioso.
Coloca-se, agora, a questão da origem do próprio pluralismo, “o seu
significado no projeto de Deus para a humanidade, a possibilidade de uma
convergência das várias tradições religiosas, com pleno respeito pelas suas
diferenças, o seu mútuo enriquecimento e a sua recíproca fecundação”136
. Este
novo enfoque procura compreender e valorizar positivamente a pluralidade
religiosa confrontando-a, teologicamente, com o mistério de Deus.
Procura-se responder, com profundidade, se a pluralidade religiosa é
simplesmente um fato da história, ou seja, se é um fenômeno de fato (pluralismo
de fato), ou se é um fenômeno fundacional, algo que tem uma razão especifica de
ser, algo querido por Deus e que exige uma contínua coexistência humana com o
mesmo (pluralismo de princípio)137
.
Reconhecer o ‘pluralismo religioso de princípio’ significa desocultar o
significado positivo das diversas tradições religiosas na globalidade do único
desígnio salvífico de Deus, o que atesta uma mudança significativa do olhar e
afirma “a generosidade superabundante com que Deus se manifestou de muitos
134DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã, p. 271. 135 Cf. Id,. Le pluralisme religieux dans le plan divin de salut. In: Revue Theologique de Louvain,
29 (4), 1998. p. 485. 136 Id., Rumo a uma teologia cristã, p. 26. 137 Cf. Ibid., p. 26.
45
modos à humanidade e a resposta multiforme que os seres humanos deram à auto-
revelação divina nas várias culturas”138
.
À margem desses intentos de interpretações da existência da pluralidade
religiosa, que constituem as diferentes teologias das religiões, tem se
desenvolvido um movimento cada vez mais intenso de encontros entre os
membros das diferentes religiões.
A existência mesma do diálogo e a forma em que se está desenvolvendo
supõem um desafio de uma transcendência insuspeita às tradições. Provavelmente
a resposta das diferentes religiões a este desafio depende, em boa medida, do
futuro da religião em nosso mundo139
.
A experiência que supõe para o diálogo inter-religioso a existência de
numerosos encontros inter-religiosos destaca a importância que está adquirindo o
desenvolvimento do diálogo em que intervém a dimensão espiritual e a
experiência interior que comporta todas as religiões. Aqui está a importância que
reveste para o melhor desenvolvimento do diálogo entre as religiões a intervenção
semelhante desses cultivadores eminentes da experiência religiosa que são os
místicos. Isso demonstra a importância decisiva que pode ter a intervenção dos
místicos para o diálogo inter-religioso.
Todavia, o que se busca em tais diálogos não é tanto a compreensão, mas a
comunhão na contemplação: “O nível mais profundo da comunicação não é a
comunicação, senão a comunhão. Nesse nível não tem palavras, está além das
palavras e também além da linguagem e dos conceitos”140
.
Essas experiências
mostram a possibilidade de encontros inter-religiosos mais além das ações, dos
ritos, as instituições e as crenças, que desembocam no centro de toda experiência religiosa, em seu núcleo místico mais íntimo: o silêncio, a meditação, a oração, a
experiência espiritual, o contato interior com a realidade última do que vivem todas
as religiões141
.
As razões que explicam a contribuição verdadeiramente única da mística ao
diálogo inter-religioso e, dessa forma, ao desafio que supõe para as religiões
consistem na capacidade de realizar a experiência dos serviços que podem prestar
138 DUPUIS, Jacques. O cristianismo e as religiões, p. 526. 139 Cf. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico. Estudio comparado. Madri: Trotta, 1999. p.
468. 140 MERTON, Thomas. Vivir con sabeduria. Madri: PPC, 1997. p. 218. 141 VELASCO, J. Martin. Op. cit., p. 470.
46
e sua radical insuficiência para procurar uma união com Deus, ou com o Último,
que se realiza na mais pura e desnuda fé amorosa, na mais absoluta confiança.
Porque
o encontro mais profundo terá lugar na esfera da mística, no que vamos mais além
das ideias, dos conceitos e das imagens, para um estado de amor silencioso. Aqui as
pessoas permanecem em um estado de união sem palavras, aqui o espírito se encontra com o espírito
142.
Assim, podemos entender que, no diálogo inter-religioso, em que se deve
evitar o dogmatismo e o indiferentismo, a mística tem um lugar privilegiado, pois,
é certo como veremos, no capítulo seguinte, que o místico encontra-se melhor
preparado contra todos esses perigos. Contra o dogmatismo, por realizar uma
radical relativização de todas as mediações que possui a religião, fazendo,
pessoalmente, sua experiência. E além disso, por ter, na sua religião, a experiência
do Mistério como centro, pode valorizar a vida religiosa, seja qual for o lugar em
que ela floresça, superando a tentação de absolutista e exclusivista, bem como o
perigo do indiferentismo.
Aprofundaremos, no próximo capítulo, o estado de crise em que se
encontram todas as tradições religiosas, e seus desdobramentos nas religiões as
quais são atingidas em todos os aspectos e níveis do complexo sistema em que
cada uma delas se realiza.
Veremos que hoje, a proliferação de novos movimentos religiosos induz a
pensar que a crise não se orienta tanto ao desaparecimento da religião, mas a sua
radical transformação, a uma metamorfose ou uma mudança das formas em
relação ao que até agora tinha se revestido.
2. O fenômeno religioso e místico
No contexto de pluralismo religioso em que vivemos, não nos é possível
negar que, mesmo causando um ‘mal estar religioso’, são manifestações de um
Deus que quer se tornar conhecido. E essa situação tanto pode ocultá-lo, como
também pode, na medida em que for assumida e interpretada, tornar-se um lugar
142 VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico. p. 471.
47
de escuta e de resposta143
. Nesse contexto, nos chama atenção o fato de haver uma
procura pela experiência direta com o mistério da Realidade Última, que parece
acontecer em todas as religiões e confissões.
Isso comprova que a procura por essa experiência consiste na ‘sede’ que é
comum a todos os seres humanos, e cada um busca saciá-la de uma maneira, ou de
outra. Ninguém escapa da necessidade de sentido, da busca de respostas mais ou
menos conscientes, da “procura por preencher o vazio provocado pelo abandono
da religião herdada, em alguns casos, ou pelo descontentamento com suas formas
estabelecidas, em outros”144
.
Entretanto, cada um vive suas perguntas mais profundas na solidão.
Todavia, sua busca não pertence ao campo da individualidade ensimesmada, ou
melhor, de um individualismo narcisista145
, porque toda experiência interior é
transformante e modifica as relações da pessoa a partir de sua inclinação ao
Mistério.
Tal processo provoca uma profunda mudança religiosa, advertida por
religiosos e estudiosos. Porque para estes
trata-se de um passo a mais na evolução da consciência religiosa. Uma sorte da
nova situação epocal religiosa, um novo ‘tempo eixo’, que alguns caracterizam
como a fase inicial do passo da consciência mental, cognitiva, a consciência transpessoal, mística
146.
Esta nova realidade, na experiência religiosa, é um fenômeno que responde a
uma insatisfação generalizada147
, que, provocada pela pós-modernidade,
impulsiona o ser humano a viver o religioso explicitamente, possibilitando em
muitos aspectos um ajustar-se a um novo reencantamento do mundo ou que se
viva em estreita conivência com ele.
Para o cristianismo, esta é uma oportunidade para desfazer-se de toda falsa
imagem de Deus148
, que, mesmo trazendo a este contexto tantos questionamentos
143 Cf. VELASCO, J. Martin. Experiência cristã de Deus. São Paulo, Paulinas, 2001. p. 16; Sobre
o mal estar religioso conferir do mesmo autor: El malestar religioso de nuestra cultura. 2ª Ed.
Madrid, Paulinas, 1993. 144 QUEIRUGA. A. Torres. O fim do cristianismo pré-moderno: desafios para um novo horizonte.
São Paulo: Paulus. 2003. p. 108. 145 Cf. WATT, Ninfa. La fuente de la cordialidad. In: RODRIGUEZ, Francisco J. S. (org.) Mística y sociedad en diálogo. Madri, Trotta, 2006. p. 81. 146 MARDONES, J. Maria. Mística transreligiosa en una sociedade de incertidumbre. In:
RODRIGUEZ, Francisco J. S. (org.). op. cit. p. 89. 147 Cf. QUEIRUGA. A. Torres. O fim do cristianismo pré-moderno, p. 108. 148 Cf. BLANK, Renold J. Deus na história: centros temáticos da revelação. São Paulo: Paulinas,
2007. Nesta obra o autor tem como ponto de partida as falsas imagens de Deus que prevalecem na
48
da fé, possibilita o rompimento de tudo o que se tinha adquirido por ‘se ouvir
dizer’, e como nos diz Velasco: “É um convite do Espírito a abrir os olhos e
deixar-nos surpreender por esse Deus”149
.
Como nos afirma Maria Clara Bingemer:
a mística cristã nos tempos atuais, portanto, como em outros tempos, está mais do
que nunca desafiada a redescobrir seu lugar e seus caminhos, a olhar para o
humano como via necessária para o divino150
.
Isso se dá por meio de uma experiência que leve ao desvelamento desta
Presença, comprovando uma deficiência “eu te conhecia só de ouvir. Agora,
porém, os meus olhos te veem”151
e que pelas debilidades e pelas dificuldades
culturais não permitiam reconhecer152
. Uma deficiência provocada não apenas
pela cultura, mas porque se vive ‘fora’ da realidade religiosa propriamente
falando, por estar entretido com doutrinas, moral, leis, ritos, porém com pouco ou
escassa densidade. Resulta isso em uma religiosidade muito epidérmica, muito
externa e que não tem penetrado nas entranhas de cada realidade mesma a que se
refere e que se vive153
.
Esse estado de coisas leva, então, a uma experiência de nível místico em que
hoje estaria pulsando a mudança religiosa mais fundamental. Por aí caminha a
transformação não só do cristianismo, mas de toda religião, nesta época de
globalização e de incertezas sócio-políticas154
, reconhecendo que esta experiência
se dá em diferentes formas que despontam como
inéditas de desvelamento de um Deus que não se deixa encerrar no terreno reservado pela religião e é maior que a consciência, a linguagem e os conceitos dos
que o reconhecem com os meios precários que nossas tradições religiosas
oferecem155
.
No entanto, mesmo reconhecendo essas novas formas de reconhecimento
dessa Presença, não podemos esquecer que um dos aspectos importantes que
dificultam vislumbrar a Presença em nossos dias é o que Martin Buber chamou de
linguagem e em muitas manifestações religiosas verificadas mesmo dentro da Igreja. Sua tese
demonstra uma grande sensibilidade aos riscos de toda religiosidade que tende a se apegar mais às
coisas da religião do que a Deus. 149 VELASCO, J. Martin. Experiência cristã de Deus, p. 07. 150 BINGEMER, Maria Clara. O mistério e o mundo. Paixão por Deus em tempos de descrença. Rio de Janeiro: Rocco, 2013. p. 180. 151 Jó 42,5. 152 Cf. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 06. 153 Cf. MARDONES, J. Maria. Mística transreligiosa en una sociedade de incertidumbre, p. 91. 154 Cf. Ibid. p. 89. 155 VELASCO, J. Martin. Experiência cristã de Deus, p. 08.
49
“eclipse de Deus”156
. Trata-se de uma situação em que se dissiparam, na vida do
homem, as pegadas de Deus.
A íntima relação disso com o pluralismo está na
característica-chave de todas as situações pluralistas, quaisquer que sejam os
detalhes de seu pano de fundo histórico, isto é, que os ex-monopólios religiosos
não podem mais contar com a submissão de suas populações157
.
Ou seja, acontece a perda da plausibilidade da religião. E seguindo o
pensamento de G. Vattimo, podemos pensar em um processo de conservação,
distorção e esvaziamento da religião158
que provoca um “desencantamento que
oculta as dimensões profundas, os lados inefáveis, os traços invisíveis nos quais o
homem de outros tempos vislumbrava a presença da transcendência”159
.
Hoje essas situações são denunciadas por homens e mulheres denominados
‘mestres espirituais’ que, predominamente, tem estado e estão em contato com as
religiões e espiritualidade oriental160
. Esses chamam a atenção acerca da nova
situação em que se encontra o cristianismo e, ao mesmo tempo, todas as religiões:
desafiadas a dar um salto a um nível mais alto.
Acreditamos ser este um tempo propício, o que podemos chamar de
Kairós161
, para um despertar consciente da necessidade de ser redescoberta a
verdadeira vocação das religiões. Aí a mística assume um lugar de destaque
dentro da religião, eixo de transformação.
156 BUBER, Martin. Eclipse de Dios. Buenos Aires, Galatea-Nueva Vision, 1970. p. 25. 157 BERGER, Peter L. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São
Paulo: Paulus, 1985. p. 149. 158 Pensamento de Vattimo apud. MARTELLI, Stefano. A religião na sociedade pós-moderna.
São Paulo: Paulinas, 1995. p. 444. 159 VELASCO, J. Martin. Experiência cristã de Deus, p. 17. 160 Como referências, temos autores como W. Jäger, monge beneditino, mestre zen desde 1981 da
escola Sanbo-Kyodan do Japão. Guia espiritual da via zen e contemplativa. Cujas obras são:
Adonde nos lleva nuestro anhelo. La mística en el siglo XXI. Desclée, Bilbao, 2004; suas obras
anteriores: La oración contemplativa. Una introducción según san Juan de la Cruz. Obelisco,
Barcelona, 1989; En busca de la verdad. Caminos – Esperanzas – Soluciones. Desclée, Bilbao,
1999; La ola es o mar. Desclée, Bilbao, 2002; W. Johnston, Jesuíta, diretor do Instituto de
Religiões orientais da universidade de Sofia de Tókio, autor das seguintes obras: Mística para una
nueva era. De la teologia dogmática a la conversión del corazón. Desclée, Bilbao, 2003; La musica
callada. Paulinas, Madrid, 1985; El ojo interior del amor. Misticismo y religión. Paulinas, Madrid,
1994; Th. Keating, monge cisterciense, fundador do movimento ‘Oração Centrante’: Suas obras:
Intimidad con Dios. Desclée, Bilbao, 1997; R. Rolheiser, En busca de Espiritualidad.
Lineamientos para una espiritualidad Cristiana del siglo XXI. Lúmen, Buenos Aires, México, 2003. 161 Kairós (καιρός) é uma antiga palavra grega. Significa ‘o momento certo’ ou ‘oportuno’. Para
este povo antigo, duas palavras distinguiam seu tempo: chronos e kairos. A primeira refere-se ao
tempo cronológico, ou sequencial, e a última é um momento indeterminado no tempo em que algo
especial acontece. Na teologia é usada para descrever a forma qualitativa do tempo, o ‘tempo de
Deus’, enquanto chronos é de natureza quantitativa, o ‘tempo dos homens’.
50
2.1 Um desafio às religiões
As religiões enfrentam, então, um grande desafio para que seja restabelecido
o encantamento, pelo alcance de um tipo de experiência, que proporcione uma
certeza que vai muito mais além da obtida pela via cognitiva. Trata-se, portanto,
de uma mudança, ou melhor, de uma transformação que supõe um nível mais
elevado de organização estrutural e de integração162
.
Será preciso, nesta circunstância, uma experiência religiosa que permita
descobrir as pegadas da presença de Deus em aspectos de nossa situação, em
elementos de nossa cultura, aparentemente dominada pela incredulidade. Além
disso é necessário tomar consciência do pressuposto radical de toda possível
experiência de Deus: sua silenciosa, porém real, ativa e inconfundível presença no
fundo do real, no centro do ser de cada ser humano163
.
Em relação ao cristianismo, este só poderá ter uma reação positiva diante
desse contexto se acolher o que nele há de genuíno e se mostrar
capaz de integrá-lo, dinamizá-lo e enriquecê-lo desde seu projeto específico. E cuja
condição indispensável é deixar-se questionar, renovando o contato com suas raízes, mostrando-se aberto à mudança e à renovação: à conversão
164.
Todo este contexto indica o suficiente para assinalar onde estão os lugares
aniquilados e que necessitam de transformação: não se trata de ‘arrumar pisos
interiores’, mas sim de novas formas de prática religiosa e, sobretudo, mais
profundas, onde se viverá um novo nível da existência. O subtítulo da obra de W.
Johnson sobre ‘La mística para una nueva era’ sugere por onde deve ocorrer a
mudança: da teologia dogmática à conversão do coração165
.
Para esse autor, trata-se de adquirir uma sabedoria distinta da teologia
dogmática. “Vai mais além da argumentação e do pensamento, mais além da
imaginação e da fantasia, mais além de um antes e de um depois para adentrar-se
na realidade intemporal”166
. Em outras partes do livro, indica que se trata, ao
162 Cf. MARDONES, J. Maria. Mística transreligiosa en una sociedade de incertidumbre, pp. 89-
90. 163 Cf. VELASCO, J. Martin. Experiência cristã de Deus, p. 20. 164 QUEIRUGA. A. Torres. O fim do cristianismo pré-moderno, p. 117. 165 Cf. JOHNSON, William. Mística para una nueva era. De la teologia dogmática a la conversión del corazón. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2003; Sobre isto Queiruga nos fala da necessidade de
resposta de conjunto, descendo as próprias raízes, ou seja, “não é mais a hora do remendo de pano
novo sobre o pano velho, mas de odres novos para o vinho de um tempo novo”. Para ele, desponta
uma mudança de paradigma. Cf. QUEIRUGA. A. Torres. O fim do cristianismo pré-moderno, p.
120. 166 JOHNSON, William. Mística para una nueva era, p. 70.
51
menos no caso católico, de recuperar a dimensão da experiência íntima do
mistério de Deus e da experiência da unidade com ela.
Mesmo diante de uma realidade caracterizada pela secularização da cultura,
que eliminou a vigência social e cultural das respostas da religião às perguntas que
o homem faz sobre si mesmo; esse passou a buscar uma resposta pessoal,
possibilitando uma religião ‘pós-moderna’ em que dão testemunho alguns dos
fenômenos agrupados sob o nome de novos movimentos religiosos167
.
Essa atitude assinala que a religião não foi suprimida da dimensão
antropológica e social na assim chamada pós-modernidade, pois, se era quase
consenso afirmar a eliminação da religião, através de expressões como ‘morte de
Deus’, ‘era pós-cristã’, hoje se percebe que o sagrado continua seduzindo168
.
Nesse sentido, ‘reaparece’ com uma fisionomia bastante diferente daquela da
sociedade tradicional169
, como resultado do próprio processo interno e estrutural
da modernidade.
Apesar dos avanços científicos, as novas descobertas não ajudaram o ser humano a
entender a causa, o motivo de sua existência. A ciência não conseguiu apagar o desejo de Deus do coração humano. Essa busca, agora, não é por uma religião, e
sim por uma espiritualidade que ofereça um caminho para a experiência, algo que
dê sentido à vida. Essa postura do homem pós-moderno provoca perplexidade e pasmo dentro das estruturas eclesiais. Pois, se por um lado, tal anseio pela
experiência é um fato positivo por levar o crente a voltar-se para Deus e
desenvolver uma fé mais convicta na vida e no cotidiano, essa experiência buscada e desejada é, na maior parte das vezes, desvinculada da norma moral, da verdade
dogmática e da pertença institucional170
.
Apesar de sua extraordinária ambiguidade, os novos movimentos religiosos
expressam manifestações da insuficiência de uma civilização centrada na
racionalidade objetiva, e reclamam uma nova forma de consciência aberta a
alguma forma de transcendência171
.
167 Cf. BINGEMER, M. Clara. Alteridade e vulnerabilidade, pp.17-23. Conferir outro livro (mas
recente) da mesma autora. O mistério e o mundo, pp. 11-28. Segundo Maria Clara, “se na
modernidade parecia que tudo apontava para um mundo sem Deus e sem perspectiva de
religiosidade, na pós-modernidade ocorre uma volta ao transcendente. Há uma ânsia cada vez
maior de experiências e de práticas religiosas. Uma busca incessante pelo Sagrado, sem que com
isso se tenha que escutar autoridades ou teólogos. Trata-se da busca por algo que atinja o coração
humano e que o faça sentir-se querido e amado”. Ibib., p. 19. 168 Cf. Id., A sedução do Sagrado. In: CALIMAN, Cleto. (org.) A sedução do Sagrado: o fenômeno religioso na virada do milênio. Vozes: Petrópolis, 1998. p. 79. 169 Sobre o ‘reaparecimento’ do sagrado, Cf. BINGEMER, M. Clara. O mistério e o mundo, pp.
29-91; MIRANDA, M. de França. Volta do sagrado: numa avaliação teológica. In: Perspectiva
teológica, 21, 1989. pp. 71-83. 170 BINGEMER, M. Clara. O mistério e o mundo, p. 20. 171 Cf. VELASCO, J. Martin. El malestar religioso de nuestra cultura, pp. 53-79.
52
Para a socióloga francesa Danièle Hervieu-Léger, não se trata simplesmente
de um retorno do sagrado, mas de mudanças profundas no cenário religioso
hodierno. A sociedade secularizada cria condições para a proliferação de novas
crenças e práticas religiosas, pois uma vez desqualificados e enfraquecidos os
grandes sistemas de explicação religiosa do mundo, nos quais homens e mulheres
encontravam segurança e sentido existencial, paradoxalmente surgem e
proliferam-se novas expressões e formas religiosas172
.
E é a partir dessa mudança estrutural da sociedade que se torna possível
compreender a emergência da multiplicidade de religiões nas sociedades
modernas como fruto da própria dinâmica da modernidade que redefiniu a função
da religião dentro do contexto social.
Por consequência, torna-se claro que, quando se procura explicar a
necessidade de uma mudança, esclarece-se que não se trata de uma mera reforma,
mas, sim, de uma transformação da maneira de se viver uma religião. “Não vale
apenas uma reforma no interior das instituições”173
.
Como insiste W. Jäger, encontramo-nos ante um salto na consciência
religiosa. Deve-se cair na conta de que o que denominamos Deus ou a Realidade
Última não é algo exterior à pessoa. Esta realidade não está fora, senão no seu
próprio interior174
. Mais ainda, pertence à própria vida. Na expressão de Jesus nos
sinóticos “o Reino está dentro de vós” ou ‘tem chegado’, está chegando, ou seja, é
a profundidade do presente e o fundamento de sua elevação para o futuro175
.
Toda essa mudança tem o impulso do desejo do ser humano de procurar o
que está para além de si mesmo, do desejo do encontro com a Realidade Última
de suas vidas. Para isto, o ser humano é também chamado a mergulhar no seu
mais íntimo para que, encontrando-se consigo mesmo, assumindo sua condição de
pessoa, e acolhendo esta Presença, possa receber o outro na sua vida em sua
alteridade.
172Cf. HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento. São
Paulo: Vozes, 2008. p. 46 ss. 173 MARDONES, J. Maria. Mística transreligiosa en una sociedade de incertidumbre, p. 91. 174 Cf. JÄGER, W. Adonde nos lleva nuestro anhelo, p. 30. 175 Cf. Mt 3,2; 4,17; Mc 1,4.15; Lc 3,3.
53
2.2 O ser humano chamado a viver a partir do seu interior
Não é estranho que surjam outras formas que remetem constantemente a
certas experiências, identificadas em termos muito diferentes, como experiências-
cume, sentimentos oceânicos, experiências do Absoluto, experiências-limite ou de
fronteiras. E que consistem em abrir o horizonte da vida humana, dilatar a
consciência, permitir uma ruptura de nível existencial e pôr a pessoa em
comunicação com um novo nível de realidade, diferente daquela em que reinam
os objetos que dominam a experiência cotidiana176
.
Esses sinais constituem o princípio e fundamento sobre o qual descansa toda
possível experiência de Deus, presença constitutiva no âmago da realidade e sua
presença originária no centro da pessoa.
Entretanto, para uma verdadeira experiência, necessário se faz estar aberto a
uma realidade nova e sempre presente. Será preciso, como nos diz S. João, com os
símbolos da água viva, nascer de novo177
e reconhecer que o amor consiste em
antes ter Deus nos amado primeiro178
, pois é, segundo Santo Agostinho, “mais
íntimo a nós que nossa própria intimidade”.
Dessa forma, o ser humano assume sua condição de pessoa, exigência do
Deus que se revela ao homem, que só é vivida na relação efetiva com as outras
pessoas, no exercício da responsabilidade, no amor e no diálogo, condições para a
revelação da verdade179
. Afinal, o ser humano não vive só e a ‘con-vivência’
supõe ‘vivência-com-os outros’, vida compartilhada, experiência em companhia.
Isso provoca a necessidade de diálogo, de encontros de tu a tu e de um
compartilhar comunitário180
.
Do duplo movimento – para-si, para-o-outro – a experiência mística tem
propriamente seu lugar antropológico. Pode ser considerada como uma tensão
fecunda entre ser e manifestação: entre o ser humano na sua finitude e nas condições da sua situação, e o dinamismo profundo ordenado ao Absoluto que
move a sua automanifestação181
.
Tudo isso exige uma abertura aos outros desde o interior, evitando viver
apenas na superfície para viver desde dentro, a partir de um espaço no íntimo. O
que chega de fora, transpassa a cerca do seu interior e recorre suas instâncias até
176 Cf. VELASCO, J. Martin. Experiência cristã de Deus, p. 23. Cf. nota 5. 177 Cf. Jo 3,6. 178 1Jo 4,10. 179 Cf. VELASCO, J. Martin.Op. Cit. p. 30. 180 Cf. WATT, Ninfa. La fuente de la cordialidad, p. 85. 181 BINGEMER, Maria Clara. O mistério e o mundo, p. 25.
54
chegar ao lugar da acolhida. Nesse intervalo, não submetido aos limites do espaço
físico e ao tempo, se permite a resposta desde o melhor de si mesmo, desde o
interior182
, pois “o diálogo é sempre mais enriquecedor e possível, se produz uma
aproximação até o interior e desde o interior”183
.
Essa experiência acontece quando o ser humano, atento ao seu interior, se dá
conta da existência de uma voz que arde em seu ser, anterior a qualquer outra.
Pode-se dizer que ela surge da necessidade de que o homem sente de
experimentar, o que havíamos sinalizado quando, no início deste capítulo,
falávamos sobre a ‘sede’, de fazer seu um mais além de si mesmo que busca
alcançar e com o qual não pode coincidir.
Esse mais além habitante do humano é o que torna as tendências do ser
humano não serem apenas instintivas. Transforma-as em desejos e faz com que
floresçam nesse desejo transcendido que é o amor, graças ao qual os sujeitos, na
mútua entrega, se encontram participando de uma generosidade maior. Dessa
mesma raiz, surge o milagre da liberdade, coração da dignidade da pessoa, que,
antes de ser escolha e inclusive domínio de si, é aceitação da existência dada por
uma generosidade anterior184
.
Para os mestres espirituais, a ação de Deus na profundidade do ser humano,
propicia um tipo de experiência religiosa que muda radicalmente em relação à
predominante na religião institucional. Para esses, a religião já não é,
fundamentalmente, um administrador do sagrado e menos um legislador de outras
dimensões humanas. Ela é um sinalizador, em um nível de consciência que avista
uma Realidade percorrendo toda a realidade.
Os fenomenólogos da religião não veem com estranheza esse ‘giro místico’
que propõem os mestres espirituais, porque a religião, a experiência do sagrado,
leva em sua raiz, nos dirá M. Eliade, o intento de decifrar no temporal e
historicamente concreto o desejo irresistível do homem de transcender o tempo e a
história, de descobrir o fundamento das coisas, a Realidade Última185
.
182 Cf. WATT, Ninfa. La fuente de la cordialidad, p. 80. 183 Ibid., p. 82. 184 Cf. VELASCO, J. Martin. Experiência cristã de Deus, p. 24. 185 Cf. ELIADE, Mircea. Observaciones metodológicas sobre el estudio del simbolismo religioso.
pp. 116-140. In: KITAGAWA, J. (Ed). Metodologia de la Historia de las religiones. Paidós,
Barcelona, 1986. Apud. MARDONES, J. Maria. Mística transreligiosa en una sociedad de
incertidumbre, p. 93.
55
O homem, assim resumirá a filosofia cristã, em tudo o que conhece,
conhece o ser, porque conhecer humanamente significa conhecer as coisas à luz
do ser, captando nelas a realidade. E como o ser não é para essa filosofia mais que
outro nome para Deus, em tudo o que conhece o homem conhece a Deus. A mente
do homem não é outra coisa, portanto, senão ‘uma espécie de participação da
verdade primeira’, isto é, de Deus186
.
Nesse contexto, cabe enfatizar que o encontro com Deus, que se ‘dá na alma
no mais profundo centro’, requer, como vimos, anteriormente do homem, uma
reabilitação para o exercício de dimensões que na cultura pós-moderna, mesmo
que ainda sinalize ser este lugar uma oportunidade para a mudança, não deixa de
ser também um lugar de atrofia187
. Entretanto, o encontro com Deus, no mais
íntimo da pessoa, que se dá na acolhida de sua presença, é, sem dúvida, a raiz da
experiência religiosa. E disto falam a fenomenologia e os místicos, os estudiosos
do fenômeno religioso e o homem que se tem adentrado com seriedade na busca
dessa Realidade, fundamento radical de tudo.
2.3 A religião e sua reafirmação
A sensibilidade que expressam os representantes da espiritualidade atual
oferece uma perspectiva de mudança religiosa que não duvida em denominar
transformação. Advertem um predomínio religioso do extremo, objetivo e
institucional. E assinalam um giro para a interioridade que faça justiça à dimensão
profunda da religião: a vivência da unidade com essa Realidade Última que nos
envolve e que denominamos Deus188
. Reconhecemos que:
A religião através da história humana sempre procurou organizar essa experiência
da Transcendência e sistematizá-la em normas, rituais e conceituações doutrinais. Mas nada dessa organização poderia acontecer sem a experiência religiosa,
fundamental em todas as grandes tradições religiosas, e que dá testemunho de que
o ser humano é diferente de todos os seres criados, pois pode experimentar aquilo
ao Aquele que o transcende e é maior do que ele ou do que se possa imaginar e conceber
189.
Religião, neste sentido, dirá W. Jäger, é nossa condição de seres humanos, é
atuar a partir da experiência de unidade de nosso ser com esta Realidade Última.
Este mesmo autor dirá que esta unidade do ser de Deus e a pessoa humana tem
186 Cf. VELASCO, J. Martin. Experiência cristã de Deus, p. 25. 187 Cf. Ibid., p. 31. 188 Cf. MARDONES, J. Maria. Mística transreligiosa en una sociedad de incertidumbre, p. 93. 189 BINGEMER, M. Clara. O mistério e o mundo, p. 214.
56
que ser entendido, como uma imagem tomada do místico Rumí, “como o mar e a
onda: o mar não é a onda; a onda não é o mar, porém ambos podem existir
somente unidos. Desde este ponto de vista, a onda é, portanto, mar e o mar, onda”
190.
No cristianismo, “a experiência humana é realmente total e plena somente
quando se transcende em Deus, que é sempre maior do que tudo quando os seres
humanos estão dispostos a experimentar”191
.
No entanto, não é fácil descrever os passos, as etapas e as modalidades do
exercício dos preâmbulos de existências da experiência religiosa. Velasco destaca,
por exemplo: a renúncia e o desprendimento, o recolhimento, a solidão e o
silêncio. A renúncia e o desprendimento dos bens deste mundo não se confundem
com sua negação pura e simples ou sua condenação e desqualificação como
obstáculos para a realização humana, mas devem ser entendidos como superação
do apego. O recolhimento distingue-se do ‘ensimesmamento’ do sujeito e de seu
isolamento das pessoas e das realidades que compõem seu mundo192
. Aqui o
silêncio não é sinônimo de mudez nem de opacidade. É a condição para que a
palavra de Deus ressoe no interior do homem, onde permanentemente mora e fala.
Todos esses passos constituem, então, a etapa purificadora do caminho até a
experiência de Deus. No entanto, os esforços humanos são insuficientes. É a hora
da intervenção purificadora do próprio Deus. A hora da ‘noite passiva’ em que o
próprio Deus culmina a obra. Esta hora é indispensável para que o homem possa
unir-se a ele, dilatar o coração, estender seu desejo na medida da realidade infinita
de Deus. Desprendendo-se de qualquer apego que converta Deus em objeto à sua
disposição, purificando seu amor para que se dirija a Deus por ele mesmo e não
pelo que lhe possa outorgar193
.
Esta busca pela unidade com a Realidade Última é o que alguns autores
encontram como o denominador comum, o núcleo de todas as religiões. Alguns,
segundo Mardones, como W. Jäger, o chamam, fazendo um jogo de linguagem
com a expressão ‘filosofia perene’, a ‘sabedoria perene’. Esse centro ou núcleo
190JÄGER, W. Adonde nos lleva nuestro anhelo, p. 93. 191 BINGEMER, M. Clara. Op. cit., p. 214. 192 Cf. VELASCO, J. Martin. Experiência cristã de Deus, p. 33. 193 Cf. Ibid., p. 34.
57
religioso para o qual apontam todas as religiões. Nesse sentido, é uma
religiosidade que sobrepassa ou transcende toda religião ou confissão194
.
Por essa razão, como têm sugerido alguns filósofos e teólogos sensíveis ao
diálogo inter-religioso, ‘a verdade está na profundidade’. Esta frase de Paul
Tillich, retomada hoje por Ricoeur195
, impulsiona uma atitude de esperança de
encontro com outra religião pela via do aprofundamento nesse Centro.
Na tradição cristã, o itinerário espiritual dispõe o homem para um novo
olhar. E esse se distingue pela clareza, pela simplicidade, pela penetração, pela
fruição que caracterizam a atitude contemplativa. Transforma o conhecimento em
conhecimento interno, o saber em sabedoria. Desemboca numa espécie de
conaturalidade da alma com Deus196
.
É, então, da originalidade do interior do homem e da Presença que o habita
que nasce a originalidade do itinerário do homem com ele. Aí, todo esforço do
homem consiste em apenas tornar-se disponível, esvaziando o próprio interior,
fazendo silêncio em torno de si mesmo e no próprio interior, para que ressoe a
Palavra presente no coração197
.
No reconhecimento desta presença originária, no consentimento ao seu
chamado e na entrega despojada, se dá a experiência originária de Deus. A esta a
fenomenologia da religião identifica como atitude religiosa fundamental, que as
diferentes religiões realizam, em caminhos históricos determinados, sob formas
distintas tais como: fé-esperança-caridade (cristianismo), obediência fiel
(Judaísmo), islã, submissão incondicional (Islã); realização da identidade com o
Brahman, ‘tu és isso’ (Bramanismo); bhakti, entrega confiante na divindade
(outras formas de Hinduísmo); nirvana, extinção do sujeito no mais além absoluto
(Budismo). Sem esse reconhecimento fundamental, não há experiência de unidade
com a Realidade Última, com Deus198
. No cristianismo tal experiência acontece
dentro da história de vida do próprio ser humano, e dela brota o seu encontro com o outro Absoluto. Experiência esta que “anula” a distância entre eles. A afirmação de
que o místico não se encontra inserido em seu contexto (social, político,
econômico, religioso) torna-se inconsistente. Assim, essa transformação envolve o
ser completo daquele que a experimenta, modificando totalmente seu conhecer, querer, dentro da realidade em que vive, para que atue de modo a ultrapassar a
194 Cf. MARDONES, J. Maria. Mística transreligiosa en una sociedad de incertidumbre, p. 94. 195Cf. RICOEUR, P. La pensée protestante aujourd’hui. Reforme 2.609 (1995), pp. 7-8 Apud.
DUQUOC, Christian. El único Cristo. La sinfonia diferida. Sal da Térrea, Cantabria, 2005. p. 125. 196 Cf. VELASCO, J. Martin. Experiência cristã de Deus, p. 35. ver notas 13 e 14. 197 Cf. Ibid., p. 36. 198 Cf. Ibid., p. 38.
58
relatividade dos fatos e objetos que o cercam, chegando ao núcleo mais profundo
da concepção de ser humano e de mundo199
.
Além disso, examinando o contexto atual de um fervoroso pluralismo
religioso, podemos nele destacar uma inegável insatisfação com a religiosidade
predominante e institucionalizada, pois, mesmo que a religião ainda pulse no
coração da existência humana, já não são mais as mesmas instituições religiosas
que desempenham a função de transmissão de um código unificador de sentido
social, nem tão pouco regulam a vida pessoal e coletiva dos indivíduos200
.
Isso leva à instauração de uma busca mais pessoal e mais experimental do
divino. Como já indicamos, aí está anunciada uma transformação ou uma
decomposição do religioso, o que devemos reconhecer que é uma manifestação da
consciência religiosa de nosso tempo. Porque a espiritualidade de nossa época não
tem esperado a reforma das igrejas ou instituições religiosas para efetuar sua
própria busca e são muitas as pessoas que já não associam a experiência religiosa
imediata a uma afiliação religiosa201
.
Isto se dá porque
a religião cessa de fornecer aos indivíduos e aos grupos o conjunto das referências,
das normas, dos valores e dos símbolos que lhes permitem dar um sentido à sua vida e às suas experiências. Na modernidade, a tradição religiosa deixa de constituir
um código de sentido que se impõe a todos202
.
Todavia, diante deste contexto, Mardones acredita que a revolução interior
mística se apresenta como solução ou defesa desta realidade203
. Para ele, a
religião, que desce à profundidade interior, descobre e vive a igualdade radical de
todos os seres humanos, está em condições de resistir e fazer frente a esta
epidemia de expulsão do outro204
, contra o reducionismo da condição humana,
pois, a atenção à intimidade, a profundidade de si, ao enfrentamento com nosso
lado obscuro – o que C. G. Jung chamou a ‘sombra’ – devolve ao ser humano toda
sua inteireza e suas polaridades. Não se esconde seu lado sombrio e perigoso que
199 BINGEMER, Maria Clara. O mistério e o mundo, pp. 23-24. 200 Cf. HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido, p. 56ss. 201 Cf. MARDONES, J. Maria. Mística transreligiosa en una sociedad de incertidumbre, p. 95.
Ver notas 10 e 11. 202 HERVIEU-LÉGER, Danièle. Op. cit. p. 38. 203 Cf. MARDONES, J. Maria. Mística transreligiosa en una sociedad de incertidumbre, p. 96. 204 Cf. Ibid., p. 103.
59
pode delirar e conduzir para o pior, se o tem consciente da capacidade humana
para enfrentá-lo e integrá-lo205
.
A transformação religiosa via mística se constitui, assim, em um baluarte
frente aos reducionismos antropológicos de nossa sociedade e cultura. Isso se faz
em resposta à situação pluralista que, “ao acabar com o monopólio religioso, faz
com que fique cada vez mais difícil manter ou construir novamente estruturas de
plausibilidade viáveis para a religião”206
.
No entanto, adverte-se após estas tendências místicas, a reação histórica do
ser humano frente ao mal estar provocado por toda essa realidade, que solicita
uma transformação da religião que passe da ênfase no exterior ao interior. Esse
giro requer um salto na consciência religiosa. Mas, além das dificuldades
inegáveis, arrisca-se um processo de mudança religiosa gigantesca que faz pensar
em um ‘novo tempo eixo’. Porque secularização, “é antes, perda da religião
institucional e nunca perda da religião enquanto tal”207
.
A consciência religiosa, mais lúcida e desperta, pede hoje uma
transformação profunda até o Mistério que a envolve e a sustenta. Se todas as
tradições religiosas têm seus dias contados em sua forma de domínio externo,
aproxima-se um larguíssimo e frutífero caminho quando conduz seus fiéis a uma
experiência que os levem ao mais íntimo de si, ao encontro com a Realidade
Última.
No entanto, para uma melhor compreensão dessa experiência, que
denominamos mística, se faz necessário uma abordagem fenomenológica do
termo ‘mística’, pois, como veremos a seguir, trata-se de “um dos mais confusos
termos que existe atualmente”208
.
2.4 Fenomenologia mística
O termo ‘mística’ tem recebido, a partir da segunda metade do sec. XX, um
especial interesse. Hoje, em plena época, como vimos, de secularização e de
fundamentalismo religioso, de descrença e de indigência religiosa, em plena crise
das instituições religiosas e sob o impacto de novas formas e manifestações da
205 MARDONES, J. Maria. Mística transreligiosa en una sociedad de incertidumbre, p. 104. 206 BERGER, Peter L. O dossel sagrado, p. 162. 207HERVIEU-LÉGER, Danièle. Representam os surtos emocionais contemporâneos o fim da
secularização ou o fim da religião? In: Religião e Sociedade. 18/1, 1997. p. 31. 208TRESMONTANT, Claude. La mística cristiana y el porvenir del hombre. Barcelona: Ed.
Herder, 1979. p. 7.
60
religião, essa se apresenta, contra todo prognóstico, como uma das principais
respostas ao fundamentalismo religioso e ao diálogo inter-religioso. Isso se dá
através de dois campos: o dos estudos e pesquisas e o da experiência mística em
todas as religiões209
.
Visto que, então, este termo utilizado em vários contextos diferentes e em
razão de sua complexidade em não ser um termo unívoco210
, surgem as grandes
dificuldades para sua compreensão. Defrontamo-nos, logo de início, com seu uso
em toda a família dos novos movimentos. No terreno não religioso, apresenta-se,
em virtude de uma analogia funcional, com o sentido de compromisso social de
algo tomado por absoluto211
.
No terreno religioso, no seu interior, utiliza-se este termo para fazer
referência a zonas-limite da experiência humana. São encontrados testemunhos
seculares, uniformes, e concordantes do fato místico nas tradições budista,
hinduísta, muçulmana, judaica e cristã, entre outras212
. Designa-se ao termo uma
conotação completamente diferente do conhecimento ordinário, objetivo e
científico. Por outro lado, ele deve ser interpretado em uma realidade que lhe
negue qualquer trato racional213
.
No entanto, nos mais recentes estudos interdisciplinares, as experiências
religiosas profundas mostram que a mística acompanha, sem especial dificuldade,
o intelecto e a afetividade, a razão e a sensibilidade, a experiência e a reflexão, a
faculdade de pensar e a de amar, o que leva a filósofa Maria Zambrano a
considerar a experiência mística como uma experiência antropológica
fundamental214
.
Ou seja, “a experiência mística não pode ser separada do dado
antropológico, já que ambos estão em profunda unidade para desembocar na
209Cf. TAMAYO, Juan José. A mística como superacion del fundamentalismo. In: RODRIGUEZ,
Francisco J. Sánchez (org.) Mística y sociedad en diálogo, p. 161. 210 Cf. TRESMONTANT, Claude. La mística cristiana y el porvernir del hombre, p. 7. 211 Sobre os novos movimentos, esses são os voltados para o esoterismo, ocultismo, o paranormal
ou parapsiquismo. E no que diz respeito ao não religioso, com o sentindo de compromisso social,
temos a mística de ação, a humanitária e a comunista. Cf. VELASCO. Juan Martin. El fenómeno místico, p. 18. Ver nota 05. 212 Cf. ANCILLI, E. Mística non cristiana, p. 1631. In: ANCILLI, E. (org.). Dizionario
Enciclopédico di Spiritualità. v. 02. Roma: Città Nuova Editrice, 1900; LÓPEZ-GAY. Místique.
In: VILLE, M. et al. (Ed.). Dictionnaire de Spiritualitè. v. X. Paris: Beauchesne, 1980. p. 1893. 213 Cf. VELASCO, J. Martin. El Fenómeno místico, pp. 17-18. 214 Cf. TAMAYO, Juan José. A mística como superacion del fundamentalismo, p.162.
61
diversidade de relações que envolve todo ser humano de acordo com o meio em
que vive”215
.
Se outrora se colocava o acento no caráter ahistórico, desencarnado,
puramente celeste e angelical da mística, hoje se sublinha sua dimensão histórica.
O místico, na compreensão cristã, é aquele quer realiza sua experiência de
profunda intimidade com Deus e a vive em sua realidade procurando transformá-
la, ou seja, “a riqueza e a profundidade interior segundo o cristianismo devem
desembocar sempre, naturalmente, na ação”216
.
Na verdade, pode-se pensar que a mística tem muito de fantasia e move-se
no mundo da imaginação. No entanto, mesmo se assim for, a fantasia e a
imaginação estão carregadas de utopia. A utopia ‘forma parte da história’ e situa-
se no seu mais profundo, mas não para acomodar-se aos ritmos que impõe a
ordem estabelecida, senão para subvertê-la desde seus alicerces, não para
permanecer ao nível do chão, mas para ir à profundidade217
.
a) O termo ‘mística’
A origem do termo ‘mística’, na língua latina, vem da transcrição do termo
grego mystikós, que significa os mistérios (ta mystika). Com o advérbio mystikós
(secretamente), se tem uma família de termos derivados do verbo myein, que
significa a ação de fechar aplicada à boca e aos olhos, possuindo em comum
realidades secretas, ocultas e misteriosas. Essa terminologia vem dos cultos
gregos, não cristãos218
.
O surgimento desse termo no vocabulário cristão, que não aparece nem no
Novo Testamento e nem nos Padres Apostólicos, dá-se a partir do século III pelos
padres do oriente cristão, como adjetivo. Esse vocábulo presente no culto grego é
reinterpretado em função do tema paulino como mistério de Cristo. Com a
passagem do tempo, adquire três sentidos para nossos dias. Em primeiro lugar, o
simbolismo religioso em geral, que se aplica ao significado típico ou alegórico da
215 BINGEMER, Maria Clara. O mistério e o mundo, p. 26. 216 Ibid., p. 23. 217 Sobre a inserção do místico na sociedade, temos o testemunho de alguns cristãos como o de S. João da Cruz, Mestre Eckhart, Marguerite Porete e o sufí Ibn al’Arabí. Como também da carmelita
descalça Cristiana Kauffmann, para quem a mística “é o dinamismo interno de toda atividade
solidaria e criativa do cristianismo. Gera pessoas de incansável entrega aos demais, de capacidade
de transformação das relações interpessoais”. Sobre suas experiências que na maioria das vezes se
tornaram incomodas para suas instituições, Cf. Ibid., pp. 163-164. 218 Cf. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 20.
62
Sagrada Escritura proporciona um sentido espiritual ou “místico”, em
contraposição ao sentido literal. Em segundo, remete ao culto cristão e a seus mais
diferentes elementos, por ser próprio do uso litúrgico. Por último, seu sentido
espiritual e teológico refere-se às verdades inefáveis e mais profundas, ocultas do
cristianismo, objeto de um conhecimento mais íntimo.
No século V, Marcelo de Ancira fala de uma teologia inefável e mística,
assegurando o conhecimento mais íntimo da natureza humana. Foi apenas no final
deste mesmo século que o Pseudo-Dionísio, utilizando-se deste termo, elabora o
primeiro tratado teológico sobre a mística, em oposição ao conhecimento dedutivo
e puramente racional. Admite, como peculiar, o conhecimento religioso
escondido, experimental e imediato, adquirido a partir da relação com Deus219
.
No início do século XV, nos escritos de J. Gerson, o substantivo ‘mística’
aparece pela primeira vez e a teologia mística passou a desdobra-se em um
aspecto prático, e outro especulativo, assegurando o exercício da mística como
conhecimento de Deus por contemplação infusa, e uma reflexão doutrinal sobre a
vida mística220
.
No entanto, foi apenas na sua segunda metade do sec. XVII que se começou
a usar o termo ‘teologia mística’ e a designar com o termo ‘místico’ pessoas que
viviam uma experiência especial ou uma forma peculiar de conhecer a Deus,
conhecido como conhecimento místico221
.
Nesse momento, com a utilização deste substantivo estabelece-se algo
específico. É delimitado um modo de experiência, um tipo de discurso, uma zona
de conhecimento. Com isso, podem identificar-se os fatos isolados das ciências
que abordaram seu estudo. A novidade, então, não está apenas na identificação da
vida mística, mas no seu isolamento e sua objetivação diante dos olhares de quem
começa a estudá-lo de fora, e o fato de que a palavra começa a designar um
fenômeno, um fato em que intervêm vários fatores222
.
Assim, sobre a palavra ‘mística’ devemos partir do princípio de que esta
como a filosofia, a religião e outras, deve ser encarnada em uma cultura
219Cf. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 20. Ver notas 7 e 8. 220Cf. SUTTER, A. Mística. In: ANCILLI, E. (org.). Dizionario Enciclopedico di Spiritualità.
p.1626. 221 Cf. GUERRA, S. Mística. p. 904. In: PIKAZA, X., SILANES, N. El Dios cristiano.
Diccionario Teologico. Salamanca: Secretariado Trinitario, 1992. 222 Cf. VELASCO, J. Martin. Op. cit., p. 21. Ver nota 12.
63
determinada, em uma realidade que se refere à palavra, e que só existe encarnada
e diversificada culturalmente. E é nesse entendimento que o termo mística
não designa a essência de uma experiência humana única, que as diferentes místicas
realizam de forma unívoca, de forma que a variedade e as diferenças se originam pelos esquemas expressivos e interpretativos com que os sujeitos as formulam
223.
Diante da realidade plural a que se refere o termo ‘mística’, e do seu uso
pelos estudiosos do fenômeno religioso, podemos perceber que não existe um
significado preciso. Por isso, não se pode temer traduções diferentes vindas de
várias tradições religiosas, quando se referir à experiência em outras culturas, pois
o reconhecimento de uma realidade plural a que se refere a palavra mística se
exigirá de quem pretende descrevê-los em toda a sua riqueza, em um diálogo que,
sem cair no relativismo, intenta deixar-se conhecer pelo outro, aprender do outro e
abrir-se a uma possível fecundação mútua.
Velasco sintetiza a palavra mística, dizendo que essa é utilizada para
designar um tipo de experiência existente na tradição cristã,
tem sido convertida pelos estudiosos do fenômeno místico em ‘categoria
interpretativa’ do conjunto de experiências, diferentes, diversas, ao mesmo tempo
em que convergentes, presentes em outras tradições religiosas e à margem dessas tradições expressadas nelas como ‘equivalentes homeofórmicos’ e nas que
intervêm, encarnadas nas várias culturas, as invariantes humanos que se
manifestam nessas experiências224
.
Por fim, em razão de toda a pluralidade de significados que carrega o termo
‘mística’, é compreensível, por causa da pluralidade de fenômenos a que se aplica,
e a pluralidade do ponto de vista de vários campos de pesquisa, que não se pode
determinar uma definição imposta pela própria religião, teologia ou filosofia.
No entanto, diante de todo conflito que possa existir em relação à definição
do termo, existe entre os estudiosos do fenômeno religioso, um consenso de que a
experiência que melhor e mais autenticamente expressa a vivência religiosa é a
mística225
. E que a utilização de um método para seu estudo faz-se necessário
para que melhor se consiga identificar o fenômeno místico e suas características.
b) Um método para o estudo do fenômeno místico
223 VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico p. 21. 224 Ibid., p. 48. O mesmo valor de “categoria interpretativa”, Velasco atribui aos termos chaves da
fenomenologia da religião, conferir outra obra sua: Introducion a la fenomenologia de la religión.
Madri, Trotta, 2006. Sobre equivalentes homeofórmicos, conferir PANIKKAR, Raimon. La
experiência filosófica de la Índia. Madri, Trotta, 1997. 225 Cf. TAMAYO, Juan José. A mística como superacion del fundamentalismo, p.162.
64
A procura por um modelo epistemológico para o estudo da mística vem se
desdobrando desde as primeiras décadas do séc. XX, até que, nos anos sessenta, se
apresentaram as propostas, designadas como ‘essencialista’, ‘perenialista’, e
‘universalista’ que têm se revestido de diferentes formulações. Uma das
expressões deste modelo é a doutrina de Radhakrishnan sobre a verdade religiosa,
resumida nestes termos: “Todas as religiões brotam do solo sagrado da mente
humana e estão animadas pelo mesmo espírito. Os diferentes sistemas são intentos
mais ou menos satisfatórios de ajuste da realidade espiritual”226
.
Para Radhakrishnan, “o ser humano só pode conhecer a Deus se separa seus
sentidos e sua mente do mundo da experiência externa e concentra suas energias
na realidade interior” 227
, para que possa dar conta da sua verdadeira natureza no
íntimo de sua própria identidade, pois, quando se possui o conhecimento de si
mesmo, são destruídas as ataduras do coração e é transcendida a finitude. Assim,
o valor da religião consiste em ser capaz de ativar no ser humano essas
potencialidades.
No modelo “essencialista”, colaboram a maior parte dos autores que se têm
ocupado da mística a partir da ciência das religiões, na primeira metade do séc.
XX. Esses estudiosos foram conduzidos por um princípio epistemológico comum,
“o pressuposto de que todas as manifestações da mística são as expressões
variadas de uma idêntica experiência ou, ao menos, de um reduzido número de
experiências”228
. As razões para esta afirmação estão nas semelhanças dos relatos
das diferentes tradições místicas e de uma analise do fenômeno místico.
No entanto, diante das inúmeras críticas a este modelo, surge outro modelo
de um novo paradigma epistemológico, o “construtivista”. E essa nova postura
diante da experiência mística tem como proposta principal compreender a
experiência mística inserindo o místico em seu contexto considerado pluriforme,
percebendo a relação entre o místico e sua meta, suas dificuldades e suas
experiências cotidianas. Nesse modelo descarta-se a possibilidade de existirem
experiências que não sejam mediadas, que sejam puras229
. Descartam-se também
226 RADAKRISHNAN, S. East and West in Religio, Allen and Unwin, London, 1933, p. 19. Apud.
VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, pp. 36-37. 227 RADAKRISHNAN, S. La religion y el futuro del hombre, Alianza, Madri, 1996, p. 133. Apud.
VELASCO, J. Martin, Op. cit. p. 37. 228 Ibid., p. 38. Ver nota n. 13. 229 Cf. Ibid., p. 40.
65
as críticas que dizem ser este modelo incapaz de explicar fatos de ruptura com a
tradição e sua tendência ao reducionismo.
Destaca-se a intervenção da linguagem, a existência de experiências
sensitivas e o possível condicionamento cultural que possa intervir na ação
humana, no entanto, o problema parece situar-se em outro lugar, visto que “toda
experiência é uma experiência interpretada e, em todo sentido depende da resposta
do contexto e é estimulado por ele” 230
.
A experiência mística é configurada por conceitos que o místico já de
antemão possui. Velasco cita Ricoeur, que diz: “toda experiência é uma síntese
ativa de presença e de interpretação”231
. Afirma assim, que, na experiência
mística, o sujeito se faz presente com seus esquemas de compreensão, hábitos etc.
E que tudo isto configura quem é o sujeito na sua relação com o transcendente,
“pois, o ser que somos não se esgota na forma histórica, certamente condicionada,
de realizar esse ser”232
.
Desta forma, abrem-se oportunidades que permitem perceber como se dão as
experiências místicas nas diferentes tradições religiosas. Dentre os elementos que
as configuram, estão presentes também as doutrinas de sua própria tradição, que
não só se limitam a intermediá-la como também “afetam a substância mesma da
experiência”233
.
Os limites do modelo construtivista estão nas críticas em que assinalam a
existência de casos de experiências puras, fazendo referência às ‘experiências sem
conteúdo’, ‘acontecimentos de pura consciência’, negando os fatores presentes em
seu contexto cultural e em sua tradição234
. No entanto, não existem “experiências
puras”, pois estas não poderiam dar-se, já que toda experiência humana comporta
sua linguagem, história e cultura. Mesmo que estas não a esgotem por causa de
determinada mediação235
.
Está claro que a interpretação construtivista da experiência mística
influencia também o pluralismo religioso em seu terreno cultural e religioso, bem
230 VELASCO, J. Martin, El fenómeno místico, p. 42. 231 Esta expressão de P. Ricouer foi citada por J. SERVAIS em “Faire I’expérience de Dieu?” In: Nouvelle Reveu Théologique. nº 105, 1983, p. 413. Apud. VELASCO, J. Martin. A experiência
cristã de Deus, p. 47. 232 Ibid., p. 43. 233 Id., El fenómeno místico, pp. 40-41. 234 Cf. Ibid., p.42. 235 Cf. Ibid., p. 43.
66
como também nas conclusões da antropologia cultural sobre o “alcance noético”
da cultura236
.
E é justamente nessa relação da mística com a religião que os argumentos de
muitos estudiosos contra o método construtivista estão baseados. Esses estão
certos no entendimento de que a existência de semelhanças entre as diferentes
tradições místicas permite identificar que todas são místicas, mesmo diante de
diferentes contextos culturais. Assim, possibilitam estudos comparados entre
religião e mística.
Isso se deve ao fato de que representantes de diferentes tradições religiosas
encontrem-se para dialogar, e assumam em sua prática religiosa, experiências de
outras tradições, assim, como fez Thomas Merton237
. Para esse religioso, o
monaquismo Oriental, a sabedoria do Oriente e seu pendor para valorizar o
invisível, o Absoluto, cada vez mais o atraíam para um estudo aprofundado que
traria para o cristianismo ocidental novas riquezas por vezes esquecidas ou postas
de lado.
Thomas Merton, por ocasião de um convite que recebeu para participar de
um Congresso Ecumênico, organizado pelos beneditinos em Bancoc, na
Tailândia, assim escreveu em seu diário:
Vou com a mente de todo aberta. Sem ilusões especiais, espero. Minha esperança é simplesmente desfrutar da longa viagem, dela tirar proveito, aprender, mudar.
Talvez encontrar alguma coisa ou alguém que me ajude a avançar em minha
própria busca espiritual 238
.
Diante destas palavras, entendemos que a mística, bem como a religião,
realiza-se na pluralidade cultural condicionada nas próprias tradições, porque
existe
um conjunto de variantes humanas, só realizáveis historicamente. Portanto, na
diversidade das tradições e das culturas, nenhum pensamento humano é capaz de perceber e descrever ahistoricamente, aculturalmente, uma noção que expresse uma
essência intemporal, absoluta239
.
Infelizmente, em algum momento, na teoria sobre a religião, tem-se
esquecido de que as mais variadas formas religiosas são plurais, por pretender
uma definição de religião que contenha a essência realizada em todas essas
236 Cf. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 39. 237 Cf. MERTON, Thomas. Merton na intimidade: sua vida em seus diários. Editores: Patrick Hart
e Jonathan Montaldo. Rio de Janeiro: Fisus, 2001. 238 Ibid., p. 380. 239 Id., El fenómeno místico, p. 43.
67
formas. No entanto, a tomada de consciência da pluralidade das formas não deve
nos ocultar a existência do fato humano que todas elas constituem.
Nesse novo modelo, coloca-se em questão pressupostos que já eram comuns
entre os estudiosos anteriores, quando se dizia que todas as experiências místicas
são as mesmas ou similares. Procuram-se reconhecer nela suas diferenças, não
valorizando uma em detrimento de outra. O que leva muitos estudiosos a
proporem uma via média entre as posturas essencialista e a construtivista240
, pois
as manifestações religiosas e as não religiosas são todas formas que revelam as
riquezas da experiência mística.
Assim, podemos dizer que a “mística é sempre religiosa e a religião é
sempre mística”241
. Porque, em toda experiência religiosa, encontram-se
elementos místicos. E como vimos, no item anterior, apenas um método aplicado
a partir do próprio contexto histórico é capaz de identificar um fenômeno místico.
Reconhecendo as diferenças existentes entre tantas experiências místicas,
procuraremos, no item seguinte, descobrir se existe uma mística genuinamente
cristã.
2.5 A mística cristã
Quando pretendemos descrever a mística no interior do cristianismo,
deparamo-nos com algumas dificuldades. Primeiro, pela legitimidade do
fenômeno místico na ação cristã. Existe mesmo uma mística que seja
genuinamente cristã? E a segunda dificuldade encontra-se na enorme variedade de
formas de que se tem revestido a mística na história do cristianismo oriental e
ocidental.
Como temos visto, não poucos teólogos se inclinam por uma resposta
negativa, quando se referem ao fato de existir na tradição cristã algo que possa ser
atribuído ao fenômeno místico242
. A razão para esta resposta encontra-se, como
também já havíamos notado, no fato de que o termo ‘mística’ não está no Novo
240 Cf. VELASCO, J. Martin, El fenómeno místico, p. 41. 241 Esta afirmação de Hügel parte de um estudo apurado que o mesmo realizou sobre a vida mística
de Sta. Catarina de Gênova. Cf. HÜGEL, Fr. von. The mystical element of religion, as studied in
Saint Catherine of Genoa and friends. J.M. Dent, London, 1908, 2º v. Apud. VELASCO, J. Martin.
El fenómeno místico, p. 31. 242 Conferir o capítulo anterior.
68
Testamento e nem nos Padre Apostólicos, vindo a aparecer apenas na metade do
século III.
Isso nos leva a perceber que todas essas razões contribuíram para que
fossem excluídas da experiência mística as fontes cristãs, encontrando apenas a
explicação para o misticismo nas influências da gnosis e no neoplatonismo. E
assim, também se encontra na história da mística cristã, uma oposição entre a
mística psicológica introspectiva e a mística objetiva243
.
No entanto, a partir de uma compreensão ampla do significado da ‘mística’,
é possível encontrar no Novo Testamento a peculiaridade própria da mística
cristã, visto que toda experiência mística no cristianismo tem sua origem na vida e
na experiência de Jesus Cristo e deve ter suas modalidades revestidas pela própria
experiência de profunda intimidade que viveu o Mestre com o Pai, Ele se torna,
assim, para o cristão, o paradigma da experiência mística.
A questão é se, à semelhança do que diz o Novo Testamento sobre a vida do
cristão, a experiência sobre a qual descansam os escritos do Novo Testamento e o
conhecimento de Deus que se propõe não permitem falar de uma dimensão
mística no cristianismo244
.
A possibilidade de resposta para essa questão encontra-se na própria
experiência que designa uma realidade com raízes próprias, mas não exclusivas
nos textos neotestamentárias, pois esta realidade se dá assumida no que se tem
chamado tradicionalmente cognitio Dei experimentalis, ou seja, aquele profundo
conhecimento experiencial de Deus de que os místicos cristãos têm sido
testemunhos eminentes na história 245
.
A tradição pós-apostólica pode ser considerada como a memória coletiva daquelas
experiências privilegiadas que constituíram a revelação fundacional, que alcançou seu clímax definitivo e insuperável com Jesus Cristo e a vinda do Espírito Santo
246.
Quando procuramos pesquisar as características da mística cristã,
percebemos que, na perspectiva de muitas teologias cristãs sobre a mística, tem-se
destacado uma de suas características a referência constante da experiência do
Mistério. Tal experiência apareceria mais claramente nas formas mais originarias
243 Cf. GENIL, M. R. Del. Mística. In: BORRIELLO, L. et al., Dicionário de mística. São Paulo: Paulus: Edições Loyola, 2003. pp. 707-709. 244Cf. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 212. 245Cf. ELENA, Santiago del Cura. Mística Cristiana: su enraizamiento neotestamentario en
perspectiva ecuménica. In: VELASCO, J. Martin (org.). La experiencia mística. Estudios
interdisciplinar. Madri: Trotta. 2004. p. 130. 246 BINGEMER, Maria Clara. O mistério e o mundo, 178.
69
da mística cristã, as quais representam os textos neotestamentarios e os estudos
dos Padres e que teriam sido eclipsadas pela influência do neoplatonismo247
.
No entanto, essa presença do conteúdo sobre a vivência do místico é algo
comum a todas as formas de mística religiosa autêntica, pois possuem como
essência a condição
extática da experiência, que surge e vive da presença desse mais além do sujeito que só se faz presente descentrando-o em sua direção por meio da transcendência.
O que na realidade constitui a originalidade da experiência mística cristã é a
peculiaridade da configuração desse Mistério. Como todo o verdadeiramente nuclear, esta contém infinidade de aspectos que debulham essa verdadeira raiz da
identidade da mística cristã248
.
Para o cristão, o Mistério é, em primeiro lugar, o Deus pessoal de uma
tradição monoteísta e profética. E, ao mesmo tempo, é o mistério do Deus
encarnado: Jesus Cristo, em quem o cristão tem acesso ao Pai no Espírito. Em
terceiro lugar, o Mistério que, em virtude da encarnação e em continuidade com a
revelação veterotestamentária de Deus, desvela-se na história dos homens e a
encaminha para si como seu fim escatológico. Por último, o Mistério que convoca
os crentes à comunhão com a Igreja como gérmen do Reino de Deus249
.
Os elementos do Mistério cristão consistem na adesão do crente a um
Mistério que o dispõe à revelação, aspectos do Mistério que regulam a experiência
cristã realizada pelos místicos de forma eminente. A relação da experiência
mística com a fé não consiste em uma forma de conhecimento que supere o
conhecimento de Deus pela fé ou o substitua.
Há uma dimensão mística inicial da fé e da caridade que é uma real experiência de
Deus no nível da vida cristã fervorosa. A experiência propriamente dita se
inscreverá então nessa vida cristã que, por comportar a experiência da fé, está já
dotada de germens místicos e pode prosseguir e crescer até seu coroamente250
.
A importância, nessa relação, move-se no interior mesmo da fé e essa nunca
pode suplantá-la, pois a experiência mística realiza a mesma harmonia de aspectos
aparentemente contrários que constituem a originalidade da fé cristã. Como a fé, a
mística cristã está ligada ao Mistério, que surge de sua manifestação na
obscuridade, nunca inteiramente dada. No entanto,
247 Cf. VELASCO, J. Martin (org.). La experiencia mística. p. 217. Recentemente, a insistência na regulamentação da experiência pelo Mistério, tem como principais representantes, teólogos como
H. de Lubac, H. Urs von Balthasar, L. Bouyer. Estes fazem frente ao perigo de psicologização da
mística cristã que supõe uma interpretação fenomenológica, psicológica da experiência mística. 248 VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 217. 249 Cf. Ibid., p. 218. 250 BINGEMER, M. Clara. O mistério e o mundo, p. 297.
70
esta experiência não se realiza na simples prolongação da interioridade abismal do
sujeito, mas requer referência à revelação, à Palavra com a qual esse Mistério
desperta a profundidade do homem e a remete ao mais além sempre inalcançável,
na profundidade do sujeito e na palavra que o provoca251
.
Mística e Mistério, nos místicos cristãos, possuem uma configuração que é
vivamente personalizada e de caráter eminentemente pessoal. O conteúdo dessa
experiência que vem dada pela fé cristã e sua ‘representação’ é o mistério de Deus
nos termos do Deus único, revelado no Novo Testamento, que como Pai, pela
ação do Filho, nos comunica seu Espírito. Essa configuração trinitária do
‘conteúdo’ da experiência é o que a distingue das místicas do Absoluto da maior
parte das tradições orientais e da mística ‘apenas’ monoteísta do islamismo, por
mais parentesco que com elas possam ter as expressões de alguns místicos
cristãos252
.
No entanto, não é raro encontrar descrições que apresentam como próprios
da mística cristã características que se encontram nas místicas de outras religiões,
porém formulados e entendidos em termos e modalidades outros que impõem a
peculiaridade de cada uma delas.
É certo, todavia, que a originalidade que outorga à mística cristã sua
referência a Jesus Cristo tem suas diferentes propriedades e lhe confere uma clara
peculiaridade. E sem pretender que sejam características exclusivas do
cristianismo, reconhece-se entre os estudiosos dois aspectos que afirmam a
verdadeira originalidade da mística cristã.
O primeiro aspecto refere-se à sua dimensão eclesial, à qual frequentemente
foi atribuído um individualismo derivado de sua insistência na interioridade, na
subjetividade e na condição da relação com Deus. As religiões de orientação
mística: hinduísmo, budismo, taoísmo, são caracterizadas, nas tipologias que
insistem nesse aspecto, como religiões individualistas, frente à condição mais
claramente comunitária das religiões de orientação profética253
.
A mística cristã comporta uma dimensão eclesial, o que, no entanto, não
significa que um místico cristão necessite como critério de autenticidade, o
posicionamento da Igreja e a ortodoxia garantida pelo magistério. Essa dimensão
deriva-se da natureza eclesial, em seu modo de realização, da fé vivida pelo
251 VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 219. 252 Cf. Ibid., p. 221. 253 Cf. Ibid., p. 231.
71
místico e, em definitiva, do fato de que a união com Deus que procura ter lugar
em Jesus Cristo, opera a incorporação do crente à sua morte e sua ressurreição.
E essa inserção ‘crístico-eclesial’ do crente cristão abre sua experiência de
místico à atenção e ao cuidado dos outros e o dota de dinamismo evangelizador
que está na raiz de boa parte de seus esforços por comunicar sua própria
experiência. A união com Deus ocorre para eles, os místicos, em beneficio de
outros e o amor de Deus que os inunda e corre através de suas vidas é de
extraordinário valor para a humanidade.
O segundo aspecto se encontra quando nos deparamos com uma mística que
se volta para a ética. Segundo Schweitzer, a mística de Paulo, como mística do ser
em Cristo, mantém uma estreita relação com a ética. Isso porque a ética de Paulo
não é outra coisa senão sua mística do ser em Cristo compreendida desde o ponto
de vista do querer254
.
Assim, a experiência mística para os místicos cristãos consiste, sobretudo,
na união de semelhança que tem sua raiz na vida teologal e que se encarna na
união da própria vontade com a de Deus e, mais concretamente no amor ao
próximo, como expressão e meio de realização do amor de Deus255
.
Essa experiência pode ser compreendida somente a partir do desapego, do vazio em todo o eu empírico, ou seja, em todo aquele complexo de volições,
pensamentos e sentimentos que nos caracteriza em cada momento, mas que de
forma nenhuma nos constitui naquilo que é essencial, mudando incessantemente. O parâmetro de tal vida envolvida nesta experiência será o seguimento de Jesus,
atendendo ao chamado de “viver com Ele viveu”256
.
Veremos a seguir que a mística cristã tem sua raiz única apresentada nos
textos neotestamentário, na experiência de Jesus de Nazaré.
a) O enraizamento da mística cristã
O termo ‘mística’ refere-se a uma realidade que possui raízes próprias no
texto neotestamentário e está presente no que se tem chamado cognitio Dei
experimentalis. Este conhecimento refere-se ao “conhecimento de Deus não
254 Cf. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 232. A. Schweitzer um grande estudioso da
obra paulina é muito citado por Velasco quando este se refere a Paulo. A obra citada deste autor é:
Mystik des Apostels Paulus. Mohr-Siebeck. Tübingen, 1981. 255 Cf. Ibid., p. 233. 256 BINGEMER, Maria Clara. O mistério e o mundo, p. 28.
72
reduzido a dimensões intelectuais dos processos cognitivos, mas marcado
decisivamente pelos aspectos vivenciais”257
.
Privilegiar os termos ‘vivência’ ou ‘experiência’ significa expressar como a
mística supera limites secamente intelectuais, racionais ou abstratos no
conhecimento de Deus. Esta dimensão experiencial do ‘conhecimento religioso’
de Deus que abarca a totalidade do sujeito humano implica, no Novo Testamento,
o reconhecimento crente de Jesus Cristo como revelação plena e definitiva de
Deus. A experiência histórica de Jesus esteve animada do princípio ao fim pelo
poder e o dinamismo do Espírito, tendo uma experiência muito profunda do
mistério de Deus Pai.
O termo ‘mística’, que possui uma grande flexibilidade terminológica
possibilita também muitas variações de significado e de conteúdo258
. No entanto, a
partir da compreensão dos elementos histórico-proféticos, fica claro que não se
justificam os traços que antes apresentavam metodologicamente a questão, desde
uma contraposição prévia e alternativa entre ‘interioridade’ e ‘história’. Parece
mais correto acolher o que o Novo Testamento tem a dizer sobre o cognitio Dei
experimentalis como síntese, o que posteriormente se denominará como ‘mística’,
pois é certo que a relação de Jesus de Nazaré, única e original, com Deus implica
elementos fundamentais para toda experiência cristã de Deus259
.
b) Elementos da mística cristã
A experiência religiosa, no cristianismo, baseia-se no acontecimento
revelador do Novo Testamento, em que Deus Pai, por meio do Filho Jesus Cristo,
nos outorga uma vida nova no Espírito Santo. Posteriormente se pôde dizer que
isto se funda em um acontecimento ‘Trinitário da salvação’. Esta é uma estrutura
que marca o ‘sentido espiritual’ e a ‘experiência mística’ de Deus. E é justamente
neste acontecimento e na realidade do Deus Trinitário que se encontra a
peculiaridade dos traços místicos da tradição cristã.
A experiência cristã encontra na história de Jesus de Nazaré e no significado
salvífico que encerra sua vida seu elemento mais decisivo. “Recentrar-se nele,
257 VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 132. 258 Cf. Ibid., p. 133. 259 Cf. ELENA, Santiago del Cura. Mística Cristiana, p. 133.
73
constitui o primeiro critério de discernimento na relação entre a mística e
cristianismo”260
.
Um dos motivos da reserva protestante com a ‘mística’ encontra-se no que
eles entendem por obscurecimento que esta causa à mediação salvadora de Jesus
Cristo. Para uma corrente do protestantismo, a ‘mística’ implicaria uma tendência
à autorredenção. Felizmente, hoje, se procura ir além destas contraposições
meramente confessionais, quando os místicos cristãos, por meio de suas
experiências, desmentem toda pretensão autossalvífica. No mesmo
protestantismo, em outra corrente, pretendem por outro lado, superar as exclusões
entre ‘mística’ e ‘cristologia’, entre o reconhecimento crente de Cristo ‘por nós’,
entre o objetivismo e o subjetivismo salvífico261
.
Isso possibilita uma grande abertura à mística neotestamentária, livre de
preconceitos. Segundo o evangelho de João, para o cristão que aceita o convite de
seguir a Jesus, essa aceitação significa não só reconhecer que este itinerário leva
ao Pai, mas que também o introduz no mistério da presença recíproca que
acontece entre ambos262
. “Essa união tão estreita entre o Pai-Filho, que se abre
aos discípulos de Jesus, pode chamar-se imanência mútua”263
.
Aqui se inspira a convicção tão importante na experiência dos místicos
cristãos de chamar-se em Cristo e de Cristo, ou seja, de uma ideia já tradicional de
uma ‘inabitação’ ou de uma ‘união mística’. Essa imanência não é estática e nem
estéril, pois tem consequências no compromisso ético, no vigor missionário e na
permanência do amor. O amor fraternal recíproco outorga à relação vertical Deus-
Cristo-discípulos um componente horizontal decisivo e irrenunciável.
A mística joanina é cristológica. O Cristão vive sua própria existência ‘em
Cristo’, que se dá entre ambos como uma reciprocidade de imanência. ‘Viver em
Cristo’ é, ao mesmo tempo, uma vida ‘no Espírito’, pois essa presença implica
simultaneamente a inabitação do Espírito de Deus neles264
. A vida do cristão,
enquanto seguimento de Cristo e permanência nele, equivale a viver no Espírito
de Deus e a deixar levar-se por suas inspirações.
260 ELENA, Santiago del Cura. Mística Cristiana, p. 144. 261 Cf. Id., p. 145. 262 Cf. Jo 14,9-12. 263ELENA, Santiago del Cura. Op. cit., p. 150. 264 Cf. Rm 8,1-11.
74
“A vida cristã é uma vida ‘espiritual’ no sentido mais estreito do termo, ou
seja, possibilitada, mantida e plenificada pelo poder e força do Espírito Santo”265
.
No entanto, nem sempre, na história do cristianismo ocidental, tem-se mantido
uma consciência clara da vinculação estreita entre a realidade do Espírito
(pneumatologia) e a vida ‘no Espírito’ (espiritualidade). Seu lamentado
‘esquecimento’ afetou tanto a tradição protestante como a católica. Em ambas,
todavia, dá-se, desde alguns anos, um redescobrimento benéfico para a vida
eclesial, para a reflexão teológica e para a vida espiritual.
É certo que o papel do Espírito na vida e no ministério de Jesus permite
entender melhor a verdade radical de sua condição humana e torna possível
apresentar a vida cristã como um caminho de seguimento depois dos sinais
deixados por ele266
. Essa é a força que permite viver, o que guia, anima, discerne e
purifica. Tudo isso acontece de tal modo que eles ‘no Espírito’ gritam: Abba, Pai
267. O Espírito que habita ‘nos’ crentes e lhes outorga sua nova identidade é o
Espírito de Deus e de Cristo. Precisamente por isso os crentes encontram-se ‘em
Cristo’ e ‘no Espírito’268
. Tomar, então, conhecimento experiencial de Deus
(cognitio Dei experimentalis) como resumo da mística é algo que convém ter em
conta que no conhecer a Deus, a fé desempenha um papel central, pois só quem
ama a Deus é conhecido por ele e que este conhecimento-amor implica a pessoa
inteira.
Enquanto na tradição católica tem-se posto ênfase em defender a
possibilidade de um ‘conhecimento natural’ de Deus, grande parte da teologia
protestante tem separado radicalmente, conhecimento de Deus e natureza,
sobretudo por motivos teológicos.
No entanto, não se trata tanto de uma discussão epistemológica quanto de
um tema que incide diretamente na existência cristã, pois é certo que as dimensões
místicas do conhecer a Deus ajudariam a superar as contraposições unilaterais.
O conhecimento místico-religioso de Deus implica, no Novo Testamento,
reconhecimento, adoração e ação de graças269
. Aqui nos defrontamos com uma
experiência que se encontra muito longe de um tipo de conhecer alheio ao amor e
265 ELENA, Santiago del Cura. Mística Cristiana, p. 160. 266 Cf. Id., p. 162. 267 Cf. Rm 8,15. 268 Cf. ELENA, Santiago del Cura. Op. cit., p. 164. 269 Cf. Rm 1,20-22.
75
de um saber que se limita a tomar nota, de maneira ascética e neutra, de que existe
um objeto chamado Deus. Esta experiência leva a pessoa que a vive ao encontro
do outro, e como veremos a seguir, conduz a religião para ir além de si mesma.
2.6 A religião para além de si mesma
Neste item, procuraremos traçar um caminho que nos aponte a possibilidade
de que as religiões podem ir mais além de si mesmas, a partir da compreensão de
que para este percurso não seja necessário negar a irredutível especificidade de
cada uma, pois seu caráter único significa sua razão de ser no encontro inter-
religioso, fazendo com que cada contribuição seja indispensável270
. Na origem das
religiões, como já constamos, está a existência da experiência mística, vivida em
toda a sua radicalidade pelos fundadores e pelos seus primeiros seguidores.
Essa constatação confirma que cada religião está em um ‘entre’: entre
Aquele que o precede e Aquele para o que conduz. E cada tradição recorre a este
‘entre’ de um modo diverso, proporcionando um acesso irrepetível à Realidade
primeira e última. Cada uma delas é portadora de uma aurora única, inegociável e
irredutível que recorda o Mistério de uma forma insubstituível.
O reaparecimento, o reemergir – mais do que a volta – do religioso, do Sagrado, a
sede pelo Mistério e pela mística em distintas formas aparecendo após o banimento ensaiado pela secularização denota uma volta (ou uma permanência) da
necessidade contemplativa, um aparentemente novo emergir de valores como a
gratuidade, o desejo, o sentimento e a redescoberta, em nova dimensão, da natureza
e da relação do homem com o planeta271
.
E são os místicos nas religiões os primeiros a reconhecerem que a revelação
de Deus tem se dado por muitas mediações, pois eles conseguem “ver na história e
em todas as articulações da existência humana este fio condutor divino que tudo
une, tudo ordena e tudo eleva”272
.
Esses reafirmam que a autêntica fonte das religiões encontra-se na
experiência mística, pois todas fazem a mesma experiência de ser, porém a
270 Cf. MELLONI, Javier. Las religiones, más allá de sí mismas, p. 230. 271 BINGEMER, Maria Clara. O mistério e o mundo, p. 159. No segundo capítulo deste livro, que
tem como tema ‘Cultura secular e crise da religião’, Maria Clara nos apresenta, em meio a tantos
desafios, a religião como grande força que atinge e afeta o desejo do ser humano e os seus
desdobramentos em nossa sociedade. Cf. pp. 98-184. 272 BOFF, Leonardo. Mestre Eckhart: mística de ser e de não ter. Petrópolis: Vozes, 1983. p. 15.
76
expressam segundo a época, cultura, educação e religião que vivenciam273
. Sem
desaparecer as diferenças entre as tradições religiosas, nos diz Amaladoss que
“elas vivenciam o mesmo Deus. Mas não têm a mesma experiência”274
.
Nessa experiência, como nos afirma Thomas Merton, existe uma “real
semelhança existencial”, que permite uma “comunicação em profundidade”275
, o
que nos leva a afirmar com Bergson que a “mística constitui a essência da
religião, a mais alta expressão possível da religiosidade”276
e com Basset que esse
é o nível mais profundo para o diálogo entre as religiões277
.
Assim, os crentes de cada tradição, na medida em que assumem sua
verdadeira identidade religiosa, são capazes de reconhecer e acolher o outro em
sua diferença sem negar a sua própria experiência.
Diante dessa experiência, o psicólogo William James entende que a raiz e o
centro da religião pessoal encontram-se nos estados de consciência mística. E
assim, caracteriza a mística com quatro traços assumidos com unanimidade pelos
estudos do fenômeno místico: inefabilidade, natureza do conhecimento,
transitoriedade e passividade278
.
No entanto, outros autores têm incorporado novas características, como:
visão unificadora ou consciência de unidade do todo, sentido de superação do
tempo, sentimento de felicidade e alegria, condição paradoxal, apreensão do Uno
como a subjetividade interna de todas as coisas, sentido de objetividade ou
realidade, integração dos diferentes elementos que intervêm na experiência
mística279
.
273 Cf. AGUILAR, Emilio Galindo. Musulmanes y cristianos conducidos por el Espíritu. In:
MELLONI, Javier. El no-lugar del encontro religioso, p. 173. 274 AMALADOSS, Michael. Pela estrada da vida. São Paulo: Paulinas, 1996. p. 88. A experiência
realizada pela pessoa é única e específica em cada tradição. Pois, segundo Amaladoss: “Todas as
comunidades religiosas são comunidades de fé, mas o objeto de sua fé não é apenas Deus em
abstrato, mas Deus vivenciado numa tradição religiosa especifica”. Ibid., p. 91. 275 MERTON, Thomas. O diário da Ásia. Belo Horizonte, Vega, 1978. p. 248. Aqui segundo
Merton, ocorre uma comunicação além de uma simples manifestação de conhecimento intelectual
ou formulações, os interlocutores “se encontram além de suas próprias palavras e de seu próprio
entendimento, no silêncio de uma experiência máxima, suprema, que possivelmente não poderia
ocorrer se eles não se tivessem encontrado e falado”. 276 BERGSON, H. Las dos fuentes de la moral y de la religion. Madri, Tecnos, 1996. p. 280. Para
Bergson “O misticismo é uma tomada de contato, e, por conseguinte, uma causalidade parcial,
com o esforço criador que manifesta a vida. Esse esforço é de Deus, se não o próprio Deus. O grande místico seria uma individualidade que franquearia os limites consignados a espécie por sua
materialidade, que continuaria e prolongaria, assim, a ação divina”. 277 Cf. BASSET, Jean-Claude. El diálogo interreligioso. Desclée: Bilbao, 1999. p. 354. 278 Cf. JAMES, William. Las variedades de la vida religiosa. Península: Barcelona, 1996. pp. 285-
287. 279 Cf. TAMAYO, Juan José. A mística como superacion del fundamentalismo, p. 170.
77
Como veremos mais adiante, J. Martin Velasco descreve o fenômeno
místico com estas características: caráter holístico, totalizador e englobante,
passividade, imediatez, experiência fruitiva, simplicidade ou sinceridade,
inefabilidade e experiência certa e obscura280
. Velasco e Luce López-Baralt
ressaltam a dimensão transformadora da experiência mística281
.
Entretanto, das muitas características que possa ter a mística, ela possui
elementos comuns em todas as religiões e pode ser um lugar de convergência das
distintas experiências religiosas, pois todas elas se resumem na relação direta e no
conhecimento direto do divino. A consciência mística é unitiva, não dual,
integradora, não desagregadora; as pessoas místicas se sentem invadidas e
transformadas pelo transcendente. Apesar da fugacidade da experiência mística,
seus frutos perduram e seus resultados se deixam sentir nas atitudes de quem as
vive: serenidade e equilíbrio, paz interior e paciência, alegria e compaixão,
desinteresses e simplicidade, amabilidade e acolhida282
.
Todas essas características reafirmam o que significa para Melloni a mística.
Para ele, “a mística é a ou-topia, o ‘não-lugar’, das religiões e de todo diálogo, na
medida em que aponta um campo de ação que está mais além de toda mediação e,
ao mesmo tempo, é o lugar mais essencial e originário das diversas crenças e
caminhos”283
.
Sendo esta região o lugar do seu nascedouro, é também o lugar em que
podem se encontrar para aprender a escutar-se e a respeitar-se, e assim,
colaborarem juntas na transformação do humano, da sociedade.
Porque, segundo esse autor, toda religião está construída sobre dois polos:
o lugar conhecido por onde começam – sua história e seu universo conceitual e
simbólico que configuram uma determinada experiência religiosa – e o não-lugar para o que se dirigem, essas regiões inacessíveis e inefáveis tanto para os símbolos
como para os conceitos, cume que é muito mais que um lugar e também mais que
um estado284
.
Assim, cada religião é o veículo supremo em direção ao Absoluto. Não
obstante, por detrás e mais além das características externas, como o credo, os
280 Cf. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, pp. 319-356. Na segunda parte de nossa
pesquisa desenvolveremos estas características apresentadas por Velasco. Abordaremos o fenômeno místico a partir de sua reflexão. 281 Cf. Ibid., p. 319. Cf., a obra de López-Baralt sobre este tema é: El sol a media noche. La
experiencia mística: tradición y actualidad. Madri, Trotta, 1996. 282 Cf. TAMAYO, Juan José. A mística como superacion del fundamentalismo, p. 179 283 MELLONI, Javier. Las religiones, más allá de sí mismas, p. 09. 284 Ibid.
78
ritos, etc., pelas quais é reconhecida e através das quais é transmitida, contém em
seu mesmo interior um chamado urgente aos seus seguidores a ir mais além de si
mesma, na medida em que tem por essência ser um sinal do Absoluto285
, o que
proporcionará, no diálogo inter-religioso, não deter-se “nas diferenças, às vezes
profundas, mas confiar-se com humildade e confiança a Deus, que é maior do que
o nosso coração”286
.
Nessa experiência, o ser humano é provocado a um aprofundamento de si, e
nesse encontro consigo, descobre-se no desapego que o impulsiona para o
exercício da alteridade287
. Ou seja, para a descoberta do outro, pois a experiência
mística não se fecha no encontro amoroso do fiel com Deus. Ao contrário, “Deus
vem a ele e ele quer perder-se em Deus. E Deus sempre o reenvia ao outro
homem”288
. Deus não cessa de convidar o homem a descentralizar-se, a sair de si,
a reconhecer o outro e, nesse reconhecimento, chegar ao Totalmente Outro289
.
Esta é a razão de ser das religiões serem capazes de indicar caminhos para a
Vida290
. Por isso, todas incidem nas três dimensões que constituem o ser humano:
sua afetividade, sua capacidade cognitiva e sua ação no mundo291
. E nestes três
campos, todos os seres humanos se acham, e, a partir deles, cada pessoa é
configurada de um modo determinado.
As tradições religiosas oferecem um modo de trabalhar sobre estas três
dimensões, de um jeito que se vá dando forma à transformação que tem que fazer
continuamente. Essa experiência acontece a partir da purificação dos afetos e a
iluminação da inteligência para que a ação de cada pessoa sobre o mundo seja o
mais transparente, pura e desinteressada possível292
.
Nos exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola, encontramos os
mesmos elementos, quando, ao longo da segunda semana, se pede o
285 Cf. SAUX, Henri Le. L’altra riba. Sannyasa o La crida al desert. Claret. Barcelona, 1980, p. 52
Apud. MELLONI, Javier. El no-lugar del encontro religioso, p. 229. 286 DA, 35. 287 Cf. BINGEMER, Maria Clara. Alteridade e vulnerabilidade, pp. 82-84. Maria Clara destaca:
“Dificilmente se pode acusar – como se tentou tantas vezes – a mística e a contemplação de serem
uma prática alienante e evasiva. Ao contrário, a verdadeira experiência iluminativa e espiritual
abre a sensibilidade e a inteligência do contemplativo para a realidade cotidiana e o exercício da
compaixão para com o próximo”. Id., O mistério e o mundo, p. 206. 288 CATTIN, Yves. A regra cristã da experiência mística, p. 30. In: Concilium, v. 254, n. 04, 1994. 289 Sobre o reconhecimento do Outro, cf. CASTIÑEIRA, Angel. A experiência de Deus na pós-
modernidade. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 181. 290 Cf. MELLONI, Javier. Las religiones, más allá de sí mismas, p. 239. 291 Cf. PANIKKAR, Raimon. La Trindad. Una experiência humana primordial. Madri: Siruela,
1999. Este autor considera essa tríade uma manifestação da Trindade radical. 292 Cf. MELLONI, Javier. Op. cit., p. 240.
79
“conhecimento interno de Nosso Senhor que por mim se tem feito homem para
que mais o ame e o siga”293
. Nesta sequência, o conhecimento leva ao amor e o
amor até a pessoa de Cristo. O cristão sai de si mesmo para o Outro e os outros.
No budismo, fala-se de sabedoria (prajña) e de compaixão (karuna), desde as
quais se realiza a ação adequada. Isso está desenvolvido no óctuplo caminho, de
onde as três dimensões estão inseparavelmente implicadas294
. Assim, também, na
Torá judia e nos profetas está a conjunção inseparável entre ação, conhecimento e
amor295
.
Esta experiência provoca a transformação da vida, que, no lugar de estar
centrada na angústia pela sobrevivência, torna-se gozo e oferenda, com a certeza
de formar parte de uma totalidade infinita que é pura celebração. Isso acontece por
permitir a quem vive perceber a presença do mistério em toda parte, pois “Deus
conhece todas as línguas e compreende o suspiro silencioso exalado pelo coração
de um amoroso”296
.
Por conseguinte, todas as tradições entendem a Vida como via, como
caminho, até essa progressiva abertura ao Absoluto. De diversos modos, contém
uma progressão em três tempos que, no cristianismo, tomando-os do
neoplatonismo, conhece-se como as vias purificativas, iluminativa e unitiva. A
progressão no caminho é uma experiência humana universal297
.
Melloni sugere a aplicação dessas três etapas ao encontro inter-religioso.
Para ele, a etapa purificativa encontra-se na conversão que supõe reinterpretar as
próprias crenças, ler os textos sagrados e praticar os próprios ritos de um modo
que não seja exclusivista. A etapa iluminativa vai aparecendo quando vai-se
passando do primeiro estranhamento e de uma informação superficial sobre o
outro ao conhecimento e compreensão dessa alteridade, isto é, quando se começa
a com-preender os textos alheios a partir deles mesmos, ou seja, captá-los com o
coração, entendendo por coração a sede mais profunda e receptiva do ser humano.
Por último, a via unitiva do diálogo inter-religioso, é assintótica, pois se
sustenta no paradoxo de uma união que celebra e venera a diferença. Esta união a-
293 Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, 104. Apud. MELLONI, Javier. Las
religiones, más allá de sí mismas, p. 240. 294 Cf. Ibid., p. 241. 295 Cf. Is 58,7-12. 296 SCHIMMEL, Annemarie. L’incendie de l’âme: l’aventure spirituelle de Rûmî. Paris. Albin
Michael, 1992. p. 201. Apud. TEIXEIRA, Faustino (org.). No limiar do mistério. Mística e
religião. São Paulo: Paulinas, 2004. p. 28. 297 Cf. MELLONI, Javier. Las religiones, más allá de sí mismas, p. 241.
80
dual entre as religiões é a mesma que acontece no interior de cada caminho entre o
Todo e a parte, entre Deus e a criatura, entre samsara e nirvana298
. Esta união é o
não-lugar comum das religiões na medida em que cada uma vai desprezando seu
centro em favor do absoluto de Deus.
Aqui se encontram os sinais para que uma religião possa chegar a ir além de
si mesma, assimilando um Mistério sempre maior, provocando o “enriquecimento
recíproco e a cooperação fecunda na promoção e preservação dos valores e dos
ideais espirituais mais altos do homem”299
. Esse é o ponto de partida para o
diálogo inter-religioso, no qual as religiões são caminhos por onde as pessoas
deverão ser conduzidas à sua origem, ao que “chamamos nosso ser mais profundo,
o divino em nós e em tudo o que existe”300
.
Pois é certo que apenas um coração transformado pela experiência de Deus,
e não cheio de doutrinas e ortodoxias, saberá dialogar e conviver com o diferente.
Um coração assim, não falará de ouvido, nem com sábias palavras, porém vazias
de experiências; falará desde o vivido, desde a experiência, raiz e meta de todo
autêntico diálogo, colocando em comum suas experiências do divino301
.
E sobre isso, diz o próprio Alcorão: “em direção a mim está o Devir”, ou
seja, trata-se de obedecer a um princípio vital anterior e posterior ao meu e ao teu.
Esse respeito e abertura ante a necessidade do Real é o que pode fazer hoje as
religiões, no lugar de fartar-se com palavras sobre Deus, procurar retornar as
palavras à sua Fonte para que se promova o acesso, e não a saturação da
transcendência.
298 Cf. MELLONI, Javier. Las religiones, más allá de sí mismas, p. 244. 299 DA, 35. 300 MELLONI, Javier. Op. cit., p. 178. 301 Cf. AGUILAR, Emilio Galindo. Musulmanes y cristianos conducidos por el espiritu. In:
MELLONI, Javier. El no-lugar del encontro religioso, p. 190.
81
Conclusão
Nesta primeira parte de nossa tese, vimos que o pluralismo religioso é fruto
da própria realidade do mundo, que não é uma teoria, é um fato. A sociedade é
plural, e esta pluralidade encontra-se presente em todos os seus âmbitos, atingindo
o cotidiano da vida humana.
Entendemos que no que diz respeito às religiões, a teologia, por causa desta
realidade plural, é provocada com a tarefa de interpretar as religiões à luz da
revelação cristã, e surpreende-se por esta realidade significar mais que um desafio,
por ser uma possibilidade para que o cristianismo reveja toda sua estrutura e
renovando-se, adquira uma maior percepção da revelação de Deus, que se dá sem
medida.
Constatamos que, diante do pluralismo religioso e da diversidade de
posicionamentos, os encontros provocados por esta realidade com o intuito de
conhecer as tradições religiosas se tem revelado uma oportunidade de rico
crescimento mútuo entre os diversos membros das diversas religiões. E tem-se
destacado a importância que está adquirindo para o diálogo inter-religioso a
experiência espiritual em todas as religiões. Nesse contexto, pudemos destacar os
místicos como excelentes cultivadores desta experiência religiosa.
O fenômeno místico e religioso adquirem, em nosso contexto ricamente
plural, um privilegiado lugar de escuta e de resposta. De escuta porque diante de
todos os desafios enfrentados pelas religiões, essas compreendem a necessidade
de retornarem a sua essência, irem além da sua teologia dogmática, para atingir o
coração e despertar a conversão. Isso significa conduzir seus fiéis à verdadeira
experiência de Deus, visto que este é o desejo que move o coração do ser humano,
que, indefeso, procura realizá-lo independente de qualquer tradição religiosa.
Quanto à questão das respostas, demos sinais de que estas se encontram na
experiência de intimidade que o ser humano realiza com Deus e que acreditamos
ser o ‘não-lugar’, quando cada uma das religiões a partir de seus fiéis se move
para o absoluto de Deus, porque, nesse momento, todos estão voltados para um
Mistério que sempre será para todos maior. As religiões, assim, realizam sua
vocação: serem caminhos para que as pessoas possam ir à sua origem, a Deus.
Diante do que constatamos, desejamos dar um salto em nosso estudo e ousaremos
apresentar a mística como um paradigma para o diálogo inter-religioso.
II. Parte
Um possível caminho
1. A mística como paradigma
Aqui ousaremos propor a mística como um paradigma para o diálogo inter-
religioso com a contribuição de dois grandes pensadores, um fenomenólogo da
religião, Juan Martin Velasco, e um teólogo cristão, Andrés Torres Queiruga.
Velasco nos ajudará com seus estudos sobre o fenômeno místico. Ele
acredita que, em todas as religiões, se encontram experiências místicas. Nesse
sentido é possível que a mística seja um lugar em que todos podem se encontrar
independentemente de sua origem religiosa.
Por reconhecermos que a experiência mística acontece porque primeiro
Deus se apresenta e convida o ser humano ao seu encontro, acreditamos que muito
nos pode ajudar Queiruga com seus estudos sobre a Revelação. Para ele, a
Revelação adquire uma nova concepção, a do ‘dar-se conta’ da presença de Deus
‘já aí’, que, maieuticamente, revela-se ao homem independentemente de sua
tradição e cultura.
Teremos, então, um fascinante percurso quando, vislumbrando as
experiências místicas realizadas, nas mais diversas tradições, nos damos conta de
que todas elas se realizam, porque Deus, o mesmo Deus, as provoca
incessantemente.
1.1 “Em todas as religiões existe experiência mística”
Nesta parte de nossa pesquisa em que abordaremos as considerações de Juan
Martin Velasco sobre a mística como experiência que constitui todas as religiões,
procuraremos iniciar nossa reflexão por meio de uma das suas principais obras,
segundo a qual não se pode conhecer a verdade de uma religião sem que se passe
pelo conhecimento da mística302
.
302Para este tema pesquisaremos as obras que Juan Martin Velasco apresenta suas reflexões sobre a
mística e o fenômeno religioso. Destacaremos desse autor, as obras: El fenómeno místico. Estudio
comparado. Madri: Trotta, 1999; Experiência cristã de Deus. São Paulo, Paulinas, 2001. Nesta
segunda parte de nossa pesquisa, aprofundaremos a reflexão de Velasco sobre a mística, mesmo
tendo-o já anteriormente citado várias vezes. Isto ocorrerá para que possamos confrontar com a
reflexão sobre a revelação de Andrés Torres Queiruga.
83
Ele realizará seu percurso a partir da fenomenologia da religião, referindo-se
ao fenômeno místico em seu conjunto, tendo em conta suas inúmeras formas. No
entanto, em nossa pesquisa, enfocaremos as experiências místicas vividas em um
contexto religioso. Esse contexto é marcado por uma postura de acolhida em que
se supõe que todas as experiências apresentam aspectos, riquezas e valores, mas
que em nenhuma delas se esgota. Ele terá como base para descrição da estrutura
do fenômeno místico as formas de experiência místicas presentes no cristianismo.
1.2 O ser humano, um ser com um mistério no coração
A importância do místico se dá, porque, segundo o autor, o místico aparece
no topo da história das religiões. Por sua causa, são organizados os diferentes
elementos de cada sistema religioso. Ele “é alguém que vive pessoalmente a
religião a que pertence, que realiza contato experiencial com a realidade última, o
Mistério, Deus, o Divino”303
.
Realiza com uma inigualável intensidade a experiência que se sobressai a
todos os elementos que compõem uma religião. É apresentado como o sujeito que
possui o ‘conhecimento experimental do sagrado’, de onde se originam as
palavras, os ritos, e por último as instituições onde se cristalizam e que depois
conhecemos como religião304
.
O místico religioso é, então, alguém que nasce em uma tradição e não se
contenta em apenas receber o conhecimento sobre o Mistério, mas decide fazer
seu próprio caminho, em um processo originário, confessando como acontece nas
várias tradições religiosas que “conhecia-te só de ouvido, mas agora viram-te
meus olhos”305
.
Daí que o “homem finito, falível por todos os seus flancos, contém em si a
ideia de infinito – que não pode vir nem de si mesmo, nem do mundo – que só o
303 VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 253; Desta peculiar forma de experiência de
Deus revelam-se as definições de mística que se adquiriu ao longo da história: Cognitio Dei
experimentalis (Tomas de Aquino); “Uma experiência da presença de Deus no espírito pelo gozo
interior que dela nos procura um sentimento intimo” (J. Tauler); uma “advertência amorosa de Deus” (S. João da Cruz). Hoje estudiosos falam de uma ‘experiência fruitiva do Absoluto’;
entende por mística ‘a tomada de consciência de uma união ou unidade com ou em algo
imensamente maior que o eu empírico’(R. C. Zaehner). Cf. Id., El fenómeno místico en la historia
y en la actualidad. In: VELASCO, J. Martin (org). La experiencia mística, p. 17. 304 Cf. Ibid., p. 10. 305 Jó 42, 5.
84
infinito pôde pôr nele”306
. Surge o desejo de experimentar e fazer seu um mais
além de si mesmo que busca alcançar e com o que não pode coincidir. Que se dá
no encontro com Deus, que só tem lugar “na alma no mais profundo centro”307
.
Pois é da originalidade do interior do homem e da presença que o habita que
nasce a originalidade do itinerário do homem em direção a ele, porque “o centro
da alma é Deus”308
. Assim, a experiência do centro, realizada pelo homem,
consiste num movimento permanente de concentração e saída do centro, de
entrada no mais interior de si mesmo e da saída irreprimível mais além de si
mesmo309
.
Esta experiência originária de Deus consiste, em primeiro lugar, na atitude
de reconhecimento, no consentimento a seu chamado, e na entrega. Isto é o que a
fenomenologia da religião identifica como atitude religiosa fundamental, que as
diferentes religiões realizam, em caminhos históricos determinados e de distintas
formas.
No entanto, essa “experiência de Deus não é outra coisa senão uma forma
peculiar de experiência de fé, a encarnação desse reconhecimento de sua presença
misteriosa nas diferentes faculdades da pessoa e nas diferentes situações da
vida”310
.
Essa atitude significa para Velasco “um convite do Espírito a abrir os olhos
e deixar-nos surpreender por esse Deus”311
, que não se deixa encerrar no terreno
da religião por ser maior que a consciência, a linguagem e os conceitos precários
que as várias tradições religiosas oferecem.
É fato que, embora a secularização da sociedade e da cultura tenha
eliminado determinadas formas de presença da religião em nosso mundo, não
conseguiu eliminar todas as pegadas da presença que a vida religiosa origina e que
pulsam sob as formas mais variadas, até na vida secularizada.
É certo que, mesmo em uma cultura sem nenhuma referência ao religioso, a
experiência religiosa funda-se de forma autônoma, e seu reconhecimento efetivo
se dá no terreno da ética, na relação interpessoal aberta pelo rosto do outro, pela
306 VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico en la historia y en la actualidad, p. 25. 307 CRUZ, S. João da. Obras Completas. Petrópolis: Vozes; Carmelo Descalço do Brasil, 1984. Poema: Chama de amor viva 1,12 (Todas as citações de S. João da Cruz serão desta obra); Cf.
VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico en la historia y en la actualidad, p. 31. 308 S. João da Cruz. Poema: Chama de amor viva, 1,12. 309 Cf. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico en la historia y en la actualidad, p. 36. 310 Ibid., p. 38. 311 Id., Experiência cristã de Deus, p. 7.
85
experiência estética e na luta pela justiça. Tudo isso põe o homem moderno em
contato com o Absoluto, e promove a tomada de consciência, mesmo que obscura,
dessa presença312
.
Assim, de uma compreensão do homem como subjetividade transcendental,
constitutivamente aberto à transcendência, que leva a marca dessa abertura em
todas as suas faculdades, provocado por experiências muito diferentes, poderá
fazer a experiência da fé. Experiência humana mais significativa na vida de cada
pessoa em relação à qual descobre e reconhece a presença ‘doadora’, gratuita,
‘condescendente’ e, portanto, reveladora desse Mistério que o origina313
.
Para Velasco, está comprovado que todas as tentativas para compreender o
Mistério divino e esclarecê-lo apontam para o
centro que cada vez se apresenta mais nitidamente com uma Presença, tão invisível
como inconfundível, que o sujeito religioso, por meio de todos os elementos que configuram uma religião, trata de fazer sua, da qual trata de tomar consciência, de
manter contato314
.
O fenômeno místico é, então, a chave para que possam ser decifrados alguns
dos problemas encontrados nas questões com o fenômeno religioso315
. Por isso
reconhece nas palavras de K. Rahner que a mística assume um valor de extrema
necessidade, quando este diz que o homem religioso do amanhã deverá ser místico
para sobreviver a esta crise316
.
A mística, então, encontra-se na fronteira entre as questões do fenômeno
religioso, que, por ser extraordinariamente complexo, deve ter todos os seus
elementos levados em consideração quando se procura entender sua estrutura e
seu sentido, visto que esses elementos que constituem esse fenômeno contribuem
para a manifestação de seus traços significativos, quando a experiência do ser
humano assume o lugar central317
.
É por isso que as atenções de vários estudos das ciências das religiões têm se
deslocado das estruturas institucionais e seus aspectos externos para as
experiências do sujeito, por existir um estreito laço entre religião e mística,
312 Cf. VELASCO, J. Martin. Experiência cristã de Deus, p. 22. 313 Cf. Ibid., p. 49. 314 Ibid., p. 9. 315 Sobre as questões que se referem ao fenômeno religioso, cf. Id., El malestar religioso de
nuestra cultura, pp. 81-100. 316 Cf. Id., El fenómeno místico, p. 11. 317 Cf. Ibid., pp. 9-10. Abordaremos ainda neste capítulo os elementos que para Velasco
constituem o fenômeno místico.
86
constatado pela presença de numerosos fatos místicos em muitas religiões. Além
disso, observa-se que traços próprios da atitude religiosa são caracterizados como
místicos.
Afinal, se tem entendido que é impossível conhecer de verdade a religião
sem passar pelo conhecimento da mística, para que não seja ignorado o seu núcleo
mais íntimo, sua verdade definitiva.
Isso leva Velasco a acreditar que a mística seja um caminho para avançar no
conhecimento sobre a religião, porque, segundo ele, o estudo sobre a mística não
vem apenas completar teoricamente o aprofundamento do fenômeno religioso,
mas, sim, ser um caminho útil para avançar no conhecimento da religião e
indispensável para ter um pouco de claridade na situação religiosa do homem de
nossos dias, como também o conhecimento do próprio homem contemporâneo318
.
O reconhecimento desta estreita relação é também proveniente do
reconhecimento da mística como parte integrante da religião, apresentado por
estudos de outras ciências como da psicologia e da filosofia. Mesmo que seja
praticamente unânime o seu reconhecimento e a afirmação da presença da mística
em todas as religiões, está muito distante a unanimidade na explicação da forma
concreta da relação vigente entre os fatos e a forma precisa da presença da mística
nas religiões justamente por não conseguirem esgotar o seu fenômeno319
.
No entanto, Velasco reafirma as palavras de Von Hügel, o qual diz: “a
mística é sempre religiosa e a religião é sempre mística”320
. Para ele, em toda
experiência religiosa, encontram-se elementos místicos e em todas as pessoas
existe uma predisposição ontológica e psicológica para algo que a experiência
mística assegura desenvolver em plenitude. E é, então, nesta abertura ao infinito,
base do elemento místico em que se conserva a origem na presença ontológica de
Deus no sujeito, que se dá o encontro pela fé.
1.3 A mística e sua linguagem humana
A mística é um fenômeno humano, porque se refere a uma experiência no
mais íntimo da pessoa de uma realidade sobre-humana, indo além do seu contexto
318 Cf. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 11. 319 Cf. Ibid., p. 33. 320 Ibid., p. 31.
87
de vida ordinário. Esse fenômeno se torna presente no mundo por meio de várias
manifestações que se convertem em um fato histórico, em grandeza humana.
A importância da linguagem no fenômeno místico adquire sua primeira
expressão pelo fato de a palavra mística ter sido utilizada como adjetivo para
referir-se ao sentido oculto dos textos, passando a ser designado como linguagem
no séc. XVII, empregada como adjetivo para designar as pessoas que vivem ou
padecem experiências místicas e como substantivo para referir-se ao fato, objeto
da teologia mística321
.
Nesse momento, a mística passa a se constituir essencialmente pelo corpo
dos escritos em que os místicos formulam suas experiências. Nesses escritos
religiosos, a linguagem mística apresenta-se com os mais variados gêneros
literários. Nos menos sistemáticos ocorre um entrelaçamento entre os gêneros
literários, ou seja, a presença em uma mesma página de vários gêneros. Esta
linguagem distingue-se da liturgia, da pregação e da teologia322
.
Nos textos de linguagem mística, as palavras nem sempre são apresentadas
como se compõem na linguagem ordinária. Velasco cita J. Baruzi que diz: “A
linguagem mística, propriamente dita, emana menos vocábulos novos que
transmutações operadas no interior de vocábulos tomados da linguagem
normal”323
. No entanto, o místico, em muitos momentos, recorre a uma criação
própria de palavras, na tentativa de melhor expressar algumas de suas
experiências e, como veremos, possibilitará o surgimento de uma nova linguagem.
Esta linguagem é fragmento do momento originário da experiência, que não
é apenas responsável por tornar a experiência comunicável, ou seja, por descrever
a experiência que o provoca, mas em colaborar com o desvelamento da realidade
no que consiste a verdade e seu conhecimento, que constitui o umbral do humano.
Isso leva Velasco a afirmar que
não existe uma experiência pura, anterior a toda linguagem. Sem a presença de algum tipo de linguagem, a experiência não seria experiência humana, se perderia
no reino pré-humano do inconsciente. A experiência mística, como toda
experiência humana, exige, para existir como tal, aflorar a consciência324
.
321Quem faz esta observação é M. de Certeau. “Mystique au XVII siècle. Le problème mystique”,
en L’ homme devant Dieu. Mélangues H. de Lubac II, Aubier, Paris, 1964, pp. 276-291. Apud. VELASCO, J. Martin. La experiencia mística, p. 17. 322 Sobre os gêneros literários Cf. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 50. 323 BARUZI, J. Introduction à des recherches sur Le langage mystique: Recherches
philosophiques (1931-1932) In: Encyclopédie des mystiques I, Seghers, Paris, p. 39. Apud.
VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 51. 324 Ibid., p. 59.
88
A linguagem mística possui os mesmos traços que, em geral, caracterizam o
fenômeno religioso. No entanto, a linguagem mística se distingue por sua
condição de ser uma linguagem que tem a ver com sua ‘proximidade’, ou seja,
pela experiência que se vive e se expressa graças a ela. “O místico não fala, como
o teólogo, simplesmente de Deus. Fala do Deus que se tem dado como presente
em uma experiência”325
.
Assim, sua linguagem ordinária não comporta tal experiência. E por isso, é
característica comum a todos os místicos e a todas as formas de linguagem mística
a convicção da “insuficiência da linguagem”326
.
Essa insuficiência não impede, no entanto, que ocorra a comunicação dos
místicos. Ao contrário, libera forças criadoras que geram uma nova linguagem,
despertando suas capacidades expressivas e que levam ao limite o poder
significativo das palavras, pois o próprio da linguagem mística não é apresentar
novos objetos nem novas verdades, mas, sim, produzir uma transmutação cuja
origem está na “secreta mudança de quem recebe essas verdades” 327
.
Essa capacidade de gerar uma nova linguagem resulta na categoria chamada
de ‘transgressividade’ da linguagem mística, que procura não apenas levar o
sentido primeiro dos vocábulos até o limite de sua capacidade significativa, mas
também da sua utilização simbólica cujas expressões aparecem nas metáforas.
Com a presença significativa dos símbolos na linguagem mística, lhe é conferida a
grande proximidade com a linguagem poética.
O símbolo é a linguagem radical originária da experiência fundante, e
precisamente, por seu uso, o místico pode tomar consciência da Presença não
objetiva e originante que o habita como dimensão de sua última profundidade.
Assim,
o símbolo seria, pois, a palavra fundamental da experiência mística em que se
revela e realiza a relação com o ser que constitui o ser humano e que se expressa, segundo as tradições, como abismo sem nome, como absoluto, como pessoa, como
amor328
.
No entanto, esta transgressividade própria da linguagem mística aflora em
outras características, como a profusão de superlativos, que permite em alguns
325 VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 51. 326 Id., El fenómeno místico en la historia y en la actualidad, p. 19. 327 Id., Op. cit., p. 52. 328 Ibid., p. 62.
89
textos místicos um estilo hiperbólico, exagerado, o que se reafirma como seu
recurso à metáfora, ao paradoxo e à antítese329
.
Quando o místico toma consciência de sua experiência, sua linguagem
assume um novo sentido e um novo significado e esta nova linguagem, por sua
natureza ‘transgressiva’ e simbólica, atinge seus níveis mais originários ali onde
aparecem os símbolos, com sua força e imediatez, onde aflora a ruptura analógica
que suscita toda linguagem. O que descreve essa linguagem é essencialmente a
experiência mística, ou seja, a experiência de fé vivida de uma forma peculiar,
uma experiência intensa de união com Deus.
Para os místicos, o paradoxo em seus textos são expressões que vão contra a
opinião vigente no mundo e na vida ordinária, de que a experiência mística vem
subverter. Porque revela a insuficiência, vivida pelo místico, de sua linguagem
para expressar a densidade de sua experiência e a eminência e profundidade da
realidade a que chega330
. O uso do paradoxo remete, então, à condição misteriosa
da realidade dada na experiência, de seu conteúdo, do Deus que se faz presente
nela.
Este recurso é tão característico da linguagem mística que aparece nos
escritos místicos de todas as tradições religiosas. Também muito utilizado nos
textos místicos, a antítese desempenha uma função parecida com o paradoxo, pois
quer falar do que se refere
ao fundo da alma, a Deus, à sua ação sobre o homem ou à resposta desta presença,
sua nova forma de expressar a incapacidade de referir-se, com os termos vigentes
na experiência ordinária, à experiência singular que ele vive e, especialmente, o conteúdo da mesma
331.
Velasco nos aponta outros recursos linguísticos, além desses já
apresentados, em que os místicos procuram testemunhar ter alcançado o limite do
humanamente compreensível. Ele se refere ao fato de que as informações que
deveria o místico transmitir não conseguem fazê-lo em absoluto. E nesse caso, “a
linguagem parece aproximar-se ao fenômeno verbal, porém já claramente
329 Cf. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 54. 330 Cf. Id., El fenómeno místico en la historia y en la actualidad, p. 21. 331 Id., Op. cit., p. 55.
90
extralinguístico, da glossolalia”332
. E o limite desta linguagem é o silêncio,
entendido como condição da própria linguagem mística, não como indiferença333
.
Por ser expressão de uma experiência interior, a mística tem, segundo
Velasco, como característica ser auto-implicativa e testemunhal, como toda
linguagem de fé334
. Por ser uma linguagem testemunhal, esta deve dar conta de
algo que o sujeito tem vivido, que ‘tem visto e ouvido’, e por isso não pode
calar335
.
Essa nova linguagem que surge a partir de uma experiência intensa da
Presença originante terá seu estilo determinado por uma predisposição do sujeito
lírica e psicológica, do uso do próprio material que o constitui, onde, a partir da
tradição e de seu contexto, suas experiências serão verbalizadas.
1.4 A presença originante
A experiência mística depende de um ‘outro’. Ou seja, de uma “natureza
totalmente ‘outra’ em relação com as realidades mundanas e também com a
própria realidade”336
. Realidade Última, que se refere à categoria religiosa de
“Mistério”. É designada pela fenomenologia da religião como a realidade anterior
e superior ao homem, em que cada religião se configura através de sua tradição e
cultura, como também em um contexto não religioso. Uns identificam esta
realidade como Deus, outros como o Uno, o Divino, o Brahman, o Tao, o Infinito,
o Absoluto, ou como Transcendência337
.
O Absoluto ultrapassa todos os sistemas religiosos e chega, assim, ao
profano. E como realidade última, como ‘Mistério’, esta presença consta em toda
a história religiosa da humanidade e talvez seja certo que determinadas formas de
pensar esta realidade não são, na verdade, mais que outras formas de configurar a
mesma realidade última, o mesmo Absoluto, cuja presença na história humana
está seguramente atestada, e com toda certeza não se esgota nela mesma338
.
332 VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 53. 333 Sobre o silêncio e a palavra nos escritos místicos, Velasco faz referência ao artigo de J. Leclerq,
Silence et parole dans l’experience spirituelle d’aujourd’hui. Collectanea Cisterciensia 45, 1983. pp. 185-198. Apud. Ibid., p. 56. 334 Cf. Ibid., p. 57. 335 Cf. Hb 4,20. 336 VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 253. 337Cf. Id., El fenómeno místico en la historia y en la actualidad, p. 25. 338 Cf. Id., El fenómeno místico, p. 254.
91
Porque, assegura Velasco, todas as tentativas para compreender o Mistério
divino e esclarecê-lo apontam para o “centro que cada vez mais se apresenta mais
nitidamente com uma Presença, tão invisível como inconfundível”339
.
Assim, em outro momento, ele vai dizer que, diante de todas as
representações desta realidade última, existem dois traços comuns a todas elas:
a absoluta transcendência dessa realidade frente ao homem e a todas as realidades de seu mundo, sua condição de totalmente outro; e ao mesmo tempo, e
precisamente por ser absolutamente transcendente, sua condição de realidade
íntima imanente em toda a realidade mundana e no coração mesmo do homem340
.
Essa Presença por sua condição transcendente-imanente em relação às
realidades mundanas é o centro de toda a vida humana. E a religião, antes de ser
explicação do mundo, teoria sobre Deus ou institucionalização social, consiste no
próprio fato da religação, pois ela é em sua raiz, religação ao poder do real
atualizado em toda pessoa humana341
.
Toda pessoa humana encontra nesta Presença o seu centro como uma forma
de resposta a ela. Pois, sem esta Presença, o homem não transcenderia342
. Nem ao
menos poderia conhecer, ou mesmo supor, que existisse uma realidade que, por
definição, o ultrapasse absolutamente.
A religião, então, está sob esse fato originário, esse primeiro dado fundante
da experiência humana que é a Presença originante que o constitui. Nesta
Presença, repousa não só a religião, como também a própria experiência humana
enquanto procura alcançar a sua verdadeira raiz.
Entendemos, então, que a Presença originante está em toda experiência
humana de formas variadas, pois esta dimensão de transcendência que possibilita
ao homem a Presença originante está “em todas as dimensões fundamentais em
que a pessoa se realiza: na consciência, na tendência e no desejo, no sentimento,
na liberdade”343
.
Por conseguinte, é de grande importância a análise dessas dimensões para
que se possa por em evidência essa Presença, mesmo assumindo a dificuldade
para se fazer justiça a esta precedência absoluta do Mistério em relação com todo
o real e com nós mesmos. Afinal, não nos é impossível, pela nossa condição
339 VELASCO, J. Martin. Experiência cristã de Deus, p. 9. 340 Id., El fenómeno místico, p. 254. 341 Cf. Id., Experiência cristã de Deus, p. 27. 342 Cf. Id., El fenómeno mistico, p. 254. 343 Ibid., p. 255.
92
humana, referirmos-nos a ele, ao Mistério, a partir de uma realidade criada por
nós. Enquanto, para descobrir sua origem e raiz, devemos referir-nos ao Mistério
sem querer tê-lo por objeto.
Pois toda pergunta do homem sobre Deus é precedida por outra. Sua
pergunta é eco à pergunta que Deus dirige a ele desde sempre. E quando procura
responder à pergunta sobre Deus,
ele se dá conta de que só poderá respondê-la quando toma consciência de que esta
pergunta tem sua origem em outra. E apenas quando se tem a consciência de que de antemão, já é questionado por Deus, se pode perguntar por Deus
verdadeiramente344
.
E é apenas quando o homem toma consciência da precedência absoluta de
Deus, segundo Velasco, que a análise das dimensões fundamentais da sua
existência se converte em lugares favoráveis para perceber essa Presença345
.
Os místicos, que têm nesta Presença-ausência a origem de seu itinerário para
Deus, por não conseguirem abarcá-lo e tê-lo para si, são impulsionados por um
desejo sempre presente na constante busca de sua realização.
É este desejo uma das dimensões centrais no homem, chamado por S.
Agostinho de o ‘âmago do coração do homem’ e que Spinoza disse ser: ‘a
essência mesma do homem’. E entre todas as necessidades e desejos, está,
segundo S. João da Cruz, ‘o que deseja o teu coração’. Velasco quer falar aqui,
portanto, de um desejo que vai além da pessoa, por ser anterior a ela, e por
inquietá-la constantemente, porque esse a constituiu346
.
Diante dessa dimensão que constitui o homem, pode-se dizer que existe no
ser humano um forte querer originário, que surge da necessidade de querer
experimentar e fazer seu um mais além de si mesmo que busca alcançar e com o
qual não pode coincidir. Dessa mesma raiz, surge o milagre da liberdade, coração
da dignidade da pessoa, que, antes de ser escolha e inclusive domínio de si, é
aceitação da existência dada por uma generosidade anterior347
. Porque está no
núcleo da existência humana sua condição de “síntese ativa de finitude e
infinitude do temporal e do eterno, de liberdade e necessidade”348
.
344 VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 256. 345 Cf. Ibid., p. 180. 346 Cf. Ibid., p. 257; Ver a notas: 8, 9, 10. 347 Cf. Id., Experiência cristã de Deus, p. 24. 348 Id., El fenómeno místico, p. 258. Cf. notas 14 e 15.
93
Por isso, é para Velasco de muita importância para a realização e
compreensão da mística reconhecer a antropologia que está por trás da experiência
fundamental dos místicos. São várias as expressões que os místicos, por suas tão
diferentes experiências, apresentam sobre a antropologia, no entanto, todas
convergem na compreensão de que:
a presença no homem de um mais além de si mesmo, sua condição de estar habitado por um excessus que o inunda e o transborda; a definição de si mesmo
como ser que se supera infinitamente; de ser fronteiriço entre o finito e o infinito,
de ser constitutivamente religado ao poder do real, de ser ‘ouvinte da Palavra’349
.
A imagem do homem na mística hindu é um perfeito acordo com o sistema
‘monista’ de explicação do real em que se apresenta o sujeito como uma
mesmidade no Absoluto. E no ateísmo religioso budista essa imagem se reflete na
doutrina do não-sujeito.
No cristianismo, a compreensão do homem está pautada a partir da
expressão bíblica de sua criação ‘à imagem e semelhança’ de Deus. Nessa
imagem apoia-se a consciência da inigualável dignidade do homem, de sua
condição de excelência da criação da referência de todo seu ser e toda sua vida até
a comunhão com Deus, como fim ao qual Deus tem designado e orientado cada
um350
.
Os místicos da tradição cristã fazem sempre referência, por meio de suas
experiências, ao mais íntimo do ser humano, como lugar último de relação,
‘infinito santuário’ de comunicação e de encontro com Deus351
. Porque aqui, para
esta tradição, todas as descrições dos sentidos e faculdades do homem são
superadas pela experiência mística. Este lugar último de relação é um sinal da
permanente Presença de Deus que impulsiona o homem para si. A fé o leva a
abandonar-se e consentir a força desta Presença.
A partir das experiências místicas vividas nas várias tradições religiosas,
Velasco constata que “a vida mística descansa sobre a Presença originante do
Mistério na realidade e no centro do homem”352
. No entanto, os místicos são
unânimes em afirmar que só a Presença não basta, pois esta experiência de
349 VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 260. Aspas colocadas pelo autor. 350 Sobre este tema, Velasco não desenvolve o significado de cada termo da expressão ‘imagem e
semelhança’ e sua relação com os Padres gregos e latinos da Igreja. Cf. Ibid., p. 261. 351 Cf. Ibid., p. 261. 352 Ibid., p. 271. Essa afirmação de Velasco é proveniente de um apurado estudo realizado sobre a
mística nas grandes religiões orientais e nas grandes religiões proféticas. Cf. nesta mesma obra
pp.131-244.
94
encontro com a Presença que se dá no centro, no interior do homem, exige do
sujeito o cumprimento de determinadas condições e só desta maneira se poderá
entender o impulso que podemos chamar de místico, que pessoas e grupos de
diferentes épocas e tradições têm para viver uma experiência mística.
A importância do reconhecimento da necessidade de serem cumpridas
algumas condições dá-se pelo fato de que sempre ocorrem na história casos
atestados de experiências ordinárias de superação da consciência e a entrada em
‘outra condição’ espécie de ruptura de nível na existência, que podem ser
identificadas como experiências de transcendência ou fenômenos análogos353
.
Entretanto, essas experiências, mesmo constatadas como fenômenos
extraordinários, não é evidente que sejam um fenômeno místico. Porém, podem
despertar um processo de verdadeira experiência mística quando o sujeito entra
em contato com o Mistério consciente de que este contato o põe em relação com
uma Presença que “já estava ali previamente”354
e o impulsiona a uma acolhida.
Essa ‘Presença’, que, no sentido mais rigoroso do termo, é uma realidade em
ato de revelação e comunicação, é Presença que ‘dá de si’ à pessoa e que nunca
deixa de insinuar-se. É uma existência dirigida pessoalmente, e que requer
daqueles a quem se dirige a acolhida aceitação, o reconhecimento.
No entanto, o homem pode ignorar esta Presença evitando todos os sinais
para que sua vida não seja importunada por acontecimentos os quais não seja
capaz de dominar. Como pode também, além desta indiferença, simplesmente
rejeitá-la.
Assim, a Presença não se deixa ouvir, por querer desligar-se do que o
fundamenta - e a vida continua na superfície da realidade - alheio aos níveis de
realidade e de consciência que estão ao seu alcance355
.
É necessário, então, à experiência mística aceitar e acolher esta Presença que
se oferece. O vocabulário cristão designa isto como atitude teologal, que pode ser
resumida, como afirma Velasco, como ‘atitude de fé’, pois, para ele, “a mística
realizar-se-á sempre no interior da fé”356
. O sujeito supera a dupla tentação de
desespero ao pretender realizar-se por si mesmo, por uma radical confiança, em
353 Cf. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico en la historia y en la actualidad, pp. 23-25. 354 Id., El fenómeno místico, p. 271. 355 Sobre a indiferença religiosa, cf. VELASCO, J. Martin. El malestar religioso de nuestra, pp.
81-100. 356 Id., El fenómeno místico, p. 275.
95
que consiste a fé. Esta confiança provoca um deslocamento produzido pela
aceitação de ser a partir de outro e não dispor da própria existência357
.
A acolhida desta Presença, que gratuitamente se doa, também se dá fora do
ambiente religioso, por não ser a religião a “única encarnação possível da atitude
fundamental que a origina”358
. Velasco destaca a existência de uma estrutura
semelhante entre as experiências místicas que acontecem fora do ambiente
religioso, daquelas que acontecem no interior das religiões, pois o que está em seu
núcleo, como atitude de acolhida e de conversão, está também, em termos
diferentes, nas demais religiões.
Assim, essa acolhida apresenta-se no cristianismo na forma de atitude
teologal, como fé-esperança-caridade. No judaísmo, descreve-se como obediência
e fidelidade. Para os mulçumanos, essa atitude chama-se islã, submissão
incondicional. O bramanismo hindu a descreve como ‘realização’ interior de
unidade com o Brahman ou o Absoluto. O hinduísmo devocional resume a atitude
religiosa em bhakti, entrega confiante de si mesmo à divindade. Para o taoísmo a
atitude fundamental reduz-se a uma conformidade plena com a natureza última ou
o principio que rege tudo o que existe. Para o budismo, é a extinção do sujeito no
mais além absoluto, com o nirvana359
.
Diante dos traços estruturais que todas as religiões apresentam no que diz
respeito à acolhida da Presença, Velasco procura resumir suas semelhanças,
destacando o reconhecimento da absoluta Transcendência-imanência em uma
transformação radical de atitude e na aceitação radical de descentramento, em que
deixa de ser sujeito da realidade transcendente para vivê-la como sujeito
passivo360
.
Aqui, destaca-se também o aspecto da atitude religiosa movida por uma
atitude de fé, em que se rompe a si mesmo no desejo de transcender. Essa é uma
experiência assumida pelos verdadeiros crentes das mais variadas tradições
religiosas, que consiste no “reconhecimento da Presença que nos origina e
357 Cf. VELASCO, J. Martin. Experiência cristã de Deus, p. 43. 358 Id., El fenómeno místico, p. 273. Das experiências místicas fora do ambiente religioso, Velasco
lembra Plotino. Este quando descobriu o caminho para a contemplação e união com o Uno, indicou que o primeiro passo supõe uma conversão de olhar do exterior para o interior. Para ele a
conversão é suscitada pela presença nela do Bem, que suscita o amor da alma. Seu processo
consiste que alma atue no sentido do desejo que a oriente para o Bem, que tem como origem a
opção por esse Bem, para perceber e acolher ‘o amor que faz ver’. Cf. Ibid., p. 274. 359 Cf. VELASCO, J. Martin. Experiência cristã de Deus, p. 38. 360 Cf. Id., El fenómeno místico, p. 275; Cf. Id., A experiência cristã de Deus, pp. 62-69.
96
coincide com o mais além de nós mesmos, que nos faz permanentemente ser,
sendo, portanto, a entrada na única via para a realização de nós mesmos, no mais
além de nós mesmos”361
.
A mística sempre se realizará no interior da fé, pois, para ele, nas formas de
mística religiosa, a experiência nunca deve tomar um caminho alheio ao da fé, ou
alternativo a ela, o que significa uma característica que distingue as experiências
místicas religiosas das não religiosas362
. Conforme indica H. de Lubac: “A mística
cristã, longe de escapar à ordem da fé, está na lógica da vida de fé. Nutre-se de
outra coisa que não ela mesma. A experiência mística do cristianismo não é um
aprofundamento de si mesmo; é aprofundamento da fé”363
.
A importância da fé para uma melhor compreensão da mística e do seu
processo de realização leva Velasco a deter-se na mística cristã, tendo-a como
referência. Faz isso por perceber que a existência e a necessidade da atitude
teologal tem orientado este fenômeno e que da estrutura do fenômeno místico, de
suas principais manifestações, remete à experiência como seu elemento central.
Desta forma, uma fenomenologia fiel da experiência mística, ao menos no caso
das místicas de caráter religioso, descobre por debaixo dela a atitude teologal, ou
seus homólogos em outras tradições364
.
Teólogos e espiritualistas, pela leitura das experiências místicas à luz das
Escrituras e da própria experiência, têm descoberto no homem a condição de
imagem de Deus que o aproxima dessa Presença e o faz compartilhar de alguma
maneira de sua natureza. Graças a essa presença prévia do amor de Deus na raiz e
no centro da pessoa, o amor do homem a Deus consiste em sintonizar com o
chamado que o constitui como ser humano, e esse amor lhe concede uma
‘conaturalidade’, uma ‘familiaridade’ com Deus, que torna possível o
conhecimento imediato que comporta toda verdadeira experiência365
.
Entretanto, faz-se necessário que o ser humano renuncie a interpor entre
Deus e ele mesmo sua pretensão egocêntrica. Já que o amor vem de Deus, já que o
361 VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 275. 362 Cf. Id., El fenómeno místico en la historia y en la actualidad, p. 36. 363 LUBAC, H. de, La mystique et les mystiques, Paris: DDB, 1964, p.2. Apud. Id., El fenómeno
místico, p. 276. 364 Cf. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico en la historia y en la actualidad, p. 35. 365 Cf. Id., Experiência cristã de Deus, p. 63.
97
amor é Deus mesmo dado ao homem, o amor do homem consiste só em consentir
esse amor366
.
Assim, ocorrerá no sujeito uma ‘conversão do olhar’, que tem sua origem na
conversão de toda a sua alma. Neste caminho, encontram-se os primeiros Padres
quando desenvolvem o tema da imagem de Deus na alma, que a conduz para a
semelhança, a assimilação e a divinização367
.
No entanto, esta ‘conversão do olhar’ não esgota a riqueza da conversão que
afeta toda a pessoa, pois a mudança de olhar é inseparável da reorientação do
coração e aqui estaremos entrando em um novo aspecto que consiste na dimensão
teologal. Aí vemos que esta mudança em relação ao coração acontece também na
fé como descentramento e consentimento à Presença.
Isto significa dizer que:
Em verdade, aqui eu não sou ‘sujeito’, sou ‘objeto’. Outro é o sujeito. Outro age
fundamentalmente. A experiência religiosa – nós diríamos a fé – é o
reconhecimento de que eu sou objeto de parte de Deus: aí eu já não sou consciência intencional, e sim, consciência convocada
368.
Velasco cita S. Bernardo, que é quem melhor diz sobre o sentido desta
experiência. Para ele, a fé é a ‘conversão do coração a Deus’. Nessa conversão, o
sujeito é o próprio coração, que é o centro unificador da pessoa, o centro da alma.
Com essa reorientação do coração, o homem passa a aderir à imagem de Deus que
está impressa em seu ser. E isto é uma atitude teologal em que o coração passa a
ser simplificado e unificado, para, assim, poder contemplar o único e
perfeitamente simples369
. Assim, “a reorientação do coração em que consiste a fé
comporta igualmente a reorientação do amor”370
, afetando o próprio ser da pessoa.
A isso se referem às tradições religiosas quando dizem que o exercício da
atitude religiosa supõe um novo nascimento e a conversão do coração. O novo ser
vive de forma nova. A razão fiel, mais que explicar a realidade, deixa-se iluminar
por sua luz; a vontade, mais que dominar, reconhece e consente.
366 Sobre este amor disse Simone Weil que: “Só podemos consentir em perder nossos sentimentos
próprios para dar passagem em nossa alma a este amor. Isto é negar-se a si mesmo. Somos criados só para esse consentimento, cf. WEIL, Simone. Attente de Deus, Paris, La Colombe, 1950. p.108.
Apud. VELASCO, J. Martin. Experiência cristã de Deus, p. 63. 367 Cf. Id., El fenómeno místico, p. 278. Aqui ocupa como eixo, a doutrina da encarnação. 368 Id., Experiência cristã de Deus, p. 44. 369 Cf. Id., El fenómeno místico, p. 279. 370 Ibid., p. 280.
98
Para outro aspecto de conversão na vida teologal, a esperança, Velasco
refere-se a S. João da Cruz. Para ele, “para que a alma venha a unir-se a Deus em
esperança, há que renunciar a toda posse de memória [...]; porque, quanto mais
tem de posse (a memória), tanto menos tem de esperança”371
.
A doutrina das virtudes teologais com sua correspondência às ‘faculdades da
alma’ permite à vida espiritual do sujeito a possibilidade da mudança de
orientação que imprime no sujeito a ‘conversio cordis’372
. Uma mudança que,
segundo ele, dá origem a uma nova existência em que o homem assume a
condição de imagem com que Deus o tem dotado, entregando-se ao querer
ilimitado, ao ‘desejo abissal’ que o abre ao amor de Deus.
Essa nova forma de existência, que consiste em crer para se realizar
efetivamente, necessita encarnar-se na totalidade de condições, aspectos e
dimensões de cada sujeito; necessita ser ‘vivenciada’. A opção fiel inicial e radical
fraciona-se na multidão de facetas das diferentes pessoas e origina a incontável
variedade de experiências religiosas concretas. Essa variedade é produzida no
interior de cada uma das tradições religiosas e com frequência aparece ao longo da
vida de uma mesma pessoa373
.
Enfim, essas virtudes teologais destacam o caráter teologal da experiência
mística e nos fazem perceber que o nascedouro dessa experiência é a fé. A
mística, então, constitui uma forma peculiar e privilegiada de experiência que
permite a realização efetiva da dimensão teologal: a fé-esperança-caridade374
.
Diante da afirmação de que a mística nasce da fé, a experiência de fé deve ser
assumida e vivenciada pela pessoa em todas as dimensões do seu ser, na
‘conversão do coração’.
De acordo com Velasco, se for ignorada nas tradições religiosas esta atitude,
significa que se vive uma religião muito longe do que lhe é essencial375
. Na
teologia católica, ele explica que talvez tenha se dado a exclusão deste tema
depois do Concílio de Trento, por causa do temor que essa experiência provocava
371 S. João da Cruz. Poema: 3 Subida, II, 1;15,1;2. Apud. VELASCO, J. Martin. El fenómeno
místico, p. 280. 372Cf. Ibid., p. 280. 373 Cf. Id., Experiência cristã de Deus, pp. 51-53. 374 Cf. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 281; S. João da Cruz reúne estas três
virtudes teologais, pois para ele “a alma não se une com Deus nesta vida [...] senão só pela fé
segundo o entendimento, e pela esperança segundo a memória e pelo amor segundo a vontade”. 2
Subida 6,1. 375 Cf. Id., El fenómeno místico, p. 281.
99
no desenvolvimento do subjetivismo religioso. O problema está na aparente
contradição entre o significado ordinário da palavra ‘experiência’ em contextos
culturais em que predomina a compreensão científica do conhecimento, com a
forma de relação que impõe a atitude teologal à condição transcendente de seu
termo.
Diante desta falta de esclarecimento, é indispensável esclarecer o significado
da palavra ‘experiência’, visto que esta palavra é utilizada em diferentes contextos
e com diferentes significados e que, ao longo da história do pensamento, adquiriu
muitas interpretações e explicações diante dos fatos.
A partir de uma base comum de que a experiência trata de uma apreensão
imediata pelo sujeito de algo que se oferece como dado, e que tem como oposição
o conhecimento por experiência, Velasco nos apresenta três significados
principais: 1. A apreensão sensível da realidade externa, que se destina à
confirmação de hipóteses ou juízos sobre a realidade. 2. A apreensão por um
sujeito de uma realidade externa, uma forma de ser. Essa forma de conhecimento
distingue-se tanto do conhecimento sensível e do ‘experimental’ como do
conhecimento obtido por abstração por meio de um conceito. 3. O aprendizado
adquirido com a prática, possibilitando ao sujeito uma familiaridade, uma espécie
de conaturalidade com a realidade376
.
Essa expressão, ‘experiência de fé’, é muito utilizada em contextos
religiosos e também nos diferentes teóricos sobre a religião. Por tratar-se da
experiência que é a fé, só pode realizar-se como experiência.
Nas palavras de Paul Ricoeur, “toda experiência é uma síntese ativa de
presença e interpretação”377
. Assim, compreende-se que cada sujeito, ao realizar o
reconhecimento em que consiste a experiência da fé, inscreve sua vida com o
caudal de experiências comportadas numa tradição na qual existem já as palavras
Deus, Brahman ou Alá etc., com as quais se identifica esse mais além do homem,
interior a sua consciência e maior que seu coração378
.
Tal experiência se dá convocada pela Presença originante, que, além de
convocar, provoca a fé, realizando na pessoa uma tensão em suas ‘faculdades’,
376 Cf. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 283. 377 Expressão citada por J. Servais Apud. VELASCO, J. Martin. Experiência cristã de Deus, p. 47.
Ver nota 9. 378 Cf. Ibid., p. 48.
100
conduzindo-a a um contato real em uma realidade absolutamente nova379
. Essa fé
é mais que afirmação de verdades, e vai além das crenças, já que realiza uma
mudança profunda da alma, provocando uma reestruturação de todas as dimensões
da pessoa em torno do novo centro da existência descoberta e reconhecida pela
atitude teologal.
Pois toda experiência religiosa possui caráter responsorial; nela o sujeito é
consciente de não ser a fonte da iniciativa, mas de ser iniciado e guiado desde seus
primeiros passos. Cita Velasco, o autor da Imitação de Cristo: Tu enim prior
excitasti me ut quaerem te [‘tu me moveste primeiro para que te buscasse’], e
Pascal que fala: “Não me buscarias se não me houvesses encontrado” 380
. Assim,
em todos os atos humanos referidos a Deus, ao conhecimento de Deus, desejo de
Deus, amor de Deus, esse, mais que objeto do ato em questão, é seu sujeito, de
forma que esse ‘de Deus’ não é genitivo objetivo, mas subjetivo.
A pessoa, dessa forma, assume uma nova forma de ser, de viver consciente e
amorosamente a nova relação com Deus. O exercício da vida teologal desencadeia
uma atitude em que a Presença acolhida transforma em seu amor a totalidade da
pessoa e esta adquire a possibilidade de um crescimento permanente em
reconhecimento de Deus e em contato amoroso com Ele381
.
Porque ‘experiência de fé’ é uma experiência de Deus. Por ser uma atitude
teologal tem em Deus seu fim, pois “a fé não termina nos enunciados, senão na
realidade a que remete” 382
. De forma geral, pode-se dizer com razão que da
expressão ‘experiência de Deus’, o homem nela só é sujeito ativo, porque
previamente é sujeito passivo.
Velasco pergunta-se: como se converte uma experiência de fé em
experiência mística? Sua resposta parte da experiência como primeiro traço
comum a todos os fenômenos místicos. O que permitirá, segundo ele, a existência
de vários graus de vivência dessa experiência. Com a inclusão da experiência na
realização efetiva da fé e na compreensão da mística como forma peculiar dessa
experiência de fé, ele chega a compreender que místicos são todos os que realizam
a experiência de fé, e por acontecerem em diferentes formas e graus, só alguns,
379 Cf. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 285. 380Cf. Id., Experiência cristã de Deus, p. 54. 381 Cf. Id., El fenómeno místico, p. 286. 382 Esta afirmação foi dita por S. Tomás. Cf. Ibid., p. 286. Ver nota 41.
101
dependendo das suas características e do grau de intensidade, serão analisados se
são místicos no sentido que atribui a esta palavra a história da espiritualidade383
.
A experiência mística não consiste em atos isolados. Alguns podem ocorrer
e ocorrerão normalmente, nas pessoas que progridem na realização de sua adesão
e consentimento ao Mistério, como ‘vivências’. A experiência mística, contudo, é
mais propriamente o resultado do percurso, do itinerário percorrido pelo homem
quando, consentindo em sua origem, encarna em sua vida esse consentimento e
adquire, assim, a sintonia, a conaturalidade, a familiaridade do próprio ser a Deus
e com Deus, que lhe permite descobri-lo em todas as realidades do mundo, em
todos os acontecimentos da história e em todas as experiências da própria vida384
.
Não são as repercussões sobre a consciência nem os estados de ânimo que
proporcionam o definitivo critério para o discernimento das verdadeiras
experiências, nem os fenômenos extraordinários. O critério decisivo é constituído
pelo amor. A experiência não é mais que ‘vivência’, por meio de todas as
faculdades, da opção radical que consiste nesse radical deslocamento que é a
atitude teologal descrita como fé-esperança-amor. Daí que o sinal inequívoco da
existência de uma experiência verdadeira seja a presença do amor385
.
Sendo assim, a mística, como uma forma de realização da experiência da fé,
chega, afirma Velasco, “ao umbral decisivo em relação com a vida religiosa no
fato de haver ou não passado pela experiência da fé, e dentro dela, pela
experiência do Mistério ao qual chega a fé” 386
.
Ir à outra margem, passar do umbral significa, para os místicos, uma
passagem, como ruptura radical, a uma forma de vida que põe de manifesto o
fundo da alma e faz possível o nascimento de Deus nela. Nessa experiência,
supera-se a consciência ordinária, a divisão sujeito-objeto387
.
383 Cf. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 291. 384 Cf. Id., Experiência cristã de Deus, p. 69. 385 Cf. Ibid., p. 80. 386 Id., El fenómeno místico, p. 291. Porém, segundo Velasco, essa não é a única forma de realizar
essa experiência, porque pode dar-se por outro caminho, como no caso do amor efetivo e serviçal
aos demais, ou no progresso das consequências ‘éticas’ de uma religião chamada pessoal. Cf. Ibid., pp. 446-466. 387 Esta superação destaca Velasco, aparece nos relatos de experiências de “místicas da natureza”.
Em contexto profano: “até que ‘a individualidade mesma pareceu dissolver-se e desvanecer no ser
ilimitado’; ‘até que ‘Eu” parecia ser ‘Isto’, e “Isto’ parecia ser ‘Eu’; E no religioso: ‘Eu sou
Brahman, ’ é o Todo...”. Na mística ateísta nos graus extremos da contemplação e da união os
místicos chegam à superação do sujeito e objeto. Cf. Ibid., p. 295.
102
Quando Velasco fala da experiência como primeira característica do
fenômeno místico, refere-se àqueles que, como Sta. Teresa, fazem uma
experiência como conhecimento experiencial, em que se vive o contato com a
realidade a que se refere. Ela insistia na experiência como caminho para conhecer
a Deus. “Isto entendo eu e por experiência”; “do que eu tenho experiência posso
dizer”. A experiência de Sta. Teresa é um “conhecimento direto, saboroso em que
se chega, a saber, de algo, não por notícia objetiva, senão por tê-la vivido ou
padecido no próprio ser” 388
.
Logo, a característica comum entre todas as formas de mística, a partir desta
experiência, é o místico ser alguém que, em relação com a Realidade Última a que
remetem todos os elementos do fenômeno religioso, tem mantido em algum
momento uma relação pessoal com o Mistério que o leva ou o tem levado a dizer
como Jó: “Eu o tenho visto com os meus próprios olhos”389
.
1.5 As características da experiência mística
A realização da experiência de fé é o centro do fenômeno místico, por ser
uma resposta livre e pessoal do sujeito diante da presença do Mistério, em um
encontro que se dá através da “alma no mais profundo centro”390
, através de uma
intensa acolhida ao Mistério como resposta à sua constante provocação.
O homem, sujeito no fenômeno místico, exerce, assim, sua condição de
pessoa na sua forma mais plena. Desvela, na experiência mística, sua
característica de “transformar a pessoa que opera”391
. Logo, se para conhecer a
religião, como já nos disse Velasco, é necessário ter a mística como referência,
fica claro que não existe nenhuma experiência mística sem que se tenha a
experiência de fé. Porque “toda fé viva tem algo de místico; como toda mística é
um desenvolvimento peculiar da fé”392
.
Assim, por se tornar difícil um limite entre as experiências não místicas e
experiências místicas de fé, Velasco apresenta-nos, a partir das experiências mais
eminentes da vida mística, alguns traços que possam caracterizar as experiências
de fé identificáveis como místicas:
388 VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 292. 389 Jó 42,5. 390 VELASCO, J. Martin. Experiência cristã de Deus, p. 30. 391 Id., El fenómeno místico, p. 324. 392 Ibid., p. 319.
103
a) O caráter ‘holístico’, totalizador e englobante da experiência mística
Já constatado pelas chamadas ‘místicas da natureza’ em que o ápice da
experiência aparece como sinal universal, está o permanente caráter global que a
reveste. Nessa experiência, o mundo é visto como um todo, em total oposição à
visão analítica da consciência ordinária e da experiência científica.
A experiência mística profana refere-se à natureza em seu conjunto, em que
o sujeito integra-se e nesse todo se funde. Essa se vive como totalizadora, por
viver a presença da natureza como um todo e pelo próprio sujeito sentir-se feito
essa totalidade. Essa experiência encontra-se nas formas monistas, em que o
sujeito experimenta, em sua consciência mais profunda, a mesmidade, Atman, e
sua identificação com a raiz e o principio de tudo, Brahman393
.
Na mística teísta, esse aspecto da experiência se revestirá de uma forma
nova que radicaliza um aspecto já presente em toda experiência religiosa. Em
qualquer experiência religiosa, o homem tem consciência de intervir com todas as
suas dimensões e sente-se radical e inteiramente implicado.
É uma experiência mais além da diferenciação dos sentidos, desde o centro
mesmo da pessoa. Para expressar essa radicalidade e totalidade da experiência, S.
João da Cruz recorre ao sentido do tato como órgão da mesma e fala de um
‘contato substancial da substância de Deus na substância da alma’394
.
b) Passividade da experiência mística
Esta é uma das características mais importantes da experiência mística. E
não deve ser entendida como sinônimo de inatividade, de ociosidade, de inércia,
pois é vivida pelo sujeito no sentido de que seu fim, Deus, só pode ser conhecido
na medida em que, anterior a si mesmo e já presente nele, se dê a conhecer. Como
diz S. João da Cruz, “se a alma busca a Deus, muito mais a busca seu amado a
ela”395
.
Sua essência consiste, então, na superação do sujeito no conhecimento
ordinário, a partir da sua adesão à ação de Deus sobre sua vida. Assim, acontece
com o êxtase e a contemplação, que se caracterizam como ativos por causa de um
fervoroso exercício que se requer do sujeito diante de algo que irrompe em sua
393 Cf. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 322. 394 Cf. Ibid., p. 323. 395 S. João da Cruz, poema: Chama viva B, 3,28.
104
vida. É desta forma que se dá a passividade do sujeito na experiência, que
acontece com mais unanimidade nos casos de experiências místicas religiosas396
.
Toda experiência religiosa é vivida pelo sujeito de forma passiva por
reconhecer que, no encontro, “Deus só pode ser conhecido na medida em que,
anterior a ele próprio e já presente nele, se dá a conhecer”397
. A experiência
mística radicaliza este traço presente já em todo conhecimento humano e no
conhecimento ordinário de Deus. Na experiência, o homem toma consciência de
uma presença doada e a experimenta como tal.
c) Experiência imediata por contato com a realidade experimentada
Esta é uma característica considerada difícil de ser explicada e
compreendida no fenômeno místico, porém toda experiência é um
‘desvelamento’.
O conhecimento experiencial é o contato direto, imediato, sem qualquer tipo
de mediação do sujeito com a realidade experimentada, provocando um
‘desvelamento’, ou seja, a queda dos obstáculos que impediam a visão, como
superação da situação de engano, ilusão. Nas experiências místicas do hinduísmo
e do budismo, essa característica é entendida como um despertar ou uma
iluminação que põe em contato com a verdadeira realidade398
.
Sobre a experiência teísta, recordemos num versículo do livro do Êxodo uma
das grandes experiências místicas iniciada com a pergunta “Dize-me teu nome”399
.
Nas experiências místicas religiosas, este é o ponto de partida para sua realização,
por existir no ser humano uma procura por algo ou alguém que, sem deixar-se
perceber, já está presente, desencadeando, assim, uma busca constante pelo
encontro, que se dará apenas quando realizada a experiência.
Dessa forma a “experiência mística, ao responder a esse desejo, a essa busca
e súplica parece comportar a visão direta, o contato imediato com a realidade final
de desejo”400
. Faz isso por meio de uma experiência que significa uma forma de
conhecimento diferente da percepção, conhecimento e amor, próprios da
consciência ordinária.
396 Alguns autores qualificam estas experiências como experiências ‘infusas’. Cf. VELASCO, J.
Martin. El fenómeno místico, pp. 324-327. 397 Ibid., p. 325. 398 Cf. Ibid., p. 328. 399 Ex 3,13. 400 VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 329.
105
Trata-se de contato imediato na medida em que nada alheio ao sujeito em
seu centro mais pessoal se interpõe entre a presença divina e seu próprio ser.
Porém, tal imediatez declara-se mediada, porque é sinal da ação de Deus na alma,
convertida toda ela em meio de perceber a Deus, de onde tudo se reflete no
homem como reflexo da Presença401
.
Por isso, não deve a imediatez ser entendida como experiência empírica,
porque a relação interpessoal na ordem humana é incompatível com a condição
infinita e absoluta do ‘tu’ divino. S. João da Cruz fala sobre a imediatez em seus
textos ao se referir aos ‘contatos’: “contato só da Divindade na alma, sem forma
nem figura alguma intelectual nem imaginária”402
.
Assim, o tipo de imediatez que corresponde à experiência mística não é uma
visão direta em que o homem percebe diretamente a Deus como objeto, mas um
conhecimento ‘imediato’, que produzirá melhor pelo contato amoroso de Deus
com a alma, originando uma experiência in dono percepto o ex dono appropiato,
no dom mesmo em que Deus une a alma com ele. Nele, o sujeito descobre por
haver experimentado o “rosto do amado que leva em suas entranhas
desenhado”403
.
d) Experiência fruitiva
Esta característica refere-se nas experiências místicas a sentimentos
inteiramente novos em relação aos que haviam sido experimentados em outros
momentos. Esses são muitas vezes indescritíveis por meio de palavras, como, por
exemplo, gozo, alegria, paz. E em muitas ocasiões se expressam através das
lágrimas.
Ela revela a peculiaridade dos sentimentos descritos muitas vezes em
expressões ambivalentes e paradoxais, aproximando-se dos elementos que R. Otto
havia apresentado em sua clássica descrição da experiência do Mistério numinoso
que surpreende o sujeito (mysterium tremendum) e ao mesmo tempo o cativa e
fascina (Mysterium fascinans)404
.
Toda a raiz dessa ambivalência e harmonia de contraste encontra-se na
natureza da realidade divina, desfrutada apenas pelo ser humano no mais profundo
401 Cf. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico en la historia y en la actualidad, p. 33. 402 Id., El fenómeno místico, p. 330. Ver nota 42. 403 Ibid., p. 331. Ver nota 47. 404 Cf. OTTO, Rudolf. O sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o
racional. São Leopoldo, Sinodal/EST; Petrópolis: Vozes, 2007.
106
do seu desejo. E esse desejo é um desejo de Deus, vivido, sentido com
radicalidade, quando é o que deseja com toda a verdade de seu coração. É o
resultado no homem da prévia presença de Deus nele, o sinal que imprime no
homem, sob o olhar amoroso de Deus que faz o homem literalmente ser-para-
Deus405
.
e) Simplicidade ou singeleza da experiência mística
Para esta característica, é importante destacar que a simplicidade não
significa ‘empobrecimento’, ‘redução’ da pessoa que realiza essa experiência, mas
se trata, nela, de uma concentração no unum necessarium, que não faz mais que
intensificar a força da luz, como a concentração dos raios do sol enfocados em um
ponto da superfície que iluminam, intensificam sua força para abrasar tudo quanto
se encontra nele406
. Velasco cita Panikkar como um dos autores que colocam a
simplicidade no cume ou na essência da experiência mística407
.
E para chegar a uma forma sumamente simples de relação com Deus é
destacado um processo de purificação ascética que comporta a mais radical
simplificação e redução à unidade e à simplicidade. E o desprendimento põe o
homem em disposição de entrar na relação, de unir-se com o unum necessarium.
O homem se desprende de tudo para coincidir com seu ser verdadeiro, “aceitar o
ser próprio de Deus”408
.
Assim, se o desprendimento opera a unidade, a simplicidade, sua
radicalidade adquire a medida da unidade e simplicidade. Porque o
desprendimento vivido em tamanha intensidade refere-se absolutamente a tudo.
Ou seja, não se refere apenas às realidades exteriores ao sujeito, refere-se também
às faculdades do homem e aos seus atos. Refere-se também ao homem mesmo e
alcança o próprio desprendimento, porque o apego ao próprio desprendimento se
coloca entre Deus e o homem, impedindo que a vontade de Deus se realize
plenamente no homem.
405Cf. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 334. 406 Cf. Ibid., p. 341. 407 Cf. Ibid., p. 335. A obra de Panikkar a que Velasco se refere é: Elogio de la sencillez, Verbo
Divino, Estella, 1993. 408 Ibid., pp. 338-339.
107
Isso significa, então, assumir sua condição humana na abertura do seu ser
verdadeiro. Assumindo o nada para chegar ao todo, em um desprender-se
totalmente para unir-se ao Absoluto.
f) Inefabilidade da experiência mística
Nesta característica, apresenta as observações de W. James que se referem à
inefabilidade como a primeira das propriedades da experiência mística. Foi a
partir de sua caracterização do misticismo, que se tornou raro o autor que não
coloque a inefabilidade entre suas características409
.
James chegou a esta afirmação a partir das experiências de mística da
natureza, em representantes da mística afetiva ou esponsal, e, naturalmente, em
representantes da mística essencial. Os testemunhos mais explícitos procedem dos
místicos que fazem consistir essa experiência na ‘realização’ da unidade no
Absoluto, no divino ou no Uno, mais além de todo ato de conhecimento que
suponha a dualidade do sujeito que contempla o objeto contemplado. Nesta
unidade, o sujeito supera o esquema sujeito-objeto, provocando a falta de uma
estrutura conceitual que supõe a linguagem como sistema de significantes
referidos aos significados410
.
A inefabilidade, então, refere-se às interpretações dos místicos, como
também dos estudiosos da mística quando tentam expressar em palavras o que é
impossível, por tratar-se de uma experiência que os transcende. Isso a torna,
quando entendida ao pé da letra, insignificante diante da razão.
Diante dessa constatação, Velasco apresenta-nos alguns passos que podem
ajudar no entendimento do que for relativo à inefabilidade. Ele faz isso se
referindo a P. Moore411
, que, primeiro, distingue a inefabilidade em ‘emocional’,
pela dificuldade de expressar com palavras o conteúdo de experiências
emocionais, afetivas, e que abarca o vasto terreno de todas as vivências internas.
Para esse autor, é impossível interpretar a experiência mística como tentativa de
superar a razão. Para ele, esta experiência sempre terá como principal
característica sua condição de inefável.
409 Cf. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 341. A obra de W. James a qual se refere é:
Las variedades de la experiencia religiosa. Penisula, Barcelona, 1988. 410 Cf. Ibid., pp. 341-342. 411 Cf. MOORE, P. Mystical Experience, mystical doutrine, mystical technique. En St. T. Katz
(ed.), Mysticism and philosophical analysis, Seabury press, New York, 1978. Apud. VELASCO, J.
Martin. El fenómeno místico, p. 345.
108
Em outros casos, a inefabilidade é vista como ‘causal’ quando o sujeito
sente-se incapaz de explicar sua experiência. E aqui estaríamos diante de uma
inefabilidade de fato. No entanto, P. Moore alerta-nos para o fato de que não
faltam casos em que os místicos referem-se de forma inequívoca à inefabilidade
do que têm vivido. Para ele, esta atitude demonstraria uma inefabilidade
‘descritiva’, ou seja, uma forma própria da experiência mística, remetendo-a ao
terreno do ‘irracional’. Contribuiria para que o fenômeno místico seja inacessível
à consideração, à análise e à interpretação de quem não tivesse acesso a essa
experiência, tornando impossível a universalidade de suas conclusões412
.
Percebemos aí a necessidade de evitar que o fenômeno místico seja reduzido
à competência da razão. Para tal risco, alguns autores submetem as afirmações dos
místicos a todo gênero de explicações, reduzindo-as a recursos retóricos para
destacar a peculiaridade, a intensidade e o valor dos estados aos que se referem.
Entretanto, Velasco entende que seja necessário acolher a verdade última
das expressões dos místicos sobre a inefabilidade de suas experiências, por
acreditar que possa sua declaração estar fundamentada em uma concepção de
linguagem deficiente. Para ele, o caminho deve ser feito a partir de uma atenção
especial a alguns desenvolvimentos das teorias atuais sobre a linguagem e a
experiência, a fim de que seja possível captar o núcleo de verdade das declarações
dos místicos, sem deixá-las no terreno do irracional413
.
Diante dos testemunhos de inúmeros místicos, tem-se a comprovação de que
a inefabilidade não tem condenado os místicos à mudez. Mas, ao contrário, os tem
conduzido a um lugar em tensão extrema de suas faculdades expressivas, levando-
os a recorrer pessoalmente à recriação ‘simbólica’ de vários símbolos comuns a
todos eles, recorrendo ao simbólico da noite, do vazio, do silêncio ou inventando
uma nova linguagem. Assim,
tudo descansa sobre uma atividade simbólica em que o sujeito aflora sua consciência, expressa e comunica um mais além de si mesmo pelo que se sente
habitado, de cuja presença não pode prescindir, pois, que tampouco pode captar
diretamente como capta os objetos414
.
412 Cf. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 346. 413 Cf. Ibid., p. 347. 414 Ibid., p. 348.
109
Diante do inefável da experiência mística, todo conhecimento objetivo da
consciência ordinária se depara com sua ineficácia em expressá-la de forma direta
em palavras que possam significar algo.
Dessa forma, os místicos, ao referirem-se a sua inefabilidade, sublinham não
só a transcendência de seu conteúdo, mas a novidade de sua forma, pois se torna
frequente que, diante da necessidade de expressá-la, recorra ao conhecimento de si
mesmo como caminho imprescindível para a experiência de Deus, como mostra o
chamado ‘socratismo cristão’, ‘conhece-te a ti mesmo’, e a experiência de amor,
em que S. Gregório de Nissa disse: “pois o conhecimento se torna amor”415
.
Entendemos que seja necessário esclarecer que o inefável desta experiência,
não se refere a um adicional de informações sobre a presença, do que o
místico dispusera mais além do que sua linguagem é capaz de dizer. É a
expressão da consciência na insuficiência da linguagem, a expressão da
convivência do limite, que é a única forma dada neste estágio da vida
humana de superá-lo416.
g) Experiência certa e obscura
Não nos é difícil encontrar nos relatos de experiências místicas a declaração
que o sujeito faz de ter começado a ver Deus. Místicos das diferentes tradições
religiosas confessam, depois de sua experiência, que tudo o que sabiam até esse
momento sabiam como um saber de ouvido, em comparação como o novo saber,
qualificadamente diferente, graças ao qual têm ‘visto e ouvido’. Daí a certeza
subjetiva que acompanha os estados místicos417
.
Esta certeza se traduz na perfeita claridade de quem faz uma ideia clara e
distinta do que conhece. Está baseada em uma luz que vem do mais além do
próprio sujeito, e consubstancialmente obscura, tanto pelo tipo de experiência,
como pelo meio de conhecimento, a fé, como pela realidade conhecida. A
obscuridade nunca superada da experiência mística dá lugar à utilização por toda
tradição mística do símbolo da noite que se refere a uma fase inevitável do
processo, ou a um elemento consubstancial de sua estrutura418
.
415 VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 375. 416 Ibid., p. 349. 417 Id., El fenómeno místico en la historia y en la actualidad, p. 28. 418 A tradição mística do símbolo da noite tem sua origem em S. Gregório de Nisa, para quem o
itinerário espiritual, tem na mais profunda obscuridade que supõe para o homem a condição
misteriosa de Deus. Pertence também a Pseudo-Dionísio que introduz duas imagens que servirão
de referência permanente na tradição apofática: a do ‘raio de treva da divina supraessencia’ e a da
‘misteriosa escuridão do não saber’. Para J. Tauler este símbolo adquiriu um lugar central em sua
110
E essa consciência de ter ido ao fundo, de uma manifestação evidente da
verdadeira realidade acompanha em todos os casos esta certeza absoluta, que
desafia toda dúvida em relação ao que acabam de viver.
No entanto, essa certeza não se refere a todas as etapas ou a todos os
aspectos do complexo fenômeno místico. Ela se refere ao que é impresso na alma
pela realidade mesma que se oferece. Como S. João da Cruz adverte “porque
assim como (as notícias) são mais exteriores e corporais, assim também menos
certas são de Deus” e também Sta. Teresa “Esta visão, ainda que imaginasse
nunca a vi com olhos corporais, nem ninguém, senão com olhos da alma”419
.
A certeza é o resultado do contato do sujeito com a realidade contemplada. E
por não ser o resultado dos sentidos e nem da inteligência discursiva, esta não se
vê ameaçada por sua fragilidade, nem submetida a sua limitação, desafiando todas
as razões humanas.
Velasco nos faz lembrar de S. Gregório de Nissa. Para este, a “experiência
de Deus, mesmo que seja uma experiência de uma presença obscura, é uma
presença que se comunica como sentida e apreciada no amor, porque envolve a
alma como numa noite divina”420
. O homem é, assim, prova do mistério
insondável que é Deus, pois, quanto mais se aproxima dele, mais experimenta sua
obscuridade, seu mistério.
1.6 O núcleo originário da experiência mística
Diante de todas essas propriedades da experiência mística, a fenomenologia
do fenômeno místico se pergunta sobre o núcleo originário desta experiência, do
qual se derivam suas propriedades tão peculiares.
Um estudo analítico das propriedades descritas permitiria descobrir
referências semelhantes se baseadas na cumplicidade e comunicação entre as
diferentes propriedades. Para Velasco, todas estas propriedades suscitam algo de
realidade última: Presença originante que a provoca, e a atitude de
obra e experiência. Como também para S. João da Cruz, o místico da noite por excelência. A noite,
para este santo, é um componente para toda experiência de Deus, “o fim para onde vai, que é
Deus, o qual nem mais nem menos é noite escura para a alma nesta vida”. Sobre S. João cf. VELASCO, J. Martin. Experiência cristã de Deus, pp. 201-294; Sobre a tradição do símbolo da
noite, cf. Id., El fenómeno místico en la historia y en la actualidad, pp. 29-30. 419 Id., El fenómeno místico, p. 352. Ver nota 103. 420 Ibid., p. 354. Essa experiência diante da obscuridade da presença de Deus é a razão para
teologia negativa. Para essa, a experiência mística não se encontra na dificuldade do homem em
conhecer a Deus, mas na natureza mesma de Deus, por ser mistério insondável.
111
reconhecimento pela fé, que é realizável em diferentes graus de intensidade,
parece remeter a um termo que as focaliza, a um núcleo que as origina421
.
Velasco, no intento de identificar esse núcleo pela fenomenologia da
mística, desenvolverá esta tarefa através dos relatos e experiências místicas dos
sujeitos que a viveram. Ele se surpreende com o fato de que, mesmo as
experiências místicas possuindo uma grande variedade, por existirem em
contextos religiosos e culturais diferentes, carregam algo de muito semelhante.
Essa variedade de experiências reflete também as variadas circunstâncias
pessoais e psicológicas das pessoas. Pode-se falar de experiências sob a forma de
relação pessoal com o Mistério representado em termos fortemente
personalizados, como sucede no Judaísmo, de relação vivida como abismamento e
extinção na absoluta Transcendência (Budismo theravada) ou como fusão das
profundezas do sujeito como o Brahman ou o Absoluto (Hinduísmo brahmânico).
Cabe também referir-se à variedade originada pelo lugar em que se
produzem as diferentes experiências – o cosmo, a consciência do sujeito, a
história e seus acontecimentos, a totalidade do real – e à variedade que resulta da
forma de se representar a realidade original da experiência como Deus único
(monoteísmo), como Trindade (monoteísmo cristão), como totalidade
indiferenciada que abrange o homem, o cosmo e o divino (panteísmo), como
pluralidade de poderes e de formas que dirigem os diferentes aspectos da
realidade e da vida (politeísmo) ou como vazio inominado do qual não cabe
representação alguma e cuja única palavra é o silencio mais absoluto
(Budismo)422
.
Em suas palavras:
é admirável que pessoas de línguas, culturas, religiões e épocas históricas muito
diferentes e muito distantes entre si coincidam no recurso a uma série limitada de
imagens, símbolos, de alguma maneira arquétipos, que se repetem modulados pelas diferenças de tradições e de pessoas
423.
Para ele, de modo muito especial, por ser este um dos pontos principais de
sua pesquisa, “é sem dúvida a manifestação mais clara de que no fenômeno
421 Cf. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 357. 422 Id., Experiência cristã de Deus, pp. 53-54. 423 Id., El fenómeno místico, p. 358.
112
místico se faz presente um traço permanente e universal da condição humana, uma
“invariável” da humanidade” 424
.
Para Velasco, no núcleo originário da experiência mística constam quatro
expressões: a contemplação, o êxtase, a união e o estado teopático.
a) A experiência mística como contemplação infusa
A palavra contemplação, muito utilizada na tradição cristã, procede de um
contexto anterior ao cristianismo, da Grécia, precisamente de Platão, que
possibilitou aos primeiros pensadores cristãos os recursos para pensar a
experiência de Deus, seu mistério, e que depois começou a ser identificado como
teologia mística425
.
Velasco não apresenta um estudo rigoroso sobre a contemplação platônica,
mas faz uma breve descrição do tipo de conhecimento que designa a palavra
‘contemplação’, a partir dos filósofos, religiosos e místicos que do termo se
utilizaram ao longo da história, para passar depois ao significado ‘técnico’ da
palavra utilizada para expressar o núcleo do pensamento místico.
Ele parte de algumas interpretações do fenômeno descrito e dos problemas
mais importantes que essas interpretações delineiam, o que permitirá para ele
abordar nessa perspectiva o problema da ‘essência’ da experiência mística. E
inicia, então, procurando destacar o sentido da palavra ‘contemplação’ em seu uso
ordinário. Ou seja, essa palavra,
remete a uma forma determinada e superior de visão e conhecimento, que se exerce em diferentes ordens da vida e se refere a uma forma peculiar de aplicação da
atividade cognoscitiva, sensível ou intelectual, em relação com a natureza, a
atividade estética e a vida religiosa426
.
Nessa experiência não se pode negar que aquele que está em contemplação
tem, seu olhar em repouso na realidade contemplada. Isso revela certa
passividade, onde o sujeito que a vive se deixa iluminar pela verdade da realidade
contemplada. E atingindo toda a sua vida, esta se torna vida contemplativa,
fazendo de quem a vive um contemplativo.
O termo ‘contemplação’ teve no terreno religioso, mais tarde visto como sua
‘terra natal’, suas propriedades realizada em grau eminente. Tudo começou
partindo do entendimento da theoria – o termo grego para contemplação – que em
424 VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p.358. 425 Cf. Ibid., p. 359. 426 Ibid., p. 360.
113
seus derivados e um significado religioso; o Pseudo-Plutarco pretendeu relacionar,
ao parecer sem razão, a primeira parte theoria com theos (Deus); e os latinos
atribuíram a contemplare um sentido religioso, pondo a palavra em relação com
templum. ‘Contemplar’ é admirar esse grande templo que é a natureza, templum
que consiste em um lugar aberto onde se pode estender o olhar. Depois essa noção
foi aplicada ao conhecimento de Deus427
.
Logo, para explicar o uso da categoria contemplação, faz-se indispensável
introduzi-la no interior do contexto religioso e cultural a que pertence, como
também, discernir seu significado em cada uma das religiões428
. E Velasco o fará
referindo-se expressamente ao significado de contemplação na tradição cristã.
Para o cristianismo, a contemplação supõe uma forma de conhecimento de
Deus enraizado na fé, que não comporta nenhuma forma de captação ou
percepção experimental de Deus. Para outros, baseando-se em alguns textos de
místicos reconhecidos da tradição cristã, a contemplação, em seus últimos
progressos à contemplação mística, comportaria “um conhecimento experimental
e direto, uma percepção imediata de Deus”429
.
O que está por baixo dessa discussão são duas formas de interpretar o fato da
contemplação, fundadas em duas formulações tanto de autores espirituais como de
teólogos e interpretes do fenômeno místico. Esses sublinham, por uma parte, a
condição misteriosa do termo da contemplação e, por outra, a consciência de ter
experimentado, de ter sido iluminado, de que dão testemunho os relatos místicos,
o que possibilita a alguns intérpretes entender a contemplação como uma forma
sublime de experiência direta, de percepção imediata de Deus430
.
E é por causa das interpretações da experiência mística em termos de
experiência direta e imediata de Deus, que Velasco desenvolverá um estudo a
partir de diferentes posturas, de alguns teólogos, filósofos e fenomenólogos, para
em seguida apresentar sua própria compreensão da natureza da experiência
mística431
. Ele chega à conclusão de que a peculiaridade da experiência religiosa
se radicalizada na contemplação, como forma suprema de sua realização e da
tomada de consciência da mesma.
427 Cf. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 361. 428 Cf. Ibid., p. 362. 429 Ibid., p. 366. Ver nota n. 26 e 27. 430 Cf. Ibid., p. 367. 431 Cf. Ibid., pp. 368-385.
114
b) O êxtase
Diferente de todos os outros estados da experiência mística, o êxtase é
particularmente intenso e extremamente perceptível no sujeito. No entanto, como
veremos, não é o momento culminante da experiência mística.
O êxtase é um fato frequente na vida mística, não só em suas manifestações
religiosas, mas também nas formas profanas que põem de manifesto a repercussão
de experiência humana muito intensa sobre o psiquismo e a corporalidade dos
sujeitos que as sofrem. Para sua descrição, faz-se necessário distinguir dois
elementos: O exterior, ‘negativo’, identificável como ‘transe extático’, que
consiste em um estado somático anormal. Positivamente, o êxtase consiste em
uma intensa concentração da mente, da imaginação ou da afetividade em um
objeto único432
.
Percebe-se, nestas duas distinções, que essas se referem às definições usuais
do termo, primeiro pela ‘suspensão maior ou menor do uso dos sentidos’ e depois
por um ‘estado da alma inteiramente preenchida pelo sentimento de admiração,
alegria, etc.’ ou, no caso do êxtase místico religioso, a um estado da alma
caracterizado interiormente por certa união mística com Deus mediante a
contemplação e o amor.
No entanto, podem ser também produzidos por experiências diferentes: em
um primeiro momento, pode ser resultado de anomalias psíquicas ou vir
acompanhadas delas, e ser provocadas por procedimentos ou técnicas apropriadas
ou por ingestão de drogas.
Outros problemas que delineam esse fenômeno consistem na existência de
místicos que apresentam sintomas patológicos na vivência de suas experiências.
Esses não são considerados místicos por serem psicopatas. Sua condição de
místico influenciou em sua neurologia ou psicopatologia. Os místicos de
constituição normal ou curada apresentam desfalecimentos no ‘funcionamento’ de
suas capacidades como consequência da intensidade das experiências que
vivem433
.
Porém, é importante que sobre a experiência como tal em sua dimensão
interior, espiritual, os místicos religiosos e, em alguns casos, também os não
432 Cf. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 399. 433 As ciências médicas, da psicologia e da antropologia passaram a estudar os fenômenos
místicos, e o parentesco do êxtase com outras formas de estados extáticos vividos em contextos
diferentes e com enfermidades somáticas ou psicológicas. Cf. Ibid., p. 405.
115
religiosos afirmem que o que vivem é resultado de uma ação de Deus sobre eles.
Chegam a falar da infusão de Deus em suas faculdades, no centro de sua pessoa
do dinamismo e virtualidades que escapam a suas forças e seu controle. Por isso,
ocorre, por parte dos místicos, aversão ao fato de que o êxtase possa ser
provocado.
Isso parece ser uma característica de toda mística religiosa. Por exemplo:
O samadhi no hinduísmo, o satori no zen, que sem identificar-se com o êxtase
contém em parte seus elementos, não é resultado do treinamento que comporta a yoga. Ocorre na vida como a iluminação do Buda, sem que o sujeito possa
determinar o momento e o lugar de sua chegada434
.
Esse fenômeno tem grande importância na mística cristã, pois “aparece em
todas as manifestações da vida mística cristã e ocupa um lugar em quase todas as
descrições e interpretações que dela se tem dado”435
. Tem como a ‘união mística’
suas fontes na tradição bíblica e na religiosidade grega, na filosofia platônica e
neoplatônica436
.
No entanto, esse fenômeno, mesmo diante de toda a sua importância para as
experiências místicas, e mesmo na vida mística de Sta. Teresa, não é um elemento
essencial nem integrante da contemplação infusa, nem a fortiori, seu momento
culminante, pois existem místicos que dão mostra de ter chegado eminentemente à
união sem ter padecido do êxtase437
.
c) A união mística
Velasco, com apoio sobretudo dos textos dos místicos cristãos, mas também
de místicos muçulmanos e judeus, acredita que o centro e resumo da experiência
mística, consiste em que nela o sujeito vive na imediatez mediada do contato
amoroso, a união mais intima com a realidade mesma de Deus presente no mais
profundo do ser do sujeito438
.
Por isso, torna tão significativo em sua investigação sobre o núcleo da
experiência mística este tema da união. Por “expressar o grau último da relação
434 VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 406. 435 Ibid., p. 404. 436 Sobre as fontes bíblicas, esse fenômeno encontra apoio nas diferenças veterotestamentária ao profetismo extático. No Novo Testamento, atribuem experiências extáticas a Jesus, a Paulo e a
Estevam, e conta com os fatos e carismas das comunidades primitivas – como o acontecimento de
Pentecostes e a glossolalia. E foram os padres que começaram a utilizar o léxico próprio do
fenômeno extático com clara dependência da filosofia platônica. Cf. Ibid., p. 400. 437 Cf. Ibid., p. 405. 438 Cf. Id., La experiencia mística, p. 31.
116
mística, a meta final do intermediário espiritual, a forma mais perfeita da
experiência mística”439
. Além disso, por confluir com outros muitos aspectos e
fenômenos da experiência, tais como o rapto, o êxtase, o estado teopático, a
transformação, que alguns autores se referem como cume de sua experiência.
Esta união é a resposta aos anseios que os místicos carregam pela força
atrativa do amor que lhe vem do próprio Deus, meio privilegiado para a união. O
encontro com Deus, por realizar-se ‘na alma no mais profundo centro’, tem lugar
mais além dos atos próprios das faculdades humanas, porém nos dois,
entendimento e vontade, redunda a união de Deus com o sujeito440
.
O conhecimento que tal união procura distingue-se de todas as outras formas
de conhecimento, cuja diferença se encontra “na experiência tanto objetiva como
subjetivamente mais direta, às vezes inclusive imediata da presença divina”441
.
Os escritos dos místicos são precisos quando revelam o que desejam: a
união com Deus, a qual acontece de muitas maneiras e formas, de acordo com as
diferentes imagens e símbolos. Em primeiro lugar, pelos contextos religiosos e
culturais, pelos diferentes graus de intensidade que essa união pode alcançar;
pelas diferenças que reveste a experiência devido às diferenças pessoais de quem
a vive; e por último as diferentes formas de viver esta realidade442
.
Certamente, a união introduz mudanças na consciência dos sujeitos. Esses
podem chegar a uma espécie de suspensão da consciência, na interrupção do uso
das faculdades humanas. Porém, essa suspensão não condena o sujeito à
inconsciência, pois ele a vive com alguma forma de consciência que lhe permite
depois recordar o vivido e descrevê-lo com notável precisão443
.
Essas diferenças revelam-se nas experiências místicas dos Upanishads, do
taoísmo e do budismo, em que “todas as formas de viver e representar a união se
orientam para uma compreensão do termo que coincide em uma representação não
pessoal”444
. Uma união que se converte em isolamento, identificação, fusão ou
dissolução na realidade, origem e fim do processo.
439 VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 386; Id., El fenómeno místico en la historia y en la actualidad, p. 34. 440 Cf. Id., El fenómeno místico en la historia y en la actualidad, p. 33. 441 Ibid., p. 33. Ver nota 30. 442 Cf. Ibid., p. 387. 443 Cf. Ibid., p. 34. 444 Id., El fenómeno místico, p. 388.
117
Em outro extremo, situam-se as tradições cristãs e mulçumanas que
representam o termo união na forma personalizada de um Deus que tem nome
próprio e em algum caso, como no cristianismo, encarnado em uma vida humana,
aqui nessa experiência não há fusão ou dissolução, a alteridade se mantém. Uma
última diferença nas formas de viver e de representar a união consiste nos
diferentes graus que essa pode realizar.
Isto se situa entre os graus mínimos, localizado na fronteira das manifestações não
místicas da vida religiosa, e os últimos graus como matrimônio espiritual e a união transformante, em que a razão humana perde sustentação, as experiências inclusive
simbólicas desfalecem e os místicos caem no silêncio e convidam seus
interlocutores ou seus leitores ao silêncio445
.
A união mística comporta uma modalidade nova de consciência, que
Velasco chama de ‘transconsciência’, baseada na atuação de um nível mais
profundo que o das faculdades e que produziria uma forma nova de conhecimento.
E nela funcionaria como um ‘consciente ser-com’, mais que como um ‘pensar-
sobre’. Aqui a consciência do homem passaria a transparecer o ‘novo ser em
Deus’446
.
Sobre os relatos dos místicos cristãos, no que se refere à união mística,
vejamos as experiências e personagens dos textos bíblicos e as categorias do
platonismo e do neoplatonismo, como possibilidades que os místicos encontraram
para expressar sua experiência.
Isso permite identificar nos textos místicos cristãos algo a mais que os textos
evangélicos, por terem eles estimulado doutrinas, termos, categorias nascidas em
outras culturas e, especialmente, na filosofia e na religiosidade grega447
.
No entanto, a
descrição da essência mesma da união esconde-se tanto como se revela através das
imagens, e escapa à responsabilidade de uma descrição adequada. Para poder
compreendê-la e expressá-la seria preciso que o homem pudesse dar conta da
Divindade em que a união o transforma448
.
445 VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 389. 446 Cf. Id., El fenómeno místico en la historia y en la actualidad, p. 34. 447 Cf. Id., Op. cit., pp. 391-392. Sobre a influência do platonismo, o neoplatonismo e de Plotino na experiência mística cristã, Velasco parte então, da relação com Deus evocada entre os filósofos
platônicos, e, sobretudo neoplatônicos, pela utilização dos termos como “amizade”, “semelhança”
que faz a alma “deiforme”. E que mais longe chegou Plotino com o termo de ‘união’ (kenosis): “Já
não são dois, senão um”, que significa identificação com o Uno por meio do amor que une o Bem
por um novo nascimento, pela inabitação divina. 448 VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 397.
118
Porque é certo que quanto mais as pessoas se aproximam da Divindade,
mais se veem abrasadas todas as suas potências e capacidades por ela.
d) Estado Teopático
Velasco utiliza-se desta categoria que tem sua raiz na tradição cristã, para
designar o núcleo e o cume da experiência mística. E o faz a partir do sujeito que
“mais que apreender Deus, mais que conhecê-lo, recebe-o, padece-o”449
. O autor
nomeia o que esta categoria produz no sujeito, como exerce sua condição e como
se traduz na sua vida. E como se apresenta a vida de quem, na união
transformante, tem recebido uma vida nova, que não é outra senão a vida de
Deus450
.
H. Delacroix estudou essa expressão de forma rigorosa, no início do século
passado. Esse termo ‘estado’ ressalta a situação a que o sujeito místico chega
depois de um longo processo que constitui toda a experiência mística451
. Para
Delacroix, ‘estado’ não significa que a situação a que se chega consista em um
repouso definitivo.
E que a experiência mística não é só um fenômeno dinâmico. É uma experiência
que só é compreendida adequadamente como epéxtasis, tensão nunca liquidada,
perfeição em progresso permanente, em movimento sem fim, pelo fato de que seu fim é Deus, a realidade infinita, cuius regni non erit finis, cuja natureza consiste em
não ter fim452
.
Esse termo epéxtasis foi utilizado por S. Gregório de Nissa para caracterizar
a vida mística a partir do texto de Paulo, em que o Apóstolo descreve-se
esquecendo o que deixou para trás “avançando para o que está adiante”453
. Ele
propõe como núcleo que a origina e a caracteriza, uma tensão permanente
originada pelo desejo de Deus que desperta na alma sua condição de imagem, e
que aumenta à medida que se aproxima de seu ‘objeto’.
Assim, a condição de epéxtasis da experiência mística é dada pela
transcendência infinita de Deus que possibilita que a mesma visão da glória não
449 VELASCO, J. Martin. Experiência cristã de Deus, p. 53. 450 Cf. Id., El fenómeno místico, 408. 451 Cf. DELACROIX, H. Études d’historie et de psychologie Du mysticisme. Le grands mystiques
chrétiens, Paris, 1908, p. 416; também pp. 417 e 368. Apud. VELASCO. El fenómeno místico, p.
409. 452 Ibid., p. 407. 453 Fl 3,13.
119
seja descrita como um estado de fim, senão como o ‘descobrimento
permanentemente maravilhado das riquezas inesgotáveis da vida divina’454
.
O termo ‘teopático’, por sua vez, tem sua origem na passividade. Velasco
nos diz que o texto do Pseudo-Dionísio é o que melhor tem expressado como ‘non
tantum discens sed et patiens divina. Ou seja, uma passividade que não só
apreende, mas patiens, quer dizer, experimenta o divino. Como também padece
recebendo de Deus a luz e o impulso indispensável para entrar em contato com
ele, e sofre com o deslumbramento de sua luz que cega, com o esvaziamento e a
purificação indispensável em acolher sua Presença455
.
Ele adota as características apresentadas por J. Baruzi456
, para o qual o
estado teopático é a expressão para designar o último estado de vida mística. As
características são: a união com Deus, a transformação de amor nele, e por deixar
na alma dois efeitos, apresentados por S. João, que são: “esquecimento e alienação
de todas as coisas do mundo e mortificação de todos os apetites e gostos”457
.
Esse ‘esquecimento e alienação’, no entanto, não priva a alma de sua relação
com a realidade criada, não paralisa seus sentidos e potências para impedi-las de
captar seu ser e sua beleza. O sujeito livre para acolher essa Presença é também
livre para assumir, nessa experiência sua vida ordinária, pois tudo lhe é devolvido
no estado teopático, transfigurado e embelezado por seu olhar, pelo olhar de Deus.
Velasco procura expressar o resultado do estado teopático, vendo-o como a
‘inversão total de intencionalidade’, que exige e comporta a fé e que a experiência
mística leva a seu fim, inversão que, num primeiro momento, tem conseguido
produzir a impressão ‘perdida da realidade’, pois tem conduzido o sujeito a ver a
verdadeira trama das coisas que sua vista só natural o faz ver ao revés: “conhecer
por Deus as criaturas e não pelas criaturas conhecer a Deus”458
.
Assim, essa inversão que intervém no amor de Deus faz com que esse
consista fundamentalmente em deixar-se amar por ele, em aceitar ser amado, em
acolher seu amor ou em corresponder a um amor prévio de Deus por nós que
suscita nosso amor por ele.
454 Cf. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 408. Ver nota n. 146. 455 Cf. Ibid., p. 409. 456 BARUZI, J. Saint Jean de la Croix et Le problème de l’expérience mystique, Alcan, Paris,
1931. Apud. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 410. 457 S. João da Cruz, Poema: Cântico A, 17,1. 458 VELASCO, J. Martin. Op. cit., p. 414. Ver nota n. 165.
120
A isto corresponde o terreno do amor, não em amar a Deus pelo bem que procura,
senão, libertada a vontade do apego que a escraviza aos bens mundanos, amar a
Deus por Deus mesmo e, como consequência, amar a si mesmo e as criaturas com o
amor mesmo de Deus, ‘altamente com afeto divino’459
.
Essa conversão supõe que Deus não seja mero objeto do homem, mas a raiz
que o orienta, a partir de uma presença, que longe de girar em torno do homem,
situa-o na órbita do divino, capacita-o para o possível chamado de Deus, dilata-lhe
o coração para torná-lo capaz de recebê-lo.
Sobre o estado teopático, ele chega à conclusão de que seu arremate está na
irrupção da vida pessoal, na penetração de todas as dimensões e níveis do ser que
inicia a experiência mística enquanto experiência pessoal do consentimento da
presença em que consiste a fé. Logo, o que resulta é poder enxergar a vida na sua
realidade a partir do seu verdadeiro centro, e percebê-la como na verdade ela é460
.
Velasco nos ajuda a entender que este estado está revestido pela “harmonia
da pessoa e sua vida; na permanência ou não da consciência desse estado, e na
natureza do gozo que a acompanha”461
. Para ele, é evidente que essas formas nas
diferenças em que se apresentam no fenômeno místico, em seu conjunto, refletem
as formas de viver e permitem descrever o estado.
Até mesmo no interior de uma mesma tradição como a cristã, pode cada um
viver sua própria experiência e manifestar as peculiaridades provenientes de suas
características e circunstâncias pessoais.
O estado teopático não desloca o sujeito a um mundo recôndito de
experiências extraordinárias, mas o devolve à vida diária que, recentrada pelo
exercício da opção teologal, da experiência de fé, permite viver com novo valor,
com novo sentido, com um novo olhar, o conjunto de sua vida cotidiana. Porque a
“conversio cordis, a raiz teologal da experiência mística, não só exige, mas
também possibilita a conversio morum, a mudança de conduta que comporta a
moral”462
.
Assim, esse último grau da experiência mística não retira o místico da
sociedade e do mundo em que vive. Ao contrário, consuma-se em uma
459 VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 414. 460 Cf. Ibid., p. 414. 461 Ibid., p. 415. 462 Ibid., p. 461.
121
transformação do conjunto da vida: tomada a forma mística de uma mística na
vida e da vida cotidiana463
.
1.7 Mística, condição de existência para a religião
As experiências místicas têm seu centro na experiência humana peculiar,
que faz menção a uma realidade que transcende à ordem da realidade com a qual o
sujeito entra em contato no regime da consciência ordinária. Mesmo existindo em
várias formas, essas têm seu fundamento no fato de compartilharem uma série de
propriedades que lhes conferem uma semelhança funcional e estrutural e um ar de
família surgido dessas propriedades comuns464
.
Em todas as formas religiosas, a experiência que as origina recebe sua
especificação de Mistério. Dessa especificação, segue-se a primeira peculiaridade
da experiência mística em todas as suas formas, que consiste em ter sua origem
em uma radical inversão de intencionalidade, permitindo que o sujeito humano
seja um sujeito não ativo, senão passivo, vivendo como resposta ao Mistério.
No entanto, essas experiências são revestidas de vivências muito diferentes:
“contida nas descrições dos últimos passos do processo do yoga: vivida como
iluminação no budismo; experimentada como íntimo contato amoroso, em formas
diferentes, pelos místicos muçulmanos e cristãos”465
. São também interpretadas
pelo sujeito místico em forma de símbolos pela tomada de consciência do seu ser
mais profundo como “centro que origina todas suas faculdades e atos, centro ele
mesmo originado; fundo, sobre o qual descansa toda a sua vida sem profundidade
para um abismo que está constantemente surgindo”466
.
Mesmo diante de todas as diferenças, é comum a todas elas o local de
contato do sujeito com essa realidade transcendente, na certeza obscura e na
confessada passividade do sujeito, etc. Acontecendo na consciência da identidade
com o Absoluto (brahmanismo), na extinção de si mesmo (budismo), na
conformidade com a lei que rege o devir do universo (taoísmo), na fé-confiança
absoluta (cristianismo), na submissão incondicional (islã), etc467
.
463 Sobre a mística do cotidiano Cf. RAHNER. Karl. Experiencia de la gracia. In: Escritos de teologia, Madri:Taurus, 1961, v.3. pp. 103-107; e Experiência del espiritu, Madri: Narcea, 1977.
pp. 50-53. Apud. VELASCO, J. Martin. Experiência cristã de Deus, p. 86. 464 Cf. Id., El fenómeno místico, p. 424. 465 Ibid., p. 431. Estas vivências foram formuladas por Plotino e citadas por Velasco. 466 Ibid., p. 426. 467 Cf. Ibid., p. 425.
122
Esta experiência mística em suas diferentes formas religiosas nos tem
aparecido como ‘vivência’, na tomada de consciência, na incorporação voluntária
dessa atitude fundamental que está na base de todas as religiões e que no
cristianismo se chama fé-esperança-caridade. Todos os traços muito numerosos
que caracterizam a experiência mística: passividade, certeza-obscura,
simplicidade, inefabilidade, etc., têm aqui sua origem e sua explicação.
Visto que o centro da experiência mística consiste na consciência-adesão à
Transcendência-imanência de que a pessoa humana toma consciência de estar
permanentemente surgindo, e se explicam os traços peculiares do núcleo da
experiência mística: “presença incontestável, que precede ao sujeito e se impõe;
que se faz presente na forma de ausência, só ‘visível’ no ato pelo qual o sujeito
consciente vai mais além de si mesmo e aceita incondicionalmente o ato a que
está se dispondo permanentemente na existência”468
, chega-se, então, à conclusão
de que a mística é parte integrante do fenômeno religioso e que, por isso, afirma-
se a sua existência em todas as religiões.
No entanto, convém lembrar que a descrição da experiência mística como
forma peculiar de realização da atitude religiosa, e o fato de que a atitude religiosa
comporta sempre alguma forma de experiência não têm levado a afirmar sua
realização em grande parte dos membros de todas as religiões. Para ele, a questão
adquire outra perspectiva que permite, por uma parte, precisar o lugar e a função
do elemento místico no conjunto dos elementos que compõem cada sistema
religioso, e, por outra, precisar a figura do místico no cristianismo atual469
.
Sobre a escassez de experiências místicas, S. João da Cruz resume, com
claridade, depois de ter afirmado em numerosos textos inequívocos, a
universalidade do chamado de Deus à perfeição a todas as pessoas. Ele reconhece
o caráter pessoal do chamado e afirma com toda decisão o respeito escrupuloso da
liberdade humana:
E aqui nos convém notar a causa do por que ser então poucos os que chegam a tão
alto estado de perfeição de união com Deus; no qual é de saber que não é porque Deus queria que houvesse poucos destes espíritos levantados, que antes queria que
todos fossem perfeitos, senão que encontra poucos que queiram sofrer e chegar a
tão alto470
.
468 VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 425. 469 Cf. Ibid., p. 447. 470 S. João da Cruz: Poema: Chama B, 2,27.
123
Velasco, então, acredita que a razão fundamental do pequeno número dos
que vivem a experiência mística seja a falta de ânimo, de fidelidade e de
generosidade das pessoas471
, visto que, segundo ele, mesmo que a importância da
experiência mística esteja no seio da vida religiosa, essa não elimina o perigo de
excluir da vocação, da aspiração à perfeição da maior parte dos crentes. Porque
sua essência pode realizar-se de muitas maneiras e todo sujeito religioso está
chamado a realizar a estreita união com Deus, como assim deseja o místico, pois
cada pessoa pode responder a essa vocação de formas diferentes, de acordo com
as múltiplas situações e circunstâncias pelas quais discorre sua vida. Poderão
realizar, assim, o elemento que comporta o exercício da vida religiosa.
No entanto, não todos os elementos místicos encarnam-se na figura histórica
que até agora tem revestido e até agora monopolizado o nome de ‘místico’. Como
dizia K. Rahner, ‘os místicos não representam um grau mais alto que os crentes,
senão um momento interno e essencial da fé’, que se realiza de formas diferentes
por diferentes crentes472
.
Teremos então a oportunidade, no capítulo seguinte, de procurar
compreender a revelação Divina como um acontecimento que se dá
maieuticamente na história, e que por isso, todas as religiões podem, segundo
Queiruga, ser consideradas verdadeiras. Assim, sem deixar de reafirmar a
identidade cristã, esse autor promove um encontro verdadeiro com as demais
tradições religiosas, que realizam de diferentes formas a experiência com esse
Deus que se deixa encontrar independentemente de cultura e religião.
2. “Todas as religiões são verdadeiras”
Para essa afirmação, tema de um capítulo do livro de Queiruga,
Autocompreensão cristã, ele chega a dizer que esse, mesmo tendo ‘um certo ar
provocativo’, não ‘renuncia ao sentido profundo que trazem suas palavras’473
.
471 Cf. VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico, p. 448. 472 Cf. Ibid., p. 452. Ver nota 7. 473 Cf. QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreensão cristã, p. 138; Procuraremos desenvolver esse
tema, reunindo aqui as reflexões de Andrés Torres Queiruga que foram apresentadas nestas obras:
QUEIRUGA, A. Torres. A revelação de Deus na realização humana. São Paulo: Paulus, 1995. Id.,
O diálogo das religiões. São Paulo: Paulus, 1997. Id., Autocompreensão cristã: diálogo das
religiões. São Paulo: Paulus, 2007; Id., Cristianismo y religiones: ‘inreligionación’ y cristianismo
assimétrico. Estúdios, Sal Térrea v. 84, n. 1 p. 3-19, 1997. Para este autor, “se Deus revela-se a
124
Queiruga tem como base para sua afirmação uma nova concepção da
revelação474
. Esta deixa de adquirir um caráter de ‘ditado divino’ e forte sentido
fundamentalista para assumir um novo entendimento, um ‘dar-se conta’ da
presença de Deus ‘sempre aí’, que maieuticamente475
, na história, revela-se ao
homem, sem distinção de tradição cultural ou religiosa. Reafirma a identidade
cristã ao mesmo tempo em que favorece novas perspectivas para o encontro real
entre as várias tradições religiosas.
Como veremos, essa nova maneira de conceber a revelação possibilitou
compreender a ‘particularidade’ como necessidade da realização histórica, abrindo
um novo caminho e novas possibilidades, vislumbrados com a queda do
exclusivismo, pela necessidade de rever a ideia da ‘eleição’476
como privilégio
divino. Permitida, assim, pela nova compreensão da revelação, com a constatação
da universal presença reveladora e salvífica de Deus, pode-se eliminar toda ideia
de favoritismo, e as religiões poderão ser apreciadas como verdadeiras pela
medida com que cada uma capta a seu modo, em sua história e cultura, esta
Presença.
O caminho, então, trilhado por Queiruga para chegar a esta afirmação foi
obtido por causa da nova situação histórica, que exigia, diante dos novos
problemas enfrentados pela teologia com avanço do pluralismo religioso, uma
resposta capaz de possibilitar uma melhor abertura entre as tradições religiosas.
Diante da ineficiência das categorias existentes, foi forçado a buscar novos meios,
propondo três novas categorias.
todos, então, todas as religiões são reveladas e, portanto, nessa mesma medida, verdadeiras”. Cf. Ibid., p. 05. Como veremos mais adiante, para Queiruga esses ‘graus e verdade’ não significam
‘méritos’, mas referem-se à tematização histórica das religiões ante o Absoluto. Referir-nos-emos
a Andrés Torres Queiruga apenas como Queiruga. 474 Essa nova concepção parte da relação entre Revelação e História. Queiruga atento a esta
relação, procura compreendê-la a partir da dialética existente na experiência religiosa e na sua
comunicação na história dos homens. A revelação que é a autocomunicação de Deus à
humanidade, acontece na história do próprio homem. Em seu livro ‘A revelação de Deus na
realização humana’, Queiruga magistralmente desenvolve sua reflexão, enriquecendo a teologia e
possibilitando uma melhor abertura ao encontro e diálogo inter-religioso. 475 Conceito da filosofia moderna, parte ativa da dialética de Sócrates. Cf. REALE, História da
Filosofia Antiga. São Paulo: Paulus, 1990. v. 1. pp. 307-315. A maiêutica foi definida por Sócrates
como a “arte de observar à psyche” (alma). E Queiruga se utilizará deste termo na teologia da revelação, como veremos mais adiante, realizando uma alteração, sem negar sua intuição primeira,
pois o concede a qualificação de ‘histórica’, ressaltando a liberdade de Deus e a novidade da
história humana. Sem, é claro, deixar de reforçar sua dimensão histórica. 476 Como veremos mais adiante, Queiruga se utilizará da expressão ‘estratégia de amor’ ao termo
‘eleição’, para evitar que se entenda como ‘favoritismo divino’, ou se utiliza do termo usando-o
entre aspas.
125
‘Universalismo assimétrico’477
é a primeira. Esse é adquirido como
possibilidade, porque tem como pressuposto a afirmação da Presença universal da
salvação, que torna possível o respeito ao valor intrínseco de todas as religiões e o
reconhecimento de sua existência e desenvolvimento na história, pois é possível
tanto em não ceder ao relativismo do ‘tudo igual’ diante do realismo histórico e
antropológico, quanto ao achatamento na busca pela universalidade, como
também na troca da ‘lógica da concorrência’ pela ‘lógica da gratuidade’, abrindo-
se para a troca de experiências, por reconhecer que não lhe pertence como algo
absoluto, mas que é para todos.
A segunda, exigindo uma revisão da cristologia, procura ser mais
teocêntrica, partindo da própria relação de Jesus de Nazaré com Deus. Queiruga,
assim, denomina esta categoria de ‘teocentrismo jesuânico’478
. Essa demanda um
grande equilíbrio, pois enquanto procura acentuar a centralidade de Deus, não
pode diminuir o papel único e irrenunciável de Jesus de Nazaré.
E como última de suas propostas como nova categoria, Queiruga apresenta-
nos a ‘irreligionação’479
. Nessa categoria, ele reafirma o avanço da ‘inculturação’
e propõe um passo a mais na tentativa de evitar suprimir a presença real de Deus
no mundo, passando a respeitar a cultura e a experiência religiosa de cada
tradição.
Assim, partindo da nova concepção da revelação que acontece
maieuticamente na história, em que procura resguardar a liberdade de Deus sem
perder a sua novidade na história humana, por estar ‘já sempre aí’, e da
comprovação de que a revelação é a mais alta expressão do amor de Deus à
humanidade e a possibilidade da mais autêntica realização humana, saberemos
como essa descoberta provocou a mudança na relação com as demais tradições
religiosas, chegando à afirmação de que ‘todas as religiões são verdadeiras’.
2.1 A Revelação como maiêutica histórica
Queiruga nos fornece uma compreensão da estrutura da revelação que pode
ser aplicada também às outras religiões e permite identificar, já do ponto de vista
477 Cf. QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreensão cristã, pp. 93-110. 478 Cf. Ibid., pp.111-122. 479 Cf. Ibid., pp. 167-193.
126
fenomenológico, um dado prévio que dá suporte às diferenças e especificidades
constitutivas das religiões, permitindo um esquema de interpretação para
compreenderem-se as religiões em sua singularidade.
Isso porque a revelação faz parte da autoconsciência de todas as religiões,
uma vez que essa venha a ser a tomada de consciência da presença do divino no
indivíduo, na sociedade e no mundo. Essa afirmativa toca no constitutivo da
autocompreensão do cristianismo, na convicção de que em Jesus Cristo se deu a
plenitude da revelação, isto é, na pretensão de possuir a revelação absoluta.
No entanto, essa pretensão se choca com o fato de que outras religiões
também se apresentam como religiões reveladas e com o fato do pluralismo
religioso em si mesmo. As reflexões sobre essa questão se dão em duas direções:
uma é aquela suscitada pela teoria de K. Barth, depois abandonada por ele, que
negava qualquer possibilidade de revelação fora da revelação bíblica, não
admitindo a religião como lugar da revelação de Deus480
. Ao contrário, para ele a
revelação era a supressão da religião. E a outra é a fenomenologia da religião, que
em uma linha oposta rompe com esta visão restrita da revelação. Ali, por certo
tempo, alguns estudos faziam uma distinção entre religião natural e religião
revelada. Mas, na medida em que as ciências da religião foram demonstrando a
existência de traços fundamentais comuns a todas as religiões, esta distinção foi se
tornando irrelevante481
.
O dado mais fundamental comum às diversas religiões é que todas
compartilham da convicção de terem sua origem numa revelação divina, qualquer
que seja o nome atribuído a esta realidade divina, de modo que “a revelação é um
dado constitutivo da estrutura mesma da religião”482
.
Diante dessa questão, Queiruga assume em sua reflexão o ponto de partida
fornecido pela fenomenologia e enriquece-o com o dado antropológico da
experiência humana da revelação. Para ele, o homem é um ser ‘emergente’, no
qual se supõe toda uma evolução que alcança o seu extremo483
. O ser humano,
480 Cf. LATOURELLE, R. Revelação. In: Dicionário de Teologia Fundamental. Petrópolis:
Vozes; São Paulo: Santuário, 1994, p. 816; QUEIRUGA, A. Torres. A revelação de Deus na
realização humana, p. 20s. 481 Cf. QUEIRUGA, A. Torres. A revelação de Deus na realização humana, p. 20. 482 Ibid., p. 20. 483 Cf. QUEIRUGA, A. Torres. A revelação de Deus na realização humana, p. 173. Um extremo
ainda aberto e dinâmico, que continua, por outros caminhos, processos. Um extremo consciente,
que se levanta sobre o horizonte do mundo, descobrindo, ao olhar para trás, o processo evolutivo
que se perde na noite dos tempos, e se encontra adiante no ‘aberto’ (Rilke), movido por um
127
diferente do animal, possui em si a pergunta que lhe arde, a pergunta sobre Deus.
Diante dessa interrogação, existente independente de sua permissão, se tem a
partir de sua acolhida um
significado fundamental da revelação como fundamento: essa receptividade radical
na qual o homem acolhendo a presença salvadora de Deus, vai entrando em sua
plena realização, enquanto determinado e entregue a si mesmo pelo Deus que a ele se comunica
484.
A revelação de Deus ao homem implica para este em um intenso encontro
consigo mesmo, em uma maior percepção sobre a vida e uma melhor contribuição
na construção da história rica em significado para si e para a sociedade. E, para
isso, ele nos apresenta a partir da revelação acontecendo maieuticamente na
história, a possibilidade da realização do homem na revelação de Deus, pois, “na
resposta à revelação, o homem está se realizando a si mesmo: está construindo,
desde a última radicalidade, a história de seu ser”485
.
E é a partir desta reflexão sobre a revelação de Deus à humanidade, que
temos de Queiruga sua grande contribuição, com especial particularidade aquilo
que o faz distinguir-se de outras reflexões teológicas. Contribuições essas que
permitem abrir caminho para a comunicação entre as diferentes tradições
religiosas e uma maior tematização da autocomunicação divina, porque ele
acredita que Deus insiste em querer revelar-se a todos e de modos sempre novos,
pois “Deus é livre para revelar-se quando e como quer”486
.
Suas grandes contribuições que, no entanto, já acompanhavam a história
humana, mas cuja tematização na teologia foi ele que proporcionou, foram a
maiêutica histórica, como categoria mediadora e a hermenêutica do amor487
.
Para podermos compreender a função desse método maiêutico na teologia,
teremos que adentrar no campo da filosofia, precisamente em Sócrates que fazia
uso desse método em sua dialética.
dinamismo infinito, intrinsecamente insatisfazível, aberto a uma plenitude que lhe chegue ‘a partir
de fora e a partir de cima’ (Blondel), e até mesmo à ‘escuta da palavra’ que ilumine seu mistério
(Rahner). 484 QUEIRUGA, A. Torres. A revelação de Deus na realização humana, pp. 177-178. 485 Ibid., p. 200. Tendo como título de seu livro “A revelação de Deus na realização humana” Queiruga, apresenta o ser humano como lugar próprio para a revelação de Deus, acontecendo
maieuticamente na história. 486 Id., ¿Qué significa afirmar que Dios habla? Selecciones de Teologia, v. 34, n. 134, pp. 102-
108, 1995. p. 102. 487 Teremos a oportunidade no decorrer deste capítulo de aprofundarmos sobre essas tematizações
apresentadas por Queiruga.
128
Sócrates, que era filho de uma parteira, diz ter herdado o mesmo ofício de
sua mãe, afirmando em um diálogo com Teeteto:
Ora, a minha arte de obstetra assemelha-se em todo o resto à das parteiras, mas
difere delas no fato de agir sobre homens e não sobre mulheres, e cuidar das almas grávidas e não dos corpos. E o faz tanto pela verdade de que está grávido o homem
como pela não verdade “... Se, depois, examinando as tuas respostas, eu encontrar
que algumas são quimeras ou não verdades, arranco-as de ti e lanço-as fora, e não te zangues.... não é na verdade, por maldade que eu faço isso, mas só porque não
considero lícito aceitar a falsidade ou obscurecer a verdade488
.
Para ele, a maiêutica era a arte de obstetra da alma. Assim, como em um
momento de dar à luz a uma criança, as mulheres sofriam a dor e a aflição, ele
também ajudava os seus discípulos, em meio à dor e à aflição, a darem à luz as
verdades presentes em seus espíritos, o que podia acontecer se já estivessem
grávidos. Esse método “consiste em levar o interlocutor ao descobrimento da
verdade mediante uma série de perguntas... e chega, por fim, a engendrar a
verdade, descobrindo-a por si e em si mesmo”489
.
Isso nos permite concluir que, para Sócrates, a maiêutica é ‘a arte’ de
‘ajudar a gerar’, a ‘dar-à-luz’ às novas ideias presentes nas almas de seus
interlocutores. E até mesmo o parto do não verdadeiro é benéfico para a alma,
pois essa se liberta de um conhecimento vão e dá lugar à verdade. Então, ajudando
a gerar, a maiêutica socrática contribui apenas para que seu interlocutor descubra
a verdade que traz em si mesmo e a externe490
.
Queiruga, no entanto, fazendo uso desse termo, que se aproxima à primeira
vista da revelação, o faz a partir de duas distinções bem precisas, sem se desfazer
de sua intuição primeira: no uso da palavra externa do mediador e no envio do
interlocutor à sua própria realidade. Para ele, “nós descobrimos a revelação,
porque alguém no-la anuncia; mas a aceitamos, porque, despertados pelo anúncio,
“vemos” por nós mesmos que essa é a nossa resposta certa” 491
. Aqui, a palavra do
mediador contribui para que o interlocutor seja remetido para dentro de si mesmo,
em um processo de reconhecimento e a-propriação.
Por descobrir uma nova realidade, que já estava presente e, ao mesmo
tempo, desconhecida pela presença que já o acompanhava, e pela verdade vinda
488 PLATÃO. Teeteto, 150b-15d. Apud. PANASIEWICZ, Roberlei. Diálogo e revelação: rumo ao
encontro inter-religioso. Belo Horizonte: C/Arte, 1999. pp. 86-87. 489 MORA, Ferrater. Mayéutica. Diccionário de Filosofia. Madrid: Alianza, 1981. 490 Cf. PANASIEWICZ, Roberlei. Diálogo e revelação, p. 88. 491 QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreensão cristã, p. 18. Grifo do autor.
129
de Deus que já era e está sendo. E, assim desvendando, ou seja, permitindo o
“nascer” de uma realidade nova, “o homem descobre a Deus que o está fazendo
ser e determinando de uma maneira nova e inesperada” 492
.
Aqui, descobrimos que Queiruga procura ir mais além: primeiro, por
apresentar a essa categoria socrática uma modificação em sua perspectiva
gnoseológica, pois permite transparecer nessas suas distinções que o homem é
sempre “homem-no-mundo de maneira que não pode haver desvelamento próprio
sem desvelamento da situação, e que todo desvelamento da situação é também
desvelamento do homem”493
. Depois, a partir do que Schillebeeckx diz, “assim
poderíamos definir o ser humano: um ser-com-Deus-neste-mundo-de-homens-e-
de-coisas”494
. Para ele, o homem será um “ser-apartir-Deus-no-mundo”495
,
permitindo a esta categoria maiêutica sua inclusão no contexto atual.
Assim, é apresentada a maiêutica à revelação adentrando na teologia, lugar
em que lhe será inserida a qualificação de “histórica”, ressaltando a liberdade de
Deus e a novidade da história humana: é a alteração de maneira radical do
conceito socrático. Será a partir destas duas dimensões que Queiruga, por meio da
Teologia da Revelação, irá reler a categoria socrática.
Sobre o método socrático, como pudemos observar a partir do que já nos foi
apresentado, esse não gera nada de novo. A ele, como também às parteiras, não
cabe criar nada. Apenas controlam o ‘vir-à-luz’ das verdades inerentes ao
homem, pois esses a encontram e dão à luz por si mesmos. Esse método encerra-
se “na mais pura imanência”496
, onde qualquer um pode dar à luz por si mesmo ao
que já estava desde sempre presente.
Poderemos perceber com a perspectiva da revelação que o caminho se torna
diferente, pois este se apoia na novidade da origem histórica e na livre iniciativa
divina. Segundo Queiruga, na revelação “não se manifesta o que o homem é por si
mesmo, e sim o que começa a ser por livre iniciativa divina. Não se trata de um
492QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreensão cristã, p. 113. 493 Ibid., p. 113-114. 494 SCHILLEBEECKX, E. Intelligence de la foi er interprétation de soi. In: Théologie
d’aujourd’hui et de demain. Paris, 1967. p. 125. Apud. QUEIRUGA, A. Torres. A revelação de
Deus na realização humana, p. 114. 495 QUEIRUGA, A. Torres. A revelação de Deus na realização humana, p. 114. 496 Ibid., pp. 114-115.
130
desdobrar imanente de sua essência, mas de uma determinação realizada por Deus
na história” 497
.
Isso a faz ser sempre experimentada de maneira nova e gratuita. Chega
mesmo a ser entendida como “novo nascimento”498
, como inovação essencial 499
,
quando vivida em sua plena intensidade.
Aqui, a palavra passa a ser necessária para que a comunidade chegue à
consciência da nova realidade. Queiruga não nega a intuição primeira de Sócrates
do ‘dar-à-luz’, que permite ao seu interlocutor trazer à realidade um outro
conhecimento de que, até então, não se havia dado conta, como também
resguardar a importância do mediador (maieuta = parteiro), para com a sua
comunidade. Mas a sustenta nessa nova aplicação histórica. Para ele, “o mediador,
com sua palavra e seu gesto, faz os demais descobrirem a realidade em que já
estão colocados, a presença que já os estava acompanhando, a verdade que, vinda
de Deus, já era ou está sendo”500
.
Afirma ainda Queiruga que esse “não faz mais que iluminar, na consciência,
a experiência transcendental da própria realidade já agraciada pelo Espírito” 501
.
Assim é o que podemos ver em Moisés, um homem que vive e promove os
acontecimentos a partir de uma profunda experiência religiosa, interpreta-os à luz
dessa experiência, e consegue que, pouco a pouco, também outros a
experimentem e a interpretem da mesma maneira. Ele é, assim, o mediador que
possibilitou aos israelitas ‘darem-à-luz’ a presença atuante de Deus em seu meio.
Deus que estava desde sempre presente502
, de maneira oculta, embora real.
E assim, “Israel descobriu a Deus na história e, ao fazê-lo, foi-se
descobrindo a si mesmo”503
. Com essa tomada de consciência, os israelitas
passam a servir como ponto referencial e possibilidade sempre nova de se
‘aperceber’ de algo de novo e de gratuito nessa revelação divina na História da
Humanidade, pois a revelação, a partir dessa consciência, é ‘patrimônio universal’
497QUEIRUGA, A. Torres. A revelação de Deus na realização humana, p. 115. 498 Jo 3,3-8. 499 cf. Rm 6, 2; 7,6; Gl 6,15; 2Cor 5,17; Ef 2,15; 4,24; Cl 3,10. 500QUEIRUGA, A. Torres. Op. cit., p. 113. 501 Ibid., p. 1224 . 502 Cf. Gn 1,1; Pr 8,22; Jr 1,5; Ex 3,18. 503 QUEIRUGA, A. Torres. Revelação de Deus na realização humana, p. 103.
131
e não consegue ser apenas para a experiência de alguns, mas, para todos, pois seu
lugar é na comunidade504
.
É o que nos afirma Queiruga quando diz que
O iniciador do processo vive sua experiência como dada por Deus, como iniciativa
divina.... E ao mesmo tempo, essa revelação que vem de Deus reenvia à história: à
circunstância concreta... e não se isola nunca em si mesma nem se considera propriedade privada do iniciador; ao contrário, dirige-se sempre aos demais: é para
todos505
.
Por isso, o ouvinte, ao se deixar interpelar pelo mediador, apreende a
profundidade de sua realidade, abre-se a uma experiência singular da revelação e
descobre-se no ‘próprio-ser-apartir-Deus-no-mundo’, sendo necessário apenas que
reconheça e aceite a revelação. Nesta resposta à revelação, o homem está se
realizando a si mesmo, e entra em construção em profundidade com a história de
seu ser. Esse próprio-ser torna-se novo (ao contrário da ‘preexistência’ de
Sócrates), pois, já o tendo reconhecido e aceito, ‘já é idêntico’ a ele, e o percebe
como ‘estando já aí’. É a articulação do ‘novo’ e do ‘já aí’ no próprio crente.
Diante desta relação do crente com a palavra, “ajudá-lo a descobri-lo
constitui precisamente a tarefa da palavra inspirada, que, por isso, é para ele
maiêutica”506
. Assim recupera-se a maiêutica na História tornando-se necessária
para a apreensão da autocomunicação de Deus.
Para concluirmos, como maiêutica histórica, a revelação “não consiste num
estático sempre aí, senão num ‘sempre aí’ dinâmico, que se atualiza
constantemente no novo de sua realização mediante a liberdade do homem e de
sua história”507
. Ela que tem seu aspecto maiêutico na função da palavra, que
possibilita o novo, ‘traz à luz’. Não leva para fora de si, nem fala de coisas
estranhas, mas devolve o homem à sua mais radical autenticidade.
A palavra age, assim, com toda propriedade, como ‘parteira’ que traz à luz a
consciência do novo ser, tornando clara sua nova situação, a ‘nova criatura’ que
agora é. Seu aspecto histórico encontra-se no mediador, que surge na história e
responde a uma missão, a uma livre iniciativa de Deus.
Ela é, assim, sempre um ato por parte de Deus, que se realiza na liberdade
histórica do homem e torna-se realidade concreta tão-somente com sua acolhida.
504 Cf. PANASIEWICA, Roberlei. Diálogo e revelação, p. 91. 505 QUEIRUGA, A. Torres. A revelação de Deus na realização humana, p. 107. 506 Ibid., p. 116. 507 Ibid., p. 195.
132
Esse processo de revelação acaba se identificando com a história do homem.
Acentua Queiruga “que a realidade mesma é o ‘gesto’ de Deus que nela se
expressa. Quanto mais densa essa realidade, melhor manifesta a intenção
reveladora nela incorporada: quanto mais pleno o significante humano, mais plena
a significação divina”508
.
Assim, é inegável que somente na experiência humana, se encontre lugar
para que Deus se revele ao homem.
2.2 A hermenêutica do amor
A partir do que nos foi apresentado sobre a revelação que se realiza
maieuticamente na história, podemos, então, reafirmar que a mais alta expressão
do amor de Deus à humanidade encontra-se no seu desejo de tornar-se conhecido.
Como assim, nos diz Queiruga, “dado que à essência mesma da revelação
pertence o ser ação atual e livre de Deus.... porque Deus quer manifestar-se”509
.
Essa é uma ação que parte sempre de Deus em direção ao homem,
“pressionando a consciência humana para que cada pessoa, em cada circunstância,
possa descobri-lo”510
. O homem quando acolhe a presença reveladora de Deus,
que estava desde sempre já aí, possibilita, através deste seu ato uma abertura ao
seu próprio crescimento, à sua realização humana. “Aí Deus vem a seu encontro
para potencializá-lo e orientá-lo, de maneira que todo o restante fique finalizado
nessa experiência, que o envolve como um todo”511
.
Essa articulação entre Deus e o homem é então afirmada por Queiruga como
“simultaneamente ação de Deus e realização do homem”512
pois,
descobrir-se desde Deus é maturar o próprio ser, ir dando e ele a substância de seu
último e mais autêntico crescimento; ao mesmo tempo em que esse crescimento vai possibilitando, em dialética progressiva, novas capacidade de acolher a ação de
Deus513
.
Essa articulação se dá por meio das liberdades humana e divina. Deus
convida o homem à realização como ser humano e essa sua ação é um dar-se à
liberdade humana. Uma ação livre de Deus a uma resposta humana no uso de sua
plena liberdade.
508QUEIRUGA, A. Torres. A revelação de Deus na realização humana, p. 200. 509 Ibid., p. 211. 510 Ibid., p 197. 511 Ibid., p. 211. 512 Ibid., p. 202. 513 Ibid., p. 202.
133
É no ‘face a face’ do encontro, que Queiruga vai nos dizer que,
aperceber-se da presença de Deus não é descobrir um espaço neutro que o homem explora por sua iniciativa; ao contrário, é sentir-se chamado, interpelado, levado
sempre mais além de si mesmo por caminhos nunca antes suspeitados, que o amor
livre e gratuito vai traçando e assinalando514
.
Assim, Deus entra na história dos homens por meio dessa liberdade humana.
Para Queiruga, Deus “transforma o mundo não à base de milagres e
intervencionismos, e sim mediante sua presença reveladora na liberdade do
homem”515
. Como exemplo, lembremos que muitos estavam no Egito, mas apenas
Moisés acolheu a nova e libertadora presença de Deus com relação ao seu povo.
Muitos viveram a crise do exílio babilônico, mas só pessoas como Jeremias,
Ezequiel ou o Dêutero-Isaías vivenciaram e explicitaram as inéditas profundezas
da intimidade divina que se abriram à nova circunstância.
Logo, esta é a experiência do profeta, aquele que se abre à novidade divina e
acolhe a missão de voltar à realidade e despertar outras liberdades para Deus516
.
“O profeta capta a presença que está tentando chegar a todos e que no espírito de
todos se insinua, mas que nem todos percebem, devido à obscuridade estrutural
inerente à manifestação reveladora”517
.
Queiruga entende que a ‘obscuridade’ existe, não por vontade divina, mas da
própria condição de criatura inerente ao ser humano.
Retomando a função da maiêutica, podemos constatar que, diante deste
limite humano, sua necessidade está no fazer ‘vir-à-luz’ essa presença do ‘sempre
aí’ de Deus na história humana. Ou seja, ela permite elucidar a presença ‘obscura
e ambígua’ de Deus perante a liberdade humana. A generosidade irrestrita de
Deus, que é amor sempre em ato, e que se quer dar plenamente, tem seu limite não
em si mesmo, mas na impossibilidade da criatura518
.
Para Queiruga, Deus quer e deseja tornar-se conhecido por todos os homens
de forma igual. Por isso, seu amor não cessa de procurar meios para
fazer-se sentir o mais rápido e intensamente possível pelo maior número de homens; que desejaria dar tudo numa luta amorosa para romper a incompreensão
do homem e abrirem-se os olhos ao dom desde sempre disposto para ele519
.
514 QUEIRUGA, A. Torres. A revelação de Deus na realização humana, p. 211. 515 Ibid., p. 205. 516 Cf. PANASIEWICZ, Roberlei. Diálogo e revelação, p. 93. 517 QUEIRUGA, A. Torres. Op. cit., p. 210. 518 Cf. Ibid., p. 286. 519 Ibid., p. 288.
134
Compreender, então, este amor de Deus somente é possível através de sua
autocomunicação aos homens, já que sua presença é um ‘já sempre aí’ na história
humana. Uma presença que quer simplesmente autocomunicar-se por condição de
possibilidade de libertação e de construção da felicidade do homem.
Assim, o conceito de revelação encontra-se na hermenêutica do amor, e na
maiêutica histórica, como possibilidade de tornar sempre atual a revelação, como
“última e autêntica realização do homem”520
. O que pode, então, dizer-nos
Queiruga sobre a universalidade de Deus com a “eleição” de um povo?
2.3 A eleição e a universalidade de Deus
Queiruga continua a nos surpreender com sua maestria de pesquisador no
campo do diálogo inter-religioso. Sua preocupação em contribuir para uma das
questões que assombram a teologia tem possibilitado um pensar e um agir
teológico complemente diferentes. Sua pesquisa tem apontado um novo caminho
com ricas possibilidades de abertura para uma melhor compreensão e convivência
com uma realidade religiosa que se constata cada vez mais plural.
Perceberemos, neste tópico, a partir da nova compreensão adquirida sobre a
revelação como maiêutica histórica, que, para Queiruga, é possível afirmar que a
revelação histórica particular tenha pretensão universal, desde que seja
apresentada “sem exclusivismos elitistas ou estreitezas provinciais” 521
. Para ele, o
problema encontra-se não na limitação que a revelação possa apresentar por se
situar na história, mas se essa tem condições de se apresentar como universal522
.
Como entender, então, a gratuidade do amor de Deus em sua universalidade,
quando escolhe um povo em eleição histórica, em que biblicamente diz que para
“amar Jacó tem que odiar Esaú”523
?
Para essa questão, nosso autor se apoia absolutamente na revelação histórica
e nessa ‘eleição’ não como restrição do amor, mas como sua máxima
manifestação. O particular, para ele, não significa exclusivismo, mas generosa
‘estratégia do amor’ que deseja atingir a todos. “Deus revela-se sem reservas, com
toda a força de sua sabedoria e de seu poder, e revela-se a todos na máxima
520 QUEIRUGA, A. Torres. A revelação de Deus na realização humana, p. 220. 521 Ibid., p. 278. 522 Cf. Ibid., p. 279. 523 Ibid., p. 280; Cf. Ml 1,2-3.
135
medida possível”524
. E mais uma vez afirma que “o limite, se aparece, deve vir de
outro lugar: da incapacidade da criatura para captar com maior clareza sua
revelação” 525
, pois, insistindo em querer amar, Deus “continua pressionando a
consciência da humanidade, para emergir dela, fazendo sentir sua presença” 526
.
No entanto, encontram-se no homem, na “incomensurabilidade estrutural
entre o Criador e a criatura”527
os limites para a revelação de Deus. E esses,
impostos na relação entre Deus e o homem, enquanto impossibilitam a total
revelação de Deus, demonstrando, assim, sua distância infinita, causam-nos
espanto, pois, mesmo diante de tamanha impossibilidade, o homem ainda tem
condições de aperceber-se dessa presença e trazê-la à palavra. O que acontece não
por sua própria força, mas porque Deus desejaria dar tudo numa luta amorosa para
romper a incompreensão do homem e abrir-lhe os olhos ao dom sempre disposto
para ele.
Esse mistério que perpassa a relação entre Deus e a criatura, a qual, mesmo
diante de tamanha fragilidade e ambiguidade que comporta o ser humano, ainda
consegue deixar-se tocar pelo Criador e, indo além, consegue em limitadas
palavras descrever sua experiência, encontra um caminho de explicação na
‘teologia negativa’. Em toda teologia, essa questão torna-se mais provocante nas
experiências místicas.
No entanto, Deus revela-se “a todos enquanto esteja ao seu alcance”528
. A
dificuldade, como já vimos, encontra-se na própria criatura. Ele ressalta que não
poderia ser diferente, visto que é irrenunciável aceitar a historicidade do homem.
Esta consiste em realizar-se na história mediante o exercício da própria liberdade,
pois será no exercício de sua autonomia que o homem poderá estar aberto “à
revelação real, que brota na liberdade e vai-se aproximando pelos caminhos da
história”529
.
A revelação, ao redor de seu mistério, tem então, na história própria do
homem, na sua realização humana, o lugar de sua manifestação. Diferente do que
se possa pensar, esse Deus é um Deus cujo amor é urgente, que busca por todos os
524 QUEIRUGA, A. Torres. A revelação de Deus na realização humana, p. 280. 525 Ibid., p. 283. 526 Ibid., p. 288. 527 Ibid., p. 280. Para Queiruga, a incomensurabilidade estrutural que o homem carrega, “indica
sua condição historicamente insuperável e para situar nela o lugar radical das
incomensurabilidades concretas, que se lhe acrescentam e a densificam”. 528 Ibid., p. 283. 529 Ibid., p. 287.
136
meios fazer-se sentir o mais rápida e intensamente possível pelo maior número de
homens.
Queiruga não nos deixa passar despercebido que este desejo de Deus em
querer tornar-se conhecido é pura gratuidade de seu amor, porque “se Deus não
quisesse revelar-se, nada o homem poderia alcançar de sua intimidade....e que
todo homem como tal, com todas as suas faculdades, é puro dom de Deus
criador”530
. Com essa gratuidade, Deus apresenta-se como amor total e universal,
que quer atingir a todos os homens.
É a partir dessa compreensão da revelação, que representa toda a força do
desejo de Deus em querer amar o ser humano, que Queiruga fala da “‘eleição’ não
como um ‘favoritismo’, pois é para todos nem como um mero ‘acidente’, porque
Deus está total e pessoalmente em relação concreta com cada homem”531
.
Assim, Deus encontra a possibilidade de ir potencializando um caminho
rumo à manifestação total, quando a partir da realidade histórica do ser humano,
acontecerá sua manifestação para a humanidade,
um grupo iniciará um tipo de peculiar experiência. Por diversas circunstâncias,
entre as quais a providencial saída do Egito exerce um papel determinante, nesse grupo desenvolve-se uma especial sensibilidade para captar a “pressão” religiosa de
Deus sobre a consciência da humanidade 532
.
O que não significa que Deus esteja preferindo este grupo e negando a outro,
mas que
essa ‘eleição’ é também para os demais o caminho mais rápido do amor, que
enquanto prossegue com eles, levando-os o mais adiante possível em sua própria circunstância, antecipa-lhes pelo atalho do oferecimento histórico o que o povo
eleito alcançou por sua conta 533
.
Isso é o que Queiruga chama de ‘estratégia do amor’. Esta ‘estratégia’ usada
por Deus nesta particularidade da revelação bíblica permite transparecer desde
suas entranhas a universalidade da revelação, pois “não cabe na história outra
universalidade real”. Ele elimina o pré-conceito de uma universalidade abstrata,
que se apoia numa representação estática e isomórfica da realidade.
Reconhecendo que a realidade do mundo e, sobretudo, a do homem é emergente,
530 QUEIRUGA, A. Torres. A revelação de Deus na realização humana, p. 288. 531 Ibid., p. 289. 532 Ibid., p. 290. 533 Ibid., p. 292.
137
ou seja, histórica534
, e que a revelação dá-se no próprio ir-se fazendo do homem,
porque o que se quer universalizar tem de ser antes alcançado.
Afirma Queiruga, que “unicamente aquela revelação na qual se alcança a
plenitude do homem pode ser, com justiça, universalizável, ou seja, apresentar-se
como oferecimento a todos os homens”535
. E porque alcança em Jesus o limite
insuperável, rompe-se toda particularidade536
, Deus encontra em Jesus uma
oportunidade para entregar-se totalmente a toda a humanidade.
No entanto, como é possível que esta particularidade cristã possa ser
universal? Podemos afirmar que é apenas na “práxis do cristão que se pode veri-
ficar como universal a pretensão do cristianismo”537
. Porque a universalidade de
Cristo encontra-se ‘a partir de baixo’, na sua kenósis, na única universalidade
possível dentro da história: a do sofrimento538
. O amor marca o dinamismo da
revelação, tornando-a universal, na entrega que Deus faz do seu Filho.
Logo, a universalidade do cristianismo está na práxis do cristão, a partir de
uma fé que se proclama universal e que o faz a partir da experiência da Cruz. Tem
que buscar necessariamente o ‘universal humano’ através do esforço de uma
maior justiça e de uma melhor vida para todos os homens 539
.
Essa universalidade consiste no próprio ato de Deus, por sua ‘pressão’
amorosa sobre a consciência da humanidade, no desejo de fazer sentir sua
presença e em “acelerar o tempo pelo atalho de uma tradição particular, para fazer
chegar o quanto antes a todos a oferta de amor que para todos foi pensada e posta
em andamento desde o princípio nos caminhos da História”540
.
Atingindo toda a sua plenitude em Jesus, torna o cristianismo uma religião
portadora de uma experiência destinada a todos, porque parte da mesma
experiência de todos, e nunca sai dela: o que faz é captar mais clara e
intensamente o comum. E assim, “o cristianismo traduz, sem diferenciação nem
distância, a gratuita paternidade divina horizontal e a irrestrita fraternidade
humana”541
.
534 Cf. QUEIRUGA, A. Torres. A revelação de Deus na realização humana, p. 173. 535 Ibid., p. 294. 536 Cf. Ibid., Cap. VI. “A definitividade de Cristo como mediador comporta a definitividade da
revelação”. 537 Ibid., p. 295. 538 Cf. Ibid., pp. 295-296. 539 Cf. Ibid., p. 296. 540 Id., Cristianismo y religiones, p. 4. 541 Ibid., p. 9.
138
Queiruga destaca que a essência dessa experiência cristã consiste na
consciência de que o que ela descobre não está separado do que descobrem as
demais “pois sabe que o mesmo Deus que a salva é o que está trabalhando com
sua graça a inteira massa da humanidade para trazê-la a idêntica salvação” 542
.
A partir dessa consciência, aberta à verdadeira universalidade de sua
experiência, o cristianismo não tem como usar de sua particularidade histórica,
“privilegiando o particular numa espécie de conquista”543
, em seu trabalho
missionário, pois deve ser claro que ela chega sempre a uma casa já habitada por
seu Senhor. E que assim, rompendo todo ‘imperialismo’ missionário, ação de
quem impõe algo que lhe é externo, torna possível o diálogo entre as religiões em
uma rica possibilidade de compreensão universal.
O diálogo torna-se então possível porque consiste em avançar no seio de uma
mesma experiência. Não há imposição, porque se trata de ajudar a reconhecer a um Deus que é de todos: de nenhum modo mais próprio daquele que prega do que
daquele que escuta 544
.
Essa apresentação não deve ser entendida como um nivelamento da
experiência cristã com outras experiências. A revelação em Jesus é, pois, real,
como progresso ontológico do que é o peculiar cristão, e de que é o último e
derradeiro na realidade, que consiste na descoberta de uma relação viva e pessoal
com Deus.
O que ele afirma longe de qualquer tentativa de etnocentrismo ou do
‘imperialismo’, por causa de Cristo, é que este
emerge solidariamente da comum e universal experiência religiosa humana,
fazendo-a avançar em si mesma desde dentro até situá-la diante da gratuidade,
misteriosa e total abertura pessoal de Deus: ao fazê-lo...o faz para todos, abrindo e expandindo para a frente a universalidade radical da qual partia
545.
Queiruga ainda destaca que “a particularidade humana de Jesus, situada num
país, num tempo e numa cultura, oferece-se a partir de então, na presença
universal – sem limite algum de espaço e de tempo – do Ressuscitado” 546
, o que
faz a universalidade cristã não impor nenhum particularismo cultural, mas estar
542 QUEIRUGA, A. Torres. A revelação de Deus na realização humana, p. 300. 543 Ibid., p. 297. Grifo do autor. 544 Ibid., p. 300. 545 Ibid., p. 303. 546 Ibid., p. 304.
139
sempre disposta a encarnar-se em cada cultura, a ‘inculturar-se’547
. Mais à frente,
ele nos falará em ‘inreligionar-se’.
2.4 O cristianismo e outras religiões
No item anterior, abordamos a universalidade da revelação cristã,
destacando que sua essência consiste na consciência de que o que ela descobre
não está separado do que descobrem as demais. Agora teremos a oportunidade de
analisá-la em ato, em sua extensão e contato efetivo com as demais religiões.
Para Queiruga, o tema ‘cristianismo e religiões’ é um tema de maior
importância em toda a reflexão teológica. Tema que deixou de ser apenas teórico
para fazer-se contato vivo, conhecimento imediato e diálogo inadiável, a partir da
própria realidade, longe de quaisquer esquemas ou ideias prefixadas, com homens
concretos em sua vida religiosa e sua relação ativa com Deus.
Queiruga tem duas ideias, já apresentadas no decorrer de nossa reflexão,
como base para a mesma. Retomaremos, porque são essências para este item.
Na primeira, ele destaca “a presença real – salvadora e libertadora – de
Deus no centro de toda a realidade e no coração mesmo de toda a história dos
homens” 548
, já que esta presença realiza-se no processo da realização do homem.
Deus só pode dizer-se a nós em nossa realidade, em nosso mundo. Porque “Deus
se revela a todos os homens, e se revela a eles realmente, revela-se a eles,
sobretudo, nas experiências mediadas por suas tradições religiosas” 549
.
Assim procura eliminar todo esquema subconsciente que mantém a relação
cristianismo/religiões=revelação/não-revelação. Assim como também rompe o
esquema de ‘nós verdadeiros’ e os ‘outros falsos’, quando na sua segunda ideia
nos diz “que a ‘eleição’ é uma necessidade histórica que não consiste em
privilegiar para separar, e sim em chamar uns para chegar melhor a todos” 550
.
Para ele, está claro que “Deus está realmente presente em todos os homens; esses
em sua experiência religiosa captam essa presença como revelação ativa e
salvadora” 551
.
547 Cf. QUEIRUGA, A. Torres. Inculturación de la fé. In: FLORISTAN, C. (org.). Conceptos
fundamentales de pastoral. Madrid: Cristiandad. 1983. pp. 471-480. 548 Id., Op. cit., p. 341. 549 Ibid., p. 150. 550 Id., A revelação de Deus na realização humana, p. 341; Id., O diálogo das religiões, p. 60. 551 Id., A revelação de Deus na realização humana, p. 151.
140
Assim entende-se que esse romper de esquemas é a única possibilidade para
um autêntico diálogo entre as religiões. Afirmando com toda clareza que “todo
homem está em constitutiva relação sobrenatural com Deus e, portanto, em
contato vivo com ele, e que as religiões são justamente a tematização dessa
relação e desse contato, todas as religiões são verdadeiras”552.
Essa afirmação tem como fundamental a compreensão que se tem do ‘grau
de verdade’ de que cada religião utiliza-se pra captar esta presença amorosa de
Deus. E para isso se utiliza de uma única dialética a de ‘verdadeiro/mais
verdadeiro’, reconhecendo a limitação histórica de cada comunidade religiosa,
sem assumir em nenhuma experiência o sentido de absoluto. Porque “não existe
religião sem alguma verdade nem religião perfeita, pois nenhuma pode esgotar em
sua tradução humana a riqueza infinita do mistério divino”553
.
O que para ele “não se trata de aqui renunciar à experiência da revelação
cristã como manifestação plena, definitiva e universal de Deus em Cristo” 554
, mas
de deixá-la expandir-se conforme seu dinamismo, visto que “a experiência cristã
não é posse dos cristãos; é dom que emerge na comunidade religiosa humana e
que a toda ela está destinada” 555
.
Retomemos a ‘estratégia de amor’ para reafirmar que na experiência
reveladora no cristianismo constitui um elemento na estratégia histórica do amor
divino, que assim quer chegar mais rápida e eficazmente à humanidade inteira.
Isso permite ao cristianismo quando em missão, nunca visitar um lugar sem
que este já esteja sob a presença de Deus. O que faz é aproximar de outro rosto de
Deus presente em outra cultura e religião.
Esta ação impulsionada pela própria força da plenitude experimentada, como
nos diz Queiruga, pelo cristianismo, permite-lhe tornar-se sensível às diversas
deformações encontradas fora, porque “o rosto entrevisto desde a insuperável
irradiação na vida de Jesus suscita o desejo irreprimível de fazê-lo brilhar também
nas outras religiões” 556
.
Assim agindo, não faz nada mais do que assumir sua missão, pois não
anuncia a si mesmo, não é dono da semente que lança, e nem mesmo é ele quem a
552 QUEIRUGA, A. Torres. A revelação de Deus na realização humana, p. 341. Grifo do autor. 553 Id., Um Dios para hoy. Santander, Sal Térrea, 1997. p. 22. 554 Id., A revelação de Deus na realização humana, p. 341. 555 Ibid., p. 342. 556 Ibid.
141
faz crescer557
. Dá gratuitamente o que de graça recebeu558
, porque o Senhor não é
de ninguém, e por isso é de todos.
2.5 O não absolutismo do cristianismo
Assim como vimos, a fé cristã afirma sem cessar, ao longo de toda a história
do cristianismo, que em Jesus se deu a salvação e a revelação definitiva de Deus.
Entretanto, a reconstrução da confissão cristológica neotestamentária possibilitou
à teologia “compreender irreversivelmente que a divindade de Jesus se realiza em
sua autêntica humanidade” 559
. Logo toda a sua vida assume o coração da
confissão neotestamentária, e toda a tradição existencialmente vivida que daí
provém é a experiência salvífica vivida por algumas pessoas no encontro com
Jesus, a qual graças ao seu testemunho, torna-se acessível a todas as pessoas.
Na reflexão de Queiruga, esta interpretação do cristianismo enquanto
vinculada a uma experiência salvífica forma base tanto para a afirmação da
unicidade e da singularidade cristã quanto para o reconhecimento de seu caráter
contingente e limitado.
Com efeito, todas as afirmações neotestamentárias que apresentam Jesus
como salvação e revelação divina definitiva e situam-no numa relação constitutiva
e essencial com a vinda do Reino de Deus são afirmações que nascem da
experiência de fé que, como tal, têm um caráter autoimplicativo, isto é, engajam
existencialmente quem as emprega560
. Trata-se de uma linguagem relacional, que
articula uma dimensão subjetiva, na medida em que expressa algo do horizonte
interpretativo e da atitude das pessoas que a usam, com uma dimensão objetiva,
enquanto afirma algo de real a respeito de Jesus mesmo.
Entretanto, essas declarações neotestamentárias são afirmações portadoras
de um caráter absoluto, que não pode ser ignorado quando se trata de interpretar o
Novo Testamento. Trata-se de uma linguagem cuja fonte encontra-se numa
experiência que mediatiza algo de mais profundo. Assim, a base da confissão de
fé no Novo Testamento é o que se manifestou em Jesus de Nazaré. Por isso, o
557 Cf. 1Cor 3,6-7. 558 Cf. Mt 10,8. 559 QUEIRUGA, A. Torres. A revelação de Deus na realização humana, p. 71. 560 Cf. Ibid., p. 70.
142
fundamento último da unicidade de Jesus afirmada no Novo Testamento está na
convicção de fé de que “N’Ele habita a plenitude de Deus”561
.
De acordo com Queiruga, a afirmação cristã da unicidade e universalidade
salvífica de Jesus Cristo é uma afirmação válida para nós que cremos em Jesus,
dado que ela tem por base uma experiência de salvação de Deus.
No entanto, isso não implica que o acesso a Deus e à salvação não se possa
dar através de outros caminhos de salvação, já que para ele, a universalidade cristã
‘parte da mesma experiência de todos’, procurando captar o que é comum no
longo processo de tradição que Deus está tentando manifestar a todos. Porque
acredita que “o centro último e decisivo para todos – como também sucedia para o
mesmo Jesus – está em Deus”562
.
E mesmo estando sob uma nova concepção da revelação, percebe-se a
necessidade de novos meios que possibilitem uma melhor clareza diante das
questões internas e externas que envolvem cada tradição religiosa no encontro e
diálogo entre si. Veremos o que Queiruga nos propõe diante dessa questão no item
seguinte.
2.6 A necessidade de novas categorias
Por toda compreensão adquirida com a nova concepção da revelação, e
ainda que não se tenha condições de medir suas consequências, Queiruga ainda
ousa, rompendo com velhos moldes, reconfigurar em um novo contexto a
experiência de sempre, fazendo uso de novas categorias.
a) Universalismo assimétrico
A nova compreensão da revelação e da plenitude cristã encontra-se no
dilema. Nosso autor reconhece que “o exclusivismo se torna evidentemente
insustentável”. Para ele, a saída poderia estar no inclusivismo, que apresenta
grandes vantagens, entretanto, “não dá conta das exigências legítimas do
pluralismo”563
. Surge, então, para não recorrer a categorias já superadas pela nova
561 Cl 1,19. 562 QUEIRUGA, A. Torres. Cristianismo y religiones, p. 18. 563 Id., Autocompreensão cristã, p. 94.
143
situação e pela busca de um possível equilíbrio, uma nova categoria, denominada
‘universalismo assimétrico’564
.
Para ele, trata-se de ‘universalismo’, porque tem como base todas as
religiões desde seu nascimento e desenvolvimento histórico, que são em si
mesmas caminhos reais de revelação e de salvação, porque expressam, da parte de
Deus, sua presença universal e irrestrita, sem favoritismo, nem discriminação,
posto que, desde a criação do mundo, Deus “quer que todos sejam salvos”565
. E
‘assimétrico’, porque, para ele, está claro que é impossível ignorar o fato das
diferenças reais nas conquistas das diferentes religiões.
Já que por parte do ser humano é inevitável a desigualdade, mais uma vez
Queiruga destaca que as diferenças existem “não porque se trata de um ‘desígnio’
de Deus, que escolheria e privilegiaria algumas pessoas, culturas ou nações em
detrimento de outras; mas porque isso é imposto pela constitutiva desigualdade de
finitude criatural”566
.
Queiruga continua afirmando que Deus age por gratuidade “enquanto amor
irrestrito e ‘sem acepção de pessoas’, é forçosamente, de maneira e sem graus
distintos, segundo o momento histórico, a circunstância cultural ou a decisão da
liberdade”567
. Isso se percebe quando, individualmente, procura-se amadurecer e
aprofundar a relação com Deus, como também na história de cada religião. Pois,
assim como o cristianismo diz que é uma ‘religio semper reformanda’, “não pode
ser diferente no relacionamento das religiões entre elas; sendo todas verdadeiras,
nem todas têm a mesma profundidade”568
.
Com isto, torna-se intolerável “pretender açambarcar como privilégio
próprio o que pertence a todos”569
. Isso o leva, diante do caráter absoluto que se
mantém no cristianismo, percebendo que se trata de uma grande pretensão
renunciar à palavra absoluto, substituindo-a por plenitude.
Realizar esta confissão significa possibilitar a visibilidade do seu significado
autêntico, rompendo com qualquer pretensão de domínio e de conquista porque no
campo do religioso toda descoberta, mesmo que aconteça em um determinado
564 Cf. QUEIRUGA, A. Torres. A revelação de Deus na realização humana, p. 13; Id., Autocompreensão cristã, p. 95. 565 1Tm 2,4; Cf. Ibid., p. 95. 566 Id., Autocompreensão cristã, p. 96. 567 Ibid., p. 96; Cf. Rm 2,11. 568 Id., Autocompreensão cristã, p. 97. 569 Id., A revelação de Deus na realização humana, p. 99.
144
lugar, tem um destino universal. É “dom que busca realizar-se identicamente na
acolhida própria e no oferecimento aos demais”, que deixando de ser possessão
passa a ser percebida como “responsabilidade e encargo”. Partilhada não como
bem particular, mas como herança comum na promessa de um futuro pleno570
.
Queiruga explica o significado da palavra plenitude neste novo contexto.
Para ele, não pode significar nada semelhante à ‘onicompreensão’, como se uma
religião determinada, por mais elevada que fosse, pudesse abarcar o Mistério.
Como também, não pode significar um ‘fechamento’, que contribua para “que
paralise a história e acabe com o futuro”. Ao contrário, “remete a uma Plenitude
dinâmica, em que todo o processo anterior chega realmente a si mesmo e abre-se
às máximas possibilidades de sua vivência”571
.
No entanto, nada pode impedir aos cristãos que confessem a ‘plenitude’ e
definitividade da revelação em Jesus Cristo, o que exige um longo e difícil
caminho para novas categorias que melhor ajudem sua compreensão. Para tal
desafio, ele acredita no seguinte: “deve-se elaborar uma dialética, que por um lado
evidencie a imprescindibilidade de Jesus de Nazaré como pessoa histórica, e por
outro, reconheça que no fim das contas, o centro último é sempre Deus”572
. Surge
assim, como proposta sua a categoria ‘teocentrismo jesuânico’.
b) Teocentrismo jesuânico
A importância desta categoria parte de uma questão crucial: a
particularidade, que no caso de Jesus é confessada como definitiva, atingindo
precisamente o seu cume: o cristocentrismo, quando mal-interpretado é um
obstáculo insuperável para o diálogo com outras religiões573
. A cristologia deve
ter como tarefa fundamental “mostrar como na vida terrena de Jesus, deixa-se
transparecer o mistério único de sua filiação divina”574
. Logo, deve-se ter uma
atenção cuidadosa à nova visão crítica do processo da revelação na Bíblia, unida a
uma consideração realista do diálogo atual entre as religiões.
Queiruga, fazendo uma reflexão sem se aprofundar nas soluções que se
apoiam no recurso ao ‘Cristo Cósmico’ ou ao ‘Logos Universal’, e sem negar sua
legitimidade na reflexão teológica, mesmo podendo tornar menos traumática a
570 Cf. QUEIRUGA, A. Torres. A revelação de Deus na realização humana, p. 100. 571 Id., Autocompreensão cristã, p. 101. 572 Ibid., p. 102. 573 Cf. Ibid.,p. 103. 574 Id., Confesar hoy a Jesús como el Cristo. Santander: Sal Terrea, 1994. p. 31.
145
passagem para um paradigma, nos diz que “não fazem justiça à densidade
histórica e à transcendência ontológica do corrido em Jesus de Nazaré, nem
preservam o universal caráter absoluto de Deus, tal como o vivia o próprio
Jesus”575
.
Ele, assim, procurando tornar claro o caráter ‘teocêntrico’ da nova categoria,
começa acentuando a importância decisiva da pessoa histórica de Jesus. Porque
para ele
embora não se faça de Jesus o centro absoluto, o teocentrismo está tão intimamente
unido a ele que para a confissão cristã não há lugar para uma possível separação,
nem para uma realização equivalentemente paralela em nenhum outro indivíduo – passado, presente ou futuro – da humanidade
576.
Diante do fenômeno do pluralismo religioso, que muito provoca a uma
melhor compreensão de toda essa nova situação, se faz importante esclarecer o
sentido desse ‘jesuanismo’ para que não haja má interpretação em seu
entendimento, mesmo que sua compreensão não possa privar-se da densidade
histórica de Jesus.
Aqui se encontra a contribuição dessa nova categoria: “trata-se de uma nova
manifestação do problema da particularidade”577
. Esclarecendo que não se trata de
um favoritismo, ou mesmo de privilégio divino, mas de uma resposta a uma
necessidade estrutural, visto que não pode existir outra possibilidade para sua
realização na história.
Assim, esclarece também que a revelação de Cristo não se situa à margem
das demais revelações. Por causa da emergência e de sua intensificação, procede
ao lugar comum que é a presença reveladora de Deus em todas as religiões, o que
significa dizer que “a referência é Deus mesmo, e Ele está diante de todas as
religiões”578
.
Partindo sempre da experiência religiosa e nunca de fora dela, realiza, então,
de modo específico sua captação levando-a à sua culminação. Por isso, “Jesus se
conecta – e só assim ele próprio é historicamente possível – com a tradição de
575QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreensão cristã, p.104. Queiruga apresenta, em nota, para uma melhor exposição dos diversos posicionamentos as obras: MIRANDA, M. de França. O
cristianismo em face das religiões, pp. 26-30; 46-51 e DUPUIS, J. Rumo a uma teologia cristã do
pluralismo religioso, pp. 251-294; 576 Ibid., p.104. 577 Ibid., p. 105. 578 Id., Cristianismo y religions, p. 19.
146
Israel e, através dela, com a de toda a humanidade”579
. Logo, na missão cristã,
deve-se reconhecer que o que ela faz é oferecer seu modo, novo e pleno, de
compreender o Deus único, comum a todos.
A particularidade, por causa da intrínseca historicidade do humano, só pode
realizar-se numa única pessoa. Isso acaba por afetar a raiz mais profunda do
humano, sua realização última, como assim se faz no descobrimento de sua
relação viva com Deus. E sua realização última equivale a realizá-la na abertura
da própria existência, que consiste em tomar consciência da mesma580
.
Mário de França Miranda adverte para o perigo de reduzir a revelação a uma
simples ‘manifestação’ da ‘salvação’581
. Isso o leva a insistir na identidade
ontológica da revelação582
.
Para Queiruga, não cabe aqui a categoria de ‘representação’, porque o
problema está no descobrimento originário, pois
tratando-se da ultimidade humana, não há lugar para descobrimento – nem, por isso mesmo, de símbolo – sem realização, pois, no processo de chegar ao extremo de si
mesmo a partir da relação com Deus, o ser humano só pode ver aquilo que vive583
.
Encontra, então, na realização a única possibilidade para avançar realmente
no descobrimento e na comunhão, único modo possível de ser, depois,
representação. Diante dessa questão interessa-lhe reforçar o realismo da aposta e
sua necessidade histórica, que não se encontra ‘na lógica do privilégio’, mas em
uma ‘estratégia de amor’. O desejo de Deus em querer entregar-se à humanidade
dá-se no concreto da história, que a torna real e não aparência . E deve ser vista
como dom para todos e que a todos é oferecida como sua possível realização.
Assim dito, Queiruga confessa:
minha convicção é de que em Cristo a relação viva com Deus atingiu o
intransponível e o insuperável, de tal modo que nele se tornam patentes para mim
as chaves definitivas da atitude de Deus em relação ao mundo e da consequente conduta de nossa parte
584.
E mais adiante conclui: “para mim, não existe um teocentrismo pleno que
não inclua aquilo que foi revelado em Jesus de Nazaré, isto é, que não seja
579 QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreensão cristã, p. 106. 580 Cf. Ibid., p. 106. 581 Cf. MIRANDA, M. de França. O cristianismo em face das religiões, pp. 49-51 e 60-62 apud.
QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreensão cristã, p. 107. 582 Cf. Id., A revelação de Deus na realização humana. Nessa obra, também descarta a categoria
de ‘representação’ quando de fala da revelação. 583 QUEIRUGA, A. Torres. Op. cit., pp. 107-108. 584 Ibid., p. 108. Grifo do autor.
147
também jesuânico”, e assim, “reconhecer a verdade presente em outros
‘teocentrismo’ e inclusive de aprender deles determinados aspectos que
enriquecem o meu particular teocentrismo”585
.
Sua confissão consiste em duas condições: primeiro, porque deixar tudo o
que possui586
e até a própria vida, “requer respeito por todos aqueles que
acreditam ter feito, em sua religião, uma descoberta igual ou semelhante”;
segundo, “pela mesma razão, a convicção de que cada um precisa ser apresentado
com uma proposta aberta ao diálogo, ao contraste e à verificação”587
.
Enquanto dom, a experiência vivida não pode ter outro interesse, senão o de
favorecer o seu possível destinatário, o que acontecerá se ele a perceber capaz de
plenificar sua visão e abrir-lhe um novo horizonte de definitividade. Assumidas
essas condições, Queiruga não nega que lhe seja exigido uma atitude complexa e
cheia de matizes. Considerando como certo “por um lado, uma clara e confiável
afirmação da própria identidade.... e por outro, a humildade de quem não se
remete a si mesmo nem sequer insiste demasiadamente no modo de compreender
a verdade descoberta”588
. Isso implica em que deve estar aberto para possíveis
correções e aperfeiçoamentos. Como novas nuances, sem impor limites a
questionamentos externos.
O específico nesta categoria está na preeminência do teocentrismo, que se
encontra profundamente presente em Jesus de Nazaré. Logo nos remeterá a toda a
sua problematicidade histórica. No entanto, para o diálogo, a ênfase prioritária
deve estar não em sua figura individual, mas em sua proposta reveladora e
salvífica.
É em vista desta proposta apresentada por Jesus a partir de uma experiência
de Deus, como Abbá, que os cristãos apoiam sua convicção e a têm como
proposta cristã. Confiando em sua própria força de convicção a proposta cristã,
sem imposição arbitrária, nem soberba, assumindo-se como fruto do que propõe,
sente-se autorizada a abrigar a humilde esperança de que possa produzir o mesmo
efeito nos demais.
585 QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreensão cristã, p. 109. Queiruga, em seu livro, “O diálogo
das religiões”, sobre o cristocentrismo diz que “é o sentido primeiro e facilmente acessível; com a mesma razão, há também um ‘budacentrismo’ e um ‘maomecentrismo’... Mas Jesus – como Buda
e Maomé – não pregou a si mesmo; ele remeteu sempre ao Pai, a Deus. Jesus foi, sem dúvidas,
‘teocêntrico’”. p. 68. 586 Cf. Mt 13,44-46. 587 QUEIRUGA, A. Torres. Op. cit., p. 110. 588 Ibid., pp. 110-111.
148
Pois, continua Queiruga:
aquele que através de Jesus, descobriu que “Deus é amor” (1Jo4,8.16), isto é, que consiste em amar e em suscitar amor, tem motivos para pensar que, mesmo dentro
dos limites da sua apresentação histórica, oferece algo no qual todos podem
encontrar uma plenificação – não necessariamente uma refutação – de sua busca religiosa
589.
A partir desse encontro com Deus, que por amor procura se achegar a todos
e a todas sem distinção, inclusive dos maus e dos injustos590
, que perdoa sem
condições e sem impor penas591
, que é incapaz de julgar e condenar592
, que ama e
perdoa593
; diante de um Deus que só sabe amar, e o faz de forma gratuita, que
suscita entre todos este amor, em que toda sua ação e intenção é salvífica594
; resta
apenas confessá-lo e fazer o possível para que o mundo seja invadido e
transformado por seu amor.
No entanto, diante do que nos foi apresentado “evidencia por si mesmo que
já não se pode falar, sem matizes ou reservas de simples ‘cristocentrismo’”595
.
Frases como ‘não existe conhecimento de Deus a não ser em Jesus Cristo’ são
para Queiruga entendidas apenas como uma linguagem interna de natureza
‘confessional’, que não deve ter pretensão de ser uma definição objetiva. Para ele,
a linguagem deve ser a do amor, pois “o centro último e decisivo para todos –
como de resto, acontecia com o próximo Jesus - radica-se em Deus, o único
absoluto”596
.
Entretanto, diante desta nova perspectiva, não se pode esquecer-se de outra
questão: ‘a plenitude da revelação em Cristo’, que, de uma forma mais sutil,
atinge o diálogo. E para tal questão, Queiruga pede-nos para lembrarmos “que
esta revelação remete-nos a Cristo também na qualidade de Ressuscitado, isto é,
além de sua particularidade histórica”597
, pois ao destino pleno de Jesus e sua
revelação pertencem também sua morte e sua ressurreição.
589 QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreensão cristã, p. 112. 590 Cf. Mt 5,45. 591 Cf. Lc 15,22-24. 592 Cf. Rm 8,31-34. 593 Cf. 1Jo 3,20. 594 Cf. Mt 7,12; Lc10, 27-28. 595 QUEIRUGA, A. Torres. Op. cit., p. 113. 596 Ibid., p. 114. 597 Ibid., p. 115.
149
Esta afirmação pertence às afirmações teológicas de segunda ordem, que não
entram no primeiro momento do diálogo, e se forem introduzidas devem estar
abertas à reinterpretação.
Reinterpretação que, mesmo sendo profunda, não significa reduzir à pura
‘metáfora’ o mistério da encarnação598
, mas em ir ao encontro da essência do
cristianismo para torná-lo melhor. Atitude provocada pelo diálogo com outras
religiões, que obriga a revisar com absoluta seriedade o cristocentrismo599
.
Esse, com toda certeza, levará ao “teocentrismo” e adquirirá uma nova
dimensão. Pois,
no modo concreto, historicamente único, da proposta cristã induz uma certa bipolaridade, não porque nega a primazia absoluta de Deus, mas porque para o
cristão essa primazia apresenta-se mediada de maneira indissolúvel pela pessoa de
Jesus de Nazaré600
.
Por isso, é fortemente significativo para Queiruga, diante dessa bipolaridade,
falar de um ‘teocentrismo jesuânico’. Assim, ele mesmo diz: “Parece-me na
realidade que essa expressão aponta melhor tanto para o mistério do Pai, enquanto
origem ultimamente fundante, quanto para sua – em relação a nós – irrenunciável
mediação no Evangelho de Jesus de Nazaré”601
.
Para ele, em relação aos outros, isto não prejudica em princípio seu direito
de falar, se assim o creem, de um teocentrismo diferentemente qualificado, porque
está certo de que “a expressão remete com certa clareza à misteriosa estrutura à
qual se faz alusão, ao mesmo tempo em que é uma resposta à necessidade de
nosso tempo em transição e em busca de novas categorias” 602
.
E é aqui que está o ponto delicado para o diálogo, pois requer aceitar a união
da pessoa de Jesus de Nazaré com Deus apenas no presente momento, numa
cultura que atribui valor constitutivo à história. O que torna possível pensar, então,
que o fato de Jesus de Nazaré ter alcançado essa visão objetivante insuperável de
598 Cf. Queiruga cita John Hick como o que mais tem buscado este caminho. HICK, John. The
Myth of God Incarnate. London/Philadelphia, 1997; principalmente God Hás Many Names, pp.
8;19;27-28;58;74;125. Para ele, mais equilibrada e sugestiva é a apresentação de HAIGHT, R.
Jesus, símbolo de Deus. São Paulo, Paulinas, 2005. 599 Em nota, Queiruga destaca este lugar como o ponto crítico da questão. E faz referência à obra
de DUPUIS, J. Rumo a uma teologia do pluralismo religioso, pp. 251-294. Cf. QUEIRUGA, A.
Torres. Autocompreensão cristã, p. 115. 600 Ibid., p. 116. 601 Ibid. 602 Ibid., p. 117.
150
Deus, signifique também de direito, o indício que permite reconhecer a unicidade
de sua relação com Ele.
E já que a fé cristã teve sua origem numa experiência salvífica dentro de um
contexto determinado, onde o encontro com Jesus de Nazaré constituiu-se em
resposta à necessidade concreta de salvação, em que o testemunho dos primeiros
cristãos adquiriu seu significado. Podemos dizer que o significado da mensagem
evangélica para nós, hoje, como o sentido de todo o discurso sobre Deus, só pode
se manifestar em referência à situação atual concreta, em conexão com as
interrogações vitais que nos colocamos.
Logo, nossas experiências atuais devem oferecer ocasião para falar de Deus
de modo humano e sensato; caso contrário, nos limitaríamos à mera repetição de
esquemas tradicionais, perdendo a relevância para a vida cotidiana. Assim,
veremos que Queiruga vai além, quando propõe junto à ‘inculturação’ a
‘inreligionação’.
c) A inreligionação
Acentuando a importância da “inculturação” na colaboração com o diálogo
entre as religiões, Queiruga questiona suas respostas diante dos desafios
apontados com os avanços das reflexões atuais, pois reconhece a difícil tarefa que
persiste na atualidade em permanecer com a distinção entre cultura e religião603
.
Para ele, “o perigo principal aponta, no fundo, para uma deficiência
hermenêutica, pois continua trabalhando com o pressuposto de um dualismo
excessivo entre as religiões e a cultura, de modo que ambas acabariam sendo
claramente separáveis”604
.
O que se pode perceber nesta prática é a existência das consequências de um
paradigma anterior, sobretudo na compreensão acerca da revelação. Esse fato é
uma oportunidade para avançar, pois, reconhece que toda religião possui por
necessidade intrínseca, a interpretação de uma experiência originária, que, para
tornar-se compreensível e poder ser vivida, deve encarnar-se nos “elementos
culturais” das pessoas e comunidades. Queiruga se pergunta: “Por que não deveria
603 QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreensão cristã, p. 174. 604 Cf. Ibid., p. 175.
151
acontecer o mesmo com os ‘elementos especificamente religiosos’?”605
. Assim,
ele propõe, indo além da ‘inculturação’, a ‘inreligionação’.
Isso fazendo, tem clara a consequência da impossibilidade de distinguir
entre o cultural e o religioso em um mesmo fenômeno, pois a revelação sempre se
dá a partir de um conjunto de pressupostos, expectativas e ideologias geralmente
aceitas e disponíveis no contexto histórico e sociocultural de uma época, que
nunca se dá ‘em estado puro’. Logo, é certo que a revelação será sempre
interpretada, o que significa afirmar que “não cabe religião a não ser
inculturada”606
.
Pelo fato desse contexto mediar a revelação, será sempre por ela
transformado. Assim, como o foi com a fé cristã que teve sua origem numa
experiência salvífica dentro de um contexto determinado, onde o encontro com
Jesus de Nazaré se constituiu em resposta à necessidade concreta de salvação,
naquele contexto, o testemunho dos primeiros cristãos adquiriu o seu significado.
Como nos disse João Paulo II: “uma fé que não se faz cultura é uma fé que não foi
plenamente recebida, nem inteiramente pensada, nem inteiramente vivida”607
.
E com um avanço teórico-significativo da inculturação, temos
consequências importantíssimas para o diálogo inter-religioso. Que além de sua
aceitação entre os teólogos, recebeu-a também do magistério da Igreja:
Por meio da inculturação, a Igreja encarna o Evangelho nas diversas culturas e, ao
mesmo tempo, introduz os povos com suas culturas em sua própria comunidade; transmite às mesmas seus próprios valores, assumindo o que há de bom nelas e
renovando-se a partir de dentro608
.
No entanto, não deixou de receber críticas. Queiruga destaca duas como
principais: a) que pode levar ao imperialismo de uma cultura e b) que pressupõe
uma ideia de universalismo. E ele sintetiza estas críticas fazendo um alerta para o
seu perigo, indicando que a força semântica dessa palavra pode sugerir que o
encontro deve respeitar a cultura, mas suprimir (ou ignorar) a religião. Pois é
conhecido que nos encontros entre as religiões, quando foi possível respeitar sua
605QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreensão cristã, p. 176. 606 Id., Repensar o pluralismo: da inculturação à inreligionação. In: Concilium. Petrópolis: Vozes,
n. 319, 2007. p. 114. 607 Id., Repensar o pluralismo, p. 115. Citação de João Paulo II, 1982. 608 RM, 52.
152
cultura, foi desconhecido seu valor religioso, favorecendo consequências
arrasadoras: perseguições, destruições e o desejo de acabar com toda tradição609
.
Mesmo diante dos riscos apresentados, a inculturação não deve ser
substituída. No entanto, ele não descarta a necessidade de que ela seja corrigida e
completada, pois,
reconhecendo revelação real em qualquer religião, torna-se evidente que não se pode tratar de suprimi-la: significaria suprimir ou negar a presença real de Deus”.
Para ele, é certo que o encontro entre as religiões só é “legítimo para dar e/ou
receber uma melhora: oferecer aquilo que julgamos que pode ajudar o outro (e/ou receber do outro o que possa ajudar-nos)
610.
É o outro que, para acolher a oferta de quem chega, vai julgar se é possível
aceitá-la. Assim, como na inculturação, isso não deve acontecer negando sua
própria cultura, na religião, acontece algo semelhante, pois quem ouve é uma
pessoa religiosa e que vai fazer uso de sua experiência religiosa para também
acolher ou descartar o que se lhe anuncia.
É isso que a ‘inreligionação’ quer insinuar. Ela promove tanto uma acolhida
como um oferecimento. Acolhida que não significa recusar a própria religião, mas
aceitar a partir dela, tendo-a como base para a compreensão, a acolhida ou a
recusa do que lhe é anunciado. Ou seja, manter a própria unidade religioso-
cultural – ‘inculturar e inreligionar’ – a partir dela tudo o que pode melhorá-la.
E sobre o oferecimento, evitando todo tipo de discriminação e superioridade
sobre a outra religião, assumindo a presença de Deus em todas as religiões, e
assim, adquirindo uma atitude de que “minha religião é verdadeira, mas também a
tua; e, sendo Deus sempre maior do que a nossa compreensão, devemos
complementar-nos”, e Queiruga termina afirmando que “contra rotinas
excludentes e intolerantes, convém aprender de novo a grande verdade do amor:
tudo é de todos, já que de todos quer ser o mesmo e único Deus”611
.
Toda experiência religiosa genuína é resposta à universal e viva presença de
Deus, e que nessa mesma medida é revelada e verdadeira, constituindo um
caminho real de salvação.
Não pode, no entanto, ficar fora da reflexão sobre o diálogo inter-religioso a
relação entre fé e cultura, e separar essa compreensão da história do ser humano.
609 Cf. QUEIRUGA, A. Torres. Repensar o pluralismo, p. 115; Id., Autocompreensão cristã,
p.175. 610 Id., Repensar o pluralismo, p. 116. 611 Ibid., p. 117.
153
Porque a revelação, como já vimos, em relação a Deus é a sua “autocomunicação
aos homens”612
, e em relação aos homens “é a autoconsciência de toda a religião”,
como “tomada de consciência da presença do divino no indivíduo, na sociedade e
no mundo”613
.
2.7 A verdade entre as religiões
Para Queiruga, o comportamento linguístico adquire aqui grande
importância, pois se, a partir da contraposição entre religião verdadeira e religiões
falsas, será difícil que ocorra o diálogo autêntico, para ele, “se partirmos da
afirmação de que todas as religiões – enquanto modos específicos de acolhida e
configuração comunitária da universal presença salvífica de Deus – são
verdadeiras, o diálogo brota por si mesmo”614
.
Para isso, é necessário entender que “tudo se resume ao modo e à
intensidade da verdade que cada religião alcança na difícil e sempre insatisfatória
luta para captar e expressar em palavras, condutas e instituições a irradiação
amorosa do Mistério”615
.
Porque reconhecendo que a recepção humana é sempre frágil, desigual, a
dialética autêntica jamais é o ‘zero e o infinito’, mas o ‘mais e o menos’, ou como
o ‘bom e o melhor’. Se, na história, nenhuma realização é perfeita, todas as
religiões devem fazer a experiência dessa dialética em seu interior, em diálogo
consigo mesmas, para encontrar o que é melhor, em um processo de conversão
contínua.
Isso leva Queiruga a dizer que ‘o diálogo entre as religiões é, por isso
mesmo, decidida e sinceramente real’, porque ‘conecta-se com essa busca que
cada uma delas realiza a partir de seu interior’616
.
É dessa experiência que cada religião faz do Mistério impulsionando-a ao
oferecimento gratuito, que se encontra a justa atitude religiosa diante de um Deus
sempre maior e perenemente presente, que Queiruga avança em sua reflexão
“qualificando de ‘intrínseca’ a verdade das religiões, no sentido de que seria
612 RAHNER, K. Curso fundamental da fé: introdução ao conceito de cristianismo. São Paulo:
Paulinas, 1989. p. 145. 613 QUEIRUGA, A. Torres. A revelação de Deus na realização humana, p. 100. 614 Id., Autocompreensão cristã, p. 139. 615 Ibid., p. 140. 616 Cf. Ibid., p. 141. Grifo do autor.
154
incorreto concebê-las com simples mediação em vista de uma verdade superior”.
Para ele, “elas possuem valor em si mesmas”617
.
As religiões, por tratarem do destino definitivo de seus membros, são
‘absolutas’618
. Entendendo que na
perspectiva cristã nós vemos sua abertura num momento posterior, ou seja, no fato
de serem intimamente chamadas, também elas, à completude com aqueles aspectos
que não estão presentes nelas e que de acordo com a nossa confissão estão presentes na plenitude aberta por Cristo
619.
A autocompreensão cristã, assumindo esta atitude, deixa uma prática
baseada em uma ‘lógica de concorrência’, na qual as ‘minhas razões e a minha
religião são lançadas contra a religião dos outros’, para assumir uma ‘lógica da
gratuidade’, adquirindo a
consciência de estar apoiada numa transcendência que tudo fundamenta e que, por
isso mesmo, busca incansavelmente, desde sempre e em todos os lugares, dar-se a
conhecer e entregar-se a todo homem e a toda mulher. Porque quer ser dom para todos, não pode ser possessão de ninguém
620.
A própria fenomenologia da religião diz-nos que toda experiência religiosa
por causa de seu próprio dinamismo, tende a compartilhar, mesmo que ameaçada
por atitudes particularistas, sua orientação intrínseca sem fronteiras; no limite,
rumo à universalidade.
Porque a verdade que uma religião descobre, ela acredita que não é só para
si, por exclusividade, mas para que pertença a todos os outros. A verdade religiosa
acaba sendo um “reflexo da plenitude de Deus no espírito humano, plenitude à
qual, de nossa parte, só podemos responder com a busca conjunta, fraternal e
compartilhada. Todos recolhendo os fragmentos de uma verdade que, refletida na
finitude, é destinada a todos”621
.
Logo, o diálogo entre as religiões (diálogo inter-religioso) é uma condição
intrínseca da verdade, pois está claro que ambos nunca foram fatos isolados, mas
constituem um tecido denso de contatos e influências. O diálogo inter-religioso
veio à tona através de um grande salto qualitativo nos meios de comunicação, na
constituição da ‘aldeia global’.
617 QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreensão cristã, p. 142. Grifo do autor. 618 Cf. Ibid., p. 145. 619 Ibid., p. 146. 620 Ibid., p. 147. 621 Ibid., pp.148-149.
155
Esta realidade, no entanto, não obriga em nada a que os cristãos renunciem a
sua verdadeira experiência na revelação em Cristo. Porque não sendo esta
experiência propriedade dos cristãos, deve ser assumida como “dom de Deus
comum, que foi emergindo e se configurando num ponto da comunidade religiosa
humana”622
. Logo, negar sua experiência é privar outros de uma possível riqueza à
qual têm direito.
Ou seja,
a missão cristã não sai nunca para o deserto da pura ausência, mas para o encontro
com outros rostos do Senhor, que impulsionados pela experiência da plenitude
encontrada em Cristo, desejam fazer brilhar também para os outros o rosto que se entreviu a partir da insuperável irradiação da vida de Jesus
623.
Desta forma permite ao cristão corrigir seus próprios defeitos e descobrir
novas riquezas no encontro com Deus nas outras religiões. Queiruga propõe a
consciência dos limites de toda autocompreensão, reconhecendo que este é o
melhor caminho para ir elaborando todos juntos e de passos bem marcados, uma
compreensão mais decididamente universal.
Para isso, prefere utiliza-se da palavra ‘encontro’ no lugar da palavra
‘diálogo’, pois entende que o diálogo “pode implicar a conotação de uma verdade
que já se possui plenamente e que vai ser ‘negociada’ com o outro, que também já
tem a sua”, e que ‘encontro’, “pelo contrário, sugere muito mais um sair de si,
unindo-se ao outro para ir em busca daquilo que está diante de todos”624
.
Esta sua resistência em fazer uso da palavra ‘diálogo’ também se reflete ao
falar de ‘inclusivismo’, pois, para ele, “o que a palavra sugere é que toda a
verdade dos outros já está ‘dentro’ (incluída) da nossa”. Isto justifica também para
ele a postura ‘pluralista’, mesmo não cedendo “às conotações de nivelamento
igualitário ou de relativismo indiferenciado”625
.
Mesmo utilizando-se de uma nova linguagem, não se está livre de ser mal
interpretado, devendo-se evitar todo reducionismo, afirmar algo como verdade
implica excluir a verdade do outro. Está claro que se deve sempre ter como
pressuposto que:
o que foi revelado em Cristo há muito que é também patrimônio de outras
religiões... e que inclusive, em diferente medida, tem sido trazido por estas, mas,
além disso, que essas religiões têm aspectos e perspectivas ausentes no cristianismo
622 QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreensão cristã, p. 150. 623 Ibid., p. 151. 624 Ibid., p. 153-154. 625 Ibid., p. 154.
156
e que podem ajudá-lo e completá-los, em seu esforço em vista de uma melhor e
mais completa realização histórica626
.
Sobre as demais religiões, o cristianismo deve entender que todas
convergem cada vez mais entre si, pois estão habitadas pela presença do mesmo
Senhor e todas chamadas à máxima plenitude possível.
Queiruga tem claro que considerar que essa plenitude alcançou em Cristo
sua máxima realização histórica, não significa que se pretenda ver ‘nossa’ religião
como realização perfeita e acabada em todos os aspectos. Para ele, todas as
religiões apresentam-se em sua essência mais íntima, necessitadas de um melhor
conhecimento de si e de descentralização, para poder melhor refletir o Mistério
que as envolve, e que é comum a todos.
Por fim, concluímos que, assim, reafirma-se a convicção de que ‘todas as
religiões são verdadeiras’, na medida em que acolhem a presença salvífica de um
mesmo Deus. Uma vez que estejam abertas a esta presença, todas são convocadas
a somarem os seus reflexos, pois dando e recebendo tendem a crescer e a
fortalecer a união com as demais. “O que está em jogo não é o ‘em si’ da
comunicação de Deus, mas o precário e relativo ‘para nós’ da recepção”627
.
E de tal modo o cristianismo, em relação a outras religiões, deve reconhecer
que tem muito que aprender e que nele não se encontra a comunicação plena de
Deus, pois “existem aspectos que só a partir de fora de sua configuração concreta
podem chegar-lhe e que justamente pela fidelidade ao Deus seu e de todos, deve
estar disposta a acolher”628
.
Conclusão
Nesta parte de nossa tese, pudemos aprofundar um pouco mais sobre a
mística e a revelação. A mística como realização de todas as religiões e caminho
para conhecê-las, como também para o conhecimento do próprio homem. E sobre
a revelação, que reinterpretada no cristianismo, deixa de ser concebida como um
‘ditado divino’, para ser vislumbrada como um ‘dar-se conta’ da presença de
Deus, que maieuticamente se revela na história.
626 QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreensão cristã, p. 155. 627 Ibid., p. 156. 628 Ibid., p. 157. Grifo do autor.
157
Constatamos que a experiência mística acontece porque Deus assim tem
procurado o ser humano incessantemente. E esta experiência reafirma a identidade
do religioso ao mesmo tempo em que o conduz ao encontro real com as demais
tradições religiosas, pois o leva a ter um contato com Deus no mais intimo de si,
na descoberta de si mesmo, e o conduz ao outro que, por vezes negado, é aceito
em sua alteridade.
Neste momento, concluímos, então, reafirmando que mesmo que o diálogo
inter-religioso tenha se chocado permanentemente com o dogmatismo e com o
relativismo indiferente, o cultivo da dimensão mística pode eficazmente ajudar a
evitar esses obstáculos, pois o exercício da experiência mística permite captar o
íntimo parentesco de todas as religiões ao pôr em contato quem a vive com a raiz
de onde todas elas procedem.
Podemos dizer que a mística assume o melhor lugar para o encontro e
diálogo inter-religioso. No cristianismo a experiência mística, que conduz o
religioso ao mais profundo mergulho em seu interior e lá encontrar Deus,
descobre que o mais intimo de sua humanidade é sua capacidade de amar que
imprime nele a imagem e a semelhança de Deus. Para isso, tomaremos nas partes
seguintes de nossa tese duas experiências oriundas do cristianismo de místicos
como Thomas Merton e Raimon Panikkar que ousaram, a partir de sua
experiência de encontro com Deus, ir ao encontro de outros crentes de diferentes
tradições religiosas e com eles redescobrirem a sua própria fé como força
dinamizadora para um profundo e fecundo diálogo inter-religioso.
Em Thomas Merton, encontraremos um místico consciente do valor da
solidão para seu crescimento espiritual e da necessidade de comunicar-se com as
outras pessoas. À medida que crescia sua experiência de Deus, sentia uma maior
responsabilidade pelo bem do outro e de toda sociedade.
Em Raimon Panikkar, reconheceremos um homem que na profundidade de
sua experiência de Deus, longe de um mosteiro, acredita que toda caminhada
espiritual em que o homem procura com todo o seu ser o encontro com Deus, a
Realidade Última, se encontra um monge desconhecido. Para este a experiência de
Deus "não só é possível, como também necessária para que todo ser humano
chegue à consciência de sua própria identidade"629
.
629 PANIKKAR, Raimon. Iconos del mistério. La experiencia de Dio. Barcelona: Penísula, 1998.
III - parte
Experiência Cristã de Deus em Thomas Merton
Nos ocuparemos, nesta parte de nossa pesquisa, da experiência de Deus
vivida por Thomas Merton630
. Encontraremos um jovem ansioso, inquieto, que
percorreu um caminho gradual de ascensão à Verdade. Boa parte de sua jornada
transcorreu em caminhos indiretos, às vezes às escuras, vislumbrando ao longe
uma centelha de luz.
Vivendo em um contexto de grande crise mundial, eclesial e social, pôde dar
através de sua fé, de sua teimosa esperança, e de seu inflamado amor,
contribuições importantíssimas aos desafios de sua época. Veremos que foi de
dentro do seu mosteiro que os enfrentou, à luz da contemplação cristã, autêntica e
incompatível com qualquer espécie de alienação.
Até vinte e seis anos de idade, Merton vive numa íntima confluência com o
mundo, pois tudo o que acontecia "lhe dizia respeito". Ele se engaja
resolutamente na experiência do viver, procurando para si, e para os não-
conformistas, uma postura dialética que harmonize ação e contemplação e que,
como tal, seja capaz de tornar menos aflitivo o mysterium tremendum da
condição humana.
Em sua experiência de vida, testemunhada em seus escritos, encontramos
um homem na busca constante por corresponder à vontade de Deus, sem afastar-
se da realidade dos seres humanos. Encontraremos um homem que, mesmo
isolado no seu mosteiro, transformou-se em uma das vozes mais atuantes do seu
tempo, nenhum dos dilemas da humanidade escapou à sua atenção.
Três anos: este foi o tempo que decorreu entre o batizado de Merton e sua
entrada em Gethsemani. Um período conturbado, cheio de indecisões que o
preparariam duramente para o ingresso no claustro.
Nosso percurso se dará em um primeiro momento por sua autobiografia, A
montanha dos sete patamares631
, desvendando o itinerário de sua vida, as
mudanças, as descobertas, as ilusões, a história de uma vocação, suas atividades
630 No decorrer de nossa pesquisa nos referiremos a Thomas Merton apenas como Merton. 631 MERTON, Thomas. A montanha dos sete patamares. Petrópolis: Vozes. 2005. Biografia escrita
no mosteiro de Gethsemani, em que ele conta a história de sua vida, desde o seu nascimento até o
início de sua vida como monge. Título original: The seven story mountain, publicado em 1948.
159
desenvolvidas em prol dos direitos humanos e contra a guerra e a experiência de
um grande amor.
Para aprofundarmos e ampliarmos sua experiência de Deus, enveredaremos,
principalmente, por alguns de seus livros: A experiência interior632
, Novas
sementes de contemplação633
e seu diário O signo de Jonas634
, em que
reconheceremos em Merton o testemunho de alguém que não se cansou, em sua
peregrinação, ao encontro de Deus, encontrando-O no íntimo de si mesmo.
Em algumas das páginas de outro diário, Diário da Ásia635
, encontraremos
passagens da sua extraordinária caminhada traduzidas em seus desafios,
confrontos e interações com as tradições do Ocidente e do Oriente e o fim de uma
peregrinação.
Na experiência de Merton, reconhecemos muito claramente sua adesão ao
verdadeiro humanismo, do primado do homem sobre a tecnologia, da compaixão
sobre a violência. Por isso mesmo é que, no seu testamento espiritual, a chave da
liberdade interior que a vida monástica pode e deve trazer ao mundo é a libertação
de cada ser humano em face de sua crescente opressão pelas estruturas. Sem elas,
não há vida social possível. Uma vida interior profunda é a base de toda a vida
exterior fecunda.
1. O itinerário de uma vida
Filho de um casal de artistas. Seu pai era pintor e sua mãe bailarina. Merton,
cujo verdadeiro nome é Tom Faverel Merton, nasceu em uma pequena cidade,
Prades, na França, no dia 31 de janeiro de 1915. Pouco mais de um ano depois,
fugindo da guerra, a família muda-se para os Estados Unidos. Foram morar perto
632 MERTON, Thomas. A experiência interior: notas sobre a contemplação. São Paulo: Martins
Fontes, 2007. Foi publicado em 2003; título original: The inner experience. Notes on
contemplation. Esse livro é uma revisão que Merton fez do livro O que é contemplação?,
publicado em 1948. 633 Id., Novas sementes de contemplação. Rio de Janeiro: Fisus, 1999. Título original: New seeds of contemplation, publicado em 1962. 634 Diário em que Merton narra os cinco primeiros anos de sua vida no mosterio de Gethsemani.
Título original: The sign of Jonas, publicado em 1953 635 Id., O diário da Ásia. Belo Horizonte: Ed. Vega, 1978. Nesse diário constam os registros a
partir do dia 15 de outubro até o dia 08 de dezembro de 1968. Período de sua viagem à Ásia.
Título original: The Asian Journal of Thomas Merton, publicado em 1973.
160
dos seus avós maternos, em Flushing. Neste período, nasceu seu irmão, John Paul
Merton636
, em 1918637
.
Merton, filho de artistas, herdou de seu pai a sensibilidade para a beleza da
natureza em todas as suas formas e mistérios. O impulso de perfeição e
insatisfação que o leva a chegar ao mais profundo das coisas e de si mesmo talvez
tenha vindo da mãe. Possivelmente foi herança, também de sua mãe, o costume de
escrever diários. Desde criança, sua mãe escrevia um minucioso registro de
acompanhamento, anotando as etapas e descobertas do seu desenvolvimento638
.
Por causa dos registros de sua mãe, sabemos os fatos de sua infância, e
depois o próprio daria continuidade ao escrever seus diários, crônicas de sua vida
exterior e interior, nos quais nos comunicou as reflexões mais profundas de seu
cotidiano. Isto nos permite seguir seu itinerário humano e espiritual, revelando-
nos a diversidade de facetas que integram sua personalidade. Ele confessa em seu
diário, O signo de Jonas:
Estou contente de que estas páginas me mostrem como sou: inquieto, cheio de
murmúrio de meus defeitos e paixões, e com as feridas abertas deixadas por meus pecados. Sinto-me cheio de meu próprio vazio. E, contudo, ainda que minha casa
esteja em ruínas, Tu vives nela!639
A partir da liberdade que possui para escrever, torna-se difícil ler sua obra
sem encontrar o próprio Merton. O material que tem em suas mãos para aprender
o humano e o divino é sua própria vida. Nesse percurso, é possível descobrir
alguns aspectos e atitudes da pessoa que ele se tornara. Como, por exemplo,
segundo Maria Laguna, seu desenvolvimento como pessoa e a descoberta do mais
profundo eu640
.
Merton foi educado pelo método progressista. Era desejo de sua mãe que ele
fosse independente, original, individual, que tivesse um caráter definido e ideais
636 John Paul Merton era o único irmão de Merton. John Paul Merton ingressou na Real Força
Aérea Canadense (RCAF) em 1941, com a intenção de se envolver na Segunda Guerra Mundial.
Em 16 de abril de 1943, ele embarcou em um bombardeiro sobre Canal Inglês. Por razões
desconhecidas o avião perdeu altitude e caiu. Ele morreu no dia 17, sábado da Semana Santa.
Merton soube da morte de seu irmão na terça-feira de Páscoa e compôs um poema para meu irmão
intitulado: “Missing in Action de 1943", que conclui o seu diário A Montanha dos Sete Patamares, p. 365-366. 637 Cf. MERTON, Thomas. A montanha dos sete patamares, p. 10-13. 638 LÓPEZ, María Luisa Laguna. Thomas Merton: uma vida com horizontes. Aparecida, SP:
Editora Santuário, 2010. p. 59. 639 MERTON, Thomas. O signo de Jonas, p. 59. 640 Cf. LÓPEZ, María Luisa Laguna. Thomas Merton: uma vida com horizontes. p. 78.
161
próprios641
. Porém, posteriormente, desde sua mais profunda consciência de
monge, confessa: "de alguma maneira, tenho que buscar minha identidade não só
em Deus, senão também nos outros. Jamais poderei encontrar a mim mesmo se
me isolo do resto da humanidade como se pertencesse a uma espécie diferente"642
.
Quando tinha seis anos, sua mãe morreu. Com seu pai, iniciou uma série de
mudanças de residências que o fizeram em muito pouco tempo conhecer
experiências educativas diferentes na França e na Inglaterra. Até que não pôde
mais continuar instável, por causa dos estudos643
.
Depois do regresso do seu pai, partiram para o país em que nascera644
. No
novo colégio, começa a escrever seus primeiros romances junto com um grupo de
amigos. Teve, naquele colégio, a oportunidade de participar de algumas
celebrações protestantes. No entanto, não foram momentos que lhe deixaram
algum ensinamento. Entre estes estão mais os que, com simplicidade de vida e
conversas informais, tivera com seu pai645
.
Aos dezesseis anos, ficou órfão ao morrer seu pai, em Londres. A notícia da
morte do pai deixou-o triste por vários meses. Passada a dor, assume sua vida com
uma liberdade própria do século XX646
. Estava destinado a viver como um
autêntico cidadão do seu século.
De férias, quando estudava na Escola Secundária de Oakham, decidiu ser
comunista mesmo não sabendo o que isso significava647
. Na volta à escola
participou de manifestos comunistas e se sentiu um grande rebelde. Em seguida,
depois de se graduar e ter sido aprovado com êxito nos exames para aluno bolsista
da Universidade de Cambridge, ganhou de seu tio, seu tutor, como presente de
aniversário, uma viagem pela Europa648
.
Merton já havia estado anteriormente em Roma e quer descobrir algo novo e
diferente do que já havia visitado. Impressionam-lhe muito as ruínas e os restos
históricos. Visitou várias igrejas e museus, ficou fascinado pelos mosaicos
bizantinos e se converteu em um peregrino que buscava a instrução através
daqueles altares, mosaicos e santuários. Até que passou a visitar esses lugares não
641 Cf. MERTON, Thomas. A montanha dos sete patamares, p. 16. 642 MERTON, Thomas. Novas sementes de contemplação, p. 58. 643 Cf. Id., A montanha dos sete patamares, pp. 20-21. 644 Cf. Ibid., pp. 32-33. 645 Cf. Ibid., pp. 41-42. 646 Cf. Ibid., p. 81. 647 Cf. Ibid., p. 87. 648 Cf. Ibid., p. 95.
162
só pela sua arte, mas pela paz que o ambiente lhe dava e pela descoberta de
Cristo649
.
Ele confessa em seu diário:
E pela primeira vez na vida comecei a descobrir alguma coisa daquela Pessoa que
muitos chamavam de Cristo. Foi um conhecimento obscuro, mas verdadeiro, e em
certo sentido, mais verdadeiro do que supus e mais verdadeiro do que eu admitiria. Foi em Roma que se formou minha concepção de Cristo
650.
O que poderia ter sido uma conversão, ficou enterrado sob as cinzas da vida
que leva em seu primeiro ano em Cambridge. Os amigos que o acompanharam
desde Oakham dizem que Merton parecia outra pessoa completamente diferente
da que conheceram na escola. Logo se separa deles, segue outro caminho
conforme indica: "depois de haver conhecido umas duzentas pessoas diferentes,
lancei-me na multidão que gravitava no polo oposto da vida de Cambridge"651
.
Merton foi obrigado por seu tutor a voltar para morar com seus avós
maternos nos Estados Unidos. No final do ano de 1934, abandonou a Europa652
.
Em 1935, nos Estados Unidos, estudando na Universidade de Columbia,
colaborou em diversas publicações internas e escreveu sua dissertação, requerida
para alcançar seu título de mestre, sobre a arte e a natureza em William Blake653
.
Em 1938, começando seus estudos para o doutorado, interessando-se pela
obra do poeta Gerard Manley Hopinks, SJ. Por própria decisão, depois de um
período juvenil inquieto, foi batizado na Igreja Católica654
.
Por mais de um decênio após aquela noite romana, ao sair da adolescência, a
experiência da mocidade, desvanecedora de todas as ilusões com o mundo
moderno, bem como o seu pouco tempo no comunismo, pensou Merton em entrar
para os franciscanos655
. Mas ainda achou pouco. Alma de extremos como era,
buscou uma solução mais radical. A mais exigente quanto à renúncia ao mundo: a
Trapa, o silêncio e o isolamento. Entrou, em 1941, no mosteiro de Gethsemani,
Kentucky, querendo para sempre virar as costas ao mundo656
. Não era esse, como
veremos, o apelo misterioso que recebera na própria Roma.
649 Cf. MERTON, Thomas. A montanha dos sete patamares, p. 101. 650 Ibid., p.102. 651 Ibid., pp.110-111. 652 Ibid., p.117. 653 Cf. Ibid., pp. 138 e 173. 654 Cf. Ibid., pp. 202-204. 655 Cf. Ibid., p. 264. 656 Cf. Ibid., pp. 337-338.
163
Seu período monástico compreende várias etapas notadamente
diferenciadas: noviciado (1942-1944), primeiros votos até a ordenação sacerdotal
(1944-1949), mestre de escolásticos (1951-1955), mestre de noviços (1955-1966)
e finalmente sua etapa de ermitão (1966-1968) e de monaquismo universal (1968).
Dez anos depois de seu ingresso na abadia, adota a cidadania norte-americana.
Pouco depois de concluir seu período de formação monástica, começou a
escrever. Primeiro, sobre temas de espiritualidade monástica e contemplativa. É
sua primeira etapa, em que se desenvolve o sentido da vida contemplativa e
monástica, expressa por uma linguagem nova e marcante, sincera e, em alguns
momentos, crítica.
Em uma segunda etapa, vive o paradoxo na busca maior pela solidão, sente-
se mais comprometido com os problemas mundiais: a paz, a violência, a guerra,
os direitos humanos, a descrença, a contribuição do oriente às formas de vida
ocidentais, o papel da ciência e da tecnologia no mundo contemporâneo.
Em uma etapa mais adiante, alarga os seus horizontes a outras culturas e
religiões. O livro mais significativo de sua viagem ao oriente, e até ao seu próprio
interior cristão e universal, foi seu último livro que não viu publicado: Diário da
Ásia.
Em 1965 lhe é concedida a permissão, longamente esperada, para viver
como ermitão, nas proximidades da abadia657
. Três anos mais tarde, em 1968, é
convidado para viajar em busca de novos lugares para futuros eremitérios e viaja
para o Novo México, Califórnia e Alaska, antes de viajar por vários lugares da
Ásia por causa de encontros de monges beneditinos e cistercienses em Bancoc658
.
Ali morre de forma acidental eletrocutado por um ventilador.
Não nos é possível pensar no místico Merton separando-o de sua produção
escrita. Há uma tensão contínua entre sua lealdade ao papel de monge e o de
escritor que reflete os conflitos durante boa parte de sua vida, até assumir por
completo que seus escritos constituem uma forma lícita de oração, um modo
muito íntimo de comunicação pessoal e de comunhão universal, uma opção livre,
embora uma expressão rigorosa de obediência.
657 HART, Patrick; MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade: sua vida em seus diários. Rio
de Janeiro: Fisus, 2001. p. 269. Um livro que reúne memórias em forma de diário, composta por
passagens selecionadas de seu diário (uma obra de 7 volumes). Traduzido por Leonardo Fróes
(monge trapista). 658 Cf. MERTON, Thomas. O diário da Ásia, p. XXVIII.
164
1.1 Convém recordar
O jovem Merton recordando seus passos, na busca por querer recuperar algo
de bom que tenha vivido, não se dá conta do verdadeiro caminho que esteve
percorrendo:
Há muitas coisas boas para rever, no entanto, porque antes do meu primeiro ano em
Cambridge, apesar de sempre possuído por um orgulho insano, mesmo assim eu
amava Deus e rezava e não estava repleto de pecados. Houve, pois, dias bons em Oakham - e em Estrasburgo e em Roma e, antes disso, na França e em Londres nas
férias escolares. Mas penso que, mesmo quando criança, eu já estava muito cheio
de egoísmo e ira para querer agora recuperar minha infância!659
Todavia, era certo que precisava não mais procurar recuperar o que tinha
vivido ou tido, mas sim procurar viver o presente. As experiências no decorrer de
sua vida vão definindo sua identidade e indicando um caminho.
Uma experiência marcou profundamente Merton. Ele estava na cidade
Romana, durante uma viagem feita aos 16 anos. Ele confessa em seu diário que
sentiu bruscamente, como S. Paulo, em sua alma "completamente morta", a
revelação pessoal e os primeiros indícios de seu invencível chamado, ao qual,
aliás, só muito mais tarde iria responder660
.
Eu estava em meu quarto. Era noite. A luz estava acesa. De repente pareceu-me
que papai - morto há mais de um ano - estava ali comigo. A sensação de sua
presença foi tão viva, real e chocante como se tivesse tocado meu braço ou falado comigo. Tudo aconteceu num piscar de olhos. Mas neste piscar de olhos fui
dominado por uma visão repentina e profunda da miséria e corrupção de minha
alma e fui transpassado por uma luz que me fez compreender um pouco da condição em que me encontrava. Fiquei horrorizado com o que vi e todo o meu ser
revoltou-se contra o que estava dentro de mim; minha alma queria escapar e
libertar-se de tudo isso com uma intensidade e urgência que jamais eu tinha
conhecido antes. E nesse instante, acho eu que, pela primeira vez na vida, comecei realmente a rezar - não com meus lábios, intelecto e imaginação, mas a partir das
verdadeiras raízes de minha vida e de meu ser; comecei a rezar a Deus que nunca
conheci: que viesse a mim saindo de sua treva, que me ajudasse a ficar livre de milhares de coisas terríveis que mantinham escrava minha vontade
661.
Ainda em Roma, quando estava de partida, passando perto de um mosteiro
trapista de Tre Fontane, desce do bonde e, acometido por um impetuoso
movimento, entra em uma igreja. Assim escreveu em seu diário: “[...] Fiquei então
andando de cá para lá na silenciosa tarde, crescia em mim o pensamento: Quero
ser monge trapista”. Essas experiências não passaram, "de um devaneio - e
659 HART, Patrick; MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, p. 6. 660 Cf. MERTON, Thomas. Montanha dos sete patamares, p.103. 661 Ibid., pp.103-104.
165
suponho ser um sonho que sobrevém a muitos homens, mesmo não acreditando
em nada"662
.
Na faculdade, todos estranhavam o seu grande entusiasmo pela vida, um
desejo de viver tudo intensamente. Em um momento, suas leituras o fizeram
refletir sobre sua vida, até mesmo perceber sua infelicidade. Passou a ler os livros
de Freud, Jung e Adler663.
Ele se sente envolvido pelo ar corrompido e putrefato da sociedade,
sobretudo das classes altas, que, partindo da Inglaterra, parecia estender-se por
toda a Europa e enraizar tudo no vício, nos anos que precederam a Segunda
Guerra Mundial. Terminado o ano, ele começa uma nova etapa, matriculando-se
na Universidade de Columbia664
. Ele confessa:
Não tive de fazer muita reflexão sobre o ano que havia passado em Cambridge para
que ela me mostrasse que todos os meus sonhos de fantásticos prazeres e deleites eram loucos e absurdos e que tudo o que havia alcançado se havia reduzido a
cinzas em minhas mãos, e que eu mesmo, além disso, me tornara uma espécie de
pessoa muito desagradável... fútil, egocêntrica, dissoluta, fraca, indecisa,
indisciplinada, sensual, obscena e orgulhosa. Eu era uma confusão... Considerava a pessoa que era agora a pessoa que havia estado em Cambridge, o que eu havia feito
de mim mesmo e via bem claramente que era produto de meus tempos, de minha
sociedade e de minha classe. Eu era algo assim como um produto de egoísmo e irresponsabilidade do pensamento materialista em que vivia
665.
É por causa do vazio que sente e pela repulsa que Merton tem da sociedade
que ele filia-se à Liga dos Jovens Comunistas, acreditando, por pouco tempo, que
no comunismo estavam as bases da reforma de que o mundo necessitava, e,
sobretudo, que era um movimento pacifista e contra a guerra. Ele sempre foi
contra toda classe de guerra, foi um pacifista determinado666
.
Diante de todas as experiências vividas até esse momento, inconsciente ou
não, procura uma espécie de anestésico para sua extraordinária lucidez. O
intelecto é a única - e insatisfatória - arma que ele possui para defender-se do
mundo e preencher seu crescente vazio interior. Ele decidiu lutar pelas causas
sociais, contra todas as injustiças e sedes do capitalismo. Estava pronta sua nova
religião, prática e fácil em que todo o mal do mundo vinha do capitalismo. Assim,
procurava reparar seu egoísmo com uma espécie de consciência social política667
.
662 Cf. MERTON, Thomas. A montanha dos sete patamares, p. 106. 663 Cf. Ibid., p. 115. 664 Cf. LÓPEZ, María Luisa Laguna. Thomas Merton: uma vida com horizontes, p. 40. 665 MERTON, Thomas. Op. cit., pp. 122- 123. 666 Cf. Ibid., pp. 130-133. 667 Cf. Ibid., pp. 122-124.
166
Na Universidade de Columbia se inscreve em um curso sobre literatura
francesa medieval, e teve a oportunidade de ler O espírito da filosofia medieval,
de E. Gilson, sem saber que se tratava de um livro católico. Isto lhe causa muita
raiva, “fiquei com vontade de jogá-lo pela janela”. Por mais que pudesse admirar
a cultura católica, sempre houve grande recusa à Igreja Católica. Foi através das
páginas deste livro que Merton revolucionou sua concepção sobre Deus, assim ele
confessa:
Foi um alívio para mim descobrir não só que nenhuma de nossas ideias, muito
menos nossas imagens, podiam representar adequadamente Deus, mas também que
não nos seria permitido satisfazer-nos com nenhum conhecimento dele668
.
A partir deste momento, teve um respeito pela filosofia e pela fé católica,
pois reconhecia que os cristãos católicos acreditavam em alguém realmente e que
a fé não era um sonho. Passou então a sentir vontade de ir à Igreja, e agora à
procura de ajuda para satisfazer a necessidade de fé que lhe brotava da alma669
.
Um momento decisivo na vida de Merton foi seu encontro com Mark Van
Doren, jovem professor de Columbia. Ele ensinava literatura inglesa no primeiro
semestre em que Merton começava sua nova experiência universitária. Se a vida
de Columbia em contraste com Cambridge conseguiu frutificar de uma maneira
tão rica e positiva, se deu, em grande parte, graças a esse encontro que se
prolongou em amizade irrevogável durante toda a sua vida670
. Sobre o curso de
literatura diz: “Foi o melhor curso que tive na Universidade. Ele me fez um bem
enorme sob diversos pontos de vista” 671
.
Por indicação de outro amigo, Bob Lax, leu o livro Ends and Means, de
Aldous Huxley. Neste livro, o autor trata sobre mística como algo real e muito
sério, e que é acessível através da oração, fé, abnegação e amor. Esta leitura
despertou nele um interesse pela mística oriental672
.
Nessa universidade, ele conclui seu curso de bacharelado em Arte e resolve
fazer uma especialização em literatura inglesa do séc. XVIII. Sua pesquisa para
dissertação era examinar nos poemas de William Blake os aspectos de sua ideia
religiosa. Sem perceber, estava enveredando por um caminho totalmente
desconhecido, permitindo-se conhecer a si mesmo.
668 MERTON, Thomas. A montanha dos sete patamares, p. 157 669 Cf. Ibid., p. 158. 670 Cf. Ibid., p. 128 671 Ibid., p. 164. 672 Cf. Ibid., p. 168.
167
Foi algo especial viver em contato com o gênio e a santidade de William Blake
naquele ano, naquele verão, escrevendo a dissertação.... à medida que Blake ia
penetrando em meu sistema, eu me tornava sempre consciente da necessidade de
uma fé vital e da completa irrealidade e insubstancialidade do racionalismo sem vida e egoísta que vinha congelando minha mente e minha vontade nos últimos
sete anos. Quando terminou o verão, eu estava prestes a tomar consciência do fato
de que a única maneira de viver era viver num mundo cheio da presença e realidade de Deus.
673.
Entretanto, ainda não chegara o momento de uma conversão vinda das
raízes de sua vontade. Merton estava vivendo uma realização em nível intelectual.
A vida da alma não é o conhecimento; é o amor, uma vez que o amor é o ato da
faculdade suprema, a vontade, pela qual o ser humano é unido formalmente à última instância de todos os seus esforços – pela qual o ser humano se torna um
com Deus674
.
Outra amizade muito importante que faz nessa época é com o monge hindu
Bramachari, que lhe é apresentado por seu amigo Seymour Freedgood.
Bramachari o impressiona de imediato, não só por demonstrar uma grande paz
interior, mas por recomendar-lhe, não a leitura dos Upanishadas, mas das
Confissões de Santo Agostinho e da Imitação de Cristo. Estas sugestões
surpreendem Merton, mas ele as aceita e começa, através do cristianismo, a
penetrar no misticismo oriental, a cujo estudo se dedicaria com afinco e paixão até
o fim da vida. As influências de Bramachari e do Aldous Huxley de Ends and
Means foram mais fortes do que ele supunha675
.
É impressionante perceber que enquanto volta sua atenção para os estudos
sobre o Oriente, seu coração encontra profundidade no aprofundamento sobre a
tradição mística Ocidental.
Escrevendo sua tese, tem contato com um livro de Maritain, que o leva a
aprofundar o mundo da escolástica676
. Junto com Blake, faz novas descobertas que
o marcaram profundamente:
Eu, que sempre fora um antinaturalista na arte, havia sido um puro naturalista na
ordem moral. Não era de admirar que minha alma estivesse doente e arrasada; mas agora a ferida aberta fora fechada pela noção da virtude cristã, determinada pela
união da alma com Deus677
.
673 MERTON, Thomas. A montanha dos sete patamares, pp. 173-174. 674 Ibid., p.174. 675 Cf. Ibid., p. 180. 676 Cf. Ibid., p. 186. Título do livro de Maritain: Art et scolastique. Paris. Rouart, 1920. 677 Ibid., p. 185.
168
Assim, sem dar-se conta, quando escreve sua tese, seu coração vai se
abrindo. Começa a querer dedicar sua vida a Deus. E assim, a experiência
universitária de Merton realça as sombras e luzes da sua vida, de um jovem
totalmente comprometido e enraizado em seu tempo. Com seu afã de viver e
provar tudo, com suas ilusões e fracassos, suas ansiedades e aborrecimentos,
encontra em seu esforço um bem sem saber encontrá-lo. Como veremos a seguir,
um novo caminho se abre para Merton.
1.2 A história de uma vocação
Neste momento, ele não só tinha o conhecimento intelectual sobre Deus,
como também passara a desejá-lo. Precisava, no entanto, reconhecer que o
intelecto é independente do seu desejo, pois todas as suas contradições estavam
sendo resolvidas no nível do conhecimento. Sem deixar-se envolver por inteiro,
estava preso em si mesmo. “A única resposta ao problema é a graça, só a graça, a
docilidade à graça. Eu ainda estava na precária posição de ser meu próprio guia e
meu próprio intérprete da graça. É de admirar que tenha chegado ao porto!”678
.
Diante de toda a luta que travava sua alma, ele responde ao seu impulso e
vai pela primeira vez participar de uma missa. “A primeira vez na vida! Era
verdade... Não esquecerei facilmente o que senti naquele dia” 679
. Tudo foi muito
novo e surpreendente. No sermão ouviu falar sobre a humanidade e divindade de
Jesus, “era tudo o que eu precisava ouvir” 680
. Ele sabia que não poderia acreditar
no mistério da encarnação de Jesus por um simples ato de querer, se não recebesse
de Deus uma luz verdadeira, um impulso de fé. E tomado por um desejo tão forte
de ser batizado, saiu à procura de um padre e disse: “Quero tornar-me católico”
681.
Foi então orientado pelo padre, por dois meses, nos estudos sobre a doutrina
católica. E é desejando que se realize logo seu batismo, que surgiu o pensamento
de ser sacerdote682.
Após seu batismo, não consegue viver o que tanto lhe animara e colocando
o desejo de ser padre de lado, segue sua vida rotineira. O que estava acontecendo
678 MERTON, Thomas. A montanha dos sete patamares, p. 187. 679 Ibid., p. 188. 680 Ibid., p. 191. 681 Ibid., p. 196. 682 Cf. Ibid., pp. 200-201.
169
era que se julgava convertido a partir de seu intelecto. Acreditava em Deus e nos
ensinamentos da Igreja e até se achava um cristão zeloso.
Eu ia à missa não só aos domingos, mas às vezes durante a semana. Nunca fiquei
longe dos sacramentos; eu me confessava e comungava se não toda semana, pelo menos a cada quinze dias. Lia muitas coisas que podiam ser chamadas
“espirituais”, mas não lia espiritualmente683
.
Precisava reconhecer que a conversão do intelecto não bastava, enquanto
sua vontade não fosse totalmente de Deus. O solo que agora pisava depois de seu
batismo requeria dele uma mudança interior e não apenas o cumprimento de
obrigações católicas. Mas ele seguia sua vida sem perceber o convite que recebera
na pia batismal. “Era estranho que eu não tenha percebido logo o quanto isso
significava e chegado a compreender que era somente para Deus que eu devia
viver. Deus devia ser o centro de minha vida e de tudo o que eu fazia”684
.
Anos depois, de forma surpreendente, confessa: “Vou ser sacerdote!”685
. Foi
claro e preciso, ficou certo o que realmente queria, e estava em suas mãos a
possibilidade desse desejo tornar-se realidade. Ele procura os franciscanos e como
não havia nenhum impedimento, fica decidido que sua entrada no noviciado seria
no ano seguinte686
.
Ele não esperava que fosse rejeitado pela Ordem dos Franciscanos e isso
aconteceu687
. E então começa a duvidar de sua vocação para a vida religiosa. “A
única coisa que sabia, além da enorme aflição em que estava mergulhado, era que
não devia mais pensar que tinha vocação para o claustro” 688
. Mesmo assim, a
ideia de despedir-se do mundo secular não o abandona. Conforma-se
provisoriamente com o emprego de professor na Universidade Franciscana de São
Boaventura, em Olean, uma cidade localizada a sudoeste de Nova York689
. Data
desta época o diário que publicaria mais tarde com o título Diário Secular690
.
No ano de 1941, na semana santa, resolve fazer retiro em um mosteiro
trapista. Sem compreender e deixando-se envolver, sentiu: “meu coração
683 MERTON, Thomas. A montanha dos sete patamares, p. 210. 684 Ibid., p. 211. 685 Ibid., p. 229. 686 Cf. Ibid., p. 240. 687 Cf. Ibid., p. 269. 688 Ibid., p. 270. 689 Cf. Ibid., p. 272. 690 Título original: The secular journal of Thomas Merton. Publicado em 1959.
170
expandiu-se em alegria antecipada”691
, apenas em saber que seria possível ser
aceito o seu pedido.
Aproximava-se a semana do seu retiro no mosteiro trapista. E antes de ir faz
uma pesquisa sobre os trapistas e descobre que são cistercienses692
. Tudo que lê
move seu coração, “o pensamento desses mosteiros, daqueles coros remotos,
daquelas celas, eremitérios e claustros, daqueles homens com seus capuzes, dos
pobres monges, daqueles homens que voluntariamente se fizeram nada, tudo isso
abalou meu coração”693
.
Seu coração foi invadido por um ardente desejo pela vida monástica, mas ali
estava sempre sua razão lembrando-o de que não tinha vocação. E envolto pelo
desejo de ser monge e pelo medo de não ter vocação, parte para o mosteiro de
Gethsemani.
Quando chega, um irmão lhe abre a porta: “eu entrei e a porta fechou
silenciosa atrás de mim. Eu estava fora do mundo” 694
. Uma pergunta do monge
deixou-o apavorado: “Veio para ficar?”. Meio sem jeito respondeu que não695
. Seu
coração ficou mergulhado no silêncio e na paz que envolvia a casa. “O silêncio
era um abraço! Eu acabara de entrar na solidão de fortaleza inexpugnável. E o
silêncio que me envolvia também me falava, e falava mais alto e mais eloquente
do que outra voz qualquer” 696
.
Durante o retiro em Gethsemani, Merton se impressiona com a prática da
vida contemplativa: observa-a nos mínimos detalhes, lê tudo o que é possível
sobre a Ordem e, à medida que passam os dias, aumenta a certeza de que a Trapa
é o seu destino697
. Anos mais tarde, ele escreveria em A montanha dos sete
patamares:
A lógica da vida cisterciense era o oposto da lógica do mundo, onde os homens dão
sempre um passo à frente, de maneira que no mundo o mais excelente vem a ser o
que emerge, predomina, torna-se eminente sobre os demais, o que atrai a atenção.
691 MERTON, Thomas. A montanha dos sete patamares, p. 281. 692 Cf. Vida monástica no seguimento de Cristo segundo as regras de São Bento, fundada em 1098.
No séc. XI com a abertura de um mosteiro em Cister (Borganha, França) passaram a se chamar
Cistercienses. A partir do séc. XII, ocorreu um afastamento dos ideais das origens, e foi iniciada a
reforma, o abade Francês Dom Jean Armand, realiza em sua comunidade de La Trappe, um
programa de reforma, enfatizando a separação com o mundo. Passando em seguida a novas
fundações com a forma de vida La Trappe. Constituindo-se juridicamente uma nova ordem cisterciense da estrita observância (Trapistas). Cf. www.mosteirotrapista.org.br/história.htm. 693 MERTON, Thomas. A montanha dos sete patamares, p. 287. 694 Ibid., p. 290. 695 Cf. Ibid., p. 290. 696 Ibid., p. 291. 697 Cf. Ibid., pp. 291-300.
171
Qual era a resposta para esse paradoxo? Simplesmente que o monge, ao esconder-
se do mundo, não se torna menos ele próprio, menos pessoal, mas sim mais ele
próprio com mais perfeição, porque sua personalidade e sua individualidade se
aperfeiçoam em sua legítima categoria, a espiritual, endógena, da união com Deus, que é o princípio de toda perfeição. A lógica do êxito mundano se apóia numa
falácia, no estranho equívoco de que a nossa perfeição depende dos pensamentos,
opiniões e aplausos dos outros homens! Uma vida brilhante precisa sempre ser refletida na imaginação de mais alguém, como se aí fosse o único lugar em que
uma pessoa possa se tornar real698
.
De volta para São Boaventura, entrega-se à leitura das vidas de Joana D'Arc,
São João Bosco, São Bento e dos sermões de São João da Cruz. Merton identifica-
se cada vez mais com a posição espiritual deste último. A qualidade das poesias
de São João da Cruz fascinou Merton. Não é difícil, por isso, imaginarmos sua
alegria ao encontrar uma "alma irmã" como a do santo espanhol. Principalmente
porque, sendo também um rebelde, um inconformista (chegou a ser preso), ele
acreditava no primado da beleza e no da purificação da vida monástica como a
única via legítima para chegar a Deus699
.
Não tem mais dúvida: quer ser um monge trapista, quer despir-se o mais
rápido possível do mundo e mergulhar naquele majestoso silêncio. É então que
surge em São Boaventura alguém que seria uma das pessoas mais importantes da
sua vida: Catarina Doherty, a baronesa de Hueck, uma refugiada russa que se
dedica integralmente a ajudar os favelados do Harlem e que para tal fundara a
"Friendship House"700
.
A ideia de trabalhar no Harlem entusiasma Merton e ele não perde tempo:
faz uma visita à "Friendship House" e a ela volta muitas vezes. Escreve muitas
cartas à baronesa, chegando mesmo a sentir-se tentado a morar naquela
comunidade.701
As questões relacionadas à discriminação racial, despertadas pela
baronesa, acompanhariam Merton até o fim da vida.
No entanto, depois de terminada a leitura de um pequeno livro sobre a vida
cisterciense que trouxera de Gethsemani, conversa longamente com frei Philoteus
que lhe pergunta: “Por que fazer-se trapista? Merton o fixa nos olhos com firmeza
e diz: “Porque quero dar tudo a Deus!”702
.
698 MERTON, Thomas. A montanha dos sete patamares, p. 286. 699 Cf. LÓPEZ, María Luisa Laguna. Thomas Merton: uma vida com horizontes, pp. 119-132. 700 Cf. MERTON, Thomas. Op. cit., p. 307. 701 Cf. Ibid., p. 313. 702 SOUZA, Maria Emmanuel e Silva. Thomas Merton: um homem feliz. Petrópolis:Vozes, 2003.
pp. 31-32
172
1.3 "Entre os quatro muros da minha nova liberdade".
Merton escreve ao abade de Gethsemani e prepara-se para ingressar no
mosteiro. Chega o dia da sua viagem e a alegria o acompanha em todo o trajeto.
Quando chega, o irmão lhe abre a porta e pergunta: “Desta vez veio para ficar? E
agora, tomado por uma alegre certeza, responde: sim” 703
. Quando ele entra no
mosteiro diz: “O Irmão Matthew fechou a porta atrás de mim e me encontrei
fechado entre os quatro muros de minha nova liberdade”704
.
Ele sente que a longa peregrinação terminara e que é chegado o momento da
união mística com sua casa. Era 10 de dezembro de 1941. Era o tempo do
Advento. Ele era postulante e se preparava para o noviciado. Adquiriu um novo
nome: Frei Louis.
O que ele fala ao entrar no mosteiro revela o que para ele já se apresentava
como significado para a liberdade. Ele escreveu muitas vezes sobre esse tema. No
livro Homem algum é uma ilha, publicado em 1955, ele diz que “sendo mais
livres, também somos mais felizes. Não somente teremos mais do que tínhamos,
mas seremos mais do que éramos. É no aprofundamento da nossa união com a
vontade de Deus, que nos vem esse haver e esse ser”705
. Merton lembra que a
“consciência é a alma da liberdade”706
, e que sem ela a liberdade não saberá o que
fazer de si mesma.
Ele havia encontrado sua 'casa', estava feliz com o caminho percorrido e por
descobrir qual era o seu lugar no mundo. Segundo ele, “somos chamados por
Deus para participar da Sua vida e do Seu reino. Cada um é chamado a ocupar no
reino um lugar especial; se encontramos esse lugar, seremos felizes”707
. Sem, no
entanto, descuidar de que a vocação do ser humano não consiste em apenas ser, e
sim em trabalhar em união com Deus na criação de sua própria vida, sua
identidade, seu destino.
Ou seja, “somos seres livres e filhos de Deus. Quer isso dizer que não temos
de existir passivamente, mas devemos participar ativamente da liberdade criadora
703 Cf. MERTON, Thomas. A montanha dos sete patamares, p. 336. 704 Ibid., p. 337. 705Id., Homem algum é uma ilha. Campinas, SP: Verus Editora, 2003. p, 40. Publicado em 1955;
tema original: No man is an island. 706 Ibid., p. 38. 707 Ibid., p. 120.
173
de Deus em nossa vida e na vida dos outros, escolhendo a verdade”708
. Ele
continua: “falando com maior nitidez, diremos que somos até chamados a
participar da ação criadora de Deus, criando a verdade de nossa identidade”709
.
O lugar em que Merton se encontra o convida a sair de si para encontrar
quem ele procura, pois “se somos chamados a um lugar em que Deus deseja fazer-
nos o maior bem, somos chamados onde melhor podemos deixar-nos para achá-
lO”710
.
Ele vai descobrindo que as experiências vividas tinham sido sinais da
presença de Deus em sua vida. Ele descobre não ser possível se recordar de Deus,
e sim que Ele pode ser descoberto, pois é certo que “Conhecemo-lO porque Ele
nos conhece. Conhecemo-lO quando descobrimos que nos conhece. Nosso
conhecimento de Deus é o efeito do Seu conhecimento de nós. É sempre a
experiência de uma nova maravilha, que Ele se lembre de nós”711
.
O que Merton procurava era uma proporção harmônica entre ação e
contemplação. Sua entrada em Gethsemani não deve ser vista como uma ruptura
drástica com o mundo exterior, nem como um ódio a este mundo e muito menos
como uma fuga.
A minha alma não se descobre senão quando age. Ela deve, pois, agir. A estagnação e a inatividade trazem a morte espiritual. Mas a minha alma não deve
projetar-se inteiramente nos efeitos externos da sua atividade. Não preciso ver-me a
mim mesmo, eu só preciso ser quem sou712
.
Para ele não existia primazia da contemplação sobre a ação e nem desta
sobre aquela: sua vida mostra isso de maneira clara e irrefutável. Para Merton, a
vida contemplativa pode significar tudo, menos alienação. Para melhor
contemplar o mundo, ele se afastou dele, como se sua nitidez só fosse obtida a
distância.
Na manhã do dia em que professou seus votos solenes, reconheceu que não
lhe importava saber o que era ser contemplativo, o que era sua vocação e nem o
que era a vocação cisterciense. Assim, ele escreveu:
Naquela manhã, quando estava estirado com o rosto no chão no meio da Igreja, com o reverendo Abade rezando sobre minha cabeça, comecei a rir com boca no
pó, porque sem saber como e por que eu havia feito a coisa certa e mesmo uma
708 MERTON, Thomas. Novas sementes de contemplação, p. 40. 709 Ibid., p. 40. 710 Id., Homem algum é uma ilha, p. 126. 711 Ibid., p. 194. 712 Ibid., p.110.
174
coisa surpreendente. Mas o surpreendente não era o meu trabalho, mas o trabalho
que Vós realizastes em mim713
.
A gratidão de Merton a Deus, por seu cuidado com sua vida, está também
refletida no que para ele significa sua ordenação: “ninguém é ordenado sacerdote
exclusivamente para si, meu sacerdócio me faz pertencer não somente a Deus,
mas a todos os homens”714
.
Merton havia, enfim, encontrado seu lugar, aprendera a esperar e a dar
tudo a Deus. Tinha reconhecido que o caminho percorrido por vezes tão longo e
doloroso o conduziu, a ele, artista, diletante delicado, poeta, homem do mundo,
para os Tabernáculos da Contemplação, do silêncio e da solidão em Deus; e para
sua surpresa, para o mundo também.
1.4 Um monge, escritor e poeta para o mundo
Merton refletiu e meditou profundamente sobre o sentido da própria
identidade pessoal durante sua vida, o que para ele significava uma realidade
existencial profunda que só poderia ser entendida plenamente através da
experiência pessoal do amor. Como vimos, para Merton, a liberdade é uma
necessidade básica e irrenunciável. Em todas as fases da sua vida, uma qualidade
sempre presente foi a sua liberdade interior, seu ser livre sem barreiras nem
fronteiras. Assim, em sua vida monástica, soube integrar a mais estrita
observância com o exercício de sua liberdade, à qual jamais renunciou.
A liberdade, portanto, é um talento que Deus nos dá, um instrumento com o qual
devemos trabalhar. É o material com que construímos nossas próprias vidas, nossa
própria felicidade. Nossa verdadeira liberdade é algo que jamais devemos
sacrificar, pois, se sacrificássemos, estaríamos, em realidade, renunciando a Deus. Nossa liberdade é que faz de nós Pessoas, criadas à semelhança da imagem
divina715
.
Em um dos seus diários, ele havia escrito que desejava a total solidão,
queria o anonimato. No entanto, seu Abade lhe pediu para que escrevesse livros
que ajudassem a levar as pessoas ao amor de Deus e à contemplação716
.
Na primeira etapa de sua vida, como escritor no mosteiro, ele escreve sobre
a vida espiritual e seus temas fundamentais, sobre mística e contemplação e sobre
713 MERTON, Thomas. A montanha dos sete patamares, p. 379. 714 Id., O signo de Jonas, p. 209. 715 Id., Novas Sementes da Contemplação, p. 200. 716 Cf. Id., O signo de Jonas, p. 46.
175
diversos aspectos da vida monástica, de um modo novo e perfeitamente acessível
aos seus leitores, cada vez mais numerosos717
.
Dentre os últimos diários que escreveu em Gethsemani, dois foram
publicados: O signo de Jonas, que abrange os anos de 1942 a 1952, e Reflexões de
um espectador culpado, que vai de 1956 a 1965. No primeiro, Merton se detém
longamente naquilo que podemos chamar de “seu lugar na solidão”. Ele é escrito
justamente na época em que estuda a vida dos grandes contemplativos da Igreja,
como Santa Lutgarda de Aywères e São Bernado de Claraval, tendo escrito e
publicado suas biografias718
.
Ele, que sofrera tanto com a sua identidade de escritor e poeta, e que
desejava uma vida de contemplação precisou de muita fé e generosidade para ser
obediente. Não que lhe fosse difícil escrever, mas seu desejo era a solidão. Merton
foi aprendendo que
em todos os acontecimentos, meu único desejo e minha alegria devem ser: aqui está o que Deus quis para mim. Nisso é que encontro o seu amor, e aceitando o que
ele me envia é que posso dar-lhe de volta esse amor e a mim mesmo, inteiramente.
Pois ao dar-me a ele encontrá-lo-ei e ele é vida eterna719
.
Teve que romper os fortes muros de seu coração e cortar os nós de seu
egoísmo que o atavam; teve que atravessar a mera temporalidade e a
inautenticidade para empreender este caminho. O caminho de todo aquele que
quer ser monge é ser verdadeiramente humano. Ele chegou à conclusão de que
para pertencer a Deus deve pertencer a si mesmo e para isto tem que estar "só", ao
menos internamente. Não podia pertencer a nada senão a Deus, e se sentia livre.
Tenho que aprender a “largar-me” para poder me encontrar, entregando-me ao
amor de Deus. Se eu estivesse à procura de Deus, cada acontecimento e cada momento haveriam de plantar em minha vontade sementes de sua vida que um dia
dariam maravilhosa colheita720
.
O que acontecia sem saber era que precisava mais uma vez se colocar sob a
vontade de Deus e deixar-se conduzir por Ele, pois estava entrando em mais uma
nova etapa de sua vida que já havia sido iniciada quando quis ‘dar tudo a Deus’.
Segundo Merton, “em todas as situações da vida a “vontade de Deus” chega a nós,
717 Cf. MERTON, Thomas. O signo de Jonas, p. 46. 718 Cf. Ibid., p. 58. 719 Ibid., p. 26. 720 Id., Novas Sementes da Contemplação, p. 25.
176
não apenas como um ditame impessoal de uma lei externa, mas, sobretudo, como
um convite interior e pessoal de amor”721
.
Obteve do Abade a permissão para tratar, em seus livros e em vários artigos,
de assuntos mais candentes do mundo contemporâneo. Foi um formador de
opinião, não só escrevendo, mas também quando realizava conferências.
Denunciou como obscena e imoral a fabricação e o uso de armas atômicas e
inspirou os maiores grupos promotores da paz e da justiça. Para ele seria uma
blasfêmia falar sobre Deus e silenciar diante da guerra do Vietnã722
.
Foi um dos poucos padres que se manifestou contra a guerra. Quando
escreveu um artigo “Loucura da Guerra” 723
, causou grandes controvérsias no
ambiente católico, levando-o a fazer uma reflexão contra as estruturas da Igreja
que se revelavam através das Ordens Religiosas:
De certo modo penso que a posição da Ordem é de fato irrealista e absurda. Que
numa época como esta ninguém na Ordem deva parecer estar preocupado com as
realidades da situação mundial de um modo prático – que os monges em geral, inclusive os beneditinos que podem falar abertamente, estejam imersos em
questiúnculas de erudição sobre escritores e textos medievais de importância menor
até para eruditos, isso durante a maior crise moral da história humana: isso me soa
incompreensível724
.
Suas afirmações sobre quem é o monge e a vida monástica, a autêntica
solidão e contemplação, o que deve ser a "experiência interna" de um cristão, e
sua visão de mundo, explicam que tenha chegado a ser um dos autores mais
apreciados por fiéis cristãos de diferentes denominações e inclusive por inúmeros
seguidores de outras religiões.
Para Merton a relação com Deus acontece a partir da realidade humana. Seu
diálogo com outras religiões e principalmente com as místicas judaica, budista,
hinduísta e com o islã, realizando pontes entre elas, se dava, dentre outros
motivos, por entender que Deus nos fala através dos acontecimentos no mundo e
que os sinais de crise devem ser interpretados pelos homens de religião.
No começo dos anos sessenta, começa a trabalhar na tradução de textos do
místico e escritor taoísta chinês Chuang-tzu, que, com os maiores místicos
budistas, elegera a via da compaixão como a única e verdadeira senda pela qual
podemos nos entregar ao nosso próximo e dele receber uma contribuição positiva
721 MERTON, Thomas. Novas Sementes da Contemplação, p. 23. 722 Cf. HART, Patrick; MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, p. 214. 723 Cf. Ibid., p. 213. 724 Ibid., p. 214.
177
para o nosso crescimento interior725
. Os budistas chamam de Karuna a
compaixão, síntese de uma espécie de código moral que regula o relacionamento
entre as pessoas. Uma das consequências da iluminação (satóri) é desrepresar a
compaixão, deixando-se inundar por ela e fazendo-a inundar o mundo à volta de
quem atinge tal estado726
.
Fascinavam Merton no misticismo oriental os conceitos sobre a renúncia e
sobre a compaixão. Tinham sido esses "sinais" que o guiaram até Gethsemani e,
por conseguinte, à vida contemplativa. Ele vê que o Evangelho e Chuang-tzu
dizem a mesma coisa: a perda da vida é a única maneira de salvá-la e procurar
salvá-la por motivos pessoais significa perdê-la727
.
Sua abertura às correntes islâmicas, em especial o sufismo, pouco a pouco o
fez de tanto ler sobre o assunto, um especialista ocidental em zen-budismo. Sobre
o sufismo disse:
Não se pode questionar que se trata de uma verdade viva e convincente, uma profunda experiência do mistério de Deus nosso Criador, Quem nos observa em
todo momento com graça e amor infinitos. Estou comovido no mais profundo do
meu coração pela intensidade da piedade muçulmana, por Seus Nomes e a
reverência com que Ele é invocado como ‘o Compassivo e o Misericordioso’728.
E confessou a Abdul Asiz, especialista no sufismo:
Profunda simpatia pelo sufismo. É altamente prático, realista, profundamente
religioso e situado na correta perspectiva de relação direta com Deus. Nossa
conduta está baseada nesta relação com Ele, não em meros sistemas éticos e
ideais729
.
Seu desejo de unidade, embora se aproximasse das decisões tomadas pelo
Concílio Vaticano II, revela-se, porém, mais profundo que as regras de
atualização e reforma originárias de Roma. Para ele, “as diferenças doutrinárias
devem ser conservadas, mas elas não invalidam uma qualidade muito real de
semelhança existencial” 730
. As diferenças doutrinárias possibilitam as
semelhanças na esfera da experiência religiosa, em um diálogo que não significa
‘fusão nem confusão’, mas cooperação, no aprofundamento do próprio
compromisso de fé.
725 Cf. HART, Patrick; MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, p. 195. 726 Cf. MERTON, Thomas. A experiência interior, pp. 14-15. 727 Cf. Ibid., pp.17-18. 728 Id., Reflexiones sobre Oriente. Barcelona: Ediciones Oniro, 1997. pp. 84-85 729 Ibid., p. 85 730 Id., O diário da Ásia, p. 245.
178
A partir deste diálogo em profundidade com as tradições religiosas orientais,
se confirma em Merton ‘uma oportunidade maravilhosa’ de aprofundamento das
potencialidades e virtualidades existentes nestas tradições731
, possibilitando uma
ampliação de seus horizontes.
Desde a época em que conheceu o monge hindu Bramachari (1935), seu
interesse pelas religiões do oriente não parou de crescer. Hinduísmo, budismo
(tibetano principalmente), taoísmo e zen-budismo constituíram objeto de estudo,
interpretação e reflexão tão intensas, como o próprio cristianismo. A
correspondência com Daisetz T. Suzuki732
contribuiu para que ele se
familiarizasse cada vez mais com a vida dos grandes místicos e com o misticismo
oriental.
Em 1965, depois de dedicar-se a um árduo estudo de textos de Chuang-tzu,
Merton publica-os com o título de A via de Chuang Tzu733
, enriquecendo-os com
um primoroso prefácio, no qual diz entre outras coisas:
Uma vida contemplativa e interior que fizesse com que o indivíduo se conhecesse
mais a si mesmo e que lhe permitisse tornar-se obcecado pelo seu próprio progresso interior seria, para Chuang Tzu, uma ilusão não menos significativa do
que a da vida do homem 'benevolente' que tentasse, por seus próprios esforços,
impor a sua ideia de bem a todos os que pudessem se opor a essa ideia e assim, tornar-se-iam aos seus olhos, 'inimigos do bem'
734.
Torna-se colaborador assíduo de diversas publicações dedicadas à
divulgação do zen-budismo no ocidente. Muitos desses artigos foram publicados
no livro Místicos e mestres zen735
. Escritos com clara preocupação didática, numa
linguagem fluente e despojada, sintetizam a história do zen no oriente, bem como
sua propagação no ocidente.
Outro livro indispensável para se conhecer a orientalização do pensamento
de Merton é Zen e as aves de rapina736
, constituído por uma reunião de ensaios
publicados em revistas e prefácios a livros de outros autores. Nele, faz o elogio ao
zen e mostra que a experiência cristã, como a de Mestre Eckhart, muito se
731 Cf. MERTON, Thomas. O diário da Ásia, p. 267. 732 Daisetsu Teitaro Suzuki foi um famoso autor japonês de livros sobre o Budismo, o Zen e Jodo
Shinshua. Ele foi o responsável, em grande parte, pela introdução destas filosofias no ocidente.
Suzuki também foi um prolífico tradutor de literatura chinesa, japonesa e sânscrita. 733 MERTON, Thomas. Via de Chuang Tzu. Petrópolis: Vozes, 2003. Título original: The way of chuang Tzu. N. York: Straus Abbey of Gethsemani, 1965. 734 Ibid., p 45. 735 Id., Místicos e mestres Zen. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Título original: Mystics and Zen
masters. N. York: Straus Abbey of Gethsemani, 1967. 736 Id., Zen e as aves de rapina. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1970.Título original: Zen
and birds os appetite. N. York: Straus Abbey of Gethsemani, 1968.
179
aproxima dessa escola do budismo e conta como foi seu primeiro encontro com
Suzuki.
Toda a viagem de Merton à Ásia foi registrada em seu último diário Diário
da Ásia. Começa com uma anotação feita em 15 de outubro e termina com outra
lançada em 08 de dezembro, dois dias antes de sua morte. Coube a um amigo e
secretário de Merton, Irmão Patrick Hart, a missão de organizar o Diário e,
também em um post-scriptum, contar os tristes acontecimentos da volta de Merton
ao lugar que escolhera para sua morada737
.
Nos últimos anos de sua vida, trabalhou arduamente por abrir seu coração e
suas inquietudes a todos os horizontes da espiritualidade humana em suas distintas
manifestações religiosas. Isto não se tratou de uma mera curiosidade religiosa,
mas sim de ir além, na urgência em encontrar-se consigo mesmo e compartilhar
com os demais a unidade espiritual que emana de todos os homens.
Teve sempre muito clara a consciência de que, sem pessoas unificadas, não
haveria nem mundo, nem religião, nem unidade. A divisão interna que as pessoas
experimentam é um fato que podemos constatar em nosso próprio viver, e as
divisões religiosas, sociais e políticas constituem um dado estatístico inegável: por
um lado, guerras e violências; por outro, intentos de unidade e desejos de paz.
Segundo Merton, "se eu não tiver em mim unidade, como poderei pensar e
menos ainda falar em unidade entre cristãos? No entanto, é evidente: procurando a
unidade para todos os cristãos, encontro em mim, também, a unidade"738
.
Ele ainda destaca:
Só há uma fuga verdadeira do mundo; não se trata de fugir do conflito, da angústia e do sofrimento, mas sim de fugir da desunião e da separação, para dentro da união
e da paz pelo amor aos outros homens. [...] Pois fugir do mundo nada mais é do
que fugir à preocupação do nosso próprio eu. E quem se tranca a sós com seu
egoísmo se coloca numa posição em que o mal que nele existe dele se há de apoderar como um demônio ou então fá-lo-á perder a cabeça
739.
Não se pode negar em Merton uma subjetividade aberta, por ver o outro e
ser visto humanamente, falar ao outro e escutá-lo, em ajudar e por último em
assumir unicamente que somos humanos com os outros e junto a eles740
.
737 Cf. MERTON, Thomas. Diário da Ásia, p. XXV. 738 Id., Reflexões de um espectador culpado. Petrópolis, RJ: Vozes, 1970. p. 166. Título original:
Conjectures of a guilty bystander, publicado em 1966. 739 Id., Novas sementes da contemplação, p. 82. 740 Cf. GARCIA RUBIO, A. Unidade na pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão cristã.
São Paulo: Paulus, 2001. pp. 452-454.
180
Merton foi um monge, escritor e poeta que não apenas conseguiu traduzir
em linguagem moderna os temas fundamentais da vida monástica e da vida
espiritual cristã, como também soube integrar sua vida com o mundo através de
pessoas representativas no âmbito da arte, letras e da cultura em geral.
Em meio a uma vida cheia de desejo em corresponder à vontade de Deus,
Merton, vive uma forte paixão. A importância deste fato, que o mesmo ressalta
em seu diário, está em assumir seus próprios sentimentos.
1.5 Entre uma paixão e o mosteiro
Era março de 1966, quando teve de ser submetido a uma cirurgia, enquanto
estava em recuperação no hospital, conhece uma enfermeira que tinha sido
designada para ocupar-se de seus curativos. No seu diário escreveu: “Neste dia
me mandaram, como enfermeira, ainda estudante, para cuidar especialmente de
mim, mudar as compressas na minha coxa, ... em uma semana estávamos
apaixonados” 741
. Ele amou e permitiu-se ser profundamente amado pela
enfermeira Margie Smith.
Logo que saiu do hospital, escreveu um poema sobre o que estava vivendo.
Releu o que havia escrito sobre solidão em seu livro, liberdade e solidão,
reconheceu que o havia melhorado, por tudo de novo e surpreendente que estava
acontecendo, e neste momento percebeu que:
Nada conta a não ser o amor, e uma solidão que não seja simplesmente a total
abertura da liberdade e do amor não é nada. Amor e solidão é o solo da verdadeira
maturidade e liberdade. A solidão que é apenas solidão e nada mais (i.e., que exclui tudo que não é solidão) não tem valor. A verdadeira solidão abarca tudo, pois é a
plenitude do amor que não rejeita nada e ninguém, que se abre para Todos em
Tudo742
.
Merton pôde experimentar em sua liberdade o sentimento de amor por uma
mulher, arriscou-se amá-la sem medo! Em nenhum momento negou a si mesmo.
Estava nesta relação por inteiro e, por isso, pôde, com mesma liberdade com que
amou, dizer a si mesmo que não poderia viver sem o eremitério, sem ser fiel ao
voto de castidade e a tudo que prometera a Deus.
Em Merton percebemos que a mais repressiva ascese não consegue apagar
as poderosas correntes subterrâneas de nosso psiquismo. As paixões não
conhecem a linguagem da repressão, mas da integração.
741 HART, Patrick; MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, p. 351. 742 Ibid., p. 315.
181
Ele confessa em seu diário:
Não posso considerar isso como 'apenas um episódio'. É um fato entranhado em minha vida e que há de ter penetrado em meu coração a fundo para alterar e
transformar todo o meu clima de pensamento e experiência. Nela, como agora
percebo, encontrei alguma coisa, alguém, que eu andei procurando a vida inteira. Sei que ela também sente o mesmo a meu respeito. Não importa o que aconteceu,
creio que ambos sempre sentiremos que isso foi e é uma coisa muito profunda e
real para ser mudada na essência. O que encontramos um no outro não ficará
perdido: mas também não será verdadeiramente possuído743
.
Ele reconheceu que tudo o que vivia não era apenas desejo seu, mas que a
“solidão é a vontade de Deus pra mim – não é apenas que eu ‘obedeça’ às
autoridades e às leis da Igreja. É mais do que isso. É aqui que estão minhas raízes”
744.
E em junho do mesmo ano, não negando em nenhum momento para si
mesmo a experiência amorosa que viveu, ele rompe seu relacionamento voltando
ao primeiro amor, lembrando-se de seus votos de entrega incondicional a Deus.
Para Merton suas escolhas e decisões, bem como sua compreensão sobre as
experiências religiosas, são agora iluminadas por seu profundo desejo de
corresponder à vontade de Deus, que se refletia na sua constante busca de uma
melhor relação com o mundo, com as pessoas e com Deus. No que o constituía
um homem totalmente integrado consigo mesmo em todas as suas dimensões.
2. Cristão: "Filho de Deus" criado livre para o amor
A experiência religiosa vivida por Merton lhe dava a clareza sobre a
existência do ser humano. Para ele, o ser humano foi criado como “filho de Deus”,
porque sua vida, desde o princípio, compartilha o Espírito de Deus. Isto significa
que estava destinado a viver e respirar em harmonia com Deus, a ver as coisas
como ele as via, a amá-las como ele as amava. Assim, ele afirma: “Deus nos disse
não somente que somos chamados a ser seres humanos e a governar nossa terra,
mas que temos uma vocação mais elevada que essa: somos seus filhos” 745
.
743 HART, Patrick; MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, p. 336. 744 MERTON, Thomas. A montanha dos sete patamares, p. 348. 745 Cf. MERTON, Thomas. Humanismo cristiano. Cuestones disputadas. Barcelona: Editorial
Kairós, 2000. Cf. p, 44, Jo 10,35; Sl 81,6; Título original: Disputed questions. The Abbey of Our
Lady of Gethsemani, 1953.
182
O ser humano pode entrar no interior de seu ser e permanecer diante de
Deus, seu Pai. O auge da vida interior é a contemplação, que é a perfeição do
amor e do conhecimento de Deus.
Precisamos do dom de Deus pelo qual nos tornamos capazes de encontrar em nós
mesmos, não somente a nós mesmos, mas a Deus: então nossa nulidade se torna
Sua plenitude, o que não é possível sem a libertação efetuada pela comunhão e pela humildade. Para tanto, não exige talento, nem a mera intuição, mas
arrependimento, entregar-se em amor e confiança746
.
Deus criou o ser humano com uma natureza ordenada a uma vida
sobrenatural, e esta vocação de ser filhos de Deus significa que o ser humano deve
aprender a amar como Deus o ama, pois Deus é amor. “O amor é, pois, não só
nossa própria salvação e a chave do sentido de nossa existência, senão também a
chave do sentido de toda a criação de Deus”747
. Neste amor, o ser humano é
chamado a transformar e redimir o mundo e a edificar o Reino de Deus na terra.
A perfeita imagem de Deus, nosso "eu" mais profundo, quando desperta, encontra-
se na presença daquele de quem é imagem; e, por um paradoxo que ultrapassa toda expressão humana, Deus e a alma possuem um único "Eu". São (pela graça divina)
como uma só pessoa. Respiram, vivem e agem como um. "Nenhum" dos "dois" é
visto como um objeto748
.
Deus quis que o ser humano, seu filho, fosse verdadeiramente divino, para
que participasse de sua própria sabedoria, poder, justiça e realeza. E tudo isto
dependia de uma coisa: o amor, o único pelo qual a humanidade poderia participar
da vida de seu Pai749
, ou seja, “a maior dignidade do homem, sua faculdade mais
essencial e peculiar, o mais íntimo de sua humanidade, é sua capacidade de amar.
Esta faculdade da profundidade do ser humano, imprime nele a imagem e a
semelhança de Deus”750
.
Para Merton, o ser humano exercendo sua capacidade de amar torna-se
capaz de encontrar Deus nos outros seres humanos, de ver o que está por baixo da
superfície e pressentir a presença do eu interior e inocente, que é sua imagem de
Deus751
. Todavia, “quando procuramos afirmar nossa unidade negando haver
qualquer relação seja com quem for, rejeitando a todos no universo até chegarmos
746 MERTON, Thomas. A experiência interior, p. 76. 747 Id., Humanismo Cristiano, p. 45. 748 Ibid., p. 28. 749 Cf. Ibid., p. 47. 750 Ibid., p. 44. 751 Cf. Id., Op. cit., p. 78.
183
a nós mesmos, que resta para ser afirmado?”752
. O verdadeiro caminho é
justamente o oposto: "quanto mais sou capaz de afirmar os outros, dizer-lhes
“sim” em mim mesmo, descobrindo-os em mim mesmo e a mim mesmo neles,
tanto mais real eu sou. Sou plenamente real se meu coração diz sim a todos”753
.
No entanto, esse amor é o sentido da existência do ser humano, de sua
salvação e de toda a criação. O amor natural permite perpetuar a humanidade no
tempo, enquanto que a função do amor espiritual é de um alcance maior: dar à
pessoa a posse da eternidade, edificar o Reino de Deus, um reino espiritual de
unidade e de paz, que faz do ser humano o beneficiário da criação. “A realidade
do amor é julgada por sua capacidade de ajudar o ser humano a ir mais além de si
mesmo, para que se renove transcendendo suas limitações”754
. Portanto, o amor
verdadeiro leva o homem a sua máxima realização, que se alcança transcendendo
a si mesmo.
O amor, pois, é a ligação entre o ser humano e a realidade mais profunda de sua vida. Sem ele está isolado, alienado de si mesmo, alienado dos outros, separado de
Deus, da verdade, da sabedoria e da fortaleza. Pelo amor, homens e mulheres
entram em contato com sua essência mais profunda755
.
Ou seja, o amor verdadeiro é a morte e ressurreição em Cristo, que implica
que todos os membros se deem uns aos outros e à Igreja; que nos percamos na
vontade de Cristo e no bem aos outros, e morramos em nossos próprios interesses
para ressuscitar com outros Cristos756
. Em Cristo Deus se fez homem. Nele, Deus
e o homem não estão mais separados. O que é divino tornou-se conatural a nós no
amor de Cristo. Tornamo-nos filhos de Deus por adoção na medida em que nos
assemelhamos ao Cristo e somos irmãos seus757
.
No entanto, é o Espírito de Deus quem deve ensinar quem é Cristo ao ser
humano; ele é quem tem de formar Cristo nas pessoas e transformá-los em outros
Cristos. Ser Cristo significa penetrar na vida do Cristo total, o corpo Místico
formado da Cabeça e dos membros; Cristo e todos os que, pelo Espírito, estão
nele incorporados758
.
752 MERTON, Thomas. Reflexões de um espectador culpado, p. 166. 753 Ibid., p. 166. 754 Ibid., p. 45. 755 Ibid., p. 45. 756 Cf. Id., Humanismo cristiano, p. 46. 757 Cf. Id., Novas sementes de contemplação, p. 151. 758 Cf. Ibid., p. 157.
184
“O ser humano não pode viver sem amor”759
. Sem amor, o ser humano está
isolado, separado dos outros e de Deus, da verdadeira sabedoria e fortaleza,
enquanto que pelo amor o ser humano entra em contato com sua essência mais
profunda, com seu próprio eu, com seus irmãos, e com a sabedoria e o poder de
Deus760
. É o amor que se faz humano através de Deus, que leva o ser humano à
sua plenitude, tornando-o filho de Deus. O ser humano foi criado para viver em
sociedade, pois o amor dos outros dá vida, e amor ao próximo o leva a sua
realização; por meio dele, Deus estende seu amor sobre o mundo.
Para Merton,
todo verdadeiro amor está estreitamente associado com três atividades
fundamentalmente humanas: o trabalho criador, o sacrifício e a contemplação. Se
as três estão presentes, estamos diante de uma prova segura de vida espiritual, mesmo que de forma rudimentar. E a mais importante das três é o sacrifício
761.
Porém o amor tem que buscar a realidade, se não frustra a pessoa que se
ama em seu ser mais profundo. A realidade do amor está determinada pela relação
que estabelece entre as pessoas enquanto pessoas. Há que amar as pessoas não
como objetos, mas amá-las como a si mesmo762
.
É para isso que viemos ao mundo - para essa comunhão e essa transcendência de si.
Não nos tornamos plenamente humanos até nos darmos um ao outro no amor. E isso não deve se confinar apenas à realização sexual: abrange tudo na pessoa
humana - a capacidade de entrega de si, de partilha, de criatividade, de cuidado
mútuo, de preocupação especial763
.
No entanto, a subjetividade essencial para amar não diminui a realidade
objetiva, mas a incrementa. O amor compromete o ser humano diante da relação
com uma realidade objetivamente existente, porém precisamente por ser amor, é
capaz de salvar o abismo entre sujeito e objeto e entrar em comunhão com a
subjetividade do ser amado764
. “Só o amor pode realizar este tipo de união e
proporcionar esta forma de conhecimento por identidade com o ser amado”765
.
Para amar o próximo como pessoa há que começar por outorgar-lhe sua
própria autonomia e identidade, pois "a vida consiste em aprender a viver de
759 Cf. MERTON, Thomas. Humanisno cristiano, p. 50. 760 Cf. Ibid., p. 47. 761 Ibid., p. 46. 762 Cf. Ibid., p. 48. 763 Id., Amor e vida. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 28. Título original: Love and living.
New York, Farrar, Straus and Giroux, 1979. 764 Cf. Id., Humanisno cristiano, p. 48. 765 Ibid., p. 49
185
maneira autônoma, espontânea e livremente: para isso é preciso reconhecer-se a si
mesmo - estar familiarizado e à vontade consigo mesmo"766
.
Esta é também a base da relação filial com Deus: a relação sujeito-objeto
tem que estar completamente excluída. Só é possível conhecer a Deus quando o
ser humano o encontra, escondido pelo amor, dentro de si mesmo.
Paradoxalmente a isto, só o alcançará se sair para fora de si mesmo por meio do
sacrifício767
.
Nossa atitude em relação à vida também será, de um jeito ou de outro, uma atitude
em relação ao amor. Nossa concepção de nós mesmos será profundamente afetada
por nossa concepção - e nossa experiência - de amor. E nosso amor, ou nossa falta de amor, nossa disposição de correr o risco, ou nossa determinação de evitá-lo será,
no final, uma expressão de nós mesmos: de quem pensamos que somos, do que
queremos ser, do que pensamos sobre estar aqui768
.
Só a partir do amor, que esvazia a sua vontade, o ser humano é capaz de
encontrar a Cristo no lugar antes ocupado por sua individualidade. Isso ocorre
porque a realidade interior da história do ser humano é o ser humano, o ser
humano filho e imagem de Deus. Essa realidade não é apenas humana, mas
divina, pois Deus uniu o homem a si, em Cristo769
.
No amor experimentamos por assim dizer em nossos próprios corações o segredo
íntimo, pessoal do Amado. E Cristo nos deu sua amizade para que lhe fosse
possível dessa maneira penetrar em nossos corações e neles permanecer como em sua morada, como uma presença pessoal, não como um objeto, não como um "quê"
, mas como um "Quem". Assim, Aquele que é está sempre presente nas
profundezas de nosso ser como nosso Amigo e como outro eu. É esse o mistério do Verbo vivendo em nós em virtude de sua Encarnação, e de nossa incorporação em
seu corpo Místico, a Igreja770
.
Entretanto, o ser humano foi criado livre para eleger seu destino, porém só é
autenticamente livre quando ele realiza o bem por amor; como todo bem,
perfeição e felicidade se encontram na vontade de Deus, que é infinitamente boa.
A liberdade só pode acontecer a partir da união perfeita à vontade de Deus.
O mundo, portanto, é mais real na proporção em que as pessoas nele são capazes
de ser mais plenamente e mais humanamente vivas: isto é, mais capazes de fazer
uso consciente e lúcido de sua liberdade. Basicamente, essa liberdade deve consistir, antes de tudo, na capacidade de escolherem suas próprias vidas, de se
encontrarem no nível mais profundo possível771
.
766 MERTON, Thomas. Amor e vida, p. 3. 767 Cf. Id., Humanisno cristiano, pp. 49-50. 768 Id., Amor e vida, p. 29. 769 Id., A experiência Interior, p. 217. 770 Id., Sementes de contemplação, p. 154. 771 Id., Amor e vida, p. 4.
186
O livre arbítrio é a mera capacidade de eleger entre o bem e o mal. No
entanto,
a simples capacidade de escolha entre o bem e o mal é o nível mais baixo da
liberdade e o único elemento de liberdade que há nisso é o fato de podermos sempre escolher o bem. Na medida em que somos livres para escolher o mal,
deixamos de ser livres. Uma escolha má destrói a liberdade772
.
Logo, a perfeita liberdade é a incapacidade total de fazer uma má eleição.
Só a eleição que aspira ao bem e também a alcança, faz com que o ser humano
sinta-se feliz, por torná-lo livre.
Pois a liberdade não consiste em um equilíbrio entre boas e más ações,
senão em amar e aceitar perfeitamente o que é realmente bom e odiar e rejeitar o
que é mau, e quem rejeita todo mal porque é incapaz de desejá-lo, é livre. Toda
liberdade verdadeira é um dom sobrenatural de Deus, uma participação em sua
liberdade, pelo amor que infunde em nossas almas que nos une a ele, primeiro em
um consentimento perfeito e depois em uma união transformadora de vontades773
.
A liberdade é um dom dado por Deus, um instrumento com o qual o ser
humano constrói sua vida e sua felicidade. É o elemento mais precioso do seu ser;
se renunciar a ela renunciará a Deus. A liberdade torna o ser humano a imagem de
Deus.
Na ordem espiritual, é escravo o ser humano cujas eleições têm destruído
toda espontaneidade e o tem entregado às suas compulsões e ilusões. Não pode
defender-se de si mesmo até que não tome decisões espirituais. Para isto, tem que
resistir à cega compulsão da paixão. “A mais simples definição da liberdade,
portanto, é a seguinte: a aptidão para fazer a vontade de Deus. Ser capaz de resistir
à vontade divina é não ser livre”774
. Se vamos viver como homens livres na ordem
sobrenatural, temos que assumir opções livres sobrenaturais, e isto é obedecer a
Deus por amor.
Não se trata de submeter a vontade do ser humano à autoridade de Deus; é a
livre união de sua vontade com a vontade de Deus por amor, é a livre opção que
os torna filhos de Deus. Não podem fazer-se filhos de Deus por uma obediência
que só seja uma renúncia cega a sua autonomia; a liberdade espiritual consagra
nossa autonomia a Cristo, e em Cristo ao Pai.
772 MERTON, Thomas. Novas sementes de contemplação, p. 197. 773 Cf. Ibid., p.198. 774 Ibid., p. 198.
187
A liberdade é uma coisa espiritual, uma realidade sagrada e religiosa, cujas raízes
estão em Deus e não no homem, pois a liberdade do homem, que faz deste uma
imagem de Deus, é uma participação na liberdade de Deus. O homem é livre na
medida em que é semelhante a Deus775
.
O temperamento não predestina uma pessoa à santidade ou à reprovação.
Todos os temperamentos podem servir para a salvação ou para a ruína. O
temperamento é um dom de Deus, um talento com o qual temos que viver, não
importa o difícil ou problemático que seja.
Se desejar o que é mau, seu gênio tornar-se-á uma arma malfazeja dirigida contra os outros, até contra sua própria alma. Deseja-se o que é bom, pode seu gênio
tornar-se um instrumento controlador, destinado a combater o mal que nele existe,
e a auxiliar os outros a vencer os obstáculos que encontram no mundo. Permanece,
portanto, livre podendo desejar o bem ou o mal776
.
Podemos perceber que a liberdade humana não atua em um vazio moral,
porém a coerção de fora, as fortes inclinações temperamentais e as paixões dentro
do ser humano, em nada afetam a essência de sua liberdade, simplesmente
definem sua ação impondo certos limites, e isto revela um caráter peculiar que lhe
é próprio.
Todavia, o ser humano ainda é um intermediário entre Deus e a criação, um
sacerdote que oferece a Deus todas as coisas sem destruí-la nem danificá-las,
chamado a cuidar e trabalhar no jardim do Éden e a contribuir por meio de seu
trabalho na criação de Deus, no mundo777
.
O mundo foi criado como um templo, um paraíso, ao qual o próprio Deus haveria
de descer e conviver familiarmente com os espíritos por ele ali colocados para cuidar desse jardim. Deus criou o homem e confiou-lhe a tarefa de partilhar com
ele do cuidado das coisas criadas. Criou o homem à sua imagem e semelhança,
como um artista, um trabalhador, homo faber, como o jardineiro do paraíso. Deixou ao homem a liberdade de decidir ele próprio de que maneira haveria de
interpretar as coisas criadas como compreendê-las e utilizá-las778
.
Para o cristianismo o ser humano assume, então, uma parceria com o
Criador, ele é seu intermediário. Sobre as verdades do catolicismo, afirma Merton:
“Serei melhor católico, se puder afirmar a verdade que existe no catolicismo e ir
ainda além, e não se refutar todos os matizes que existem no protestantismo”779
. E
indo além, em direção a outras religiões, ele continua:
775 MERTON, Thomas. Experiência interior, p. 221. 776 Id., Liberdade e solidão, p. 21. 777 Cf. Id., Novas sementes de contemplação, p. 286. 778 Ibid., p. 284. 779 Id., Reflexões de Espectador culpado, p. 166
188
Assim também em relação aos muçulmanos, os hindus, os budistas, etc. Isso não
significa sincretismo, indiferentismo, camaradagem vazia e despreocupada que
tudo aceita sem sobre nada refletir. Há muita coisa que não se pode "afirmar" e
"aceitar". No entanto, é preciso, em primeiro lugar, dizer, "sim" quando realmente isso é possível
780.
E para finalizar, como imagem e semelhança de Deus, seu filho, diz Merton:
Se eu me afirmo como católico simplesmente negando tudo que é muçulmano, judeu, protestante, hindu, budista, etc., no fim descobrirei que, em mim, não resta
muita coisa com que possa afirmar-me como católico: e certamente nenhum sopro
do Espírito com o qual possa afirmá-lo781
.
Ou seja, o ser humano procura a unidade porque ele é a imagem do Deus
Uno. "Viver em comunhão, em autêntico diálogo com outros, é absolutamente
necessário para que o ser humano permaneça humano"782
.
Quem está obcecado com sua unidade interior não é capaz de perceber sua
desunião com Deus e com o próximo. Ao passo que, em união com os demais é
possível estabelecer de modo fácil e natural nossa unidade interior. Preocupar-se
por mudar primeiro sua unidade interior, e não amar os demais é seguir uma
lógica de ruptura que é contrária à vida783
.
2.1 Meu lugar no mundo: solidão e compaixão
Antes de entrar no mosteiro, Merton se perguntava qual era o seu lugar no
mundo.784
No mosteiro, encontra como resposta a solidão. No entanto, agora outra
pergunta é feita: Qual é o meu lugar na solidão? A resposta a esta pergunta é
buscada, de maneira sofrida, durante seus primeiros anos no mosteiro. Merton
demora a encontrá-la, como podemos ler em um relato despojado de suas crises
naquele período.
Hoje creio ter a certeza de que a solidão é na verdade o que Deus deseja para mim,
e que é realmente Deus quem está me chamando para o deserto. Mas tal deserto
não é necessariamente, um deserto geográfico. É uma solidão de coração na qual as alegrias criadas são destruídas e voltam a nascer em Deus
785.
A sua vida começou a tomar um novo rumo, logo dois anos depois de sua
ordenação, quando assume a formação de noviços e se dedica à felicidade destes
780 MERTON, Thomas. Reflexões de Espectador culpado, p. 166. 781 Ibid. 782 Id., Liberdade e solidão, p. 62. 783 Id., Novas sementes de contemplação, p. 195. 784 Id., Signo de Jonas, p. 364. 785 Ibid., p. 64.
189
jovens786
. Foram anos fecundos. Nascia a sua compaixão pelo ser humano e o
desejo de partilhar com o mundo tudo que recebia de Deus. “Morro de amor por
ti, compaixão, tomo-te como mulher, igual a Francisco que se casou com a
pobreza, caso contigo, rainha dos ermitões e mãe dos pobres”787
.
Quando analisou sua vida, compreendeu que a autêntica solidão não é estar
isolado, senão que em sua solidão conhecia mais a seus alunos e estava mais
unido a eles. Ele aprendera que
quando Deus chama alguém para a solidão, qualquer coisa que toque contribuirá
para aumentar sua solidão. Tudo que afeta a pessoa serve para construir uma
ermida em torno dessa pessoa até o ponto em que ela não insista em querer fazer seu próprio trabalho, em construir sua própria espécie de ermida
788.
É interessante lembrar que o estado de solidão “evolui” continuamente na
vida de Merton, desde o simples estar só dos outros até o estar só da própria
solidão, este último dentro dos ensinamentos zen-budistas, dos quais ele foi um
fervoroso admirador. Ele descobriu que o seu deserto chamava-se compaixão.
Segundo ele "não há solidão tão terrível e tão bela, tão árida e tão frutífera como o
ermo da compaixão. É o único deserto que realmente florescerá como o lírio"789
.
Merton tem uma nova experiência de conversão. Uma conversão do
mosteiro ao mundo790
. Ele percebeu, depois de viver 17 anos como monge, que
não existe oposição entre o sagrado e o profano, natural e sobrenatural. A sua
experiência de "conversão à compaixão" trata-se de uma epifania, uma revelação
e uma profecia sobre sua própria vida e sobre a realidade do ser humano no
mundo, que aconteceu na cidade de Louisville, Kentucky. Na esquina das ruas
Fourth com Walnut, no movimentado centro comercial, ele nos conta que:
“aconteceu, como se eu visse a secreta beleza de seus corações, a profundeza de
seus corações onde nem o pecado, nem o desejo, nem o autoconhecimento podem
penetrar. Isto é, o cerne da realidade de cada um, da pessoa de cada um aos olhos
de Deus”791
.
Merton usa a expressão le point-vierge para falar sobre essa experiência.
Segundo ele, no cerne da realidade de cada pessoa, no centro do ser humano,
existe um ponto, intocado pelo pecado e pela ilusão, lugar da “pura glória de Deus
786 Cf. MERTON, Thomas. Signo de Jonas, p. 35 787 Ibid., p. 377. 788 Ibid., p. 376. 789 Ibid., pp. 376-377. 790 Id., Reflexões de um espectador culpado, p.181. 791 Ibid., p.183.
190
em nós”.
Essa experiência retira o véu da ilusão que ainda poderia estar em Merton.
Ele toma consciência da necessidade de abrir-se a algo novo e importante: ver e
amar a Deus no mundo inteiro, em toda sociedade792
. Libertando-se de uma
diferença ilusória, alegra-se por pertencer à raça humana, em ser homem como os
outros homens. Mergulhado nessa experiência ele declara:
Sinto uma imensa alegria em ser homem, membro de uma raça na qual o próprio
Deus se encarnou. Como se as dores e a estupidez da condição humana pudessem submergir-me, agora que tenho consciência daquilo que todos nós somos. E se ao
menos todos pudessem ter disso consciência! Porém não pode ser explicado. Não
há nenhum meio de dizer às pessoas que elas estão todas brilhando como sóis793
.
No entanto, esta descoberta não foi repentina, estava presente como algo
conatural. No seu diário O Signo de Jonas, escrito dez anos antes dessa
experiência ele diz:
De fato eu vim ao mosteiro para descobrir o lugar que me corresponde no mundo e, se não consigo encontrar este meu posto no mundo, estarei perdendo o tempo
aqui.[...] A vinda ao mosteiro representou para mim o isolamento verdadeiro. Deu-
me perspectiva. Ensinou-me a viver. E agora devo a todos os demais habitantes do mundo viver esta vida. Meu primeiro dever consiste em iniciar pela primeira vez
uma vida como membro da raça humana, que não é mais (nem menos) ridícula que
eu mesmo. E meu primeiro ato humano há de ser reconhecer o muito que devo aos
demais (03 de março de 1951)794
.
Esta experiência em Louisville marcou a passagem entre seus primeiros
livros e sua vida monástica silenciosa, a um intenso contato com o mundo nos
seus últimos anos de vida.
Merton se via atraído à solidão e também ao compromisso com as pessoas
fora do mosteiro. Sua experiência não lhe sugeria abandonar sua vida monástica,
senão que a solidão verdadeira é talvez não presença e assistência, não
participação e compromisso, encobrimento e hospitalidade, desaparecimento e
chegada. Então começou a criar novos caminhos de contato e diálogo com pessoas
fora do mosteiro.
A pedido seu, foi autorizado, antecipando o movimento ecumênico do Papa
João XXIII, a manter durante cinco anos encontros quinzenais com pastores e
estudantes protestantes e também com estudiosos judeus795
. Foi o precursor do
792 BERTELLI, Getúlio Antônio. Mística e compaixão: a teologia do seguimento de Jesus em
Thomas Merton. São Paulo: Paulinas, 2008. p. 46. 793 MERTON, Thomas. Reflexões de espectador culpado, p. 182. 794 Id., O Signo de Jonas, p. 282. 795 SOUZA, Maria Emmanuel e Silva. Thomas Merton: um homem feliz, p. 36-37.
191
ecumenismo e do macroecumenismo. E de coisas que o Concílio Vaticano II iria
explicitar.
Todas as suas atividades já estavam dificultando seu cotidiano no mosteiro.
Sempre motivado pelo desejo de silêncio e solidão, em 1965, teve do Abade e do
Capitulo Geral da Ordem a licença para ter uma vida de eremita. Passa a morar
perto do mosteiro onde todos os dias vai celebrar a missa. Tem uma vida simples
e austera796
.
O eremitério foi, para Merton, mais um lugar para que pudesse melhor
conhecer-se e assumir-se com plena consciência. Segundo ele,
a vida solitária, agora eu me confronto com ela, é assustadora, assombrosa, e constato não dispor de resistências em mim para enfrentá-la. Profunda impressão
de minha própria pobreza e, acima de tudo, consciência dos erros que permite em
mim mesmo, junto com esse desejo positivo. Tudo isso é bom797
.
O eremitério oferece, então, ao monge, algo de que uma pessoa madura
necessita: a oportunidade de explorar um terreno desconhecido para descobri a si
mesmo.
o segredo da minha identidade plena está escondido Nele. Só Ele pode tornar-me
quem sou, ou melhor, quem serei quando, por fim, começar a ser plenamente. Mas essa obra jamais será realizada se eu não desejar essa identidade e trabalhar para
encontrá-la com Ele e Nele798
.
Passava seu dia meditando, escrevendo, trabalhando no jardim e lendo
correspondências que recebia do mundo inteiro. E foi do eremitério, do seu
silêncio que ele manteve com o mundo uma frutuosa relação. Estava atento a tudo
que acontecia. Sua contemplação e ação são inspiradas no relato bíblico sobre
Marta e Maria e no lema beneditino ora et labora, por meio do qual
compartilhava com o mundo os seus frutos.
Nenhum dos grandes problemas do mundo deixou de ser abordado por
Merton. Ele viveu o grande paradoxo. Liberto do mundo, ele volta a ser seu
prisioneiro, no exercício supremo de uma liberdade duramente conquistada. Ele
escreve contra as guerras, contra as ditaduras da América Latina e chama a
atenção do mundo para as miseráveis condições de vida dos pobres dos países
796 Cf. HART, Patrick; MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, p. 293. 797 Ibid., p. 290. 798MERTON, Thomas. Novas sementes de contemplação, p. 40.
192
subdesenvolvidos799
. Em seu eremitério, sua vida contemplativa é mais atuante do
que nunca.
O paradoxo vivido por Merton, durante o período no eremitério foi que por
um lado era plenamente consciente do valor da solidão para seu crescimento
espiritual, mas, por outro, sentia a necessidade de comunicar-se com as outras
pessoas. Na medida em que crescia sua experiência de Deus, sentia uma maior
responsabilidade pelo bem do outro e de toda a sociedade.
Escrever era a maneira que tinha para poder se comunicar. Foi uma
verdadeira missão e vocação que cresceram de sua experiência de Deus. O que o
ajudou muito nesta relação com a sociedade foi seu temperamento aberto às novas
experiências, sempre atento ao mundo, pois reconhecia ser dom de Deus800.
2.2 "O eu interior: nossa realidade substancial"
Diante do contexto de sociedade vivido por Merton, ele ressalta que um dos
problemas em que vive o ser humano é que ele não está unificado, vive dividido
entre numerosos compartimentos distintos, pensamentos, desejos, vontades. Ele
diz que antes de se pensar em contemplação "a primeira coisa que se deve fazer é
tentar recuperar sua unidade natural fundamental, reintegrar seu ser fragmentado
com um todo simples e aprender a viver como uma pessoa humana unificada"801
.
Para que, reunindo os fragmentos de sua existência possa, quando disser “eu”,
existir alguém perfeitamente definido que responda a esse pronome pessoal.
Encontra-se no ser humano dois “eus” distintos: o “eu exterior”, que
manipula os objetos para possuir os outros, a Deus e a si mesmo; e o "eu interior",
que é uma espontaneidade livre que não se pode enganar, nem manipular, que só
aparece quando o homem se encontra com calma e em silêncio. “O eu interior não
pode ser seduzido por nada nem ninguém, pois responde somente à atração
divina”802
.
Merton, então define o que é o “eu interior”:
O eu interior não é parte de nosso ser, é nossa própria realidade substancial em sua
totalidade e em seu nível mais pessoal e existencial. É como nossa vida e, de fato, é
799 Cf. HART, Patrick; MONTALDO, Jonathan. Op. cit., p. 246. 800 MERTON, Thomas. Na liberdade da solidão. Petrópolis. Rio de Janeiro: Vozes, 2001. p. 20.
Título original: Thoughts in solitude, publicado em 1958. 801 Ibid., p. 7. 802 Ibid., p. 9.
193
vida: é nossa vida espiritual em seu máximo, a vida pela qual tudo mais em nós é
vivo e se move803
.
Está claro que o “eu interior” não é algo que devemos temer, é algo que
somos, é uma qualidade indefinível do nosso ser, é tão secreto quanto Deus e,
como Ele, escapa a todo conceito que pretenda captá-lo completa e totalmente.
Em cada experiência espiritual, seja religiosa, moral ou artística, existe a
presença do eu interior, para que se possa alcançar certa profundidade. É somente
do eu interior que qualquer experiência espiritual pode adquirir profundidade,
realidade e uma certa incomunicabilidade.
Tudo que podemos fazer, por meio de qualquer disciplina espiritual, é produzir em
nós mesmos algo do silêncio, da humildade, do desapego, da pureza de coração e
impassibilidade, que são elementos necessários para que o eu interior nos dê uma tímida e imprevisível manifestação de sua presença
804.
O “eu interior” é uma fonte de conhecimento de Deus. O ser humano é
imagem de Deus e em seu eu mais interior, como em um espelho, Deus se reflete
a si mesmo. Se o ser humano entra no mais profundo de si, primeiro se encontra
com seu próprio eu. Quando transcende esse eu, seu verdadeiro eu se encontra
com o “eu sou” do Onipotente. O conhecimento de Deus provém dessa
experiência. É uma participação sobrenatural em que Deus se revela a si mesmo.
Só quando o eu interior desperta, o ser humano torna-se consciente da presença de
Deus dentro dele805
.
Faz-se necessário para a experiência cristã não apenas uma consciência do
eu interior, mas também, pela intensificação sobrenatural da fé, uma apreensão
exterior de Deus, na medida em que Ele se faz presente em nosso eu interior.
Ainda segundo a tradição cristã não é possível encontrar o centro interior e lá
conhecer a Deus enquanto se está envolvido com as preocupações e desejos do eu
exterior.
É indispensável, para penetrar nas profundezas do ser, a libertação das
influências do “eu exterior”, de seus impulsos inconscientes das paixões
desordenadas. “A liberdade para adentrar o santuário interior de nosso ser é
negada àqueles que se detêm pela dependência de autogratificação e satisfação
dos sentidos”806
.
803 MERTON, Thomas. A experiência interior p. 12. 804 Ibid., p. 12. 805 Cf. Ibid., pp. 19-20. 806 Ibid., p. 24
194
Merton cita São João da Cruz, que inclui na "fé" a liberdade para entrar no
templo interior. De acordo com São João da Cruz, a fé é a "noite escura" em que
encontramos Deus, servindo como meio para a divina união nesta e na outra vida,
e como intermediário para o conhecimento de Deus. Indo além da concordância às
verdades dogmáticas oriundas da autoridade da revelação divina, a fé é uma
aceitação direta e pessoal de Deus807
.
No final desta jornada de fé e amor, que nos conduz às profundezas de nosso
próprio ser e nos libera para que possamos ir além de nós mesmos em direção a Deus, a vida mística culmina em uma experiência de Deus que transcende toda
descrição e somente é possível porque a alma foi completamente "transformada em
Deus", de modo que se torne, por assim dizer, "um só espírito" com Ele808
.
É importante para Merton reafirmar que a identidade interior não é
recuperada simplesmente por meio do isolamento e da introversão. Embora sejam
necessários esses elementos que possibilitarão as condições para o despertar do
que é mais interior no ser humano, o eu interior não é um mero vazio ou
inconsciência. Tampouco chega o homem ao seu eu interior pela autoafirmação
pessoal. Nada pode levá-lo a uma autorrealização pessoal se não é consciente de
pertencer a uma coletividade, se não tem consciência de ser um "eu" enfrentando
um “tu”, que complete e preenche seu próprio ser809
.
Ou seja,
o cristão não está simplesmente "só com o Só", no sentido neoplatônico, mas é Um
com todos seus "irmãos em Cristo". Seu eu interior é inseparável de Cristo, sendo,
portanto, de um modo misterioso e único, inseparável de todos outros “Eus” que vivem em Cristo, de tal forma que todos eles juntos formam uma só “Pessoa
Mística”, que é Cristo810
.
O cristão não está só com Deus, senão que é “um” com todos os cristãos em
Cristo. Seu eu interior é inseparável de Cristo. Paradoxalmente, o eu interior, o
santuário da solidão mais pessoal e individual do ser humano, é o que está mais
unido ao "tu" que o ser humano enfrenta, e ao que é mais capaz de compreender
desde seu próprio conhecimento, pelo amor no Espírito811
.
O eu mais profundo, Cristo morando em nós, não pode existir se não existir
o “outro” a quem amar. O eu mais profundo não só ama a Deus, mas também aos
irmãos, no amor guiado pelo Espírito de Cristo, que busca mais o interesse da
807 Cf. MERTON, Thomas. A experiência interior, p. 25. 808 Ibid., p. 27. 809 Cf. Ibid., pp. 30 e 33. 810 Ibid., p. 33. 811 Cf. Ibid., p. 34.
195
comunidade do que o interesse da pessoa ou seus prazeres transitórios. A
contemplação consegue o despertar de Cristo no ser humano, e instaura o Reino
de Deus em seu eu mais íntimo; isto é o despertar do eu interior812
.
Previne Merton sobre o que chama de o “eu exterior profundo”, os níveis
mais profundos do “eu” exterior atado ao mundo exterior, que não tem nada a ver
com o homem interior, em total liberdade espiritual.
Em vez de mergulharmos nas profundezas de nossa verdadeira liberdade e
espiritualidade, simplesmente nos recolhemos aos níveis subterrâneos mais obscuros do eu exterior, o qual permanece alienado e submetido aos poderes
pertencentes à ordem exterior813
.
Também nos previne da barbárie moderna que reduz o indivíduo, em nome
da modernidade e da tecnologia, a um sujeito totalmente alienado, que pode
chegar a um estado de êxtase político arrastado pelo ódio, o medo e as cruas
aspirações políticas, ou pelas falsas religiões. Fatos que podem ser constatados nas
pseudorreligiões, considerados por ele como um dos “traços mais perigosos do
nosso barbarismo moderno: a invasão da sociedade por uma barbárie que vem de
dentro da sociedade e de dentro do próprio homem”814
.
Ainda sobre as religiões: todas as suas formas sérias e espirituais aspiram a
um despertar contemplativo de seus membros. O simbolismo é importante para
despertar o eu interior, o culto tem que estabelecer uma conexão entre o rito
exterior e o eu interior das pessoas. Porém, hoje parece que os ritos têm perdido
sua força, e só são capazes de despertar as emoções inconscientes do eu exterior.
As formas de religião e adoração litúrgica que perderam o impulso inicial do fervor
tendem a esquecer cada vez mais seu propósito contemplativo, passando a dar
importância exclusiva aos ritos e às formas cerimoniais por si mesmos ou pelo efeito que se espera que causem no Ser adorado
815.
Essa forma de religião e seus ritos já tinham sido denunciados pelos profetas
do Antigo Testamento, e por Jesus contra os fariseus. Para a revivificação do
fervor religioso, deve-se cuidar para que seja restaurada a orientação
profundamente interior da atividade religiosa, almejando a renovação e a
purificação da vida interior suscitada pelos ritos simbólicos, mistérios e preces.
812 Cf. MERTON, Thomas. A experiência interior, p. 36. 813 Ibid., p. 37 e 39, 814 Ibid., p. 39. 815 Ibid., p. 38
196
Ou seja, “é uma questão de livrar-se do formalismo mecânico e compulsivo
e de acordar o fervor interior e espontâneo do ‘coração’”816
.
Não é possível deixar de perceber que, diante da clareza sobre a sua
experiência na busca por encontrar o seu “eu interior”, Merton tenha se colocado
em algum momento distante da tradição cristã, pois, mais uma vez, ele retoma
destacando que a contemplação
é a afirmação mais criativa e dinâmica de sua filiação divina. É a confrontação do
homem com Deus, do Filho com seu Pai. É o despertar do Cristo dentro de nós, o estabelecimento do Reino de Deus em nossa própria alma, o triunfo da Verdade e
da Divina Liberdade no “Eu” mais profundo, no qual o Pai é um com o Filho na
unidade do Espírito que é dado ao crente817
.
Se o cristão não está unificado não poderá falar de unidade entre os cristãos
e entre todos os homens. Unidade que não consiste em refutar todos os matizes
do protestantismo ou das outras religiões, senão em afirmar a verdade que existe
nelas e seguir adiante818
.
2.3 "Para um contemplativo toda a vida é contemplação"
Merton, marcado pela sociedade do seu tempo, afirma que o ser humano
vive uma ilusão de onipotência, uma ilusão que a coletividade se apressa em
compartilhar, um sistema que provoca o ser humano a desejar o que a sociedade
impõe. No entanto, a verdadeira necessidade é “termos que estar só, e sermos nós
mesmos, e recordar aos outros a verdade que existe neles”819
.
O reconhecimento do valor da vida contemplativa para o ser humano
moderno tem sua importância no que diz respeito ao seu ideal mais valioso, que
segundo Merton, parte da necessidade que o mesmo tem de encontrar sua
emancipação e liberdade. Para ele,
Hoje, mais do que nunca, o homem busca sua emancipação e liberdade.[…] Porém
a liberdade é algo espiritual. É uma realidade sagrada e religiosa. Suas raízes não se
fundam no homem, senão em Deus. Porque a liberdade do homem, que o torna imagem de Deus, é uma participação na liberdade de Deus. O homem é livre à
medida que se assemelha a Deus. Sua luta pela liberdade implica, pois, em uma
luta por renunciar uma autonomia falsa e enganosa, a fim de fazer-se livre para
816 MERTON, Thomas. A experiência interior, p. 41. Em geral, o coração é usado como um
símbolo mais ou menos adequado do eu interior, embora o Antigo Testamento se utilize de outros
órgãos físicos com a mesma finalidade, como as vísceras e os rins. 817 Ibid., p. 50 818 Cf. Id., Reflexões de um espectador culpado, p. 166. 819 Id., Incursiones en lo Indecible, Sal da Terrae: Santander, 2004. pp. 25 e 31.
197
além e de si mesmo820
.
Ou seja, para que o ser humano seja livre, deve estar livre de si mesmo.
Quem é escravo dos seus próprios desejos, necessariamente, explora o seu
próximo, a fim de render tributos ao tirano que habita em seu interior, por ser
escravo dos seus desejos. O ser humano deve aprender a encontrar o caminho para
a liberdade em seu interior821
.
O percurso desenvolvido por Merton para encontrar esse caminho segue em
direção à busca do silêncio, chegando à contemplação. E foi durante muito tempo
de sua vida adulta, procurando viver esse silêncio, que ele desejou entender o que
significava contemplação. Um dos seus primeiros livros teve como título: O que é
contemplação?822
. Onze anos depois, ainda se sentido incomodado com essa
questão, reescreve esse livro, agora como um novo título: A experiência interior.
Em sua revisão deixa claro o que, para ele, depois de uma década, significava
contemplação. “Como eu estava enganado ao fazer da contemplação uma simples
parte da vida humana. Para um contemplativo, toda sua vida é contemplação”823
.
A contemplação não é um mero compartimento da existência, mas sim a via
por excelência para que a pessoa possa integrar os diversos aspectos de sua vida
de modo que faça desta um todo coerente.
A clareza que Merton tem sobre a contemplação definirá sua experiência
interior. Esta reedição apresenta, segundo o autor, “uma visão mais ampla e mais
profunda sobre a mesma coisa, a contemplação, com mais referências às ideias
orientais. Para mim, isso é tudo que importa, mas todas as coisas aí estão
contidas”824
. Ele denuncia o perigo de viver dividido, em compartimentos
diferentes. E acredita que “as tradições orientais têm a vantagem de dispor o
homem mais naturalmente para a contemplação”825
.
Para Merton o que pode escravizar o “eu” são o autoengano e o apego
apaixonado pelas coisas. Em vários dos seus escritos falou sobre esse tema. Ele
820 MERTON, Thomas. La experiencia interna. Notas sobre la contemplación, em Cistercium 212 (1998), p. 97. 821 Cf. Ibid., p. 970. 822 Cf. Ibid., p. VII. 823 Ibid., p. 223. 824 Ibid., p. X 825 Ibid., p. 7.
198
afirma que, “para experimentar a si mesmo, não tem que suprimir a consciência de
sua contingência, sua irrealidade, sua situação de carência radical”826
.
Existe uma sutil, porém inevitável conexão entre a atitude “sagrada” e a
aceitação de nosso eu mais íntimo. O movimento de reconhecimento que aceita
nosso próprio eu obscuro e desconhecido, produz a sensação de uma presença
“numinosa” em nosso interior. Este temor sagrado é a verdadeira expressão de
uma libertação de energia espiritual que é o melhor testemunho de nossa união e
reconciliação interna com o mais profundo de nosso ser, através do eu interno,
com o poder transcendente e invisível de Deus. Isto supõe humildade ou a plena
aceitação de tudo que tendíamos a rejeitar e ignorar em nós mesmos827
.
A necessidade de reintegrar o eu interior, realidade substancial em sua
totalidade do ser humano, em seu nível mais pessoal e existencial, consiste em
reconhecer que o verdadeiro “eu” é simplesmente o que realmente somos e nada
mais. Para usar termos cristãos, é o nosso eu tal como é visto por Deus, é o eu em
toda a sua unicidade, dignidade, simplicidade e inefável grandeza: a grandeza que
recebemos de Deus nosso Pai, que temos em comum com Ele justamente porque
Ele é nosso Pai, e “nele vivemos, nos movemos e existimos” (Atos 17,28)828
.
Segundo a tradição da mística cristã, para encontrar o próprio centro interior
e lá conhecer a Deus, faz-se necessário afastar-se das preocupações e desejos do
eu exterior. Sendo nosso "eu" mais profundo a perfeita imagem de Deus, quando
desperta, encontra-se na presença daquele de quem é imagem. Para despertar o eu
interior, é preciso aprender o quão inteiramente novo é o relacionamento e como
ele nos dá uma visão completamente diferente das coisas829
.
A descoberta do eu interior, como vimos, é bastante familiar na mística
cristã. Merton lembra, no entanto, que no zen parece não haver esforços para ir
além do eu interior, enquanto no cristianismo, o eu interior é apenas um degrau
para alcançar a consciência de Deus. “O homem é a imagem de Deus e o eu
interior é uma espécie de espelho no qual se vê refletido e ao qual se revela”830
.
Ou seja, nosso interior comunica-se diretamente com o ser de Deus, que está em
nós.
826 MERTON, Thomas. Incursiones en lo Indecible, pp. 25 e 31. 827 Cf. Id., A experiência interior, p.75. 828 Cf. Id., p. 19. 829 Cf. Ibid., pp. 24-30. 830 Cf. Ibid., p. 19.
199
As especulações de Santo Agostinho revelam um clima experiencial
bastante diferente do que foi apresentado no zen. É difícil encaixar nessa
experiência o "eu" mais profundo apresentado por Santo Agostinho.
Há sempre a possibilidade de um oriental, ao descrever o “Eu”, estar descrevendo o
que o místico ocidental descreve como Deus, pois a união mística da alma com
Deus os torna (ainda que metafisicamente distintos) "indivisos" na experiência espiritual. E o fato de o místico oriental, não condicionado por séculos de debates
teológicos, não estar inclinado a refletir analiticamente em sutilezas de distinção
metafísica, não significa necessariamente ele não tenha experimentado a presença de Deus ao falar do seu conhecimento do Eu mais Profundo
831.
Na experiência de contemplação que pode viver, o cristão descobre que não
existe uma “coisa” nem um “quê”, mas um puro “QUEM”, Deus. Ele é o “TU”
diante do qual o mais íntimo de nosso "eu" desperta e é movido a uma tomada de
consciência. Ele é o “EU SOU” diante do qual nós, com nossa própria e
inalienável voz pessoal, lhe fazemos eco: “eu sou”832
.
Mas o que significa para Merton a contemplação? Primeiro, ele nos chama a
atenção para o fato de não ser mencionada no Novo Testamento a palavra
contemplação e deixa claro que a sua existência está nos “ensinamentos de Cristo
que é essencialmente “contemplativo”, no sentido mais elevado, mais prático e
menos esotérico que o de Platão”833
.
E a partir da experiência e dos ensinamentos de Jesus Cristo, contemplação
na tradição cristã
é simplesmente a "experiência" (ou melhor, o conhecimento quase-experiencial) de
Deus em uma treva luminosa que é a perfeição da fé iluminando nosso eu mais
profundo. É o "encontro" do espírito com Deus em uma comunhão de amor e
entendimento que é um dom do Espírito Santo e uma penetração no mistério de Cristo
834.
Ele continua reafirmando que:
De fato, a contemplação é a atividade espiritual mais elevada e mais essencial ao
homem. É a afirmação mais criativa e dinâmica de sua filiação divina. Não é
simplesmente o suave e repousante abraço do "ser" em um contentamento difuso e
obscuro: é a faísca do relâmpago divino rompendo as trevas do nada e do pecado. Não é algo geral e abstrato; ao contrário, é o mais concreto, particular e
"existencial" que é possível. É a confrontação do homem com Deus, do Filho com
seu Pai. É o despertar do Cristo dentro de nós, o estabelecimento do Reino de Deus em nossa própria alma, o triunfo da Verdade e da Divina Liberdade no "Eu" mais
831 MERTON, Thomas. Experiência interior, pp. 21-22. 832 Cf. Id., Novas sementes de contemplação, p. 21. 833 Id., Experiência interior, p. 49. 834 Id., Novas sementes de contemplação, p. 50.
200
profundo, no qual o Pai é um com o Filho na unidade do Espírito que é dado ao
crente835
.
A palavra contemplação pode nos sugerir repouso, intemporalidade, ou
mesmo uma espécie de passividade. Esses elementos podem ser encontrados nessa
experiência. No entanto, o mais importante é a consciência, a vida, a criatividade e
a liberdade, tornando essa experiência, como já foi dito, a mais importante e
essencial atividade espiritual do ser humano.
A experiência contemplativa que viveu Merton, no mergulho profundo nas
fontes do cristianismo, afirma em poucas palavras que “a contemplação é a
consciência e a compreensão, e mesmo, em certo sentido, a experiência daquilo
que cada cristão crê obscuramente: “Agora não sou mais eu quem vive; é Cristo
quem vive em mim”836
. Segundo São Paulo, o eu mais íntimo de nosso ser é nosso
“espírito” ou “pneuma”, ou em outras palavras, o Espírito de Cristo, até mesmo
Cristo morando em nós. E através do reconhecimento espiritual de Cristo em
nosso irmão, nos fazemos um em Cristo, mediante o Espírito Santo.
Merton sentiu-se interrogado sobre a relação que tem a ressurreição de Jesus
com a contemplação. Segundo ele:
a ressurreição e ascensão de Cristo, Novo Adão, restituíram completamente à
natureza humana sua condição espiritual, tornando possível a divinização de todo
homem que vem a este mundo. Isso quer dizer que, em cada um de nós, o eu interior tornou-se agora capaz de ser despertado e transformado pela ação do
Espírito Santo, sendo que esse despertar não apenas nos permite descobrir nossa
verdadeira identidade “em Cristo”, como também torna vivamente presente em nós o Salvador ressuscitado. Daí a importância da divindade de Cristo - pois é como
Deus-Homem que Ele ressurgiu dos mortos e é como Deus-Homem que ele é
capaz de viver e agir em todos nós por Seu Espírito, de modo que, n’Ele, somos
não apenas nosso verdadeiro eu, mas também uma só Pessoa Mística, um só Cristo. Cada um de nós é capaz de, em certo sentido, ser completamente transformado à
semelhança de Cristo e de se tornar, com Ele, divinamente humano, participando
assim de Sua autoridade espiritual e de Seu poder carismático neste mundo837
.
No entanto, a contemplação está além das verdades abstratas sobre Deus, e
da meditação das coisas em que cremos. A contemplação é um despertar, uma
iluminação e apreensão espantosa, com que o amor se certifica da intervenção
criadora e dinâmica de Deus em nossa vida cotidiana.
Segundo Merton, “a percepção de que a revelação do mistério de Deus e
Homem no Cristo, Corpo Místico, não é algo que devemos esperar passivamente,
835 MERTON, Thomas. A experiência interior, p. 50. 836 Ibid., p. 12. 837Ibid., p. 55.
201
mas algo que somos chamados a produzir pela ação de nossa liberdade
criativa”838
.
Fica cada vez mais claro que a autorrealização cristã não pode ser apenas
uma mera afirmação individualista da própria personalidade. O “eu” interior é o
santuário de nossa solidão mais pessoal e individual, no entanto, paradoxalmente,
o que é mais solitário em nós se une ao “Tu” frente ao “nós”839
.
Não é possível negar que a experiência de descoberta de Cristo, em seu mais
profundo interior, tenha marcado toda vida de contemplativo de Merton, ou
melhor, dizendo, sua experiência de contemplação parte do princípio de que
o Cristianismo é a vida e a sabedoria em Cristo. É um retorno ao Pai em Cristo. É um retorno ao abismo infinito de pura realidade em que nosso próprio ser está
fundado, e no qual existimos; um retorno à fonte de todo sentido e de toda verdade;
um retorno ao manancial interior de vida e felicidade. É a redescoberta do paraíso em nosso próprio espírito por meio do abandono de si mesmo. E, por causa de
nossa unidade com Cristo, é o reconhecimento de nós mesmos como filhos do Pai;
é, ainda, nosso reconhecimento de nós mesmos como outros Cristos; e é o
reconhecimento da força e do amor a nós comunicados pelo Indizível, pelo Oculto, a quem chamamos Espírito Santo
840.
Se a natureza humana é assumida em Cristo e passa a pertencer à pessoa do
Verbo de Deus, então tudo que é humano em Cristo, torna-se divino. O ser
humano, que vive e age segundo a graça de Cristo que nele habita, age, nesse
caso, como outro Cristo, como um filho de Deus, prolongando, assim, os efeitos e
o milagre da encarnação.
Ou seja, em Jesus Cristo estava de forma inseparável sua existência humana
e divina. A ordem natural não foi simplesmente imposta de fora à natureza criada.
A própria natureza criada foi, no ser humano, transformada e sobrenaturalizada de
modo que, o abismo que separa o homem de Deus foi transposto pela encarnação
e, no ser humano, esse mesmo abismo é transposto pela presença invisível do
Espírito Santo841
. Cristo está realmente presente no ser humano, tornando-os
“outros Cristos”842
.
No entanto, essa vida divina permanece oculta no ser humano, até que seja
desenvolvida por uma experiência de ascetismo e caridade, no nível mais
profundo, de contemplação. Lembremos que, para a contemplação, é necessário o
838 MERTON, Thomas. A experiência interior, p. 215. 839 Cf. Ibid., p. 34. 840 Ibid., p. 53. 841 Ibid., p. 57. 842 Ibid., p. 59.
202
homem interior despertar para a vida ao entrar em contato espiritual com Deus
pela fé. Em uma profunda participação na vida de Cristo843
.
Sobre a contemplação, Merton é bastante enfático quando afirma: “Tenho
repetido que a contemplação é real. Tenho, além disso, insistido em sua
simplicidade, sobriedade e humildade, bem como em sua integração em uma vida
cristã normal”844
.
Como cristão, o contemplativo deverá estar atento às necessidades dos
outros, o que não significará uma complacência moral. Para Merton, que esteve
sempre atento aos desafios e necessidades de um tempo, marcado pela
indiferença, abandono e guerras, está claro que:
De que nos serve celebrar seminários sobre a doutrina do corpo místico e a sagrada
liturgia, se não nos preocupamos em absoluto com o sofrimento, a indigência, a enfermidade e até a morte de milhões de potenciais membros de Cristo? Podemos
imaginar que toda pobreza e sofrimento estão alheios ao nosso país; porém se
conhecêssemos e entendêssemos nossas obrigações com respeito à África, ao Sul da América e Ásia, não seríamos tão complacentes. E, todavia, não temos que olhar
além de nossa fronteira para descobrirmos enormes doses de miséria humana nos
subúrbios de nossas grandes cidades e nas zonas rurais menos privilegiadas. O que fazemos a respeito? Não basta colocar as mãos nos bolsos e tirar algumas moedas.
O que temos que dar aos nossos irmãos não são unicamente nossos bens, senão a
nós mesmos. Enquanto não recuperarmos o profundo sentido da caridade, não
poderemos compreender toda profundidade da perfeição cristã845
.
Significa que um autêntico cristão deve estar sempre atento às necessidades
do ser humano, em qualquer parte do mundo. Todos estão obrigados a tomar parte
ativa na solução de problemas urgentes que afetam globalmente sua sociedade e o
seu mundo. A clareza de Merton quanto à atitude de um contemplativo não deixa
dúvidas: “a contemplação não vira as costas para a realidade nem foge desta, mas
vê através do ser superficial e vai além deste. Isso implica uma plena aceitação
das coisas como elas são, além de uma sã avaliação destas”846
.
Ou seja, o verdadeiro contemplativo não está menos interessado na vida
normal do que os outros, não está menos atento ao que acontece no mundo. Está,
ao contrário, mais interessado, mais atento. O fato de ser um contemplativo o
torna capaz de um interesse maior e de uma atenção mais profunda. É capaz de
843 Cf. MERTON, Thomas. A experiência interior, p. 63. 844 Ibid., p.166. 845 Id., Vida y santidad. Sal Terrae: Santander, 2006. pp. 60-61. 846Id., A experiência interior, p. 160.
203
enxergar mais claramente e entrar mais diretamente na pura realidade da vida
humana847
.
Diante das ilusões que muitos sustentam sobre a contemplação, Merton faz
um alerta para que ninguém se iluda com as aspirações contemplativas se não está
determinado a assumir os labores e as obrigações comuns da vida normal.
Pode haver muita desolação e sofrimento no espírito do contemplativo, mas há sempre mais alegria que tristeza, mais segurança que dúvida, mais paz que
desolação. O contemplativo é aquele que encontrou aquilo que todos os homens
buscam de um modo ou de outro848
.
Sobre a extensão da vocação contemplativa, permanece o fato de que há
algo comum em todas as religiões, chamadas por ele de superiores. Segundo ele,
em toda parte, seja no cristianismo ou no budismo, no hinduísmo ou no islã,
encontramos exemplos de vida contemplativa, ao menos no sentido amplo.
Em toda parte, encontramos ao menos uma aspiração natural pela união interior e
comunhão intuitiva com o Absoluto. Além disso, em todo lugar, encontramos
expressões de alguma espécie de experiência espiritual, geralmente natural, às vezes sobrenatural. A experiência mística sobrenatural é, ao menos teoricamente,
possível em qualquer lugar sob o sol, para qualquer homem de boa consciência que
busque a verdade e corresponda às inspirações da graça divina849
.
A vida contemplativa é uma vida de unidade. O contemplativo pode
transcender a divisão e alcançar a unidade, recolhendo-se em si mesmo para
encontrar o centro interior de atividade espiritual. E, em um sentido estrito, a
contemplação é a intuição imediata e, em certo sentido, passiva da realidade
interior, de nosso eu espiritual e de Deus presente dentro do ser humano. Ele nos
apresenta alguns tipos de contemplação, como veremos em seguida:
1. Contemplação ativa ou imediata se realiza com a cooperação da pessoa: In
nobis et non sine nobis. Ela se nutre da meditação, da leitura, da vida sacramental
e da liturgia da Igreja850
.
2. A união com Deus na atividade diz respeito a muitos cristãos que, apesar de
nunca entrarem na vida contemplativa, não são estranhos às graças oriundas da
contemplação. Embora sejam trabalhadores ativos, são também contemplativos
ocultos. Uma espécie de contemplação “disfarçada”851
.
847 MERTON, Thomas. A experiência interior, p. 213. 848 Ibid., p. 168. 849 Ibid., p. 167. 850 Cf. Ibid., pp. 82 e 84. 851 Cf. Ibid., p. 92.
204
3. Contemplação infusa refere-se a uma realidade que não é direta ou
empiricamente verificável, mas é um dado da revelação852
.
4. Contemplação natural e teologia mística. Merton presume a existência de uma
intuição suprassensorial do divino, dom da graça para o qual se pode preparar-se
com seus próprios esforços. Ele se baseia em uma distinção feita pelos padres
gregos: a distinção entre contemplação natural (theoría physiké) e teologia
(theología) ou contemplação de Deus853
.
O contemplativo deve aceitar com humildade, sem inferir coisa alguma e
sem estabelecer nenhuma comparação com outras experiências. Apenas caminhar
na presença de Deus. Quando aceita de maneira correta, a experiência
contemplativa tem seu efeito próprio: torna mais intenso e mais simples o amor a
Deus e ao próximo854
. Merton destaca a união com Deus diante das atividades
cotidianas. Ou seja, apesar de não estarem na vida contemplativa, não estão longe
das graças da contemplação. Sendo trabalhadores ativos, são também
contemplativos ocultos.
O que para Merton pode sinalizar que houve uma contemplação? Para ele, é
necessário que haja alguma percepção da contemplação. E se não há nenhuma
percepção, então não há contemplação855
.
Da experiência contemplativa em seus diversos graus, podemos ver que
todas as formas de contemplação autêntica têm algo em comum. Associadas ou
não ao nosso próprio esforço, todas as formas de contemplação convergem para
um contato experimental e misterioso com Deus, além dos sentidos e, de algum
modo, além dos conceitos856
.
Merton, assim, resume os elementos essenciais da contemplação:
1. É uma intuição que, em seus graus mais baixos, já transcende os sentidos; e, em
seus graus mais elevados, transcende a própria inteligência.
2. É caracterizada por uma qualidade de luz nas trevas, um saber no não-saber.
Está além do sentimento e até mesmo dos conceitos.
3. A contemplação é obra do amor e o contemplativo prova seu amor ao
abandonar todas as coisas, mesmo as mais espirituais, por Deus, no
852 Cf. MERTON, Thomas. A experiência interior, p. 81. 853 Cf. Ibid., p. 96. 854 Cf. Ibid., p. 85. 855 Cf. Ibid., p. 92. 856 Cf. Ibid., pp.102-103.
205
aniquilamento, no desapego e na “noite”. O fator decisivo na contemplação é a
livre e imprevisível ação de Deus.
4. A contemplação é um amor e um conhecimento sobrenatural de Deus. Simples
e obscuro, infundido por ele no ápice da alma, dando a esta um contato direto e
experimental com ele.
5. A experiência da oração contemplativa e os sucessivos estados de
contemplação pelos quais se passa são fenômenos modificados pelo fato de a alma
ser passiva, ou parcialmente passiva, sob a orientação de Deus.
6. A contemplação é a luz de Deus, lançando-se diretamente sobre a alma. Toda
alma, entretanto, está enfraquecida e ofuscada pelo apego às coisas criadas, as
quais ama desordenadamente, por causa do pecado original.
7. A contemplação infusa é, cedo ou tarde, acompanhada por uma terrível
revolução interior. A alma é tentada a pensar que tudo acabou e que, em punição
por suas infidelidades, toda vida espiritual chegou ao fim.
8. Pode-se dizer, sem dúvida alguma, que as inspirações do Espírito Santo estão
muitas vezes em completo desacordo com as normas tradicionais e salutares das
sociedades religiosas857
.
Diante dos elementos essenciais da contemplação apresentados, Merton
ainda destaca que, embora a essência de Deus não possa ser adequadamente
apreendida, podemos alcançá-lo diretamente pelo amor, pelo amor, nós "o
alcançamos e dele nos aproximamos. E quando o amor o alcança, estamos
satisfeitos. O conhecimento de nada importa, pois o conhecemos pelo amor”858
.
Para o Mestre Eckhart, segundo Merton, existe uma centelha mística, ou centro da
alma, ponto de contato com Deus, algo vivo e dinâmico que faz Deus viver na
alma e a alma em Deus. É o nosso eu mais profundo, a vida espiritual da alma em
Deus859
.
Não é possível imaginação nem metáfora capaz de transmitir o que significa
experiência contemplativa na alma de alguém.
A contemplação tem, definitivamente, um elemento positivo, dinâmico, vivente,
criativo e transformador. É uma espécie de revolução interior que
inexplicavelmente tira a alma de sua rotina normal de pensamento e desejo,
857 Cf. MERTON, Thomas. A experiência interior, pp. 104-111. 858 Ibid., p. 121. 859 Cf. Ibid., p. 122.
206
fazendo-a buscar o que não pode ser pensado e alcançar o que está além de todo
desejo860
.
Merton faz alguns alertas sobre a contemplação. Sobre a heresia do
quietismo, ele nos diz que ela fecha o homem em si mesmo, em uma solidão
completamente egoísta, que exclui tanto os outros homens quanto o próprio Deus.
O quietismo, embora guarde certa semelhança superficial com a contemplação
cristã, é, na verdade, sua mais completa contradição. Enquanto a contemplação
cristã é a perfeição do amor, o quietismo é exclusão de todo amor e a
quintessência do egoísmo861
. Sobre o inspiracionismo vai nos dizer que na
contemplação o que importa não é o que se sente, mas o que acontece além do
plano do sentido ou da experiência. Ou seja,
a experiência, a visão, a intuição são apenas um sinal e além disso, passíveis de ser dissociadas de qualquer realidade, tornando-se meras figuras vazias. O
inspiracionista é aquele que se apega ao sinal, à experiência, sem consideração pela
substância invisível de um contato que transcende toda experiência862
.
No entanto,
Isso não quer dizer que uma experiência produzida pelo uso de uma droga não
possa ser associada a algo de sobrenatural. Deus é o senhor de Seus dons e os pode
conceder como lhe aprouver. O ponto, porém, é que o perigo de engano é, nesse
caso, muito grande. Por isso, estou inclinado a dizer, como opinião pessoal, que o perigo mais grave enfrentado pelo contemplativo hoje é essa enganadora tentação
do inspiracionismo. Só posso encarar com maior receio a falsificação e corrupção
da religião mística que podem surgir do abuso de tais métodos perigosos863
.
A vida contemplativa é fundamentalmente uma vida de unidade, solidão,
verdade e comunhão. O contemplativo é aquele que transcende as divisões para
alcançar uma unidade por cima de qualquer divisão.
2.4 A viagem ao Oriente: “...dela tirar proveito, aprender, mudar”.
Persistia em Merton, mesmo vivendo em seu eremitério, o desejo do
silêncio e da contemplação. As muitas preocupações o incomodavam e, assim,
desabafou no seu diário: “Na realidade não estou vivendo como eremita. Vejo
860 MERTON, Thomas. A experiência interior, p. 124. 861 Cf. Ibid., pp. 147-146. 862 Ibid., p. 157. 863 Ibid.
207
gente demais, tenho muito trabalho ativo a fazer, o lugar é por demais barulhento
e acessível” 864
.
Toda sua angústia o fazia procurar nas leituras sobre a mística oriental uma
nova maneira de reencontrar seu caminho, porque nela muito o impressionava a
busca da contemplação e a ideia de solidão como parte da clarificação que inclui
viver para os outros, a dissolução do ego ao ‘pertencer a todos’ por considerar
como seus os sofrimentos alheios865
.
Quando leu um livro sobre o budismo que falava da meditação, fez o
seguinte comentário:
Um dos livros mais belos que já li. Dá-me uma visão toda nova (velha) de minha própria vida. Tudo se afina à perfeição com meu tom. Profundamente comovedor
em todos os sentidos. Raras vezes encontrei um livro ao qual eu reagisse tão
totalmente assim866
.
Esta não foi sua primeira leitura sobre o budismo ou sobre as místicas
orientais. Nutria ele um grande interesse por estas leituras desde sua juventude. E
os reflexos destas estavam em sua busca pela essência da contemplação e solidão.
“Vejo a importância e real seriedade do que se refere à disciplina meditativa e
aprofundamento – não apenas silêncio e privacidade (que nem sempre, aliás, eu
tenho)” 867
.
O monaquismo oriental, a sabedoria, o oriente e seu pendor para valorizar o
invisível, o absoluto, cada vez mais o atraíam para um estudo aprofundado que
traria para o cristianismo ocidental novas riquezas por vezes esquecidas ou postas
de lado.
Merton quis encontrar-se com a solidão e deixar que tudo acontecesse de
maneira silenciosa e invisível. Em um convite que recebeu par a participar de um
Congresso Ecumênico, organizado pelos beneditinos em Bancoc, na Tailândia,
percebeu que era a sua chance de estabelecer contatos com monges e dirigentes
budistas. Era também a oportunidade para reencontrar seu caminho, e assim
escreveu em seu diário:
Vou com a mente de todo aberta. Sem ilusões especiais, espero. Minha esperança é
simplesmente desfrutar da longa viagem, dela tirar proveito, aprender, mudar. Talvez encontrar alguma coisa ou alguém que me ajude a avançar em minha
própria busca espiritual... Não estou partindo com um plano concreto de nunca
864 HART, Patrick e MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, p. 370. 865 Cf. Ibid., pp. 382-383. 866 Ibid., p. 380. 867 Ibid., p. 381.
208
retornar, nem com a absoluta determinação de retornar a todo custo. Sinto que aqui
não há muito pra mim no momento e que preciso me abrir para o monte de novas
possibilidades. Como fazê-lo! Mas continuo a ser monge de Gethsemani. Se
terminarei ou não aqui meus dias, não sei. Talvez isso não seja tão importante. A grande coisa é corresponder perfeitamente à Vontade de Deus nessa ocasião
providencial, seja o que for que ele traga868
.
Com a aprovação deste convite, recebe mais outros de diversos mosteiros de
sua ordem, na Indonésia, para pregar retiros. Sua viagem para a Ásia é preparada
com grande ânimo. Ele inclui visitas a mosteiros budistas e conversas com líderes
religiosos869
.
Antes de partir em viagem, Merton escreve uma carta aos amigos, em
setembro de 1968. Nessa carta, ele explica que não poderá receber suas
correspondências e que não sabe por quanto tempo ficará ausente, assim ele
escreve:
Considerando a importância crucial dos tempos, a necessidade da renovação
monástica, o isolamento de nossos mosteiros na Ásia e seus constantes apelos,
sinto-me no dever de corresponder. E espero que isso me permita entrar em contato com a vida monacal budista e conhecer em primeira mão alguma coisa
sobre ela870
.
Mesmo sendo seu maior interesse o contato com asiáticos, ele também
aproveitará sua viagem para encontrar um lugar para um melhor isolamento. O
seu Abade lhe havia sugerido procurar um lugar mais isolado para viver depois
que voltasse de sua viagem. Havia a possibilidade de utilizar tal lugar, também
para outros monges de Gethsemani871
.
No entanto, em seu diário, no final de dezembro, revelou sua determinação
em permanecer monge de Gethsemani:
Não creio que me deva separar completamente de Gethsemani, mesmo que só
mantenha lá a minha residência oficial, legalmente. Creio que devo acabar os meus dias lá. Sinto falta dali de muitas maneiras. Não existe o problema de eu querer sair
de Gethsemani; é o meu mosteiro e o fato de estar longe dele ajudou-me a vê-lo em
perspectiva e amá-lo ainda mais872
.
Em outra carta, escrita no dia 09 de novembro aos seus amigos, contando-
lhes suas experiências na viagem, deixa transparecer sua alegria por causa dos
868 HART, Patrick e MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, p. 386. 869 Cf. MERTON, Thomas. Diário da Ásia, p. XXVI. 870 Carta circular aos amigos, em setembro de 1968. In. MERTON, Thomas. Diário da Ásia, pp.
231. 871 Cf. Ibid., p. XXIX. 872 Ibid., pp. 114-115.
209
novos contatos e por estar, a partir das experiências na Ásia, mergulhando na sua
própria fé.
Espero poder levar para o meu mosteiro alguma coisa da sabedoria asiática, com a
qual tenho a sorte de estar em contato - mas coisa muito difícil de expressar em palavras. Desejo a todos a paz e alegria no Senhor e um crescimento na fé; pois nos
meus contatos com estes novos amigos também eu sinto consolação na minha
própria fé em Cristo e na Sua presença que me envolve873
.
Merton vai desenvolvendo a certeza de que deveria permanecer no seu
mosteiro, no entanto, a procura por um maior isolamento foi, sem dúvida, um
tema recorrente em seus diários. Sua procura o fez descobrir que o cerne desta
questão se encontrava em um nível mais profundo:
Nossa verdadeira viagem na vida é interior; é uma questão de crescimento, de
aprofundamento e de entrega sempre maior à ação criadora do amor e da graça em nossos corações. Nunca foi tão necessário para nós correspondermos a essa ação
874.
No momento da decolagem, indo para o oriente, ele revelou em seu diário:
Eu com mantras cristãos e profundo sentido de destino, de estar enfim no meu
verdadeiro caminho depois de anos de espera, inquirição e perambular. Que eu não volte sem resolver a grande questão. E sem ter encontrado também mahakaruna, a
grande compaixão875
.
Sua peregrinação à Ásia foi também uma peregrinação para dentro de si, na
constante busca por aprofundar seu compromisso religioso e monástico. Sua
primeira parada na Ásia é em Calcutá, onde deverá falar para monges de várias
ordens católicas. Em seu discurso, ele escreveu, deixando claro o motivo de sua
viagem:
Falo como um monge do ocidente que está interessado eminentemente em sua própria vocação e dedicação monástica. Deixei meu mosteiro e vim até aqui não só
na qualidade de um estudioso pesquisador, ou mesmo como escritor (que também
me acontece ser); venho como um peregrino que está ansioso para obter não só informações, não somente fatos sobre outras tradições monásticas, mas para beber
em antigas fontes de visão e de experiência monásticas. Não só procuro aprender
mais (quantitativamente), sobre religião e vida monástica, mas também me tornar
um monge melhor e mais iluminado (qualitativamente)876
.
Em sua palestra sobre Vida Monacal, pronunciada informalmente877
ele fala
sobre a crise que enfrenta o monasticismo, no ocidente. E convida os monges do
oriente a se manterem fiéis às suas antigas tradições, a não terem receio dessa
873 MERTON, Thomas. Diário da Ásia, p. 254. 874 Ibid., p. 232. 875 Ibid., p. 3. 876 Ibid., p. 246. 877 Merton havia preparado um texpo para essa palestra, no entanto preferiu fazê-la informalmente.
Cf. Ibid., pp. 243-249.
210
fidelidade. Ele gosta muito da ideia de que outros encontros como esses serão
possíveis de fazer, no entanto, “deixando claro que esses deverão ser no nível da
experiência. E que não sejam apenas entre instituições monásticas, mas entre
pessoas que estão buscando. A condição básica disso é que cada qual permaneça
fiel à sua própria busca”. E continua, finalizando sua palestra:
E entre essas pessoas, - se elas são fiéis ao seu chamado, à sua própria vocação, à mensagem que lhes vem de Deus, - a comunicação é possível em nível mais
profundo. E o nível mais profundo de comunicação não é comunicação, é
comunhão. Sem palavras. Além das palavras. Além do poder da palavra, além do conceito. Não se descobre uma nova unidade; descobre-se uma unidade antiga.
Caros irmãos, nós já somos um; apenas, imaginamos não o ser. O que nos é preciso
é recuperar a nossa unidade original. Temos de ser o que já somos878
.
Lembra aos participantes que “em todas as grandes religiões do mundo há
alguns indivíduos e comunidades que se consagram de maneira especial a levar
até o fim todas as consequências e implicações de sua fé”879
. Ele destaca as várias
formas de vida monástica, sua disciplina e distinção entre os tipos de consagração.
Segundo ele,
há uma real possibilidade de contato em nível profundo entre essa tradição
monástica contemplativa ocidental e as várias tradições contemplativas do oriente,
inclusive Sufis, muçulmanos, sociedades leigo-contemplativas da Indonésia, etc.,
do mesmo modo que com os mais conhecidos grupos monásticos do Hinduísmo e do Budismo
880
Sobre a possível unidade entre as religiões, ele ressalta:
Mesmo havendo irreconciliáveis diferenças de doutrina e de crença formulada, há
grandes semelhanças e analogias ao nível da experiência religiosa. [...] As
diferenças culturais e doutrinárias devem ser conservadas, mas elas não invalidam
uma qualidade muito real de semelhança existencial. E que nesse nível de experiência existencial e de maturidade espiritual é possível fazer contatos reais e
significativos e, talvez, muito mais do que isso881
.
Merton está convencido de que a “comunicação em profundidade não
somente é possível agora e desejável como é da maior importância para o destino
do Homem do Século XX”882
. Para terminar, reafirma a importância da
comunicação, chegando à comunhão entre contemplativos de tradições diferentes,
de diferentes disciplinas e religiões. Para ele,
878 MERTON, Thomas. Diário da Ásia, p. 242. 879 Ibid., p. 243. 880 Ibid., pp. 244-245. 881 Ibid., pp. 245-246. 882 Ibid., p. 246.
211
a comunicação verdadeira no nível mais profundo é mais do que uma simples troca
de ideias, de conhecimento conceitual ou de formulações da verdade. A espécie de
comunicação necessária neste nível profundo deve ser também “comunhão” acima
do nível das palavras - uma comunhão na experiência autêntica, partilhada não só em nível “preverbal”, mas também em um nível “postverbal”
883.
O nível “preverbal” é da preparação, predisposição da mente e do coração,
necessárias a toda e qualquer experiência monástica. O monge deve ser mais do
que um meticuloso praticante de tradições exteriores. Deve estar completamente
aberto à vida e à nova experiência por ter utilizado integralmente sua própria
tradição e a ter ultrapassado. Enquanto o nível “postverbal” é aquele em que
ambos se encontram além de suas próprias palavras e de seu próprio
entendimento, no silêncio de uma experiência884
.
Ele visita vários países. Na China, conversou com Phara Khantipalo (autor
de livros sobre o budismo) sobre meditação. Já com o abade budista Chao Khun,
conversou sobre os objetivos do budismo theravada885
. Todas estas conversas
possibilitaram uma melhor compreensão das experiências religiosas vividas nas
religiões orientais, de sua disciplina e dedicação.
Teve também encontros com o Dalai Lama, que lhe causou forte impressão,
no seu diário registrou; “é ativo e forte, mais alto do que eu esperava. Um homem
sólido, cheio de energia, generoso e cordial” 886
. Conversou bastante com ele,
foram três encontros. As conversas foram sobre religião, filosofia e
particularmente sobre meditação e seus métodos887
.
Um dos conselhos que recebeu do Dalai Lama sobre a meditação foi que
precisava “ter uma boa base de filosofia Madhyamika (nagarjuna e outra fontes
hindus autênticas) e a que consultasse mestres tibetanos qualificados, unindo o
estudo à prática”888
.
No segundo encontro conversaram sobre epistemologia e mente. Merton lhe
falou que: “Era importante que os monges no mundo fossem exemplos vivos da
libertação e transformação da consciência que a meditação pode dar” 889
. E o
883 MERTON, Thomas. Diário da Ásia, p. 248. 884 Cf. Ibid., p. 248. 885 Theravada ( Pali: thera "anciãos" + vada "palavra, doutrina" ), a "Doutrina dos Anciãos", é o nome da escola de Budismo que tem suas escrituras no Cânone em Pali ou Tipitaka, que os
acadêmicos em geral aceitam como sendo o registro mais antigo dos ensinamentos do Buda. 886 HART, Patrick; MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, p. 399. 887 Cf. MERTON, Thomas. Diário da Ásia, p. 75. 888 Ibid., p. 75. 889 Ibid., p. 402.
212
Dalai Lama lhe falou sobre samadhi890
, no sentido de concentração controlada,
referindo-se à mente como “aquilo no que alguém se concentra”, insistindo no
“desapego, numa vida não-mundana, como caminho para o perfeito entendimento
e participação nos problemas da vida e da sociedade” 891
.
O que seria importante para esta atitude, colaborando com o que Merton
acreditava ser necessário criar uma nova consciência de tempo, temps vierge, para
a vida contemplativa. Um espaço em que o monge possa usufruir suas próprias
potencialidades. O tempo da pessoa que não fosse dominado pelo ego e suas
exigências. Para que fosse aberto para o outro, um tempo compassivo892
.
Dalai Lama também se interessou pela vida monástica ocidental, perguntou
sobre os votos, a regra do silêncio, o caminho ascético e tudo mais sobre como
vive um monge. Dos momentos que teve com o Dalai Lama, assim, escreveu em
seu diário: “Senti que nos tornáramos muito bons amigos, estando bem próximo,
de algum modo, um do outro. Tenho um grande respeito e afeição por ele como
pessoa, crendo, além disso, que entre nós há um verdadeiro vínculo espiritual”893
.
Outro momento importante que teve foi quando conversou com um eremita
Chatral Rinpoche, sobre a meditação Nyingmap894
. Fizeram comparações entre
alguns pontos da doutrina cristã e o budismo. Que contribuiu para que fossem
esclarecidas as diferenças bem como, o que poderia haver de semelhantes.
Desta partilha resultou:
A mensagem da conversa, não expressa ou expressada pela metade, foi o nosso
mútuo e completo entendimento como pessoas que estavam de alguma forma à
beira da grande percepção do real, que sabiam disso e tentavam desse ou daquele modo sair e perder-se nele e que nosso encontro havia sido uma graça para os
dois895
.
Logo após este encontro, já perto de sua partida, teve uma experiência única
quando andava por uma trilha e se deparou com grandes imagens do Buda
esculpidas em pedras:
890 Pode ser traduzido por "meditação completa". É a última etapa do sistema ioga, quando se
atinge a compreensão da existência e a comunhão com o universo.
Significa concentração correta na meditação. 891 Cf. MERTON, Thomas. Diário da Ásia, p. 85. 892 Cf. HART, Patrick e MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, p. 403. 893 Ibid., p. 95. 894 Meditação de uma das linhagens do budismo (nyígma). Que se formou a partir das primeiras
tradições budistas introduzidas no Tibete. Suas práticas introspectivas promovem calma e clareza
interiores. O sentar-se silencioso, o caminhar meditativo e o canto de mantras estão entre as ricas
práticas meditativas oferecidas. 895 HART, Patrick e MONTALDO, Jonathan. Op. cit., pp. 407-408.
213
O silêncio de suas extraordinárias faces. Os sorrisos largos. Imensos, porém sutis”.
E contemplando nelas a busca e o encontro que Buda teve com o nada, e ao
mesmo tempo tudo. “Olhando-as fui bruscamente e quase à força arrancado para
ficar livre do modo habitual de ver as coisas, já em si algo exausto, e uma clareza interior, uma nitidez que parecia explodir das pedras, tornou-se manifesta e
óbvia.... a grande questão, sobre isso tudo, é que não há enigma, não há problema,
não há ‘mistério’. Todos os problemas já estão resolvidos e tudo está muito claro, simplesmente porque o que importa está claro. A pedra, toda a matéria, toda a vida,
está imantada de dharmakaya – tudo é vazio e tudo é compaixão. Não sei quando
em minha vida tive tal senso de beleza e vitalidade espiritual a fluir juntas numa mesma iluminação estética.... Quero dizer que eu sei e vi aquilo de que andava
obscuramente à procura. O que resta, não sei, mas agora já vi, penetrei pela
superfície adentro e fui além da sombra e do disfarce.896
Esta experiência que viveu Merton provocou um mergulho em si mesmo.
Como ele mesmo disse: “Somente quando não resta mais nenhum vestígio do eu
como ‘lugar’ no qual Deus age, somente quando Deus age puramente em si
mesmo, nós, enfim, recobramos nosso ‘verdadeiro eu’, (que nos termos Zen, é
não-eu, não-ser)” 897
. Todo o caminho percorrido, até mesmo antes de sua viagem,
as conversas e escutas de tantas pessoas nestas terras (no oriente), estranhas ao seu
corpo, mas tão familiares ao seu desejo, lhe possibilitaram de uma forma
inimaginável este desvelamento.
Para Merton, de tudo o que havia vivido nesta viagem, estava claro que:
Encontrar-me com o Dalai Lama e os vários tibetanos, lamas ou leigos
‘iluminados’, foi o que houve de mais significativo, particularmente pelo modo
como fomos capazes de nos comunicar uns com os outros e compartilhar uma
experiência essencialmente espiritual do ‘budismo’ que está em harmonia, de alguma forma, com o cristianismo
898.
Estava próximo o dia da realização do Congresso, em que ele iria falar para
cristãos e budistas. Partiu, então, para Tailândia, e em sua conferência intitulada
‘Marxismo e perspectivas monásticas’, ele inicia sugerindo mudança no título,
para ele poderia ser "Teoria marxista e teoria monacal". Ele estava muito mais
interessado no pensamento e na espécie de mística do marxismo do que no seu
pensamento ortodoxo. Para fundamentar sua discussão ele utilizará a obra de
Herbert Marcuse, muito influente entres os grupos neo-marxistas estudantis899
.
Para o monge
será preciso haver uma dialética entre a recusa e a aceitação do mundo. A recusa feita pelo monge encerra também a possibilidade de aceitar um mundo aberto à
896 HART, Patrick e MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, pp. 416-417. 897 MERTON, Thomas. Zen e as aves de rapina, p. 15. 898 HART, Patrick e MONTALDO, Jonathan. Op. cit., p. 409. 899 Cf. MERTON, Thomas. Diário da Ásia, p. 256.
214
mudança. Por outras palavras: o monge não aceita o mundo porque deseja vê-lo
mudado. Isso coloca o monge no mesmo plano que o marxista, porque o marxista
conduz uma crítica dialética às estruturas sociais na direção de uma mudança
revolucionária. E a diferença entre o monge e o marxista é fundamental no ponto em que o marxista reivindica uma mudança de subestruturas, subestruturas
econômicas, ao passo que o monge procura mudar a consciência do homem900
.
Sobre o monasticismo asiático, o cristão deve buscar um melhor
aprofundamento, procurando romper o superficial da experiência asiática.
Para um cristão - tanto quanto para um budista, parece-me - existe uma orientação essencial que transcende esta ou aquela sociedade, esta ou aquela cultura e mesmo
esta ou aquela religião. Portanto, estando abertos aos valores culturais asiáticos e
usando-os, creio que também devemos ter em mente o fato de que Cristianismo e Budismo, em sua pureza original, conduzem para além das divisões entre isto e
aquilo901
.
Ele continua dizendo:
Respeite-se, portanto, a pluralidade dessas culturas sem fazer delas um fim em si. Respeitemos tudo isso ultrapassando-o dialeticamente. O que estou dizendo é que
no Cristianismo dispomos de uma abordagem dialética dessas realidades - e no
Budismo existe uma dialética essencial chamada Madhyamika, que é a base do Zen, e assim por diante. Todas essas abordagens dialéticas (e também o marxismo
é dialético) ultrapassam tese e antítese, isto e aquilo, preto e branco, oriente e
ocidente. Aceitamos a divisão, trabalhamos com a divisão, e ultrapassamos a
divisão902
.
Diante de vários líderes monásticos da Ásia, Merton concluiu suas
observações com uma apreciação sincera dos valores monásticos do oriente como
complemento para o monacato ocidental cristão:
Acredito que a abertura ao Budismo, ao Hinduísmo e a essas grandes tradições
asiáticas nos traz uma oportunidade maravilhosa para aprender mais sobre a
potencialidade das nossas próprias tradições porque eles penetram, do ponto de
vista natural, muito mais profundamente nisso do que nós. A combinação das técnicas naturais, graça e outros fatores manifestados na Ásia com a liberdade
cristã do Evangelho deveria levar-nos todos por fim, a essa liberdade plena e
transcendente situada além das meras diferenças culturais, das meras exterioridades e meros isto ou aquilo
903.
Para ele, na experiência religiosa, há uma real ‘semelhança existencial’, em
que possibilita ‘uma comunicação em profundidade’. E em consequência do
aprendizado, na disciplina e experiência dos budistas e hindus se tem não só o
aperfeiçoamento, mas também a qualificação da vida monástica cristã. Sua
experiência, então, no diálogo com estas religiões, não diminuiu ou causou
900 MERTON, Thomas. Diário da Ásia, p. 259. 901 Ibid., p. 266. 902 Ibid., p. 266. 903 Ibid., p. 267.
215
difusão pela influência que obteve, mas contribuiu para que pudesse encontrar no
cristianismo dimensões que não conseguiria perceber sem a ajuda destas.
"And now I will disappear"904
. Com estas palavras, Merton termina a
conferência. O calor é sufocante e ele deseja voltar logo para o hotel, tomar um
banho e descansar. Um fio exposto cala para sempre uma das vozes mais
perturbadoras do século vinte. Uma voz que foi buscar no silêncio e na solidão a
força necessária para ser ouvida e respeitada. Uma voz, serena como a de um
cúmplice e irada como a de quem vê no conformismo a maior tragédia da
humanidade.
Após esta conferência, Merton se recolheu e, em seu quarto, acidentalmente,
morre eletrocutado por um ventilador defeituoso. Estava com 53 anos.
Na conferência em Bancoc, tendo ela ocorrida no próprio dia de sua morte,
encontramos a chave de sua mensagem, ao mesmo tempo mística e pragmática, da
vida monástica, como presença no mundo e não como ausência do mundo.
Existem muitas especulações de que sua morte nada foi acidental. Por causa
do momento de crise em que estava o mundo - era tempo de guerra do Vietnã -
esta palestra não ficaria impune. Merton sempre demonstrou ser contrário e havia
contribuído para a criação de vários movimentos contra todo ato violento e era
contra a obrigatoriedade ao serviço militar na guerra do Vietnã.
Um jornalista chamado Robert Grip foi quem mais escreveu a respeito. Ele
solicitou a abertura dos arquivos do FBI e da CIA, e estes revelaram que Merton
era uma pessoa visada por órgãos de segurança. Um grupo de católicos
ultranacionalistas enviou ao FBI uma carta sugerindo que os passos de Merton
fossem vigiados, por se tratar de uma pessoa perigosa e ter sido comunista na
juventude. Estes foram os seus grandes inimigos, chegaram a queimar
publicamente suas obras, chamando-o de ateu e antipatriota, por se opor à guerra
do Vietnã905
.
O fato é que Merton em meio a tropeções e quedas percorreu seu caminho,
deixou marcas de uma personalidade forte e terna por onde passou. E, enfim,
conhece agora quem tanto amou e ouve com clareza sua voz. Seu amor
proclamado quando escreveu rezando, anunciava mais uma vez seu desejo de
abandono, de entrega total e da certeza que tinha de ser amado:
904 Cf. MERTON, Thomas. Diário da Ásia, pp. 256-267. O texto completo da conferência. 905 Cf. BERTELLI, Getúlio Antônio. Mística e compaixão, p. 144.
216
Pai, eu te amo, a ti que não conheço, e te abraço sem ver-te, abandono-me a ti a
quem ofendi porque me amas em teu unigênito. Vês ele em mim, abraças a ele em
mim porque ele quis identificar-se completamente comigo por aquele amor que o
levou à morte, por mim, na cruz906
.
Conclusão
Merton foi um homem que desfrutou de uma vida intelectual brilhante,
desde sua juventude, quando percorria um caminho de desilusão e conflitos, até
que, encontrando-se consigo mesmo em Deus, assumiu-se como um escritor
apaixonado, em seu diário anotou que escrever “é pensar e viver – e até rezar”,
“escrever é amar”. E desta forma, além de suas conferências, manteve-se em
contato com o mundo, consigo mesmo e com Deus.
Destacamos diante de tudo o que nos foi apresentado, que sua trajetória, sua
espiritualidade e mística profundamente enraizadas no Evangelho são um convite
a uma experiência sadia com Deus, deixando a sedução do que aliena pela
sedução do Absoluto.
Sua contribuição para os dias de hoje, tempo que nos clama por uma
mudança de paradigma, está em sua espiritualidade encarnada com a realidade,
uma espiritualidade da libertação, que se traduz em uma abertura ao outro, ao
diferente; seu diálogo frutuoso com as diversas religiões orientais, que não
diminui ou causa confusão, contribui para que se possa encontrar no cristianismo
dimensões que não conseguiria perceber sem a ajuda destes e por uma visão
integral do ser humano.
No mosteiro, sua angústia era encontrar um equilíbrio entre ação,
temporalidade e eternidade. Ele se preocupa muito, nos primeiros anos de sua vida
monástica, em encontrar soluções para estes dilemas; porém se dá conta de que
tem que assumir sua própria identidade no palco da temporalidade - são os anos
mais conflitivos de sua existência, anos em que retoma sua própria raíz humana e
social e tem contato com muitas pessoas.
Ele descobre que, em relação à temporalidade, faz-se necessário um olhar
universalizante, ecumênico e interconfessional no religioso, e um olhar
misericordioso e compassivo sobre um mundo esquecido pelas guerras e
violência, necessitando de uma reconciliação pacífica para a paz mundial.
906MERTON, Thomas. Na liberdade da solidão, p. 58.
217
O interesse de Merton pelos horizontes espirituais do homem tem sua
origem na profundidade de sua fé; a segurança interior levou-o a explorar, a
experimentar e a interpretar as afinidades e as diferenças entre as religiões, à luz
de sua própria religião: o Cristianismo, que representava para ele o supremo fato
histórico e a perfeita revelação.
Merton procurou a totalidade do ser humano e sua visão abrangedora não
lhe permitia negar qualquer escritura autêntica ou qualquer ser humano de fé. O
silêncio da meditação e a oração que em toda a vida buscou, encontrou-os não só
em sua experiência monástica como também em seu último entusiasmo pelo
Tibete. Acreditando no ecumenismo, adiantou-se e explorou novos caminhos de
compreensão entre diferentes credos, encorajado pelo espírito do Vaticano II.
Foram quase 27 anos, de 31 janeiro de 1915 a 10 de dezembro de 1941,
quando entrou no Mosteiro Trapista. A partir de seu ingresso na Ordem até sua
morte, em 10 de dezembro de 1968, transcorreram também 27 anos, justamente no
aniversário da sua entrada no Mosteiro de Nossa Senhora do Gethsemani.
Conciliar ação e contemplação era e sempre foi seu destino. Um destino
perseguido com paixão e sofrimento, alegria e desespero. Não havia, para Merton,
um tempo para agir e um tempo para meditar. A fronteira entre eles era quase
inexistente e ele levaria muito tempo para descobrir que tanto um gesto como o
outro só são autênticos se permanecem indissociáveis.
Na próxima parte de nossa tese, nos deteremos na experiência de encontro
com Deus a qual viveu Raimon Panikkar. Encontraremos um homem de
personalidade ricamente vivaz. Sua experiência de Deus tem raiz no cristianismo,
sem esquecer-se de outras dimensões religiosas, místicas e teológicas, em especial
o pensamento hindu e budista. Indo além dos limites cristãos, sua experiência
nasce de um diálogo intrarreligioso907
com outras tradições religiosas, superando o
diálogo inter-religioso, em um estreito ecumenismo.
907 O termo “diálogo intrarreligioso” é inspirado na linguagem teológica que fala das relações
Trinitárias ad intra e ad extra. Em que a relação ad intra é a relação que se dá no seio da Trindade
entre o Pai, o Filho e o Espírito. E a relação ad extra é a relação da Trindade com o mundo. Para
Panikkar o diálogo inter-religioso, ao qual dedicou tanto tempo e tantos escritos, no fundo é algo que parte da experiência interna. Ou seja, o diálogo inter-religioso só pode funcionar se estiver
acompanhado por uma dimensão “interior”, ad intra, intrarreligioso. Antes do diálogo inter-
religioso, os dialogantes devem realizar um diálogo consigo mesmo para por em questão suas
próprias convicções e verificar a posteriori as afirmações que se davam por supostas a priori sobre
a unicidade e absolutismo de sua experiência religiosa. Aprofundaremos logo em seguida esse
termo. Cf. PANIKKAR, Raimon. Il diálogo intrareligioso. Cittadella: Assisi, 1988.
218
Cronologia da vida de Thomas Merton
1915 – 31 de janeiro: nasce em Prades. Seus pais chamavam-se Owen Merton e
Ruth Jenkins.
1916 – A família Merton muda-se para os Estados Unidos, e vivem em
Douglaston, com os pais de Ruth, Samuel e Martha Jenkins.
1917 – A família Merton se instala em uma casa de sua propriedade em New
York.
1918 – 02 de novembro: nasce John Paul, seu irmão.
1921 – Ruth Jenkins morre de câncer.
1922 - 1923 – Viagens com o pai.
1925 – Com seu pai passa a morar na cidade francesa St. Antonin.
1926 – Ingressa no Instituto de Montauban, França.
1929 – Ingressa em Oakham School.
1931 – Depois de uma longa enfermidade, seu pai morre por causa de um tumor
celebral.
1933 – 01 de fevereiro: finalizado os seus estudos em Oakham, Thomas Merton
viaja para Itália. Em outubro volta para Inglaterra para começar seus estudos
universitários no Clare College, Cambridge University.
1935 – Ingressa em Columbia University.
1938 – É graduado em Columbia. Em 16 de novembro é batizado por Fr. Joseph
C. Moore.
1939 – É Crismado pelo bispo Stephen J. Donahue e recebe nome de James.
1940 – Leciona durante um semestre na Columbia Extension School.
Verão: manifesta certos escrúpulos sobre seu passado ao Superior dos
Franciscanos, que lhe sugere que retire seu pedido de ingresso.
Setembro: aceita ser professor em St. Bonaventure College.
1941 – Está profundamente animado para passar a Semana Santa em Gethsemani.
Solicita seu ingresso na Abadia em que ingressa no dia 10 de dezembro.
1942 - 21 de fevereiro: é recebido no noviciado e recebe um novo nome religioso:
Irmão Louis.
John Paul Merton é batizado na Igreja paroquial de New Haven, Kentucky, e
recebe a primeira comunhão na Abadia de Gethsemani.
1943 – Abril: John Paul morre em uma ação de guerra.
219
1944 – Faz sua profissão de votos temporais.
1947–19 de março: faz seus votos solenes. Profissão monástica por toda vida na
Ordem Cisterciense.
1949 – 25 de maio: Ordenação sacerdotal.
Novembro: começa a lecionar no Noviciado da Abadia.
1951 – Junho: é nomeado mestre de jovens professos.
26 de junho: é concedida sua cidadania norte-americana.
1953 – Recebe a permissão para morar em um eremitério no bosque da Abadia.
1955 – É nomeado mestre de noviços.
1960 – Novembro: é construída a casa de retiros que será seu eremitério.
1964 – Junho: visita D. T. Suzuki, em New York.
Novembro: Encontro em Gethsemani com líderes de movimentos pacifistas.
1965 – Agosto: faz-se ermitão, vivendo nas terras da Abadia.
1966 – Abril: é internado no hospital de Louisville para um procedimento
cirúrgico. Tem início sua relação amorosa com a enfermeira.
1967 – Dezembro: encontro em Gethsemani com representantes de Ordens
Contemplativas feminina.
1968 – Outubro: viaja ao Alaska, Califórnia e Ásia.
Dezembro: morre por acidente em Bancoc.
IV Parte
Experiência Cristã de Deus em Raimon Panikkar
Como veremos, Raimon Panikkar908
sempre buscou a integração do
conjunto de toda a realidade em todas as suas dimensões. Concebe a Realidade
como totalmente relacional; uma relação que não é nem dualista, nem monista-
panteísta, senão advaita909
em que estão integrados o Cosmos, o ser Humano e
Deus. É o que Panikkar chamou de Intuição Cosmoteândrica910
. Segundo nosso
autor: "Nada é negligenciado, nada se deixa de lado, tudo está integrado,
assumido, transfigurado... Pensar em todos os fragmentos de nosso mundo atual
para reuni-los em um conjunto harmônico"911
. Ele procura a interlocução de todos
com tudo frente ao reducionismo, por uma harmonia entre as diversas dimensões
da Realidade.
A partir do homem como realidade cosmoteândrica, a mística assume a
forma de sua antropologia de fé, de esperança e de caridade, da imanência e da
transcendência humana, que, sem negar o tempo e o espaço, os assume e os
ultrapassa. Como veremos, para Panikkar, “a mística é a experiência plena de
Vida”912
.
Ele ousou aproximar-se de outras tradições religiosas acreditando que as
mesmas enriqueciam a sua experiência cristã. Surge o termo “diálogo
908 Em princípio o seu nome era Raimundo Paniker Alemany, porém este mudou pouco a pouco.
Era chamado por “Raimundo”, “Raymond” e, finalmente, como "Raimon". Seu sobrenome ficou
definitivamente Panikkar, depois de sua estadia na Índia (ele descobriu que este é um nome da
nobreza malabar), e que essa é sua transcrição mais precisa. No final dos anos 60, estando em Harvard e Califórnia, foi apresentado como Raimon Panikkar. Cf., PINGEM, Jordi. El pensament
de Raimon Panikkar: Interdependència, pluralisme, interculturalitat. Barcelona: Institut d’Estudis
Catalans, 2007. p. 18. Referiremo-nos ao Raimon Panikkar apenas como Panikkar no decorrer do
nosso texto. 909 Significa a-dual - riquíssimo conceito hinduísta, também presente no budismo, no taoismo e no
sufismo. Panikkar assumindo este pensamento não-dualista faz alusão, em vários momentos, desse
conceito contrapondo-o tanto ao monismo como ao dualismo. 910 Aprofundaremos seu significado e importância para o pensamento de Panikkar, a partir do seu
livro La intuición cosmoteándrica. Las tres dimensiones de la realidad. Madrid: Editora Trotta,
1999. Titulo original: The cosmotheandric experience (1993). Esta é a fundamental intuição para
entender o pensamento de Panikkar. Falaremos sobre este tema mais adiante. Por ora, uma breve
ideia: "Finalmente o que tenho chamado de Intuição cosmoteândrica ou teantropocentrismo em que a realidade é não dual e cada coisa tem três dimensões constituintes: a cósmica, a humana e a
divina, ou em outra palavras: a material (espaço-temporal) , a intelectual (consciente) e a mistérica
(infinita)". PANIKKAR, Raimon. Autobiografía intelectual. La filosofía como estilo de vida”.
Anthropos, pp. 53-54 (1985): p. 15. 911 Id., La intuición cosmoteándrica, p. 19. 912 Id., De la mística. Experiencia plena de la Vida. Barcelona: Editorial Herber, 2005. p. 25.
221
intrarreligioso”, que significa diálogo no interior de si mesmo, um mergulho na
religiosidade pessoal, quando se está diante de outra experiência religiosa em um
nível muito íntimo. Em outras palavras, se o diálogo inter-religioso deve ser um
verdadeiro diálogo, este deve ser acompanhado de um diálogo intrarreligioso. Este
diálogo começa com o questionamento sobre si mesmo e da relatividade de suas
crenças (o que não significa em seu relativismo), aceitando o risco de uma
mudança, uma conversão de uma reviravolta dos meus modelos tradicionais. Ou
seja, não se pode entrar na arena de um diálogo religioso autêntico, sem uma
atitude de autocrítica. O diálogo inter-religioso é uma preparação para o diálogo
intrarreligioso, em que a fé viva exige constantemente uma renovação total, ou -
em termos cristãos - uma verdadeira metanoia, pessoal, constantemente
renovado913
.
Panikkar sempre considerou esta relação indispensável para o fazer
teológico e filosófico. Para ele, a teologia, igualmente em sua capacidade
intelectual e espiritual interna, deve sempre estar atenta à inter[intra]-culturalidade
e a inter[intra]-religiosidade. Ele nos situa diante deste importante diálogo
interior.
Quisera ser fiel à intuição budista, não me afastando da experiência cristã e não me desconectando do mundo cultural contemporâneo... Sigo sendo cristão e hindu,
embora eu perceba que aqui não acaba a minha peregrinação... Porque levantar
muralhas e manter zelosamente as separações? O fato de acentuar uma tradição humana e religiosa não significa menosprezar as demais. A síntese de todas elas é
improvável e talvez nem sequer seja possível, porém isso não quer dizer que a
única alternativa esteja no exclusivismo ou no ecletismo914
.
Ele reafirma, negando qualquer esquizofrenia ou irracionalidade, que se
sente com uma quádrupla identidade, profundamente incrustada em sua vida: a
tradição cristã, a hinduísta, a budista e o pensamento secular do século XX. Esta
identidade está presente em seu pensamento até o ponto de que não podemos
compreendê-lo se não conhecemos o que supõe o diálogo interior.
Um diálogo interno dentro do próprio eu, um encontro no profundo da
religiosidade própria e pessoal do eu; quando este esbarra com outra experiência
religiosa nesse nível íntimo... Um diálogo intrarreligioso que tenho que começar eu mesmo, perguntando-me sobre mim mesmo, sobre a relatividade de minhas crenças
(que não é o mesmo que relativismo) e aceitando o desafio de uma mudança, de
913 Cf. PANIKKAR, Raimon. Il dialogo intrareligioso, pp. 114-116. 914 Id., El silencio del Buddha. Una introducción al ateísmo religioso. Madrid: Siruela, 1996. p. 27
e 16.
222
uma conversão e o risco de romper minhas abordagens tradicionais915
.
A partir de sua experiência existencial, procura conscientemente o que ele
chama de harmonia invisível, que, para ele, deve existir entre todas as religiões e
cultura. Segundo ele, devemos nos abrir aos demais e crer, confiar na experiência
humana em seu conjunto, na harmonia dos seres humanos e do cosmos. A
harmonia invisível está intimamente relacionada com o que Ele mesmo
denominou efeito pars pro toto: a visão que tenho da realidade (totum), a realizo,
necessariamente através de minha particular janela cultural e religiosa (pars). Isto
significa que cada um de nós pode ser consciente do todo, porém sob uma
perspectiva particular916
.
Em seus escritos, destaca-se uma forma de ser apaixonada, porém não
avassaladora. Erudição e simplicidade se conjugam de tal maneira que revelam
uma sabedoria impactante. Seu pensamento, como veremos mais adiante, está
fincado no religioso, porque, para ele, é impossível fazer uma leitura da realidade
se não for através da religião.
Reconhecemos em Panikkar, segundo V. Pérez Prieto, uma pessoa que
desconcerta, perturba e, contudo, é um homem que seduz, mesmo quando não se está totalmente de acordo com o que ele diz. Seduz por seu verbo criativo e sua
escrita brilhante, porém, sobretudo por seu agudo e rico pensamento que abre a
concepções habitualmente diferentes do comum. É um homem que quer viver e
pensar com liberdade de espírito, como os velhos profetas, porém também com rigor intelectual. Quer fazer uma teologia com liberdade e rigor, partindo da
experiência pessoal e recebida da tradição917
.
Seu pensamento tem origem em sua própria experiência de vida. Suas ideias
são resultados de suas reflexões feitas sobre as diversas experiências culturais,
religiosas e acadêmicas que se iniciam, inclusive, no seio familiar. Como ele
mesmo falou, escrever é resultado de seu próprio itinerário existencial:
O risco existencial é de uma vida que se enraíza em mais de uma cultura e religião [...] Minhas circunstâncias pessoais (biológicas, históricas e biográficas) me tem
tornado possível aceitar o risco de uma conversão sem alienação, sem ter em
repúdio, a síntese e a simbioses sem cair em um sincretismo ou ecletismo. A doutrina indiana do próprio karma resultou para mim um símbolo vivo. Não trata
de me confirmar voluntariamente, ao mesmo tempo, indiano e europeu, ou que me
915 PANIKKAR, Raimon. El dialogo interno: la insuficiencia de la llamada 'époché' fenomenologica en el encontro religioso. Salmanticensis, XXII/2 , 1975, pp. 349-350. 916 Id., Sobre el diálogo intercultural. Salamanca: San Esteban, 1990. p. 135. Abordaremos, mais
adiante, com mais detalhes o que significam os conceitos: harmonia invisível e efeito pars pro
toto. 917 PRIETO, Victorino Pérez, Más allá de la fragmentación de la teología, el saber y la vida:
Raimon Panikkar.Valencia: Tirant lo Blanch, 2008. p.165.
223
finja homem religioso e ao mesmo tempo secular. E antes que, por nascimento,
educação, iniciação e vida real sou uma pessoa que vive das experiências originais
da tradição ocidental tanto cristã como secular, e da tradição indiana, tanto hindu
como budista [...] Sou consciente do risco que isto implica. Porém o desafio permanece. A compreensão mútua e a fecundação entre as distintas tradições
podem realizar-se pelo sacrifício da própria vida, submetendo-se primeiro a
sustentar as tensões existentes sem cair na esquizofrenia e a manter as polaridades sem uma paranoia pessoal ou cultural
918.
Em outro momento ele afirma:
A aventura da minha vida nunca é planejada conscientemente. Por isso, em sua
quintessência, considero típica de nossa época... Basta mudar os nomes genéricos
do hinduísmo, cristianismo, budismo e ateísmo por outros mais concretos... Se o chamo típico não é porque é um modelo a imitar, senão porque com toda sua parte
de imperfeição, e inclusive de erros, parecem ser paradigmáticos de nossa geração
e talvez de algumas gerações futuras919
.
Panikkar não busca verdades universais e imutáveis, para ele tal pretensão
não é sustentável. Seu pensamento está atravessado por três olhos que ele mesmo
reconhece em uma entrevista que fez com R. Forner-Betancourt:
O conhecimento integral que não separa o amor do conhecimento; um saber de
sabedoria que é provisório e constitutivamente itinerante, e que por isso não se
formula com nenhuma pretensão de universalidade nem de validade perene, e, em terceiro lugar, o caráter essencialmente dialógico do pensar [...] A partir dessa
harmonia, proponho uma filosofia onde se tem superado duas grandes armadilhas:
primeiro, a dicotomia teoria-práxis, e, segundo a dicotomia sujeito-objeto920
.
O itinerário pessoal e intelectual de Panikkar é bastante rico, seja por ter
sido longo e intenso - foram 91 anos como por uma ampla produção intelectual -,
seja por todas as relações afetivas estabelecidas entre as diversas culturas e
religiões, o que torna difícil falar sobre a vida pessoal sem destacar seu trabalho
intelectual. O mesmo diz que:
Escrevo não sobre mim mesmo, senão que escrevo para mim mesmo... eu mesmo
sou aquele que escreve e escrevo como alguém que fala... Cada parágrafo que
escrevo, cada frase, deveria refletir, na medida do possível, toda minha vida e ser expressão do meu ser. Deveria reconhecer minha vida inteira em uma só frase.
Escrever é, para mim, meditação, isto é, remédio e, simultaneamente, ordem para o
mundo. Escrever é, para mim, vida intelectual, e esta é, por sua vez, existência
espiritual... participação na vida do universo, fazer parte da sinfonia cósmica e divina, a que também os mortais são convidados... É por isso que escrever é, para
mim, um ato religioso... Escrever me permite aprofundar o mistério da realidade e
me obriga a fazê-lo921
.
918 PANIKKAR, Raimon. Autobiografía intelectual. pp.13-14. 919 Id., El silencio del Buddha, pp. 35-36. 920 Fornet-Betancourt, Raúl. La mística del diálogo. Jahrbuch für kontextuelle Theologien 93.
Frankfurt: IKO, 1994. pp.19-37. pp. 36-37. 921 PANIKKAR, Raimon. Invitación a la sabiduría, Espasa: Madrid, 1999, p. 104.
224
Ele reitera em outra obra sua um tempo depois:
Escrevo para aprofundar a fé que me foi dada, submetendo minhas intuições ao exame crítico do intelecto e da sabedoria da tradição. E estou não por interesse
próprio, senão para desenvolver nessa corrente vital que flui pelas artérias
profundas do corpo místico da realidade. A primeira tarefa de toda criatura é a de completar, conduzir a sua perfeição, o ícone do real que todos nós somos
922.
M. Siguan, em uma homenagem aos seus 70 anos, escreveu o que podemos
considerar uma sinopse de sua vida:
Uma existência caleidoscópica e progressivamente acelerada que resultaria absurda
se não fosse por um fio condutor claríssimo: a pretensão de assumir tudo, de levar tudo até sua última raiz, até sua total plenitude, a vontade de absoluto. Uma
vocação que se limitasse a ordem intelectual poderia classificar-se de científica ou
de filosófica, porém, porque aspira a uma plenitude existencial é inevitavelmente religiosa. Itinerário religioso que parte de uma herança cristã lucidamente assumida
e do esforço por superar suas contradições tal como se apresentavam a um jovem
de Barcelona nos dias de sua juventude: Como ser talvez profundamente cristão e
plenamente moderno? Tensão que talvez fosse decomposta em múltiplas faces, tensão entre crença religiosa e conhecimento científico, entre localidade e
universalismo [...] E sob estas tensões debatidas em praças públicas, outras mais
profundas entre teologia positiva e teologia negativa, ou se preferir, entre dogma e mística e mais radicalmente, todavia, entre conhecimento e amor como formas
básicas de aproximar-se da realidade e de dar sentido a existência923
.
Tal “existência caleidoscópica” e “acelerada”, como veremos, está
caracterizada por uma rica produção intelectual, proveniente de seu itinerário
existencial.
Como veremos, é possível destacar quatro etapas que claramente se
apresentam na vida de Panikkar. A primeira, que vai do seu nascimento até sua
relação com a Opus Dei, no período de 1918 até 1954; a segunda, seu encontro
com a Índia, onde se descobre cristão, hindu e budista, período que vai de 1954
até 1966; a terceira, quando se encontra nos Estados Unidos, anos que vão de
1966 até 1987; e a quarta, a sua “volta a casa” em que se estabelece em Taverte de
1987 até agosto de 2010, o último ano de sua vida entre nós.
922PANIKKAR, Raimon. La plenitud del hombre. Una cristofanía. Madrid: Siruela, 1999.
Prólogo, p.14. 923 SIGUAN, Miquel, Philosophia pacis. Homenaje a Raimon Panikkar. Madrid: Símbolo, 1989.
pp. 9-11.
225
1. O itinerário de vida de Raimon Panikkar
Panikkar nasceu em 3 de novembro de 1918 na antiga vila de Sarriá, hoje
um bairro de Barcelona. Sua mãe, Carmem Alemany, era catalã, filha mais nova
de uma grande família burguesa católica, gostava muito de música e das artes, era
profundamente católica e de mentalidade muito aberta. Seu pai, Ramun Panikkar
era indiano de origem aristocrata com passaporte britânico. Realizou seus estudos
primeiro em Madrás e logo na Inglaterra, onde conseguiu os títulos de Mestre em
Artes e Mestre em Ciências. Porém, ao chegar a Guerra, teve que fugir para
Espanha, indo morar na Catalunha. Carmem e Ramun se conheceram em
Catalunha, namoraram e, apesar da oposição da família, se casaram na Igreja e
tiveram além de Panikkar, mais três filhos: Josep-Maria, Mercé e Salvador. Foi
com seu pai que recebeu os ensinamentos sobre a tolerância, o sentido de
relativização e profunda espiritualidade. Seu pai veio a falecer em 1954 e em 1975
ele fica órfão, também de mãe924
.
Panikkar sempre foi muito grato por sua família. Ele relata: “Havia uma
harmonia profunda entre meu pai e minha mãe, sendo os dois de tradições
diferentes”925
. Tem falado desta experiência familiar, dizendo que desde o começo
de sua existência começou a descobrir “aquelas dimensões da fé cristã que me
permitiam viver em paz com a outra parte de meu ser: a discreta influencia do
meu pai, que cantava e explicava o Bhagavad Gita, que me dava os fundamentos
do sânscrito e me envolvia em uma não confessional atmosfera hindu”926
. E que
se via fortalecido pelas convicções de sua mãe, profundamente católica e, no
entanto não sectária.
Foi neste ambiente familiar em que foi se desenvolvendo em Panikkar sua
singularidade e a profunda tendência religiosa metafísica. Sempre lhe chamou
atenção o problema religioso, marcando sua trajetória de vida e intelectual,
tornando-o um grande expoente nos estudos das relações inter-religiosas e
924 Cf. PRIETO, Pérez V., Raimon Panikkar. El pensamiento cristiano es trinitario, simbólico e
relacional. Encontros con R. Panikkar, Iglesia Viva 223, 2005, p. 64. 925 M. Abumalham, em "Samâdhânam. Homenaje a R. Panikkar". 'Ilu. Ciencias de las Religiones,
Madrid, 2001, p. 21. Apud. PRIETO, Victorino Pérez, Más allá de la fragmentación de la teología,
p. 41. 926 Confesión de R. P. en el libro-diálogo, Pinchas Lapide-Raimon Panikkar, Meinen wir denselben
Gott? Ein Streitgesprächa, Kösel, München, 1994, p. 116. Apud. PRIETO, Victorino Pérez, Más
allá de la fragmentación de la teología, p. 41.
226
interculturais. Segundo ele, “não me considero meio espanhol e meio indiano,
meio católico e meio hindu, senão totalmente ocidental e totalmente oriental”927
.
Estudou em um Colégio Jesuíta, San Ignacio de Sarriá, onde cursou o
Bacharelado em Ciências e Letras com “Prêmio Extraordinário”, em 1935. No
período universitário, com a Guerra Civil, muda-se para Alemanha onde estudou
física, matemática, filosofia e teologia. Um homem pacifista como Panikkar
sofrera profundamente por causa da terrível Guerra. Esse triste período contribuiu
para que se acentuasse nele a vocação sacerdotal, uma porta por onde podia se
aproximar do sagrado.
Volta para Espanha em 1939, por causa da Segunda Guerra Mundial.
Termina seus estudos na Espanha, onde obteve a Licenciatura em Ciências na
Universidade de Barcelona, em 1941 e em Letras na Universidade de Madri, em
1942928
.
No final do ano de 1939, Panikkar conheceu José María Escrivá de Balaguer
com quem manteve uma estreita amizade. Depois de um longo tempo de amizade,
em 1945, foi o próprio José Maria Escrivá que lhe propôs o sacerdócio. Ele volta
para Madri para sua preparação sacerdotal e em 1946 é ordenado com mais cincos
companheiros. Foi capelão em um Colégio Maior de Mancloa, onde viveu uma
intensa atividade com sacerdotes e leigos. Sobre o seu ministério sacerdotal, disse
anos mais tarde:
Eu fui ordenado segundo a ordem de Melquisedeque, que não era judeu, nem
circunciso, nem acreditava em Yahveh, e me ordenou com referência a Abel [...]
Porém não nego minha vinculação com Abraão, nem muito menos com Cristo, nunca me ocorreu que recebia uma iniciação para algo menor que ter uma função
no corpo místico de toda a realidade929
.
Fez seu doutorado em filosofia e letras na Universidade de Madri, em 1946.
O título de sua tese foi: Filosofia Cristiana. El concepto de naturaleza, que se
converteria em seu primeiro livro com o título: El concepto de naturaleza.
Análisis histórico y metafísico de un concepto. Já se fazia presente a intuição que
permaneceu durante toda sua vida: a filosofia com sabedoria do amor e a crítica
ao predomínio da razão.
Em Madri, onde vive até 1959, torna-se amigo de reconhecidos professores
927 CASTAGNARO, M. Passaggio in Asia, entrevista, Jesus, Roma, 4 (2001). Apud. PRIETO,
Pérez Victorino. Más allá de la fragmentación de la teología, p. 43. 928 Cf. PRIETO, Pérez Victorino. Más allá de la fragmentación de la teologia, p. 44 929 PANIKKAR, Raimon, El conflicto de eclesiologías: hacia un concilio de Jerusalén II, Tiempo
de Hablar, pp. 56-57 (1993). pp. 33-47.
227
de filosofia, como Laín Entralgo, García Morente e Xavier Zubiri. Nesse período,
exerce a docência como professor de filosofia da história, culturas comparadas e
sociologia religiosa em várias universidades. Escreve alguns livros: A Índia.
Gente, cultura e crenças, em 1960; Patriotismo e cristandade, em 1961 e
Humanismo e cruz, em 1963. Também escreve assiduamente para as revistas da
Opus Dei. Por ter escrito o prólogo do livro A Virgem Maria930
, de J. Guiton, foi
enviado a Roma para estudar a "verdadeira" teologia, em 1953. Este fato o marcou
profundamente, como o mesmo manifestou:
[A Obra] iniciou como um pequeno grupo mais ou menos carismático com um
ideal evangélico muito puro e elementar que lentamente, a raiz das circunstâncias
por uma parte, e do que estava latente no espírito do fundador, foi se convertendo no que sociologicamente se chama seita [...] Pouco a pouco, o jurídico, a prudência
de espírito ou da carne, a necessidade de pensar em si mesmo para sobreviver
como grupo diferenciado, e a ideologia [...] Fez com que a Obra se convertesse em
modelo absoluto para julgar sobre toda atividade pessoal ou coletiva931
.
Quando chega a Roma reside nas colinas. Anos depois escreverá Panikkar:
“Tive que voltar a estudar teologia em Roma, porque a Opus Dei me exigiu o selo
da ortodoxia romana para neutralizar os meus poucos comentários”932
.
1.1 O encontro com a Índia e seu descobrimento como cristão, hindu e budista, período de 1954 até 1966
No final de 1954, terminados os seus estudos em Roma, foi enviado à Índia
em missão apostólica. Depois de um ano no sul deste país, se estabelece em
Varanasi, por ser a cidade Santa do Hinduísmo. Essa experiência o marcou
profundamente e inicia uma etapa crucial em sua vida. Ele tem 36 anos, quase a
metade de sua vida, quando vai à terra de sua origem paterna, como ele mesmo
reconheceu: “Parece necessário falar uma última vez de mim para cancelar um
930 Moncada relata esse fato: "O conflito ocorreu quando Panikkar publicou o prólogo do livro de
Jean Guitton sobre a Virgem Maria. O cardeal Segura ficou muito irritado com o tratamento
teológico apresentado sobre Maria e escreveu uma carta pastoral, de oitentas páginas, muito
negativas, condenando o livro [...] E o mandaram a Roma para estudar a boa doutrina. Era a
primeira metade da década de cinquenta e aí começa seu afastamento da Espanha e sua
desvinculação com o apostolado da Obra". Moncada, op. cit. p. 81. Ainda segundo Moncada, esse
prólogo seria reconhecido mais adiante junto com outro trabalho de Panikkar, em um livro sobre o mesmo tema, em que ele recolhe a teologia mariana, em Dimensioni mariane della vita, Vicenza:
La Locusta, 1972. 931 MONCADA, Alberto. Historia oral del Opus Dei, Plaza & Janés: Barcelona, 1987. p. 131. 932 Nachword von Raimon Panikkar, In P. Lapide-R.Panikkar, Op. cit, p. 117. Apud. PRIETO,
Pérez Victorino. Más allá de la fragmentación de la teología, p. 51. Em um ano faz a licenciatura
em Teologia.
228
período de minha vida, que quase com toda certeza abarca mais da metade de
minha cronológica existência terrestre [...] Posso dizer que começa um novo
período em minha vida [...]” 933
.
Ainda quando se preparava para viagem, ele já intuía que essa experiência
teria um efeito transcendental em sua vida, como refletia em uma de suas
confissões pessoais: “Estas palavras foram escritas apressadamente quando,
empacotando todos os meus equipamentos, juntamente com toda minha vida, em
20 kilos de bagagem, para transladar-me para o Oriente, quis deixar uma nota
introdutória como para uma obra póstuma”934
. Um tempo depois, ele escreve,
reconhecendo o momento em que vive:
Posso dizer que começa um período novo em minha vida, com a morte real de
minhas ilusões e ideais tidos até agora... Aqui minha vida muda no mais interno do meu ser, pois que ... (trata-se) de que abandone a ilusão de mergulhar na cultura...
Em sinfonia a Criação tem compassos sonoros e também ritmos de silêncio.
Parece-me que tenho que por música em minha existência e agora me dizem que meu trabalho é o silêncio
935.
E em outro momento revela o que sente em forma de oração:
Teus caminhos, Senhor, são os meus e teus desejos são os meus... Quando já me havia provocado o ânimo por estabelecer-me para servir-te com minhas forças no
mundo cultural cristão no Ocidente, quando já havia quase abandonado aquele
mundo abismático do Oriente que seguia latente em meus cromossomos; é aqui que
me chamas a ele e me encarregas de conhecê-lo mais profundo... Não me proponho a ir com ar de suficiência, nem com missão docente alguma, senão com exclusiva
missão de serviço936
.
Panikkar deixa claro que suas ideias, aquelas que começaram a provocar um
mal estar, apresentado pela Opus Dei, na “saudável ordotoxia”, estavam presentes
antes de sua viagem à Índia: “acaso logo se dirá que muitas de minhas ideias são
de origem hindu e de sabor pagã oriental [...] Quisera deixar claro que tudo o que
depois eu diga, já o penso e digo antes de ter pisado em solo indiano”937
.
Ele passa a trabalhar como pesquisador nas Universidades de Varanasi,
Mysore e Benarés, aprofundando seus estudos nas religiões do hinduísmo e do
budismo, o que provoca o reconhecimento de suas próprias raízes. Sua
experiência de profundo encontro com o budismo e o hinduísmo não o fez
933 PANIKKAR, Raimon. Cometas. Fragmentos de un diario espiritual de la postguerra. Madrid:
Suramérica, 1972. p. 98. 934 Ibid., 26. 935 Id., Mi testamento. In. Cometas, pp. 95, 98, e 99. 936 Id., Mi último cometa de Occidente. In. Cometas, p. 194. 937 Ibid., p. 196.
229
abandonar o cristianismo, todavia o levou a realizar um profundo mergulho,
também, em sua raiz cristã. Mais tarde dirá do que ocorreu em si mesmo: “Saí
cristão, descobri a mim mesmo como hindu e volto budista, sem ter deixado de ser
cristão”938
, reflexão que revela o peregrinar de sua própria vida, à qual, também,
agregou a identidade secular939
.
Anos depois descreverá seu encontro com o hinduísmo e o budismo,
dizendo que
foi à Índia como aluno, como aquele que busca, como alguém que se senta sem
dificuldades aos pés de um mestre", confessando que "queria identificar-se com sua
identidade hindu [...] Sua identidade budista se desenvolveu como resultado do trabalho interior, feito com paciência e humildade ao estilo do Buda
940.
Dentre os encontros que teve durante esse período, foi muito importante
para Panikkar, o que ocorreu com dois cléricos franceses pioneiros do diálogo
inter-religioso: o sacerdote Jules Monchanin (1895-1957), o monge beneditino
Henri le Saux (1910-1973) e com o beneditino inglês Bed Griffiths (1906-1993).
Os três buscaram encarnar-se na realidade hindu, compromentendo-se com sua
cultura e religião, até chegarem a declarar-se cristãos e hindus941
. Panikkar
percebeu, depois desse encontro, que continuava um peregrino, um buscador de si
mesmo e de Deus, ele assim escreveu: “chegarei a ser mais cristão, tornando-me
mais hindu”942
.
Durante esse período, predomina em seus livros sua reflexão sobre a
possibilidade do encontro e o diálogo entre as civilizações e as religiões,
contemplando suas vivências sobre a espiritualidade hindu.
Seu encontro com o hinduísmo o remete a sua realidade familiar:
Somente vendo as raízes destas duas grandes tradições e estudando-as, não só pelo que dizem, senão por ser capaz de experimentá-las de forma vivencial, não me
938 PANIKKAR, Raimon. Il diálogo intrareligioso. p. 42. 939 Além de sentir-se triplamente religioso, Panikkar também se considera um homem secular.
Quando escreve em 1979 o prefácio para a nova edição do livro O Cristo escondido do Hinduísmo,
afirma encontrar-se na confluência (sangam) de quatro grandes rios: as tradições cristã, hindú,
budista e secular. Cf., Id., El Cristo desconocido del hinduismo. Madrid: Grupo Libro 88, 1994. p.
XVI. 940 Lapide y Panikkar, Meinen wir denselben Gott? Ein Streitgespräsh, pp.117-120. Apud.
RUEDA, José Luiz Meza. La antrolología de Raimon Panikkar e su contribuición a la
antropología teológica cristiana. Pontifícia Universidad Javeriana, Bogotá, Colombia, 2009. p. 52. 941 PRIETO, Pérez Victorino. Más allá de la fragmentación de la teología, p. 56. Não foram estes
os únicos cristãos que buscaram uma simbiose com o hinduísmo. Religiosos tão diferentes como o
jesuíta Henri Heras (+1955), o carmelita Lambert de la Mère de Dieu (+1968) que chegou a ser
também recebido como sannyasi, o trapense Francis Mathieu... e algumas religiosas. Cf. Ibid., p.
58. 942 PANIKKAR, Raimon. Presentación de La montée au fond du coeur, OEIL, Paris, 1986, p. I.
230
sinto dividido [...] tendo convivido como o amor de meus pais, que sendo de
culturas e temperamentos distintos, não recordo nunca uma falta de amor e
consideração943
.
Nesta época, volta repentinamente à Europa e viaja por outros países.
Obtém o doutorado em Ciências na Universidade de Madri (1958), com a tese
Alguns problemas limítrofes entre ciência e filosofia. Sobre o sentido da ciência
natural, que logo seria publicado como livro, com o título Ontonomía de la
ciencia. Sobre el sentido de la ciencia y sus relaciones con la filosofía (1961). Na
tese desse livro, ele contrapõe o conceito de ontonomía ao de heterônoma e
autonomia. Tais conceitos, segundo a sua análise, devem ser superados. Além
disso, faz uma forte crítica à ciência e à tecnologia, preocupações que estiveram
presentes em toda sua vida.
Três anos depois, obteve o Doutorado em Teologia na Universidade
Lateranense, em 1961 com seu trabalho El Cristo desconocido del Hinduismo,
que se constituiria um de seus livros mais publicados em várias línguas sob o
mesmo nome. Em 1964, regressa à Índia e renuncia canonicamente a seus
compromissos com a Opus Dei. Deixa de pertencer juridicamente à Obra e
incardina-se na diocese de Varanasi. Foi membro da Opus Dei de 1940 até 1964.
Anos mais tarde ele dirá sobre seu ingresso à Obra:
[...] Eu a entendi em seu núcleo sacramental mais profundo, como entendo a
Igreja. Eu não entrei em nenhum clube [...] Por pertencer à Obra, estrutura
sacramental da Igreja, considerei minha entrada como uma iniciação. E toda iniciação é um ponto de partida, uma porta e não uma meta
944.
Ele continua com suas pesquisas sobre a filosofia hindu. Neste momento,
ele escreve: Os deuses e o Senhor, em 1967; Religião e religiões, em 1964;
Mistério e revelação: Hinduísmo e Cristianismo, encontro entre duas culturas,
em 1966; e vários artigos publicados em muitas partes do mundo945
.
Panikkar pensava em viver para sempre na Índia, quando recebe o convite
para partir para os Estados Unidos, assim ele confessa:
Pensava permanecer ali toda a minha vida. Vivia ali alegre e feliz, na simplicidade
[...] Uma vez por mês iria à casa do Bispo de Varanasi [...] Porém tive a péssima
ideia de escrever um artigo que descobriu um professor de Harvard; ele gostou a tal ponto de convidar-me para essa universidade na qualidade de professor visitante
943 ABUMALHAM, Montserrat. Conversación con Raimon Panikkar. In. Revista de Ciencias de
las Religiones. Samâdhânam. Anejo VI (2001): pp.7-26. p. 21. 944 MONCADA, Alberto. Historia oral del Opus Dei, p. 130. 945 Cf. PRIETO, Pérez Victorino. Más allá de la fragmentación de la teología, p. 60.
231
[...] O bispo me aconselhou aceitar, e quase me obrigou a fazê-lo946
.
Quando chega aos Estados Unidos, não deixa sua relação com a Índia.
Durante mais de vinte anos, de 1966 até 1987, divide seu tempo entre a Índia e os
Estados Unidos. Trabalha como professor nas universidades de Harvard e
Califórnia, e logo como catedrático na Universidade de Santa Bárbara
(Califórnia), onde se instala de maneira quase permanente entre 1971 e 1987,
trabalho acadêmico que fez em paralelo com suas atividades em universidades e
instituições de outras partes do mundo (Union Theological Seminary de New
York, Universidades de Cambridge y Montreal, y United Theological College de
Bangalore). Esta etapa foi de uma enorme produção intelectual947
.
1.2 A volta para Catalunha e seu retorno à "sua casa" em 1987 até 2010
Depois de vinte anos de trabalho na Universidade de Califórnia, em 1987,
volta para a Catalunha. Desde esse momento até o último dia de sua vida, viveu
em Tavertet, um pequeno povoado pré-Pirineu espanhol. Não foi uma etapa de
sua vida em absoluto ociosa, continuou com o seu trabalho acadêmico e
ministerial, porém em um ritmo diferente por causa da sua idade e estado de
saúde. Foram anos de grandes produções bibliográficas, em que escreveu novos
livros e atualizou outros tantos948
.
946 PANIKKAR, Entre Dieu et le cosmos. Entrevista com Gwendoline Jarczyk, Albin Michel:
Paris, 1998. Uma longa entrevista entre Panikkar e esta pensadora especialista em Hegel e Eckhart.
Edição em catalão, 2006. p. 21. 947 Os livros publicados nessa época foram: Kerygma und Indien (1967), Técnica y tiempo. La tecnocronía (1967), L’homme qui devient Dieu. La foi, dimension constitutive de l’homme (1969),
El silencio de Dios (1970) que anos mais tarde sairia atualizada como El silencio del Buddha
(1996), The Trinity and World Religions (1970), obra revisada e aumentada em The Trinity and
The Religious Experience of Man. Icon, Person, Mystery (1973) y en La Trinidad. Una
experiencia humana primordial (1989), Dimensioni mariane della vita (1972), Worship and
Secular Man (1979), Salvation in Christ (1972), Spiritualità indù (1975), The Vedic Experience
(1977), The Intra-religious Dialogue (1978), Myth, Faith and Hermeneutics (1979), Blessed
Simplicity. The Monk as Universal Archetype (1982). 948 Nesta etapa publicou novos livros e outros que atualizaram abordagens feitas anos atrás: La
torre di Babele. Pace e pluralismo (1990), Der Weisheit eine Wohnung bereiten (1991), La nueva
inocencia (1993), The Cosmotheandric Experience. Emerging Religious Consciousness (1993),
Ecosofia: la nuova saggezza. Per una spiritualità della terra (1993), Paz y desarme cultural (1993); La experiencia de Dios (1994); Meinen wir denselben Gott? Ein Streitgespräsh (1994), La
experiencia filosófica de la India (1997), Il “daimôn” della politica (1995), Invisible Harmony.
Essays on Contemplation Responsibility (1995), Entre Dieu et le cosmos (1998), La pienezza
dell’uomo. Una cristofania (1999); El mundanal silencio (1999), El diálogo indispensable. Paz
entre las religiones (2003), De la mística. Experiencia plena de vida (2005), Lo spirito della
parola (2007), entre outros. Ele nos deixou uma grande obra publicada que está sendo recolhida
232
Como ele mesmo dizia: “Escrevo para aprofundar a fé que me foi dada,
submetendo minhas intuições ao exame crítico do intelecto e da sabedoria da
tradição”949
.
Por isso, é possível encontrar em toda sua obra o propósito de colligite
fragmenta, buscar a união dentro de uma “harmonia invisível”: “Sou daqueles que
creem que não tem que voltar a andar para trás. Cada novo esforço intelectual é
um lançar-se para adiante [...] O que tento, justamente, é superar a fragmentação
do saber e a fragmentação da vida humana”950
.
Desta maneira podemos entender, segundo A. Rossi951
, por que seu desejo
de compreender a realidade. Sua obra vai além dos desafios da filosofia, da
ciência, da história das religiões e do desenvolvimento tecnológico, apresenta-se
como um projeto coerente de construir uma espiritualidade a altura do homem
contemporâneo. O pensamento de Panikkar está marcado por sua experiência
religiosa. Para ele, é impossível fazer uma leitura da realidade se não for através
da religião952
.
Embora tenhamos falado da quádrupla identidade de Panikkar como cristão,
hindu, budista e secular, foi a primeira que mais marcou sua vida e seu
pensamento. Ele afirma:
Eu me confesso cristão porque reconheço minha pertença a uma tradição histórica humana chamada cristã [...] Minha crença está ligada ao núcleo da crença cristã e
me reconheço em comunhão com a Igreja cristã. Porém, comunhão não significa
para mim obedecer a um partido, nem um seguimento cego, nem estar de acordo
acriticamente com as políticas de uma igreja oficial particular [...]953
.
Panikkar manteve durante toda sua a vida uma profunda identidade
sacerdotal, “Eu sou sacerdote in aeternum, secundum ordinem Melchisedech”.
Vale lembrar que como sacerdote foi, em Madri, capelão dos universitários em
um Colégio Maior e professor no Seminário (1946-1950). Em Salamanca, foi
capelão dos estudantes (1950-1953). Em Varanasi (1954-1960/1964-1970) e em
Roma (1960-1963), atuou como capelão para estudantes universitários. Nos
pela editora Jaca Book (Itália), em que estão previstos 18 volumes. 949 PANIKKAR, Raimon. La plenitud del hombre, p. 14. 950 Id., Reflexiones autobiográficas, p. 22. 951 Cf. ROSSI, A. Pluralismo e armonía. Introduzione al pensiero di Raimon Panikkar. Roma:
L’altrapagina, 1990. p. 5. 952 Cf. PANIKKAR, Raimon. Cometas, p. 13. 953 Id., A Self-Critical Dialogue. En The intercultural Challenge of Raimon Panikkar editado por
Joseph Prabhu, 227-291. Maryknoll, NY: Orbis, 1996. p. 263
233
Estados Unidos, colaborou na paróquia de Santa Bárbara954
.
Em Tavertet, seguiu exercendo seu ministério pastoral em retiros, palestras e
acompanhamento individual. No dia 26 de agosto de 2010, aos 91 anos, Panikkar
retorna a “sua casa”, na harmonia que sempre buscou com a Realidade. Como
uma gota de água caída no mar e encontra-se definitivamente no Todo.
1.3 Igreja, "comunhão de Deus com todo o povo"
Para Panikkar, a Igreja católica era “a comunidade constituída pela
assembleia de todos os que buscam a verdade com retidão... reúne todos os que
não se excluem da salvação, embora estejam fora da Igreja institucional”955
.
Ou seja, para ele a Igreja é "comunhão de Deus com todo o mundo",
Se a Igreja não é comunhão, o que é? Não é este o mistério de Cristo que por amor ao mundo estabelece esta comunhão, a mais íntima que se pode ter, que é a
encarnação, que é a comunhão total? A essência da Igreja é esta comunhão, tanto
no horizontal, entre os homens, quanto no vertical, com o divino. A Igreja é Sacramentum mundi... mysterium tou kosmo, o mistério do cosmos
956.
Sua relação com a Igreja se dá a partir de sua fé no
“mistério cósmico da Igreja”, uma Igreja que ele defende como “lugar universal
de salvação” e “sem limites definidos”. Sua dimensão cósmica e mistérica não
nega sua dimensão histórica, social e jurídica, porque, mesmo encarnada na
história, não se reduz às coordenadas espaço-tempo, por ter sua origem e sua fonte
no mistério trinitário divino.
Acredito agora e sempre no 'mistério cósmico da Igreja'... a Igreja não possui
limites definidos... Acredito na validade deste adágio, pela simples razão de que a
Igreja em que creio definiu-se mais que o lugar da salvação. O lugar da salvação se encontra em uma praia ou em uma religião, em tal edifício ou no seio de uma
família, ou bem seguindo fielmente uma Igreja, então, aí estará a Igreja957
.
De acordo com Panikkar, a “ordem de Melquisedeque” significa muito mais
que uma liturgia. Manifesta a dimensão do sacerdócio e particularmente do
sacerdócio cristão:
Sua missão é definitiva e histórica, sair ao encontro de Abraão e restabelecer o
vínculo que o unia ao sacerdócio universal da humanidade desde o princípio do
mundo [...] Significa, em uma palavra, que Cristo, o Alfa e Ômega, o Princípio e o
954 Cf. PRIETO, Victorino Pérez. Más allá de la fragmentación de la teología, p. 86. 955 PANIKKAR, Raimon. Entre Dieu et el cosmos, p. 49. 956 Diálogo com Raimon Panikkar, em 1995. www. Il-margine.it/archivio/1995/c6 apud. PRIETO,
Victorino Pérez, Más allá de la fragmentación de la teología, p. 80. 957 PANIKKAR, Raimon. Entre Dieu et el cosmos, p. 47.
234
Fim em quem todas as coisas subsistem e por cujo meio tudo existe, já estava antes
de Abraão. Existe um só sacerdote na nova Aliança, porque existe um só sacerdote
ao final dos tempos, o Redentor. Melquisedeque é o sacerdote cósmico de uma
nova natureza caída que, contudo espera com ansiedade; essa é precisamente a linha de Cristo, que vem redimir o Homem em seu ser
958.
O sacerdócio é “uma constituição do seu ser”, “O sacerdócio não é uma
ocupação, nem um ofício, senão uma constituição mesma de meu ser”. E reafirma
sua dimensão comunitária: “o sacerdote é incompreensível sem uma comunidade,
não tem razão de ser sem o povo, sem o povo fiel para o qual e do qual é um
pessoa sagrada”959
. Sua essência está na mediação:
Compreendo o sacerdócio como uma mediação. O sacerdote é um mediador, não
um intermediário... Não é um burocrata ou um funcionário de Deus... Favorecer a mediação quer dizer, frequentemente, fazer a obra de paz... Também no campo da
liturgia... como o que nos deve ajudar a superar... a dimensão puramente biológica
da vida do homem960
.
E ainda que: “O sacerdócio não é somente da Igreja, do Deus judeu ou do
Deus cristão; é uma figura religiosa primordial. É a iniciação que nos abre ao
reino do Sagrado, aquela dimensão mistérica, sacramental, da realidade”961
.
Nesta compreensão sobre o sacerdócio, ele decidiu romper com a lei do
celibato por entender que esta disciplina não estava unida à identidade do
sacerdócio católico e contraiu matrimônio com María González Haba, espanhola,
da região de Andaluzia, e doutora em filosofia. Ele já estava com mais de 60 anos.
Os dois adotaram duas crianças da Índia. E permaneceu sempre como sacerdote
da Igreja Católica. Esta decisão ocorreu, segundo Panikkar, depois de um “longo
colóquio com as autoridades competentes” que durou três anos, indo e vindo da
Índia e passando por Roma; até que por fim “compreenderam” sua posição962
. Ele
continuou pertencendo à diocese de Varanasi, celebrando a eucaristia com a
comunidade de Vivarium.
Sobre sua fidelidade à Igreja ele afirma categoricamente: “Uma coisa é
certa, minha fidelidade à Igreja, minha obediência à Hierarquia, minha entrega ao
958 PANIKKAR, Raimon. Meditación sobre Melquisedec, Nuetro Tiempo, 102 (1962) pp. 675-
695, p. 693. Apud PRIETO, Victorino Pérez, Más allá de la fragmentación de la teología. p. 88. 959 PANIKKAR, Raimon. Cometas, p. 269. 960 Id., Entre Dieu et le cosmos, pp. 57, 59 e 61. 961 Id., Uno no es feliz hasta que no se encuentra a sí mismo, entrevista de Nuria Oriol, Missión
Abierta, p. 7 (1996) 6. Apud. PRIETO, Victorino Pérez, Más allá de la fragmentación de la
teología, p. 90. 962 Cf. PRIETO, Victorino Pérez, Más allá de la fragmentación de la teología. p. 87.
235
Corpo Místico... Uma coisa quero deixar claro: Minha fidelidade à Igreja e minha
continuidade com a tradição”963
.
1.4 Um Panikkar ou vários Panikkar?
Segundo J. D. Soriano Escobar964
, em sua tese sobre Panikkar, é possível
encontrar três mentalidades associadas a três períodos de sua vida: O 'primeiro
Panikkar' é marcado por seus estudos de física, química e filosofia, que se
desenvolvem entre 1930 e 1960. Ele mesmo diz que:
comecei com o estudo da matéria. Durante sete anos foram a física e a química
minhas ocupações intelectuais mais sérias. Depois comecei ao mesmo tempo os estudos de filosofia, porém não porque me sentisse desenganado de meu trabalho
científico. Em vez disso, se deu por causa da continuidade dos meus interesses;
meu pathos filosófico existia desde o princípio. Necessitava somente paciência até
que fui capaz de dedicar-me a ele profundamente e de modo sistemático. Seguiram longos anos de rigoroso estudo filosófico e de atualidade intelectual
965.
Neste primeiro momento, Panikkar é um cientista e um filósofo
profundamente religioso que se move dentro da teologia católica. É um bom
conhecedor de Santo Tomás de Aquino e com clara adesão ao Magistério da
Igreja. Sua preocupação é mostrar uma visão teológica da ciência, que ele
denomina Teo-física, segundo ele: “A expressão deve compreender-se. Não se
trata de uma física de Deus, senão do Deus da Física, isto é, do Deus criador do
mundo, ou, com outras palavras, do mundo, não como ser autônomo, isto é,
independente e desconectado de Deus, senão constitutivo e ontonômicamente
religado a Ele”966
.
O 'segundo Panikkar' resulta do período em que esteve na Índia entre 1954 e
1966. Este será um período de sua vida que será determinante para o
desenvolvimento do seu pensamento. Para Escobar, o seu interesse intelectual
mudará totalmente. Ele se torna um promotor do diálogo entre as religiões, em
especial, o Hinduísmo e o Budismo com o cristianismo. E promoverá o encontro
963 PANIKKAR, Raimon. Cometas, p. 60. 964 ESCOBAR, J.D. Soriano, Revelación, cristianismo y religiones en la obra de Raimundo
Panikkar. Universidad Pontificia de Salamanca, 1996. Nesta parte de nosso estudo
desenvolveremos o tema a partir da tese de Escobar. 965 PANIKKAR, Raimon. Autobiografía intelectual, 13. 966 Id., Ontonomía de la ciencia. Sobre el sentido de la ciencia e sus relaciones con la filosofia,
Gredos: Madris, 1961. p. 205.
236
com as culturas orientais e ocidentais967
. Quando lhe é perguntado sobre o que
significou em sua vida e pensamento a experiência na Índia, ele responde:
é para mim é muito difícil responder a esta pergunta, porque em todo
desenvolvimento existe uma mudança não sei se consciente [...]. Acredito evidentemente que tem ocorrido uma evolução em mim. Havia algo que me
faltava. Eu vejo agora. Por exemplo: havia sido educado em duas religiões de uma
forma harmoniosa. Minha formação teológica estava mais inclinada no sentido do cristianismo, e precisamente porque era filho do seu tempo, estava orientado na
direção pós-tridentina, antes do Vaticano II, ouvindo que o cristianismo era a
religião dominadora de tudo, superior a tudo, quase exclusivista. Eu não acreditava
totalmente, porém não posso negar que tenha sido uma grande parte da minha formação teológica recente. Vou à Índia, falo com teólogos indianos e me dou
conta que as coisas não são tão simples. Então se inicia um esforço de integração e
me dou conta que a teologia não é uma coisa que se aprende de memória, senão que surge de uma experiência pessoal em que se integram todas as informações.
Por tanto, o que aconteceu foi que comecei a ser mais eu mesmo, que comecei a ser
cristão pelo fato de ser mais hindu968
.
Panikkar acredita que sua experiência na Índia o ajudou a ter um
cristianismo mais profundo, universal e flexível. A obra que marcará este período
é sua tese doutoral em teologia: El Cristo desconocido del Hinduismo, em 1970.
Neste livro, Panikkar trata de colocar os filósofos indianos ao alcance do
pensamento cristão. E seguindo São Paulo, afirma que Cristo não está consumado,
está presente, inclusive sofrendo, fazendo-se o Cristo total em toda a humanidade.
Então, o cristianismo e hinduísmo se encontram em Cristo:
Cristo é seu ponto de coincidência. O verdadeiro abraço somente pode ter lugar em
Cristo, porque somente em Cristo podem coincidir. Não podemos 'provar' esta declaração de modo racional. Podemos somente tentar demonstrar que não pode
coincidir em nenhum outro lugar e que, tendo em conta o que ambas representam,
só podem coincidir em Cristo, se é que de alguma maneira se encontram969
.
Para Panikkar, esse encontro do cristianismo e hinduísmo não se dá na
esfera doutrinal, senão em um nível profundo, que é denominado por ele: ôntico-
intencional970
. Ou seja, aprofundar o "nível existencial" que tem as duas religiões.
Para ele é necessário descobrir Cristo no hinduísmo e a atitude cristã não deve ser
de mando, senão de serviço. Cristo morreu e ressuscitou para todos os homens
antes e depois dele, sua redenção é universal e única. Além do mais é portador da
revelação definitiva. Para Panikkar, a revelação significa desvelamento,
967 ESCOBAR, J. D. Soriano, Revelación, cristianismo y religiones en la obra de Raimundo
Panikkar. p. 19. 968 PANIKKAR, Raimon. La vocación humana es fundamentalmente religiosa. Anthropos, pp. 53-
54 (1985): pp.16-25. p. 20. 969 Id., El Cristo desconocido del Hinduísmo, p. 33 970 Cf. Ibid., p. 31.
237
descobrimento da realidade, que nos permite descobrir o verdadeiro rosto de
Deus971
.
O 'terceiro Panikkar' é o Panikkar que está preocupado com a sociedade
ocidental e quer ajudar a encontrar uma solução para os seus grandes problemas:
falta de sentido, individualismo, intolerância, ausência de paz, etc. Este resume
sua vida filosófica sob dois prismas: “risco existencial” e “responsabilidade
intelectual”972
.
O risco existencial é o de uma vida que se enraíza em mais de uma cultura e
religião, de uma existência entregue à “ortopraxis” mais que uma “ortodoxia”.
Suas circunstancias pessoais (biológicas), o tem feito possível aceitar o "risco" de
uma conversão sem alienação, e repúdio, a síntese ou simbiose que ele pretende
realizar sem cair no sincretismo973
.
A responsabilidade intelectual não é mais leve do que o risco existencial.
Para ele consiste em ter que expressar suas experiências fundamentais de uma
maneira compreensível. Para isso, sua obra Ontonomia (nómos tou óntos) referido
ao nomos interno e constitutivo de cada coisa, contribui, acredita ele, ao mútuo
entendimento e fecundação dos distintos campos da atividade humana e a esfera
do ser, permitindo o crescimento sem romper a harmonia. Para Panikkar o
Símbolo974
, introduz as diferenças simbólicas e irredutíveis, como a ontologia e a
teologia. Esta diferença simboliza a estrutura de toda a realidade, simbólica dela
mesma que transcende a dicotomia entre sujeito-objeto, tanto no campo
epistêmico como no ontológico. Pistema975
, necessário para compreender o último
fenômeno humano, isto é o fato religioso. O diálogo dialógico976
indispensável
971 Cf. PANIKKAR, Raimon. El Cristo desconocido del Hinduísmo p. 79. 972 ESCOBAR, J. D. Soriano. Revelación, cristianismo y religiones en la obra de Raimundo
Panikkar. p. 24. 973 Cf. PANIKKAR, Raimon. Autobiografía intelectual, pp. 12-15. 974 Nosso autor nos diz: "O símbolo é tão somente quando simboliza e então é quando transcende o
hiato entre objeto-sujeito. O símbolo não se encontra nem ao lado do sujeito, nem ao lado do
objeto, senão na relação existente entre os dois. Reconhecer o ser como símbolo, abre, segundo
penso, um novo capítulo no encontro com as culturas e concepções do mundo". Cf. Ibid., p. 15. 975 Ou seja,“se a pura fenomenologia nos tem permitido compreender os mais díspares estados de
consciência usando uma apropriada epoché para compreender e alcançar o noema intelectual e
inteligível, o pistema necessita para compreender o último dos fenômenos humanos, isto é o fato
religioso [...]. Assim para compreender o que o homem é, necessito conhecer o que crê o homem de si mesmo; ou seja, necessito compreender até certo ponto suas próprias crenças". Ibid., p. 15. 976 Segundo Panikkar, “o diálogo dialogal é radicalmente diferente do diálogo dialético: não
pretende convencer o outro, ou seja, vencer dialeticamente o interlocutor [...] O diálogo dialogal,
pressupõe uma confiança recíproca em um aventura comum ao desconhecido [...], nos leva a
conhecer na medida que somos conhecidos e vice versa [...], desce ao diálogo com culturas
concretas [...] O diálogo dialogal implica portanto, todo nosso ser e requer tanto um coração puro
238
para atravessar o logos e assim alcançar o significado do mito. O caráter
tempiterno977
da realidade faz alusão ao aspecto temporal da mesma globalmente
considerada; este caráter é somente um aspecto parcial da natureza tempiterna de
cada coisa. A realidade não se esgota em sua temporalidade, não é agora temporal
e depois eterna, senão "tempiterna". Intuição "cosmoteândrica ou
teantropocentrismo" responde ao fato de que a realidade é não dual e cada coisa
tem "três" dimensões constituintes: a cósmica, a humana e a divina, ou em outras
palavras: a material (espaço-temporal), a intelectual (consciente e a mistérica)978
.
Em síntese, este terceiro Panikkar é um intelectual que pensa, medita,
pesquisa, fala e propõe um novo método de análise filosófico e teológico para um
Ocidente que tem perdido, segundo ele, seu conteúdo noético, ético e estético.
Segundo Escobar, todo o enfoque acerca da verdade e da realidade que
Panikkar nos apresenta nesta etapa, parte de uma hipótese prévia que aparece
como inquestionável: existe a plenitude, a regra ideal, a realidade última, ou seja,
existe quem finaliza nosso destino e caminho. E é onde surge a realidade religiosa
e especificamente Cristo como fundamento de todo seu pensamento. Esta
convicção tem implicações na maneira de conceber o ser humano, as sociedades, a
cultura, a política e a espiritualidade. Isto se vê refletido em sua preocupação pela
paz, e o diálogo intercultural, a resistência aos atropelos da modernidade e da
mística como experiência vital. Neste ponto está a conexão dos três Panikkar979
.
Sobre essa consideração dos três Panikkar, o mesmo falou:
Existe um processo de crescimento e desenvolvimento em todo intelectual, então eu não posso negar a priori que possa haver três Panikkar, existe, contudo, uma
unidade não-dualista em meu pensamento que poderia dar a impressão de
multiplicidade quando se trata somente do polifacetismo que tenho chamado relatividade (diferença do relativismo que repudio)
980.
Diferente de Escobar, Victorino Pérez reconhece que existe uma evidente
evolução em nosso autor, desde uma concepção tradicionalmente católica -
como uma mente aberta". Cf. PANIKKAR, Raimon. Paz e interculturalidad. Una reflexión
filosófica. Barcelona: Herder, 2006. pp. 52-57. 977Panikkar destaca que: “se experimenta a tempiternidade quando se vive a "vida eterna" nos
mesmos momentos temporais de nossa existência. Não é uma vida nem depois do tempo nem fora
do espaço, porém não se esgotam nela os parâmetros espaços-temporais. Quando estes momentos
temporais se revelam 'eternos' se começa a viver a vida eterna que é a vida ressuscitada". Cf. Id., De la mística, p. 254. 978 Cf. Id., Culto y secularización. Madrid: Marova, 1979. 979Cf. ESCOBAR, J. D. Soriano. Revelación, cristianismo y religiones en la obra de Raimundo
Panikkar. p. 27. 980 PANIKKAR, Raimon. Carta personal, 6. 1989. Apud. ESCOBAR, J. D. Soriano. Revelación,
cristianismo y religiones en la obra de Raimundo Panikkar. pp. 27-28.
239
inclusive apologética - com um pensamento neotomista, até a amplíssima
aproximação universal que o leva a um diálogo não somente inter-religioso, senão
intrarreligioso. Porém não parece tão clara essa separação, quiçá não tão radical a
diferença do jovem Panikkar e o maduro Panikkar como pode parecer. Apesar das
profundas mudanças que teve em sua vida, e da impressão que estas tiveram na
evolução de seu pensamento, cremos que existe uma continuidade e que
encontramos como um filum, um fio condutor constante dos primeiros escritos: a
pretensão de assumir tudo e levá-lo até sua última raiz, até sua plenitude em uma
constante busca pela harmonia981
.
É o que se confirma quando comparamos os primeiros escritos de Panikkar
com os mais novos, a sua evidente evolução, presente na busca da síntese e
harmonia total. E isto responde a uma experiência humana comum: somos homo
viator, somos seres em processo, como em alguma ocasião ele bem recordou. Ele
mesmo resume a evolução de sua concepção de Deus em três passos fundamentais
que se implicam um no outro: “Do Deus imóvel ao Deus relação”. É a evolução
de um Deus distinto do mundo, pessoal, infinito e eterno frente a um mundo finito
e criado982
e o Deus em íntima relação com o mundo da intuição
cosmoteândrica983
.
Sobre a primeira parte de sua vida temos um livro de caráter mais ou menos
autobiográfico, Cometas. Fragmentos de um diário espiritual do pós-guerra,
publicado anos depois, em 1972. Em uma Carta-Prefácio fala de sua atividade:
aulas, exercícios, negociações, etc, porém também fala sobre “orar, meditar, sofrer
e desfrutar”, participando “na teândrica situação de nossa existência”. Ali expõe
nosso autor como assume sua evolução: “Quem nega o passado torna mais
dependente dele que quem o considera como tal, sem ressentimentos nem
repressões” 984
.
Três décadas depois, Panikkar escreve em outro livro: “por pertencer à Opus
Dei a estrutura sacramental da Igreja, considerei minhas entrada na Obra como
uma iniciação. E toda iniciação é um ponto de partida, uma porta e não uma
981 PRIETO, Victorino Pérez. Más allá de la fragmentación de la teología, p. 66. 982 PANIKKAR, Raimon. El concepto de natureza. Análisis histórico y metafísico de un concepto,
CSIC, Madri, 1972, pp. 13-14. 983 Cf. Id., La intuição cosmoteândrica. 984 Id., Cometas, p. 18.
240
meta”985
.
Panikkar superou clara e expressamente o conceito de cristandade por outro,
a “cristofania”, que quer manifestar uma mutação na autocompreensão da
consciência e a identidade cristã para uma religiosidade mais pessoal: “Cristofania
é a forma de viver o cristianismo no terceiro milênio, superando o segundo
milênio, que foi de um cristianismo mais ou menos enxertado de cristandade”986
.
Encontramos diferenças importantes na maneira de Panikkar entender e
defender o velho dogma católico “Extra Ecclesiam nulla salus” e em sua visão
radicalmente ecumênica posterior, em que todas as religiões podem ser
verdadeiros caminhos de encontro salvífico com Deus. O artigo dos anos 50
afirma em suas primeiras páginas: “Aqui se afirma que a exclusividade moral,
senão ontológica... fora da Igreja não existe cultura, sociedade, mundo de
consistência durável”987
.
Anos depois, o faz já na perspectiva claramente ecumênica, falando da
salvação cristã mais além da perspectiva exclusivista e da perspectiva inclusiva.
Para a primeira, a salvação “é um privilégio”; para a segunda, “preserva a
identidade incluindo os outros que não são do próprio grupo: cristãos anônimos,
batismo de desejo”988
. E inclusive, mais além de certa ideia de Igreja que tenta
superar a tensão entre algo histórico concreto para chegar a uma concepção em
que a Igreja se pode encarnar em qualquer realidade cultural e inclusive
existencial: “Trata-se da tensão entre a Igreja considerada uma organização social
visível ou um corpo místico”989
.
A partir de sua concepção de fé e de pertença à Igreja que não quer ser
sectária, Panikkar confessa: “Minha fé em Cristo não é algo que me separa dos
outros homens e de todas as coisas, senão exatamente o contrário... Minha crença
no Cristo me faz mais homem, mais material e também mais divino”990
.
Em uma de suas entrevistas, manifesta que “a máxima formulação da
autoidentidade da Igreja... por definição, é o lugar de salvação: Onde há salvação,
985 MONCADA, Alberto. Historia oral del Opus Dei, p. 130. 986 PANIKKAR, Raimon. Reflexiones sobre religión y Europa, Alandar, Madrid, 1997, p. 14.
Aprofundaremos esse tema mais adiante. 987 Id., Humanismo e cruz, Rialp, Madrid, 1963, pp. 163-177. 988 Id., Salvation in Christ: Concreteness anda Universalitty, The Supername, Tantur, Jerusalem,
1972, pp. 6-7. 989 Ibid., p. 8. 990 Id., La vision cosmoteandrica: El sentido religioso emergente del tercer milênio, Qüestions de
vida cristiana, 156, 1990. pp. 79-80.
241
ali existe Igreja...”. Se bem, que isto “é no sentido simbólico que temos perdido,
não no conceitual”991
.
Encontramos também uma mudança quando ele fala de missões. Em um
texto publicado em Humanismo e cruz, em 1947992
, ele defendia a missão como
necessidade de expansão católica. E já em um trabalho publicado trinta anos
depois fala da missão em diálogo, um encontro em profundidade entre as
diferentes religiões993
.
Acreditamos que Panikkar tenha passado por um processo de grande
evolução em seu pensamento, a partir de sua constante busca espiritual. Ele
mesmo declara: “minha grande inspiração era e é abarcar, ou melhor, tornar a ser
(a viver) a realidade em toda a sua plenitude”994
. Encontramos em nosso autor
uma vocação que não é limitada apenas ao campo científico filosófico, mas por
aspirar a uma plenitude existencial apresenta-se, indubitavelmente, como uma
vocação religiosa. Seu itinerário religioso parte de uma herança ricamente cristã
que ele assumiu e no esforço por superar suas próprias contradições.
2. Buscar a unidade harmônica de toda a realidade
Panikkar já demonstrava, desde a sua formação religiosa e intelectual995
, seu
desejo de integração de toda a realidade. Em um de seus artigos, declara sobre a
filosofia que:
A filosofia é para mim sabedoria do amor, mais que amor a sabedoria... A filosofia é uma área especialíssima do amor... Não é simplesmente eros ou ágape ou bahkti
ou prema. É a sophia (jñana) contida no amor primordial... E a sabedoria emerge
quando o amor do conhecimento e o conhecimento do amor se unem996
.
Apoiando-se em textos escolásticos e místicos,
a essência da natureza é o amor. O amor é o vínculo unificador de todo o universo
e a força interna que o anima. O amor é juntamente com a inteligência o reflexo
mais perfeito da Divindade [...] O último fim de todos os seres é Deus, e de Ele têm recebido a força e o impulso para amá-lo... O fim de toda criatura é o amor, já que
amar é unir-se com o amado em união mais perfeita que o conhecimento997
.
Outro elemento importantíssimo para sua filosofia, apontada também no seu
itinerário vital e intelectual é a interculturalidade. Considerado por ele como um
991 FORCANO, Benjamin. Entrevista a Raimon Panikkar, Exodo, 65 (2002) pp.10-17. p. 13. 992 Cf. PANIKKAR, Raimon. Humanismo y cruz. Madrid: Rialp, 1963. pp. 153-162. 993 Cf. Id., La transformación de la misión cristiana en diálogo, Madrid, 1992. 994 Id., Autobiografia intelectual, p. 13.
242
profundo problema existencial. Segundo ele, o pluralismo é um problema humano
existencial. É uma questão prática que tem sua raiz na coexistência humana de
quem habita este mundo com todas as nossas diferenças peculiares próprias998
.
E mais ainda, a interculturalidade se vê como um fato cotidiano que traz
consigo um pressuposto e um exigência. Quando ao pressuposto, temos um
imperativo cultural: uma só cultura não é possível encontrar saída para a
complexidade do mundo contemporâneo999
. Sobre a exigência: é necessário o
reconhecimento do outro como um legítimo outro1000
.
O que é imprescindível, para Panikkar, é levar em conta as várias culturas
para chegar a um verdadeiro conhecimento da realidade. "As diferenças culturais
são, portanto, diferenças humanas e não podemos, por isso, ignorá-las nem
eliminá-las ao tratar dos problemas humanos. Assim, como se deve respeitar a
personalidade de cada um para que a rede de relações humanas não se rompa"1001
.
A interculturalidade é hoje muito mais do que uma discussão acadêmica: é
uma necessidade vital para a sobrevivência humana.
Possivelmente nenhuma cultura pode ensinar nada às demais, porém toda cultura
pode aprender muito com as outras. E me atreveria a dizer que somente sobreviveriam aquelas que sabem aprender com as outras, o qual não é sinônimo de
deixar-se ensinar, nem menos ainda colonizar. 'Aprender' quer dizer assimilar sem
perder a identidade1002
.
A interculturalidade é um caminho para conhecer-se a si mesmo. “É um
convite para descobrir o universal na profundidade do concreto”1003
.
Segundo Panikkar, a ciência e a filosofia não conseguem captar toda a
realidade, ou seja: “A realidade não é totalmente acessível ao pensar científico”. E
a teologia completa os pontos de vista da Ciência e a Filosofia com uma
995 Como já vimos em sua trajetória religiosa e intelectual, no primeiro capítulo desta IV parte de
nossa tese. 996 PANIKKAR, Raimon. Autobiografia intelectual, p. 12. 997 Id., El concepto de naturaleza. Análisis histórico y metafísico de un concepto. Madrid: CSIC,
1951. pp. 257 e 259. 998 Cf. Id., Sobre el diálogo intercultural. Salamanca: San Esteban, 1990. p. 20. 999 Cf. Ibid., p. 24. 1000 Cf. Id., Paz e interculturalidade, p. 147. 1001 Ibid., p. 16. 1002 Id., Pensamiento científico y pensamiento cristiano. Maliaño-Madrid: Sal Terrae-Fe y
secularidad, 1994. p. 30 1003 Id., Paz e interculturalidade, p. 91.
243
perspectiva diferente, com a vantagem de que pretende dar respostas à pergunta
final sobre o fim do homem1004
.
Em seu livro Humanismo e Cruz, dirá:
O que interessa não é a Filosofia, nem a Teologia, nem a Ciência enquanto tais.
Interessa a solução harmônica de todos os problemas da vida do homem sobre a
terra e sua complexidade apresentam... fundir a síntese pessoal [a unidade do fazer do homem] com a síntese objetiva [estabelecer a ordem cósmica]
1005.
Ainda buscando a plena comunhão com a Realidade, doutora-se em teologia
na Universidade Lateranense de Roma. Com a tese El Cristo desconocido del
Hinduismo, ele estuda o encontro entre o cristianismo e o hinduísmo, procurando
mostrar que existe uma presença viva de Cristo nesta tradição. Ele parte da ideia
comum da vinda de Cristo no fim dos tempos e que todas as religiões podem
convergir para Ele, “isto não deve obscurecer a verdade complementar e prévia de
que Cristo se acha não somente no fim, mas também no princípio. Não poderia ser
o ômega de todas as coisas, se não for também o alfa”1006
Porque “Cristo não é somente a meta ontológica do hinduísmo, senão
também sua verdadeira inspiração, e sua graça é a força motriz, embora oculta,
que o impulsiona para sua plena manifestação”1007
.
O encontro entre o cristianismo e o hinduísmo deverá acontecer a partir da
experiência religiosa, a partir da fé no único Deus manifestado de distintas
maneiras. Um encontro em um nível “ôntico-intencional”, baseado na aspiração
de oferecer a salvação que tem todas as religiões; todas apontam a mesma meta
ôntica: buscar a plenitude e perfeição do ser humano: “união com Cristo”, diria
um cristão, “união total com o Absoluto”, diria um hinduísta, “isolamento puro”,
diria um yoga, ou “nirvana, diria um budista”1008
.
Este estudo não é, portanto, uma cristologia hindu, senão um livro que
pretende apresentar “um Cristo com sentido para o hinduísmo”. A cristologia de
Panikkar está presente em sua obra muito posterior La plenitud del hombre. Una
cristofanía1009
.
1004 Cf. PANIKKAR, Raimon. La Trinidad. Una experiencia humana primordial. Siruela, Madrid, 1998. 1005 Id., Humanismo e cruz, p. 25. 1006 Id., El Cristo desconocido del hinduismo, p. 15. 1007 Ibid., p. 16. 1008 Cf. PRIETO, Victorino Pérez. Más allá de la fragmentación de la teología, p. 110. 1009 Aprofundaremos este tema mais adiante.
244
A profundidade do pensamento de Panikkar nasce não apenas de sua
capacidade intelectual e espiritual, mas também da interculturalidade e do mundo
inter-religioso em que moveu toda sua vida, na busca por “conseguir uma visão
cristã do mundo, alcançar uma concepção integral das coisas, ter uma visão
cristocêntrica do universo”.
Ele testemunha:
Desde meus primeiros anos de mocidade... tenho tido não só uma preocupação
religiosa constante, senão um ideal humano, intelectual, único: conseguir uma visão cristã do mundo, alcançar uma concepção integral das coisas, ter uma visão
cristocêntrica do universo... era uma preocupação de estar na verdade, santificar-
me na verdade... Resumindo e compreendendo em toda a plenitude de seu sentido, chamaria isto de minha vocação teológica... Possivelmente minhas expressões
sejam chocantes, inoportunas e mesmo inexatas ou inclusive falsas... porém o que
vejo, o que sinto, o que quero dizer, expressar, significar... é o que visualizo das
almas conscientes do mistério na sinfonia do universo, no caminho do Reino de Deus para a plenitude... Minha visão mística é um anel invisível que reforçam,
corrigindo inclusive, outros que vêm depois e cuja missão será coram facie
Ecclesiae1010
.
O pensamento de Panikkar quer harmonizar o logos e o pneuma, o racional
e o simbólico, teologia, filosofia, ciência e mística. Para ele deveria voltar a
integrar-se no ocidente, de maneira complementar, a religião, a filosofia e a
teologia. Segundo V. Pérez Prieto,
é a possibilidade de restaurar o conceito de filosofia e da teologia, mas sem negar a
legitimidade da existência de uma ciência racional puramente filosófica. Trata-se de voltar a um conhecimento e uma sabedoria integral da realidade, uma visão
completa dos problemas últimos de uma resposta espiritual do ser humano ao
problema da existência. Por isso, se trata de um pensamento de claro caráter
sapiencial, que requer não só agilidade, senão também virtude moral e reflexiva1011
.
Ou seja, filosofia e teologia devem caminhar juntas, em união inseparável,
sendo esta não-dualista, advaita.
O pressuposto desta síntese consiste, evidentemente, em mostrar que o Deus da
razão não é outro que o Deus da religião... Não poder haver dois 'Deuses', o da fé e
o da razão... Paulatinamente, a teologia vai convertendo em filosofia e Deus vai
sendo absorvido na ontologia: o verdadeiro teólogo é o filósofo e o contemplativo... Toda uma espiritualidade cristã, hindu e muçulmana se
fundamenta nesta premissa: o conhecimento da verdade significa plenitude
religiosa... É a função salvífica do conhecimento, porque descobre a verdade, alcançada a Realidade: Gnosis, jñâna, alhikmat, salvar
1012.
Esse pensamento começa a ficar claro quando, ainda preocupado pelo todo,
por uma harmonia entre as diversas realidades particulares e as distintas
1010 PANIKKAR, Raimon. Cometas, pp. 96,97 e 99. 1011 PRIETO, Victorino Pérez. Más allá de la fragmentación de la teología, p. 177. 1012 PANIKKAR, El silencio del Buddha, pp. 201-203.
245
concepções culturais do ocidente moderno e do oriente, na autêntica "visão do
todo", ele nos fala sobre o particularismo e o universalismo.
Não podemos viver por mais tempo em compartimentos estanques e
narcisisticamente satisfeitos no isolamento que deixam de ser esplêndidos para converter-se em miseráveis... Trata-se da interconexão de tudo com tudo, como
destaca praticamente todas as místicas1013
.
Não se pode chegar a alcançar a realidade total se não é desde o particular.
Não se pode ser verdadeiramente universal sem ser radicalmente particular. O
particular nos faz concretos, nos enraíza em uma cultura e em um lugar concreto
para não viver isolados. Só se pode ser verdadeiramente universal desde a própria
singularidade maduramente assumida: para ser genuinamente universal é
necessário ser radicalmente concreto1014
.
Seu pensamento está em consonância com o pensamento hindu, ele insiste
na relatividade de todas as partes, frente ao absolutismo predominante de uma
delas. “O dilema não é o relativismo ou absolutismo, senão o reconhecimento da
relatividade radical de toda a Realidade”1015
.
Panikkar insiste no que chama de relatividade radical, afirmando que não é
o relativismo. Este conceito, que tem um equivalente no hinduísmo
pratiyasamutpãda, deve aplicar-se à nossa relação humana, à nossa relação com o
mundo, à relação com Deus, com esse mundo, e inclusive à mesma realidade
divina:
Deus é relatividade radical ou reciprocidade total. Com isso se quer destacar o
caráter de relação constitutiva de tudo com tudo, algo muito distinto de um puro e simples relativismo, que defendo que não existem afirmações válidas negando sua
mesma pretensão de validade. O relativismo é pessimista e destrói qualquer critério
de verdade, porém sem absolutizá-los1016
.
Panikkar converte esta relatividade radical, reciprocidade total ou relação
em algo constitutivo de toda realidade, incluindo a mesma Divindade. Este é o
fundamento de sua concepção da Trindade, que quer ser profundamente cristã.
A relatividade radical nos diz que as coisas somente podem ser
constitutivamente relações mutuas se existe uma relação sempre mais profunda
que permita transcender a dualidade.
Um simples olhar para o mundo nos faz descobrir que a relação entre os seres não é
1013 PANIKKAR, Raimon. Mistica comparada?, em VV AA, La mistica en el siglo XXI. Trota:
Madrid, 2002, p. 228. 1014 Cf. PRIETO, Victorino Pérez. Más allá de la fragmentação da teologia, p. 183 1015 PANIKKAR, Raimon. La Trindad, p. 18 1016 Id., El silencio del Buddha, p. 234.
246
poliédrica, senão radical, de tal maneira que nenhum 'ser' é totalmente explicado
por um número limitado de relação. Sempre está em 'espaço aberto' acima de
qualquer dualidade. A relatividade radical é a abertura constitutiva de todo o
universo em todas as suas relações1017
.
O que nos leva a compreender a razão pela qual Panikkar apresenta o
neologismo, a intuição cosmoteândrica, que expressa aquela “visão da realidade
que compreende o divino, o humano e o cósmico, como três constitutivos da
realidade sem subordinação alguma entre eles”1018
. A Realidade é trinitária e,
portanto, tem uma dimensão divina, uma dimensão humana e uma dimensão
material. Ele ilustra sua visão cosmoteândrica com a mandala ou círculo:
Possivelmente uma mandala - o círculo - ajudaria a simbolizar esta intuição.
Não existe círculo sem um centro e sem uma circunferência. Estas três coisas não
são as mesmas e, apesar disso, não são de modo algum separáveis. A
circunferência não é o centro, porém sem centro não haveria circunferência. O
círculo, invisível em si, não é nem a circunferência nem o ponto central, e, todavia
é circunscrito por uma e implica o outro. O centro não depende nem do círculo
nem da circunferência, já que é um ponto sem dimensões, e, não obstante, não
seria o centro - não seria absolutamente nada neste contexto- sem os outros. O
círculo, visível somente desde a circunferência, é matéria, energia, é o mundo. E
isso é assim porque a circunferência, o homem, a consciência, o envolvem. E estas
duas são o que são, porque existe um Deus. Que podemos dizer de uma mandala
completa? Temos que distinguir o divino, o humano e o cósmico: o centro não
tem que confundi-lo com a circunferência, e esta não devemos mesclar com o
círculo, porém não podemos permitir separá-los. Finalmente, depois, a
circunferência é o centro “alargado”, o círculo é a circunferência “recheada”, e o
centro mesmo atua como verdadeira “semente” dos outros dois. Existe uma
circuminsessio, uma perichôrêsis dos três1019
.
Esta mandala nos ajuda a entender porque não existem três 'realidades':
Deus, o Homem1020
e o Mundo; porém tampouco existe uma, ou Deus, ou Homem
1017 PANIKKAR, El silencio del Buddha, p. 238. 1018 Id., El mundanal silencio. Barcelona: Martínez Roca, 1999. p. 26. 1019 Cf. Id., La intuición cosmoteándrica, p. 98. 1020 Sobre o uso do termo homem em seus escritos ele vai nos dizer, que: "Em meus escritos,
quanto escrevo 'homem' me refiro ao purusa, anthrôpos, homo, Mensch e não permito que o varão
monopolize a palavra. Sou muito sensível a origem depreciativa e até o sentido de denegrir, às
vezes, as palavra usuais para designar as "women", "mulieres", etc. A maioria das línguas,
diferente do inglês, não confundem o gênero com o sexo. Utilizar a diferença sexual como o mais
importante no homem trai uma ideologia particular como a que trairia se disséssemos "ricos e
247
ou Mundo. A realidade é cosmoteândrica.
Suas 'realidades' podem diferenciar-se, porém não se separar. Não existe
nem monismo, nem dualismo, trata-se de uma relação a-dual (advaita). Isto é o
característico do princípio cosmoteândrico.
Não existem três realidades: Deus, o Homem e o Mundo; porém tampouco existe
uma, ou Deus, ou Homem ou Mundo. A realidade, para fazer avançar a história,
para continuar a criação... Existe um dinamismo e um crescimento em que os cristãos chamam o Corpo místico de Cristo e os budistas dharamakãya. Deus,
Homem e Mundo estão comprometidos em uma única aventura e este
compromisso constitui a verdadeira Realidade1021
.
O que esta intuição sublinha é que as três dimensões da realidade não são,
nem três modos de uma realidade monolítica indiferenciada, nem três elementos
de um sistema pluralista. Existe uma relação, porém intrinsecamente tríplice, que
manifesta a constituição última da realidade [...] A visão cosmoteândrica supera a
dialética, porque descobre a estrutura trinitária de tudo, e essa terceira dimensão, o
divino, não é uma "terceira" oposição, senão precisamente o mysterium
coniunctions1022
.
Para Panikkar, o melhor termo para compreender a realidade
cosmoteândrica é a Trindade Radical. “A noção de Trindade Radical é fruto do
que temos chamado uma experiência teoantropocósmica, que por razões de
respeito à tradição e por ser menos cacofânico temos denominado
cosmoteândrica”1023
.
E ainda que: “a Trindade não é um monopólio cristão: praticamente todas as
religiões têm uma estrutura trinitária” 1024
e “a Trindade não é um monopólio de
pobres", "brancos e negros" para abarcar a raça humana. Não devemos fragmentar nossa personalidade desnecessariamente. Tampouco convém utilizar expressões que nos convertem em
simples membros de uma classe, como "humanos" e "ser humano", eliminando com isso nossa
dignidade única e não classificável. Em rigor, nem homem nem Deus teriam que ser do gênero
masculino, porém permanece o fato de que este último tenha monopolizado tanto o humano como
o divino. A palavra "humanidade" nos resulta demais abstrata, e a expressão "gênero humano"
implica um ideologia darwinista (como se o homem fosse uma espécie) que nos parece inaceitável.
Dizer "homem/mulher" ou "ele/ela" não seria mais que acentuar a divisão na cultura moderna. Por
tudo isso, e na espera de um utrum, de um novo gênero que inclua o masculino e o feminino sem
ser neutro (neutrum: nem um nem outro), uso a palavra "homem" para referir-me ao anthrôpos. A
palavra homem não é um monopólio de varão; acaso deveria ser do gênero epiceno (επικοινός)".
Id., El silencio del Buddha, 24. Procurando ser fiel ao autor, permitiremos no texto o uso desse
termo, quando por ele utilizado. 1021 PANIKKAR, Raimon. La Trindad, p. 90. 1022 Cf. Id., La intuición cosmoteándrica, p. 82. 1023 Id., La Trindad, p. 90. 1024 Panikkar afirma que a divisão da realidade em três (sejam espaciais, temporais, metafísicos ou
cosmológicos) são comum a todas as culturas humanas. Trata-se de um invariante cultural. Id., The
Cosmoteandric Experience. Maryknoll, NY: Orbis, 1993. p. 55.
248
Deus. É a última estrutura da realidade. A Trindade é essa visão que considera a
realidade constitutivamente relacional entre três polos distintos, porém
inseparáveis”1025
.
A interdependência entre Deus-Homem-Mundo implica em si mesma a aventura
trinitária que não se trata de três aventuras individuais, a de Deus, a do Homem e a
do Mundo. A realidade última é trinitária: ela é divina, humana e cósmica [...] Existem três dimensões do real: uma dimensão de infinito e de liberdade que
chamamos divina; uma dimensão de consciência, que chamamos humana; e uma
dimensão corporal ou material, que chamamos o cosmos. Todos nós participamos dessa aventura da realidade
1026.
Sua visão da realidade não se opõe à sua fé cristã:
Se a mensagem cristã significa algo, é esta experiência da realidade
cosmoteândrica de todo ser, da qual Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem é o paradigma. Em Cristo não está a Matéria por sua própria conta, o
Homem por sua parte e Deus por outra; nenhuma destas dimensões intrinsecamente
unidas leva vantagem sobre a outra, de modo que não tenha sentido afirmar que
Cristo é mais divino que humano, mais mundano que celeste, ou vice versa. O véu da separação foi rasgado e a integração da realidade começa com a redenção do
homem1027
.
E ainda:
Na intuição trinitária convergem as visões mais profundas das religiões transcendendo o acervo particular de uma cultura determinada. Na experiência
trinitária se encontram em profundidade e mútua fecundação as diferentes atitudes
espirituais, sem forçar nem violentar as particularidades fundamentais das distintas tradições religiosas
1028.
Nas possibilidades trinitárias das religiões, na procura por realizar a síntese
destas atitudes espirituais, é onde o diálogo das religiões encontra sua mais
profunda inspiração e sua mais segura esperança. E como resultado da mútua
fecundação das religiões e das experiências que as sustentam, teremos na
consciência religiosa da humanidade uma maior integração da experiência do
mistério e da vida da Trindade, e com isso uma reintegração do Homem na
realização do papel que lhe corresponde na aventura da Realidade1029
.
Panikkar faz uso de outro conceito o pars pro toto, sobretudo para
fundamentar um autêntico diálogo intra-religioso. Significa que a visão que eu
tenho do todo da realidade (totum), a realizo, necessária e legitimamente em um
1025 PANIKKAR, Raimon. El silencio del Buddha, Ecosofía. Para una espiritualidad de la tierra.
Madrid: San Pablo, 1994. p. 28. 1026 Id., Entre Dieu et le Cosmos, p. 135. 1027 Id., Culto y secularización, p. 94. 1028 Id., La Trindad, p. 66. 1029 Cf. Ibid., p. 76.
249
tempo, através de minha particular janela cultural e religiosa (pars)1030
.
Temos que ser conscientes de que vemos o totum per partem, o todo através da parte. Temos que conceder ao outro, o não cristão, por exemplo, ter uma
experiência similar e que diga que o cristão toma a pars pro toto, já desde fora não
só vê a parte e não o totum; a janela, não é o panorama1031
.
O efeito pars pro toto se relaciona de maneira direta com o que ele chama
de harmonia invisível, harmonia que deve existir entre todas as religiões e
culturas, a mesma que existe em toda a realidade.
A harmonia a que me refiro se manifesta no modo criativo e espontâneo com que
trato uma religião particular, porque realmente me encontro como em minha casa e, desta forma, sou capaz de simplificar e de relacionar as coisas dispares, ou unificar
práticas. Estou falando de certas identificações com essa religião, que não excluem,
por suposto, opiniões críticas nem juízos rigorosos, porém que em qualquer caso, sempre estão formulados desde dentro
1032.
Ou seja, “quando nossa relação com uma corrente religiosa é neste nível,
devemos falar ex abundantia cordis et mentis. Qualquer diálogo religioso
autêntico dissipa as péssimas interpretações e proporciona outras novas”1033
.
2.1 Toda realidade é cosmoteândrica
Para Panikkar toda a realidade é cosmoteândrica, e se o ser humano faz
parte dessa realidade, ele é uma realidade cosmoteândrica. O princípio
cosmoteândrico nos ajuda a reconhecer que o divino, o humano e o terreno são as
três dimensões irredutíveis que constituem o real1034
. A visão cosmoteândrica
supera a dialética porque descobre a estrutura trinitária de tudo:
Não existem três realidades: Deus, o Homem e o Mundo; porém tampouco existe
uma, ou Deus, ou Homem ou Mundo. A realidade é cosmoteândrica. É nossa forma
de olhar para o que faz com que a realidade nos pareça às vezes sob um aspecto e às vezes sob outro. Deus, Homem e Mundo estão por assim dizer, em uma íntima e
constitutiva colaboração para construir a realidade, para fazer avançar a história,
para continuar a criação. Não se trata de que o Homem esteja trabalhando
duramente aqui embaixo, enquanto Deus o supervisiona das alturas com vista a recompensá-lo ou a castigá-lo e que o Mundo permaneça impassível às
elucubrações da mente humana1035
.
A intuição cosmoteândrica não é uma ideia ou um exercício intelectual, é
1030 Cf. PANIKKAR, Raimon. Paz e interculturalidade, p. 134. 1031 Ibid., pp. 134-135. 1032 Ibid., p. 133. 1033 Ibid. 1034 Id., La intuición cosmoteândrica, p. 82. 1035 Id., La Trindad, p. 93.
250
uma experiência (uma experiência mística). Não é uma compreensão analítica. É
uma intuição que aparece na consciência humana, uma vez tenha vislumbrado a
relação intrínseca entre o cognoscente, conhecido e conhecimento. Em tal
dinâmica intervém os “três olhos”, o da carne, o do intelecto e o da fé1036
.
Os três olhos nos permitem “ver” como a realidade mostra sua tríplice
dimensão: metafísica (transcendente ou apofática), noética (consciente ou
pensante) e empírica (físico ou material). “A intuição cosmoteândrica não é uma
divisão tripartida entre os seres, senão um olhar para o centro tridimensional de
tudo o que é, enquanto é”1037
.
Em outras palavras, o divino, o humano e o cósmico são três dimensões de
toda a realidade; Deus, Homem e Mundo são suas “partes” constitutivas.
Descreveremos, brevemente, estas três dimensões:
a) dimensão 'divina' da Realidade: Todo ser possui uma dimensão abissal, tanto
transcendente como imanente. Todo ser transcende tudo, inclusive, mais
precisamente, a 'si mesmo', na verdade, não tem limites. [...] Esta dimensão
divina não é uma superestrutura sobreposta aos seres nem um mero fundamento
extrínseco a eles, senão o princípio constitutivo de todos os seres1038
. “Deus não é
somente o Deus do Homem, senão também o Deus do Mundo”1039
. Deus permite
que o Mundo e o Homem sejam por Ele transformados, restaurados em sua
essência divina.
b) dimensão 'humana' da Realidade é a consciência presente. Está relacionado
com o conhecimento humano. O campo inteiro da realidade vive humanizado
nele. O caráter transparente da consciência pertence não só ao homem que
conhece, senão também ao objeto conhecido. Isto pode ser chamado de uma
1036 Panikkar afirmou que: “[...] embora em rigor os três olhos não possam separar-se. O que
ocorre é que se dá prioridade a experiência sensível, a intelectual ou a espiritual e se interpela a
realidade sob o prisma de um olho, com atrofia dos outros dois". Id., De la mística, p.168. E na
mesma obra diz "A euforia moderna do racionalismo (não digo da razão) tem provocado a atrofia
do terceiro olho, que é o da fé (quando esta não se tem reduzido à crença). "Fides enim est vita
animae"( "A fé, pois, é a vida da alma") , escreveu Tomás de Aquino. É esta fé que nos permite
gozar a Vida - "vita [...] id in quo maxime delectatur"("da vida [...] aquilo em que temos o máximo
gozo"), diz o mesmo mestre". Ibid., La Trindad, p. 24. 1037 Id., La nueva inocencia. Pamplona: Verbo Divino, 1999. p. 55. Panikkar em algumas ocasiões
recorda São Victor, fazendo menção dos três olhos que participam nas três formas de conhecimento: o olho da carne, o olho da mente e o olho do espírito (carnis, mentis et fidei). Cf.,
Id., De la mística, p. 183. Ricardo de São Victor e Juan de Findenza (conhecido como são
Boaventura, franciscanos do século XIII) falaram pela primeira vez dos "três olhos" como forma
de ter acesso ao conhecimento. 1038 PANIKKAR, Raimon. La intuición cosmoteándrica, p. 82. 1039 Ibid., p. 97.
251
dimensão da consciência, porém pode ser também dimensão humana, pois a
consciência se manifesta no homem e através dele1040
.
c) dimensão 'material' da Realidade. Todo ser se encontra no Mundo e
compartilha de sua secularidade. Nada existe que, ao entrar na consciência
humana, não entre ao mesmo tempo em relação com o Mundo. E esta relação não
é meramente externa e acidental: qualquer coisa existente tem uma relação
constitutiva com o Mundo de matéria/energia e do espaço/tempo1041
. A grandeza e
a miséria do Homem também são a grandeza e a miséria do Mundo. Assim como
Deus e o Homem guardam uma relação de interdependência, também Deus e o
Mundo1042
.
Para Panikkar,
a intuição cosmoteândrica não se contenta em detectar a 'presença' trinitária na
'criação' e a 'imagem' no homem, senão que considera a Realidade em sua totalidade como sendo a Trindade completa que consta de uma dimensão divina,
outra humana e outra cósmica1043
.
As dimensões da Realidade: Deus, Homem e Mundo coexistem estão inter-
relacionados e podem ser hierarquicamente integrados, no entanto não podem ser
isolados, isto os aniquilaria1044
. De acordo com o próprio Panikkar, sua intuição
cosmoteândrica “representa a consciência religiosa que está aflorando em nosso
tempo”1045
. Pois se percebem sinais de ressurreição na raiz da sensibilidade
ecológica, nela existe uma veia mística; na imagem que o homem projeta de si
mesmo existe uma necessidade de infinito. E no mesmo coração do divino existe
um impulso para o tempo, o espaço e o homem.
2.2 O ser humano, uma realidade cosmoteândrica
O ser humano é uma realidade cosmoteândrica por participar de sua
natureza, enquanto ser da realidade: a) possui uma dimensão abissal, talvez
transcendente e imanente. Ao ter uma dimensão divina, participa de uma infinita
inesgotabilidade, de caráter aberto, é um mistério, é liberdade. b) possui uma
1040 PANIKKAR, Raimon. La intuición cosmoteándrica, p. 83. 1041 Ibid., p. 85. 1042 Cf. Ibid., p. 95. 1043 Id., La Trindad, p. 14. 1044 Cf. Id., Op. cit., p. 98. 1045 Id., La Trindad, p. 99.
252
dimensão da consciência, propriamente “humana”, aquela que permite estar no
Mundo, compartilhar sua secularidade, mover-se nas coordenadas do espaço e
tempo, não de forma acidental, senão de forma constitutiva. Por isso, o homem é
espírito, alma e corpo. As três dimensões do ser humano (realidade ad intra) não
são outra coisa que o reflexo da perichôrêsis entre Deus-Homem-Mundo
(realidade ad extra)1046
.
A integração da aventura trinitária a toda a Realidade não diminui nem a transcendência divina nem a diferença entre Deus e o Mundo, de maneira análoga a
unidade trinitária não elimina a diferença entre as pessoas divinas1047
.
Panikkar se utiliza do termo clássico 'Teandrismo' para designar a unidade
íntima e plena entre o divino e o humano que se realiza em Cristo. Este termo
indica os dois elementos de toda espiritualidade: o elemento humano que serve de
ponto de partida e o que o vivifica desde o seu interior, ou seja, sua consequência
transcendente. Sendo esta palavra cristã, ela não é exclusiva desta sua tradição.
Pelo contrário “está presente como o fim para o que tende a consciência religiosa
da humanidade e também como a interpretação mais adequada da experiência
mística”1048
.
O ser do Homem não pode ser reduzido a uma 'pura natureza' teórica. Sua
vocação desde o princípio é ser Filho de Deus, uno com o Filho único. Considerar
o Homem como um simples 'animal racional' é negar-lhe o direito a seu
verdadeiro fim e privá-lo da esperança de alcançá-lo, pois, “Deus é o fim, o limite
do Homem”1049
.
Na esfera antropológica o significado da espiritualidade teândrica é claro. Representa uma síntese harmoniosa, na maior medida possível entre as tensões da
vida: entre o corpo e a alma, o espírito e a matéria, o masculino e o feminino, a
ação e a contemplação, o sagrado e o profano, o vertical e o horizontal1050
.
Ou seja,
o ser humano experimenta a profundidade de seu próprio ser, descobre e sente que
em seu ser existe algo mais, um plus que está por construir, que pertence a seu ser privado e ao mesmo tempo o transcende. Descobre outra dimensão que não pode
manipular. Sempre existe algo mais do que os olhos podem ver, do que a mente
pode encontrar ou do que pode comover ao coração. Este mais - mas do que pode perceber, entender e sentir - representa a dimensão divina
1051.
1046 Cf. PANIKKAR, Raimon. La intuición cosmoteándrica, pp. 82-85. 1047 Id., La Trindad, p. 90. 1048 Ibid., p. 91. 1049 Ibid., p. 92. 1050 Ibid., p. 91. 1051 Ibid., p. 96.
253
Recordemos a mandala do círculo do qual aproveita Panikkar para ilustrar o
'lugar' que ocupa o Homem dentro da trindade radical e, o mais importante, a
reciprocidade que existem entre elas.
Esta mandala nos ajuda a visualizar o centro, que não é sempre fácil. Este centro,
imanente e transcendente, às vezes, é o verdadeiro núcleo das três dimensões
constitutivas da realidade, cada um das quais está presente e atua no processo de todo o real: o Kosmos (ou matéria e energia), o anthrôpos (ou consciência e
vontade), o etheos (ou liberdade, indeterminação absoluta) e o amor, se me permite
usar esta palavra de que se tem abusado tanto1052
.
Panikkar persiste em dizer que o “homem não é um ser isolado e seu
vínculo com o corporal e o divino lhe é constitutivo”. Afirma ainda que “não
existe Homem sem Mundo e sem Deus, nem Deus sem Mundo, nem Mundo sem
Deus e sem Homem”1053
. Mesmo que se possa pensá-los separadamente, será uma
abstração da realidade, não será real. Segundo ele, o ser humano é o mediador
entre o céu e a terra.
O homem é um ser entre o céu e a terra. Com os pés toca a terra, porém ao dar-se
conta deste toque, observa que tem uma cabeça que pode tocar também o céu com
sua visão. Ao dar-se conta de que toca a terra percebe também que toca o céu com
um toque distinto do sensível. O que sejam o céu e a terra não sabe, porém é
consciente de sua posição de mediador1054
.
Ele recupera a natureza mediadora do ser humano, “aquilo que nós somos,
nosso ser, é precisamente mediação”1055
. Esta ideia permite estabelecer outra de
maior profundidade que aprofunda suas raízes no cristianismo primitivo: o ser
humano é um sacerdote cósmico. “O homem é um sacerdote do universo, é um
mediador entre o céu e a terra”1056
.
Como já tínhamos dito a relação Deus-Homem-Mundo é a-dual. A ruptura
da harmonia entre Deus-Homem-Mundo não é somente de tipo epistemológico, é
existencial: Quando o ser humano rompe sua relação com a terra, querendo bastar-
se a si mesmo, torna-se um monstro; querendo dominá-la, se destrói a si mesmo.
Quando rompe sua relação com os céus, querendo conduzir-se a si mesmo, se
1052 PANIKKAR, Raimon. Elogio de la sencillez. Navarra: Verbo Divino, 2000. p. 166. 1053 Id., De la mistica, pp. 264-265. 1054 Ibid., p. 86. 1055 Id., Experiencia de Dios. Madrid: PPC, 1994. p. 36. 1056 Id., Der Mensch ein trinitarisches Mysterium. En Die Verantwortung des Menschen für eine
bewohnbare Welt im Christentum, Hinduismus und Buddhismus escrito por Panikkar y W. Strolz,
pp. 147-190. Freiburg: Herder, 1985. p. 177. Apud. RUEDA, José Luis Meza. La antropología de
Raimon Panikkar. p. 106.
254
converte em uma automotriz que destrói os demais1057
. Nesse sentido, o homem, o
divino e o cosmos coexistem, permanecem inter-relacionados e podem estar
constituídos ou coordenados hierarquicamente1058
.
O ser humano é um nó de relações que se estende até os limites alcançáveis
de sua alma. Para a tradição indiana, um santo é um mahãtma, uma alma grande;
para as tradições abraãmicas é aquele que tem conseguido dilatar a própria alma e
amar o próximo como a si mesmo; tudo está em relação com tudo, proclamam
tanto o budismo como o hinduísmo e também o cristianismo quando fala do corpo
místico1059
.
Tudo está relacionado com o todo, cada parte deste todo é diferente. Cada
um é um nó único em rede de relações que constitui a realidade. Quando este nó
rompe os fios que os une a outros nós, não permitindo a liberdade constitutiva da
inter-in-dependência entre os nós, em última instância, com a realidade, nasce o
individualismo que perturba a harmonia e leva a morte da pessoa fazendo-a perder
sua identidade que é somente relacional1060
.
Panikkar insiste:
Não só na natureza humana forma uma única rede, também a realidade constitui
um todo relacional de elementos relativamente interdependentes que encontramos
descritos com a variedade de expressões, desde o sarvam sarvatmakam (tudo
relacionado com tudo) do trika do sivaismo do Kashmir a perichôrêsis (interpretação dinâmica da realidade) patrística, ao budista pratityasamutpada
(interdependência de tudo), ou ao quodlibet in quolibet (tudo em tudo) do Cusano,
etc,.1061
”
2.3 No ser humano, tudo é totalidade
O ser humano como realidade teantropocósmica é corpo, é alma e é espírito,
em uma unidade irredutível, diferenciada e inseparável. Portanto, não tem um
corpo, uma alma e um espírito como se tratasse de três partes justapostas e
organizadas hierarquicamente.
O anthrôpos do qual falamos não é somente o ponto de encontro entre o divino e o
cósmico, é ao mesmo tempo essa unidade complexa que consiste em corpo, alma e
espírito, que abarcam o universo inteiro. Sem estes três elementos não existe o
1057 PANIKKAR, Raimon. Paz y desarme cultural. Santander: Sal Terrae, 1993. p. 49. 1058 Cf. Id., La nueva inocencia, pp. 51-52. 1059 Cf. Id., Paz y interculturalidad, p. 15. 1060 Cf. Ibid., p. 16. 1061 Cf. Ibid., p. 72.
255
homem1062
.
Ou seja, tudo é uma totalidade. Recuperar a consciência desta unidade é
essencial. Esta recuperação não pode fazer-se por adição, nem por eleição
facultativa, senão que deve sair de uma nova consciência. Panikkar relaciona esta
nova consciência à mística, como forma de integrar o ser humano.
[A mística] é aquela experiência que integra o corpo e o amor sensível na vida plena do homem, sem perder por isso o equilíbrio hierárquico entre as três
dimensões antropológicas: corpo, alma e espírito. Entendemos por hierarquia (ιερà
αρχή, hiera archê), a "ordem sacra" que mantém a harmonia da realidade e no domínio de uma parte sobre a outra
1063.
Estes elementos não se veem em 'partes' senão como dimensões
constitutivas da natureza humana. O mistério do ser humano se revela através do
mistério de Cristo e em Cristo também se manifesta plenamente a trindade radical.
Nele se apresenta a unidade não-dualista entre o divino, o humano e o cósmico (o
mistério teândrico da teologia oriental, ou melhor, cosmoteândrico). Daí o ser
humano “é também uma unidade não-dualista entre corpo e espírito: nele se dá
também, portanto, a corporeidade própria das coisas materiais. Os "três" (divino,
humano e material) vão juntos sem confusão nem separação”1064
.
As tensões se resolvem no humanum como um símbolo de perfeição que
assume o que realmente somos: seres terrenais e espirituais.
O humanum são é somente invisível, senão também não realizado aqui na terra.
Necessita uma existência transcendente, seja no tempo (futuro), no espaço (paraíso)
ou ambas coisas e mais além (nirvana, Brahman, Deus). A realização do humanum é uma tarefa escatológica. Tem que descobrir, seja na esperança ou com uma
intuição (anubhava) que transcende tempo e espaço, comprovando se 'já' está ali" 1065
.
A este respeito, Panikkar reconhece que o modelo do humanum para os
cristãos é Cristo, Deus Homem verdadeiro, que ilumina o homem para ser o que
deve ser1066
. O humanum revela a imanência e a transcendência do homem. Ele
dirá que
somos seres limitados - e todavia, seres com um inato desejo de elevarmos sempre
mais alto, mais além dos confins extremos, como está magistralmente representado
em algumas cartografias antigas nas quais o homem aparece com a metade de seu corpo para descobrir que existe mais além do seu mundo e quer ir plus ultra
1067.
1062 PANIKKAR, Raimon. El mundanal silencio, p. 71. 1063 Id., De la mística. p.114. 1064 Id., La plenitud del hombre, p. 222. 1065 Id., Elogio de la sencillez, p. 203. 1066 Cf. Id., Raimon. Humanismo y cruz, p. 206. 1067 Id., Paz e interculturalidad, p. 28.
256
No entanto, se retomamos o próprio da in-finitude do homem, estamos
admitindo que “existe algo nele que deve evoluir e afirmar também a capacidade
de levar a cabo tal evolução. A abertura da fé é a capacidade do homem de
avançar para sua plenitude”1068
.
Pela fé o homem reconhece que não é perfeito, que tem a necessidade de ser
completo; todavia, tem a necessidade de uma ajuda para alcançar a meta.
Graças à fé o homem descobre sua indigência [...] A fé expressa também a grandeza do homem e sua suprema dignidade, porque sua abertura existencial não
é somente sinal de uma necessidade, senão que indica ao mesmo tempo uma
iluminada capacidade de crescimento1069
.
A fé não se desliga da esperança e do amor que o levam a ser mais e a fazer
mais em um “aqui e agora” não se esquecendo de “um além e um depois”. Desta
forma, se entende porque Panikkar afirma que a experiência de transcendência
somente pode se feita a partir da imanência. Imanência e transcendência são duas
noções que apontam aquela realidade que não é nem uma nem duas. Quando se
compreende isso, se alcança, pela fé, a experiência mística que é uma experiência
que não faz separação entre o material e o espiritual, por isso, ela mesma é
advaitica e tem implicações em um e outro sentido, pois é indivisa1070
.
A partir desta perspectiva, a relação advaitica entre imanência e
transcendência, não se concentra somente nos valores do espírito e se separa do
resto do homem. A espiritualidade se faz integral e não deixa de lado nenhum
aspecto da realidade1071
.
2.4 O ser humano, um ser religioso e místico
Para Panikkar o ser humano é um ser religioso. Para ele a religião (de
religare) liga o ser humano ao seu fundamento, e a fé o liberta de uma mera
existência. Desta experiência de abertura nasce a liberdade que o coloca no
coração da relação pessoal trinitária1072
.
1068 PANIKKAR, Raimon. Mito, fe y hermenéutica. Barcelona: Herder, 2007. p. 224. 1069 Ibid. 1070 Id., De la mística, pp. 69-70. 1071 Id., El Cristo desconocido del Hinduismo, p. 58. 1072 Cf. Id., Mito, fe y hermenéutica. P. 203.
257
A religião é, antes de tudo, uma dimensão constitutiva do ser humano, por isso a
experiência religiosa sustenta o ser humano, apesar da dificuldade que as
instituições possam impor-lhes1073
.
Pode a fé também libertar a religião. Isto significa que a fé é a garantia das
relações humana.
[A fé] pode servir para libertar a religião de seus aspectos exclusivistas, de seu caráter, com frequência, sectário e de um unilateralismo arcaico incompatível com
o processo de universalização no que a humanidade está comprometida. O
reconhecimento da fé como dimensão antropológica situa o encontro entre os povos em um plano plenamente humano e não isola a religião do diálogo
1074.
Segundo ele,
na fé e mediante a fé, o crente se comunica e se confraterniza com a pessoa que se
autodefine não crente. Separado deste profundo nível da fé, a fraternidade humana se converte em uma comunicação subumana de ordem biológica, se não inclusive
em um contato artificial1075
.
Essa afirmativa se fundamenta no fato de que a fé não é somente necessária
para compreender, mas também para alcançar a plena humanidade. Em outras
palavras, a fé é uma dimensão humana constitutiva. É uma dimensão
antropológica do ser humano. Panikkar resumidamente diz: “crer para poder
ser”1076
. Ou seja, pela fé o ser humano mantém uma relação ontológica com o
Absoluto que o caracteriza como humano, distinguindo-o de todos os demais
seres1077
.
A fé está assentada no coração, como a palavra "credo" indica; o mesmo ocorre em
sânscrito com a palavra sharaddhâ (dar o coração). A fé é esta capacidade,
faculdade, possibilidade de mais - seria a palavra mais plena -, de transcendência - seria a palavra mais filosófica - , de Deus - seria a palavra mais teológica. Capax
Dei chamavam os escolásticos a essa capacidade do infinito, do que não tem
fronteiras1078
.
Lembrando-se do “terceiro olho” que a tradição cristã tem chamado o
oculus fidei, o olho da fé. A fé “é uma experiência, por isso, não está nas
proposições, como disse Santo Tomás: Fides non est de enuntiabilibus”1079
. A fé é
um dom de Deus, e nada o impede de ser um “dom universal”1080
. Não
esquecendo, que:
1073 PANIKKAR, Raimon. Experiência de Deus, p.64. 1074 Cf. Id., Mito, fe y hermenéutica, p. 204. 1075 Ibid., p. 205. 1076 Ibid., p. 202. 1077 Cf. Ibid., pp. 202-203. 1078 Id., Experiência de Deus, p. 62. 1079 Id., De la mística, p. 86. 1080 Id., Mito, fe y hermenéutica, p. 220.
258
O dom da fé é um convite à uma resposta, um chamado provocador, uma porta
aberta. Implica a liberdade e a possibilidade de recusa, porque um dom não é um
dom se não é aceito, se não existe uma resposta positiva. A fé é essa dimensão a-
substancial do homem que o permite não parar na metade do caminho, ou ficar paralisado no tempo, fechado no passado. A fé é fundamentalmente dinâmica,
funcional1081
.
Ela se inscreve na discreta ação da providência que "inspira" a
humanidade1082
; e não fundamentalmente é um ato do intelecto - porém possui
uma dimensão intelectiva - senão de toda a pessoa humana1083
.
No entanto, não pode ser confundido o ato de fé com crença, ou seja, ato de
fé põe o ser humano em movimento. É o ato que surge do coração e pelo qual o
leva a transcender, a alcançar sua plenitude. Não é um ato automático: é um ato
livre e não alienante. Por outra parte, a crença é a formulação, a articulação
doutrinal, geralmente feita por um coletivo. É a expressão simbólica mais ou
menos coerente da fé, que muitas vezes se formula em termos conceituais1084
.
Panikkar defende que as virtudes teologais se unam à dimensão
antropológica da fé. Segundo ele, “a fé é a abertura existencial, o vazio que existe
no homem e que o torna capaz sempre de um mais, de um sempre mais além”1085
.
Nesta perspectiva antropológica, a esperança é a antecipação da fé, sair do vazio
para algo que possa preencher tal carência, tendendo para o infinito, o inefável,
para o Absoluto.
Se o ato de fé é a resposta intelectual ao fato de se descobrir como um ser aberto,
como uma entidade inesgotável, como uma pessoa, todavia não realizada, a esperança é o ato "logicamente" precedente de sair de si mesmo para ir para a meta
infinita e indefinida. Ou seja, não haveria esperança se não houvesse fé1086
.
E por último o amor, é ele que 'salva', porque obriga o homem a sair de seus
limites, em definitivo de sua própria finitude. Se a esperança é o impulso, o amor
é a união, a fruição efetiva.
Todavia, a fé não se expressa de uma única maneira. Panikkar sugere três
formas típicas de identificação da fé e simpatiza radicalmente com a terceira: a
ortodoxia, a ortopoesis e a ortopráxis.
A primeira é baseada na primícia de uma concepção essencialista da
1081 PANIKKAR, Raimon. Mito, fe y hermenéutica, p. 220. 1082 Id., El Cristo desconocido del Hinduismo, p. 185. 1083 Id., Mito, fe y hermenéutica, p. 229. 1084 Cf. Id., Experiência de Deus, p. 63. 1085 Id., Mito, fe y hermenéutica, p. 221. 1086 Ibid., p. 222.
259
Verdade, que nos leva a identificar a fé com a ortodoxia, ou seja, com a correta
doutrina. A segunda insiste no caráter moral do ato religioso, baseado na
supremacia do Bem, e em consequência nos leva a identificar a fé com a
ortopoieses. Se na primeira ocorre o risco de 'dogmatismo', a segunda pode
aproximar-se do 'moralismo', integrando-se a essas duas interpretações, que não
parecem falsas senão unicamente unilaterais.
Panikkar propõe o conceito de fé como ortopráxis, vejamos:
a) A fé como ortodoxia1087
- parte do pressuposto de que o homem é, sobretudo
um 'animal racional'. A fé assume uma dimensão quase exclusivamente
intelectual; considera a verdadeira fé como sinônimo de ortodoxia. Disso deriva-
se que, em princípio, seja possível ter distintas formulações da fé. A formulação é,
em certo sentido, intrínseca à fé mesma. Não se pode ter fé se não se adere a uma
determinada doutrina.
b) A fé como ortopoiesis1088
- contêm elementos práticos e voluntários, seu fim
não é simplesmente a verdade, senão também o bem. O valor positivo da
ortopoieses reside na acentuação da fé como amor, como oferta pessoal, como
decisão de vida, como liberdade humana livremente assumida. O ser humano
torna-se o artífice de sua vida.
c) A fé como ortopraxis1089
- parte do pressuposto de que o homem possui
inteligência e vontade, que se lança para frente atraído para a verdade e o bem.
Porém não se esgota aqui, estas atividades brotam de uma fonte, todavia, mais
profunda: seu mesmo ser, seu ser como ato; sua atividade não é simples poiesis,
mas, sobretudo práxis. O efeito da práxis é parte do ser mesmo do homem: é a
atividade salvífica por excelência, em que o ser humano atinge seu objetivo e sua
plenitude.
Em resumo,
As religiões não pretendem como primeira coisa, ensinar uma doutrina ou proporcionar uma técnica. Aspiram salvar o homem, ou seja, a libertá-lo ou, em
outras palavras, abrir-se à vida para a plenitude de seu ser, seja qual seja esta
plenitude. Quando esse fim é interpretado como visão intelectual, emerge o aspecto
doutrinal. Se em troca é visto como a recompensa pela vida, e por uma conduta moral, prevalecem os valores práticos. Porém, em ambos os casos, se pressupõe
que a plenitude humana consista em adquirir esse valor que está no centro da
finalidade humana1090
.
1087 Cf. PANIKKAR, Raimon. Mito, fe y hermenêutica, pp. 209-213. 1088 Cf. Ibid., pp. 213-214. 1089 Cf. Ibid., pp. 215-217. 1090 Ibid., p. 215.
260
A fé, insiste Panikkar, “deve ser algo comum a todos os homens,
independente de suas crenças religiosas. Negar isto equivale a dizer que a enorme
maioria dos seres humanos não alcançam a salvação e está condenada”1091
. Desta
maneira, compreendemos a razão pela qual “a fé é uma abertura existencial para a
transcendência”, uma “abertura ao Ser” para ser “preenchida”.
A abertura da fé é uma abertura constitutiva. Não pode ser fechada; é infinita, não
limitada nem limitável. A fé é como uma cavidade no ser humano que jamais pode
ser preenchida, nem menos ainda transformada em uma espécie de substancialidade que representaria a máxima blasfêmia religiosa e excluiria o
homem de toda relação com o infinito. Através desta cavidade ele alcança o
infinito1092
.
Além do mais, “o homem é in-finito”, ou seja, “não-acabado”. O ser
humano não é completo porque é itinerante, não definido 'não finito', não acabado,
incompleto. A abertura existencial da fé representa a capacidade do homem de
entrar em sua não-plenitude, ou seja, a sua in-finitude. Não considera a si mesmo
como finito, como acabado, como alguém que tenha esgotado as possibilidades de
chegar a ser. A abertura da qual falamos é constitutiva do ser humano, a outra face
disso chamamos contingência. Esta última aparece quando olhamos para trás, para
nossa origem, descobrindo que não temos em nós mesmos e por nós mesmos a
base de nossa existência. A primeira, ou seja, a abertura primordial aparece
quando olhamos para adiante, para a meta, o fim, o transcendente, etc., e
descobrimos que não estamos completos1093
.
Reconhecer essa abertura no ser humano é admitir que ele não é Deus, que
precisa evoluir. E que esta abertura da fé é a capacidade que possui para avançar
para a plenitude.
E é graças a esta dimensão da fé, que o homem descobre sua indigência. A
fé é o suporte que aponta a precariedade humana e, ao mesmo tempo, a sua
grandeza e sua suprema dignidade. Representa um fundamento muito mais sólido
que a autonomia ou a autossuficiência humana, expressando a máxima riqueza
ôntica possível. Reconhecemos, assim, que nenhum valor 'humano' ou limitado,
poderá jamais preenchê-lo1094
.
Por fim,
1091 PANIKKAR, Raimon. Mito, fe y hermenêutica p. 219. 1092 Ibid., p. 226. 1093 Ibid., p. 224. 1094 Cf. Ibid., p. 225.
261
O homem é religioso não primeiramente porque descobre ou aceita esta relação
com Deus, qualquer que seja o conteúdo que se queira dar a este conceito, senão
em virtude da realidade ou do fundamento sobre o que se faz possível um o
conhecimento deste tipo, ou seja, porque o homem, realmente e de fato, se encontra ‘intimamente unido’ com Deus. Isto quer dizer que o primeiro elemento da religião
não é a consciência, senão o ser, o existir, a contingência. A dependência do ser
humano com respeito a Deus tem algo de comum com a dos animais, das palavras e da terra: é um vínculo cósmico com a Causa, com o Princípio e com a fonte deste
mesmo cosmos1095
.
2.4.1 Mística, plenitude da vida
Quando Panikkar nos fala sobre mística, é nítida sua intenção de não
fragmentar o ser humano em suas dimensões e relações constitutivas. Trata-se,
segundo ele, "de integrar a mística no ser do homem: no homem, espírito místico
tanto quanto animal racional e ser corporal"1096
. Em outras palavras, a mística é
uma dimensão antropológica. No entanto, a mística não pode separar-se do
problema teológico do que seja Deus nem do problema cosmológico do que seja o
mundo1097
.
A mística não é um privilégio de uns enquanto escolhidos, senão
característica humana por excelência, “o homem é essencialmente um místico”,
consequência evidente da maneira como ele entende a fé.
O homem é essencialmente místico ou, se o considera como animal (um ser
'movido' por um anima, um animal místico - embora, a animalidade (embora seja
racional) não define o homem [...] O homem é antes um espírito encarnado do que um vivente racional, um animal espiritual poderia dizer se anima for interpretado
segundo sua etimologia indo-europeia (aniti, o respirar; anilah, o sopro). Anima
incluirá então também o espírito1098
.
Em seu livro De la mística, Panikkar, com clareza, afirma que a mística é “a
experiência da Vida”. Para poder compreender o que nosso autor quer dizer,
teremos que nos deter em suas noções de “experiência” e “Vida”, em sua relação
com a “experiência de Deus” e no que significa para o ser humano a “experiência
mística”.
Por uma parte, nosso autor reconhece a polissemia e a ambiguidade da
palavra “experiência”, por isso a depura de uma perspectiva psicológica e a
inscreve em uma ontológica. Para ele, a experiência é “aquilo” que “transforma
1095 PANIKKAR, Raimon. Mistério y revelación, p. 44. 1096 Id., De la mistica, p. 20. 1097 Cf. Ibid. p. 55. 1098 Ibid., p. 19.
262
nosso ser mais profundo, é o sentir-se aprisionado por uma realidade mais forte
que nos penetra e nos transforma”1099
.
Trata-se de um contato imediato [...] indica mais que simples imediatez; indica
com-penetração, ter penetrado no mesmo interior de algo 'experienciado' [...] A experiência se reconhece nesse 'interior intimo meo' (mais interior que o meu mais
íntimo) de santo Agostinho1100
.
Ou seja, experiência se interpenetra no 'experienciado'. É experiência de
união, relacionalidade, interpenetração, porém também é conhecimento, amor e
ação1101
.
Imagino que é por isso que a sabedoria de praticamente todos os povos nos
ensinam que a abertura para a experiência de Deus pode surgir: a) através do
conhecimento (jñana): pelo esforço da inteligência em transcender a si mesmo; b) pelo amor (bhakti): pelo anseio do coração em buscar algo que lhe preencha; c)
através das obras (karma): pela criatividade da criatura que quer imitar o criador
criando, isto é fazendo1102
.
Esse pensamento vai de encontro com a noção cristã que considera a mística
como cognitio Dei experimentalis ("conhecimento experimental de Deus")1103
. Ou
seja, "trata-se de uma experiência e não de uma interpretação, embora nossa
consciência dela seja concomitante [...] Trata-se de uma experiência completa e
não fragmentaria"1104
.
Sobre a palavra 'Vida', Panikkar a usa com letra maiúscula como o desejo de
não excluir a priori que a vida pode ter outras dimensões, além dos aspectos
fisiológicos e psíquicos. Ele quer lembrar-se de sua dimensão espiritual, por
entender a mística como uma experiência integral da Vida. Assim, ele usa a
palavra Vida no lugar da realidade.
Usamos a palavra 'vida' no lugar de 'realidade' por encontrá-la mais próximo da
experiência. [...] A 'vida' é algo que experimentamos diretamente; somos seres
vivos, participamos da Vida [...] ainda que a reflexão logo nos diga que somos seres (viventes) que participamos no Ser. Nossa experiência é a Vida
1105.
Quando ele fala desta experiência de Vida, significa participar da Vida de
Deus.
Quando digo experiência da Vida não digo experiência de minha vida senão da
Vida, aquela vida que não é minha embora esteja em mim; aquela vida que, como
1099 PANIKKAR, Raimon. La plenitude del hombre, p. 45. 1100 Id., De la mistica, p. 76. 1101 Ibid., p. 164. 1102 Id., Experiencia de Dios, p. 93. 1103 Id., Diccionario de la mistica, p. 737. 1104 Id., La mistica, p. 19. 1105 Ibid., pp. 22-23.
263
dizem os Vedas, não morre, é infinita, que alguns chamariam divina: Vida,
contudo, que se "sente" palpita, ou melhor, dito simplesmente vive em nós. Suas
interpretações, naturalmente, variam deste o chamado sentimento oceânico até a
sensação biológica de viver, passando pela experiência de Deus, Cristo, do Amor ou inclusive do Ser. A experiência da Vida (zôê), diz São Justino no século II, é a
experiência do doador da vida - posto que a vida, a alma, não vive por si mesma,
senão que participa da Vida1106
.
A vida é comunhão entre Deus, os homens e a natureza, é integração entre
imanência e transcendência, e é confluência entre temporalidade e eternidade. A
experiência de vida não é a consciência do ritmo do tempo. O que se 'experiência'
é o instante da tempiternidade. Esta experiência integral da vida
é a vivência completa tanto do corpo, que se sente viver com palpitações de prazer
e dor, como da alma, com suas intuições de verdade e seus riscos de erros, adicionadas às fulgurações do espírito que vibra com o amor e repulsão
1107.
Ou seja, é uma experiência corporal, intelectual e espiritual ao mesmo
tempo. Igualmente é material, humana e divina - é uma experiência da realidade
cosmoteândrica1108
. Sentir-se vivo é, desta forma, sentir a Vida em sua plenitude
dentro de nossas limitações concretas.
Panikkar insiste em dizer que é preciso cultivar a harmonia, fazer participar
o corpo na felicidade do espírito e associar o espírito ao prazer do corpo. A
beatitudo (beatitude) ou ãnanda (bem-aventurança divina) é uma experiência
cosmoteândrica1109
. A experiência da Vida é a conjunção mais ou menos
harmônica dos três olhos1110
,
ou se preferir, das três consciências (sensível,
intelectual e espiritual).
A experiência mística abraça tanto a consciência sensível como a intelectual e
espiritual em uma não-dualidade harmônica, embora em distintos graus. A
experiência mística não pertence a uma ordem 'superior' senão que está na base da mesma constituição do ser humano
1111.
De acordo com Panikkar, a estrutura da experiência não é nem uma nem
tríplice. Os 'tres' olhos estão imbricados um no outro, como na perichôrêsis
trinitária. Não se pode reduzir as três dimensões a uma só, posto que são
1106 PANIKKAR, Raimon. De la mistica p. 24. 1107 Ibid., p. 26. 1108 Cf., Ibid., p. 27. 1109 Cf. Ibid., p.179. 1110 Já mencionados na nota 130 desta parte de nosso texto. 1111 PANIKKAR, Raimon. La mistica, p. 181. “A dificuldade se apresenta se as isolar. A mística,
sem intelecto e sem os sentidos, é falsa. Voltar a simbiose é uma obrigação urgente da autêntica
filosofia contemporânea. Uma dessas tarefas seria o de situar o problema do divino sem romper do
homem o problema do cosmos: é o problema da infinitude e da liberdade, que está em tudo”. Id.,
Ecosofía, p. 41.
264
distintas1112
. Caso contrário,
se por experiência mística se entende somente a experiência que nos abre o terceiro olho tem que recorrer então a uma cosmologia dualista de dois níveis: o nível da
razão ou da natureza e o nível do sobrenatural ou da graça, em que a razão
representa aufgehoben, no sentido hegeliano (negado, superado, aceito e mantido). Neste caso a experiência mística representaria um estágio superior que somente
pode chegar pela 'graça' especial - que se dá a muitos poucos segundo o destino ou
beneplácito divino1113
.
Ele insiste nessa não dualidade, retornando a fala sobre as três dimensões:
sensorial, intelectual e mística, como dimensão, também, da realidade.
A consciência sensorial nos relaciona, por meio de nossos órgãos dos sentidos, com
o que podemos chamar a parte material da realidade. A Consciência intelectual nos
abre o mundo inteligível, a essa rede de relações que sustentam o mundo intelectual e que não podemos equiparar à mera matéria. A consciência mística nos põe em
contato com o que é invisível aos sentidos e ao intelecto [...] Estas três ordens de
consciência são, em essência, não janelas independentes senão três dimensões, três
formas distintas (sensorial, intelectual e mística) da mesma consciência primordial [...] Estas três dimensões da consciência são também dimensões da realidade: a
primeira é a condição para atuar, a segunda permite compreender e a terceira
ser1114
.
A experiência plena da Vida poderá corrigir a concepção reducionista do
homem, por entendê-la como cosmoteândrica1115
. No ser humano, se integram
todas as dimensões da realidade.
Logo, a mística não é uma especialidade de alguns seres humanos, senão sua
dimensão essencial. Mesmo que essa dimensão se encontre hoje um tanto
atrofiada, [...] o Espírito, em troca, não é individual nem tampouco
individualizante: não é nossa propriedade privada nem teremos domínio sobre ele.
O Espírito sopra onde, quando e como quer, e nos faz entrar em conexão com um
novo grau de realidade que em nós se manifesta na consciência - precisamente na
consciência mística.
2.4.2 Mística e a experiência de Deus.
Como vimos, na tradição cristã a mística é uma experiência de Deus1116
,
pois 'Ele era a vida'. E é uma experiência de Vida, experiência sensível,
intelectual e espiritual. Ou seja, é uma experiência humana, em sua plenitude, que
1112 Cf. PANIKKAR, Raimon. La mistica, p. 171. 1113 Ibid., p. 172. 1114 Id., Mito, fe y hermenéutica, p. 312 1115 Id., De la mistica, p. 34. 1116 Cf. Id., La mistica, p. 64.
265
supera toda alienação sem cair no solipsismo1117
.
Nenhuma religião nem mesmo qualquer sistema de pensamento pode
monopolizar a experiência de Deus. E enquanto "experiência última, é uma
experiência não só possível, mas também é necessária para que todo ser humano
chegue à consciência de sua própria identidade"1118
.
A experiência de Deus que subjaz a toda experiência e pela qual nos fazemos seres humanos nos faz conscientes de nossa contingência, torna-nos humildes capazes de
compreender. Por essa experiência nos damos conta de que estamos dentro de algo
que abarca tudo e somos conscientes de uma dupla dimensão de ausência e presença, conscientes de que participamos de um mais no qual, de uma maneira ou
outra, podemos confiar. Alguns a chamarão de a experiência do Ser que se atualiza
no amor não-egoísta aos entes. Em outras ocasiões a chamei de confiança
cosmoteândrica1119
.
A experiência de Deus é a raiz de toda experiência. É a experiência em
profundidade de todas e em cada uma das experiências humanas: do amigo, da
palavra, da conversa. É a experiência subjacente a toda experiência humana: dor,
beleza, prazer, bondade, angústia, frio... subjacente a toda experiência no tanto
que nos descobre uma dimensão de infinito, não-infinito, in-acabado1120
.
Como fundamento da mística, a experiência de Deus não se contrapõe com
a liberdade, nem com a responsabilidade. Ou seja,
a mística, bem entendida, é o reino da liberdade: libera o homem tanto de suas condições transcendentais como imanentes sem deixar-se fazer, por outra parte, em
libertinagem anárquico, posto que abre o caminho para realizar sua identidade1121
.
Panikkar apresenta como requisito indispensável para acolher a experiência
de Deus, a integração do interior humano. Para ele, o ser humano deve estar em
harmonia consigo mesmo e com o universo, base de toda experiência humana1122
.
A experiência mística é uma experiência da profundidade. O ser humano
descobre em si mesmo e nos outros seres a dimensão de profundidade, de infinito
que existe em tudo. Esta experiência concede humildade, por um lado e liberdade
por outro1123
.
É a beata solitudo, na qual sou verdadeiramente eu, porque Deus não é o ser que
me esquadrinha, mas o que me permite ser eu mesmo ao máximo. Dito de outra
1117 Cf. PANIKKAR, Raimon. La mistica, p. 185 1118 Id., Experiencia de Deus, p. 76. Ou seja, "o ser humano chega a ser plenamente humano quando faz a experiência do seu último "fundamento", do que realmente é". 1119 Ibid., p. 79. 1120 Cf. Ibid., pp. 77-78. 1121 Ibid., p.42. 1122 Ibid., pp. 80-81. 1123 Ibid., p. 82.
266
maneira: quando eu estou verdadeiramente só, encontro a Deus, não como objeto,
mas - dizendo com santo Agostinho - interior intimo meo, como o mais íntimo de
mim, o que me é mais interior, o que mais realmente sou que é então,
precisamente, o que me abre aos demais1124
.
A experiência mística é inefável, no entanto não se consegue evitar a
palavra, pois “silêncio e palavra se complementam, digo silêncio e palavra, e não
mudez e verborreia. Toda palavra que não surge do silêncio não é autêntica, e
todo silêncio que não se encarna na palavra é incompleto”1125
. Panikkar as
imagina em uma relação advaitica e cria a expressão: Palavra de Silêncio, que
"não significa Palavra sobre o Silêncio (genitivo objetivo), senão o Silêncio que
existe em toda Palavra (genitivo subjetivo). Não significa a palavra silenciosa,
senão a palavra do silêncio, o silêncio que existe em toda palavra feita de
silêncio1126
. Ele afirma que “qualquer palavra que não comporta o pão, isto é, que
não conduz à práxis, não é verdadeira”1127
.
A mística integra o temporal e o eterno. Portanto, “não nos distrai do
cotidiano, senão que o conecta com o tempiterno [...] O místico descobre a
eternidade no instante e continua com paixão o jogo da Vida”1128
. A
contemplação é a respiração da vida “a pessoa contemplativa simplesmente 'se
sente', simplesmente 'é ', vive”1129
. O contemplativo experimenta a realidade,
adquire um caráter de mediação:
quem se entrega à contemplação experimenta a realidade, Deus, o céu, brahman, moksa, nirvana, satori, clarividência, a verdade, o ser ou o nada..., aqui embaixo, já
desde agora, no ato mesmo que se está realizando, na situação mesma que se está
vivendo1130
.
E faz a experiência da tempiternidade, assim como o místico. “Os
contemplativos não necessitam céu algum nas alturas, porque para eles tudo é
sagrado: tratam as coisas 'sagradas' como se fosse profanas e as 'profanas' como se
fossem sagradas”1131
.
1124 PANIKKAR, Raimon. De la mistica, p. 84. 1125 Ibid., p. 183 1126 Id., Mito, fe y hermenéutica, p. 286. 1127 Id., De la mistica, p. 183. 1128 Ibid., pp. 37-38. Em outro texto ele vai dizer que: "É uma consciência que substitui ou, melhor
ainda, que alcança a plenitude do tempo, posto que os três tempos são experimentados de maneira simultânea [...] E este paradoxo: quanto mais sou eu mesmo, mais desaparece meu ego. Eu sou,
então, todos e tudo, porém desde um ângulo único, por dizê-lo assim". Id., La intuición
cosmoteándrica, p.162. 1129 Id., La nueva inocencia, p. 64. 1130 Ibid., p. 65. 1131 Ibid., p. 67.
267
“O tempo tem sido redimido, superado ou negado” 1132
. Esta é a experiência
da tempiternidade, que não é nem temporalidade nem eternidade:
Não é nem uma temporalidade mais ou menos perfeita, nem uma eternidade
impermeável ao temporal, senão a integração perfeita e, portanto hierárquica do que em aparência parecem ser dois fatores, 'tempo e eternidade', em um
tempiternidade integral. A salvação moksa, nirvana, e outras expressões do fim
último da vida humana não se projetam em um futuro que tenha sido de alguma forma purificado ou aperfeiçoado, senão que se descobre em uma plenitude que
somos capazes de experimentar 'no' tempo e no 'mais tarde'. Esta consciência
descobre, no e através do temporal, o núcleo tempiterno da plenitude de nosso ser,
ou como queremos chamar, da realidade1133
.
A tempiternidade não é somente a busca pela eternidade. Na tempiternidade
se vive a experiência do presente em toda sua profundidade, um presente que
abraça o tempo e a eternidade, o finito e o infinito. O presente tempiterno é
irredutível, isto é, um presente em que se realiza uma ação autêntica e pura. É
aquele tempo pelo qual vale a pena ter vivido; é o tempo cujos atos encerram uma
vivência tempiterna1134
.
Todos os tempos coexistem na tempiternidade, o que tem sido é tão real
como o que será. “O destino temporal do homem está intrinsecamente ligado a seu
destino eterno e a sua situação eterna”1135
. Desta forma, tempo e eternidade
formam uma relação advaitica. “A eternidade não existe fora do tempo, como
tampouco nele admitindo o valor metafórico das duas proposições. Porém
tampouco existe o tempo fora da eternidade ou nela. A tempiternidade é o símbolo
mesmo da realidade”1136
.
Em outro momento ele vai afirmar que
a felicidade, que a beatitudo da tradição cristã, ou ananda da Índia, não é
meramente uma bem aventurança que tem que experimentar na vida próxima. É
antes uma felicidade tempiterna, que não se esgota na temporalidade, porém que tampouco se situa fora dela. A vida eterna se reflete na temporalidade. A existência
real e concreta da vida humana é uma existência tempiterna1137
.
Logo, a experiência integral é transcendente e imanente. Panikkar insiste em
repetir que a mística é uma experiência não-dualista - advaita. E que é uma
1132PANIKKAR, Raimon. La nueva inocencia, pp. 68-70. 1133 Id., Elogio de la sencillez, p. 106. 1134 Id., Presente eterno. In Diccionario interdisciplinar de hermenéutica editado por Andrés Ortíz-
Osés y Patxi Lanceros, pp. 650-655. Bilbao: Universidad de Deusto, 1998. p. 653. 1135Id., El mundanal silencio, p. 34. 1136 Id., Presente eterno, p. 655. 1137 Cf. Id., Paz y desarme cultural, p. 102.
268
experiência da realidade, não de suas partes1138
. Ela não separa ação e
contemplação.
A mística de nosso tempo, como visão plena da realidade, é agudamente sensível à
dor do mundo, em especial ao sofrimento devido às mãos do homem e às injustiças humanas. Isto não faz do místico um 'ativista político' no sentido atual da palavra.
Combinam as três dimensões da realidade e não perde a paz nem a equanimidade,
porém sabe sujar as mãos se for preciso1139
.
A presença de Deus impulsiona a participar consciente e livremente na
exploração da Vida que representa a mesma aventura cosmoteândrica da
Realidade1140
. O místico não espera passivamente. “Espera” tomando parte no
advento de um mundo mais justo, o mundo que para os cristãos é denominado
"Reino de Deus". Panikkar ainda afirma em outro texto:
somente quando o pensar transforma nosso fazer e o fazer nosso pensar em um
círculo não vicioso, senão vital, é quando nos encontramos em boa direção. Se a
ação não é contemplativa, não é na realidade ação; se a contemplação não é ativa, não é realmente contemplação. Tudo mais: a dicotomia deve ser superada no nível
da antropologia e da metafísica. Optar por um eternalismo paralisador das
atividades humanas é tão infecundo e errôneo como limitar-se a mera
temporalidade da ação humana1141
.
A experiência mística desta forma desfaz todo estigma de uma mística
perdida nas alturas, desencarnada e alheia às dores do mundo, sem por isso
esgotá-la na pura terrenalidade ou sufocá-la em um ativismo, posto que
“experimenta a realidade da condição humana em sua totalidade e, portanto, não
perde a serenidade nem a paz e elimina o medo de participar no esforço em prol
da justiça”1142
.
Este movimento é provocado pela experiência, pois a mística precisa do
conhecimento e do amor. De acordo com Panikkar, o “amor é o companheiro
natural do conhecimento [...] Quando a mística fala do conhecimento, é um
conhecimento amoroso e quando canta o amor, é um amor cognoscente”1143
.
Evidencia que “um conhecimento exclusivamente intelectual não é
conhecimento completo; um amor exclusivamente sentimental não é amor do qual
falamos [...] o amor pode conhecer-se e o conhecimento pode amar-se”1144
.
Panikkar insiste em dizer que “não só não conhece a realidade se não a ama,
1138 Cf. PANIKKAR, Raimon. Paz y desarme cultural, p. 70. 1139 Ibid., p. 188. 1140 Id., La Trindad, p. 18. 1141 Id., Presente eterno, p. 654. 1142 Id., De la mística, p. 203 1143 Ibid., p. 92. 1144 Ibid., p. 116.
269
senão que não a ama se não a conhece. É então quando se descobre o núcleo
amoroso de todo real”1145
.
É importante lembrar o que diz respeito ao próprio ser humano: “conhecer
de verdade é chegar a ser algo conhecido sem deixar de ser o que é. Chegar a ser
não é somente mudança, não é um movimento do que somos ao que deveríamos
ser. Chegar a ser é o verdadeiro crescimento do ser-sendo. O verdadeiro ritmo da
realidade”1146
.
O conhecimento e o amor têm estreita relação com a sabedoria, a verdade e
a beleza:
poderíamos afirmar que o homem está habitado, como tenho preferido dizer, por
uma dupla força, por um dinamismo centrífugo que o impulsiona para o exterior
atraído pela Beleza que brilha desde fora, e por um dinamismo centrípeto que o
impulsiona para o interior aspirado pela Verdade que tem de descobrir em si mesmo. Deixar-se levar somente pelo primeiro impulso é frivolidade, quando não
concupiscência, e somente pelo segundo é egoísmo, quando não soberba. A
sabedoria é a harmonia entre a atração da Beleza e a aspiração à Verdade. No centro se encontra o Bem que é belo e verdadeira ao mesmo tempo
1147.
A experiência mística não separa o amor a Deus do amor ao próximo. O
Evangelho é uma mensagem de serviço e amor ao próximo (Mt 10,40) e o amor a
Deus e o amor ao próximo são um só amor (1Jo 3,16). Panikkar também
reconhece esta condição em outras religiões:
a este respeito [sobre o amor a Deus e ao próximo] o hinduísmo não fica para trás
(Manu II, 161; Mahâbhârata XII, 3880). Tampouco o budismo [...] A misericordia
e a compaixão são dois aspectos fundamentais da espiritualidade budista (Dîgha Nikâya II,196; III,220). Não se pode ser feliz isoladamente. A felicidade é
comunitária1148
.
2.5 Espiritualidade cosmoteândrica
De acordo com Panikkar, o problema da “tecnocracia não é um problema
tecnológico (não pode ser resolvido por uma tecnologia melhor ou mais nova); é
um problema humano-antropológico, lê-se religioso”. Aqui se situa seu desafio.
Ele está convicto de que “no mundo atual somente os místicos sobreviveriam”1149
.
É claro para ele que sem uma compreensão da “terceira dimensão da realidade
1145 PANIKKAR, Raimon. De la mística, p. 119. 1146 Cf. Id., El toque contemplativo. En El árbol de la vida editado por Chantal Maillard et al., pp.
45-48. Barcelona: Kairós, 2001. p. 47. 1147 Id., De la mística, p. 121. 1148 Id., El silencio del Buddha, p. 275. 1149 Id., El espíritu de la política. Homo politicus. Barcelona: Península, 1999. p.129.
270
com a qual o místico nos põe em contato e que sustenta as dimensões do sensível
e do inteligível, o real não seria mais que uma pura abstração - sensível ou
inteligível”1150
.
Neste sentido, Panikkar faz uma proposta audaciosa apresentando uma
espiritualidade secular ou mística cosmoteândrica. Sobre o termo espiritualidade
ele nos diz que:
Quisera utilizar a palavra 'espiritualidade' de maneira válida para todas as
diferentes vias que conduzem o homem ao seu destino [...] A espiritualidade deve ser integral e não pode deixar de lado nenhum aspecto da realidade. Tudo tem que
ser 'purificado pelo fogo', tudo deve ser transformado: é a apokatastasis que nos
fala são Pedro (1pd 3,11). Temos que fazer uma síntese entre interioridade e exterioridade
1151.
Quando ele se refere à espiritualidade secular insiste em uma experiência
integral:
pois representa um novum que corresponde a emergência da consciência da 'sacra
secularidade'. A experiência mística não é idêntica ao que alguns têm chamado 'experiência cume' [...] A experiência mística é mais, ou mesmo, que um estado de
consciência - é uma abertura (consciente) à realidade total1152
.
Entendemos, diante das suas reflexões que a mística é uma “experiência da
Vida”, a espiritualidade como “a atitude básica do homem com respeito ao seu
fim último”1153
e a contemplação como “mediação cosmoteândrica”1154
, falam da
mesma realidade. Trata-se de uma coerente reflexão apresentadas de formas
diferentes.
O ser humano que vive esta experiência é sensível às relações constitutivas
da Realidade1155
. A mística cosmoteândrica não fica apenas na relação Deus-
Homem; inclui o mundo nesta comunhão, posto que Deus, Homem e Mundo
formam uma relação não-dualista e "tolerante"1156
. Quem realiza esta experiência
está
aberto ao mundo exterior como ao interior, ao cultivo da política como ao cultivo do espírito, a preocupação pelo demais como por si mesmo [...] A visão mística
inclui tanto o Outro (alter) como a mim Mesmo, tanto a Humanidade e a Terra
como o Divino. É a experiência cosmoteândrica. O resto são reducionismos1157
.
1150 PANIKKAR, Raimon. El espíritu de la política. Homo politicus. p.129. 1151 Id., La nueva inocencia, pp. 314-317. 1152 Id., De la mística, 180. 1153 Id., La Trindad, p. 37. 1154 Id., La nueva inocencia, p. 65. 1155 Cf. Id., Humanismo y cruz, p. 43. 1156 Cf.. Id., Mito, fe y hermenéutica, p. 49. 1157 Id., De la mistica, p. 186.
271
Assim, a espiritualidade cosmoteândrica realiza a síntese harmônica das três
dimensões da vida: Deus, Homem e Mundo. Nela existe a contemplação, que é
algo mais que pensamento; ação, que não limita seu horizonte à construção da
cidade terrena. Deus, que não é unicamente um juiz ou um olho contador. Amor,
que sobrepassa todo sentimentalismo. Oração que não se limita à petição, nem
sequer a louvores, senão é também silêncio, sem cair na indiferença. Apofatismo,
que não para no niilismo. Graça, que não é antinatural. Espaço e tempo, que não
são passageiros senão que são dinamismos criadores. E, sobretudo, inteligência,
que nos permite falar conscientes e responsavelmente de tudo isso1158
.
Ou seja, uma madura espiritualidade humana não será um jogo dialético
entre as três formas de vida ou a especialização reducionista, mas uma síntese
harmônica entre as três dimensões constitutivas da Realidade.
Uma espiritualidade cuja mais simples expressão seria: o Homem é algo mais que
'homem': é um mistério cosmoteândrico. Deus, o Homem e o Mundo estão
comprometidos, embora diferentemente, em uma mesma aventura1159
.
No entanto não significa, nesta relação, evitar as diferenças, mas perceber as
inter-relações e conscientizar-se da interdependência existente entre Deus, o
Homem e o Mundo. Em síntese1160
:
a) esta intuição cosmoteândrica deve emergir espontaneamente, o que requer uma
nova consciência. A espiritualidade tem que germinar livremente nas
profundidades do ser;
b)tal espontaneidade supõe que esta espiritualidade se mantenha independente de
hipóteses científicas e filosóficas;
c)a terra não é nem inferior, nem superior ao ser humano. O ser humano não é o
líder deste Mundo, nem simplesmente uma criatura. O ser humano e o cosmos,
são realidades supremas, e por isso irredutíveis um ao outro os dois a uma
entidade superior;
d) a relação do ser humano com a terra é parte de sua autocompreensão. É uma
relação constitutiva;
e) com esta espiritualidade a ideologia panmonetária é superada. Uma pessoa não
vive somente para se alimentar, como não trabalha apenas para ganhar dinheiro. A
espiritualidade cosmoteândrica vê a realização não tanto no tempo futuro como
1158 Cf. PANIKKAR, Raimon. La Trindad, p. 99. 1159 Ibid., p. 99. 1160 Cf. Id., La intuición cosmoteándrica, pp. 179-180.
272
em um espaço mais amplo que incorpora os 'três tempos';
f) esta espiritualidade supera a dicotomia entre o chamado misticismo natural
como a forma inferior de união com o Mundo, e o misticismo teísta, como forma,
supostamente, superior de união com Deus.
Esta espiritualidade curaria a ferida aberta do ser humano moderno: o
abismo entre o material e o espiritual e, com isso, entre o secular e o sagrado, o
inferior e o exterior, o temporal e o eterno1161
.
2.6 O monge, arquétipo do ser humano
Panikkar nos apresenta o 'monge' como o 'ideal' do homem místico,
contemplativo e sábio. Este pensamento ele desenvolve amplamente em seu livro
Elogio de la sencillez. Nele nos basearemos para explorar o que ele quer dizer
quando elege o monge como o arquétipo humano. Ele inicia seu livro procurando
explicar o uso deste termo.
Fazendo uso da ambiguidade da frase 'arquétipo monástico' nos dirigimos não a
descrever o monge como arquétipo, ou seja, o monge como um paradígma de vida humana, senão a explorar o arquétipo do monge, ou seja, a forma de vida do
monge como uma possibilidade de arquétipo humano1162
.
Arquétipo aqui, não significa modelo. Ele é mutável e dinâmico1163
. O
monge é a expressão de um arquétipo que constitui uma dimensão constitutiva da
vida humana: o monástico1164
. Ou seja, o arquétipo do qual o monge é uma
expressão, corresponde a uma dimensão do humanum, de modo que “todo ser
humano tem potencialmente a possibilidade de realizar esta dimensão. O
monástico é um dimensão que tem que ser integrada a outras dimensões da vida
humana para conseguir o humanum. Não somente de pão vive o homem”1165
. O
“humanum é multidimensional, e nenhuma de suas dimensões pode por si
somente abraçar a complexidade da vida humana”1166
.
Panikkar concebe o monge, como aquela pessoa que aspira alcançar o fim
último da vida com todo seu ser, renunciando a tudo o que não é necessário para
isso, ou seja, concentrando-se neste único e singular objetivo.
1161 PANIKKAR, Raimon. La intuición cosmoteándrica, p. 180. 1162 Id., Elogio de la sencillez, p. 16. 1163 Cf. Ibid., p. 16. 1164 Cf. Ibid., p. 24. 1165 Ibid., p. 29. 1166 Ibid., p. 30.
273
O monge se encontra no mínimo mumuksutva, o desejo de ser libertado, e está tão
concentrado nisso que renuncia aos frutos de sua ação (ihamutrarthaphala bhoga-
viragah) distinguindo o real do que não é (nityanitya-vastuviveka), e por isso está
disposto a seguir a práxis necessária (sadhana)1167
.
Assim o monge assume com radicalidade a missão de alcançar o fim último
da vida, como aspiração propriamente humana. Neste empenho evita distrair-se
com aquilo que não se converte em meio para alcançá-lo ou desviar-se por
caminho que não o conduzem para a meta desejada. Igualmente, também necessita
da experiência (de fé) como condição de possibilidade da dimensão monacal. A
dimensão monástica do homem é uma dimensão constitutiva do ser humano que,
igualmente à mística,
não é o monopólio de uns poucos, senão que é uma riqueza humana canalizada em diferentes graus de pureza e consciência por distintas pessoas. Porém esta riqueza
também pode ser frustrada. Cada ser humano tem uma dimensão monástica, e cada
um deve realizar-se de forma distinta1168
.
Diante das críticas que Panikkar apresentou sobre a modernidade com
respeito a tecnologia, o mercado consumista e o individualismo excessivo. Ele no
apresenta a simplicidade como contraponto a essa realidade.
Uma chamada a bendita simplicidade é necessariamente urgente. Se não o fazem
monges antigos, surgiram novos monges para exercer esta função de recordar ao mundo, com seu exemplo, que somente necessitam poucas coisas para uma vida
humana plena e feliz; e, todavia menos para alcançar a 'vida eterna', que não é
necessário, é claro, deixar para o futuro1169
.
A simplicidade recorda ao ser humano o ascetismo monacal e o atualiza
para torná-lo presente em sua vida. Recorda a primeira e primordial tarefa:
estarmos ocupados com a plenitude (ou na salvação, a libertação, a perfeição...)
deste aspecto da realidade que é o ser humano. Estarmos comprometidos na
perfeição de si mesmo neste sentido não é egoísmo, senão a mais plena realização
do ser humano1170
.
Somos parte de uma realidade superior e mais ampla em que não existem
apenas outros (Deus, Homens e Mundo) que compartilham e que influenciam
nosso destino, senão que existem outras dimensões da realidade (divina, humana e
cósmica) que estão bem comprometidas na mesma aventura última. A ascética nos
permite reconhecer a interdependência da Realidade, e bem integrada no ser
1167 PANIKKAR, Raimon. Elogio de la sencillez, p. 24. 1168 Ibid., p. 31. 1169 Ibid., p. 195. 1170 Cf. Ibid., p. 205.
274
humano, trabalha para a melhora do mundo e pela transformação das estruturas
externas da realidade1171
.
Certo é que o monaquismo representa uma dimensão constitutiva do cristão,
porém, também o é de todo ser humano.
O monaquismo não é um caminho, senão uma dimensão do humano caminhar
sobre a terra, quando este peregrinar não é um arrastar os pés tristemente e sem
esperança; representa a dimensão escatológica da existência, o elemento transcendente da vida humana, o contato tempiterno com o Absoluto, ou como
quiser caracterizá-lo1172
.
Desta maneira compreendemos ainda melhor porque a vida monástica não é
nem um estado nem uma vocação particular própria de alguns, senão uma
dimensão da vida humana e um elemento da vocação de todo homem. “Cada
homem tem um pouco de monge. Bem-aventurados os monges, disse Cristo
segundo o evangelho copto de Tomás”1173
.
Por fim, Panikkar apresenta um monaquismo além das fronteiras do
cristianismo. Essa experiência não se esgota em um grupo, mas a de todo ser
humano. “O monge, como monge, não é um testemunho direto e imediato de
Cristo, senão do Absoluto; não é um fenômeno eclesial, senão é uma manifestação
universal da religiosidade constitutiva do homem”1174
.
2.7 "Toda realidade é uma cristofania"
Cristo é a plenitude da vida. Esta plenitude, que tem tantos nomes, na
tradição cristã é chamada Jesus, o Cristo, símbolo real da 'divinização', isto é, a
plenitude do ser humano1175
. Panikkar, em seu livro La plenitud del hombre,
desenvolve diretamente sua proposta da cristofania. Ele lembra de que se trata de
um "palavra cristã" aberta à problemática universal de um modo concreto e
limitado1176
.
Segundo ele, a cristofania apresenta “a epifania da condição humana à luz
tanto de nossa situação atual como dessa luz que parece ter sua fonte mais além do
homem, luz que tem acompanhado o homo sapiens desde o princípio de sua
1171 Cf. PANIKKAR, Raimon. Elogio de la sencillez, p. 197. 1172 Ibid., p. 197. 1173 Ibid., p. 203. 1174 Ibid., p. 197. 1175 Id., La plenitud del hombre, p. 15. 1176 Cf. Ibid., p. 128.
275
existência [...] Cristofania equivale à manifestação de Cristo na consciência
humana e inclui uma experiência do Cristo e um reflexão crítica da mesma”1177
.
Em relação com cristianismo primitivo existe “um Cristo escondido, cujo
monopólio não têm os cristãos, e que pode ou poderia ser símbolo de uma unidade
muito mais unificadora, como o tem sido o símbolo de Deus na história”1178
.
A cristofania não é somente uma cristologia que tenta interpretar os fatos
históricos de Jesus de Nazaré. Pretende, antes de tudo, acolher criticamente “o
mistério aparecido, manifestado, revelado”1179
com todos os meios de
conhecimento dos que pode dispor o homem. Este mistério estava já desde o
princípio “no seio do Pai”1180
e, portanto não é histórico nem temporal, como foi
uma afirmação temporal de Jesus ao dizer que ele era “antes de Abraão”1181
.
Panikkar esclarece que a cristofania não pretende fazer desaparecer o Jesus
histórico em um gnosticismo não cristão, ainda que em certas teologias se possa
encontrar uma historiolatria. “A cristofania não rejeita em absoluto a historicidade
de Jesus, senão afirma que a história não é a única dimensão do real e que a
realidade de Cristo não se esgota, portanto, com a historicidade de Jesus”1182
.
A encarnação é um ato trinitário, porque Cristo remete ao Pai e ao Espírito.
A este respeito nosso autor, em Ícones do mistério, interpreta três textos
evangélicos que representam a experiência trinitária de Jesus de Nazaré1183
.
a) “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30). Esta frase se entende como uma “confissão
não-dualista entre o Pai e o Filho”. Existe uma distinção (“Eu e o Pai”), porém
existe comunhão interna que manifesta a inseparabilidade de ambos (“somos
um”). As relações intratrinitárias são relações dinâmicas e o Espírito é a expressão
permanente desse dinamismo. E é precisamente nesse dinamismo intratrinitário,
que o ser humano é chamado a participar1184
.
b) “Quem me tem visto, vê o Pai” (Jo 14,9). “Este ver o Pai em Jesus significa - e
há de significar em nós também - que a verdadeira essência de Jesus é a
1177 PANIKKAR, Raimon. La plenitud del hombre, pp. 31-32. 1178 Ibid., p. 67. 1179 Rm 16,26. 1180 Jo 1,18. 1181 Cf., Id., Jesús en el diálogo interreligioso. En Diez palabras clave sobre Jesús de Nazareth,
compilado por Juan José Tamayo, 453-488. Navarra: Verbo Divino, p. 481. Cf. Jo 8,58 1182 Ibid., p. 465. 1183 Cf. Id., Icones do místério. A experiência de Deus. São Paulo: Paulinas, 2007. pp. 142-149.
Título original: Iconos del misterio: la experiencia de Dios (1998). 1184 Cf. Id., Icones do místério. pp. 142-143.
276
transparência”1185
. Cristo transparece nos outros. Por isso nossa experiência de
Cristo não pode ser outra senão nossa experiência crística dos outros; uma
experiência de abertura, de entrega, de doação, de encontro1186
. Nos outros
descobrimos a Cristo: “Todo ser é uma cristofania”1187
.
c) “Convém que eu vá; porque, se eu não for o Espírito não virá até vós” (Jo
16,7). Neste texto, revela-se a presença direta do Espírito Santo. Este Espírito
integra o ser humano na vida trinitária de uma maneira corporal, pessoal,
contingente. Esta é a experiência de Deus, a experiência de plenitude do ser
humano no Ser. Incorporados na perichôrêsis ou circumincessio trinitária de toda
realidade1188
.
Deste modo, a Cristofania não remove nada da Cristologia, porém se
manifesta mais claramente aberta à realidade do Espírito sem separação entre
logos e pneuma. Sem uma visão mística, a cristofania não adquire seu verdadeiro
significado1189
. A cristofania apresentada é eminentemente Trinitária. Todavia,
como esta implica uma consciência transhistórica, resulta necessário explicar a
compreensão que tem nosso autor acerca do Jesus histórico e o Cristo da fé. Em
primeiro plano, Panikkar não nega a história, tampouco nega que o Jesus histórico
seja Cristo, no entanto, para ele, Cristo não se esgota em Jesus histórico:
Jesus é o Cristo, e quem confessa que Jesus é o Cristo define a identidade cristã. Porém Cristo não esgota Jesus. Jesus é idêntico a Cristo, não existe nada em Jesus
que não seja Cristo, porém Cristo era anterior a Abraão e Jesus não era antes de
Abraão [...] Cristo está em todo irmão que sofre, e Jesus de Nazaré não está aí1190
.
E como os cristãos acreditam que Cristo ressuscitou1191
transcendem o
tempo e o espaço, é possível ter um encontro pessoal com Ele "aqui e agora".
Portanto, o mistério de Cristo transborda da manifestação que tem lugar em Jesus
e, também, na experiência mesma que os cristãos têm de Cristo1192
.
Está claro que “Jesus para o cristianismo é a experiência de Jesus
ressuscitado, isto é, do Cristo vivo, hic et nunc, ontem, hoje e sempre, para dizer
com São Paulo. Não é uma experiência histórica, mas transhistórica, pessoal e
1185 Cf. PANIKKAR, Raimon. Icones do mistério, p. 144. 1186 Cf. Ibid., p. 145. 1187 Ibid., p. 91. 1188 Cf. Id., Icones do místério. Ibid., p. 149. 1189 Cf. Ibid., p. 148. 1190 Id., Ecosofia, p. 64. 1191 Cf. 1Cor 15,14. 1192 Cf. PANIKKAR, Raimon. Jesús en le diálogo interreligioso, p. 456.
277
intransferível”1193
.
A experiência com o Cristo vivo, o ressuscitado, conduz a um
descobrimento de sua identidade. Panikkar considera que podemos estabelecer a
identificação de Jesus histórico, porém, se queremos falar ao menos um traço de
sua identidade, esta resulta do encontro com Jesus ressuscitado1194
.
No entanto, ele distingue as duas realidades, mas não as separa, ainda que
seja enfático em assinalar que o mistério Cristo excede o fato histórico Jesus.
Diante disto, afirma que “Cristo é o símbolo de toda a realidade”1195
. Em relação
ao que ele entende por símbolo, o mesmo nos diz que: “o símbolo de uma coisa
não é nem outra coisa nem a coisa em si, senão a coisa mesma tal com se
manifesta, como é no mundo dos seres, na epifania do ser [...] é a coisa realmente
como aparece, como realmente é, no reino dos seres”1196
. Um símbolo não
necessita ser interpretado, ou seja,
não apreendemos os símbolos; no entanto, nos abrimos a eles, nos encontramos a nós mesmos neles, de modo que participando neles é como têm sentido e nos
conduzem à compreensão do que simbolizam. Um símbolo é um mediador, não um
intermediário1197
.
Em Cristo
estão contidos não somente ‘todos os tesouros da divindade’, senão também que
estão escondidos 'todos os mistérios do homem' e toda a espessura do universo [...]
Ele é o símbolo da realidade mesma, o símbolo cosmoteândrico por excelência1198
.
A autocompreensão cristã de Cristo é completa: Ele é o alfa e o ômega, é
antes que Abraão, o começo e o fim. O Cristo é a figura histórica, porém é
também o Cristo cósmico; é o ômega de Teilhard, porém também o alfa de
Orígenes, e o símbolo para os cristãos daquilo que representa a plenitude da
humanidade, a plenitude da divindade, a plenitude da corporeidade e a matéria.
Cristo é o símbolo daquilo que nós chamamos com certa linguagem o absoluto: o
símbolo da realidade [...] Cristo é o ícone de toda a realidade1199
.
Cristo é o centro da mandala cósmica, do que emerge a realidade inteira e a que
caminha tudo. Se poderia dizer que tudo surge dele em uma cristofania. O universo está ordenado organicamente e centrado. Este centro é, por definição, Cristo
1200.
1193 Cf. PANIKKAR, Raimon. Ícone do mistério, p. 127. 1194 Ibid., pp. 125-126. 1195 Id., Ecosofía, p. 63. 1196 Id., Mito, fe y hermenéutica, p. 319. 1197 Id., Culto y secularización, p. 30. 1198 Id., La plenitud del hombre, p. 180. 1199 Cf. Id., Ecosofía, p. 63. 1200 Id., Salvation in Christ, pp. 41-42.
278
Cristo tem de cada ser uma cristofania porque "os seres são geração γενεσις
de Cristo, de onde este gênesis significa certo devir. Todos os seres são em Cristo,
por Cristo e com Cristo"1201
. Em todas as relações Cristo se faz presente, em
nenhuma comunicação humana ele está ausente.
Panikkar propõe um Cristo trinitário, cosmoteândrico:
A tradição cristã não separa a compreensão de Cristo da compreensão da criação,
por um lado, e da Trindade, por outro. Cristo não somente é o salvador, é também o
criador. Cristo não é um meteorito divino, é um da Trindade. A cristofania tem sentido somente no interior de uma visão trinitária. Em Cristo temos a plena
manifestação da Trindade1202
.
Ou seja, “Cristo resulta incompreensível sem a Trindade. Um Deus não-
trinitário não poderia encarnar-se. Um Cristo não-trinitário não poderia ser
totalmente humano e totalmente divino”1203
. Ele considera que a encarnação não é
histórica, mas é um acontecimento na história com serias implicações para a
cosmovisão cristã. E se a encarnação é um ato divino histórico, pela mesma razão,
o Cristo protológico é o mesmo Cristo histórico, e o Cristo histórico não é separável do Cristo eucarístico e ressuscitado. Analogamente, o Cristo
escatológico, a última vinda de Cristo, a parusia de Cristo, não é separável do
Cristo eucarístico e ressuscitado1204
.
De acordo com Panikkar, “a Encarnação não é somente a divinização de um
homem (e com ele todo homem) senão também a humanização de Deus (e com
ele todo o divino). Não se poderia ver esta perichôrêsis se não tivesse descoberto
a Trindade”1205
, pois é ela que permite dizer coerentemente que Cristo é
plenamente Homem e plenamente Deus. Na linguagem cristã, se diz que Cristo é
também corpo, e que nós somos templos do Espírito Santo participando do seu
mistério crístico1206
.
Em Jesus se encontra toda a Corporeidade, Humanidade e Divindade em sua forma
mais concreta e plena. Esta frase não teria sentido se não tivesse descoberto seu caráter divino que transcende o espaço e o tempo. Jesus Cristo é divino. Porém,
analogamente, não poderíamos conhecer com aquele 'conhecimento que é a vida
eterna' se não participássemos da mesma humanidade. Jesus Cristo é humano.
Tudo se reduziria ao simples intelecto abstrato se não tratasse de uma Corporeidade que é também a nossa e que está representada na Encarnação - e na Eucaristia
1207.
1201 PANIKKAR, Raimon. Misterio y revelación, p. 90. 1202 Id., La plenitud del hombre, p. 206. 1203 Id., El Cristo desconocido, p. 27. 1204 Id., La plenitud del hombre, p. 206. 1205 Id., De la mística, p. 247. 1206 Ibid., p. 260. 1207 Ibid., p. 261.
279
Por isso, está certo que: “Jesus Cristo é o símbolo (concreto) de toda a
realidade - o símbolo da experiência cosmoteândrica. Toda realidade é uma
cristofania”1208
.
Sobre a ressurreição ele vai nos dizer que:
Não se trata evidentemente de uma causalidade física, senão de uma perichôrêsis,
de uma correlação constitutiva de toda realidade. Sem dúvida é um sacrifício, em
seu sentido real e tradicional, morrendo ressuscitou e ressuscitando restaurou a qualidade de vida - transformou a vida biológica em uma vida mais plenamente
humana, isto é, divina (sem deixar por isso de ser humana). Existe uma
perichôrêsis tanto humana como cósmica - não somente 'intra-trinitária'1209
.
Logo, quando o ser humano vive a ressurreição de Cristo em si mesmo, ele
está rompendo sua finitude. Trata-se de uma experiência tempiterna. A reflexão
que faz Panikkar sobre a realidade de Cristo como símbolo pleno da realidade
cosmoteândrica torna-o universal.
Segundo Panikkar, a Jesus Cristo não se pode conhecer sem amá-lo. Se
conheceria então só uma ideia. Não se pode amar sem aquele conhecimento
unitivo. Seria então só uma projeção psicológica. Ele enfatiza que,
faz falta a experiência (mística) que integra conhecimento e amor e os
transcendem. Descobre-se então o Cristo vivo de 'hoje, ontem e sempre'. Somente se ele vive em mim e eu nele [...], somente se temos corressuscitado com ele,
podemos participar da experiência. Por algo se dizia a autêntica teologia requer a
experiência de fé - e acrescentaria a esperança e o amor1210
.
Em Jesus Cristo a união hipostática é claramente presente; no homem, no
entanto, a circumincessio trinitária é uma realidade ainda não alcançada
plenamente:
Jesus Cristo é o filho de Deus, porém também o somos nós - e toda a criação é uma
aventura trinitária -. Em Cristo a humanidade e a divindade não podem separar-se. Em nós tampouco, porém não tem chegado a interpretação. Isto é a perichôrêsis e
isto é a realização1211
.
Jesus Cristo é a transparência, o caminho. Ele é o protótipo de toda a
humanidade, o totus homo, o homem pleno. Todo aquele que descobre a Jesus
Cristo experimenta a vida eterna, ou seja, a ressurreição da carne e, portanto, a
realidade da matéria, do cosmos. Jesus Cristo é o símbolo vivente da divindade,
da humanidade e do cosmos (o universo material)1212
.
1208 PANIKKAR, Raimon. De la mística, p. 261. 1209 Ibid., p. 252. 1210 Ibid., p. 262. 1211 Id., La plenitud del hombre, p. 213. 1212 Cf. Ibid., p. 220.
280
Além disso, Cristo é o mediador.
Este último [o intermediário] relaciona duas entidades desde o exterior, por assim dizer, ou encontra uma síntese superior que o abarca. A mediação, em troca, é uma
relação interna e constitutiva entre dois polos - enquanto polos. [...] Os "dois" polos
formam precisamente uma polaridade a-dual. A mediação não une duas entidades, senão que é a mesma união, união que não significa unidade nem unificação senão
polaridade constitutiva. A mediação nos faz ver que não se trata de duas entidades
que logo se relacionam senão que a relação é fundamental [...] não permite a
reductio ad unum; isto é, ver ambos os polos. Não é que Jesus Cristo, como um exemplo cristão, seja um homem que nos une a Deus ou um Deus que verifica os
homens, senão que é tanto e plenamente Deus e homem - não Deus e metade
homem: é mediador e não intermediário1213
.
Somente quando o homem estiver completamente vazio de si mesmo,
morará Cristo plenamente nele, ou seja, quando estiver em um estado de kenosis,
realizará Cristo sua encarnação nele1214
. Isso porque também é para o ser humano
esse esvaziamento, essa experiência de kenosis lhe permitirá alcançar até onde
seja possível, a plenitude, o humanum.
Para Panikkar,
todos somos kenóticos, vazios da divindade que reluz escondida em cada um de nós; todos estamos despojados, por assim dizê-lo, de nossa vestidura mais
autêntica; todos nós, mesmo tendo uma origem divino e sendo templos da
divindade, aparecemos, não somente frente aos demais senão frente a nós mesmos, como meros indivíduos de uma espécie submetida ao sofrimento e a morte. Ele não
o escondeu. Somente uma pessoa divina pode manifestar tanta humanidade1215
.
Conclusão
Em Panikkar, encontramos um homem que viveu sua experiência de Deus,
descobrindo-se um constante peregrino, aprendiz do seu amor. Desde o seio
familiar, por ser filho de mãe católica e de pai hindu, surgiu a busca pela harmonia
entre as religiões e culturas, que se tornará cada vez mais clara e determinante
para ele a partir de sua experiência de Deus em que procurou integrar toda a
realidade em todas as suas dimensões. Como vimos, todo o seu peregrinar se deu
a partir de sua experiência existencial.
O desenvolvimento de seu pensamento e as suas descobertas tiveram origem
em sua própria experiência de vida, a partir do encontro com outras tradições
1213 PANIKKAR, Raimon. De la mística,. 79. 1214 Id., El Cristo desconocido del Hinduismo, p. 58. 1215 Id., La plenitud del hombre, p. 167.
281
religiosas e culturais e na sua fecunda formação intelectual. A partir dessas
experiências, ele inicia uma busca incansável pela harmonia entre as diversas
dimensões da Realidade contra todo tipo de reducionismos, dando início ao que
ele chamou de intuição cosmoteândrica.
Quando Panikkar foi enviado em missão à Índia ele se redescobriu, como
hindu e budista, sem deixar de ser cristão. Também se identificou com uma
identidade secular. Em seus escritos, ele procurou deixar sempre claro que nunca
deixou de ser um sacerdote cristão, pois esta consagração fazia parte do seu ser.
Podemos dizer que sua experiência de Deus o levou a ultrapassar os limites
impostos pela instituição, abrindo-se a uma profunda experiência de encontro
consigo mesmo, em um profundo mergulho em suas raízes internas, descobrindo-
se, assim, uma pessoa com quatro identidades.
Todo o seu pensamento é marcado por sua experiência religiosa. Não era
possível para ele realizar uma leitura da realidade se não fosse através da religião.
Encontramos em Panikkar uma vocação que aspirou a uma plenitude existencial.
Quando desenvolve sua intuição cosmoteândrica, revelando que o divino, o
humano e o terreno são as três dimensões irredutíveis que constituem a Realidade,
ele supera a dialética. Essas dimensões coexistem, estão inter-relacionadas. Essa
sua intuição representa a consciência religiosa, que segundo ele, diz está surgindo
em nosso tempo, quando o ser humano deseja integração da realidade.
Acompanhando o seu pensamento, reconhecemos mais uma vez o seu
desejo de não fragmentação do ser humano em sua experiência mística. Para ele,
essa experiência adquire uma dimensão antropológica. Ela integra as dimensões e
relações constitutivas do ser humano, tendo a experiência de Deus como raiz de
toda experiência em profundidade.
Panikkar nos apresentou o monge como o arquétipo do ser humano, por
causa do seu esforço por caminhar na simplicidade, buscar uma nova inocência, e
por aspirar alcançar o fim último da vida com todo o seu ser, ou simplesmente
para ser. E que a vocação monástica precede o fato de ser cristão, budista, hindu,
“inclusive ateu”, e por isso, é um arquétipo universal.
Da mesma forma, sua experiência religiosa revelou que Cristo e seus
ensinamentos não são monopólios ou propriedades exclusivas do cristianismo.
Pelo contrário, Cristo é o símbolo universal da unidade divino-humana, a face
humana de Deus. O cristianismo se aproxima de Cristo de uma forma particular e
282
única, informado pela sua própria história e evolução espiritual. Mas Cristo
transcende amplamente o cristianismo. Essa experiência foi crucial para Panikkar,
porque longe de diluir ou, de alguma forma, enfraquecer as crenças e práticas
cristãs centrais, esse diálogo, além de ter promovido o entendimento e a harmonia
inter-religiosa, ofereceu um meio indispensável para o aprofundamento da sua fé
cristã.
Foram 91 anos de vida na busca da não fragmentação do ser humano e da
Realidade em que vivemos. Uma vida dedicada não a verdades universais, mas ao
conhecimento integral que não separa o amor do conhecimento, cumprindo a
tarefa, como ele mesmo dizia, de toda criatura: completar, conduzir a sua
perfeição, o ícone do real que todos nós somos.
Na próxima parte de nossa tese, procuraremos, a partir da experiência de
profundo encontro com Deus vivida por Merton e Panikkar, destacar os passos
que os mesmos trilharam no diálogo inter-religioso e a possibilidade de uma
mística inter-religiosa.
283
Glossário
advaita (sâns.) não-dualidade. Expressão metafísica da irredutibilidade da
realidade a pura unidade (monismo) ou a mera dualidade, elaborada
filosoficamente por muitas religiões do Oriente.
advaitin (sâns.) adepto da advaita, o que professa a não-dualidade atman‐
Brahman
aliud (lat.) o outro, neutro.
alius (lat.) o outro (outro eu).
atman (sâns.) o si-mesmo de um ser e da realidade. Uns o traduzem por "si",
outros por"eu". Núcleo ontológico no hinduísmo e meramente inconstante no
budismo.
Bhagavad‐gita (sâns.) canto do Bem-aventurado. O mais conhecido dos livros
sagrados da Índia.
bhakti‐marga (sâns.) atitude mística de devoção, de amor ao Senhor. Um dos
caminhos para a salvação mediante a união com a Divindade.
Brahman (sâns.) designação da Realidade absoluta, uno e idêntico ao atman
fundamento de tudo; alma e essência do mundo.
capax Dei (lat.) capacidade da alma de perceber e receber a Deus.
circumincessio (lat.) compenetração das três pessoas da Trindade. Equivale ao
grego perichôrêsis.
cit (sâns.) consciência, inteligência, espírito, intelecto.
coesse (lat.) ser conjuntamente, existir juntos; co-existir.
humanum (lat.) característica fundamental do humano; o específico da
humanidade.
jñana‐marga (sâns.) conhecimento experiencial da Realidade. Um dos caminhos
de libertação ou perfeição centrado no conhecimento por experiência, por uma
intuição direta da Realidade.
karma/karman (sâns.) obra, ação. Originalmente, a ação sagrada, o sacrifício,
posteriormente também o ato moral. O resultado de todas as ações e obras de
acordo com a lei do karma que governa as ações e seus resultados no universo.
moksa (sâns.) libertação final do samsara, do ciclo do nascimento e morte, do
karma, da ignorância, da limitação: salvação.
mysterium coniunctionis (lat.) mistério de unificação, reintegração da unidade das
284
partes; a reunificação dos opostos em unidade primordial.
nirvana (sâns.) extinção. A libertação de toda limitação; a meta última para o
budismo e o jainismo.
noumenon (grego.) o que está oculto por trás da aparência (phainomenon), o que
está mais além da experiência sensível.
perichôrêsis (grego.) noção da doutrina trinitária da igreja primitiva que designa a
interpretação das pessoas divinas. Equivale ao termo latino circumincessio.
pisteuma (grego.) do grego pisteuo (crer); o que o crente crer, o mistério
intencional dos fenômenos religiosos.
pleroma (grego.) plenitude, cheio, completo.
pratîtyasamutpâda (sâns.) doutrina budista do surgimento condicionado ou
dependente, que afirma que nada é por si mesmo e que nada conduz em si mesmo
as condições de sua existência, senão que tudo está relacionado.
sarvam‐sarvatmakam (sâns.) tudo está relacionado com tudo.
satori (jap.) do verbo saturo, designa a "iluminação" que se procura no budismo
zen. Significa literalmente "compreensão". É análogo ao conceito de criatividade,
no sentido que reconcilia oposições aparente.
Upanisad (sâns.) ensinamento sagrado fundamental sob forma de textos que
constituem o final dos Veda; parte da revelação (sruti) e base do pensamento
hindu posterior.
Veda (sâns.) conjunto de “sagradas escrituras” do hinduísmo.
Bhakti (sâns) atitude mística de devoção, de amor para Deus; participação no
divino por amor, devoção, abandono. Significa tanto "separação" (bañj), como
"dependência" (bhj). Por extensão é a religião do amor. O bhakta é o adepto da
bhakti.
Mandala (sâns) "círculo", esquema cosmogênico.
285
Cronologia da vida de Raimon Panikkar
1918 - 03 de novembro: Nasce em Barcelona, Raimon Panikkar. Filho de pai
hindu Ramun Panikkar e de mãe catalã católica, Carmem Alemany.
1935 - Bacharelado em Ciência e Letras.
1940 - Ingressa na Opus Dei.
1941 - Licenciatura em Ciências, em Barcelona.
1942 - Licenciatura em Letras, em Madri.
1946 - Ordenação sacerdotal na Opus Dei. Doutorado em Filosofia e Letras, em
Madri.
1954 - Licenciatura em Teologia, em Roma.
1954 - Missão apostólica na Índia.
1958 - Doutorado em Ciências, em Madri.
1961 - Doutorado em Teologia, em Roma.
1962-1963 - Participa do Sínodo de Roma e em atividades do Concílio Vaticano
II.
1964 - Regressa à Índia. É dispensado canonicamente da Opus Dei e incardina-se
na diocese de Varanasi.
1996-1987 - Leciona em universidades dos Estados Unidos.
1987 - Volta para Tavertet, Catalunha.
2010 - Completa o seu ciclo de vida. Morre em Tavertet no dia 26 de agosto aos
91 anos.
V – Parte
A mística cristã na perspectiva do diálogo inter-religioso em Thomas Merton e Raimon Panikkar
Nesta parte de nossa tese, daremos continuidade à reflexão sobre a
experiência vivida por Thomas Merton e Raimon Panikkar1216
, destacando o que
significou o diálogo inter-religioso e o que cada um apontou como caminho para
essa experiência. Diante da indiscutível realidade plural em que vivemos,
reconhecemos no que diz respeito às religiões, e em especial ao Cristianismo, que
se devem criar condições para uma apreciação positiva das demais religiões
através de um diálogo fecundo e acolhedor. Para isso, acreditamos que, a exemplo
das experiências de místicos como Merton e Panikkar, a realização de um
caminho espiritual enraizado na profunda experiência de Deus abre possibilidades
para uma mística inter-religiosa.
1. Thomas Merton
Encontrar Deus nas outras pessoas
Como pudemos ver na III parte de nossa tese, Merton, no decorrer de sua
busca interior, nos revelou que a contemplação é sinal de maturidade cristã que se
inicia com o despertar do eu interior para a vida ao entrar em contato espiritual
com Deus a partir da fé.
A contemplação é sinal de vida cristã perfeitamente madura. Faz com que o crente
não seja mais escravo ou servo de um Mestre Divino, não esteja mais possuído de temor na observância de uma lei difícil, e mesmo não seja mais um filho submisso
e obediente, demasiadamente jovem ainda para participar das decisões de seu Pai.
A contemplação é aquela sabedoria que faz do homem um amigo de Deus1217
.
Pois ele está de convicto que a maturidade cristã alcançada pela
contemplação permite ao crente alcançar a comunhão com o Deus vivo.
O místico, isto é, o contemplativo, não só vê e toca o que é real, mas, além da superfície de tudo que é atual, alcança a comunhão com a liberdade, fonte de toda
realidade. Essa realidade, essa liberdade, não é um conceito, uma coisa, não é um
objeto, nem mesmo um objeto de conhecimento. É o Deus vivo, o Santo, Aquele ao qual ousamos aplicar um Nome unicamente porque Ele próprio revelou-nos um
Nome, mas que está situado para além de todos os Nomes como supera todo Ser,
1216 Continuaremos a nos referir ao Thomas Merton como Merton e ao Raimon Panikkar como
Panikkar, no decorrer do nosso texto. 1217 MERTON, Thomas. O homem novo, p. 20. Sobre o Evangelho ver o texto: Jo, 15,15-16; 5,7.
287
todo conhecimento, todo amor. É Ele o infinitamente “Outro”, o Transcendente, do
qual não temos nem podemos ter nenhuma ideia unívoca1218
.
A pessoa é colocada diante de uma realidade em que se apresenta uma
renovação mais profunda da vida, de acordo com uma autêntica experiência de
Cristo, causada por nossa semelhança, nossa filiação, pelo dom do Espírito divino
que faz Cristo ‘habitar em nosso coração’ ou em nosso eu mais profundo1219
.
Ou seja,
Assim como um homem conhece a si mesmo pelo testemunho de seu eu mais profundo, de seu espírito, também Deus revela a Si mesmo no amor de seu
Espírito. E o Espírito de Deus, que habita em nós, que é dado a nós para ser como
que nosso próprio espírito, permite-nos conhecer e experimentar, de modo
misterioso, a realidade e a presença da misericórdia divina em nós. Assim, o Espírito Santo está intimamente unido ao nosso eu mais profundo e sua presença
em nós faz de nosso "eu" o "Eu" de Cristo e de Deus1220
.
Em Cristo, o abismo que separa o ser humano de Deus foi transposto pela
encarnação, e no próprio ser humano esse abismo é transposto pela presença do
Espírito Santo. Ele se faz presente em todo ser humano, nele ‘nos tornamos outros
Cristos’. E está gravada nas raízes do próprio ser humano a imagem de Deus,
recordando-o sempre quem é e para que foi criado.
Embora não exista uma ponte “natural” entre a ordem sobrenatural e a natural, a situação concreta em que se encontra o homem, como natureza criada para um fim
sobrenatural, torna essa angústia inevitável. Não pode o homem descansar se não
repousa em Deus. Não o Deus, meramente, da natureza, e sim o Deus Vivo. Não um Deus que possa ser objetivado por algumas noções abstratas, e sim o Deus que
está acima de qualquer conceito. Não o Deus de uma união apenas racional ou
moral, mas o Deus que se faz Um com nossa alma, no Espírito! É essa a única
realidade para a qual fomos criados. Somente aqui, por fim “nos encontramos” – não em nosso ser natural, mas fora de nós mesmos, em Deus. Pois nosso destino é
sermos infinitamente maiores do que nosso pobre eu. A angústia espiritual do
homem só tem um remédio: o misticismo1221
.
Merton nos lembra que as sementes dessa vida sublime são plantadas em
toda alma cristã pelo batismo e que milhares de cristãos não sabem nada sobre
essa presença em seus corpos, “são filhos de Deus e não percebem sua própria
identidade”1222
.
As sementes da contemplação e da santidade plantadas nessas almas permanecem
simplesmente dormentes. Não germinam, não crescem. Em outras palavras, a graça santificante preenche a substância da alma desses indivíduos, mas nunca extravasa
1218 MERTON, Thomas. O homem novo, p. 18. 1219 Cf. Id., Experiência interior, p. 61. 1220 Ibid., pp. 65-66. 1221 Id., O homem novo, p. 92. 1222 Id., Experiência interior, p. 69.
288
para inflamar, irrigar e tomar posse das faculdades deles, de seu intelecto e de sua
vontade. A presença de Deus nunca se torna uma realidade íntima. Deus não se
manifesta a essas almas porque elas não O buscam com real desejo1223
.
São pessoas divididas entre Deus e o mundo. Estão alheias ao que é mais
profundo em seu interior, por nunca buscarem ou mesmo por nunca desejarem
essa dimensão. Seus pensamentos e desejos estão longe de Deus.
É bem normal, quando entra alguém em contato íntimo com Deus, sentir-se
inteiramente transformado por dentro. Nosso espírito passa por uma metanoia, uma conversão que dá nova orientação a todo nosso ser após o haver elevado a um novo
nível, parecendo mesmo transformar completamente nossa natureza. Então, a
“autorrealização” torna-se uma conscientização do fato de sermos bem diverso do nosso ser normal empírico [...] Vemos que somos, em verdade, mais humanos
quando elevados ao nível do divino. Transcendemo-nos, vemo-nos numa luz nova,
perdendo-nos de vista, e não mais nos consideramos, mas só a Deus. Assim, num
ato único, realizamos o duplo movimento de entrar em nós mesmos e de sair de nós mesmos, que nos leva ao estado paradisíaco para o qual fomos originariamente
criados1224
.
É necessário recobrar o domínio do verdadeiro eu pela libertação da
angústia, do medo e do desejo desordenado. Assim, conquistado o domínio de sua
alma, deve-se aprender a ‘sair’ de si mesmo para ir ao encontro de Deus e dos
outros por meio da caridade.
Uma vez que fomos criados à imagem e semelhança de Deus, não há outro meio de
descobrirmos quem somos senão descobrindo em nós a imagem divina. Ora, essa
imagem, presente, pela natureza, em cada um de nós pode, de fato, ser conhecida por inferência racional. No entanto, isso não basta para nos dar uma experiência
autêntica de nossa identidade1225
.
Para reconhecer essa imagem no próprio ser, não basta entrar em si mesmo.
Não basta estar consciente de que a espiritualidade de sua natureza o torna,
potencialmente, semelhante a Deus. Essa potencialidade tem de ser atualizada.
Como? Pelo conhecimento e o amor. Ou, mais precisamente, por um
conhecimento de Deus inseparável de uma experiência de amor1226
.
A recuperação da imagem divina em nossa alma, na medida em que é
experimentada por todos nós, é a experiência de um modo de ser inteiramente novo. Tornamo-nos “homens novos” em Cristo. E podemos verificar o fato pela
mudança em relação ao objeto do nosso conhecimento e nossa maneira de
conhecer. Sim, quando Deus é conhecido desta maneira, não é conhecido como “objeto”, uma vez que não está encerrado num conceito. Pelo contrário, o
conhecimento místico de Deus refletido no espelho de sua imagem dentro de nós:
“Conhecerei”, diz São Paulo “como fui conhecido” (I Cor 13,12). Nós o
1223 MERTON, Thomas Experiência interior p. 69. 1224 Id., O homem novo, pp. 100-101. 1225 Ibid., p. 97. 1226 Cf. Ibid., p. 98. Como diz Santo Tomás: “A imagem de Deus está na alma conforme o
conhecimento que concebe de Deus e conforme o amor que flui desse conhecimento”.
289
apreendemos pelo amor que se identifica, dentro de nós, com o amor que Ele tem
por nós. Aquilo que, na visão beatífica, será plenamente realizado, realiza-se de
modo incoativo, na contemplação, desde já na vida presente1227
.
Está claro que, para se preparar para receber o Espírito Santo e o seu amor, a
pessoa deve direcionar o seu desejo para essa experiência, retirando seus desejos
de todas as satisfações externas e ambiciosas e dos interesses temporais.
O desejo, entretanto, é a coisa mais importante na vida contemplativa. Sem desejo nunca vamos receber os grandes dons de Deus. Não pode haver desejo onde não há
um mínimo de conhecimento. Não podemos desejar a união com Deus a não ser
que tenhamos conhecimento da existência desta, bem como alguma ideia daquilo
em que ela consiste1228
.
“Spiritualia videri non possunt nisi quis vacet a terrenis” (não se podem ver
as coisas espirituais, a não ser que se esteja vazio de coisas mundanas)”1229
, pois é
certo que:
A vida, então, não é apenas objeto de conhecimento, é vivida. É vivida e experimentada em sua inteireza, isto é, em todas as ramificações de sua atividade
espiritual. Todas as capacidades da alma se desenvolvem no sentido da liberdade,
do conhecimento e do amor. E todas convergem e se reúnem num só ato supremo
que irradia paz. A realidade concreta dessa experiência é, no mais alto sentido, existencial. Ainda mais, é comunhão – um percepção de nossa própria realidade
imersa, e, em certo sentido, unida à suprema Realidade, o Ato Infinito de Existir
que denominamos Deus. E, enfim, comunhão ao Cristo Verbo Encarnado. Trata-se, não apenas de uma união pessoal das almas com Ele, e sim de comunhão ao grande
e único ato no qual Ele venceu a morte, uma vez por todas, pela sua própria Morte
e Ressurreição1230
.
No entanto, para o homem alienado, assim como para o cristão inteiramente
ocupado com atividades externas e interesses temporais, o único meio de
descobrir algo sobre as alegrias da contemplação é pela experiência1231
.
A experiência da contemplação é a experiência da vida e presença de Deus em nós,
não como objeto mais como fonte transcendente de nossa própria subjetividade. A contemplação é um mistério no qual Deus se revela a nós como o próprio centro de
nosso ser mais íntimo, intimior intimo meo, na expressão de Santo Agostinho.
Quando, num relance, tomamos consciência de Sua presença em nós, nosso próprio ser desaparece nEle e atravessamos misticamente o Mar Vermelho de separação
para nos perdermos (e assim encontrar nosso ser verdadeiro) nEle1232
.
Merton nos apresenta a diferença entre uma visão secular e uma visão
sagrada da vida. O adjetivo “secular” é proveniente do latim saeculum, que
1227 MERTON, Thomas O homem novo, p. 99. 1228 Id., Experiência interior, p. 71. 1229 Ibid., p. 70. Segundo TM: “Mundanas - aqueles que amam as coisas transitórias e sem
importância deste mundo”. 1230 Id., O homem novo, p. 22. 1231 Cf. Id., Experiência interior, p. 71. 1232 Id., Op. cit., p. 21.
290
significa tanto “mundo” quanto “século” e que talvez esteja relacionado ao Grego
kuklon, “roda”, do qual se tira “ciclo”. Originariamente, o “secular” era o que
percorre, interminavelmente, ciclos sempre recorrentes. Isto é o que faz “a
sociedade mundana”, cujos horizontes são de uma sempre repetida mesmidade1233
.
Ora toda a nossa existência nesta vida está submetida à mudança cíclica. Só isso
por si não a faz secular. A vida se torna secularizada quando se compromete
inteiramente com os "ciclos" do que parece se novo, mas de fato é a mesma coisa de sempre. A vida secular é uma vida de vãs esperanças, aprisionada à ilusão de
novidade e mudança, uma ilusão que nos faz voltar sempre ao mesmo ponto, a
contemplação de nossa própria nulidade. A vida secular é uma vida
desesperadamente dedicada à fuga, pela novidade e variedade, de nosso temor de morte
1234.
Assim, o secular e o sagrado refletem duas espécies de dependências.
Primeiro o mundo secular depende da criação e multiplicação de necessidades
artificiais e de tudo mais para fugir de sua nulidade. O mundo secular
pretensamente exalta a liberdade humana, pois “escraviza-o pelas coisas de que
depende para satisfazer as suas sempre crescentes necessidades, sua
intranquilidade, insatisfação, ansiedade e seus temores, mas, acima de tudo, à
culpa que o reprova por ser infiel à verdade que leva dentro de si”1235
. No mundo
sagrado, o ser humano tem como seu mestre Deus, não admitindo nenhuma
dependência interior ou mesmo exterior.
Somente quando Deus é nosso mestre somos livres, pois Deus está dentro e acima
de nós. Ele nos rege libertando-nos e nos elevando à união com Ele dentro de nós mesmos. Ao fazê-lo, liberta-nos de nossa dependência das coisas criadas que estão
fora de nós. Nós as usamos e dominamos, de tal modo que estas existem para nós,
e não o contrário1236
.
A atitude sagrada diante da vida não é uma fuga do sentido de nulidade, mas
um movimento que penetra as trevas dessa nulidade, percebendo que a
misericórdia divina a transformou em seu templo e que em suas trevas se oculta a
própria luz divina.
A autorrealização, no sentido religioso verdadeiro de que falamos, é não tanto
estarmos conscientes de nós mesmos, mas sim estarmos conscientes de Deus, ao qual somos atraídos nas profundezas de nosso ser. Tornamo-nos reais e
experimentamos nossa realidade, não quando paramos para refletir sobre nós
próprios como entidade individual isolada, mas, antes, quando transcendendo-nos e ultrapassando a reflexão, polarizamos nossa alma inteiramente em Deus, que é
nossa vida. Quer isso dizer que nós nos ‘realizamos’ plenamente quando cessamos
1233 Cf. MERTON, Thomas. Experiência interior, p. 72. 1234 Ibid., p. 73. 1235 Id., Experiência interior, p. 74. 1236 Ibid., p. 75.
291
de estar conscientes de nós mesmos ‘em separado’, e nada mais conhecendo senão
o Deus que está acima de todo conhecimento1237
.
Logo, “a atitude sagrada não se afasta da vacuidade interior da pessoa, mas
entra nesta com espanto, reverência e consciência do mistério”1238
. É
essencialmente contemplativa a atitude sagrada da vida, enquanto que a atitude
secular é fundamentalmente ativa, voltada para o exterior. No entanto, não
significa que não possa haver uma atividade secular que seja sagrada (baseada no
amor). Mas para Merton “essa atividade, entretanto, só é sagrada na medida em
que tende para a contemplação”1239
.
O homem dotado da visão "sagrada" das coisas é justamente aquele que não tem
necessidade de odiar-se, e nunca sente vergonha nem temor diante da perspectiva
de permanecer em sua própria solidão, pois nela está em paz e, por meio dela, pode chegar à presença de Deus
1240.
Nessa presença pode ir mais além,
ele é capaz de, a partir de sua própria solidão, encontrar Deus nos outros homens. Isso quer dizer que, em seus contatos com os outros, não está obrigado a identificá-
los com seus pecados e condená-los por suas ações, pois é capaz de ver, também
neles, o que está por baixo da superfície e pressentir a presença do eu interior e
inocente, que é imagem de Deus. Tal homem pode ajudar outros homens a encontrar Deus em si mesmos, educando-os com base na confiança, pelo respeito
que consegue sentir por ele1241
.
Assim, uma atitude sagrada é uma vida de reverência, espanto e silêncio
diante do mistério que começa a tomar lugar no ser humano consciente do seu eu
mais profundo. O ser humano de fé então se abandona à vontade divina.
Em silêncio, esperança, expectativa e ignorância, o homem de fé abandona-se à
vontade divina: não como a um poder mágico e arbitrário, cujos decretos são pronunciados em fórmulas crípticas, mas à corrente da realidade e da própria vida.
A atitude sagrada é, assim, uma atitude de profundo e fundamental respeito por
todo o real, em qualquer nova forma que este possa se apresentar1242
.
Nesta atitude sagrada, quem é o homem de fé? O homem de fé está
idealmente livre de preconceitos. Ela fala de um ‘idealmente’ para excluir aqueles
cuja fé não é pura, mas somente outra forma de preconceito, mais que uma viva
sensibilidade ao logos de cada nova situação.
1237 MERTON, Thomas O homem novo, p. 98. 1238 Id., Experiência interior, p. 76. 1239 Id., O homem novo, p. 77. 1240 Ibid., p. 78. 1241 Id., Op. cit., p. 78. Grifo nosso. 1242 Ibid., p. 79.
292
Existe uma espécie de fé religiosa "dura" e rígida, que não é realmente viva ou
espiritual, mas reside inteiramente no eu exterior e é produto do convencionalismo
e do preconceito sistemático. Ao falar da obediência e da docilidade do homem de
fé, Cristo deixou claro que a união com a vontade de Deus na ação é um passo necessário para uma percepção contemplativa de Deus (Jo 14, 15-16.21)
1243.
Como podemos perceber em Merton, a total e incondicional docilidade à
vontade de Deus concede ao ser humano o gosto pelas coisas espirituais. Esse
delicado gesto de ceder ao mais leve movimento do amor de Deus é o que torna a
pessoa um contemplativo. Ou seja,
a realidade de Deus torna-se para nós, na contemplação, objeto de conhecimento de
um modo inteiramente novo. Quando apreendemos a Deus por meio de conceito,
vemo-lo como um objeto separado de nós, como um ser do qual estamos alienados,
ainda que creiamos em seu amor por nós e em nosso amor por Ele. Na contemplação, essa divisão desaparece, pois a contemplação ultrapassa os
conceitos e apreende a Deus, não como objeto separado, mas a Realidade dentro de
nossa própria realidade, o Ser dentro de nosso ser, a vida de nossa vida1244
.
Descobre-se a presença de Deus na profundidade do ser da pessoa que
marca a mudança de uma vida exterior para uma vida interior. A expressão “vida
interior” é a descrição válida para qualquer espécie de busca pela prece e
autodisciplina. Ou seja, a vida interior desperta a consciência espiritual e interior e
enquanto não há esse despertar, o “homem interior” permanece morto ou ao
menos adormecido1245
.
Na medida em que a vida espiritual é feita de pensamentos, desejos, ações,
devoções e projetos do eu exterior, ela participa do não-ser e da falsidade deste. É
claro, não existe uma espiritualidade puramente exterior. Não importa quão
exterior nossa vida espiritual possa ser, se ela tem uma raiz de sinceridade, é fundamentada no homem interior e tem, portanto, valor e realidade aos olhos de
Deus. O propósito de nossa vida, entretanto, é conduzirmos todos os esforços e
desejos ao santuário do eu interior, entregando-os todos ao comando de uma consciência interior e inspirada por Deus. Esta é a obra da graça
1246.
Merton analisa um texto do livro do Gênesis, que narra a luta entre Jacó e o
anjo1247
para explicar a batalha que ocorre entre o eu exterior e o eu interior. A
1243 MERTON, Thomas. Experiência interior, p. 79. 1244 Id., O homem novo, p. 21. 1245 Cf. Id., Experiência interior, p. 130. 1246 Ibid., p. 133. 1247 Eis o texto: "E Jacó ficou só. E alguém lutou com ele até surgir a aurora. Vendo que não o dominava, tocou-lhe na articulação da coxa, e a coxa de Jacó se deslocou enquanto lutava com ele.
Ele disse: "Deixa-me ir, pois já rompeu o dia". Mas Jacó respondeu: "Eu não te deixarei se não me
abençoares! Ele lhe perguntou: "Qual é o teu nome?" "Jacó", respondeu ele. Ele retomou: "Não te
chamarás mais Jacó, mas Israel, porque foste forte contra Deus e contra os homens, e tu
prevaleceste". Jacó fez essa pergunta: "Revela-me teu nome, por favor". Mas ele respondeu: "Por
que perguntas pelo meu nome?"E ali mesmo o abençoou”. Gn 32, 25-30.
293
batalha que ocorre entre Jacó e o anjo é a da força baseada no eu exterior, contra a
força de Deus, vida e realidade de nosso eu interior.
Temos, sobre o nosso antagonismo, um certo poder, pois, ainda que não possamos
vencê-lo, podemos impedi-lo de ir embora até que nos abençoe. Esse poder é mais que a nossa própria força; é o poder do amor, o qual procede secretamente de
dentro, vem do próprio antagonismo. É com seu próprio poder que este deseja ser
detido por nós. É o poder pelo qual ele é "alcançado e se mantém próximo" [...] Ele permite que "lutemos fortemente com Deus" e conquistemos para nós um novo
nome, Israel, que significa "o que vê a Deus". É esse nome que faz de nós
contemplativos - é o novo ser e uma nova capacidade de percepção. Contudo,
quando perguntamos seu nome, não o podemos conhecer, pois mesmo nosso eu mais profundo nos é desconhecido, assim como Deus nos é desconhecido
1248.
A contemplação aqui apresentada não se refere a um misticismo puro e
simples, mas como uma intuição direta da realidade a simplex intuitus veritatis.
Ou seja, “à pura percepção que é e deve ser o fundamento não só da especulação
metafísica genuína, como também da experiência religiosa madura e
sapiencial”1249
.
1.1 Diálogo entre as religiões
Assim, “um dos aspectos mais importantes do diálogo entre as religiões tem
sido, até agora, um dos menos discutidos: é a contribuição especial que a vida
contemplativa pode trazer ao diálogo”1250
. A contemplação é um “dom” (uma
graça) e uma “arte”. Pode-se admitir que seja quase ‘uma arte perdida’1251
. Sobre
o cristianismo ele vai nos dizer que:
É uma religião de amor. O moralismo cristão é um moralismo de amor. Não pode
haver amor sem a obediência que une a vontade do que ama com a vontade do Amado. Mas o amor é destruído por uma união das vontades mais forçadas que
espontâneas. Quem obedece a Deus por estar compelido a isso não o ama de
verdade. Deus não quer um culto de obrigação. Quer um culto livre, espontâneo,
sincero, “em espírito e verdade”. É certo que deverá sempre haver um limite em que a pobreza humana será protegida contra si mesma por um mandamento formal:
“Não farás!” Não pode haver amor de Deus que ignore tais mandamentos. Todavia,
um amor verdadeiro e maduro obedece, não porque é mandado, e sim porque ama
1252.
1248 MERTON, Thomas. Experiência interior, pp.134-135. 1249 Id., Místicos e mestres zen, p. 236. 1250 Ibid., p. 235. 1251 Cf. Id., O homem novo, p. 140. 1252 Ibid., pp. 139-140.
294
No entanto, a nostalgia não faz do ser humano um contemplativo. Para
voltar-se à contemplação, faz-se necessário mergulhar em um cristianismo em que
o discipulado se realiza em Cristo.
O cristianismo não é a religião de uma lei; é a religião de uma pessoa. O cristão
não é meramente o que observa as regras que lhe são impostas pela Igreja. É um
discípulo do Cristo. É verdade que ele observa os mandamentos de Deus e as leis da Igreja. No entanto, a razão por que o faz não deve ser procurada em nenhum
poder de decretos legais. Encontra-se no Cristo [...] Jesus vivendo em nós pelo seu
Espírito é a nossa Regra de Vida. Seu amor é a nossa lei e é coisa absoluta. A obediência à lei de Jesus nos torna conformes a Ele como pessoa. Assim,
aperfeiçoa em nós a imagem divina. Faz-nos semelhantes a Deus. Enche-nos com a
vida e a liberdade que Ele nos ensinou a procurar. Esse é o valor que determina todos os atos do cristão. Essa é a base ao mesmo tempo do humanismo e do
misticismo cristãos. O cristão vive de amor e, portanto, de liberdade1253
.
O contemplativo não é simplesmente uma pessoa que vive enclausurada.
Pelo contrário, o contemplativo possui certa abertura para o mundo e uma
participação genuína em sua angústia. E assim, diante do diálogo inter-religioso,
Merton dirá que
um diálogo genuinamente produtivo não pode se contentar com um interesse
diplomático cortês por outras religiões e suas crenças. Procura um nível mais
profundo, no qual as tradições religiosas sempre afirmaram testemunhar um conhecimento mais elevado e mais pessoal de Deus daquele que é simplesmente
expresso no culto exterior e na doutrina formulada1254
.
É profundamente claro que,
em todas as religiões, encontramos não só a reivindicação de uma forma de revelação (divina), mas também o registro de experiências especiais nas quais a
validade absoluta e final dessa revelação é, de alguma forma, atestada. Além disso,
em todas as religiões se reconhece, mais ou menos geralmente, que essa experiência “sapiencial” profunda, chamem-na de gnose, contemplação,
“misticismo” “profecia”, ou do que quiserem, representa o fruto mais profundo e
mais autêntico da própria religião. Todas as religiões, então, buscam um “ápice” de santidade, de experiência, de transformação interior ao qual seus fiéis – ou uma
elite de fiéis – aspiram porque têm esperança, por assim dizer, de encarnar em suas
próprias vidas os valores mais elevados nos quais creem. Em palavras
grosseiramente simplificadas, todas as religiões aspiram, de um jeito ou de outro, a uma “união com Deus” e, em todas, essa união é descrita em termos que têm claras
analogias com as experiências místicas e contemplativas da tradição cristã,
particularmente da católica1255
.
Por muito tempo, os cristãos consideraram as experiências religiosas não
cristãs com suspeita e acreditavam não valer a pena nem mesmo estudá-las.
1253 MERTON, Thomas. Místicos e mestres zen, p. 236. 1254 Id., p. 236. 1255 Ibid., p. 237.
295
O diálogo conduzido por teólogos e bispos quanto à doutrina e ao ajuste prático
jamais poderá ter qualquer sentido sério se, no fundo, persistir uma profunda
convicção de que as religiões não cristãs são todas corrompidas em seu âmago, e o
que reivindicam com suas mais altas perfeições e sua suprema realização não passa, de fato, de uma diabólica ilusão. Todavia, não acredito que os estudiosos e
os teólogos façam hoje essa generalização indiscriminada1256
.
O Concílio Vaticano II reconheceu a legitimidade do “profundo sentido
religioso” que capacitou os homens de todas as raças e povos a reconhecerem
Deus, a “contemplarem o mistério divino e a expressá-los”, e a buscarem
libertação da angústia da condição humana. Segundo o Concílio, “a Igreja não
rejeita nada do que há de verdadeiro e santo nessas religiões”1257
, e acrescenta que
o propósito do diálogo deveria ser combinar “o testemunho sincero da fé cristã
com a compreensão e até a promoção dos bens morais e espirituais que se
encontram nessas culturas”1258
.
Entretanto, a Igreja de forma alguma abandona sua intenção de anunciar a
mensagem definitiva de salvação para o homem em Cristo; o diálogo, tal como o Concílio o concebe, não se baseia apenas na suposição de que todas as verdades
religiosas são igualmente e indiferentemente boas. Não obstante, a contemplação
sobrenatural é certamente admitida como possível em todas as religiões1259
.
Merton nos apresenta o primeiro problema que surge no diálogo. Faz-se
necessário ser claros sobre a solidez das intuições metafísicas, das intuições pré-
dialéticas e diretas do “ser” (descrito no hinduísmo como Brama ou atmã, no
budismo como “o vácuo” ou sunyata) que formam a base das religiões orientais.
Em que sentido as religiões da Ásia se dizem “místicas” ou “sobrenaturais”?
Existe uma variedade de opiniões. Segundo uma grande autoridade do zen-
budismo - Daisetz T. Suzuki - o zen “não é misticismo”. O jesuíta autor de uma
história clássica do zen, o padre H. Dumoulin, procura mostrar que o zen pode,
em certo sentido, ser chamado de misticismo1260
.
No entanto, deve-se admitir que Deus não é limitado em seus dons.
1256 MERTON, Thomas. Místicos e mestres zen, p. 238. 1257 NA, 2. 1258 NA, 2. 1259 MERTON, Thomas. Místicos e mestres zen, pp. 238-239. 1260Heinrich Dumoulin, SJ, teólogo que amplamente escreveu sobre o zen budismo. Foi fundador
do Instituto de Religiões Orientais e primeiro diretor do Instituto Nanzan para Religião e Cultura. Suas principais obras sobre o zen são: The Development of Chinese Zen After the Sixth Patriarch
in the Light of the Mumonkan, 1953; A History of Zen Buddhism, 1963; Christianity Meets
Buddhism, 1974; Buddhism in the Modern World, 1976; Zen Enlightenment: Origins and
Meaning, 1979; Zen Buddhism in the Twentieth Century, 1992; Zen Buddhism: A History; Volume
1 India and China, 2005; Zen Buddhism: A History; Volume 2 Japan, 2005. Cf. MERTON,
Thomas. Místicos e mestres zen, p. 239.
296
não há motivo para pensar que Ele não possa conceber Sua luz a outros homens
sem primeiro nos consultar, não pode haver, de forma alguma, motivos sólidos
para negar a possibilidade de revelação sobrenatural (privada) e de graças místicas
sobrenaturais a indivíduos, não importa onde estejam ou quais sejam suas tradições religiosas, desde que busquem sinceramente a Deus e a Sua verdade. Nem há
nenhuma base a priori para negar que as grandes figuras proféticas e religiosas do
islã, do hinduísmo, do budismo, etc., pudessem ser místicas no sentido verdadeiro, sobrenatural da palavra
1261.
Em seguida nos alerta:
Por outro lado, todos estão conscientes da tendência oposta, a um sincretismo vago e irresponsável que, baseado em semelhanças puramente superficiais e sem um
estudo sério das diferenças qualitativas, passa a identificar todas as religiões e
todas as experiências religiosas umas às outras, afirmando serem todas igualmente verdadeiras e sobrenaturais e diferirem apenas nos detalhes da expressão cultural.
Adotar essa visão como axiomática seria garantir, logo de saída, que o diálogo
inter-religioso acabaria em confusão1262
.
As duas visões, a priori extremas, uma que nega qualquer reivindicação de
validade às experiências religiosas não católicas, e a outra que afirma que todas as
tradições religiosas são igualmente verdadeiras e sobrenaturais, procedem ambas
de uma consideração superficial dos dados. E se permanecer apenas entre
pesquisadores e nos estudos de documentos ficará privado de sua dimensão mais
essencial. Aqui se vê a necessidade do contemplativo cristão e do contemplativo
não cristão entrarem modestamente na discussão.
A questão dos contatos e da comunicação efetiva entre os contemplativos das várias tradições não apresenta mais obstáculo. Uma pequena experiência de
diálogo desse tipo mostra de imediato, que este é precisamente o nível mais
frutuoso e mais compensador da troca [...] É realmente esclarecedor e chega a ser maravilhoso conversar com um zen-budista do Japão e descobrir que se tem muito
mais em comum com ele do que com muitos dos próprios compatriotas que estão
pouco preocupados com a religião, ou estão interessados apenas em sua prática
externa1263
.
Em todas as raças e tradições religiosas encontra-se a capacidade para a
experiência contemplativa, presente nas grandes tradições religiosas asiáticas ou
europeias. Merton nos lembra que o clima espiritual da Idade Média cristã e do
período patrístico era essencialmente ‘sapiencial’ e não científico, em que se
cultivava especialmente a contemplação favorecendo uma visão intelectual e
espiritual semelhante às culturas tradicionais do Oriente. Por isso, nos mosteiros
contemplativos católicos, por preservarem essa experiência, estariam os monges
1261 MERTON, Thomas. Místicos e mestres zen, p. 240. 1262 Ibid. 1263 Ibid., p. 242.
297
“predispostos a apreciar e a entender os que vêm a eles com experiências em
tradições análogas”.
Quando entramos em contato com nosso ser mais profundo, com um bem ordenado
amor de nós mesmos, inseparável do amor de Deus e de sua verdade, descobrimos que toda sorte de bem cresce de dentro de nós, surgindo das profundezas ocultas de
nosso ser em consonância com as normas concretas e existenciais determinadas
pelo Espírito que nos é dado por Deus. Essa espontaneidade mística (que se inicia com a livre opção da fé e aumenta com nosso crescimento na caridade) dá o tom a
toda nossa vida moral. É a promulgação interior da nova lei de Deus em nossos
corações: a caridade1264
.
Lembremos que na III parte de nossa tese, quando aprofundávamos a
experiência mística de Merton, o mesmo afirmou não ser essa experiência cristã
de forma alguma redutível a uma experiência de afastamento e recolhimento, uma
negação da matéria e dos sentidos, um simples dobrar-se sobre a misteriosa
presença interior de Deus, na “oração de silêncio”, na “oração de união”, no
“noivado espiritual” e no “matrimônio espiritual”1265
. É uma experiência de
reconhecimento de sua realidade interior no profundo de si mesmo para
reencontrar no seu íntimo sua imagem e semelhança de Deus.
Sem este despertar interior que brota da compreensão do amor misericordioso de
Deus por nós, a imagem permanece uma semelhança meramente potencial,
enterrada e obscurecida. Não apreciada, porque está oculta. A imagem brota para a vida quando tocada pela inefável misericórdia de Deus, começa a recuperar a
semelhança perdida, identificando-se com Aquele que é Amor. A presença de Deus
em nós é a presença de sua semelhança em nosso espírito – semelhança que é mais que uma representação: é o próprio Verbo de Deus, unido à nossa alma pela
atuação do Espírito Santo. A sensação de ser “conduzido” e “atraído” pelo amor
para dentro do espaço infinito de uma liberdade sublime e incompreensível é a
expressão de nossa união espiritual com o Pai, no Filho, pelo Espírito Santo que nos constitui em nossa verdadeira identidade de filhos de Deus
1266.
É preciso se lembrar de todas as dimensões litúrgicas, bíblicas e patrísticas
do misticismo cristão. Ademais, que entenda que a theoria cristã é uma resposta à
manifestação de Deus de Si mesmo em Sua Palavra. É uma compreensão
contemplativa de toda a criação à luz da Ressurreição, da nova criação, ou ainda
de um ‘novo ciclo’. Indo além, é uma consciência espiritual do mistério de Deus
em ação na história e na Igreja como pleroma de Cristo (Ef 1,18-23). Para o
cristão, a contemplação está centrada na cruz de Cristo, que é o mistério da
kenosis.
1264 MERTON, Thomas. O homem novo, p. 179. 1265 Cf. Id., Místicos e mestres zen, pp. 244-245. 1266 Id., O homem novo, p. 100.
298
Nesse mistério encontramos a plena expressão da dialética da plenitude e do vazio,
tudo e nada, vácuo e infinitude, que aparece no centro de todas as grandes formas
tradicionais de sabedoria contemplativa. Aqui também encontramos
paradoxalmente na “palavra da cruz” o esvaziamento de todas as sabedorias humanas (1Cor 1,18-25) a fim de que o homem possa encontrar diretamente a luz e
o poder de Deus [...] Portanto, toda a ideia da contemplação cristã é uma theoria
que une e funde vigorosamente o cristianismo “encarnado” e o “escatológico” e depois se abre para o domínio da iluminação divina, a theologia, na qual o mistério
mais elevado, a trindade de pessoas em uma única natureza, não é contemplada
como “objeto”, mas celebrada no hino do Espírito, “Abba, Pai!”, o qual, no entanto, não é dado à língua do homem pronunciar em fala humana inteligível (Rm
8,14-18; II Cor 12,4)1267
.
A contemplação torna-se necessária para o diálogo ecumênico. Sendo esta
verdadeira e não um narcisismo consagrado, deve ser capaz de mostrar-se repleta
do alimento oferecido pela palavra de Deus e que, “fortalecido em poder pelo seu
Espírito no homem interior”, pode “conhecer o amor de Cristo que excede a todo
conhecimento para ser plenificado com toda a plenitude de Deus” (Ef 3,17-19). E
que esta não é meramente uma técnica esotérica e mágica. E mais ainda que:
Realizamo-nos plenamente quando toda a nossa atenção consciente está voltada
para um outro. Aquele que é inefavelmente “Outro” que todos os seres, porque é infinitamente superior a todos. A imagem de Deus toma a vida em nós, quando nos
liberta, rompendo através da mortalha e do sepulcro no qual a atenção a nós
mesmos o manteve prisioneiro e se perde numa total tomada de consciência
daquele que é Santo. Esse é um dos principais caminhos nos quais “quem quer salvar sua vida perdê-la-á” (Lc 9,14)
1268.
Assim, para o diálogo inter-religioso com o contemplativo asiático, por
exemplo, deve-se revelar que é consciente das dimensões religiosas da pessoa e do
mistério do ser; que o contemplativo cristão “não confunde pessoa com indivíduo
e que não considera sua relação com o âmago do ser uma relação puramente
sujeito-objeto – que não está confinado ao individualismo exagerado e
materialista das preocupações puramente éticas e práticas”1269
.
O papel que o contemplativo pode desempenhar seria então, idealmente falando,
muito importante. Se as ordens contemplativas estão hoje à altura dessa tarefa é
outra questão. A renovação da vida contemplativa, exigida no esquema sobre os religiosos propostos pelo Concílio, certamente requer algo mais do que o
cumprimento das disciplinas da clausura, do silêncio e da regularidade da oração
canônica. Mas, ao mesmo tempo, as ordens contemplativas devem tomar um cuidado especial para evitar uma acomodação superficial que, em nome de uma
aggiornamento mal compreendido, acabaria por privá-las das riquezas autênticas
de sua tradição mística e profética1270
.
1267 MERTON, Thomas. Místicos e mestres zen , p. 246. 1268 Id., O homem novo, pp. 98-99. 1269 Id., Místicos e mestres zen, pp. 246-247. 1270 Ibid., p. 247.
299
No entanto, todos podem desejar a contemplação desde que sejam
sinceros, prudentes e permaneçam abertos à verdade. Os grandes obstáculos para a
mesma são a rigidez e o preconceito. Por isso, ninguém deve se iludir com as
aspirações contemplativas se não está determinado a assumir, em primeiro lugar,
os labores e as obrigações comuns da vida normal.
A contemplação não é uma espécie mágica, um atalho fácil para a felicidade e a perfeição. No entanto, ao nos conduzir a um contato com Deus em um
relacionamento pessoal e direto de amizade misteriosamente experimentada, a
contemplação traz, necessariamente, aquela paz que Cristo prometeu e que "o mundo não pode dar". Pode haver muita desolação e sofrimento no espírito do
contemplativo, mas há sempre mais alegria que tristeza, mais segurança que
dúvida, mais paz que desolação. O contemplativo é aquele que encontrou aquilo
que todos os homens buscam de um modo ou de outro1271
.
Um dos paradoxos da vida mística é que não pode alguém penetrar no mais
íntimo de seu ser, chegando a Deus, se não for capaz de sair inteiramente de si
mesmo, esvaziando-se de si mesmo e dando-se aos outros na pureza de um amor
que não se busca a si próprio.
Essa unidade é algo que não podemos compreender e saborear a não ser na treva da
fé. Mesmo aqui, porém, quanto mais formos Um com Deus, tanto mais estaremos unidos uns com os outros; e o silêncio da contemplação é sociedade profunda, rica,
incessante, não só com Deus, mas com os homens. O contemplativo não está
isolado em si mesmo; está liberto de seu eu externo, egoísta, pela humildade e a pureza de coração - não há mais, portanto, obstáculo algum ao amor simples e
humilde para com os outros1272
.
No entanto, vivemos em um tempo em que o ser humano se encontra
fortemente determinado por estruturas sociais e por processos de socialização e
globalização e, por outro lado, deseja encontrar espaço de solidão e silêncio para
ter contato com sua própria interioridade. Merton, que sempre viveu esse dilema,
faz a seguinte reflexão:
Visto que todas as coisas têm seu momento, existe um tempo de gestação. Em efeito, temos de começar em um ventre social. Porém existe também um tempo
para nascer. O que tem nascido espiritualmente com identidade madura está liberto
do ventre em torno do mito e do preconceito. Aprende a pensar por si mesmo, já
não é guiado pelos ditames da necessidade de sistemas e processos e caminhos para a criação de necessidades artificiais e em seguida, "satisfazê-las"
1273.
Ele nos apresenta duas formas para essa emancipação:
Essa emancipação pode adotar duas formas: primeiro, a vida ativa, que liberta da
escravidão da necessidade de considerar e atender as necessidades dos demais sem
1271 MERTON, Thomas. Experiência interior, p. 168. 1272 Ibid., pp. 70-71. 1273 Id., Incursiones en lo Indecible, p. 26.
300
pensar em interesses pessoais ou compensações. E segundo, a vida contemplativa,
que não tem de construir-se como uma fuga do tempo e da matéria, e da
responsabilidade social e da vida dos sentidos, senão como um avanço para a
solidão e o deserto. [...] No coração da angústia se encontram os dons da paz e compreensão: não simplesmente na iluminação e a libertação pessoal, senão no
compromisso e a compreensão, pois o contemplativo deve assumir a angústia
universal e a situação inevitável do homem mortal. O solitário, longe de fechar-se em si mesmo, é de todos os homens. Mora na solidão, na pobreza, na indigência de
todos os homens1274
.
Merton sugere ainda que a vida contemplativa tenha um espaço para a
liberdade e silêncio para que possam vir à tona novas escolhas, além das habituais.
Deve-se criar uma nova consciência de tempo, um temps vierge. Não seria um
espaço vazio para preencher, mas um lugar para que se possa desfrutar das
próprias potencialidades e anseios e da presença de si mesmo. “O tempo da
pessoa. Não, porém ocupado pelo próprio ego com suas exigências, mas aberto
aos outros – um tempo compassivo, tendo ao fundo a consciência da ilusão
comum e a crítica desta”1275
.
Este tempo, como um tempo compassivo, pode significar um espaço em que
deve ocorrer o diálogo entre as tradições religiosas, em um nível para além da
comunicação, na comunhão1276
.
Sem afirmar que se dê a unidade plena de todas as religiões no “topo”, ou seja, no
nível místico ou transcendente, e sem afirmar que tampouco elas partem de
diferentes posições dogmáticas para encontrar-se logo no “cume”, é perfeitamente
correto dizer que, mesmo tendo entre elas diferenças um tanto irrenunciáveis, tanto em nível doutrinários como no da formulação de crenças, existe também grandes
semelhanças e analogias ao nível da experiência religiosa. [...] As diferenças
culturais e doutrinárias devem ser mantidas, porém não invalidam uma qualidade muito real de semelhança existencial
1277.
Para essa experiência, é preciso lembrar da capacidade do ser humano de ser
mais plena e humanamente vivo, ou seja, a fazer uso consciente de sua liberdade
de escolher sua própria vida e de ir ao mais profundo de si mesmo. Vivendo uma
liberdade superficial, sem destino que experimenta isto ou aquilo. E assim,
pretendendo ser uma liberdade de escolha se esquiva de descobrir quem é que
1274 MERTON, Thomas. Incursiones en lo Indecible, p. 27. 1275 Id., O Diário da Ásia, p.89 e 136. Sobre esse tema já tínhamos apresentado na III parte de
nossa tese, no segundo capítulo, item 2.1. 1276 Cf. Ibid., p. 249. 1277 Ibid., p. 245.
301
escolhe. Não se torna livre por ser incapaz de enfrentar o risco da
autodescoberta1278
.
No entanto, quem alcança sua identidade mais profunda se identifica, em
certo sentido, com todos – ou na linguagem do Novo Testamento, ele é ‘tudo para
todos’. Atingiu a liberdade mais profunda e íntima – a liberdade do Espírito. Ela é
conduzida, não apenas pela vontade e a razão, mas por um “proceder dinâmico
sujeito a uma visão dinâmica”1279
.
O ser humano que alcança a integração do seu ser, não mais se encontra
limitado pela cultura em que está inserido. Este aceita não somente sua própria
comunidade, sua sociedade, seus amigos e sua cultura, mas a humanidade toda;
não permanece atado a um único padrão de valores limitados de maneira tal que a
elas se oponha com agressividade ou na defensiva com os outros. Ou seja, para
Merton,
O ser humano plenamente integrado é plenamente ‘católico’ no melhor sentido da palavra; tem uma visão e uma experiência unificadas da verdade única que refulge
em todas as suas manifestações, mais nítidas umas do que outras, mais definidas e
mais certas umas que outras. Para ele não se trata de estabelecer uma oposição entre essas visões parciais contrapondo uma à outra, mas de unificá-las numa
dialética ou uma visão interior de complementaridade. Com esta visão da vida pode
ele injetar na vida de outros perspectiva, liberdade e espontaneidade. O homem finalmente integrado é um artífice da paz, por isso é que há uma necessidade tão
premente de que nossos líderes se tornem homens de visão1280
.
No mais profundo do coração de Merton, pulsava o sincero desejo de amar a
tudo e todos; uma paixão pela unidade e a paz entre os homens, um sentimento
fortemente enraizado de levar adiante ocupações que contribuem para a unidade e
harmonia de todos os seres humanos, quais forem suas crenças, sua condição
social, sua origem e cultura.
Por essas razões, porque estava convencido no mais profundo de seu
coração e porque havia percorrido em profundidade os caminhos de sua própria
tradição, acolhe com entusiasmo a possibilidade que logo se tornaria realidade,
sua viagem à Ásia que preparou conscientemente e que cristalizaria anos de
interesses por outras religiões e expressões místicas. Nesta viagem ele afirma que:
Acredito que mediante a abertura ao budismo, ao hinduísmo, e a essas grandes
tradições asiáticas nos traz uma oportunidade maravilhosa para aprender mais sobre a potencialidade das nossas próprias tradições. [...] A combinação das
1278 Cf. MERTON, Thomas. Amor e Vida, p. 4 1279 Cf. Id., Contemplação num mundo de ação, p. 202. 1280 Ibid., p. 203.
302
técnicas naturais, graça e outros fatores manifestados na Ásia com a liberdade
cristã do Evangelho, deveria levar-nos todos, por fim, a essa liberdade plena e
transcendente situada além das meras diferenças culturais das meras exterioridades
e meros isto ou aquilo1281
.
A experiência de profundidade que viveu Merton em sua fé e - como
veremos no capítulo seguinte - também Panikkar, em que respectivamente
estiveram em contato com as religiões e a mística oriental, nos chamam a atenção
acerca da nova situação em que se encontra o cristianismo, de colaborar para que
seus crentes realizem uma experiência de mergulho em sua fé e se reconheçam
como imagem e semelhança de Deus. Para que não se viva uma religiosidade
epidérmica, recuperando a dimensão da experiência íntima do mistério de Deus e
da experiência da unidade com ela.
2. Raimon Panikkar
A harmonia invisível
Percebemos que Panikkar, em sua imensa produção literária, nos revela sua
busca pela harmonia, a qual ele mesmo denominou ‘harmonia invisível’ de todas
as religiões, por constituírem um todo harmônico. Segundo ele, somente dessa
harmonia se pode chegar à verdade total, que não possui nenhuma religião em
particular. Ou seja, a Verdade somente pode ser possuída parcialmente, como
verdades limitadas.
Assim, para as religiões como para as culturas, a harmonia invisível pode
ser uma resposta para as tentativas de uma religião universal bem como de uma
cultura universal. Seu pensamento é contrário diante da tentativa de elaborar uma
teoria universal da religião. Para Panikkar a busca de uma “teoria universal”
fomenta o diálogo, porém corre o perigo de impor sua própria linguagem e a
“supremacia do logos frente ao pneuma”, a razão frente ao espírito1282
.
Na contramão da busca de uma teoria universal, Panikkar defende que é
preciso abrir-se aos demais, acreditar e confiar na experiência humana, na
harmonia dos seres humanos e do cosmos. A harmonia invisível apresentada está
relacionada com o que o mesmo denominou o “efecto pars pro toto”: A visão que
se tem de toda realidade (totum), é de uma particular janela cultural e religiosa
1281 MERTON, Thomas. Diário de Ásia, p. 267. 1282 Cf. PANIKKAR, Raimon. Sobre el diálogo intercultural, p. 103
303
(pars). Isto significa que cada um pode ser consciente do todo, porém sob uma
perspectiva particular, ou seja: “Não existe universalidade nem objetiva nem
subjetiva. Vemos quanto podemos ver, porém somente tudo o que nós podemos
ver, nosso totum... conhecemos o totum somente em parte e per partem. Vemos
tudo através de nossa janela”1283
.
O verdadeiro ecumenismo não é a redução a um denominador comum. A autêntica tolerância não requer destruir os pontos de vista inaceitáveis. Não faz falta diluir as
próprias convicções religiosas para poder aceitar as de outros. Cada tradição
reclama o todo (totum) e o busca de maneira incondicional... porém vê o totum in
parte et per partem, em suas próprias categorias e desde sua perspectiva1284.
A Realidade para Panikkar é relacional, não é nem dualista, nem monista-
panteísta, mas advaitica (a-dual), em que estão presentes o Cosmos, o ser Humano
e Deus. É o que ele chamou de Perspectiva Cosmoteândrica ou Trindade Radical.
Com o intuito de superar toda fragmentação do saber, para chegar à verdade por
meio da inter-relação que ele chamou ôntica, de todos os conhecimentos, ele nos
apresenta o ecumenismo-ecumênico religioso cultural.
E ainda, para compreendermos esta harmonia entre as partes e o todo que
pretende Panikkar – em conformidade com o pensamento hindu -, encontramos
sua persistência na relatividade de todas as partes, frente ao absolutismo
predominante de uma delas. Ele vai nos dizer que relatividade não é o mesmo que
relativismo, cada parte do todo tem seu valor particular. Segundo ele: “O dilema
não é relativismo ou absolutismo, senão o reconhecimento da relatividade radical
de toda a Realidade”1285
.
Este conceito de relatividade radical deve aplicar-se nas relações humanas,
na relação com o mundo, e na realidade divina. Esta relatividade radical é
constitutiva de toda realidade: “Tudo está relacionado com tudo”. Ele chega à
conclusão de que também Deus é pura relação, não é uma substância: relação
genitiva constitutiva da realidade, o genitivo constitutivo e gerador de todas as
coisas. É o alicerce de sua concepção trinitária, que quer ser profundamente cristã
chamada por ele de Trindade radical: “Deus não é um em si mesmo, uma vez que
é um eu, um tu e um ele, que se converte na perichôrêsis trinitária”1286
.
1283PANIKKAR, Raimon. Sobre el diálogo intercultural, p. 135. 1284 Id., Invitación a la sabiduría. Madrid: Espasa, 1999. p. 128. 1285 Id., La Trindad. p. 18. 1286 Id., El silencio del Buddha, p. 235.
304
A Trindade radical elaborada por Panikkar é uma perspectiva
cosmoteândrica da realidade, em que o Cosmos, o ser Humano e Deus estão
intima e indissoluvelmente relacionados. “É a intuição, totalmente integrada, do
tecido sem costuras da realidade inteira”1287
. A intuição cosmoteândrica é o
conhecimento indiviso da totalidade que pode levar à comunhão harmônica com o
todo. A realidade não é monolítica. Por isso não pode reduzi-la a um sistema
único de crenças, tornando-se unilateral. Faz-se então necessária uma
interpretação recíproca de todas as culturas e religiões.
As diferenças culturais são diferenças humanas e não se pode ignorá-las
nem eliminá-las ao tratar os problemas humanos. Assim como se deve respeitar a
personalidade de cada um para que a rede de relações humanas não se rompa, há
que manter flexível tudo o que seja necessário para que não prejudique a
humanidade1288.
Para Panikkar, o caminho é abrir o terceiro olho contemplativo, místico, que
nos leva mais além da ciência e da razão. Ele nos chama a atenção para a oração,
que não é apenas petição, é também silêncio e encontro com quem somos. E
assim, afirma:
Oramos na medida em que somos. (Daí a total importância do homem sobre a oração: não podemos orar além do que somos, e não podemos ser além do que
oramos. Por outra parte, somos na medida em que oramos. (Daí a importância da
alma que ora: podemos fazer tudo e ser tudo na medida em que nossa oração é e
que nosso ser é)1289.
2.1 Ecumenismo-ecumênico
O diálogo ecumênico é uma constante em Panikkar. No entanto, na intuição
desde o diálogo ecumênico, Panikkar trata de ir mais além do ecumenismo
interconfessional, limitado às confissões cristãs, para chegar a um ecumenismo
inter-religioso, um ecumenismo-ecumênico, como ele mesmo denominou. Nosso
autor procura uma relação mutuamente fecundante entre as distintas religiões da
oikumene, desde o Ocidente ao Oriente. Para ele:
O ecumenismo-ecumênico não comporta uniformidade de opiniões, senão que
significa harmonia de corações despertos... O objetivo é uma melhor compreensão,
uma crítica corretiva e uma melhor fecundação entre as tradições religiosas do
1287 PANIKKAR, Raimon. La intuición cosmoteándrica, p. 19. 1288 Id., Paz e interculturalidad, p. 127. 1289 Id., La nueva inocência, p. 189.
305
mundo sem diluir suas respectivas heranças ou prejudicar suas eventuais diferenças
irredutíveis1290
.
E assim, desejando ir mais além de um mero diálogo, fala de um diálogo
aberto a um mútuo enriquecimento. E como já pudemos conhecer um pouco sobre
nosso autor na parte anterior de nossa pesquisa, sabemos que seu pensamento e
seu caminho existencial colaboraram na busca por um diálogo ecumênico que
supõe aproximar-se dos outros buscando abrir-se a eles sem temer perder as suas
supostas certezas, e, inclusive, com a convicção de que estas serão enriquecidas
com as contribuições dos outros. Trata-se de superar o nível de dialética das ideias
para chegar a um diálogo aberto e acolhedor em que se reconheça a alteridade de
comunhão.
E ainda em relação aos paradigmas (exclusivismo, inclusivismo e
paralelismo), ele afirma que interdependência não supõe perder a própria
identidade:
Se nos damos conta de que a religiosidade de nosso vizinho não representa
somente um desafio, senão que pode também enriquecer a nossa; e que, afinal de
contas, a diferença que as separa se situa potencialmente no interior de nossas convicções; começamos a aceitar a ideia de que a outra religião pode ser
complementar à nossa; chegamos inclusive a admitir que, em casos particulares, a
outra religião pode suprir a nossa crença, a condição de que nossa religiosidade mantém conjuntamente indivisível
1291.
A relação entre as várias religiões deve ter como inspiração a imagem da
perichôrêsis trinitária divina.
As religiões não existem mais que em relação de uma com a outra... Em outra
palavra, a relação entre as religiões não pode derivar do exclusivismo (a minha é
suficiente), nem o inclusivismo (a minha abraça e inclui a todas as outras), nem do paralelismo (ainda de um modo independente, tendemos todas para o mesmo fim).
A relação entre as religiões deriva de uma perichôrêsis sui generis ou
circumincessio; isto é, de uma interpretação recíproca que nos questiona a
particularidade própria de cada religião1292
.
A insistência de Panikkar avança para além do diálogo inter-religioso.
Segundo ele, faz-se necessário um diálogo intrarreligioso. O ecumenismo-
ecumênico propõe um diálogo no interior da vida religiosa da pessoa. Por isso,
como veremos, é um caminho fundamentalmente espiritual: um diálogo que cada
crente deve realizar no interior de sua própria experiência e de sua própria vida
para abrir-se profundamente à experiência dos outros. Não se perde a própria
1290 PANIKKAR, Raimon. La nueva inocência, p. 325. 1291 Id., Il diálogo intrareligioso. Cittadella: Assisi, 1988. p. 35. 1292 Ibid., p. 36.
306
experiência espiritual específica e pessoal, senão que se enriquece com a dos
outros irmãos.
Ele nos apresenta o ecumenismo-ecumênico como um caminho para o
encontro, em que ocorre um enriquecimento religioso e teológico, ou seja, uma
“inter-relação serena e uma interpenetração dialogal de todos os caminhos que a
pessoa acredita levar à plenitude o destino final de sua vida”1293
. Esse
ecumenismo não significa igualdade de todas as crenças, ou um “relativismo
agnóstico e insustentável”. Trata-se de uma busca comum da Verdade desde um
autêntico diálogo dialógico, no dialeto consciente de que a verdade é sempre
relacional. O que não significa deixar de lado suas próprias convicções, senão que
requer
uma confrontação mútua de tudo o que somos, cremos e cremos ser, com o objeto
de estabelecer a mais profunda compenetração humana sem prejudicar os resultados, sem excluir nem sequer qualquer possível transformação de nossa
religiosidade pessoal1294
.
Surge o diálogo a partir da fé, com esperança de um entendimento mútuo e
com amor, compreendendo, assim, o outro. Diante do pluralismo, deve-se ir além
da mera coexistência de uma pluralidade de religiões e visões do mundo, para se
chegar ao esforço na busca pela compreensão do outro, cuja visão do mundo e de
Deus enriquecem quem a vive. Este pluralismo se converte, assim, em ‘supremo
imperativo humano e religioso’.
Uma vez tendo começado o diálogo interno, uma vez empreendida a tarefa da
busca intrarreligiosa genuína, estamos em condições de enfrentar o que eu chamo de método imparativo – ou seja, o esforço de aprender dos outros, e permitir que
nossas convicções sejam fecundadas pelas visões dos outros. Não podemos
comparar (comparare – isto é, tratar sobre uma mesma – pars – base ), já que não
existe um sustentáculo externo para poder fazê-lo. Somente podemos imparare, isto é, aprender do outro abrindo-nos desde nosso ponto de vista a um diálogo
dialógico que não pretenda vencer ou convencer, senão buscar juntos desde nossas
diferentes posições1295.
2.2 O diálogo, uma necessidade vital
Para Panikkar, “o encontro entre as religiões é tão vital que, de fato, mais ou
menos, todas as grandes religiões atuais são fruto destes encontros”1296. Ele nos
1293 PANIKKAR, Raimon. La nueva inocência, p. 333. 1294 Id., El diálogo interno, p. 252. 1295 Id., Sobre el dialogo intercultural, p. 136. 1296 Id., O diálogo indispensável, p. 39.
307
apresenta, em seu livro O diálogo indispensável, três níveis que apontam para essa
necessidade vital1297:
a) Nível pessoal - o ser humano se constitui como pessoa nas relações. E estas
necessitam de diálogo. Sem vida dialógica, o ser humano não chega a sua
humanidade plena. Ele é um animal loquens. Essa comunicação não trata
apenas de sua relação exterior, mas, sobretudo, de seu interior. O homem é um
ser dialógico. O diálogo é uma necessidade para o ser humano, e no aspecto
religioso será difícil sem uma autêntica vida litúrgica.
b) Das tradições religiosas - o diálogo é imprescindível às religiões. Não
dialogando entre si, degeneram-se e dão lugar a reações fanáticas de todo tipo,
é realmente uma necessidade vital.
c) O nível histórico - O homem é um componente essencial do cosmos. E estes
não podem viver sem religião. O destino da humanidade depende de que a
religiosidade genuína reúna (religat) os homens entre si e a realidade na sua
totalidade e, ao mesmo tempo, salvaguarde a sua liberdade (ontonomía). Faz-se
necessário um verdadeiro encontro religioso entre o ser humano e a Terra, ou
será aniquilada a vida sobre a mesma. "O diálogo das religiões não é só um
tema acadêmico ou uma questão eclesiástica ou oficialmente "religiosa" [...] é
o campo no qual se pode jogar de forma pacífica o destino histórico da
humanidade"1298.
Panikkar, aprofundando a necessidade vital do diálogo, nos apresenta oito
pontos que, segundo ele, revelam com deve ser o diálogo entre as religiões1299:
a) Esse diálogo precisa como parte essencial, ser aberto. E não apenas o ser
humano participa deste diálogo, mas também toda ideologia, visão de mundo e a
filosofia. Ninguém tem o monopólio sobre a religião. Não deve ser confundido o
encontro ou diálogo entre as religiões com qualquer outra atividade. Trata-se de
um diálogo aberto entre pessoas às quais preocupam as perguntas fundamentais da
realidade1300.
1297 Cf. PANIKKAR, Raimon. O diálogo indispensável pp. 41-46. Abordaremos, a partir deste livro, a reflexão que Panikkar realize sobre o diálogo entre as religiões; O ecumenismo-ecumênico
a partir do diálogo intra-religioso torna-se para Panikkar em verdadeira atitude teológica e
existencial de toda sua teologia, conferir em seu livro: El nueva inocencia, pp. 327-332. 1298 Id., O diálogo indispensável, p. 46. 1299 Cf. Ibid., pp. 49-107. Cf. Id., Il dialogo intrareligioso, pp. 94-113. 1300 Cf. Id., O diálogo indispensável, p.52.
308
Não tem como objetivo uniformizar o mundo ou criar uma única religião
mundial. "A verdade não pode reduzir-se nem à unidade nem à multiplicidade [...]
A verdade é sempre relação, comunicação, e não lhe convém nem singularidade
nem pluralidade"1301. O diálogo é uma expressão desta polaridade inerente ao
homem e à realidade enquanto tal. O diálogo é fruto da experiência da nossa
contingência. Nem sequer toda a humanidade viva pode encarnar a medida
absoluta da verdade. Contingência significa que tocamos (tangere) os nossos
limites e que o ilimitado nos toca (cum-tangere) tangencialmente1302.
b) O diálogo deve acontecer a partir do interior. Procede de uma fonte mais
profunda e mais interna, que pode ser chamada "silêncio", ou talvez "a sede de
verdade humana". Ele deve emergir da dimensão mais profunda do ser humano.
Logo, o diálogo intrarreligioso é um fundamento necessário do diálogo inter-
religioso. O diálogo começa com uma pergunta interior. "O diálogo surge sempre
da dimensão mais profunda do nosso 'si mesmo' [...] Não é surpreendente que o
diálogo se apresente como caminho de salvação, transfiguração, iluminação"1303,
pois toca a parte mais recôndita do coração dos dialogantes. O autêntico diálogo
religioso só se instaura quando um dos participantes se sente implicado,
ameaçado, alentado, estimulado.
Panikkar destaque:
Se falamos de tradições religiosas ou de religiões em geral, não devemos ficar na
superfície da experiência humana religiosa. Devemos começar vivendo, conhecendo e experimentando nossa própria tradição, ou subtradição particular, tão
intensa e profundamente como nos seja possível1304.
Deve ser precedido por um clima de silêncio. Nesta atmosfera, os
pensamentos têm a sua origem onde as palavras extraem o seu poder, onde é
possível encontrar-se com outro como realmente é. E tem lugar no coração da
realidade. O diálogo tem um núcleo místico não visível na superfície das relações
humanas. Algo acontece no coração de cada dialogante e no núcleo mais interno
do mundo. O diálogo alcança o coração místico da realidade1305.
1301 PANIKKAR, Raimon. O diálogo indispensável, p.52. 1302 Cf. Ibid., pp. 49-55. 1303 Ibid., p. 57. 1304 Id., Sobre el dialogo intercultural, p. 131. 1305 Cf. Id., O diálogo indispensável, p. 58-59.
309
c) O diálogo é uma atividade do logos humano. O homem é homo loquens, sua
linguagem é um dom e falar é a sua missão. Mas as palavras humanas são algo
mais que simples sinais do seu sentir ou signos para expressar os seus conceitos.
No diálogo, a pessoa envolvida, de forma mais ou menos consciente, é o veículo
de uma tradição 1306.
O diálogo é duálogo, ou seja, requer o encontro. Duálogo não quer dizer
dois monólogos, mas sim confiar ao outro, ideias, pensamentos, intuições,
experiências, vidas que realmente se encontram, apesar de procederem de fontes
distintas. E assim o diálogo deve desenvolver-se em duas direções: intercultural e
inter-religioso. Fala-se em duálogo e não “plurilogo”, porque um duálogo é
possível quando se pode estabelecer um campo comum no qual a discussão tem
sentido1307. Deve ser bilíngue: “um diálogo autêntico não só requer que todo
dialogante se expresse a si mesmo, mas sim que cada um fale na sua própria
língua”1308. O diálogo tem lugar entre pessoas. A hermenêutica dos textos não é
suficiente; devem-se compreender as pessoas.
d) O diálogo religioso é também político. É necessário não reconhecer o status
quo político como algo absolutamente intocável. A religião como dimensão
antropológica não pode separar-se da política. “Todo encontro inter-religioso
entra em contato com problemáticas humanas que influenciam a vida da
polis”1309. O diálogo entre as religiões não está encerrado nos recintos das
instituições “religiosas”. Está presente no cotidiano das pessoas. O diálogo é
indispensável, a sua negação leva à inumanidade. Negar o diálogo equivale a
negar a humanidade do adversário1310. E mais ainda, diante da busca pela paz:
A transformação da vontade não se consegue com a força nem da política nem da
ameaça velada chamada “intimidação”. É necessária uma verdadeira conversão, a
metanóia. Esta conversão requer muito mais que uma simples convicção racional; requer uma verdadeira mudança de coração que a violência não pode gerar. Pensar
que a religião não tem nada a compartilhar com a política ou que a justiça seja
simplesmente racionalidade não levará nunca a paz. Intelligenti pauca!1311.
1306 Cf. PANIKKAR, Raimon. O diálogo indispensável, p. 61. 1307 Cf. Ibid., pp. 64-65. 1308 Ibid., p. 65. 1309 Ibid., p. 68. 1310 Cf. Ibid., p. 74. 1311 Id., Paz e interculturalidad, p.135.
310
e) Dia-logos significa também abrir caminho atravessando o logos (dia ton logon,
"atravessando o logos") para chegar ao mythos"1312. Logo, o diálogo das
religiões, se é verdadeiramente vivo, não pode deixar o mythos de fora do diálogo.
No diálogo dialógico os participantes são conscientes de que os conceitos
utilizados brotam de uma fonte mais profunda. Neste diálogo a pessoa envolvida
chega a conhecer melhor o seu próprio mythos a partir das críticas e as
descobertas do seu interlocutor.
Para compreender uma religião é preciso conhecer o seu 'credo'. Por isso, “o
diálogo entre as religiões deve ser um diálogo de fé"1313. A fé-crença1314 que se
manifesta no pisteuma do crente, é o que ele assume como verdadeira na sua
experiência. No diálogo para alcançar o pisteuma do outro é necessário assumir de
alguma forma esse pisteuma como verdadeiro. A fé do crente que se expressa na
sua crença pertence essencialmente àquilo em que o crente acredita.
f) O diálogo é em si mesmo um ato religioso, pois requer certa conversão interior.
“O diálogo tem em si mesmo um espírito religioso. O diálogo em si é uma
autêntica manifestação de religiosidade"1315. O diálogo liberta as espiritualidades,
antes marcadas por uma inflexibilidade, para uma experiência além das fronteiras.
Quando tratamos de compreender o fenômeno religioso do gênero humano, não
podemos rejeitar nossa própria dimensão religiosa desenvolvida com mais ou
menos esforço, desde uma tradição particular. De outra forma, distorceríamos a
visão espontânea e com um sentido instintivo (o que os escolásticos, seguindo Platão e Aristóteles, chamavam per connaturalitatem) as fontes viventes de sua
tradição, a discussão se daria em simples formulações e se tornará algo rígido. Não
terá lugar nem o diálogo nem o encontro1316.
O diálogo surge do reconhecimento de não possuir a verdade absoluta, e de
que a religião do outro se converte numa questão pessoal. Salvação, libertação,
felicidade, realização, iluminação, redenção, assim como justiça, paz, plenitude
1312 PANIKKAR, Raimon. Paz e interculturalidad, p. 77. 1313Ibid., p. 82. 1314 Segundo Panikkar "a distinção entre fé a crença é fundamental. A crença pode expressar-se em
formulações dogmáticas. A fé manifesta-se na vida. A fé é uma dimensão humana constitutiva. A crença expressada num credo é uma formulação concreta dessa fé. Neste sentido, o fato de que a
"gente" possa expressar honestamente a sua fé em formulações diferentes de credo não é mais que
a manifestação natural da diversidade de culturas e religiões. A fé não está nos enunciados, disse
S. Tomás de Aquino." Ibid., p. 84. 1315 Ibid., p. 84. 1316 Id., Sobre el dialogo intercultural, p. 134.
311
humana, não são apenas problemas individuais. "Realizamo-nos na medida em
que participamos ativamente no destino de todo o cosmos"1317.
Se os participantes adquirem uma abertura interior de sua própria tradição
seriam capazes de dar-se conta do que Panikkar chamou de efecto pars pro toto. A
visão que uma pessoa tem da realidade é através da perspectiva que oferece sua
própria janela. Ela pode até acreditar que a sua janela é a melhor, e que a
perspectiva que dela se obtém não está distorcida. Pode também estabelecer uma
ponderação sobre as visões que se obtém de outra janela, mas não pode ocultar o
fato de que através da sua janela vê todo o panorama - o totum. Ou seja, ninguém
fica satisfeito com a parcialidade1318.
É necessário ser consciente de que, a partir de sua janela se vê apenas o
totum per partem, o todo através da parte. É um totum, porém per partem,
limitada à visão que oferece uma janela, a sua. Vê o totum, porém não totaliter,
poderíamos dizer (já que não vê através de outra janela, e assim descrevê-lo de
maneira diferente, porém ambos vêm o totum, apesar dos que vêem in toto porém
per partem1319.
Assim, o diálogo constantemente renovado abre a possibilidade de encontro;
aplana os caminhos e constrói pontes entre as distintas tradições, sem desenraizar-
se do solo de suas tradições; tece uma rede de relações e transforma a realidade
das religiões. Esta dinâmica é própria do espírito religioso. E ajuda a acreditar que
não é o único que procura a verdade. "A busca da verdade não consiste em
persegui-la como um objeto, consiste em deixar-se possuir pela verdade e, até
onde é possível, partilhar o destino de todos os demais. Esta é sem dúvida uma
atividade religiosa"1320.
g) O diálogo possui uma dimensão integral, pois “a práxis do diálogo é um modo
de ser religioso, uma atividade religiosa, e isso vale também para as reflexões
teóricas sobre o diálogo”1321. O diálogo é uma aproximação holística, pertence à
própria vida religiosa. É o homem inteiro que está comprometido.
O caráter dialógico do ser é um traço constitutivo da realidade. Acordo significa
convergência de corações e não somente aglutinação de mentes. Sempre existe
1317 PANIKKAR, Raimon. O diálogo indispensável, p. 89. 1318 Cf. Id., Sobre el dialogo intercultural, p. 134. 1319 Cf. Ibid., p. 135. 1320 Id., O diálogo indispensável, p. 92. 1321 Ibid., p. 95.
312
espaço para a diversidade de opiniões e a multiplicidade de esquemas mentais de
inteligibilidade1322.
Amar verdadeiramente o próximo exige conhecê-lo verdadeiramente e
expressar as suas convicções mais profundas e tentar adaptá-las à visão do mundo
do outro para fazer-se compreender e superar o seu solipsismo. O diálogo
compromete o homem na sua totalidade1323. Panikkar destaca que:
Uma teoria próxima de uma religião particular hoje em dia, tem que tratar com outras religiões. Não podemos ignorar as outras por mais tempo. As religiões dos
demais – nossos vizinhos – são uma questão religiosa para nós, para nossa
religião1324.
h) Tem também uma natureza litúrgica, “liturgia propriamente falando significa
‘obra (ergon) do povo (laos)’, onde esta obra está inspirada pelo Espírito. É uma
sinergia que reúne os "três mundos"- cósmico, humano e divino”1325. Cada
religião pode acreditar que representa a verdade e que interpreta o papel principal,
mas deve estar disposta a ouvir a outra. Enfrentam-se os riscos porque há
confiança.
Ou seja, “o diálogo é uma communicatio in sacris, uma sagrada comunhão,
sem a qual não pode subsistir verdadeiramente nenhuma comunidade
humana”1326. Desempenha um papel cósmico: as religiões encontram-se uma com
a outra como formas históricas cósmicas, tornando-se um ato cósmico. O encontro
pertence essencialmente à religião.
i) O encontro entre as religiões deve ser permanente. Seu objetivo não é chegar à
completa unanimidade ou misturar todas as religiões, mas, sobretudo,
comunicação, complementaridade entre polos. Diálogo é um processo
permanente: ele nunca se completa, nunca se acaba. “O diálogo é contínuo.
Permanece sempre inconclusivo e, no entanto, todo o diálogo está em si mesmo
autenticamente completo - é um em si mesmo”1327.
Estas relações, diálogos e estudos mútuos, mudam tanto a opinião dos participantes
como a interpretação do outro. As religiões mudam através destes contatos; tomam
emprestados do outro, e inclusive reforçam seus pontos de vistas, porém com menos superficialidade. Este diálogo não somente representa um esforço religioso
para os participantes no mesmo, senão que é um lócus theologicus genuíno, para
1322 PANIKKAR, Raimon. Sobre el dialogo intercultural, p. 138. 1323 Cf. Id., O diálogo indispensável, pp. 96-97. 1324 Id., Sobre el dialogo intercultural, p. 137. 1325 Id., O diálogo indispensável, p. 97. 1326 Ibid., p. 98. 1327 Ibid., p. 102.
313
dizer na linguagem escolástica cristã, uma fonte, em si mesma, de compreensão
religiosa (teológica)1328.
É uma experiência trinitária. A relação permanece constitutivamente aberta,
manifestando uma estrutura triádica. Sempre existe algo que faz surgir o diálogo.
Este "algo" subjaz à capacidade de cada participante. Poder-se-ia dizer que ambos
os participantes são transcendidos por um terceiro, chamado por “Deus”,
“Verdade”, “Logos”, “Karman”, “providência”, “compaixão” ou de qualquer
outra forma1329. Este “terceiro”, em torno do qual o diálogo acontece, impede toda
a manipulação e estará sempre presente. É o Espírito que sopra, onde, quando e
como quer1330. O diálogo dialógico pertence à própria vida do homem.
O diálogo é indispensável e não se trata apenas de um imperativo social é
um dever histórico.
A constituição humana é dialógica. A polaridade pertence à essência do homem e
também à da realidade. O diálogo religioso faz emergir a nossa mais profunda
humanidade [...] Nela participamos tão profundamente do Logos do espírito que
chegamos a beber da mesma fonte de onde bebe o Logos: o Silêncio1331.
O verdadeiro diálogo entre as religiões é em si mesmo religioso. Ele se
realiza no coração de quem o busca. E assim, quando o diálogo é intrarreligioso se
converte em um ato religioso pessoal em busca da verdade. Pois este se inicia em:
um diálogo interno dentro do próprio eu, um encontro no profundo da religiosidade própria e pessoal do eu, quando este se depara com outra
experiência religiosa nesse nível íntimo... Um diálogo intrarreligioso que tenho
que começar eu mesmo, perguntando-me sobre a relatividade das minhas crenças, aceitando o desafio de uma conversão e o risco de mudar meus
enfoques tradicionais1332
.
Quem participa neste diálogo não somente olhando para a realidade
transcendente ou para a tradição original, mas também horizontalmente, para o
mundo de seus semelhantes, tem encontrado caminhos que conduzem a realização
do destino humano. A busca chega a ser então uma oração aberta em todas as
direções1333.
Para o diálogo inter-religioso, requer:
1328 PANIKKAR, Raimon. Sobre el dialogo intercultural, p. 137. 1329 Cf. Ibid., p. 103. 1330 Cf. Ibid., p. 104. 1331 Ibid., pp. 105-107. 1332 Id., El dialogo interno: la insuficiência de la llamada ‘epoche’ fenomenologia en el encuentro
religioso. Salmanticensis, 1975. 1333 Cf. Id., Religión. Diálogo intrarreligioso. In: Casiano FLORISTAN & Juan Jose TAMAYO.
Conceptos fundamentales del cristianismo. Madrid: Trotta, 1993, p. 1146.
314
uma atitude de busca profunda, uma convicção de que estamos caminhando sobre
um solo sagrado, de que arriscamos nossa vida. Não se trata de uma atitude de
curiosidade intelectual nem de uma bagatela, mas de uma aventura arriscada e
exigente. Faz parte daquela peregrinação pessoal para a plenitude de nós mesmos, que se obtém ultrapassando as fronteiras de nossa tradição
1334 .
2.3 Pluralismo não significa pluralidade
O relativismo se destrói a si mesmo quando afirma que tudo é relativo. A
relatividade, por outro lado, afirma que qualquer afirmação humana, e, portanto
qualquer verdade é essencialmente relacional. Qualquer verdade se relaciona com
um entendimento. O conceito de verdade absoluta tem que se relacionar com um
entendimento infinito1335.
O pluralismo da verdade vai mais longe. Declara que a verdade mesma é pluralista,
e por tanto não é uma; tampouco muitas. Pluralismo não quer dizer pluralidade.
Afirmar que a verdade mesma é pluralista é declarar que não existe uma única
verdade totalizante ou absoluta1336.
Esta afirmativa está baseada em dois pressupostos fundamentais: a primeira
é antropológica; a segunda teológica ou filosófica. O primeiro pressuposto é o de
que cada pessoa é uma fonte de entendimento e também inclui coletividades e,
especialmente, culturas como entidades históricas.
Se cada ser humano, enquanto humano, está provido de autocompreensão, cada cultura, enquanto possui uma visão própria da realidade, possui também certo mito
como horizonte dentro do qual as coisas e os acontecimentos são discernidos1337.
A pessoa envolvida não será capaz de compreender os demais sem
compartilhar a autocompreensão de quem está implicada no diálogo. E se forem
mais além, terá que compartilhar verdades comuns, sem fazer projeção da sua
verdade sobre a outra. A segunda é teológica, ou ainda, metafísica. Desafia uma
das crenças mais extensas tanto no oriente como no ocidente. Desafia a última
crença de cada monismo idealista. Ou seja, que existe um Ser ou uma Realidade
que abarca tudo o que é, e que esta realidade é pura consciência, absolutamente
autointeligível, porque tudo é transparente à luz do intelecto, tudo está
1334 FLORISTAN & Juan Jose TAMAYO. Conceptos fundamentales del cristianismo, p. 1149. 1335 Cf. PANIKKAR, Raimon. Sobre el dialogo intercultural, p. 112. 1336 Ibid. 1337 Ibid., p. 114.
315
impregnado por cit, nous pela mente. O que se afirma é que o Ser não é totalmente
redutível ao mesmo1338.
Uma das implicações filosóficas desta perspectiva, é que não existe nada
absolutamente idêntico a si mesmo. Cada ser, sem excluir um possível Ser Supremo, apresenta um resquício opaco, um aspecto misterioso que desafia a
transparência. Este é precisamente o lugar da liberdade, e a base do pluralismo1339.
Qualquer teoria universal nega o pluralismo. E nenhuma teoria pode ser
absolutamente universal, a contemplação da verdade não é uma contemplação
universal, como tampouco é uma "verdade" (teórica) de tudo o que existe na
realidade. Ele diz que não se trata de apresentar uma contra-teoria, senão uma
nova inocência1340.
Panikkar acredita que
se existe alguma solução para a situação presente, não provém de uma única visão
religiosa ou tradição, senão que terá que avançar na colaboração das diversas
tradições do mundo. Nenhuma tradição humana ou religiosa é hoje em dia autossuficiente e capaz de resgatar a humanidade da situação atual. Já não podemos
dizer por mais tempo que “isto é teu problema”. O hinduísmo não sobreviverá se
não confronta a modernidade1341.
Necessita-se de outros símbolos. Ele elege a ‘concórdia’, que como tal
desafia a quantificação. Nem a multiplicidade como tal nem a total unidade leva,
nem inclusive permite, a harmonia. A harmonia implica uma polaridade
constitutiva que não pode ser substituída dialeticamente. A ‘concórdia’ “não é
nem unicidade nem pluralidade. É o dinamismo do Múltiplo para o Uno sem
deixar de ser distinto e sem retornar uno, e sem alcançar uma síntese
superior”1342.
Ele nos apresenta a palavra 'simpatia' para expressar o que significa
harmonia, que em primeiro lugar, não quer dizer individual, compaixão
sentimental, senão o pathos comum entre todos os constituintes da realidade.
A simpatia universal é outro modo de superar a divisão entre os interesses individuais e coletivos, o uno e o múltiplo. E a palavra aqui sugere não somente
uma receptividade mais “feminina” em uma cultura predominantemente
“masculina”, senão uma maior tomada de consciência do mesmo mistério do sofrimento (pathos, dukkha) em uma civilização que evita enfrentar este fator
elementar, que nos conscientiza a transcendência e interioridade1343.
1338 Cf. PANIKKAR, Raimon. Sobre el dialogo intercultural, p. 116. 1339 Ibid. 1340 Cf. Ibid., p. 138. 1341 Ibid., p. 140. 1342 Ibid., p. 145.k 1343 Ibid., p. 151.
316
Estes diálogos não pretendem estabelecer grandes teorias universais, senão
criar um profundo entendimento mútuo1344.
Se tudo repercute no todo e apesar disso os homens e as culturas são diversas, a
característica essencial que devem recuperar as culturas, as religiões e as tradições é o pluralismo, base da interculturalidade. A grande tentação seria confundir o
pluralismo com pluralidade anárquica, ou cair em um extremo oposto do niilismo.
Para evitar esta interpretação poderia reformular-se em sentido inverso o mesmo
sūtra dizendo que cada cultura, religião e tradição oferece um caminho de salvação
a quem descobre no seu interior o núcleo inefável do homem1345.
O momento em que vive a humanidade não requer apenas uma mudança em
seu ritmo tecnológico e industrial, mas uma mudança radical, de uma metanóia. É
o paradoxo desta civilização, que tendo dominado o mundo e conhecido os seus
segredos, deixa a humanidade preparada para dedicar-se ao descobrimento do
mistério humano e a uma experiência mais madura do divino.
Por isso, Panikkar insiste na importância do pluralismo. Segundo ele, sem o
reconhecimento da interculturalidade, não é possível a paz no mundo. Para ele “a
interculturalidade é o fundamento da paz”1346.
As religiões são modos diversos de aproximar-se e alcançar essa paz. No
entanto, elas não são (e não pretendem ser) todas iguais. Elas afirmam coisas
diferentes e falam línguas distintas. Seu conteúdo último não está desvinculado da
forma em que cada tradição o expressa. As palavras fundamentais em quase todas
as religiões concordam em reconhecer que seu conteúdo seja a paz do homem e
em consequência a de todo o cosmos1347.
Isto supõe um avanço, já que põe a ênfase nos encontros religiosos (em todos os
sentidos da palavra) não em problemas doutrinais, senão em uma atitude mais
existencial, o qual permite uma cooperação frutífera entre as religiões em nossa situação humana, o nascimento de uma cooperação fecunda entre as distintas
religiões1348.
A paz é revolucionária. E quando a religião deixa de ser revolucionária, se
degenera e não realiza sua função, transforma o que deveria ser uma revolução em
uma simples proteção. Ou seja, as religiões poderiam estar mais atentas à
transformação do homem do que em soluções para seus problemas internos.
O desafio da interculturalidade consiste em recordar o papel existencial das religiões. No sentido, caberia falar da função revolucionária das religiões que nos
1344 Cf. PANIKKAR, Raimon. Sobre el dialogo intercultural, pp. 136-137. 1345 Id., Paz e interculturalidad, pp. 160-161. 1346 Ibid., p. 161. 1347 Ibid., pp. 163-164. 1348 Ibid., p. 164.
317
conduzem a realização. O Corpus hermeticum (X, 24) diz que o homem é um ser
divino mais que um animal terreno, ainda que, ‘não deve deixar a terra para
ascender às alturas do céu1349.
E ainda, o perdão é o grande desafio que recorda o ser humano de sua
contribuição única para a harmonia do universo. A inocência perdida exige
redenção, liberdade e não um sonho de um paraíso redescoberto. A paz não é
restauração. O status quo ante é uma impossibilidade. O único caminho para a paz
é o caminho para ‘adiante’ e não para ‘trás’1350.
O perdão é um ato que transcende o dogma básico da modernidade: a
vontade. Se o coração não conduz a pessoa ao perdão, este não pode querê-lo. O
ato de perdoar não é um silogismo racional; para perdoar requer uma força do
Espírito. “O perdão é um ato de ‘des-criação’, anula a culpa; é a superação da
causalidade ativa na criação contínua, é a superação de uma causalidade
mecanicista graças à força da liberdade”1351.
Panikkar, quando fala da experiência que produz na pessoa uma metanóia,
chama-a de ‘experiência mística’, definindo-a como uma experiência integral da
realidade.
Se a realidade se identificar com Deus, será a experiência de Deus; se esta
realidade se vê como trinitária, seria a experiência cosmoteândrica; se a vê como vazia, será a experiência da vacuidade... porém, em qualquer caso, é a experiência
do ‘Todo’. Desaparece assim o estigma de uma mística nas alturas, desencarnada e
alheia aos prazeres e as dores do mundo, sem por isso afogar no puro mundanismo ou sufocá-la em ativismos, que experimenta a realidade da condição humana em
sua totalidade e, portanto, não perde a serenidade nem a paz e elimina o medo de
participar no esforço humano em pro da justiça1352.
Assim, encontramos em Panikkar através de sua experiência cristã de Deus
o que ele quer dizer quando afirma que este é o kairós do milênio que se abriu há
pouco para todas as religiões, em que ele assegura que continuar com pequenas
reformas não tem sentido, mas é necessária uma grande transformação, não
violenta, lenta, porém profunda, uma metanóia!
1349 PANIKKAR, Raimon. Paz e interculturalidad,n p. 165. 1350 Id., Sobre el dialogo intercultural, p. 166. 1351 Ibid., p. 167. 1352 Id., De la mística, p. 203.
318
Conclusão
Como conclusão parece-nos importante insistir na necessidade de uma
maturidade cristã, porque tanto como Merton como Panikkar põem em evidencia
uma realidade que vai além do próprio projeto espiritual. Ambos os testemunhos
são uma confissão de solidariedade e talvez de humildade, de impotência e de
solidão, porém também de enorme maturidade espiritual arraigada no
cristianismo. Diante da experiência de fé destes dois místicos, acreditamos que o
caminho para o diálogo inter-religioso deve ser perpassado pela experiência de
Deus.
Merton, um monge contemplativo, recolhido ao diálogo silencioso da
oração e da meditação, não se furtou ao diálogo com o mundo, abrindo sua alma e
coração com rara franqueza e honestidade. Como mestre espiritual que foi,
tornou-se uma referência incontornável nos estudos da espiritualidade cristã e da
experiência religiosa num sentido mais geral. Pode-se mesmo afirmar que sua
decisiva contribuição para o cristianismo contemporâneo foi promover uma
renovação e redimensionamento da vida contemplativa.
Merton nos apresenta a contemplação como sinal de maturidade cristã. Essa
experiência permite ao crente alcançar a comunhão com o Deus vivo, colocando-o
em uma constante metanóia. Pois é certo que Cristo habita seu eu mais profundo.
O ser humano pode, enfim, descobrir-se como ser infinitamente maior: filho de
Deus, descobrindo a si mesmo e os outros por meio da caridade. Torna-se
necessário reconhecer que o conhecimento de Deus está inseparável da
experiência de amor.
Essa experiência é no mais elevado sentido, comunhão. Em que a própria
realidade do crente está unida à Deus. E nessa união o crente torna-se livre, capaz
de encontrar Deus nas outras pessoas. A presença de Deus na profundidade do ser
da pessoa, desperto para a consciência espiritual, marca sua vida por uma
mudança: abandonar a vida exterior para uma vida interior.
Logo, a contemplação tem uma significativa contribuição para o diálogo
inter-religioso, quando o crente torna-se um discípulo de Cristo. E tem nele
aperfeiçoada a imagem divina, enchendo-se de vida e liberdade. Torna-se possível
um diálogo mais profundo, no conhecimento mais pessoal de Deus.
319
Quando em contato com o eu mais profundo, o crente descobre-se
inseparável do amor de Deus e de sua verdade, de sua profundeza surge todo bem
para o outro. Sem essa experiência interior, a imagem permanece apenas uma
semelhança em potencial. No entanto, quando tocada pela inefável misericórdia
de Deus, identifica-se com Aquele que é amor.
Torna-se necessário para a vida contemplativa um espaço para a liberdade e
o silêncio. De acordo com Merton, deve-se criar uma nova consciência de tempo,
um et temps vierge. Um tempo para as novas escolhas, para si mesmo, para a
compaixão. E esse tempo, que não significa um espaço vazio, pode se
transformar, para o diálogo inter-religioso, uma oportunidade para o encontro,
desde que não se perca a identidade mais profunda de cada tradição religiosa. Isso,
porque o ser humano tem a capacidade de ser mais plenamente e humanamente
vivo, quando faz uso consciente de sua liberdade.
Como vimos, Merton foi um peregrino essencialmente humano que realiza o
desejo de viajar e conhecer experiencialmente a Ásia, mas que afirmava aos
amigos “(...) nossa verdadeira viagem na vida é interior: é uma questão de
crescimento, de aprofundamento e de uma entrega sempre maior à ação criadora
do amor e da graça em nossos corações”1353
.
No mesmo caminho, encontramos Panikkar, que nos apresenta 'a harmonia
invisível', de todas as religiões, como condição para alcançar a verdade total, que
se encontra parcialmente em todas elas. A harmonia invisível se relaciona com o
que ele denominou "efecto pars pro toto". Ou seja, o que se consegue ver da
realidade, a partir de um lugar particular, é apenas parcial. O que se conhece é
apenas em parte. A partir dessa experiência não é mais possível tentar reduzir tudo
a um denominador comum, mas em estar aberto para acolher a experiência do
outro.
Para Panikkar a Realidade é relacional, é advaitica (a-dual), onde se
encontram o Cosmos, o ser Humano e Deus intimamente relacionados. Surge o
que ele denominou de Perspectiva Cosmoteândrica ou Trindade Radical, com o
interesse de superar toda a fragmentação do conhecimento por meio da inter-
relação. Cada parte tem seu valor, cada experiência tem sua importância para
revelar o todo. O desafio é reconhecer a relatividade radical de toda a Realidade,
1353 MERTON, Thomas. O diário da Ásia, p. 232.
320
onde tudo está relacionado com tudo. Torna-se claro para Panikkar que Deus é
pura relação. E assim vimos se constituir o alicerce de sua concepção trinitária.
Torna-se importante respeitar cada pessoa para que a rede das relações
humanas não se rompa. E assim Panikkar nos fala do terceiro olho contemplativo,
místico. E da oração como silêncio e lugar do encontro com o que cada um é.
Nesse respeito e acolhida, nos deparamos com um ecumenismo que ultrapassa às
confissões cristãs, para um ecumenismo inter-religioso, o que ele denominou de
ecumenismo-ecumênico. Tal conceito significa a harmonia de corações despertos,
com o objetivo de compreender sem diluir a herança ou prejudicar as diferenças
entre as religiões e que se reconheça a alteridade de comunhão. Ou seja, em dar-se
contra de que as diferenças que as separa pode complementar a experiência do
outro, em sua própria identidade.
Panikkar está convicto de que a imagem da perichôrêsis trinitária divina
deve servir de inspiração para a relação entre as mais diversas religiões, pois estas
não existem sem que estejam uma relacionada a outra. Ele, indo além do diálogo
inter-religioso, nos apresenta o diálogo intrarreligioso. Diálogo que se dá no
interior da vida religiosa da pessoa, construindo a partir de um caminho
profundamente espiritual. Em um mergulho no que lhe é mais íntimo e profundo,
na descoberta de si e dos outros a sua volta. Surge aqui, o diálogo a partir da fé.
O diálogo é uma necessidade vital. Em que perpassa o nível pessoal,
religioso e histórico. O diálogo constantemente renovado favorece o encontro,
destrói barreiras sem desenraizar-se do terreno de suas tradições. Constituindo-se
uma dinâmica própria do ser religioso, pertence à própria vida religiosa. O
verdadeiro diálogo inter-religioso é em si mesmo religioso. O diálogo
intrarreligioso torna-se um ato religioso pessoal em busca da verdade. E quando
essa experiência produz na pessoa uma metanóia, Panikkar a define como
experiência mística, com experiência integral da realidade.
Em Panikkar vemos um homem que, na profundidade de sua experiência de
Deus, longe de um mosteiro, acredita que toda caminhada espiritual em que o
homem procura com todo o seu ser o encontro com Deus, a Realidade Última, se
encontra um monge ainda desconhecido. E em Merton encontramos um místico
consciente do valor da solidão para seu crescimento espiritual e da necessidade de
comunicar-se com as outras pessoas. À medida que crescia sua experiência de
Deus, sentia uma maior responsabilidade pelo bem do outro e de toda a sociedade.
321
Diante destas experiências, vislumbramos as pegadas da presença de Deus
em nossas vidas. E, assim, tomamos consciência do pressuposto radical de toda
possível experiência de Deus, ativa e inconfundível no centro do ser de cada ser
humano.
Assim, vimos que as experiências de Merton e de Panikkar apresentam
meios para a descoberta de uma mística inter-religiosa através de uma profunda
experiência de Deus no interior do Cristianismo e, de tal modo, reconhecemos que
qualquer pessoa religiosa também pode realizar seu percurso de intimidade com
Deus, e através desta, pode exercer a humildade na acolhida às demais religiões,
em uma rica e madura mística inter-religiosa.
Considerações finais
Perspectivas para uma maturidade cristã e uma mística inter-religiosa - Caminhos apontados por Thomas Merton e Raimon Panikkar.
Diante do contexto ricamente plural em que nos encontramos, deparamo-nos
com um forte pluralismo religioso que desafia as diferentes tradições. No entanto,
como demonstramos, acreditamos ser este momento uma oportunidade para que
as tradições religiosas possam chegar a uma maior profundidade, assumindo sua
real vocação: a de ser caminho para que o ser humano, no mais íntimo de si, entre
em contato com a Realidade Última, Deus.
Os estudos da religião levam à convicção de que o cultivo da verdadeira
religião, longe de limitá-la, amplia as possibilidades da razão humana; longe de
inibir a liberdade, possibilita e favorece o seu exercício, dentro do marco
insubstituível da finitude que lhe é consubstancial, do mesmo modo que, longe de
ser estrutura repressiva, é fonte de felicidade.
Procuramos, para isto, ampliar a concepção de Deus presente nas tradições
religiosas, permitindo contemplar com mais profundidade seu mistério, que se
revela maieuticamente na História e que nem sempre é percebido. Indicamos que
esta Presença pode ser melhor percebida por meio de uma experiência religiosa, e
que o sujeito religioso vive das mais diferentes tradições religiosas, nas mais
variadas formas. Experiência esta que conduz o ser humano ao encontro com
Deus, e ao mesmo tempo a voltar-se à Humanidade e a auxiliar os que estão em
busca de tal caminho.
Refletindo sobre o homem e Deus, percebemos que o problema não é a
religião, mas a dificuldade de vivê-la à altura que exige. O problema não é dizer
‘Deus’, mas dizê-lo sabendo o que se diz. Por isso, acreditamos que o mal-
entendido adquirido na consciência moderna, entre o homem e Deus, somente será
respondido quando essa palavra surgir de uma consciência que tenha entrado em
contato real com Ele, quando for a expressão de uma vontade que reconheceu a
presença misteriosa que nela habita; quando, portanto, os religiosos dizem ‘Deus’,
não o fazem por ouvir dizer, mas pela experiência realizada no mais íntimo de si,
uma experiência pessoal de transcendência, de consentimento a sua presença
amorosa, da experiência única que supõe haver ‘sucumbido’ a Deus.
323
Por consequência, procuramos propor, diante das insuficientes respostas dos
mais diversos paradigmas apresentados, que o diálogo inter-religioso não aconteça
propriamente no nível religioso, mas em um nível mais profundo, em uma
comunhão para além das palavras e de todos os conceitos, na experiência mais
profunda de todo ser religioso. Em um lugar que, liberto de todo o medo da perda
de identidade, possa entrar em comunhão com o diferente, com o inefável, com o
Absoluto.
Em Velasco, encontramos na mística a possibilidade para que as religiões se
descubram através de seus místicos junto com outros crentes e não crentes, o sinal
da presença e condição da permanência da fé. Para ele, deve evitar-se no diálogo
inter-religioso o dogmatismo e a indiferença. Acreditamos, após nossa reflexão
sobre o tema, que nenhum sujeito religioso está mais bem preparado contra esses
perigos que o sujeito místico, por se encontrar na união com Deus. Experiência
que o religioso vive na mais pura fé, na mais absoluta confiança.
Essa nossa compreensão dá-se também pelas provocações que Queiruga nos
faz quando diz que todas as religiões são verdadeiras, refletindo por meio de duas
ideias: da revelação que se dá maieuticamente na criação e da ‘eleição’ como
necessidade histórica. Para ele, a revelação constitui uma presença real de Deus
no coração de toda a História humana, e a ‘eleição’ constitui uma necessidade
histórica, que consiste em ‘intensificar’ a uns para chegar melhor a todos,
eliminando o esquema: cristianismo, como revelação e outras religiões como não
revelação. Essa ideia elimina também o privilégio das religiões de se acharem de
alguma forma as únicas verdadeiras.
Por ser então a revelação um dado constitutivo de toda religião - por ter em
sua estrutura o homem como seu lugar privilegiado -, e por não existir nenhuma
que possua absolutamente a Verdade, nenhuma delas pode, portanto, exaurir a
riqueza do Mistério divino. No entanto, como vimos, não deve, por exemplo, o
cristianismo diante desta constatação, renunciar à experiência da revelação cristã
como manifestação plena e universal de Deus em Jesus Cristo. Mas, ao contrário,
deve propagar a experiência cristã como dom a toda a comunidade religiosa.
A revelação que aconteceu de maneira insuperável em Jesus possibilitou o
rompimento de toda particularidade. Foi em Jesus que Deus encontrou a
oportunidade de entregar-se totalmente a toda a humanidade. A universalidade do
cristianismo realiza-se na práxis do cristão, na sua experiência religiosa, porque
324
em Jesus Cristo a universalidade dá-se no próprio dinamismo da revelação, no
amor com que Deus o amou e o entregou à humanidade. Assim, a
autocompreensão do cristão de sua real vocação o abre às demais tradições
religiosas.
A experiência de Deus dá-se por meio da experiência de fé. E essa fé
impulsiona o sujeito à acolhida, à aceitação e ao seu reconhecimento com
consciência de que esse contato o coloca diante de uma Presença ‘sempre já aí’. A
experiência mística assim acontece por ser consequência da revelação e da fé que
move o sujeito.
Deus que não cessa de querer revelar-se, nunca deixa de insinuar-se à
humanidade por desejar a libertação e a felicidade do ser humano. E esta é a
maior expressão do seu amor: o fato de se dar a conhecer. O sujeito, quando
acolhe essa Presença, passa a ser construído desde a sua profundidade, e realiza-se
como pessoa. Apenas nesta relação é possível aos homens compreender esse amor
de Deus como possibilidade de ser a sua autêntica realização.
Diante do desejo de Deus em querer revelar-se e ser para o ser humano a
possibilidade de sua realização, entendemos que para um sadio pluralismo
religioso, impõe-se às religiões superar suas tendências à exclusão recíproca, e
que isso seja a oportunidade para o exercício da compaixão e da hospitalidade
inter-religiosa.
Reafirmamos que mesmo que o diálogo inter-religioso tenha se chocado
permanentemente com o dogmatismo e com o relativismo indiferente, o cultivo da
dimensão mística pode eficazmente ajudar a evitar esses obstáculos, pois o
exercício da experiência mística permite captar o íntimo parentesco de todas as
religiões ao pôr em contato quem a vive com a raiz de onde todas elas procedem.
Podemos dizer que a mística assume o melhor lugar para o encontro e
diálogo inter-religioso, pois, nas atuais circunstâncias, sendo indispensável esse
diálogo para a paz mundial, superará as diferenças quando os fiéis das várias
religiões fizerem intervir neles as experiências que as sustentam e a preocupação
pela melhoria e pelo progresso da humanidade que as anima. Ou seja, quando se
desenvolverem os elementos místicos que todas elas compartilham.
Como vimos, o Concílio Vaticano II, deu um grande salto com relação às
outras religiões. Seu ensino sobre as religiões se caracterizou por uma atitude
positiva diante das demais, iniciando uma abertura sem precedentes nos
325
posicionamentos oficiais da Igreja em sua relação com os não cristãos. Em
seguida, grandes avanços foram feitos; no entanto, todos os paradigmas
apresentados mostraram-se insuficientes para resolver o duplo desafio da relação
do cristianismo com as outras religiões. Diante de tantos modelos que procuraram
preservar a identidade cristã, sem se fechar à novidade proposta por outras
tradições religiosas, reconhecendo-as em sua alteridade, estamos convictos de que
uma madura experiência cristã de Deus pode ser para os cristãos a possibilidade
de encontro com religiosos de outras religiões.
É certo que, mesmo que a pretensão de unicidade e universalidade da
salvação cristã apresente dificuldades para o diálogo inter-religioso, não podem
ser desprezadas as afirmações do Novo Testamento e de toda a tradição de
experiências cristãs sobre a revelação divina decisiva e definitiva em Jesus Cristo.
As experiências de místicos como Merton e Panikkar são testemunhos que
se caracterizam pelo esforço em aprofundar no reconhecimento da especificidade
e singularidade, sua própria experiência cristã de Deus, a partir de sua fé, no
diálogo com outras tradições religiosas. Assim, diante do pluralismo religioso, nos
é sugerido mergulhar nas raízes da profundidade do próprio Mistério divino pelo
qual nos tornamos capazes de encontrar em nós mesmo, não somente a nós
mesmos, mas a Deus.
Estudando como Merton e Panikkar apresentam meios para uma mística
inter-religiosa, através de uma profunda experiência de Deus, poderemos
vislumbrar possíveis caminhos para que, no interior do Cristianismo, a pessoa
religiosa possa também realizar seu percurso de intimidade com Deus, e através
desta, poder exercer a humildade na acolhida às demais religiões, em uma rica e
madura experiência cristã de Deus.
Nosso percurso se deu por considerarmos que não há possibilidade de se
fazer teologia a não ser a partir de uma fé específica. O que não significa dizer que
a experiência do sagrado não possa ser feita fora do Cristianismo, pois, como já
pudemos ver através das experiências de nossos autores, a experiência religiosa
faz parte da experiência humana. Segundo Panikkar, a experiência de Deus “não
só é possível, como também necessária para que todo ser humano chegue à
consciência de sua própria identidade”1354
.
1354 PANIKKAR, Raimon. Iconos del mistério. La experiência de Dios. Barcelona: Península,
1998.
326
O que, então, queremos dizer quando falamos de maturidade cristã e de uma
mística inter-religiosa? Acreditamos que na experiência cristã de intimidade com
Deus, ocorre no interior do religioso o desvelamento da verdadeira imagem de
Deus em que foi criado. De um Deus que é amor. E nessa experiência torna-se
para os demais religiosos de outras tradições uma manifestação desse amor.
Assim, vimos nos passos para o diálogo inter-religioso, apontados nas
experiências vividas por Merton e Panikkar, tornarem-se visíveis a importância do
desenvolvimento da dimensão espiritual e a experiência interior na vida dos
cristãos. E aqui está a importância para o melhor desenvolvimento do diálogo
entre as religiões para o cristão: aprofundar, por meio da fé, a experiência de
encontro com Deus; descobrir-se e assumir no encontro com outros religiosos
como imagem de Deus, ou seja, que está destinado a viver em harmonia com
Deus.
Por conseguinte, para o diálogo inter-religioso, em que se deve evitar o
dogmatismo e o indiferentismo, a experiência de intimidade com Deus tem um
lugar excepcional. A experiência do Mistério como centro pode valorizar a vida
religiosa, seja qual for o lugar em que ela floresça, superando a tentação de
absolutista e exclusivista, bem como o perigo do indiferentismo.
Diante do que nos foi dito pelos místicos estudados, acreditamos que o
caminho para o diálogo inter-religioso deve ser perpassado pela experiência de
Deus. No contexto de pluralismo religioso em que vivemos, se a experiência do
cristão estiver enraizada na intimidade com Deus, essa situação de pluralismo
pode, na medida em que for assumida e interpretada, tornar-se uma oportunidade
para uma rica experiência religiosa.
Logo, partindo da presença de Deus no ‘eu’ interior, no exercício de sua
capacidade de amar, o ser humano torna-se capaz de encontrar Deus nos outros,
encontrando a Cristo no lugar antes ocupado por sua individualidade. Tornamo-
nos plenamente humanos quando nos damos um ao outro no amor. Pois o ser
humano procura a unidade porque ele é a imagem de Deus Uno e assim viver em
comunhão com os outros é necessário para que o ser humano permaneça humano,
pois em união com os demais é possível estabelecer a unidade interior.
Para isso, faz-se necessário nos desfazer de toda falsa imagem de Deus, a
romper com um tipo de experiência de Deus que em muitos momentos comprova
uma deficiência, como nos lembra o livro de Jó: “eu te conhecia só de ouvir.
327
Agora, porém, os meus olhos te veem”1355
. Livrando-se de todo tipo de
formalismo mecânico e compulsivo, para poder despertar o fervor interior e
espontâneo do coração. E assim restaurar a orientação profundamente interior de
atividade religiosa, almejando a renovação e a purificação da vida interior, de se
deixar surpreender pela ação do Espírito. A partir de uma experiência de
profundidade no 'eu' mais profundo que quando desperta encontra-se na presença
de quem é imagem, Deus.
Então nesta experiência de mergulho, o cristão torna-se capaz de interiorizar
e de contemplar, de entrar em si, orar e reconhecer em seu interior a presença
silenciosa e amorosa de Deus; capaz de deter-se diante da natureza e do cosmos e
descobrir neles a presença do Deus vivo, de reconhecer na história, nos seres
humanos a manifestação de Deus; capaz de viver e experimentar que, quanto mais
unido a Ele, mais seu semelhante pode ser.
Percebemos que o contexto de pluralismo religioso indica onde são
necessárias as transformações: nas formas de prática religiosa, procurando viver
em profundidade, recuperando a dimensão da experiência íntima do mistério de
Deus e da experiência da unidade com ela. Entre os níveis de encontro com suas
respectivas formas de diálogo que o cristianismo tem buscado concretizar,
acreditamos que a experiência de Deus é o que alcança o nível mais profundo.
Deve-se estar convicto de que a presença de Deus não é algo exterior à pessoa,
que Ele não está fora, mas no próprio interior, na própria vida.
De acordo com Merton, o auge da vida interior é a contemplação; a
experiência de Deus em profundidade, a mística. Faz-se necessário o despertar do
cristão para a vida ao entrar em contato com Deus pela fé, em uma profunda
participação na vida de Cristo. É importante para a experiência cristã não apenas a
consciência do eu interior, mas também, pela fé, uma apreensão exterior de Deus,
na medida em que ele se faz presente em nosso eu interior. O contemplativo deve
caminhar na presença de Deus.
Para Panikkar, a Realidade é totalmente relacional. E o ser humano não é
um ser isolado, seu vínculo com o corporal e o divino lhe é constitutivo. A mística
é uma experiência humana em sua plenitude, permitindo com que o ser humano
faça a experiência do seu último fundamento, do que realmente é. É uma
1355 Jó 42,5.
328
experiência necessária para que todo ser humano chegue à consciência de sua
própria identidade.
O requisito indispensável para acolher a experiência de Deus é a integração
do interior humano. E assim o ser humano deve estar em harmonia consigo
mesmo e com o universo. Harmonia entre ele e a sua "casa", entre Deus e os
homens, entre contemplação e ação, entre tudo o que vive e tudo o que morre,
entre a renúncia e a conquista de si mesmo.
Por ser esta experiência uma experiência de profundidade, o ser humano
descobre em si mesmo e nos outros seres a dimensão de profundidade, de infinito
que existe em tudo. Esta experiência concede humildade, e ao mesmo tempo
liberdade.
É imprescindível que os cristãos se conscientizem de que a mística não
distrai o ser humano do cotidiano. Pelo contrário, o coloca em atenção diante dos
desafios e necessidades de seu tempo. A experiência mística não separa o amor de
Deus do amor ao próximo. O amor a Deus e ao próximo são um só amor. É o
amor que se faz humano através de Deus que leva o ser humano à sua plenitude,
tornando-o filho de Deus. É certo que o mistério do ser humano se revela através
do mistério de Cristo. E assim, se descobre o Cristo vivo de hoje, ontem e sempre.
Por isso, a contemplação é sinal de vida cristã madura, por ser uma
experiência que torna o ser humano amigo de Deus, retirando-o de toda e qualquer
alienação e submissão de suas falsas imagens. A maturidade cristã atingida pela
contemplação permite ao crente alcançar a comunhão com o Deus vivo. O ser
humano conhece a si mesmo pelo testemunho de seu eu mais profundo, de seu
espírito; também Deus se revela a si mesmo no amor de seu Espírito. O ser
humano foi criado à imagem e semelhança de Deus, e não há outro meio de
descobrir quem é senão descobrindo em si mesmo a imagem de Deus.
Torna-se necessária uma experiência de Deus inseparável de uma
experiência de amor. A recuperação da imagem divina em nossa alma, na medida
em que é experimentado por todos nós, é a experiência de um modo de ser
inteiramente novo. Tornamo-nos “homens novos” em Cristo. O ser humano que
alcança a integração do seu ser, não mais se encontra limitado pela cultura em que
está inserido. Aceita a humanidade toda. Quem se abre a essa experiência
transcende as divisões para alcançar uma unidade por cima de qualquer divisão.
329
Diante do nosso desejo de encontrar um possível caminho para uma
maturidade cristã e uma mística inter-religiosa, não podemos esquecer que o
centro da fé cristã não se vive no projeto de divinização do ser humano, senão em
sua radical humanização. Não porque a vida divina não seja importante, senão
porque não pode haver vida divina onde a vida humana se vê ameaçada, limitada,
humilhada ou deteriorada da maneira que for.
Estamos certos de que, para o cristão, o mergulho em sua profunda
intimidade é o caminho no discipulado de Jesus. No Evangelho, encontramos a
causa de Deus se confundindo com a causa da vida, a tal ponto que a pregação de
Jesus e seu comportamento nos dizem o seguinte: nos seres humanos encontramos
a Deus na medida, e somente na medida, em que defendemos a vida, respeitamos
a vida e dignificamos a vida.
Podemos dizer que a experiência mística presente no Evangelho não é uma
experiência centrada no sujeito, em sua própria perfeição, em sua santificação
pessoal, na aquisição de determinadas virtudes. A mística presente no Evangelho é
de uma experiência centrada nos outros, orientada para os demais, com a intenção
de aliviar o sofrimento alheio, ou mais exatamente, trata-se de uma experiência
centrada na defesa da vida, o respeito à vida e a luta por dignidade da vida. Por
fim, consiste exatamente em que se confunda a causa de Deus com a causa da
vida humana.
Para finalizarmos, não querendo aqui dar por concluída nossa pesquisa, mas
apenas em termos apresentado como possível conclusão um caminho espiritual
radicado no profundo encontro com Deus, como possibilidade para uma madura
experiência cristã e uma mística inter-religiosa, citamos o trecho do
pronunciamento do Papa Francisco, nas comemorações do 50º aniversário da
Fundação do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso, em que ele
afirma:
Como Cristo a caminho de Emaús, a Igreja deseja tornar-se próxima e companheira
de viagem de todos os homens. Esta disponibilidade em caminhar juntos é necessária, sobretudo, no nosso tempo marcado por profundas e nunca antes
conhecidas interações entre os povos e culturas diversas. Neste contexto, a Igreja
estará cada vez mais comprometida a percorrer o caminho do diálogo e a intensificar a cooperação, já frutuosa, com todos aqueles que, pertencentes a
diferentes tradições religiosas, partilham a vontade de construir relações de
amizade e participam nas numerosas iniciativas de diálogo1356
.
1356 Essa mensagem foi dirigida ao Cardeal Jean-Louis Tauran e aos participantes de uma
conferência por ocasião das comemorações do 50º aniversário da Fundação do Pontifício Conselho
330
Esta declaração nos permite ver que a cooperação inter-religiosa na
construção de um mundo novo é o único modo de ir adiante. Compreendemos que
no mundo de hoje, ser religioso é ser inter-religioso. No entanto, faz-se necessário
manter e aprofundar o compromisso religioso único que nos é próprio,
recuperando a experiência de profundo encontro com Deus para um sincero e
fecundo diálogo inter-religioso.
para o Diálogo Inter-religioso, em 19 de maio de 2014. Cf., em:
http://m2.vatican.va/content/francescomobile/pt/messages/pont-messages/2014/documents/papa-
francesco_20140519_messaggio-50-dialogo-interreligioso.html.
Referências Bibliográficas
Bibliografia de Thomas Merton
MERTON, Thomas. Ascensão para a verdade. Belo Horizonte: Itatiaia,
1999. _____ Na liberdade da solidão. Petrópolis. Rio de Janeiro: Vozes, 2001. _____ Bread in the widerness. Collegeville, MN: Liturgical Press, 1986. [Ed. bras.: O pão no deserto. Petrópolis: Vozes, 1958.] _____ Conjectures of a guilty bystander. New York: Doubleday, 1966.
[Ed. bras.: Reflexões de um espectador culpado. Petrópolis, RJ: Vozes, 1970.] _____ Contemplation in a world os action. New York: Doubleday, 1971.
[Ed. bras.: Contemplação num mundo de ação. Petrópolis: Vozes, 1995.] _____ Disputed questions. San Diego: Harcout Brace, 1985. [Ed. bras.: Humanismo cristiano. Cuestones disputadas. Barcelona: Editorial Kairós,
2000.] _____ Espiritualidade, contemplação e paz. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1962. _____ Incursiones en lo Indecible, Sal da Terrae: Santander, 2004.
_____ La experiencia interna. Notas sobre la contemplación, In.
Cistercium 212 (1998). _____ La vida silenciosa. Desclée de Brouwer: Bilbao, 2009. _____ Love and living. San Diego: Harcourt Brace Jovanovich, 1985. [Ed. bras.: Amor e vida. São Paulo: Martins Fontes, 2004.] _____ Mystics and Zen Masters. New York: Farrar, Strauss and Giroux, 1976. [Ed. bras.: Místicos e mestres Zen. São Paulo: Martins Fontes, 2006.] _____ News seeds of contemplation. [Ed. bra.: Novas sementes de
contemplação. Rio de Janeiro: Fissus, 2001.] _____ No man is an Island. New York: Phoenix Press, 1986. [Ed. bras.: Homem algum é uma ilha. Campinas, SP: Verus Editora, 2003.] _____ O homem novo. Rio de Janeiro: Agir editora, 1966.
332
_____ Reflexiones sobre Oriente. Barcelona: Ediciones Oniro, 1997.
_____ Sabedoria do deserto. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
_____ Seeds of contemplation. New York: New directions, 1986. [Ed. bra.: Sementes de contemplação. Porto: Tavares Martins, 1956.] _____ Seeds of destruction. New York: Farrar, Strauss and Giroux, 1996. [Ed. bras.: Sementes de destruição. Petrópolis: Vozes, 1966.] _____ The Asian Journal of Thomas Merton. New York: New Directions, 1973. [Ed. bras.: O diário da Ásia. Belo Horizonte: Ed. Vega, 1978.] _____ The inner experience: notes on contemplation. [Ed. bras.: A
experiência interior: notas sobre a contemplação. São Paulo: Martins Fontes, 2007.] _____ The sign of Jonas. New York: Octagon Books, 1983. [Ed. bras.: O
signo de Jonas. São Paulo: Ed. Mérito, 1954.] _____ The way of Chuang Tzu. Boston: Shambhala Publications, 1980. [Ed. bras.: Via de Chuang Tzu. Petrópolis: Vozes, 2003.] _____ Vida y santidad. Sal Terrae: Santander, 2006.
_____ Vivir con sabeduria. Madri: PPC, 1997.
_____ Zen and the birds of appetite. London: Shambhala, 1968. [Ed.
bras.: Zen e as aves de rapina. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1972.] _____The seven storey mountain. San Diego: Harcourt Brace
Jovanovich, 1990. [Ed. bras.: A montanha dos sete patamares. Petrópolis: Vozes. 2005.] Bibliografia de Raimon Panikkar
PANIKKAR, Raimon. Autobiografía intelectual. La filosofía como estilo
de vida. Anthropos, 1985. _____A Self-Critical Dialogue. En The intercultural Challenge of Raimon Panikkar editado por Joseph Prabhu, 227-291. Maryknoll, NY: Orbis, 1996. _____Cometas. Fragmentos de un diario espiritual de la postguerra. Madrid: Suramérica, 1972.
333
_____Culto y secularización. Madrid: Marova, 1979.
_____ De la mística. Experiencia plena de la Vida. Barcelona: Editorial
Herber, 2005. _____ Ecosofía. Para una espiritualidad de la tierra. Madrid: San Pablo,
1994. _____El concepto de natureza. Análisis histórico y metafísico de un
concepto, CSIC, Madri, 1972. _____El Cristo desconocido del hinduismo. Madrid: Grupo Libro 88, 1994. _____El dialogo interno: la insuficiencia de la llamada 'époché'
fenomenologica en el encontro religioso. Salmanticensis, XXII/2 , 1975. _____ El espíritu de la política. Homo politicus. Barcelona: Península, 1999. _____ El mundanal silencio. Barcelona: Martínez Roca, 1999.
_____ El silencio del Buddha. Una introducción al ateísmo religioso.
Madrid: Siruela, 1996. _____ El toque contemplativo. En El árbol de la vida editado por Chantal Maillard et al., Barcelona: Kairós, 2001. _____ Elogio de la sencillez. Navarra: Verbo Divino, 2000.
_____ Entre Dieu et le cosmos. Entrevista com Gwendoline Jarczyk,
Albin Michel: Paris, 1998. _____ Experiencia de Dios. Madrid: PPC, 1994. _____ Humanismo e cruz. Rialp, Madrid, 1963. _____ Icones do místério. A experiência de Deus. São Paulo: Paulinas, 2007. _____ Il diálogo intrareligioso. Cittadella: Assisi, 1988.
_____ Invitación a la sabiduría. Espasa: Madrid, 1999.
_____ Jesús en el diálogo interreligioso. En Diez palabras clave sobre
Jesús de Nazareth, compilado por Juan José Tamayo, 453-488. Navarra: Verbo Divino, 1999. _____La experiência filosófica de la Índia. Madri: Trotta, 1997.
_____La intuición cosmoteándrica. Las tres dimensiones de la realidad.
Madrid: Editora Trotta, 1999.
334
_____La nueva inocencia. Pamplona: Verbo Divino, 1999. _____La plenitud del hombre. Una cristofanía. Madrid: Siruela, 1999. _____La transformación de la misión cristiana en diálogo. Madrid, 1992. _____La Trinidad. Una experiencia humana primordial. Siruela, Madrid,
1998. _____La vision cosmoteandrica: El sentido religioso emergente del tercer milênio, Qüestions de vida cristiana, 156, 1990. _____La vocación humana es fundamentalmente religiosa. Anthropos,
1985. _____Mistica comparada? Em VV AA, La mistica en el siglo XXI. Trota: Madrid, 2002. _____Mito, fe y hermenéutica. Barcelona: Herder, 2007.
_____Ontonomía de la ciencia. Sobre el sentido de la ciencia e sus
relaciones con la filosofia, Gredos: Madris, 1961. _____ El conflicto de eclesiologías: hacia un concilio de Jerusalén II, Tiempo de Hablar, 1993. _____ Paz e interculturalidad. Una reflexión filosófica. Barcelona:
Herder, 2006. _____ Paz y desarme cultural. Santander: Sal Terrae, 1993. _____ Pensamiento científico y pensamiento cristiano. Maliaño-Madrid: Sal Terrae-Fe y secularidad, 1994. _____ Presentación de La montée au fond du coeur. OEIL, Paris,
1986. _____ Sobre el diálogo intercultural. Salamanca: San Esteban, 1990. _____ Reflexiones sobre religión y Europa. Alandar, Madrid, 1997. _____ Religión. Diálogo intrarreligioso. In: Casiano FLORISTAN & Juan Jose TAMAYO. Conceptos fundamentales del cristianismo. Madrid: Trotta, 1993. _____Salvation in Christ: Concreteness anda Universalitty. The Supername, Tantur, Jerusalem, 1972.
335
_____The Cosmoteandric Experience. Maryknoll, NY: Orbis, 1993. Bibliografia de Juan Martin Velasco VELASCO, J. Martin. El fenómeno místico. Estudio comparado. Madri:
Trotta, 1999. _____ Experiência cristã de Deus. São Paulo: Paulinas, 2001. _____ (org.). La experiencia mística. Estudio Interdisciplinar. Madri: Trotta, 2004. _____ El malestar religioso de nuestra cultura. 2ª Ed. Madrid: Paulinas,
1993. _____ Introducion a la fenomenologia de la religión. Madri: Trotta, 2006. Bibliografia de Andrés Torres Queiruga
QUEIRUGA, A. Torres. A revelação de Deus na realização humana. São Paulo: Paulus, 1995. _____ Autocompreensão cristã: diálogo das religiões. São Paulo:
Paulus, 2007. _____ O diálogo das religiões. São Paulo: Paulus, 1997. _____ Um Dios para hoy. Santander, Sal Térrea, 1997. _____ Recuperar a criação. Por uma religião humanizadora. São Paulo: 1999. _____ Recuperar a salvação. Por uma interpretação libertadora da
experiência humana. São Paulo: 1999. _____ El dialogo de las religiones en el mundo actual. El Vaticano III. Barcelona, Herber-El Ciervo, 2001. _____ O fim do cristianismo pré-moderno: desafios para um novo horizonte. São Paulo: Paulus. 2003. _____ Repensar a ressurreição. A diferença cristã na continuidade das religiões e da cultura. São Paulo: Paulinas, 2004.
336
_____ Cristianismo y religiones: ‘inreligionación’ y cristianismo assimétrico. In: Estúdios Sal Térrea 84, n. 1 p. 3-19, 1997. _____ ¿Qué significa afirmar que Dios habla? In: Selecciones de Teologia 34, n. 134, p. 102-108, 1995.
_____ Inculturación de la fé. In: FLORISTAN, C. (org.). Conceptos fundamentales de pastoral. Madrid: Cristiandad. 1983. pp. 471-480. _____ Repensar o pluralismo: da inculturação à inreligionação. In: Concilium. Petrópolis: Vozes, n. 319, 2007. Bibliografia geral
Documentos, livros, revistas, entrevistas e artigos de diversos autores pesquisados para a elaboração da tese. Documentos da Igreja CONCÍLIO VATICANO II. Constituição dogmática Lumen Gentium.
Petrópolis: Vozes, 1969. _____ Constituição dogmática Dei Verbum. Petrópolis: Vozes, 1969. _____ Constituição pastoral Gaudium et Spes. Petrópolis: Vozes, 1969. _____ Decreto Ad Gentes. Petrópolis: Vozes, 1969. _____ Decreto Unitatis Redintegratio. Petrópolis: Vozes, 1969. _____ Declaração Nostra aetate. Petrópolis: Vozes, 1969. _____ Declaração Dignitatis Humanae. Petrópolis: Vozes, 1969. CNBB, Guia para o diálogo inter-religioso. (Estudos n. 52) São Paulo: Paulus, 1997. _____ A Igreja Católica diante do pluralismo religioso III (Estudos n.
62). São Paulo: Paulus, 1991. _____ A Igreja Católica diante do pluralismo religioso III (Estudos n. 69). São Paulo: Paulus, 1993. _____ A Igreja Católica diante do pluralismo religioso III (Estudos n.
70). São Paulo: Paulus, 1994.
337
CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Declaração “Dominus Iesus” Sobre a unicidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja. São Paulo: Loyola, 2000.
JOÃO PAULO II. Encíclica Redemptoris Hominis. Petrópolis: Vozes,
1980. _____ Encíclica Redemptoris Missio. Petrópolis: Vozes, 1991. PONTIFÍCIO CONSELHO PARA O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO. Diálogo e Anuncio. São Paulo: Paulinas, 1996.
SECRETARIADO para os Não-Cristãos. A igreja e as outras religiões. São Paulo: Paulinas, 2001 (Documento Diálogo e Missão). Livros e artigos ABUMALHAM, Montserrat. Conversación con Raimon Panikkar. In. Revista de Ciencias de las Religiones. Samâdhânam. Anejo VI (2001): pp.7-26. AMALADOSS, M. Pela estrada da vida. Prática do diálogo inter-religioso. São Paulo: Paulinas, 1996. _____ O pluralismo das religiões e significado de Cristo. In: TEIXEIRA, Faustino. Diálogo de pássaros. Nos caminhos do diálogo inter-religioso. São Paulo: Paulinas, 1993. pp. 89-109. _____ Religiões: violência ou diálogo? In: Perspectiva teológica. v. 34, n. 93, 2002. pp. 179-196. ANCILLI, E. Mística non Cristiana. In: ANCILLI, E. (org.). Dizionario Enciclopédico di Spiritualità. v. 02. Roma: Città Nuova Editrice, 1900.
AGUILAR, Emilio Galindo. Musulmanes y cristianos conducidos por el Espíritu. In: MELLONI, Javier (org.). El no-lugar del encontro religioso. Madri: Trotta, 2008. pp. 169-193. AZEVEDO, Marcelo de C. Modernidade e cristianismo. São Paulo:
Loyola, 1981. BASSET, Jean-Claude. El diálogo interreligioso. Desclée. Bilbao, 1999. BERGER, Peter L. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus, 1985.
BERGSON, H. Las dos fuentes de la moral y de la religion. Madri:
Tecnos, 1996.
338
BERGERON, Richard. Hors de l’Église plein de salut. Pour une
théologie dialogale et une spiritualité interreligieuse. Canadá: Médiaspaul, 2004. BERTELLI, Getúlio Antônio. Mística e compaixão: a teologia do seguimento de Jesus em Thomas Merton. São Paulo: Paulinas, 2008. BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Nova edição revisada. Trad.
Soc. Bíblica Católica Internacional e Paulus. São Paulo: Paulus. 1985. BINGEMER, Maria C. (org.) Violência e religião. Cristianismo, islamismo, Judaísmo. São Paulo: Loyola, 2002. _____ (org.) O impacto da modernidade sobre a religião. São Paulo:
Loyola, 1992. _____ Alteridade e vulnerabilidade. Experiência de Deus e pluralismo religioso no moderno em crise. São Paulo: Loyola, 1993. _____ A sedução do Sagrado. In: CALIMAN, Cleto. (org.) A sedução do Sagrado: o fenômeno religioso na virada do milênio. Vozes: Petrópolis, 1998. _____ O impacto da modernidade sobre a religião. São Paulo: Loyola,
1992. _____ O mistério e o mundo. Paixão por Deus em tempos de descrença. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.
BOFF, Leonardo. Mestre Eckhart: mística de ser e de não ter.
Petrópolis: Vozes, 1983. BORRIELLO, L. et al. Dicionário de mística. São Paulo: Paulus: Edições Loyola, 2003. pp. 707-709. BUBER, Martin. Eclipse de Dios. Buenos Aires, Galatea-Nueva Vision,
1970. BLANK, Renold J. Deus na história: centros temáticos da revelação. São Paulo: Paulinas, 2007. CATTIN, Yves. A regra cristã da experiência mística. In: Concilium 254,
n. 4, 1994. CASTIÑEIRA, Angel. A experiência de Deus na pós-modernidade. Petrópolis: Vozes, 1997. CRUZ, S. João da. Obras Completas. Petrópolis: Vozes. Carmelo
Descalço do Brasil, 1984.
339
Diccionario interdisciplinar de hermenéutica editado por Andrés Ortíz-Osés y Patxi Lanceros, pp. 650-655. Bilbao: Universidad de Deusto, 1998. DUPUIS, Jacques. O cristianismo e as religiões. Do desencontro ao encontro. São Paulo: Loyola, 2004. _____ Le pluralisme religieux dans le plan divin de salut. In: Revue Theologique de Louvain, 29, 1998. pp. 484-505.
_____ Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso. São Paulo:
Paulinas, 1999. DUQUOC, Christian. El único Cristo. La sinfonia diferida. Sal da Térrea, Cantabria, 2005. DHAVAMONY, M. Teologia das religiões. In: LATOURELLE, R. – FISICHELLA, R. Dicionário de Teologia Fundamental. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Santuário, 1994. pp. 806-815. ELENA, Santiago del Cura. Mística Cristiana: su enraizamiento neotestamentario en perspectiva ecumênica. In: VELASCO. Juan Martin. (org.). La experiencia mística. Estudio Interdisciplinar. Madri: Trotta,
2004. pp. 129-166. EICHER, Peter. Pluralismo. In: Dicionários de Conceptos teológicos. Vol. II. Barcelona: Herber, 1990, p. 237-242. _____ Excelência da teologia em conflito com seu pluralismo. In: Concilium 191, n.1, 1980. ESCOBAR, J.D. Soriano. Revelación, cristianismo y religiones en la obra de Raimundo Panikkar. Universidad Pontificia de Salamanca,
1996. FORCANO, Benjamin. Entrevista a Raimon Panikkar, Exodo, 65, 2002. pp.10-17. FORNET-BETANCOURT, Raúl. La mística del diálogo. Jahrbuch für
kontextuelle Theologien 93. Frankfurt: IKO, 1994. pp.19-37. GARCIA RUBIO, A. Unidade na pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão cristã. São Paulo: Paulus, 2001.
GUERRA, S. Mística. In: PIKAZA, X., SILANES, N. Diccionario Teologico. El Dios cristiano. Salamanca: Secretariado Trinitario, 1992. GREFFRÉ, C. O lugar das religiões no plano da salvação. In: TEIXEIRA, Faustino (org). O diálogo inter-religioso como afirmação da vida. São
Paulo: Paulinas, 1997.
340
HART, Patrick; MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade: sua vida em seus diários. Rio de Janeiro: Fisus, 2001.
HÄRING, S. Superar a violência em nome da religião. In: Concilium 272,
1997. 4, p. 683ss. HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento. São Paulo: Vozes, 2008.
_____ Representam os surtos emocionais contemporâneos o fim da secularização ou o fim da religião? In: Religião e Sociedade. 18/1, 1997. JÄGER, W. Adonde nos lleva nuestro anhela. La mística en el siglo XXI. Desclée, Bilbao, 2004. JAMES, William. Las variedades de la experiencia religiosa. Penisula,
Barcelona, 1988. KÜNG, H. Teologia a caminho. Fundamentação para o diálogo ecumênico. São Paulo: Paulinas, 1999. _____ Projeto de ética mundial. Uma moral ecumênica em vista da
sobrevivência humana. São Paulo: Paulinas, 1992. _____ Para uma teologia ecumênica das religiões. In: Concilium 161, 1986 1, pp. 124-131 KNITTER, Paul. Diálogo inter-religioso e ação missionária: preparai os caminhos. São Paulo: CNBB: COMINA, 1994. _____ A teologia católica das religiões numa encruzilhada. Concilium 203, n. 1, p.112. LATOURELLE, R. Revelação. In: Dicionário de Teologia Fundamental.
Petrópolis: Vozes; São Paulo: Santuário, 1994. LIBÂNIO, João B. As lógicas da cidade. O impacto sobre a fé e sob o impacto da fé. São Paulo: Loyola, 2001. LIPOVETSKY, G. A era do vazio. Lisboa: Relógio d’água, 1989.
LÓPEZ, María Luisa Laguna. Thomas Merton: uma vida com horizontes. Aparecida, SP: Editora Santuário, 2010. LÓPEZ-GAY. Místique. In: VILLE, M. et al. (Ed.). Dictionnaire de Spiritualitè. v. X. Paris: Beauchesne, 1980.
LÓPEZ-BARALT, L. e L. Piera. El sol a media noche. La experiencia
mística: tradición y actualidad. Madri: Trotta, 1996.
341
MARDONES, J. Maria. Mística transreligiosa en una sociedade de incertidumbre. In: RODRIGUEZ, Francisco J. S. Mística y sociedad en diálogo. Madri: Trotta, 2006. pp. 89-105. MARTELLI, Stefano. A religião na sociedade pós-moderna. São Paulo: Paulinas, 1995. MELLONI, Javier. (org.). El no-lugar del encontro religioso. Madri:
Trotta, 2008. MIRANDA, M. de França. O pluralismo religioso como desafio e chance. REB 55, 1995. _____ Jesus Cristo, um obstáculo ao diálogo inter-religioso? REB 57, 1997. pp. 243-264. _____ O encontro das religiões. In: Perspectiva Teológica. 68,1994. pp.
09-26. _____ Volta do sagrado: numa avaliação teológica. In: Perspectiva teológica, 21, 1989. pp. 71-83.
_____ Um homem perplexo. O cristão na atual sociedade. São Paulo:
Loyola, 1989. _____ O cristianismo em face das religiões. Religiões em diálogo. São Paulo: Loyola, 1998. MONCADA, Alberto. Historia oral del Opus Dei. Plaza & Janés:
Barcelona, 1987. MORA, Ferrater. Mayéutica. In: Diccionário de Filosofia. Madrid: Alianza, 1981. ORO, A. P. – STEIL, C. A. (orgs.). Globalização e Religião. Petrópolis:
Vozes, 1997. OTTO, Rudolf. O sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional. São Leopoldo, Sinodal/EST; Petrópolis:
Vozes, 2007. PANASIEWICZ, Roberlei. Diálogo e revelação: rumo ao encontro inter-religioso. Belo Horizonte: C/Arte, 1999.
PAIDADATH, Sebastian. Ashms: um movimento de integração espiritual. Concilium 254, n. 4, 1994. PINGEM, Jordi. El pensament de Raimon Panikkar: Interdependència, pluralisme, interculturalitat. Barcelona: Institut d’Estudis Catalans, 2007.
342
PRIETO, Pérez V., Raimon Panikkar. El pensamiento cristiano es trinitario, simbólico e relacional. Encontros con R. Panikkar, Iglesia Viva 223, 2005. _____Más allá de la fragmentación de la teología, el saber y la vida: Raimon Panikkar.Valencia: Tirant lo Blanch, 2008. RAHNER. Karl. Experiencia de la gracia. In: Escritos de teologia. Madri: Taurus, 1961, v.3, pp. 103-107. _____ Curso fundamental da fé: introdução ao conceito de cristianismo. São Paulo: Paulinas, 1989. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. São Paulo: Paulus, 1990. v. 1. RODRIGUEZ, Francisco J. S. (org.) Mística y sociedad en diálogo.
Madri: Trotta, 2006. ROSSI, A. Pluralismo e armonía. Introduzione al pensiero di Raimon Panikkar. Roma: L’altrapagina, 1990. SARTORI, L. Teologia de las religiones no cristianas. In: Diccionario Teológico Interdisciplinar. vol. 4, Salamanca: Sígueme, 1987, p. 423-428. SIGUAN, Miquel. Philosophia pacis. Homenaje a Raimon Panikkar.
Madrid: Símbolo, 1989. SOUZA, Maria Emmanuel e Silva. Thomas Merton: um homem feliz. Petrópolis:Vozes, 2003. SUDBRACK, Josef. Mística. A busca do sentido e a experiência do
absoluto. São Paulo: Loyola, 2007. SUTTER, A. Mística. In: ANCILLI, E. (org.). Dizionario Enciclopédico di Spiritualità. v. 02. Roma: Città Nuova Editrice, 1900.
SCHILLEBEECKX, E. Religião e violência. Concilium 272, 1997. pp. 744-
761. _____ História humana. Revelação de Deus. São Paulo: Paulus, 1994. STIEL, C. A. O diálogo inter-religioso numa perspectiva antropológica. In: TEIXEIRA, Faustino (org.). O Diálogo de pássaros. Nos caminhos do
diálogo inter-religioso. São Paulo: Paulinas, 1993. pp. 23-33. TAMAYO, Juan José. Fundamentalismo y dialogo entre religiones. Madri: Trotta, 2005.
343
_____ A mística como superacion del fundamentalismo, p.161. In: RODRIGUEZ, Francisco J. S. (org.) Mística y sociedad en diálogo. Madri: Trotta, 2006. pp. 155-180. _____Conceptos fundamentales del cristianismo. Madrid: Trotta, 1993.
TEIXEIRA, Faustino (org.). No limiar do mistério. Mística e religião. São Paulo: Paulinas, 2004. _____ O diálogo inter-religioso como afirmação da vida. São Paulo:
Paulinas, 1997. _____ Teologia das religiões: uma visão panorâmica. São Paulo: Paulinas, 1995. _____ Diálogo inter-religioso: o desafio da acolhida da diferença. In: Perspectiva teológica 34, n. 93, 2002. _____ Teologia do pluralismo religioso em questão. REB 59, 1999, pp. 591-617. TRESMONTANT, Claude. La mística cristiana y el porvenir del hombre. Barcelona: Ed. Herder, 1979. THEIL, John. Pluralismo na verdade teológica. Concilium 256, n. 6, 1994. UNDERHILL, Evelyn. La mística. Estudio de la naturaleza y desarrollo de la conciencia espiritual. Madri: Trotta, 2006. VIGIL, J. Maria. Teologia do pluralismo religioso. Para uma releitura
pluralista do cristianismo. São Paulo: Paulus, 2006. WATT, Ninfa. La fuente de la cordialidad. p. 81. In: RODRIGUEZ, Francisco J. S.(org.). Mística y sociedad en diálogo. Madri: Trotta, 2006.