francisco de assis nogueira barros - usp · 2019. 2. 21. · o diálogo inicia com uma conversa...
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UNIVERSIDADE DE SAtildeO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIEcircNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLAacuteSSICAS E VERNAacuteCULAS
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM LETRAS CLAacuteSSICAS
FRANCISCO DE ASSIS NOGUEIRA BARROS
Feacutedon de Platatildeo Argumentos sobre a Imortalidade da Alma e Traduccedilatildeo Parcial
Satildeo Paulo
2018
UNIVERSIDADE DE SAtildeO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIEcircNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLAacuteSSICAS E VERNAacuteCULAS
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM LETRAS CLAacuteSSICAS
Feacutedon de Platatildeo Argumentos sobre a Imortalidade da Alma e Traduccedilatildeo Parcial
Francisco de Assis Nogueira Barros
Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em
Letras Claacutessicas do Departamento de Letras Claacutessicas e
Vernaacuteculas da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias
Humanas da Universidade de Satildeo Paulo como parte
dos requisitos para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em
Letras Claacutessicas
Orientador Prof Dr Daniel Rossi Nunes Lopes
Satildeo Paulo
2018
Nome BARROS Francisco de Assis Nogueira
Tiacutetulo Feacutedon de Platatildeo Argumentos sobre a Imortalidade da Alma e Traduccedilatildeo
Parcial
Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em
Letras Claacutessicas do Departamento de Letras Claacutessicas e
Vernaacuteculas da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias
Humanas da Universidade de Satildeo Paulo como parte
dos requisitos para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em
Letras Claacutessicas
Aprovado em
Banca examinadora
Prof Dr________________ Instituiccedilatildeo___________________________
Julgamento_____________ Assinatura___________________________
Prof Dr________________ Instituiccedilatildeo___________________________
Julgamento_____________ Assinatura___________________________
Prof Dr________________ Instituiccedilatildeo___________________________
Julgamento_____________ Assinatura___________________________
Prof Dr________________ Instituiccedilatildeo___________________________
Julgamento_____________ Assinatura___________________________
AGRADECIMENTOS
Agrave Capes pela bolsa fornecida
RESUMO
O tema principal do Feacutedon de Platatildeo eacute a imortalidade da alma Meu objetivo
nesta tese eacute apresentar um estudo dos argumentos sobre a imortalidade da alma no
Feacutedon e uma traduccedilatildeo parcial do diaacutelogo
ABSTRACT
The main topic of the Platorsquos Phaedo is the immortality of the soul My aim in
this thesis is to present a study of the arguments for immortality of the soul in the
Phaedo and a partial translation of the dialogue
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip9
2 PRIMEIRA ETAPA DO DIAacuteLOGO helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip13
3 ARGUMENTO CIacuteCLICOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip32
4 ARGUMENTO DA REMINISCEcircNCIAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip70
5 ARGUMENTO DAS AFINIDADEShelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip102
6 UacuteLTIMO ARGUMENTO ndash PROLEGOcircMENOShelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip155
7 UacuteLTIMO ARGUMENTO PROPRIAMENTE DITOhelliphelliphelliphelliphellip215
8 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIShelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip228
9 TRADUCcedilAtildeO PARCIALhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip233
10 BIBLIOGRAFIA helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip286
9
1 INTRODUCcedilAtildeO
Apesar da vasta literatura criacutetica destinada ao estudo dos argumentos sobre a
imortalidade da alma no Feacutedon a temaacutetica eacute sobremodo complexa e continua
desafiando os pesquisadores Temas tidos como tradicionais e consolidados sobre a
alma em Platatildeo merecem ser revisitados reavaliados e confrontados com nova
investigaccedilatildeo uma vez que a formaccedilatildeo e inclinaccedilatildeo pessoal de cada estudioso permite
investigar Platatildeo de diferentes maneiras e chegar a diferentes respostas a partir de
diferentes meacutetodos e instrumentos hermenecircuticos razatildeo pela qual Platatildeo continua
exercendo encanto duradouro sobre todos noacutes1 Sendo assim eacute natural que haja um
renovado interesse pelos argumentos sobre a imortalidade da alma no Feacutedon
O tema principal do Feacutedon eacute a imortalidade da alma e ele comeccedila a ser
desenvolvido a partir do primeiro estaacutegio do diaacutelogo quando Soacutecrates apresenta a sua
defesa perante seus amigos de seu modo de vida e atitude perante a morte Nesta
ocasiatildeo ele afirma a sua convicccedilatildeo de que a alma do verdadeiro filoacutesofo ndash aquele que
vive na praacutetica da morte ao longo de toda a sua vida ndash desceraacute ao Hades onde se juntaria
aos deuses Nesta primeira etapa a imortalidade eacute simplesmente assumida nas
declaraccedilotildees de Soacutecrates como lsquotenho uma boa expectativa de que haja algo reservado
para os mortosrsquo A sua convicccedilatildeo eacute conforme a tradiccedilatildeo aquilo que os antigos diziam
lsquoque haacute algo muito melhor reservado para os bons do que para os mausrsquo (63c5-7) Mas
Soacutecrates natildeo convence aos amigos com a sua esperanccedila de cunho meramente religioso
Haacute pessoas que acreditam que a alma poderia ser destruiacuteda na ocasiatildeo em que se separa
1 Valditara in Fermani Migliori Valditara (org) 2007 p5
10
do corpo Esta crenccedila na aniquilaccedilatildeo da alma deve ser enfrentada com argumentaccedilatildeo
filosoacutefica Seria necessaacuterio um grande esforccedilo de Soacutecrates para mostrar que a alma da
pessoa que morre continua a existir com capacidade e conhecimento (ὡς ἔστι τε ψυχὴ
ἀποθανόντος τοῦ ἀνθρώπου καί τινα δύναμιν ἔχει καὶ φρόνησιν) (Cf70a1-b4) Com
esta problemaacutetica se inicia uma seccedilatildeo demonstrativa em que o tema da imortalidade
recebe tratamento filosoacutefico especializado Nesta etapa temos quatro argumentos ou
provas da imortalidade da alma (i) argumento ciacuteclico ou dos opostos (70c-72d) (ii)
argumento da reminiscecircncia (72e-77a) (iii) argumento das afinidades (78b-80b) (iv)
uacuteltimo argumento (96a-107b) O objetivo deste trabalho eacute apresentar um estudo de cada
argumento sobre a imortalidade da alma no Feacutedon e uma traduccedilatildeo parcial do diaacutelogo ndash
de toda a primeira etapa do diaacutelogo e de cada argumento propriamente dito
Natildeo pretendemos fazer uma exposiccedilatildeo e anaacutelise exaustiva de cada argumento
Natildeo raramente cada linha de cada argumento eacute objeto de amplo debate e uma discussatildeo
exaustiva de cada toacutepico levantado vai aleacutem do escopo de nossa pesquisa O nosso
objetivo eacute reavaliar as provas da imortalidade com o fim de observar como cada uma
delas procura se estabelecer como prova da imortalidade da alma Em diaacutelogo com a
tradiccedilatildeo criacutetica esperamos reafirmar posiccedilotildees interpretativas jaacute consagradas mas
tambeacutem sugerir rupturas e novos caminhos de interpretaccedilatildeo sempre que possiacutevel
Sobre a nossa interpretaccedilatildeo do diaacutelogo eacute importante dizer que privilegiamos a
exegese textual e a interpretaccedilatildeo de cada argumento propriamente dito mas
considerando o contexto imediato o contexto mais amplo da obra e a relaccedilatildeo muacutetua
entre os argumentos evitando interpretar cada argumento como se fosse uma unidade
isolada Considerando o contexto amplo do diaacutelogo apresentamos um breve estudo
11
sobre a doutrina de cunho oacuterfico e pitagoacuterico que eacute um dos saberes tradicionais com os
quais Platatildeo dialoga com frequecircncia no Feacutedon
Teremos o cuidado de dialogar com a tradiccedilatildeo interpretativa cujo esforccedilo para a
compreender o Feacutedon eacute notaacutevel e sua contribuiccedilatildeo para a compreensatildeo do diaacutelogo eacute
inestimaacutevel Mas evitaremos ao maacuteximo transportar projetar e impor ao diaacutelogo
posiccedilotildees filosoacuteficas desenvolvidas posteriormente evitando interpretaccedilotildees anacrocircnicas
Aleacutem disso eacute importante reconhecer que em geral a interpretaccedilatildeo de um
diaacutelogo platocircnico eacute em parte predeterminada e moldada pelo que jaacute ouvimos a respeito
dele Um exemplo disso eacute a tendecircncia de acompanhar a literatura criacutetica em sua
costumeira propagaccedilatildeo da ideia de que o Feacutedon pretende ser uma exposiccedilatildeo e defesa
dos lsquopilares gecircmeosrsquo do Platonismo imortalidade da alma e teoria das Formas A
propagaccedilatildeo dessa ideia tem levado inteacuterpretes a conceber ou pelo menos sugerir a
existecircncia de uma dupla temaacutetica de igual importacircncia no Feacutedon2 Nossa tese diverge
desta tendecircncia reconhecendo que o tema principal do Feacutedon eacute a imortalidade da alma
individual e que o diaacutelogo natildeo pretende apresentar uma exposiccedilatildeo e defesa da teoria
das Formas como a tradiccedilatildeo interpretativa consagrou mas sim uma sistemaacutetica defesa
da imortalidade da alma Embora lsquoFormasrsquo e outros temas tenham importacircncia no
diaacutelogo do iniacutecio ao fim o Feacutedon estaacute voltado para o problema da imortalidade da alma
Portanto procuramos reler o Feacutedon sem excessiva dependecircncia daquilo que jaacute se
disse a respeito dos argumentos sobre a imortalidade da alma Nem mesmo abraccedilaremos
a ideia de que Platatildeo espera que o leitor entreveja teorias filosoacuteficas complexas em
passagens nas quais o filoacutesofos natildeo apresenta uma exposiccedilatildeo consistente sobre elas
2 Cf Burger 1984 p2 Cf Bluck 1955 p2 Cf Gallop 2002 p97 ldquoA doutrina da imortalidade
eacute logicamente dependente da Teoria das Formasrdquo
12
Tambeacutem evitamos incorrer na tentativa de complementar o que Platatildeo deixou
(deliberadamente ou natildeo) vago e inconcluso no Feacutedon
Aleacutem do estudo dos argumentos sobre a imortalidade da alma no Feacutedon esta
tese tambeacutem apresenta uma traduccedilatildeo parcial do diaacutelogo uma traduccedilatildeo de toda a
primeira etapa do Feacutedon (57a-70c) e a traduccedilatildeo de cada argumento propriamente dito
Noacutes apresentamos um comentaacuterio sobre as seccedilotildees que circundam cada argumento e
todas as citaccedilotildees do Feacutedon apresentadas na tese inclusive das seccedilotildees que natildeo
traduzimos integralmente satildeo de nossa autoria Nossa traduccedilatildeo seraacute baseada na mais
recente ediccedilatildeo do texto grego a ediccedilatildeo inglesa de E A Duke W F Hicken W S M
Nicoll D B Robinson e J C G Strachan (Oxford Classical Texts 1995)
13
2 PRIMEIRA ETAPA DO DIAacuteLOGO (65A ndash 70C)
21 Panorama Geral
O diaacutelogo inicia com uma conversa entre Feacutedon e Equeacutecrates o qual solicita
uma narrativa detalhada sobre a morte de Soacutecrates Ele quer saber minuciosamente tudo
que Soacutecrates conversou com seus amigos e tudo que aconteceu no caacutercere horas antes
de sua execuccedilatildeo (58d) Jaacute se passou algum tempo entre a morte de Soacutecrates e a conversa
entre Feacutedon e Equeacutecrates (57a-b) Feacutedon entatildeo assume o papel de narrador e se dispotildee a
satisfazer o pedido de Equeacutecrates Antes de comeccedilar a extensa narrativa Feacutedon revela
algo de fundamental importacircncia e que geralmente passa despercebido pelos
inteacuterpretes o proacuteprio narrador declara a sua crenccedila particular de que a alma de Soacutecrates
iria para o Hades com uma divina Moira (58e-59a) Soacutecrates faraacute uma afirmaccedilatildeo
semelhante em breve Sobretudo na primeira etapa do diaacutelogo a imortalidade da alma
individual (alma de Soacutecrates) eacute simplesmente assumida pelo narrador e pelo proacuteprio
Soacutecrates a partir de um discurso de cunho religioso
Conforme o relato de Feacutedon antes de beber o veneno Soacutecrates sustenta que o
verdadeiro filoacutesofo encara a morte com naturalidade Os amigos de Soacutecrates querem
saber por que o filoacutesofo estaacute contente em morrer o que lhes parece absurdo O filoacutesofo
entatildeo oferece-lhes uma defesa que pretende ser mais convincente do que aquela
apresentada aos juiacutezes e que visa justificar sua presente atitude diante da morte seu
desejo de morrer (60c-62c)3 Enquanto apresenta sua defesa Soacutecrates desenvolve o
3 Enquanto na Apologia de Soacutecrates o filoacutesofo discursa para a cidade e tenta se defender da
acusaccedilatildeo de corromper a juventude e de introduzir novas divindades na cidade na segunda
14
tema da vida filosoacutefica afirmando que o legiacutetimo filoacutesofo dedica a vida ao exerciacutecio da
filosofia que consiste num exerciacutecio de morrer e de estar morto que antecipa os
benefiacutecios advindos com a morte a saber a liberaccedilatildeo do corpo o rival da alma o qual
oblitera a insaciaacutevel busca do filoacutesofo pela verdade (64a-65a) Vivendo assim o
legiacutetimo filoacutesofo jamais receia a morte pois eacute ela que lhe abre as portas para uma
melhor existecircncia4
Enquanto desenvolve a defesa da atitude do legiacutetimo filoacutesofo frente agrave morte
Soacutecrates simplesmente assume a sobrevivecircncia de sua alma post mortem com base tatildeo
somente na esperanccedila (ἐλπίς) de que em lugar algum a natildeo ser no Hades eacute que o
verdadeiro filoacutesofo alcanccedilaraacute de modo pleno e digno a sabedoria que almeja concluindo
que o filoacutesofo deve crer nisso (οἴεσθαί γε χρή) (68a-b) Dessa forma Soacutecrates alinha sua
crenccedila na sobrevivecircncia da alma post mortem com a crenccedila de Feacutedon no proacutelogo do
diaacutelogo Portanto a imortalidade da alma eacute simplesmente assumida nesta etapa do
diaacutelogo como uma ideia do acircmbito da religiatildeo Platatildeo dialoga com os saberes
tradicionais jaacute estabelecidos A proposta do diaacutelogo desde o iniacutecio se delineia a
discussatildeo sobre a imortalidade da alma deveraacute passar do niacutevel da crenccedila religiosa
baseada na ἐλπίς para um patamar de discussatildeo filosoacutefica
A postura de Soacutecrates imediatamente provoca a reaccedilatildeo de seu amigo Cebes que
embora elogie a fala do filoacutesofo exibe sua insatisfaccedilatildeo no que foi dito concernente agrave
alma Soacutecrates natildeo deu garantia de que a alma ao separar-se do corpo continuaria
existindo em algum lugar Cebes menciona a duacutevida que as pessoas nutrem de que a
morte traria consigo a destruiccedilatildeo da alma a qual desvaneceria tal qual sopro ou fumo na
defesa ele tenta persuadir um seleto grupo de disciacutepulos que natildeo estaacute convencido de que a morte
eacute o melhor para o filoacutesofo
4 No Feacutedon a morte eacute definida como a separaccedilatildeo da alma e do corpo (64c4-9)
15
ocasiatildeo em que se separa do corpo (69e-70a) A personagem Cebes eacute quem reclama o
tratamento filosoacutefico da temaacutetica da imortalidade da alma e em resposta agrave sua
colocaccedilatildeo eacute que Soacutecrates se dispotildee a mostrar que a alma da pessoa que morre continua
existindo mantendo capacidade e sabedoria (ὡς ἔστι τε ψυχὴ ἀποθανόντος τοῦ
ἀνθρώπου καί τινα δύναμιν ἔχει καὶ φρόνησιν) mas adverte que essa empresa natildeo seria
faacutecil (69e-70b) Daacute-se iniacutecio a uma longa etapa argumentativa no diaacutelogo na qual
Soacutecrates apresenta quatro argumentos ou provas da imortalidade da alma no Feacutedon (i)
argumento ciacuteclico (ou argumento dos opostos) (70c-72d) (ii) argumento da
reminiscecircncia (72e-77a) (iii) argumento da afinidade (78b-80b) (iv) uacuteltimo argumento
(96a-107b)
22 A alma e o alcance das coisas em si
Antes de tratarmos especificamento do nosso objeto de estudo ndash as provas da
imortalidade da alma ndash vejamos alguns toacutepicos importantes na primeira etapa do
diaacutelogo comeccedilando pela alma e o alcance das coisas em si Enquanto desenvolve o
tema da vida filosoacutefica Soacutecrates considera que haacute coisas como lsquoo justo em si mesmorsquo
(δίκαιον αὐτὸ) (65d4-5) que ele tambeacutem chama de essecircncia (ἡ οὐσία) (65d13) lsquoas
coisas que satildeorsquo (τά ὄντα) (66a3) ou lsquocoisas em si mesmasrsquo (αὐτὰ τὰ πράγματα) (66e1-
2) O filoacutesofo vive agrave caccedila dessas coisas almejando apoderar-se da verdade (ἀλήθειά) e
do conhecimento (φρόνησις) (66a5-6) mas o corpo se impotildee como rival da alma porque
oblitera essa busca do filoacutesofo Em suma essa busca da lsquocoisa em sirsquo envolve o objeto
de conhecimento definido a purificaccedilatildeo filosoacutefica e o instrumento de aquisiccedilatildeo do
conhecimento Segue uma breve explicaccedilatildeo de cada um deles
16
(i) O objeto de conhecimento satildeo lsquoas coisas em sirsquo Quando Soacutecrates comeccedila a
explicar que o corpo eacute um obstaacuteculo para a alma alcanccedilar a verdade ele diz
que soacute atraveacutes do exerciacutecio da razatildeo eacute que τι τῶν ὄντων lsquoalgo dessas coisasrsquo
se mostram para a alma (65c2-3)5 Soacutecrates utiliza o termo no plural (τά
ὄντα) e logo depois no singular (τὸ ὄν) (65c3 9) Soacutecrates apresenta vaacuterios
exemplos de lsquocoisas em sirsquo lsquoo justo em si mesmorsquo lsquoo belorsquo e lsquoo bomrsquo (65d4-
7) e imediatamente estende a questatildeo a toda classe de coisas desse tipo ldquoEu
estou falando de todas as coisas como por exemplo grandeza sauacutede forccedila
e todas as demais para ser conciso falo da essecircncia daquilo que cada coisa
eacuterdquo (65d11-65e1)
(ii) A purificaccedilatildeo (κάθαρσις) filosoacutefica eacute o maacuteximo afastamento possiacutevel da
alma do corpo 6 Isto equivale ao lsquoexerciacutecio de morrer e estar mortorsquo (64a) e
eacute necessaacuterio porque o corpo (τὸ σῶμα) eacute obstaacuteculo para a aquisiccedilatildeo do
conhecimento (φρόνησις) uma vez que os sentidos natildeo satildeo confiaacuteveis
visatildeo audiccedilatildeo e os demais sentidos do corpo (αἴσθησις) natildeo oferecem
precisatildeo (ἀκριβής) nem clareza (σαφής) (65a9-65b7)
(iii) A aquisiccedilatildeo do conhecimento ocorre atraveacutes do pensamento sozinho (αὐτῇ
τῇ διανοίᾳ) sem mistura ou sem interaccedilatildeo com os sentidos (65e7 66a1-2) A
5 Soacutecrates utiliza o termo no plural (τῶν ὄντων) e no singular (τοῦ ὄντος) (65c3 9) Conforme
Rowe (1993 p 140) o termo singular τοῦ ὄντος eacute o coletivo equivalente de τῶν ὄντων
6 ldquoE acaso purificaccedilatildeo natildeo seria segundo a nossa recente discussatildeo separar o mais possiacutevel a
alma do corpo e acostumaacute-la sozinha por si mesma concentrando-se e recolhendo-se agrave parte de
cada membro do corpo e vivendo o maacuteximo possiacutevel sozinha por si mesma tanto agora como
no porvir num ato de constante libertaccedilatildeo do corpo como se estivesse se libertando de
cadeiasrdquo (67c5-d1)
17
alma deve raciocinar (λογίζομαι) sozinha por si mesma (αὐτὴ καθ᾽ αὑτὴν)
para que possa alcanccedilar as coisas em si mesmas (65c2-9 Cf 65e-66a)
Soacutecrates sugere que eacute possiacutevel utilizar a faculdade cognitiva da alma sem a
interferecircncia do corpo e seus sentidos de modo que a alma funcione com
independecircncia7 Eacute somente quando algum de noacutes se puser a pensar com rigor
e precisatildeo naquilo que estaacute examinando a saber cada coisa em si que se
poderia chegar mais perto de conhecer cada uma delas
Essa apresentaccedilatildeo da busca da alma pelas lsquocoisas em sirsquo lsquoo justo em sirsquo lsquoo belo
em sirsquo lsquoo bom em sirsquo (64e-66a) leva inteacuterpretes a pensar que uma doutrina das Formas
jaacute estaacute presente na primeira etapa do diaacutelogo Eacute largamente aceito que a chamada teoria
das Formas eacute introduzida pela primeira vez no diaacutelogo em 65d4-5 8 Mas essa
compreensatildeo geralmente se baseia no contexto posterior do Feacutedon uma vez que em
65d4-5 ainda natildeo haacute elementos suficientes para sustentar essa conclusatildeo Natildeo haacute duacutevida
que uma teoria das Formas ou o esboccedilo do que seria uma teoria das Formas
desenvolve-se a partir da formulaccedilatildeo que aparece em 65d mas isto natildeo significa que
neste ponto do diaacutelogo e com base nesta incipiente apresentaccedilatildeo de coisas como o justo
7 Cf Chen 1990 p5455 o qual esclarece que vaacuterios lsquoverbos de cogniccedilatildeorsquo (alguns usados
figurativamente como lsquoverbos de cogniccedilatildeorsquo) satildeo utilizados para denotar cogniccedilatildeo intelectual das
coisas em si mesmas reforccedilando a ideia de que a alma pode trabalhar de modo independente
para alcanccedilar as coisas em si γιγνώσκω (65e4) φρονέω (66c5) ἅπτω (65b9 c9) ἐφάπτω
(65d11 67b2) λογίζομαι (65c2 66a1 substantivo λογισμός) διανοέομαι (65e3 66a2
substantivo διάνοια) θεατέον (θεάομαι 66e1) θεωρέω (65e2) καθοράω (66d7)
8 Bostock 1989 p 194 Gallop 2002 p93 Hackfort 1998 p 50 Silverman 2002 p49
18
em si que a alma anseia alcanccedilar jaacute possamos falar de uma complexa teoria metafiacutesica
uma teoria das Formas no Feacutedon9 Eis algumas razotildees para isto
(i) A terminologia eacute imprecisa
(ii) Natildeo haacute indiacutecios suficientes de que lsquocoisas em sirsquo sejam entidades
metafiacutesicas Eacute difiacutecil que Platatildeo jaacute estivesse introduzindo algum termo
teacutecnico nessa altura do diaacutelogo e noacutes natildeo devemos importar qualquer
noccedilatildeo filosoacutefica posterior para tentar entender essa passagem10
(iii) Em 65d4 temos a pergunta φαμέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν
(ldquoafirmamos que existe um justo em si mesmo ou natildeordquo) a qual tem
sido largamente considerada como pergunta-chave para a introduccedilatildeo da
chamada teoria das Formas no diaacutelogo Contudo essa pergunta segue
uma formulaccedilatildeo ordinaacuteria da liacutengua grega Pouco antes disso Soacutecrates jaacute
havia formulado uma pergunta semelhante em relaccedilatildeo agrave morte em 64c2
ἡγούμεθά τι τὸν θάνατον εἶναι (ldquoConsideramos que a morte eacute alguma
coisardquo) Nesta passagem temos apenas um ordinaacuterio modo de expressatildeo
da liacutengua grega sem qualquer alusatildeo agrave existecircncia de entidades
metafiacutesicas De modo algum Soacutecrates estaacute se referindo a uma Forma da
morte mas apenas agrave ordinaacuteria existecircncia do evento morte neste contexto
pessoas morrem logo existe um tipo de coisa que chamamos morte
Neste contexto Soacutecrates estaacute preparando os amigos para admitirem que
morte eacute a separaccedilatildeo da alma de seu corpo (64c4-5) Em 65d4 o filoacutesofo
9 Rowe 1993 p 140-141
10 Rowe 1993 p141
19
repete a formulaccedilatildeo da pergunta mas agora falando das lsquocoisas em sirsquo
Portanto esse tipo de pergunta natildeo eacute necessariamente uma formulaccedilatildeo
teacutecnica para inquirir sobre a existecircncia de Formas metafiacutesicas
(iv) Seria estranho que Platatildeo introduzisse Formas metafiacutesicas sem que
discutisse as suas qualidades como faz no argumento das afinidades
onde Platatildeo qualifica essas lsquocoisas em sirsquo de maneira clara satildeo puras
distintas e superiores aos objetos particulares invisiacuteveis eternas
imortais permanecem sempre no mesmo estado e condiccedilatildeo existem agrave
parte dos objetos sensiacuteveis e somente a alma sozinha por si mesma pode
alcanccedilar Neste contexto expressotildees como τὸ ὄν (78d4) podem ser pela
primeira vez admitidas como clara referecircncia a certas entidades
metafiacutesicas
(v) Uma abrupta inclusatildeo de uma teoria metafiacutesica neste ponto do diaacutelogo
seria improvaacutevel
(vi) Seria estranho que Platatildeo jaacute estivesse apresentando uma teoria das
Formas na primeira etapa do diaacutelogo e inicie a etapa demonstrativa com
o argumento ciacuteclico onde natildeo temos qualquer referecircncia a lsquoFormasrsquo
23 Transiccedilatildeo para a etapa demonstrativa
Quando Soacutecrates apenas assume a crenccedila de que a sua alma continuaria a existir
no Hades depois da morte e a imortalidade eacute asssumida conforme os padrotildees de uma
tradiccedilatildeo religiosa Cebes coloca em conflito duas tradiccedilotildees diacutespares a respeito da alma
post mortem ndash uma admitia que a alma eacute aniquilada e desvanece como sopro ou fumo
20
por ocasiatildeo da morte enquanto a outra afirma que a alma continua existindo mantendo
capacidade e sabedoria (69e-70b) Este conflito ou noacute dramaacutetico na narrativa deve ser
solucionado por Soacutecrates a partir de uma longa investigaccedilatildeo que se desenrola na etapa
demonstrativa do diaacutelogo na qual Soacutecrates toma posiccedilatildeo e ataca vigorosamente a ideia
de que a alma pode ser destruiacuteda quando se separa do corpo Portanto esse conflito que
Platatildeo coloca bem na etapa de transiccedilatildeo entre o primeiro estaacutegio do diaacutelogo e a etapa
demonstrativa eacute de suma importacircncia no Feacutedon tudo o que foi dito antes prepara o
leitor para a apresentaccedilatildeo desse conflito e tudo que seraacute dito posteriormente propotildee a
soluccedilatildeo desse conflito (Cf 69e-70c)
Este ponto de tensatildeo do diaacutelogo eacute agravado por aquilo que Sedley chama de
espetaacuteculo paradoxal no Feacutedon Soacutecrates tenta persuadir seus amigos pitagoacutericos sobre
a verdade de sua proacutepria doutrina11 Sedley afirma que Cebes e Siacutemias satildeo pitagoacutericos e
que a doutrina da sobrevivecircncia da alma depois da morte eacute uma inalienaacutevel parte do
pensamento pitagoacuterico12 Antes de avaliarmos os argumentos sobre a imortalidade da
alma no Feacutedon conveacutem apresentar algumas evidecircncias de um contexto pitagoacuterico no
Feacutedon e conhecer melhor os amigos de Soacutecrates que estatildeo extremamente interessados
em confrontar essa doutrina popular segundo a qual a alma eacute passiacutevel de aniquilaccedilatildeo na
ocasiatildeo em que se separa da morte
24 Evidecircncias de um contexto pitagoacuterico no Feacutedon
241 Temas pitagoacutericos presentes no diaacutelogo
11 Sedley 1995 p11
12 Sedley 1995 p12
21
Ao final da antiguidade havia uma visatildeo generalizada de que Orfeu e Pitaacutegoras
tinham ensinado a mesma doutrina teoloacutegica e que Pitaacutegoras havia aprendido de Orfeu
discursos e misteacuterios Os antigos acreditavam que Pitaacutegoras seria um devoto de Orfeu e
do mestre havia recebido suas doutrinas esoteacutericas A associaccedilatildeo entre orfismo e
pitagorismo passa a ser tatildeo comum que foi cunhada a expressatildeo oacuterfico-pitagoacuterico para
fazer referecircncia a praacuteticas cuacutelticas teorias da alma e ideias escatoloacutegicas compartilhadas
por orfismo e pitagorismo13
Pesquisadores recentes e contemporacircneos tendem a associar pitagoacutericos e oacuterficos
e a transmigraccedilatildeo da alma como principal ponto de encontro entre os dois grupos
Alguns propotildeem que Pitaacutegoras teria sido um tipo de mestre de religiatildeo e miacutestico mais
do que um filoacutesofo Essa tese foi defendida por Rohde para quem os primeiros
pitagoacutericos adotaram teorias de natureza puramente religiosa as quais se aproximavam
das religiotildees de misteacuterio como o Orfismo Rohde apresenta vaacuterios temas
compartilhados por oacuterficos e pitagoacutericos
(i) a crenccedila na necessidade de a alma expiar uma culpa atraveacutes de
transmigraccedilotildees e puniccedilotildees infernais
(ii) a doutrina da alma prisioneira de um corpo
(iii) a nova encarnaccedilatildeo seria condicionada pela vida passada
(iv) a vida em comunidades isoladas
(v) praacutetica do ascetismo iniciaccedilotildees e purificaccedilotildees como meio de salvaccedilatildeo 14
13 Bernabeacute 2014 p141
14 Cf Rohde 1950 p375
22
Pesquisadores contemporacircneos como Kingsley tambeacutem acreditam que os
primeiros pitagoacutericos estavam ligados agrave religiatildeo
(i) eles mantinham profundas afinidades com oraacuteculos e revelaccedilotildees
(ii) a casa de Pitaacutegoras tinha a reputaccedilatildeo de casa de misteacuterios
(iii) eles seguiam preceitos rituais como dogmas a serem obedecidos
(iv) pitagoacutericos como Empeacutedocles apresentaram seu ensino como uma forma
de revelaccedilatildeo divina15
Pesquisas mais recentes tendem a apontar temas compartilhados por oacuterficos e
pitagoacutericos na antiguidade mas tambeacutem ressaltam as suas distinccedilotildees Bernabeacute acredita
que Pitaacutegoras provavelmente tomou componentes de sua doutrina da literatura teoloacutegica
oacuterfica poreacutem eacute bem mais comedido em sua apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre pitagoacutericos e
oacuterficos na antiguidade16 Ele apresenta vaacuterios temas em que oacuterficos e pitagoacutericos
coincidiam o quais resumimos aqui
(i) o tema da vida oacuterfica e da vida pitagoacuterica
(ii) o papel de destaque da deusa Memoacuteria na escatologia oacuterfica e a
importacircncia que pitagoacutericos atribuem agrave deusa Memoacuteria
(iii) a utilizaccedilatildeo de frases ou senhas difiacuteceis e que tem um profundo sentido
para os iniciados
15 Kingsley 1995 p 319
16 Bernabeacute 2014 p 143
23
(iv) a crenccedila na transmigraccedilatildeo da alma17
Por outro lado Bernabeacute tambeacutem ressalta as diferenccedilas apontando vaacuterios temas
da tradiccedilatildeo oacuterfica que estatildeo ausentes no pitagorismo como
(i) pessimismo em relaccedilatildeo ao corpo
(ii) a culpa que mancha alma
(iii) a busca por uma salvaccedilatildeo da alma individual alheia ao mundo poliacutetico
(iv) a relaccedilatildeo com o deus Dioniso e com os misteacuterios baacutequicos
(v) a purificaccedilatildeo por meios religiosos18
Zhmud ainda eacute mais contundente na distinccedilatildeo entre oacuterficos e pitagoacutericos
tentando reconstruir a figura mais filosoacutefica do Pitaacutegoras histoacuterico Conforme Zhmud a
primeira referecircncia ao personagem histoacuterico Pitaacutegoras eacute feita por Xenoacutefanes num
contexto em que satiriza a doutrina da metempsicose tal como Pitaacutegoras ensinava a
qual incluiacutea a possibilidade de a alma renascer em corpos de animais Portanto esse
testemunho conecta o nome de Pitaacutegoras com a doutrina da transmigraccedilatildeo da alma
numa eacutepoca anterior agrave eacutepoca de Platatildeo19 Zhmud afirma que os pitagoacutericos se
apropriaram da doutrina oacuterfica da transmigraccedilatildeo da alma e a transformaram mas
acentua que a doutrina puramente religiosa natildeo teve consideraacutevel influecircncia na
construccedilatildeo pitagoacuterica de noccedilotildees filosoacuteficas da alma20 Ele tenta separar ao maacuteximo a
17 Bernabeacute 2014 p 144-146
18 Bernabeacute 2014 p147
19 Zhmud 2012 p30-31
20 Zhmud 2012 p388
24
figura de Pitaacutegoras das religiotildees de misteacuterios enquanto buscar recuperar uma
interpretaccedilatildeo mais ldquofilosoacuteficardquo de Pitaacutegoras Segundo ele esses satildeo os pontos decisivos
para uma distinccedilatildeo entre oacuterficos e pitagoacutericos
(i) os oacuterficos tem o seu proacuteprio culto os pitagoacutericos natildeo
(ii) os pitagoacutericos adotam a doutrina oacuterfica da metempsicose mas a
divorciaram da escatologia e antropogonia oacuterfica deixando de ser uma
doutrina religiosa de salvaccedilatildeo
(iii) o motivo da culpa ancestral natildeo estaacute presente no antigo pitagorismo21
(iv) os pitagoacutericos natildeo veem a transmigraccedilatildeo da alma como puniccedilatildeo por
culpas preacutevias mas como sendo natural e apropriado que as almas se
alojem em corpos de humanos e de animais
(v) a transmigraccedilatildeo cumpre um ciclo de necessidade sendo bem diferente da
ideia oacuterfica de um ciclo de dores do qual a alma do iniciado anseia
escapar
(vi) aleacutem disso natildeo estaacute claro que para os pitagoacutericos a alma se libertaria do
ciclo de renascimentos e retornariam para os deuses como era o anseio
dos oacuterficos sendo possiacutevel que a versatildeo pitagoacuterica da metempsicose
implique a rotaccedilatildeo infindaacutevel da alma22
21 Em outras palavras os pitagoacutericos natildeo sustentam a ideia oacuterfica da culpa e impureza ancestral
fundamentada pelo mito oacuterfico de Dioniso e os Titatildes o qual servia de base para explicar a razatildeo
pela qual as almas tinham de transmigrar e seguir um caminho de salvaccedilatildeo por meio da
purificaccedilatildeo da alma
22 Zhmud 2012 p 228-230
25
Ao mesmo tempo que novas pesquisas ressaltam a distinccedilatildeo entre orfismo e
pitagorismo elas ratificam pontos fundamentais de contato entre eles como a doutrina
da transmigraccedilatildeo da alma embora cada ciacuterculo tivesse a sua proacutepria versatildeo e a
preocupaccedilatildeo com a purificaccedilatildeo embora os meios e objetivos de purificaccedilatildeo pudessem
ser diferentes 23 Satildeo justamente esses temas baacutesicos compartilhados por oacuterficos e
pitagoacutericos que aparecem no Feacutedon onde temos uma mistura de versotildees oacuterficas e
pitagoacutericas desses temas comuns
Vejamos algumas evidecircncias para um contexto pitagoacuterico no Feacutedon
242 Cenaacuterio
A conversa entre Feacutedon e Equeacutecrates acontece em Fliunte uma pequena cidade
do Peloponeso centro da filosofia pitagoacuterica onde viveram vaacuterios dos uacuteltimos
pitagoacutericos24 Os historiadores dizem que com a perseguiccedilatildeo aos pitagoacutericos por volta
de 450 os lugares onde os pitagoacutericos se reuniam foram incendiados adeptos do ciacuterculo
pitagoacuterico foram mortos no nordeste da Itaacutelia e logo novos centros do pitagorismo
surgiram na Greacutecia central especialmente em Tebas e Fliunte 25 Natildeo sabemos ao certo
se o cenaacuterio teve alguma relevacircncia histoacuterica para Platatildeo
23 Natildeo haacute consenso sobre quem foram os primeiros a aderir agrave doutrina da metempsicose se
oacuterficos ou pitagoacutericos Ao que parece nem mesmo os antigos estavam seguros se os oacuterficos
haviam tomado suas doutrinas de Pitaacutegoras como sustentava Heroacutedoto ou se os pitagoacutericos dos
oacuterficos como propunham Jacircmblico e os neoplatocircnicos (Cf Bernabeacute 2004 p137)
24 Gallop p 2002 p74 Hackforth 1998 p29
25 Zhmud 2012 p107
26
243 Narrador
A histoacuteria eacute narrada por Feacutedon a Equeacutecrates O diaacutelogo inicia com a uma
enfaacutetica apresentaccedilatildeo do narrador Feacutedon ldquo Feacutedon vocecirc mesmo (αὐτός ὦ Φαίδων)
estava presente no dia em que Soacutecrates bebeu o veneno na prisatildeo ou ficou sabendo por
outra pessoardquo ldquoEu mesmo estava presente Equeacutecratesrdquo (αὐτός ὦ Ἐχέκρατες) (57a1
4) A figura histoacuterica parece ter sido um escravo que ao libertar-se aderiu ao ciacuterculo
socraacutetico e posteriormente fundou a sua proacutepria escola filosoacutefica26
Feacutedon eacute um disciacutepulo de Soacutecrates que natildeo tem nenhuma relaccedilatildeo direta com o
pitagorismo Ele adere completamente agrave posiccedilatildeo de Soacutecrates de que a alma do filoacutesofo
desceraacute ao Hades ao contraacuterio dos pitagoacutericos que apresentam objeccedilotildees a essa crenccedila
(Cf 58e-59a) Apesar das suas raacutepidas intervenccedilotildees ao longo do diaacutelogo Feacutedon figura
como um aliado uacutetil para Soacutecrates na refutaccedilatildeo de Simmias e Cebes (89b-90d)
244 Testemunhas da morte de Soacutecrates
Feacutedon apresenta os amigos que estavam presente no dia da morte de Soacutecrates
Os atenienses satildeo Apolodoro Criacuteton Critoacutebulo com seu pai Hermoacutegenes Epiacutegenes
Eacutesquines Antiacutestenes Ctesipo Menexeno e mais alguns Platatildeo estava doente diz
Feacutedon (59b) Os estrangeiros eram Feacutedon Siacutemias Cebes Fedondes Euclides e
Teacuterpsion Estavam ausentes Aristipo e Cleocircmbroto (59c) Xenofonte reconhece a
distinccedilatildeo desse grupo ao dizer que Criacuteton Hermoacutegenes Siacutemias Cebes Fedondes e
outros estavam associados com Soacutecrates natildeo com o fim de se tornarem demagogos ou
26 Dorter 1982 p 9 10
27
para vencer demandas judiciais mas para se tornarem homens bons e nobres capazes
de prestar um bom serviccedilo agrave famiacutelia parentes amigos e concidadatildeos27
Entre essas personalidades estatildeo pelos menos trecircs pitagoacutericos Filolau de
Crotona e seus disciacutepulos Siacutemias e Cebes de Tebas os principais interlocutores de
Soacutecrates no diaacutelogo Embora Filolau seja apenas mencionado no diaacutelogo ele requer
mais atenccedilatildeo por causa da sua relaccedilatildeo com os principais interlocutores de Soacutecrates no
diaacutelogo
245 Filolau
O texto crucial para qualquer reconstruccedilatildeo da vida de Filolau eacute a passagem do
Feacutedon 61d a qual sugere que Filolau passou um tempo em Tebas onde ensinou a
Siacutemias e Cebes em algum momento anterior agrave morte de Soacutecrates em 39928 Os
testemunhos antigos recolhidos por Huffman sobre a vida de Filolau relatam
basicamente o seguinte
(i) Filolau foi um mestre pitagoacuterico de renome o qual teria nascido em
algum momento antes de 440 e poderia inclusive ter sido contemporacircneo
de Soacutecrates
(ii) Testemunhos divergem sobre a sua origem Crotona ou Tarento
27 Memoraacuteveis 1248 31117 312
28 Hufmann 1993 p1
28
(iii) Filolau e um amigo tiveram de deixar a Itaacutelia para fugir de um atentado ndash
puseram fogo no lugar onde os pitagoacutericos se reuniam29
(iv) Os antigos costumavam associar Filolau e Platatildeo 30
Apesar do problema da confiabilidade dos testemunhos antigos parece natildeo
haver duacutevida de que o Filolau a quem Platatildeo se refere no Feacutedon era realmente o famoso
mestre pitagoacuterico conhecido agrave eacutepoca de Platatildeo o qual teria nascido na estimativa de
Ruffman por volta de 470 31 Filolau provavelmente se estabeleceu em Tebas onde teve
vaacuterios pupilos dentre os quais Siacutemias e Cebes como sugere o Feacutedon32 Huffman
acredita que depois de Pitaacutegoras existem trecircs proeminentes nomes no pitagorismo
Hipaso (c 530-450) Filolau (c 470-385) e Arquitas (430-350) 33
246 Principais Interlocutores de Soacutecrates ndash Cebes e Siacutemias
Os principais interlocutores de Soacutecrates no Feacutedon natildeo satildeo atenienses mas
tebanos (59c) Como diz Sedley eles satildeo filoacutesofos hiacutebridos disciacutepulos de Soacutecrates e
Filolau (61d)34 A relaccedilatildeo entre Filolau reconhecido mestre pitagoacuterico e Siacutemias e
Cebes eacute forte indiacutecio de que os amigos de Soacutecrates tambeacutem satildeo adeptos do pitagorismo
29 Hufmann 1993 p3-4 6-7
30 Hufmann 1993 p3-4 6-7
31 Hufmann 1993 p6
32 Zhmud 2012 p128
33 Zhmud 2012 p8
34 Sedley 1995 p13
29
Contra esta ideia Rowe afirma que a simples associaccedilatildeo com Filolau natildeo torna Siacutemias e
Cebes pitagoacutericos nem haacute registros fora do Feacutedon que testemunhem que eles satildeo
pitagoacutericos35 Mas eacute difiacutecil negar que Soacutecrates sugere uma relaccedilatildeo menor do que a de
mestre-disciacutepulo quando fala do processo de aprendizagem ao qual seus amigos se
submeteram quando estiveram aos peacutes de Filolau em Tebas Como explica Zhmud
Filolau provavelmente se estabeleceu em Tebas onde teve vaacuterios pupilos dentre os
quais Siacutemias e Cebes36
Siacutemias e Cebes tambeacutem satildeo fieacuteis membros do ciacuterculo socraacutetico eles satildeo
mencionados no Criacuteton (45a-b) como estrangeiros dispostos a coletar fundos para
subornar o guarda e comprar a fuga de Soacutecrates da prisatildeo
No Feacutedon Cebes eacute certamente o principal interlocutor de Soacutecrates
(i) Tem um gecircnio agradaacutevel ele ri em pelo menos trecircs ocasiotildees no diaacutelogo
(62a 77e 103b) Sua postura ceacutetica diante da argumentaccedilatildeo de Soacutecrates
eacute fundamental para o desenvolvimento do diaacutelogo (81d-82b 102b-107a)
(ii) Ele eacute apresentado como algueacutem difiacutecil de convencer pelos argumentos
(63a)
(iii) Eacute um interlocutor capaz e interveacutem com frequecircncia no diaacutelogo pede que
Soacutecrates explique o que deveria responder a Eveno o qual deseja saber
por que Soacutecrates se dedica agrave composiccedilatildeo de poemas na cadeia (60d) ele
confronta a tese de que os filoacutesofos desejam morrer (63a-d) e confronta a
crenccedila de Soacutecrates na descida da alma ao Hades o que daacute iniacutecio agrave etapa
35 Rowe 1993 p7 36 Zhmud 2012 p128
30
demonstrativa (69e-70a) suas objeccedilotildees datildeo iniacutecio agrave etapa demonstrativa
(70a) e ao uacuteltimo argumento (95b-e) praticamente introduz o segundo
argumento no Feacutedon (72e-73b)
Siacutemias eacute mencionado no Fedro (242b) como algueacutem que ama os discursos No
Feacutedon ele eacute apresentado como um jovem bem interessado em filosofia (89a4) e o
proacuteprio Soacutecrates o reconhece como interlocutor inteligente (86d) Ele tem vaacuterias
participaccedilotildees importante no diaacutelogo
(i) Apresenta uma interessante teoria da alma-harmonia (61d7 86d2)
(ii) Apresenta objeccedilotildees em pontos-chave do diaacutelogo mas em geral tende a
concordar e reforccedilar o discurso de Soacutecrates ou o de Cebes (Cf77a-b)
(iii) Siacutemias ri em uma ocasiatildeo quando dialoga com Soacutecrates (64a)
(iv) Vaacuterias vezes o diaacutelogo ocorre entre ele e Soacutecrates (63c-69e 73b-77b
92b-95a)
(v) Uma das participaccedilotildees mais polecircmicas de Siacutemias ocorre depois da
apresentaccedilatildeo da conclusatildeo do uacuteltimo argumento enquanto Cebes natildeo
tem objeccedilotildees e nem razotildees para desconfiar do argumento de Soacutecrates
Siacutemias diz que natildeo tem nenhuma objeccedilatildeo ao argumento contudo por
causa da grandeza do assunto da debilidade humana ele se vecirc obrigado a
cultivar em seu iacutentimo alguma desconfianccedila (107a-107b)
31
247 Equeacutecrates
Equeacutecrates eacute cidadatildeo de Fliunte (57a) e ceacutelebre filoacutesofo pitagoacuterico Feacutedon narra
o diaacutelogo para um pitagoacuterico Equeacutecrates tem algumas participaccedilotildees importantes no
diaacutelogo
(i) No proacutelogo ele se mostra muito interessado em saber com detalhes o que
aconteceu com Soacutecrates na prisatildeo e requer uma explicaccedilatildeo com a
maacutexima exatidatildeo dos fatos ocorridos (58c) Ele quer saber tudo que se
passou com Soacutecrates na cadeia (57a-b 58c) inclusive quais amigos
estavam presentes (58c 59b)
(ii) Ele interrompe a narraccedilatildeo de Feacutedon em dois pontos importantes do
diaacutelogo (88c-89a 102a4-10)
(iii) Eacute uma personagem importante porque todo o diaacutelogo eacute narrado para ele
25 Conclusatildeo
Portanto tudo indica que as personagens principais do diaacutelogo estatildeo pelo menos
envolvidas com pitagoacutericos
32
3 ARGUMENTO CIacuteCLICO (69E ndash 72D)
31 Antigo Relato
A etapa demonstrativa oferece uma soluccedilatildeo para o problema apresentado no
estaacutegio de transiccedilatildeo do diaacutelogo certa ideia de que a alma poderia ser dispersa e
destruiacuteda na hora da morte (69e-70b) Em resposta agrave objeccedilatildeo de Cebes Soacutecrates se
propotildee a examinar o seguinte problema ldquo() se de algum modo as almas das pessoas
que morrem estatildeo no Hades ou natildeordquo (70c4-5) Aparentemente Soacutecrates considera que
se as almas dos que morrem estatildeo no Hades seria falsa a afirmaccedilatildeo de que as almas
podem ser destruiacutedas bem na hora em que a alma se separa do corpo Soacutecrates logo
introduz no diaacutelogo um antigo relato segundo o qual as almas passam por um ciclo de
transmigraccedilotildees
ldquoExiste um relato antigo o qual guardamos na memoacuteria segundo o qual as
almas que chegam ao aleacutem partem daqui e voltam novamente para caacute vindo
a ser dos mortosrdquo (70c5-8)
Esse antigo relato eacute apresentado em tom solene Soacutecrates evoca a autoridade da
lsquoantiga tradiccedilatildeorsquo (παλαιὸς τις λόγος) Platatildeo ressalta o tom solene da doutrina bem
como a forccedila peso e autoridade da tradiccedilatildeo com a qual estaacute lidando O conteacuteudo do
relato eacute basicamente a crenccedila na transmigraccedilatildeo da alma compartilhada especialmente
por oacuterficos e pitagoacutericos na antiguidade
33
Portanto Platatildeo estaacute em diaacutelogo com a crenccedila sustentada especialmente por
seitas de misteacuterios e natildeo pela religiatildeo tradicional certamente uma doutrina
compartilhada por oacuterficos e pitagoacutericos37 Aleacutem de um contexto pitagoacuterico haacute vaacuterias
alusotildees a crenccedilas sustentadas por religiotildees de misteacuterio como o Orfismo no Feacutedon Por
exemplo em 62b Soacutecrates fala do lsquoconteuacutedo que se encontra nos textos secretosrsquo e em
69c fala lsquodos que instituiacuteram os ritos iniciaacuteticosrsquo A proacutepria crenccedila na descida ao Hades
depois que a alma se separa do corpo eacute tipicamente oacuterfica (e pitagoacuterica) O que temos
no relato antigo e no argumento ciacuteclico ndash a ideia de transmigraccedilatildeo juntamente com a
descida ao Hades ndash eacute algo diferente da concepccedilatildeo homeacuterica e da religiatildeo grega
tradicional Esse dado diverge do ideaacuterio religioso homeacuterico e tradicional e identifica o
antigo relato e o contexto em que Platatildeo constroi o argumento ciacuteclico como sendo
tipicamente oacuterfico e pitagoacuterico 38
O Orfismo se estabelece como uma religiatildeo de misteacuterio cujo conteuacutedo
doutrinaacuterio e rituais sagrados eram mantidos em segredo Era uma religiatildeo livre
independente da estrutura social e ligada agraves camadas populares Vejamos algumas
crenccedilas oacuterficas e evidecircncias para um contexto oacuterfico no Feacutedon
32 Orfismo e o Feacutedon
321 Hades
37 Cf Moreno in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p91-92
38 Cf Bernabeacute 2011 p163
34
A mitologia do Hades estaacute no centro da crenccedila oacuterfica e ocupa lugar de relevacircncia
no contexto amplo do Feacutedon No Orfismo o Hades eacute tanto o senhor da morada do
mundo inferior como tambeacutem por extensatildeo o nome desse mundo do aleacutem 39 Sendo o
Orfismo uma religiatildeo que sustenta a transmigraccedilatildeo da alma e as recompensas e castigos
poacutestumos a descida ao Hades eacute um tema fundamental na tradiccedilatildeo oacuterfica40
Entre os documentos oacuterficos as lacircminas de ouro (as quais eram enterradas com
os mortos) satildeo uma das mais importantes fontes para o estudo da crenccedila oacuterfica sobre o
Hades A partir delas eacute possiacutevel reconstruir em linhas gerais a topografia infernal oacuterfica
o Hades oacuterfico eacute um lugar subterracircneo para onde se conduzem as almas e eacute tambeacutem a
mansatildeo de Hades Essa topografia infernal estaacute relacionada diretamente com a crenccedila
oacuterfica em puniccedilotildees e julgamento apoacutes a morte Os impuros seriam punidos no Hades de
acordo com a sua maacute conduta sobre a Terra Posteriormente eles retornariam agrave vida na
Terra como mais um tipo de puniccedilatildeo e tambeacutem como periacuteodo de provaccedilatildeo uma nova
oportunidade para aderir ao estilo de vida oacuterfica e assim purificar-se e preparar-se para
a descida ao Hades Platatildeo estaacute bem familiarizado com o tema dos castigos infernais os
quais aparecem em vaacuterias obras aleacutem do Feacutedon Na Repuacuteblica 330d eacute dito que
segundo os mitos sobre o Hades quem comete injusticcedila aqui deve pagar laacute a pena Nas
Leis 870d os que se ocupam dos misteacuterios dizem que no Hades haacute um castigo para os
delitos e que eacute obrigatoacuterio voltar ao mundo dos vivos para a pena exigida
Os iniciados aguardavam uma vida bem-aventurada no Hades e a libertaccedilatildeo final
do ciclo de transmigraccedilotildees vivendo o estilo de vida oacuterfico na esperanccedila de descer ao
39 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p509
40 Guthrie 1970 p165
35
Hades e desfrutar da recompensa41 Como veremos adiante Soacutecrates possui uma
expectativa semelhante agrave dos oacuterficos para ele seria natural que o filoacutesofo que dedica a
vida agrave filosofia deseje a morte uma vez que o legiacutetimo filoacutesofo deve esperar a definitiva
bem-aventuranccedila no Hades
Esse grupo de lacircminas de ouro testemunham inclusive instruccedilotildees aos iniciados
sobre como proceder corretamente na morada do Hades42 Elas apresentam orientaccedilotildees
como a necessidade de seguir pela direita e de beber da aacutegua da fonte correta a qual
permitiria que o iniciado permanecesse no Hades e desfrutasse da bem-aventuranccedila
definitiva em vez de voltar ao ciclo de transmigraccedilotildees43 As lacircminas tambeacutem trazem
foacutermulas ou senhas a serem pronunciadas pelos iniciados quando questionados pelos
guardiatildees as quais permitiam que o morto fosse reconhecido como puro e iniciado 44 A
Lacircmina de Farsalo por exemplo afirma que os guardiatildees que laacute estatildeo perguntaratildeo ao
iniciado por que motivo ele veio Outras perguntas comuns satildeo ldquoMas quem eacute vocecirc e de
onde eacuterdquo ou ldquoO que busca nas trevas do Hades sombriordquo 45 A resposta mais frequente
a essas perguntas eacute ldquoSou filho da Terra e do Ceacuteu estreladordquo 46
Aleacutem de instruccedilotildees aos iniciados tambeacutem eacute possiacutevel encontrar nessas lacircminas
de ouro a antecipaccedilatildeo do destino final no Hades Nas lacircminas de Turi e Pelina temos
inclusive o que espera o iniciado no Hades antecipando-lhes basicamente a bem-
41 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p500 Guthrie 1970 p157-158
42 Albinus 2000 p147
43 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p500-501
44 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p503 Cf Gazzinneli 2007 p17
45 Gazzinelli 2007 p 75-76
46 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p503 Gazzinelli 2007 p 75-76
36
aventuranccedila a ser desfrutada pela alma do iniciado a saber o abandono definitivo da
esfera humana e o acesso ao reino dos bem-aventurados47
Esse breve apanhado revela um pouco da centralidade e importacircncia do Hades
na crenccedila oacuterfica O leitor do Feacutedon pode perceber que natildeo apenas o Hades ocupa lugar
de importacircncia ao longo de todo o diaacutelogo mas que o tipo de expectativa que Soacutecrates
nutre pelo Hades em muito se assemelha agraves expectativas dos iniciados oacuterficos A crenccedila
no Hades estaacute presente em todo o diaacutelogo inclusive na conclusatildeo do argumento ciacuteclico
as almas dos que morrem vatildeo para o Hades (cf71e72a 72d)
Portanto no Feacutedon a personagem Soacutecrates eacute portadora de uma concepccedilatildeo do
destino humano que aponta para aleacutem do mundo visiacutevel e para aleacutem do corpo mortal
para uma forma superior de vida no Hades concepccedilatildeo compartilhada pelos oacuterficos e
pitagoacutericos48
Eacute possiacutevel identificar a existecircncia de pontos de encontro entre o Hades oacuterfico e o
Hades apresentado no Feacutedon assim como tambeacutem existe forte semelhanccedila entre a
expectativa oacuterfica da descida ao Hades e a expectativa de Soacutecrates da descida ao Hades
Eacute plausiacutevel que Platatildeo esteja realmente se apropriando e se utilizando de conceitos
oacuterficos de retribuiccedilotildees no Hades aos iniciados como conveacutem agrave sua filosofia O iniciado
oacuterfico enxerga a morte como algo bom e se prepara a vida inteira para essa ocasiatildeo que
se traduz na oportunidade de alcanccedilar a redenccedilatildeo final a separaccedilatildeo definitiva da alma
do corpo a libertaccedilatildeo do ciclo de transmigraccedilotildees Soacutecrates tambeacutem vecirc a morte sob uma
oacutetica natildeo muito diferente De acordo com a utilizaccedilatildeo platocircnica da ideia oacuterfica da
descida ao Hades a morte e a chegada ao Hades representam a redenccedilatildeo final do
47 Bernabeacute e Cristoacutebal in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p518
48 Kahn 2007 p18 19
37
legiacutetimo filoacutesofo Eacute a ocasiatildeo em que ele livre dos impedimentos do corpo teraacute livre
acesso agrave verdade que busca durante toda a vida (Cf 68a-b) A realidade do Hades como
destino das almas continua presente no final do uacuteltimo argumento quando Soacutecrates
conclui natildeo apenas que a alma eacute imortal e impereciacutevel mas tambeacutem que ldquoas nossas
almas existiratildeo no Hadesrdquo (106e-107a)
322 Purificaccedilatildeo mito de Dioniso e praacuteticas oacuterficas
As crenccedilas oacuterficas se fundamentam sobre o mito de Dioniso e os Titatildes o mito
fundante da antropogonia oacuterfica Apesar de alguns pesquisadores questionarem a
antiguidade desse mito uma soacutelida tradiccedilatildeo de estudiosos do Orfismo vem sustentando
que se trata realmente de um mito fundamental na articulaccedilatildeo das crenccedilas da religiatildeo
oacuterfica Segundo uma soacutelida e difusa tradiccedilatildeo de um relacionamento incestuoso entre
Zeus e a filha Perseacutefone se origina o deus Dioniso o qual eacute destinado a se tornar o novo
rei dos deuses O nascimento suscita o ressentimento de Hera esposa de Zeus a qual
instiga os Titatildes contra Dioniso Os Titatildes enganam Dioniso com brinquedos com o
objetivo de o atrair Assim eles o matam desmembram em sete partes cozinham e o
devoram Contudo Atena descobre o fito em tempo de resgatar o coraccedilatildeo ainda
batendo o qual a deusa leva ateacute Zeus num cesto Indignado Zeus fulmina os Titatildes
ressuscita um novo Dioniso a partir de um coraccedilatildeo sobrevivente e cria a humanidade49
Sendo assim o homem possui um elemento mau impuro como heranccedila dos Titatildes e um
49 Albinus 2000 p112
38
elemento bom (a alma uma centelha do divino) como heranccedila de Dioniso Esses dois
elementos constituem a dual natureza humana representada pelo corpo e alma50
As praacuteticas oacuterficas buscam libertar o homem de sua origem titacircnica (corpo) e do
ciclo de reencarnaccedilotildees fazendo com que a alma retorne completamente agrave sua origem
dionisiacuteaca (a alma divina) Por causa da natureza titacircnica a alma estaacute obrigada a expiar
a culpa presa ao corpo ao longo de vaacuterias vidas Sendo de divina e imortal a alma
transmigra a outro corpo quando aquele em que estaacute alojada morre Para libertar-se da
maacutecula titacircnica o fiel deve seguir um estilo de vida governado por uma seacuterie de rituais e
observacircncias ateacute que cumpridas as condiccedilotildees a alma divina e imortal se liberta do ciclo
de transmigraccedilotildees e se reintegra a sua comunidade com os deuses Enquanto natildeo
cumpre as condiccedilotildees necessaacuterias prossegue o ciclo de males e transmigraccedilotildees a que a
alma impura estaacute sujeita51
323 O corpo como tumba da alma puniccedilatildeo purificaccedilatildeo redenccedilatildeo
A partir do mito de Dioniso Zagreu se desenvolveu a ideia de que o corpo eacute vil
enquanto de natureza titacircnica e a alma divina e imortal enquanto de natureza
dionisiacuteaca Drsquoanna explica que desse mito procede a doutrina oacuterfica que concebe o
corpo como uma tumba ou sepulcro da alma bem como a crenccedila soterioloacutegica num tipo
de lsquoredenccedilatildeo finalrsquo do homem que consistiria na libertaccedilatildeo completa da alma de seu
caacutercere corporal52 Para os oacuterficos o corpo oblitera a libertaccedilatildeo da natureza dionisiacuteaca
50 Rohde 1950 p 341-342
51 Cf Drsquoanna 2010 p 77-78 Bernabeacute in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p591-592
52 Drsquoanna 2010 p 98
39
do ser humano razatildeo pela qual eles parecem ter abraccedilado uma doutrina de que a alma eacute
um tipo de prisatildeo ou tumba do corpo53 Essa ideia de que o corpo eacute uma prisatildeo da alma
eacute identificada como um ensino oacuterfico no Craacutetilo 400c e tambeacutem aparece no Goacutergias
493a onde se diz que o corpo eacute para noacutes uma sepultura
De acordo com a doutrina oacuterfica o trabalho do ser humano eacute libertar-se das
cadeias desse corpo mortal no qual a alma estaacute atada como um prisioneiro numa cela A
morte liberta a alma apenas por um curto periacuteodo de tempo pois a alma deve voltar a
sofrer o aprisionamento em outro corpo mortal continuando a sua jornada submetendo-
se a um lsquociacuterculo de necessidadersquo Contudo existe um meio pelo qual o ser humano pode
livrar-se desse perpeacutetuo ciclo de renascimentos O ser humano precisa da revelaccedilatildeo dos
misteacuterios de Orfeu para encontrar um caminho de salvaccedilatildeo o fiel deve seguir as
ordenanccedilas previstas pela religiatildeo Os fieacuteis natildeo devem seguir apenas os sacros misteacuterios
da parte de Orfeu mas uma completa vida oacuterfica deve ser observada renunciando tudo
que relaciona a pessoa agrave mortalidade e agrave vida corporal Tambeacutem o Hades exerce um
papel nesse processo de purificaccedilatildeo da natureza mortal ali os impuros sofrem puniccedilatildeo e
satildeo purgados como um tipo de justiccedila compensatoacuteria A transmigraccedilatildeo tambeacutem eacute
fundamental para a purificaccedilatildeo uma vez que os atos de uma vida passada satildeo
recompensados uma proacutexima vida Tudo isso capacita o fiel a obter o favor e
purificaccedilatildeo da divindade 54
As praacuteticas oacuterficas para a purificaccedilatildeo eram transmitidas pelos orfeotelestaiacute
(ὀρφεοτελεσταί) sacerdotes que viviam um estilo de vida oacuterfico (βίος ὀρφικός) Orfeu
53 Cf Craacutetilo 400c onde Platatildeo menciona semelhante doutrina antiga e a atribui aos oacuterficos
54 Rohde 1950 p342-344
40
era crido na antiguidade por ter introduzido os ritos (ὄργια) de iniciaccedilatildeo (τελετή) na
Greacutecia O objetivo dessa praacutetica cultual era esoteacuterico e soterioloacutegico visando a salvaccedilatildeo
escatoloacutegica55 Havia uma lista austera de normas de conduta e observacircncias como
ausecircncia dos ciacuterculos sociais ritos fuacutenebres ascetismo e abstinecircncia rituais para
purificaccedilatildeo da culpa e expiaccedilatildeo abstinecircncia de carne proibiccedilatildeo de matar animais
associada a uma dieta estritamente vegetariana56 Essa vida austera com todo rigor
asceacutetico se justifica porque para o oacuterfico o corpo com seus apetites e paixotildees eacute a fonte
de toda sorte de mau a natureza titacircnica que aprisiona a alma Sendo assim o estilo de
vida oacuterfico visa libertar o homem de sua origem titacircnica (corpo) e do ciclo de
reencarnaccedilotildees atraveacutes das penas sofridas e dos ritos de purificaccedilatildeo Nesse processo de
purificaccedilatildeo o iniciado exalta e libera cada vez mais a sua natureza dionisiacuteaca (a alma
divina e imortal) de sua prisatildeo corporal ateacute que finalmente alcance uma condiccedilatildeo
suficiente para a definitiva descida ao Hades quando ele finalmente se juntaria aos
deuses imortais Cada reencarnaccedilatildeo traz uma oportunidade para abreviar o ciclo de
encarnaccedilotildees atraveacutes das penas sofridas e dos ritos de purificaccedilatildeo
Em suma existe uma lista de praacuteticas que cooperam para a redenccedilatildeo final do
iniciado as penas infernais as reencarnaccedilotildees o estilo de vida oacuterfica as praacuteticas dos
rituais de misteacuterios e o correto procedimento ao chegar ao Hades satildeo meios para a
obtenccedilatildeo da redenccedilatildeo final que basicamente consiste na separaccedilatildeo definitiva da alma
do corpo quando cessa o ciclo de reencarnaccedilotildees e a alma se une aos deuses no Hades
Encontramos vaacuterias referecircncias aos iniciados nos documentos oacuterficos como
mostramos nos seguintes exemplos
55 Albinus 2000 p103
56 Alderink 1981 p80-81 Albinus 2000 p103-104
41
(i) O Papiro de Gurob traz o seguinte verso 57 ldquoatraveacutes da iniciaccedilatildeo a mim
mutila para as penas dos pais descontarrdquo 58
(ii) Na lacircmina de ouro Feres haacute uma declaraccedilatildeo de que o iniciado que acaba
de chegar ao Hades natildeo mais teria penas a cumprir ficando assim livre
do ciclo de transmigraccedilatildeo ldquoEntre no campo sagrado Pois o iniciado
natildeo (tem) penardquo59
(iii) Na Lacircmina de Hipocircnio os iniciados eacute que satildeo dirigidos por um caminho
singular no Hades ldquoE vocecirc tendo bebido iraacute pelo caminho sagrado pelo
qual os outros iniciados (mystai) e baacutequicos (baacutecchoi) seguem
renomadosrdquo 60
(iv) Nas lacircminas de Turi I II III os iniciados se identificam como puros na
chegada ao Hades ldquoVenho dentre os puros oacute pura Rainha dos Infernosrdquo
Nas lacircminas de Turi I e II o iniciado solicita que por ser puro ele seja
enviado para ldquoo assento dos purosrdquo 61 62
57 Gazzinneli 2007 p67
58 Gazzinneli 2007 p67
59 Gazzinneli 2007 p81
60 Gazzinneli 2007 p73
61 Gazzinneli 2007 p78 79
62 A Repuacuteblica de Platatildeo faz alusatildeo aos oacuterficos e seus ritos de purificaccedilatildeo os quais envolveriam
sacrifiacutecios e conjuros durantes as festas denominadas misteacuterios As praacuteticas seriam chamadas de
expiaccedilatildeo e poderiam reparar as faltas pessoais e dos antepassados livrando os iniciados dos
males do Hades (Cf R 2 364b-365a)
42
324 Puniccedilatildeo purificaccedilatildeo redenccedilatildeo no Feacutedon
Haacute vaacuterios exemplos claros da utilizaccedilatildeo das ideias oacuterficas de purificaccedilatildeo e
iniciaccedilatildeo no Feacutedon Platatildeo se utiliza do tema de vida oacuterfico (βίος ὀρφικός)
especialmente a ideia da iniciaccedilatildeo purificaccedilatildeo e redenccedilatildeo Temos um bom exemplo em
69a-d pouco antes de Soacutecrates fazer referecircncia agrave antiga tradiccedilatildeo Nos ritos de
purificaccedilatildeo oacuterfica os iniciados geralmente passavam lama ou lodo no corpo com o
objetivo de limpar ou apagar a maacutecula63 No Feacutedon Soacutecrates afirma que os homens que
instituiacuteram os misteacuterios natildeo eram mediacuteocres e que eles estavam certos ao dizer que ao
chegar ao Hades os iniciados e purificados iratildeo habitar com os deuses enquanto os
natildeo-iniciados e impuros vatildeo jazer na lama (69c 110a5-6 111d5-e2 113a6-b6 c3-7
81a4-6) A lama ou lodo portanto tanto servia para propoacutesitos de purificaccedilatildeo nos
rituais oacuterficos conforme os testemunhos antigos quanto no Hades no caso de pessoas
natildeo-iniciadas
Soacutecrates nutre a esperanccedila de que seraacute recompensado no Hades e natildeo somente
ele mas todo aquele cuja mente estaacute pronta e purificada (67c) No Hades os iniciados
habitaratildeo com os deuses e os natildeo-iniciados jazeratildeo na lama (69c) Eacute bem provaacutevel que
Platatildeo esteja utilizando ideias escatoloacutegicas oacuterficas64
Tambeacutem eacute importante notar que a ideia de iniciaccedilatildeo e purificaccedilatildeo no Feacutedon estaacute
conectada com a concepccedilatildeo oacuterfica do corpo como prisatildeo da alma Semelhante doutrina
do aprisionamento da alma no corpo eacute introduzida no Feacutedon em 62b por ocasiatildeo da
discussatildeo sobre o suiciacutedio e eacute apresentada por Soacutecrates como sendo uma doutrina
63 Albinus 2000 p 135
64 Bernabeacute in Adluri 2013 p127-128
43
extraordinaacuteria e natildeo faacutecil de entender completamente ldquoA propoacutesito o que se diz nos
misteacuterios sobre esse assunto ndash que noacutes seres humanos estamos num tipo de prisatildeo e que
ningueacutem por si mesmo deve libertar-se nem fugir dela ndash eacute algo que me parece
extraordinaacuterio e difiacutecil de desvendarrdquo (Cf 67d1-2 81e2 92a1) Em 82e Soacutecrates
retoma a ideia de que a alma estaacute presa ao corpo dizendo que mesmo os filoacutesofos satildeo
obrigados a considerar as realidades atraveacutes do corpo como que atraveacutes de uma prisatildeo
em vez de fazecirc-lo estritamente por meio de si mesma Soacutecrates ainda ressalta que a
proacutepria filosofia percebe que o pior dessa prisatildeo eacute que ela opera por meio dos desejos
de modo que o encarcerado pode se tornar o maior cuacutemplice de seu encarceramento
(82e)
Essa central doutrina oacuterfica que divide alma e corpo fazendo do corpo um mero
obstaacuteculo para a alma natildeo apenas exerceu uma tremenda fascinaccedilatildeo sobre Platatildeo como
tambeacutem permeia todo o Feacutedon juntamente com o uso da linguagem oacuterfica de iniciaccedilatildeo
A inovaccedilatildeo platocircnica no Feacutedon prevecirc novos meios de redenccedilatildeo para o iniciado e
uma nova ideia de salvaccedilatildeo Platatildeo desenvolve sua visatildeo de que filosofia eacute um meio de
purificaccedilatildeo da alma65 A purificaccedilatildeo filosoacutefica consiste na praacutetica de separar a alma do
corpo o quanto for possiacutevel evitando ao maacuteximo qualquer comunhatildeo com ele Essa
kaacutetharsis filosoacutefica equivale ao lsquoexerciacutecio de morrer e estar mortorsquo (Feacutedon 64a) Sendo
assim o novo caminho para a iniciaccedilatildeo e purificaccedilatildeo eacute a praacutetica da filosofia (69d) em
vez dos atos de redenccedilatildeo oacuterficos 66
Enquanto os iniciados seguem um estilo de vida oacuterfico e praacuteticas rituais para
expurgar a penalidade ancestral e a natureza titacircnica Soacutecrates prescreve o cultivo de
6565 Cf Dilman 1992 p20-21
66 Cf Albinus 2000 p139
44
virtudes associadas agrave sabedoria e o exerciacutecio da razatildeo como meios de purificaccedilatildeo Em
suma tudo isso pode ser resumido na praacutetica ou exerciacutecio da filosofia que Soacutecrates
chama de exerciacutecio de morte (81a)
Os iniciados oacuterficos devem descer ao Hades munidos de foacutermulas maacutegicas e
senhas para serem reconhecidos pelos guardiatildees da morada infernal e conseguirem
acesso aos lugares excelentes na versatildeo platocircnica de salvaccedilatildeo a alma deve manter-se
na melhor condiccedilatildeo possiacutevel de modo que a pessoa viva da melhor maneira possiacutevel
pois o que mais ajuda ao moribundo do iniacutecio ao fim de sua jornada ao Hades eacute a
educaccedilatildeo e treinamento que carrega consigo (107c-d) Como este estilo de vida a qual
Soacutecrates se refere sempre eacute o estilo de vida daquele que cuida da alma atraveacutes da praacutetica
da verdadeira filosofia que no Feacutedon consiste em rejeitar o corpo e dedicar-se a
alcanccedilar a sabedoria pelo exerciacutecio do intelecto somente
Os oacuterficos almejam um tipo de salvaccedilatildeo que consiste na liberaccedilatildeo do ciclo de
renascimentos No Feacutedon Soacutecrates se apropria dessa ideia oacuterfica e a aplica agrave esperanccedila
do filoacutesofo de alcanccedilar a liberaccedilatildeo do ciclo de renascimento e morte No Feacutedon natildeo se
diz explicitamente que todas as almas vatildeo alcanccedilar a liberaccedilatildeo do ciclo tal como os
filoacutesofos alcanccedilaratildeo No entanto Soacutecrates deixa evidente a distinccedilatildeo entre as almas que
satildeo definitivamente liberadas e aquelas que continuam a transmigrar A liberaccedilatildeo
definitiva do ciclo de renascimento e morte e a subsequente recompensa do filoacutesofo eacute
geralmente expressa em termos miacutetico-religiosos como lsquohabitar com as divindadesrsquo
(69C 81a4-6 82b10) ou obter a suprema bem-aventuranccedila em lsquomoradas bem
construiacutedasrsquo que vatildeo aleacutem de qualquer descriccedilatildeo (114c) Portanto Platatildeo se utiliza de
estruturas da doutrina oacuterfica para construir um tipo de ldquosoteriologia filosoacuteficardquo cujo
fundamento da salvaccedilatildeo eacute a praacutetica da verdadeira filosofia O tema da recompensa
45
poacutestuma eacute utilizado por Platatildeo para expressar os benefiacutecios a serem desfrutados por
aqueles que dedicam a vida agrave filosofia
Jaacute que a purificaccedilatildeo filosoacutefica eacute o exerciacutecio ou praacutetica da filosofia o iniciado
natildeo eacute mais o adepto das praacuteticas oacuterficas mas o filoacutesofo Soacutecrates declara explicitamente
isto quando lembra dos ritos oacuterficos em honra a Dioniso Ele explica que os adeptos dos
Misteacuterios costumam dizer que muitos carregam o tirso mas poucos satildeo os Bacantes
numa referecircncia aos que aderem ao culto a Dioniso mas natildeo se comprometem
totalmente com o deus Ao contraacuterio dos religiosos de aparecircncia existem os Bacantes
iniciados que estatildeo intimamente ligados ao deus praticando os Misteacuterios conforme o
deus requer Soacutecrates entatildeo utiliza a ideia oacuterfica em tom de paroacutedia afirmando que os
poucos Bacantes que existem natildeo satildeo aqueles religiosos que se exercitam nos Misteacuterios
mas os filoacutesofos ndash aqueles que realmente dedicam a vida agrave filosofia Aleacutem de definir o
iniciado como aquele que pratica a filosofia Soacutecrates provavelmente estaacute fazendo uma
distinccedilatildeo entre verdadeiros e falsos filoacutesofos dando a entender que haacute muitos ditos
filoacutesofos mas assim como poucos satildeo os Bacantes poucos tambeacutem satildeo os verdadeiros
filoacutesofos (Cf69c-d) Platatildeo estaacute oferecendo filosofia como substituto para os
misteacuterios67 Ele faz isso utilizando estruturas e siacutembolos oacuterfico-pitagoacutericos como forma
de instruccedilatildeo sobre a vida filosoacutefica e sobre a vida apoacutes a morte68
67 Menn in Adluri 2013 p214
68 Bussanich in Adluri 2013 p250
46
325 Transmigraccedilatildeo da Alma
Ao longo do Feacutedon Soacutecrates estabelece uma relaccedilatildeo entre iniciaccedilatildeo e
purificaccedilatildeo (meios de redenccedilatildeo) recompensas no Hades (redenccedilatildeo final) e a teoria da
transmigraccedilatildeo das almas69 A transmigraccedilatildeo das almas eacute o conteuacutedo do antigo relato
segundo o qual as almas vatildeo para o Hades depois da morte e de laacute voltam (70c)
Conforme este relato o Hades eacute a origem e destino da alma dos vivos Natildeo temos
nenhuma informaccedilatildeo sobre a origem uacuteltima da alma de onde ela viria antes de iniciar
esse ciclo em que passa alternadamente pelo mundo dos vivos e pelo Hades o qual
figura como um tipo de lugar obrigatoacuterio para a alma desencarnada seja para uma
passagem temporaacuteria ou para uma estada permanente
O conteuacutedo baacutesico do antigo relato eacute a transmigraccedilatildeo das almas ou
metempsicose (i) a alma se separa do corpo por ocasiatildeo da morte e desce ao Hades
onde permanece por algum tempo (ii) a alma volta do Hades ao mundo dos vivos e
aloja-se em novo corpo A crenccedila de que a alma transmigra de um corpo a outro de
acordo com um ciclo de nascimentos eacute uma doutrina oacuterfica antiga mas na antiguidade
tambeacutem se costuma atribuir a sua origem a Pitaacutegoras e pitagoacutericos 70 No contexto da
religiatildeo oacuterfica a transmigraccedilatildeo estaacute relacionada com um culpa antiga que remonta ao
mito de Dioniso Zagreu Os Titatildes satildeo antepassados dos seres humanos e suas culpas
devem ser expiadas por eles O pagamento do castigo implica a liberaccedilatildeo do ciclo de
69 Cf Bernabeacute in Adluri 2013 p128
70 Albinus 2000 p117
47
transmigraccedilotildees 71 Haacute vaacuterios documentos oacuterficos da antiguidade que testemunham o
caraacuteter oacuterfico dessa doutrina como os seguintes
(i) As placas de osso de Oacutelbia apresenta a sequecircncia ldquovida morte
vidardquo um testemunho da crenccedila oacuterfica no ciclo contiacutenuo de vida e
morte 72
(ii) As Lacircminas de Pelina I e II (B2) tambeacutem registram a crenccedila no ciclo
de vida e morte ldquoOra vocecirc morre ora nasce trecircs vezes afortunado
neste dia
(iii) A lacircmina de Turi II o iniciado afirma que eacute da ldquoraccedila afortunadardquo e
reivindica o fim do ciclo de transmigraccedilotildees com base nas penas que
jaacute cumprira ldquoServi a pena relativa a obras em nada justasrdquo
(iv) A Lacircmina de Turi III testemunha ldquoVoei para longe do ciclo de
doloroso e pesado lamentordquo73
A doutrina da metempsicose seguiu sendo reconhecida como oacuterfica ao longo de
toda a antiguidade74
No Feacutedon a ideia da transmigraccedilatildeo da alma eacute bastante explorada por Soacutecrates
inclusive a doutrina do renascimento em animais geralmente atribuiacuteda a pitagoacutericos
Aqueles que natildeo se purificam durante a vida reencarnariam num corpo de acordo com o
71 Cf Bernabeacute in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p601
72 Gazzinneli 2007 p 81 82
73 Gazzinneli 2007 p 81 82
74 Moreno in Bernabeacute y Casadesuacutes 2008 p611
48
gecircnero de vida praticado alguns voltam agrave vida em corpos de variados animais outros
em corpos de seres humanos (Cf62b 67d 69c-d 80d) Almas que se libertam do corpo
manchadas impuras e contaminadas pelo elemento corporal temem de tal modo o
Hades que satildeo arrastadas de volta ao mundo visiacutevel passando a perambular em
monumentos fuacutenebres e sepulturas (81c-81d) Essas satildeo as almas dos maus os quais satildeo
obrigadas a perambular assim como castigo por causa do modo vida que havia levado
as quais andam errantes ateacute que possa alojar-se novamente em um corpo com os
mesmos viacutecios de outrora como glutonaria e desejo desmedido pela bebida Almas
assim podem renascer em asnos ou animais de semelhante natureza (81d-e) Almas
responsaacuteveis por injusticcedilas tiranias e roubos renasceriam na linhagem de lobos falcotildees
e abutres (82a) Dentre essas almas que natildeo se dedicaram agrave filosofia as que vatildeo para um
corpo melhor satildeo as pessoas sociais e civilizadas as quais praticaram a virtude popular
e ciacutevica a temperanccedila e a justiccedila as quais tanto podem retornar em corpos de abelhas
vespas ou formigas quanto podem retornar ao gecircnero humano para serem pessoas de
bem (82a-b) A praacutetica de virtudes sem a cooperaccedilatildeo da filosofia eacute proveitosa chegando
a interferir no processo de transmigraccedilatildeo mas nunca pode oferecer a redenccedilatildeo final a
libertaccedilatildeo do ciclo de renascimentos juntamente com as recompensas no Hades A
mensagem platocircnica central eacute que soacute via filosofia eacute possiacutevel se purificar durante a vida e
partir puro para o Hades Essas satildeo as almas dos filoacutesofos o verdadeiro filoacutesofo
(iniciado) chegaraacute agrave linhagem dos deuses e habitaraacute com eles uma vez que alcanccedilaram
a libertaccedilatildeo e purificaccedilatildeo que se efetuam por meio da praacutetica de uma vida dedicada agrave
filosofia (82b-d) A alma do filoacutesofo sendo purificada iraacute se encontrar com aquilo com
o que guarda afinidade de modo algum se esvaindo no momento da separaccedilatildeo do corpo
ou mesmo dissipada pelos ventos sem existir em parte alguma (84b) Contudo a alma
49
afeita ao corpo passa a incorporar o tipo de vida corporal e desse jeito nunca pode
chegar ao Hades no estado de pureza razatildeo pela qual logo volta a alojar-se em outro
corpo ficando privada da companhia do divino puro e uniforme (83d-e)
Ainda no mito escatoloacutegico final existe uma passagem que alude agrave
transmigraccedilatildeo da alma Soacutecrates fala do Taacutertaro o mais profundo abismo para onde
confluem todas as correntes dos rios e onde todas elas se originam As almas dos
mortos permanecem ali por um tempo determinado alguns permanecendo mais tempo
outras menos Cumprido o tempo as almas satildeo novamente enviadas para as geraccedilotildees
dos seres vivos (112a 113a)
Portanto a doutrina da transmigraccedilatildeo da alma faz parte da estrutura baacutesica da
argumentaccedilatildeo no Feacutedon A essa doutrina esoteacuterica estatildeo relacionados outros temas
proacuteprios das religiotildees de misteacuterios como a divisatildeo entre corpo e alma a iniciaccedilatildeo e
purificaccedilatildeo dos fieacuteis e a descida ao Hades com as respectivas recompensas e puniccedilotildees
infernais
326 Imortalidade da alma
Para os adeptos dos ciacuterculos oacuterficos seria natural pensar que alma eacute imortal por
causa do seu caraacuteter divino dionisiacuteaco em oposiccedilatildeo ao elemento mortal do corpo de
natureza titacircnica Como diz Taylor a imortalidade da alma eacute uma mera consequecircncia de
uma heranccedila divina75 No escopo da religiatildeo grega se a alma eacute imortal deve ser no
75 Taylor 1922 p177
50
sentido de sua essencial natureza divina Ela por si mesma pertence agrave realidade divina
de modo que os termos imortal e divino satildeo intercambiaacuteveis76
Portanto na religiosidade grega de modo geral a afirmaccedilatildeo de que a alma eacute
imortal quer dizer para um grego natildeo soacute que manteacutem a capacidade de sentir de
entender e de estar verdadeiramente viva apoacutes a morte mas tambeacutem que a alma eacute
divina77 O Feacutedon dialoga com essa fonte e tradiccedilatildeo religiosa grega
Mais especificamente no contexto da religiosidade oacuterfica Albinus esclarece que
os antigos natildeo consideram a mitologia oacuterfica apenas como um tipo de histoacuteria ou mito
mas tambeacutem como um relato (λόγος) que expressa a relaccedilatildeo entre humanidade e
divindade mortalidade e imortalidade78 O ciclo de transmigraccedilotildees certamente
representa essa dupla ligaccedilatildeo da alma com o humano e mortal (quando encarnadas) e
divino e imortal (quando desencarnadas) Portanto o tema da imortalidade estaacute
associado ao tema da transmigraccedilatildeo na mitologia oacuterfica Eacute necessaacuterio compreender este
ponto para uma correta compreensatildeo do argumento ciacuteclico como prova da imortalidade
da alma provar que as almas transmigram eacute tambeacutem provar que elas satildeo imortais num
contexto religioso oacuterfico no qual natildeo temos aniquilaccedilatildeo completa da alma mas apenas
rompimento do ciclo de reencarnaccedilotildees Em suma
(i) Imortalidade e transmigraccedilatildeo da alma satildeo temas indissociaacuteveis na
religiatildeo oacuterfica
76 Rohde 1950 p254
77 Bernabeacute 2000 p 171
78 Albinus 2000 p117
51
(ii) A transmigraccedilatildeo pode ser entendida como um importante aspecto da
doutrina da imortalidade da alma sendo a alma imortal o ser humano
natildeo escapa da penalidade que deve pagar ao longo do ciclo de
renascimentos79
(iii) Eacute tambeacutem a crenccedila na imortalidade da alma que sustenta toda a ideia de
purificaccedilatildeo e conseguinte libertaccedilatildeo do ciclo de reencarnaccedilotildees quando o
oacuterfico alcanccedila um tipo de redenccedilatildeo final livre do corpo e do ciclo de
renascimentos ele passa a viver como uma divindade80
Portanto eacute natural que os oacuterficos combinem doutrina da transmigraccedilatildeo da alma e
a crenccedila na divindade e imortalidade da alma Ao que parece os pitagoacutericos tambeacutem
fizeram uma associaccedilatildeo semelhante entre a transmigraccedilatildeo e imortalidade da alma81 Eacute
esta concepccedilatildeo de imortalidade atrelada agrave doutrinda da transmigraccedilatildeo da alma que estaacute
presente no argumento ciacuteclico
Eacute razoaacutevel pensar que agrave eacutepoca de Platatildeo os gregos possuiacuteam uma seacuterie de teses
inconsistentes sobre a alma de modo que dogmas como o da imortalidade da alma natildeo
estavam bem claros para todas as pessoas Aleacutem disso ideias como a que Cebes
apresenta ndash a desintegraccedilatildeo da alma que se separa do corpo ndash poderiam tambeacutem ser
sustentadas pelo menos por algum grupo de pessoas
79 Bussanich in Adluri 2013 p243
80 Rohde 1950 p345
81 Bernabeacute 2000 p 172
52
327 Conclusatildeo
Noacutes encontramos uma rica presenccedila de doutrinas tipicamente oacuterficas no Feacutedon
e tudo indica que Platatildeo estaacute utilizando doutrinas oacuterficas e pitagoacutericas em seu diaacutelogo
Os motivos oacuterficos aparecem na primeira parte do Feacutedon e se manteacutem em cena no
diaacutelogo ateacute o mito escatoloacutegico final A pesquisa de Kingsley mostra que alusotildees a
crenccedilas oacuterficas no estaacutegio inicial do diaacutelogo satildeo retomadas no mito escatoloacutegico final
Ele utiliza dois temas oacuterficos para justificar a sua tese castigo poacutestumo dos impuros e a
recompensa dos puros A ideia de jazer na lama que eacute uma imagem das puniccedilotildees
infernais aos natildeo-iniciados cedo eacute introduzida no diaacutelogo e volta a aparecer trecircs vezes
no mito escatoloacutegico final no contexto dos vastos rios de lama infernais (Cf 69c5-6
110a5-6 11d5-e2 113a6-b6) O mais interessante eacute que o material apresentado
previamente no diaacutelogo oferece uma breve antecipaccedilatildeo do que viraacute pela frente
revelando que existe um tipo de exposiccedilatildeo sistemaacutetica dessa crenccedila oacuterfica no Feacutedon O
tema da recompensa no Hades para os iniciados e purificados apresenta o mesmo
padratildeo de antecipaccedilatildeo e posterior explanaccedilatildeo complementaacuteria no contexto do mito final
A imagem do impuro que sofre a pena de jazer na lama tem a sua contraparte na
imagem da alma pura que desce ao Hades para desfrutar da recompensa de viver com os
deuses imortais (69c6-7 111b6-c1 114b7-c2 114d3) Tambeacutem nesse caso as alusotildees
oacuterficas da etapa inicial do diaacutelogo voltam a aparecer no mito final e tornam-se uma
chave valiosa para a compreensatildeo da estrutura linguagem e significado do mito82
Tudo isso leva a crer que existe a presenccedila meticulosa das ideias oacuterficas na
estrutura fundamental do Feacutedon
82 Cf Kingsley 1992 p119-120
53
4 Anaacutelise do argumento ciacuteclico propriamente dito
O tema principal do Feacutedon eacute a imortalidade da alma Platatildeo define morte como
lsquoseparaccedilatildeo da alma do corporsquo(64c) Ainda no primeiro estaacutegio do diaacutelogo a personagem
Soacutecrates defende que a alma que se separa do corpo natildeo se dispersa e perece como as
pessoas afirmam mas continua a existir sozinha por si mesma (Cf 64c 70a-b) Ainda
que a palavra lsquoimortalrsquo natildeo apareccedila no diaacutelogo ateacute 73a introduzida por Cebes e
Soacutecrates soacute a empregue pela primeira vez no contexto do argumento das afinidades
(Cf79d) a ideia de que a alma eacute imune agrave morte aparece bem cedo no diaacutelogo e as
provas do Feacutedon tecircm o objetivo de provar que a alma eacute imortal Natildeo seria possiacutevel
avaliar se as provas satildeo suficientes ou natildeo se os amigos de Soacutecrates natildeo tivessem bem
definido o que elas satildeo destinadas a provar ou pelo menos aquilo que eles esperam que
elas provem Eles natildeo apenas tecircm em mente o que o mestre precisa provar mas tambeacutem
satildeo capazes (ateacute certo ponto) de apontar a insuficiecircncia dessas provas
O argumento ciacuteclico jaacute eacute visto por Cebes como prova da imortalidade da alma
ele associa o primeiro argumento e o ensino da reminiscecircncia com a ideia de que ele
talvez pudesse tambeacutem mostrar que a alma eacute imortal (72e1-73a3) Cebes natildeo afirma que
o argumento ciacuteclico havia provado que a alma eacute imortal nem mesmo estaacute certo de que o
argumento da reminiscecircncia pode fazecirc-lo mas indica que eacute necessaacuterio uma nova prova
Desde o iniacutecio da etapa demonstrativa apenas uma prova da imortalidade da
alma poderaacute contrapor a crenccedila de que a alma perece na ocasiatildeo em que se separa do
corpo (70a) que eacute o problema motriz da etapa demonstrativa Esta crenccedila doutrina ou
posiccedilatildeo filosoacutefica eacute enfrentada por Platatildeo no diaacutelogo O termo εὐθύς colabora com essa
54
ideia de que a alma seria passiacutevel de desintegraccedilatildeo na ocasiatildeo imediata agrave separaccedilatildeo do
corpo Vejamos algumas passagens
(i) Antes de comeccedilar a etapa demonstrativa o que atormenta inicialmente os
amigos de Soacutecrates eacute a possibilidade de que a alma do mestre seja
destruiacuteda na ocasiatildeo imediata agrave separaccedilatildeo do corpo (70a4-5) (εὐθὺς
ἀπαλλαττομένη τοῦ σώματος)
(ii) Na transiccedilatildeo entre argumento da reminiscecircncia e das afinidades Soacutecrates
ainda tem em mente a problemaacutetica seria necessaacuterio continuar a
discussatildeo porque os amigos possuem um ldquotemor pueril de que o vento
realmente dissipe e disperse a alma na ocasiatildeo em que ela deixa o corpo
especialmente se acontecer de algueacutem morrer num dia de ventania e natildeo
de brisardquo (77d) Apesar de o termo εὐθύς natildeo aparecer aqui a ideia
continua sendo desintegraccedilatildeo que ocorre na ocasiatildeo da morte O que
parece uma ironia socraacutetica na verdade estaacute de acordo com a concepccedilatildeo
de certas pessoas de a alma poderia ser dispersa pelo vento
especialmente por um vento forte
(iii) Na etapa que segue o argumento das afinidades Soacutecrates retoma o
problema que gera toda a etapa demonstrativa mas agora coloca duas
ideias em contraste e em ambos os casos Soacutecrates utiliza εὐθύς
bull Nem mesmo o cadaacutever que eacute material e assim a ele pertence o
dissolver-se desfazer-se dissipar-se (ᾧ προσήκει διαλύεσθαι καὶ
διαπίπτειν καὶ διαπνεῖσθαι) sofre todas essas coisas
55
imediatamente (οὐκ εὐθὺς τούτων οὐδὲν πέπονθεν) mas
lsquopermanece por um longo temporsquo (συχνὸν ἐπιμένει χρόνον)
especialmente se o falecido eacute jovem ou o cadaacutever embalsamado
Certas partes como os ossos na praacutetica satildeo imortais (ἀθάνατά
ἐστιν) (80c2-d4)
bull Em contraste com o cadaacutever cuja natureza eacute passiacutevel de
dissoluccedilatildeo Soacutecrates lembra que a alma eacute de natureza distinta ela
eacute a parte invisiacutevel da pessoa e possui afinidades com o nobre
puro e invisiacutevel e desceraacute ao Hades para se reunir com um deus
Sendo assim questiona se os amigos acham que a alma seria
dispersa e pereceria na ocasiatildeo imediata agrave separaccedilatildeo do corpo
(ἀπαλλαττομένη τοῦ σώματος εὐθὺς διαπεφύσηται καὶ
ἀπόλωλεν) (80d) Aqui Soacutecrates mostra o absurdo de acreditar
que a alma que possui a mesma natureza imaterial das lsquoFormasrsquo
e do lsquodivinorsquo seria desintegrada na ocasiatildeo imediata agrave separaccedilatildeo
do corpo enquanto o corpo ainda seria mais resistente agrave
destruiccedilatildeo do que a proacutepria alma Soacutecrates procura mostrar o
absurdo desta posiccedilatildeo com base nos argumentos jaacute apresentados
os quais jaacute haviam deixado claro que a alma eacute algo superior ao
corpo e de natureza diferente Ainda que natildeo tivesse ainda
oferecido uma prova suficiente da imortalidade da alma os trecircs
primeiros argumentos jaacute haviam mostrado que a alma natildeo eacute tal
como o corpo Soacutecrates critica a crenccedila que acaba tornando o
corpo mais duraacutevel do que a proacutepria alma
56
bull Pouco depois Siacutemias tenta responder agrave questatildeo de Soacutecrates com
a sua teoria da alma-harmonia e insiste em comprovar que a
alma sendo uma mistura de elementos corporais eacute a primeira a
perecer naquilo que chamamos de morte enquanto o corpo
perdura algum tempo (86c-d) Esta passagem nos revela mais um
detalhe da concepccedilatildeo da natureza da alma que estaacute em cena no
Feacutedon o receio de que a alma seja uma mistura de elementos
corporais e que ela seria passiacutevel agrave dispersatildeo e desintegraccedilatildeo na
ocasiatildeo da morte
bull Cebes ficaraacute contra a posiccedilatildeo de Siacutemias de que o corpo dura mais
do que a alma e com o seu argumento do tecelatildeo e seu manto
tenta mostrar que a alma dura mais do que o corpo mas nada
garante que ela eacute completamente imune agrave morte Desintegraccedilatildeo e
perecimento instantacircneo podem natildeo ocorrer mas nada garante
que natildeo haja a possibilidade de que a alma seja destruiacuteda no seu
uacuteltimo ciclo de reencarnaccedilatildeo (Cf 87-88b)
O argumento ciacuteclico eacute inserido num contexto em que se busca provar que a alma
eacute imune agrave morte contra a crenccedila numa alma passiacutevel a dissoluccedilatildeo e perecimento Mas
de iniacutecio o tema da imortalidade eacute tratado a partir de uma matriz baacutesica da religiosidade
oacuterfica imortalidade em funccedilatildeo da transmigraccedilatildeo da alma A abertura do argumento
ciacuteclico se daacute com um convite de Soacutecrates para examinar ldquo() se de algum modo as
almas das pessoas que morrem estatildeo no Hades ou natildeordquo (70c4-5) Este objeto de
investigaccedilatildeo coincide com o conteuacutedo do relato de uma tradiccedilatildeo religiosa de cunho
57
oacuterfico e pitagoacuterico ldquoExiste um relato antigo o qual guardamos na memoacuteria segundo o
qual as almas que chegam ao aleacutem partem daqui e voltam novamente para caacute
proveniente dos mortosrdquo (70c5-8)
O antigo relato tem em vista basicamente que a alma se engaja no ciclo de
reencarnaccedilatildeo ndash a alma deixa um corpo desce ao Hades e de laacute volta a reencarnar No
orfismo e pitagorismo natildeo existe a possibilidade de a alma ser desintegrada ou
destruiacuteda Se for verdade o que diz o relato lsquoque os vivos provecircm dos mortosrsquo Soacutecrates
entende que eacute necessaacuterio concluir que lsquoas nossas almas estatildeo no aleacutemrsquo (70c8-d1) Se
coisas vivas e pessoas vivas (tentativa de generalizar ndash tudo que eacute vivo) procedem
daqueles que estatildeo mortos (ἐκ τῶν τεθνεώτων τὰ ζῶντά τε καὶ οἱ ζῶντες γίγνονται) eacute
necessaacuterio concluir que as nossas almas estatildeo no Hades (εἰσὶν αἱ ψυχαὶ ἡμῶν ἐν
Ἅιδου) (71d14-e2) Portanto eacute necessaacuterio provar que os vivos provecircm dos mortosrsquo
Para isto eacute necessaacuterio um argumento com base no princiacutepio de que todos os opostos
provecircm dos opostos (70e1-2) A terminologia do argumento ciacuteclico deriva diretamente
daquela utilizada no antigo relato ndash verbo γίγνομαι seguido de ἐκ + genitivo ndash como se
pode observar
(i) ldquoExiste um relato antigo o qual guardamos na memoacuteria segundo o qual
as almas que chegam ao aleacutem partem daqui e voltam novamente para caacute
provenientes dos mortosrdquo ( γίγνονται ἐκ τῶν τεθνεώτων) (70c8)
(ii) ldquoSe realmente eacute verdade que os vivos provecircm dos mortos ()rdquo
(γίγνεσθαι ἐκ τῶν ἀποθανόντων τοὺς ζῶντας) (70c8-9)
(iii) ldquoSe realmente ficasse evidente que os vivos provecircm de nenhum lugar a
natildeo ser dos mortosrdquo (γίγνονται οἱ ζῶντες ἢ ἐκ τῶν τεθνεώτων) (70c9)
58
(iv) ldquoTodas as coisas tecircm origem assim opostos dos opostosrdquo (γίγνεται πάντα
ἐκ τῶν ἐναντίων τὰ ἐναντία) (70e1-2)
Apresentado o princiacutepio de que todos os opostos provecircm dos opostos Soacutecrates
convida ao exame
(i) ldquoVejamos se todas essas coisas satildeo geradas da seguinte maneira opostos dos
opostos (γίγνεται πάντα ἐκ τῶν ἐναντίων τὰ ἐναντία) (70e1-2)
(ii) ldquoPortanto examinaremos se tudo que tem um oposto proveacutem
necessariamente de seu oposto e de nenhum outrordquo (70e5-6) (τοῦτο οὖν
σκεψώμεθα ἆρα ἀναγκαῖον ὅσοις ἔστι τι ἐναντίον μηδαμόθεν ἄλλοθεν αὐτὸ
γίγνεσθαι ἢ ἐκ τοῦ αὐτῷ ἐναντίου)
(iii) ldquoTemos entatildeo uma prova suficiente de que tudo se origina desta maneira as
coisas opostas procedem de seus opostosrdquo (71a9-10) (ἱκανῶς οὖν ἔφη
ἔχομεν τοῦτο ὅτι πάντα οὕτω γίγνεται ἐξ ἐναντίων τὰ ἐναντία πράγματα)
Eis em linhas gerais a estrutura baacutesica do argumento seguida de comentaacuterio
[1] Tudo que tem um oposto proveacutem necessariamente de seu oposto (70e-71a)
[2] Para cada par de opostos existem dois processos opostos se um oposto x
passa a y haacute tambeacutem um processo de um oposto y que passa a x por exemplo
aquecimento eacute o processo do frio ao calor e resfriamento eacute um processo do
quente ao frio (71a11-b10)
59
[3] Se os dois processos natildeo se equilibrassem (se algo viesse a ser quente a partir
de ser frio mas natildeo frio a partir de ser quente tudo findaria quente) tudo
acabaria no mesmo estado) (72a-b)
[4] Tudo natildeo acaba por ficar no mesmo estado (72a-d)
[5] Portanto se algo vem a ser um oposto y a partir de um oposto x ele tambeacutem
viraacute a ser um oposto x a partir de um oposto y (se algo vem a ser quente a partir
de frio ele tambeacutem viraacute a ser frio a partir de quente) (71e4-72a2)
[6] Vivo e morto satildeo opostos (71c-d)
[7] Existe um processo de tornar-se vivo novamente (reviver) a partir do que
estaacute morto assim como existe um processo de tornar-se morto a partir do que
estaacute vivo (71e-72a)
[8] As almas vecircm a morrer a partir de estarem vivas (71d 72a)
[9] Portanto as almas vecircm a estarem vivas a partir de estarem mortas (71d72a)
[10] Portanto as almas dos mortos existem (no Hades em algum lugar)
(71e72a 72d)
A prova eacute estabelecida sobre o princiacutepio de que pares de opostos
obrigatoriamente sofrem determinados processos ciacuteclicos83 O termo ἀναγκαῖον eacute
fundamental na exegese do argumento porque marca esta necessidade ou
obrigatoriedade de que este princiacutepio de mudanccedila ocorra entre pares de opostos natildeo
deixando espaccedilo para exceccedilotildees (Cf70e 71b 72a) Visto dessa maneira o processo
ciacuteclico que ocorre entre pares de opostos eacute perpeacutetuo natildeo tem fim Mas Soacutecrates natildeo
apresenta nenhum argumento vaacutelido para sustentar esta posiccedilatildeo apenas assume que se
83 Gallop 2002 p 103
60
natildeo houvesse um balanccedilo nesse processo ciacuteclico todas as coisas acabariam no mesmo
estado entatildeo tudo chegaria ao fim (72a-d) Portanto o argumento inteiro repousa sobre
uma ideia assumida por Soacutecrates a ideia de que eacute impossiacutevel que tudo acabe no mesmo
estado
Este processo ciacuteclico obrigatoacuterio consiste no seguinte
Para cada par de opostos existem dois processos opostos um processo pelo qual
um oposto x passa a y e um processo pelo qual um oposto y passa a x por
exemplo aquecimento eacute o processo do frio ao calor e resfriamento eacute um
processo do quente ao frio (71a11-b10)
Portanto se algo vem a ser oposto y a partir de oposto x ele tambeacutem viraacute a ser
oposto x a partir de oposto y (se algo vem a ser quente a partir de frio ele
tambeacutem viraacute a ser frio a partir de quente) (71e4-72a2)
A afirmaccedilatildeo de que deve haver processos em ambas as direccedilotildees eacute vital para
qualquer uso efetivo do princiacutepio de que os opostos vecircm dos opostos Este princiacutepio eacute
essencial para o funcionamento do argumento ciacuteclico como um todo84 Caso este
processo ciacuteclico natildeo seja obrigatoriamente mantido ad eternum o argumento possui
uma falha irreparaacutevel Este eacute um dos problemas vitais do argumento como voltaremos a
mencionar adiante Soacutecrates assume a obrigatoriedade do processo com base num
argumento invaacutelido a mera observaccedilatildeo de que nem tudo acaba morto
Em seguida Soacutecrates aplica o princiacutepio ao caso dos opostos vida e morte (71c6-
d3) a fim de provar que o que eacute vivo proveacutem do que eacute morto e o que eacute morto do que eacute
84 Gallop 2002 p109
61
vivo o que segundo ele levaria a uma necessaacuteria conclusatildeo de que lsquoas nossas almas
estatildeo no aleacutemrsquo (70c8-d1) O filoacutesofo afirma que existe um processo de tornar-se vivo
novamente (o reviver passar a viver novamente) (τὸ ἀναβιώσκεσθαι) a partir do que
estaacute morto assim como existe um processo de tornar-se morto a partir do que estaacute vivo
(71e-72a) Este ponto eacute fundamental para a compreensatildeo do argumento e deve ser
entendido a partir de duas ideias que Platatildeo explora no argumento (i) a sua noccedilatildeo de
morte como separaccedilatildeo da alma e corpo e sua admissatildeo de que morte eacute um estado em
que a alma existe separadamente do corpo (64c4-8) (ii) a doutrina da transmigraccedilatildeo da
alma segundo a qual passar a viver novamente (τὸ ἀναβιώσκεσθαι) significa que a alma
que jaacute havia alojado um corpo e lsquomorreursquo (desencarnou) reencarna volta a alojar-se
num corpo No antigo relato e no comentaacuterio seguinte temos o termo πάλιν (70c7-8d1)
para marcar a recorrecircncia a repeticcedilatildeo do ciclo de reencarnaccedilatildeo e implica a ideia de
uma vida preacutevia Platatildeo tambeacutem emprega a expressatildeo lsquoaqueles que vivemrsquo como uma
referecircncia agrave pessoa composta de corpo e alma e lsquoaqueles que morreramrsquo para designar
aquele que jaacute esteve em vida e morreu (a alma desencarnou) (70c8-9)
Portanto quando Soacutecrates diz lsquoo que estaacute morto proveacutem do que estaacute vivorsquo
(71d10-11 72a5-6) seguindo ideia semelhante agravequela que aparece no antigo relato ndash os
vivos provecircm dos que jaacute morreram (ἐκ τῶν ἀποθανόντων τοὺς ζῶντας) (70c8-9) ndash ele
reconhece que a alma que se aloja num corpo estaacute na verdade reencarnando porque
antes de se separar do corpo e descer ao Hades ela jaacute habitava um corpo e chama este
regresso ao corpo de lsquoreviverrsquo (τὸ ἀναβιώσκεσθαι) que eacute o retorno da alma para o
corpo a reencarnaccedilatildeo Em algumas ocasiotildees Soacutecrates faz referecircncia agrave morte da alma e
isto deve ser meramente entendido como a sua separaccedilatildeo do corpo (77d2-4 84b2
88a6)
62
Estabelecido o processo ciacuteclico obrigatoacuterio que ocorre entre os opostos lsquovivorsquo e
lsquomortorsquo ndash lsquotornar-se vivo novamente (reviver) a partir do que estaacute mortorsquo e lsquotornar-se
morto a partir do que estaacute vivorsquo Soacutecrates vecirc a necessidade de concluir que as nossas
alma existem (no Hades)
Vivo e morto satildeo opostos (71c-d)
Existe um processo de tornar-se vivo novamente (reviver) a partir do que estaacute
morto assim como existe um processo de tornar-se morto a partir do que estaacute
vivo (71e-72a)
As almas vecircm a morrer a partir de estarem vivas (71d 72a)
As almas vecircm a estarem vivas a partir de estarem mortas (71d72a)
Portanto as almas dos mortos existem (no Hades em algum lugar) (71e72a
72d)
A conclusatildeo eacute de que as almas dos mortos existem Ao final do argumento
Soacutecrates revisa pontos essenciais que foram tratados e provados segundo ele reviver
os vivos nascem dos mortos e as almas dos mortos existem (72d8-10)
O argumento eacute cheio de problemas e dificilmente pode se estabelecer como
prova suficiente da imortalidade da alma Dentre os problemas destacamos os
seguintes
(i) Para cada par de opostos existem obrigatoriamente dois processos opostos e
com base neles o argumento ciacuteclico visa mostrar que o ciclo de morte e de
renascimento deve continuar ad infinitum porque de outro modo tudo
63
acabaria morto Como diz Hackfort em nenhuma outra hipoacutetese a
continuaccedilatildeo da vida poderia ser explicada sem o processo reverso da morte
para a vida tudo mais cedo ou mais tarde estaria permanentemente morto
Mas ele lembra que esse argumento soacute pode ter forccedila se supormos que natildeo
pode haver vida nova que haacute por exemplo um nuacutemero limite de almas Se
os vivos pudessem ter alguma outra origem que natildeo os mortos a necessidade
loacutegica desse princiacutepio desapareceria Mas Soacutecrates simplesmente assume que
seria impossiacutevel pensar que o processo ciacuteclico obrigatoacuterio natildeo existiria com
base na sua observaccedilatildeo de que nem tudo acaba morto (Cf72a-d)85 Assim a
obrigatoriedade deste processo natildeo parece vaacutelida (72a-d) Eacute plenamente
possiacutevel que haacute coisas que passam de quente a frio e findam neste estado
sem que passem de frio a quente novamente No caso de vida e morte algo
pode vir a morrer a partir de estar vivo e simplesmente findar morto A alma
pode vir a morrer a partir de estar viva e simplesmente terminar morta sem
que necessariamente venha a reencarnar O argumento de que haacute um
necessaacuterio equiliacutebrio no processo natildeo eacute provado
(ii) Alguns termos essenciais para o argumento natildeo satildeo definidos por exemplo
Platatildeo natildeo explica o que ele chama de opostos Aleacutem disso vaacuterios supostos
pares de opostos na verdade natildeo satildeo opostos os adjetivos em forma
comparativa ndash maior e menor mais justo e menos justo ndash natildeo satildeo pares de
opostos (70e4-71a11)
(iii) O argumento apresenta inconsistecircncias lsquoo que estaacute morto proveacutem do que
estaacute vivorsquo (71d10-11 72a5-6) A prova da existecircncia de nossas almas no
85 Hackforth 1998 p64
64
Hades se baseia na ideia de que lsquoas almas provecircm dos mortosrsquo Esta linha
central do argumento eacute problemaacutetica porque estaacute relacionado com a noccedilatildeo de
morte que Soacutecrates apresenta e com a ideia de reencarnaccedilatildeo com base na
qual Soacutecrates emprega a expressatildeo lsquoreviverrsquo A definiccedilatildeo de morte como
separaccedilatildeo da alma e corpo e o reconhecimento de que eles podem existir
separadamente eacute bastante questionaacutevel Em primeiro lugar natildeo se explica e
comprova que alma e corpo podem viver separadamente O corpo comeccedila a
degenerar assim que a alma deixa o corpo seria entatildeo o caso de acontecer o
mesmo com a alma Especialmente depois do argumento das afinidades
Soacutecrates e os amigos discutiratildeo este problema seria o cadaacutever mais
duradouro do que a alma Siacutemias propotildee que o corpo eacute mais duradouro do
que a alma (argumento da alma-harmonia) enquanto Cebes propotildee que a
alma seria mais longeva do que o corpo (argumento do tecelatildeo e seu manto)
mas sofreria degeneraccedilatildeo ao longo dos ciclos de reencarnaccedilatildeo (Cf91d
quando Soacutecrates faz um resumo das duas posiccedilotildees) Todos esses problemas
levantados pelos amigos decorrem em parte desta concepccedilatildeo vaga de morte
apresentada no primeiro estaacutegio do diaacutelogo e com base na qual pelo menos
os primeiros argumentos operam No uacuteltimo argumento a noccedilatildeo de lsquomortersquo eacute
diferente da simples ideia de lsquoseparaccedilatildeo do corporsquo Em segundo lugar no
argumento ciacuteclico a alma viva procede dos que estatildeo mortos a alma que
aloja-se num corpo jaacute se alojara num corpo de algueacutem que morreu Soacutecrates
entende que o processo ciacuteclico do morto para o vivo soacute funciona se lsquomortorsquo
aqui natildeo significa lsquoaniquiladorsquo porque soacute seria possiacutevel vir a estar viva a
partir de estar morta se a alma existisse mesmo quando estaacute morta
65
(desencarnada) (Cf70d1-2) e Soacutecrates natildeo explica por que razatildeo a alma
continua a existir quando deixa o corpo A ideia simultacircnea de lsquomortersquo e
lsquoexistecircnciarsquo (uma alma que morre existe) eacute por demais obscura A alma eacute
morta (separada do corpo) e viva (no sentido de que continua a existir) mas
o se espera eacute que morte implica deixar de existir e natildeo que algo morto
continua a existir Sendo assim o argumento dificilmente se estabelece com
base numa ideia que depende da ideia baacutesica da transmigraccedilatildeo O proacuteprio
Cebes levantaraacute um argumento para mostrar que nada garante ateacute o momento
que a alma que passa por um ciclo de reencarnaccedilotildees natildeo seja aniquilada num
desses ciclos (87d-e)
(iv) O argumento ciacuteclico sustenta que as almas devem oscilar perpetuamente
entre o estado de estar ldquovivordquo (unido a um corpo) e ldquomortordquo (separado de um
corpo) mas enquanto ele visa provar que esses ciclos de reencarnaccedilotildees
ocorrem para sempre Platatildeo natildeo tem nada a dizer propriamente sobre a
natureza da alma se ela eacute realmente imortal imune agrave morte e destruiccedilatildeo O
argumento ciacuteclico acaba sendo uma primeira tentativa malograda de
contrapor a crenccedila de que a alma que se separa do corpo imediatamente
perece com base numa conclusatildeo simples se a alma continua existindo ela
natildeo eacute destruiacuteda na hora da morte
(v) O argumento oferece uma fundamentaccedilatildeo filosoacutefica para a doutrina da
transmigraccedilatildeo da alma mas ao mesmo tempo estaacute em conflito com ela a
doutrina de cunho oacuterfico e pitagoacuterico admite a quebra do ciclo de
reencarnaccedilotildees enquanto o argumento ciacuteclico sugere a continuidade perpeacutetua
deste processo ciacuteclico entre pares de opostos Aleacutem disso Soacutecrates contradiz
66
a si mesmo no diaacutelogo Soacutecrates menciona a libertaccedilatildeo do ciclo de
reencarnaccedilotildees atraveacutes da purificaccedilatildeo o filoacutesofo que se separa do corpo em
estado de pureza sem arrastar consigo elementos corporais rompe o ciclo de
reencarnaccedilotildees e passa a viver com a divindade no Hades (80d-81a) O
proacuteprio mito final tambeacutem contempla a possibilidade de que o ciclo seja
rompido (104c) Talvez Platatildeo queira alinhar o argumento com algum tipo
de versatildeo pitagoacuterica da metempsicose que implique a rotaccedilatildeo infindaacutevel da
alma Zhmud sugere a possibilidade de que oacuterficos e pitagoacutericos divergiam
neste ponto86 Mas isto eacute bastante questionaacutevel
(vi) Os comentaacuterios apresentados jaacute satildeo suficientes para mostrar que o
argumento ciacuteclico falha em estabelecer os trecircs pontos que Soacutecrates considera
ter sido provado o reviver os vivos nascem dos mortos e as almas dos
mortos existem (72d8-10)
Por fim conveacutem apresentar alguns comentaacuterios adicionais sobre o argumento
ciacuteclico como prova da imortalidade da alma
(i) O argumento visa provar que a alma eacute imortal a partir de uma concepccedilatildeo
oacuterifica e pitagoacuterica de imortalidade em funccedilatildeo da transmigraccedilatildeo da alma
O processo ciacuteclico apresentado eacute perpeacutetuo infindaacutevel inquebraacutevel
Soacutecrates natildeo considera qualquer possibilidade de que pudesse haver uma
ruptura num dos ciclos de morte (desencarnaccedilatildeo) e vida (encarnaccedilatildeo) ou
que a alma possa perecer num deles
86 Zhmud 2012 p 228-230
67
(ii) O que o argumento tenta provar de modo especiacutefico eacute que a alma existe
depois da morte por algum tempo indefinido curto espaccedilo de tempo
longo tempo ou por uma duraccedilatildeo infinita87 Portanto somente uma
limitada sobrevivecircncia post-mortem da alma88
O argumento possui um ponto a se considerar se a alma existe depois da morte
isto significa que a alma natildeo eacute dispersa e destruiacuteda na ocasiatildeo imediata agrave sua separaccedilatildeo
da morte (Cf 70a) Esta eacute a primeira tentativa de atacar o problema apresentado Mas os
amigos aperfeiccediloam a exigecircncia seraacute necessaacuterio provar que a alma eacute imortal e natildeo que
possui existecircncia limitada
Tambeacutem eacute importante lembrar que o argumento ciacuteclico no Feacutedon vem sendo
interpretado por muito tempo como sendo um esforccedilo platocircnico para dar
respeitabilidade filosoacutefica agrave antiga doutrina religiosa da transmigraccedilatildeo da alma como jaacute
pensava Wolfe89 Esta posiccedilatildeo eacute seguida por alguns inteacuterpretes contemporacircneos como
Sedley para quem o projeto platocircnico natildeo eacute provar a imortalidade da alma de iniacutecio
mas confirmar a respeitabilidade cientiacutefica de uma tradiccedilatildeo religiosa providenciando
evidecircncias de que ela se conforma com uma lei universal que governa a natureza da
87 O neoplatocircnico Siriano afirma que o objetivo do argumento seria provar apenas que a alma
permanece no Hades seja por um curto espaccedilo de tempo por um longo tempo ou por uma
duraccedilatildeo infinita (Dam I1834-6 Olimp10111-12) (Cf Gertz 2011 p86)
88 Uma opiniatildeo que predominou entre os uacuteltimos inteacuterpretes neoplatocircnicos (Cf Gertz 2011
p95) Barnes (Cf Barnes amp Bonelli (ed) 2011 p306) segue essa posiccedilatildeo entre os
contemporacircneos ele acredita que nada no argumento implica imortalidade da alma concluindo
que o argumento natildeo foi designado para provar a imortalidade mas apenas uma duraccedilatildeo finita
da alma O argumento estaria comprometido em provar a existecircncia da alma em algum lugar
depois da morte e por algum tempo que eacute diferente de provar a imortalidade da alma Ele
ressalta que essa ideia de uma temporaacuteria sobrevivecircncia da morte estaacute presente no contexto mais
geral do Feacutedon como eacute o caso de Cebes a respeito do tecelatildeo e dos mantos que produz (cf 87d-
88b) e natildeo pode ser ignorada no contexto especiacutefico do argumento ciacuteclico
89 Cf Wolfe 1966 p237
68
mudanccedila90 Isto decorre da observaccedilatildeo de que o argumento ciacuteclico confirma o antigo
relato ndash a crenccedila na transmigraccedilatildeo da alma As duas premissas que o argumento ciacuteclico
visa provar satildeo (i) as almas dos que morrem existem no Hades (ii) as almas dos que
partiram existem no Hades de onde regressam para a vida terrena (70c) Vejamos a
comparaccedilatildeo
Antigo relato
As almas dos que morrem existem
no Hades
As almas dos que morrem
existem no Hades de onde
regressam para a vida terrena
Ciacuteclico As almas dos que morrem existem
no Hades (existecircncia post mortem
da alma ndash conclusatildeo do
argumento ciacuteclico)
As almas dos que morrem
existem no Hades antes do
nascimento de onde regressam
para a vida terrena
Mas eacute importante dizer que o argumento natildeo eacute incorporado ao Feacutedon porque
Platatildeo tem o objetivo de defender a crenccedila numa doutrina religiosa como se fosse um
religioso se utilizando da filosofia para fundamentar a sua crenccedila O objetivo claro do
diaacutelogo eacute provar a imortalidade da alma mas nesta primeira tentativa a concepccedilatildeo de
imortalidade se confunde com a de transmigraccedilatildeo
90 Sedley 2012 p147 148
69
Por fim natildeo haacute qualquer sinal de que o argumento ciacuteclico tenha sido bem
avaliado ou aceito pelos amigos de Soacutecrates No decorrer do diaacutelogo fica claro que
Platatildeo se distancia desse tipo de prova e busca desenvolver uma doutrina platocircnica da
imortalidade da alma a partir de uma concepccedilatildeo de imortalidade que independe da
transmigraccedilatildeo da alma embora possa servir agravequeles que sustentam a doutrina Eacute assim
que no uacuteltimo argumento depois de uma discussatildeo que independe do componente
religioso ao final depois de estabelecido que a alma eacute imortal e indestrutiacutevel Soacutecrates
acrescenta e estaacute no Hades (107a1)
A nossa anaacutelise indica que o argumento ciacuteclico natildeo prova efetivamente nem a
existecircncia da alma depois da morte nem a imortalidade da alma
70
4 ARGUMENTO DA REMINISCEcircNCIA (72E ndash 77D)
41 Introduccedilatildeo
Concluiacutedo o argumento ciacuteclico Cebes imediatamente conduz a discussatildeo para o
ensino da reminiscecircncia
ldquoAinda mais Soacutecrates interveio Cebes se for verdade aquela tese que
vocecirc ensina com frequecircncia ndash a de que o nosso aprendizado nada mais eacute
do que reminiscecircncia ndash tambeacutem eacute necessaacuterio que jaacute tenhamos aprendido
em alguma ocasiatildeo no passado as coisas que agora recordamos Mas isto
seria impossiacutevel a menos que a nossa alma existisse em algum lugar
antes de assumir essa forma humana De modo que tambeacutem de acordo
com esse ensino a alma parece ser imortalrdquo (72e1-73a3)
Cebes eacute quem dessa vez sugere a segunda prova da imortalidade da alma De
acordo com a teoria da reminiscecircncia eacute necessaacuterio que jaacute tenhamos aprendido em
alguma ocasiatildeo no passado as coisas que agora simplesmente recordamos A doutrina
da reminiscecircncia tem um papel central em trecircs diaacutelogos platocircnicos Mecircnon Feacutedon e
Fedro mas em cada diaacutelogo a doutrina se mostra peculiar91 O Feacutedon inova com a
vinculaccedilatildeo da doutrina da reminiscecircncia e a ideia das lsquoFormasrsquo uma posiccedilatildeo que natildeo
existe no Mecircnon Como diz Kahn no Mecircnon a imortalidade da alma foi tomada como
91 Cf Kahn in Benson 2011 p 120
71
certa pela autoridade de saacutebios sacerdotes e sacerdotisas enquanto no Feacutedon ela deve
ser provada92
Se a doutrina apresentada no Feacutedon eacute uma continuaccedilatildeo ou natildeo do toacutepico
apresentado no Mecircnon ou se temos ou natildeo no Feacutedon uma apresentaccedilatildeo parcial de uma
soacute teoria desenvolvida ao longo dos trecircs diaacutelogos ndash Mecircnon Feacutedon Fedro ndash eacute uma
questatildeo que fica de fora do escopo de nosso estudo
42 Participaccedilatildeo positiva dos amigos
Com a participaccedilatildeo de Cebes introduzindo o ensino da reminiscecircncia e assim a
segunda prova da imortalidade da alma conveacutem salientar que essa postura positiva e
engajada marca os interlocutores de Soacutecrates no Feacutedon O problema que vai se
revelando ao longo da conversa eacute que os argumentos apresentados por Soacutecrates satildeo
insuficientes para provar a imortalidade da alma e cada uma dessas tentativas frustradas
de provar a imortalidade da alma convida os amigos de Soacutecrates para uma participaccedilatildeo
mais efetiva como acontece quando Cebes pede para Soacutecrates mostrar se o ensino
bastante conhecido pelo ciacuterculo socraacutetico ndash reminiscecircncia ndash poderia provar a
imortalidade da alma (72e-73a) Os amigos de Soacutecrates tecircm uma participaccedilatildeo positiva
no diaacutelogo incentivam Soacutecrates a continuar a discussatildeo avaliam e rejeitam argumentos
apresentam consideraccedilotildees e objeccedilotildees sempre com o fim de obter a prova da
imortalidade da alma Eles satildeo muito mais do que supostos saacutebios que desconhem
aquilo que julgam conhecer com maestria Vejamos alguns exemplos
92 Kahn in Benson 2011 p 123
72
(i) Na primeira etapa do Feacutedon Cebes confronta a atitude de Soacutecrates diante
da morte baseada apenas em sua convicccedilatildeo de cunho religioso o que o
mestre havia dito sobre a alma produz duacutevidas sobretudo naqueles que
acolhem a crenccedila popular de que a alma se dispersaria e seria destruiacuteda
por ocasiatildeo da morte Eacute tambeacutem Cebes quem sugere que seria nessaacuteria
lsquouma demonstraccedilao natildeo muito pequenarsquo para satisfazer a necessidade de
provar que a alma natildeo se dispersa e eacute destruiacuteda como essas pessoas
dizem (69e-70a)
(ii) O segundo argumento eacute na verdade introduzido por Cebes que
certamente entende que haacute necessidade de que Soacutecrates apresente outra
prova da imortalidade da alma uma vez que a primeira natildeo o havia
convencido (72e-73a)
(iii) Ao final do segundo argumento Siacutemias e Cebes tem uma participaccedilatildeo
essencial em apontar falhas no argumento da reminiscecircncia e desafiar
Soacutecrates a construir um novo argumento porque ainda natildeo se havia dado
uma resposta capaz de responder agrave crenccedilas das pessoas comuns de que a
alma se dispersaria e pereceria por ocasiatildeo da morte (77b-c)
(iv) Ainda na transiccedilatildeo para o terceiro argumento eacute Cebes quem pede que
Soacutecrates os liberte do temor pueril de que a alma eacute passiacutevel de dispersatildeo
e destruiccedilatildeo o que nada mais eacute do que um claro apelo para que o mestre
Soacutecrates o uacutenico capaz de provar que a alma eacute imortal conceda-lhes
uma prova satisfatoacuteria da imortalidade da alma (77e)
(v) Depois do argumento das afinidades os amigos de Soacutecrates ressaltam
que natildeo havia sido apresentada uma prova suficiente e Cebes ao final
73
exige que se demonstre ldquoque a alma eacute completamente imortal e
indestrutiacutevelrdquo (ὅτι ἔστι ψυχὴ παντάπασιν ἀθάνατόν τε καὶ ἀνώλεθρον)
(88b5-6) Essa exigecircncia de Cebes eacute acolhida por Soacutecrates e o argumento
final tenta responder precisamente a esta exigecircncia o que se pode ver na
sua conclusatildeo de que lsquoa alma eacute imortal e indestrutiacutevelrsquo (ψυχὴ ἀθάνατον
καὶ ἀνώλεθρον) (106e-107a)
Analisando os trecircs primeiros argumentos a partir das intervenccedilotildees dos amigos eacute
possiacutevel observar que eles ajudam a entender o que natildeo eacute uma prova suficiente e
satisfatoacuteria da imortalidade da alma
(i) A prova da imortalidade da alma natildeo eacute uma prova da existecircncia da alma
post mortem (argumento ciacuteclico)
(ii) A prova da imortalidade da alma natildeo eacute uma prova da preexistecircncia da
alma (argumento da reminiscecircncia)
(iii) A prova da imortalidade da alma natildeo eacute uma prova de que a alma eacute
semelhante ao que eacute completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso
(argumento das afinidades)
Adiante Cebes deixaraacute claro que eacute necessaacuterio provar que a alma eacute
completamente imortal e indestrutiacutevel e natildeo apenas que ela eacute capaz de existir por um
tempo determinado (88a) Soacutecrates acolheraacute a sua exigecircncia e no uacuteltimo argumento
tenta provar justamente que a alma eacute imortal e indestrutiacutevel (ψυχὴ ἀθάνατον καὶ
ἀνώλεθρον) (Cf 106d8-107a1)
74
43 Fundamento e condiccedilotildees para reminiscecircncia (72e-74a)
O nosso aprendizado nada mais eacute do que reminiscecircncia eacute necessaacuterio que jaacute
tenhamos aprendido em alguma ocasiatildeo no passado as coisas que agora recordamos
(Cf72e1-73a3) Em suma reminiscecircncia ocorre basicamente quando algueacutem se recorda
de x atraveacutes de y Por exemplo quando algueacutem se recorda de Siacutemias atraveacutes do retrato
de Siacutemias Mas Platatildeo apresenta uma seacuterie de condiccedilotildees que devem acompanhar este
ato cognitivo para que seja propriamente caracterizado como reminiscecircncia
Depois que Cebes propotildee o novo argumento e Soacutecrates preliminarmente
conversa com Siacutemias e revisa o essencial sobre o ensino da reminiscecircncia Soacutecrates
apresenta um tipo de prefaacutecio ao argumento propriamente dito no qual ele introduz
condiccedilotildees gerais para que ocorra a reminiscecircncia em 73c-74a como indica Soacutecrates
dizendo que lsquose algueacutem for recordar algo eacute necessaacuterio quersquo (εἴ τίς τι ἀναμνησθήσεται
δεῖν) (73c1-3) Um determinado ato cognitivo soacute poderaacute ser apropriadamente
chamado de reminiscecircncia ndash em 73c temos o verbo ἀναμιμνήσκω e o substantivo
ἀνάμνησις ndash se cumpridas essas condiccedilotildees apresentadas em 73c-74a Seguimos a
sugestatildeo de Scott que identifica quatro condiccedilotildees93
(i) Noacutes devemos ter conhecido x antecipadamente (73c1-3) lsquose algueacutem for
recordar algo eacute necessaacuterio que jaacute tivesse obtido previamente esse
conhecimentorsquo
(ii) Noacutes devemos natildeo apenas reconhecer y mas tambeacutem pensar sobre x
(73c6-8) lsquoQuando algueacutem vecirc ouve ou tem uma outra percepccedilatildeo de algo
93 Scott 1995 p 55
75
e natildeo somente conhece isso mas tambeacutem lhe vem agrave mente um segundo
item ()rsquo
(iii) x natildeo deve ser objeto do mesmo conhecimento que y mas de outro
(73c8-9) lsquoQuando algueacutem vecirc ouve ou tem uma outra percepccedilatildeo de algo
e natildeo somente conhece isso mas tambeacutem lhe vem agrave mente um segundo
item mas que natildeo eacute objeto do mesmo conhecimento mas de um distinto
do primeiro natildeo seria correto dizer que recordou esse segundo item que
lhe veio agrave mentersquo A partir de 73d temos vaacuterios exemplos de
reminiscecircncia
bull amantes veem uma lira um manto ou algum outro objeto de seus amados
e recordam-se da imagem do amado
bull algueacutem vecirc a pintura de um cavalo ou a pintura de uma lira e recorda-se
de uma pessoa
bull algueacutem vecirc a pintura de Siacutemias e recorda-se de Cebes
bull algueacutem vecirc a pintura de Siacutemias e recorda-se de Siacutemias
(iv) quando x lembra y devemos considerar se y estaacute deficiente em alguma
coisa em relaccedilatildeo a x (74a5-7) lsquomas sempre que se recorda de algo a
partir de coisas semelhantes natildeo passa necessariamente pela experiecircncia
de pensar ateacute que ponto o objeto a partir do qual se recordou e o objeto
recordado se assemelhamrsquo
Essas condiccedilotildees teratildeo crucial importacircncia no desenvolvimento do argumento
mas agora vejamos a quarta condiccedilatildeo com mais cuidado Soacutecrates fala que pode haver
dois tipos de reminiscecircncia aquela a partir de itens semelhantes ao que foi recordado e
76
a partir de itens dissemelhantes (74a2-3) Soacutecrates passa a discorrer sobre a
reminiscecircncia a partir de itens semelhantes (ἀφ ὁμοίων) e apresenta seu exemplo
emblemaacutetico quando algueacutem vecirc a proacutepria pintura de Siacutemias e recorda-se do proacuteprio
Siacutemias (73e9-10) Nesse caso o filoacutesofo impotildee uma experiecircncia adicional (προσπάσχω)
e necessaacuteria (ἀναγκαῖον) no processo de recordaccedilatildeo uma condiccedilatildeo sine qua non
quando x lembra y devemos considerar se y estaacute deficiente em alguma coisa em relaccedilatildeo
a x (74a5-7) No caso do retrato por exemplo a reminiscecircncia tem que cumprir a
seguinte condiccedilatildeo eacute necessaacuterio perceber (ἐννοέω) se a semelhanccedila entre o retrato e
Siacutemias apresenta uma deficiecircncia no que concerne agrave similaridade (τι ἐλλείπει κατὰ
τὴν ὁμοιότητα) em relaccedilatildeo ao que a pintura recorda ndash Siacutemias (74a5-7) Aquele que olha
para o retrato de Siacutemias e recorda Siacutemias deve perceber a semelhanccedila que existe entre
Siacutemias o seu retraro mas tambeacutem perceber a deficiecircncia no que concerne agrave similaridade
do retrato em relaccedilatildeo agravequele que ele representa Neste caso Platatildeo certamente tenta
estabelecer o que a leitura natural do texto indica natildeo importa quatildeo bom seja o retrato
seraacute uma coacutepia do ldquooriginalrdquo e para que haja reminiscecircncia eacute necessaacuterio que se perceba
natildeo apenas a semelhanccedila evidente entre um retrato de boa qualidade e a pessoa que ele
lembra mas eacute imperativo que se perceba a deficiecircncia no que concerne agrave similaridade
do retrato em relaccedilatildeo agravequele que ele representa Eacute com essa uacuteltima condiccedilatildeo em curso
que Platatildeo introduz o ceacutelebre e paradigmaacutetico exemplo no argumento a reminiscecircncia
que ocorre quando algueacutem vecirc coisas iguais e se recorda do igual em si
77
44 Igual em si e coisas iguais (74a-74e)
O apelo inicial de Soacutecrates eacute para que se examine (σκοπέω) se lsquoo igual existersquo
ou se lsquoo igual eacute algorsquo (τι εἶναι ἴσον) que eacute em essecircncia uma questatildeo variante de 65d4-5
φαμέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν (65d4-5)
φαμέν πού τι εἶναι ἴσον (74a9-10)
Em seguida comeccedila o processo de caracterizaccedilatildeo daquilo que se afirma existir
comeccedilando com a distinccedilatildeo baacutesica entre lsquoo igual em sirsquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) e lsquoas coisas ditas
iguai como um pedaccedilo de madeira igual a outro uma pedra igual a outra ou a qualquer
coisa desse tipo sendo coisas de natureza diferente (74a9-12) Platatildeo desenvolve esta
distinccedilatildeo ao longo do argumento sobretudo explorando a condiccedilatildeo para reminiscecircncia
que mencionamos antes quando x lembra y devemos considerar se y estaacute deficiente em
alguma coisa em relaccedilatildeo a x (74a5-7)
Embora a questatildeo φαμέν πού τι εἶναι ἴσον (74a9-10) ainda continua obscura de
iniacutecio no argumento da reminiscecircncia ou seja nas primeiras linhas do argumento ainda
natildeo estaacute claro o que se quer dizer com lsquoo igual eacute algorsquo ou lsquoo igual existersquo ao longo do
argumento da reminiscecircncia o leitor percebe a tentativa consistente de estabelecer a
existecircncia de coisas como lsquoo igual em sirsquo de distinguir lsquoo igual em sirsquo das coisas
sensiacuteveis enquanto se estabelece a tese epistemoloacutegica de que conhecer eacute recordar o
conhecimento de coisas como lsquoo igual em sirsquo eacute apenas rememoraccedilatildeo daquele
conhecimento que a alma adquiriu antes do nascimento o que para Soacutecrates e seus
amigos prova que a alma jaacute existia antes de reencarnar
78
Portanto eacute neste contexto do argumento da reminiscecircncia que uma corrente
majoritaacuteria de interpretaccedilatildeo aponta pela primeira vez o que se entende por teoria das
Formas sendo lsquoigual em sirsquo uma Forma metafiacutesica que a alma conhece antes de nascer
numa condiccedilatildeo de pureza separada do corpo Vejamos o posicionamento de alguns
inteacuterpretes
(i) Gallop acredita que
bull A Teoria das Formas eacute introduzida em 65d e estaacute em cena no
argumento da reminiscecircncia
bull A pergunta φαμέν πού τι εἶναι ἴσον (lsquoo igual eacute algorsquo) remete agrave
existecircncia de Formas metafiacutesicas
bull A doutrina da imortalidade eacute logicamente dependente da Teoria
das Formas e isto eacute declarado claramente em 76e-77a 92d-e and
l00b) firmando-se como teoria fundamental para o argumento da
reminiscecircncia
bull A Teoria das Formas eacute assumida em todo o diaacutelogo mas natildeo
provada94
(ii) Kahn por semelhante modo
94 Gallop 2002 p93 Cf Hackfort 1998 p69 97
79
bull A doutrina das Formas jaacute estaacute impliacutecita na descriccedilatildeo do objetivo
do filoacutesofo de ldquocontemplar as coisas em si com a proacutepria almardquo
(68e)
bull Eacute somente no argumento da reminiscecircncia que Soacutecrates comeccedila a
especificar a distinccedilatildeo ontoloacutegica entre Formas e Participantes
(74b-c) e eacute fundamental para a concepccedilatildeo da alma implicada no
argumento da imortalidade
bull A funccedilatildeo preciacutepua da teoria da reminiscecircncia consiste em
estabelecer a condiccedilatildeo transcendental da alma por meio de seu
elo cognitivo com o ser transcendente 95
Agora voltaremos ao argumento e retomaremos esta questatildeo da teoria das
Formas posteriormente
Existe um igual
A primeira questatildeo ndash Existe um igual ndash eacute respondida por Siacutemias com grande
convicccedilatildeo (74a) A existecircncia dessas coisas que Soacutecrates chama agora de lsquoigual em sirsquo eacute
simplesmente assumida no argumento O argumento da reminiscecircncia depende em sua
origem de algo que as personagens simplesmente assumem que existe lsquoo igual em sirsquo
Ao longo de sua explanaccedilatildeo do mecanismo da reminiscecircncia Platatildeo caracteriza
lsquoo igual em sirsquo em contraste com as coisas sensiacuteveis e nos daacute uma compreensatildeo melhor
95 Cf Kahn in Benson 2011 p 124
80
do objeto em questatildeo Eacute importante observar como esta estapa introdutoacuteria do
argumento eacute de iniacutecio conduzida a partir de pelo menos trecircs questotildees encadeadas
(i) Diriacuteamos como presumo que existe um igual () o igual em si
Diremos que isso existe ou natildeo (74a)
φαμέν πού τι εἶναι ἴσον () αὐτὸ τὸ ἴσον φῶμέν τι εἶναι ἢ μηδέν
(ii) E tambeacutem sabemos o que eacute isso (74b)
ἦ καὶ ἐπιστάμεθα αὐτὸ ὃ ἔστιν
(iii) De onde adquirimos o conhecimento disso (74b)
πόθεν λαβόντες αὐτοῦ τὴν ἐπιστήμην
E tambeacutem sabemos o que eacute isso
A segunda questatildeo ndash lsquoE tambeacutem sabemos o que eacute issorsquo (74b) levanta um
problema sobre quem pode rememorar A primeira pessoa do plural ndash lsquoE tambeacutem
sabemos o que eacute issorsquo (74b) ndash e as condiccedilotildees para a reminiscecircncia apresentadas no
argumento sugerem que apenas os filoacutesofos podem rememorar Encontramos pelo
menos trecircs possiacuteveis interpretaccedilotildees de reminiscecircncia
(i) Interpretaccedilatildeo sofisticada lsquonoacutesrsquo em 74b indica um grupo seleto de
filoacutesofos iluminados que conhecem as Formas e com a posse desse
conhecimento esses filoacutesofos somente (no Feacutedon o ciacuterculo socraacutetico)
podem atender agraves condiccedilotildees para a reminiscecircncia dentre elas a condiccedilatildeo
crucial o reconhecimento da deficiecircncia de pedras e paus em contraste
81
com o Igual em si mesmo Reminiscecircncia ocorre quando em resposta agrave
percepccedilatildeo sensorial recordamos de uma Forma Scott acredita que em
74b Soacutecrates se concentra no conhecimento de uma uma entidade muito
distante do pensamento da maioria das pessoas a Forma da igualdade
Reminiscecircncia requer o conhecimento de Formas transcendentes e
apenas os filoacutesofos tecircm acesso a esse tipo niacutevel de conhecimento96
Franklin aponta um dos grandes problemas desta interpretaccedilatildeo se a
recordaccedilatildeo eacute restrita a uma classe seleta de aprendizes o argumento da
reminiscecircncia seria destinado a mostrar a preacute-existecircncia da alma somente
para aqueles que cumprem os requisitos97
(ii) Interpretaccedilatildeo ordinaacuteria lsquonoacutesrsquo em 74b remete ao ato cognitivo realizado
por todas as pessoas Reminiscecircncia diz respeito ao aprendizado
ordinaacuterio que qualquer pessoa pode experienciar O contexto do diaacutelogo
que visa provar a imortalidade da alma das pessoas em geral natildeo apenas
de Soacutecrates e dos socraacuteticos favorece essa leitura98 Embora esta leitura
seja favorecida pelo contexto geral do diaacutelogo o contexto imediato
parece deixar claro que apenas filoacutesofos podem praticar reminiscecircncia
nos moldes apresentados aqui conhecimento do lsquoigual em sirsquo e
capacidade para cumprir as condiccedilotildees de reminiscecircncia
(iii) Interpretaccedilatildeo conciliatoacuteria estamos chamando de interpretaccedilatildeo
conciliatoacuteria aquela proposta por Kahn que tenta harmonizar as
interpretaccedilotildees sofisticada e ordinaacuteria Ele acredita que haacute duas teses em
96 Scott 1995 p56 97 Franklin 2005 p290 98 Franklin 2005 p289290
82
questatildeo no argumento uma a respeito da cogniccedilatildeo de todas as pessoas
todas rememoram todas se referem agraves Formas em todo juiacutezo perceptivo
mas apenas de modo inconsciente se referem ao Igual em si quando
julgam que pedaccedilotildees de paus e pedras satildeo iguais a outra tese diz respeito
agrave reminiscecircncia para filoacutesofos somente filoacutesofos quando rememoram
podem distinguir entre Formas e particulares e reconhecer a deficiecircncia
dos uacuteltimos99
A tentativa de conciliaccedilatildeo de Kahn parece a mais prudente Eacute inegaacutevel que
Platatildeo esteja apresentando condiccedilotildees para reminiscecircncia que apenas os filoacutesofos
(ciacuterculo socraacutetico) podem cumprir por outro lado a interpretaccedilatildeo estritamente
sofisticada eacute improvaacutevel porque natildeo se pode esperar que Platatildeo esteja querendo provar
apenas a imortalidade da alma de Soacutecrates e seus amigos Ao que parece todas as
pessoas podem lsquorememorarrsquo aquilo que a alma conheceu antes do nascimento mas
nigueacutem exceto o filoacutesofo saberia dar um relato (διδόναι λόγον) a respeito da
reminiscecircncia (76b) Portanto as condiccedilotildees para a reminiscecircncia devem ser cumpridas
por todas as pessoas mas de modo consciente pelos filoacutesofos
De onde adquirimos o conhecimento disso
A terceira questatildeo ndash lsquoDe onde adquirimos o conhecimento dissorsquo (74b) ndash visa
esplicar o mecanismo de reminiscecircncia dando atenccedilatildeo especial para a seguinte condiccedilatildeo
para reminiscecircncia x natildeo deve ser objeto do mesmo conhecimento que y mas de outro
99 Kahn in Benson 2011 p 124
83
O emprego do verbo lsquoconhecerrsquo (ἐπίσταμαι) e do substantivo lsquoconhecimentorsquo
(ἐπιστήμη) (74b) revela que Platatildeo estaacute tratando de atos cognitivos lsquoE tambeacutem sabemos
o que eacute issorsquo (καὶ ἐπιστάμεθα αὐτὸ ὃ ἔστιν) lsquoDe onde adquirimos o conhecimento
dissorsquo (πόθεν λαβόντες αὐτοῦ τὴν ἐπιστήμην) (74b) Vejamos a explicaccedilatildeo de
Soacutecrates recordando tambeacutem a condiccedilatildeo apresentada haacute pouco antes
ldquoQuando algueacutem vecirc ouve ou tem uma outra percepccedilatildeo de algo e natildeo
somente conhece isso mas tambeacutem lhe vem agrave mente um segundo item
mas que natildeo eacute objeto do mesmo conhecimento mas de um distinto do
primeiro natildeo seria correto dizer que recordou esse segundo item que lhe
veio agrave menterdquo(73c)
ldquoQuando vemos gravetos pedras e outras coisas iguais acaso trazemos agrave
mente a partir dessas coisas aquilo que eacute diferente delasrdquo (74b)
ldquoEntatildeo perguntou eacute mesmo a partir dessas coisas iguais que vocecirc traz agrave
mente e adquire o conhecimento do Igual ainda que Igual e coisas iguais
sejam diferentesrdquo (74c)
Agora a questatildeo especiacutefica eacute como recordamos a lsquoo igual em sirsquo cujo
conhecimento adquirimos antes do nascimento O problema inicial que temos eacute
o papel dos sentidos no mecanismo de reminiscecircncia Quando utilizamos os
sentidos (αἴσθησις) natildeo somente conhecemos (γιγνώσκω) os objetos sensiacuteveis
(paus e pedras iguais por exemplo) mas tambeacutem nos vem agrave mente (ἐννοέω) um
84
segundo item (lsquoFormarsquo) (Cf 73c) Ao que parece existem dois atos cognitivos
integrados no mecanismo de reminiscecircncia o primeiro ato eacute o de conhecer
(γιγνώσκω) um objeto sensiacutevel pelo uso de αἴσθησις Quando isto ocorre um
outro ato cognitivo eacute disparado em conjunto mas tambeacutem vem agrave mente
(ἐννοέω) um segundo item (73c) Eacute assim que deve acontecer quando
recordamos o lsquoigual em sirsquo cujo conhecimento obtemos antes de nascer pelo uso
de αἴσθησις vemos gravetos pedras e outras coisas iguais e a partir disso um
outro ato cognitivo eacute disparado em conjunto a partir dessas coisas (ἐκ τούτων)
trazemos agrave mente aquilo (ἐκεῖνο ἐνενοήσαμεν) (74b) Em 74c Soacutecrates repete a
ideia dizendo que eacute a partir dessas coisas iguais (ἐκ τούτων τῶν ἴσων) que se
traz agrave mente (ἐννοέω) e se toma (λαμβάνω) o conhecimento (ἐπιστήμη) do Igual
Esta ideia de que pensamos ou adquirimos conhecimento do Igual a
partir das coisas sensiacuteveis eacute recorrente no argumento (74c710 75a5-7 75a11-
b3 cf75e3-5) o seu significado remete agrave questatildeo ndash lsquoDe onde adquirimos o
conhecimento disso (74b)rsquo (πόθεν λαβόντες αὐτοῦ τὴν ἐπιστήμην) ndash mas
ainda eacute difiacutecil entender precisamente o que significam expressotildees como
πόθενἐκ τούτωνἐκ τούτων τῶν ἴσων Se Platatildeo estiver realmente assumindo
que natildeo haacute outra maneira de adquirir o conhecimento do Igual mas por meio
dos sentidos somente sugere-se uma ideia diferente daquela apresentada ao
longo do diaacutelogo a de que os sentidos satildeo despreziacuteveis obstaacuteculos na busca do
filoacutesofo pelas lsquoFormasrsquo Essa caracterizaccedilatildeo extremamente pejoritaacuteria dos
sentidos e dos sensiacuteveis permanece no diaacutelogo ateacute a autobiografia intelectual de
Soacutecrates quando o filoacutesofo declara que seu novo modo de investigaccedilatildeo exclui a
utilizaccedilatildeo de αἴσθησις (99d4-e6)
85
Na primeira etapa do diaacutelogo em 65andash66a Platatildeo explica como
podemos adquirir conhecimento e parece ficar claro que natildeo pode ser atraveacutes
dos sentidos Fine apresenta assim a estrutura do argumento na primeira parte do
diaacutelogo (65a9ndashc10)
1 Os sentidos corporais natildeo satildeo precisos nem claros
2 Portanto natildeo podemos perceber nada com precisatildeo ou clareza
3 Portanto a percepccedilatildeo natildeo conteacutem qualquer verdade
4 Portanto sempre que a alma indaga (zetein 65a10) ou considera
(skopein 65b10) algo junto com o corpo ela eacute enganada pelo corpo
5 Portanto a alma natildeo pode alcanccedilar a verdade quando indaga ou
considera algo junto com o corpo
6 Se algueacutem natildeo consegue alcanccedilar a verdade natildeo pode alcanccedilar a
sabedoria
7 Portanto a percepccedilatildeo natildeo pode atingir a sabedoria nem a alma pode
alcanccedilar a sabedoria se investigar ou considerar algo junto com o
corpo
8 Portanto eacute pelo raciociacutenio que qualquer uma das coisas que satildeo se
torna manifesta para a alma
9 Portanto se a alma pode atingir a sabedoria seraacute pelo raciociacutenio100
No argumento da reminiscecircncia os sentidos desempenham um papel no
mecanismo de reminiscecircncia que permite a algueacutem rememorar a lsquoFormarsquo a partir
100 Fine 2016 p559
86
das coisas sensiacuteveis Por outro lado eacute pouco provaacutevel que por πόθενἐκ
τούτωνἐκ ἐκ τούτων τῶν ἴσων Platatildeo queira enfatiza a suficiecircncia das coisas
sensiacuteveis como objetos capazes de nos fazer trazer as lsquoFormasrsquo agrave mente
Provavelmente os objetos particulares oferecem um primeiro estiacutemulo para um
segundo ato cognitivo em que a alma utiliza o intelecto para alcanccedilar aquele
conhecimento esquecido das lsquocoisas em sirsquo Quando algueacutem vecirc paus e pedras
iguais o estiacutemulo dos sensiacuteveis como que aperta o gatilho para um segundo ato
cognitivo quando a alma atraveacutes da atividade intelectiva traz agrave mente o
conhecimento das lsquoFormasrsquo (75a4) o qual jaacute possuiacuteamos originalmente antes do
nascimento e que esquecemos ao nascer na ocasiatildeo em que a alma se aloja num
corpo (Cf75b-77a) Ainda assim enquanto presa ao corpo o maacuteximo que a
alma faz eacute rememorar o conhecimento adquirido previamente e natildeo adquirir o
conhecimento original da lsquoFormarsquo em primeira matildeo Portanto o papel da
percepccedilatildeo sensiacutevel eacute importante mas bastante restrito Na ausecircncia do corpo a
alma pode ter contato direto com as lsquoFormasrsquo
Ainda assim a participaccedilatildeo dos sentidos no mecanismo de reminiscecircncia
continua sendo difiacutecil de conciliar com a caracterizaccedilatildeo extremamente negativa
dos sentidos no diaacutelogo No argumento da afinidade a alma que se utiliza do
corpo para fazer qualquer tipo de consideraccedilatildeo eacute arrastada por ele para os
objetos sensiacuteveis e logo entra em estado de confusatildeo como se estivesse becircbada
por estar em contato com objetos desse tipo (Cf79c) A soluccedilatildeo parece
abandonar completamente os sentidos o que Soacutecrates faraacute com o seu novo modo
de investigaccedilatildeo (99d4-e6)
87
Distinccedilatildeo entre lsquoigual em sirsquo e lsquocoisas iguaisrsquo
Para que haja reminiscecircncia lsquoo igual em sirsquo que eacute rememorado deve ser um
objeto de conhecimento diferente das coisas sensiacuteveis Aleacutem disso eacute necessaacuterio
reconhecer a deficiecircncia das coisas sensiacuteveis em contraste com lsquoo igual em sirsquo A
distinccedilatildeo entre lsquoigual em sirsquo e lsquocoisas iguaisrsquo eacute fundamental para o mecanismo de
reminiscecircncia Esta distinccedilatildeo eacute basicamente expressa a partir da caracterizaccedilatildeo da
inferioridade ou deficiecircncia de coisas sensiacuteveis com o lsquoigual em sirsquo (74d-75b) A
reminiscecircncia requer que noacutes apontemos a diferenccedila entre τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον
quando x lembra y devemos considerar se y estaacute deficiente em alguma coisa em relaccedilatildeo
a x Aquele que rememora deve reconhecer que (75b5-8)
(i) Todas as coisas sensiacuteveis querem (προθυμέομαι) ser tal como (οἷον) lsquoo
igualrsquo
(ii) mas satildeo inferiores (φαῦλος) a ele
Aqui o texto eacute obscuro e natildeo fornece detalhes para a compreensatildeo dessa ideia de
deficiecircncia entre as lsquocoisas sensiacuteveisrsquo e lsquoo igual em sirsquo Natildeo apenas a ideia de
lsquodeficiecircnciarsquo lsquoinferioridadersquo (φαῦλος) eacute vaga mas tambeacutem a ideia de que coisas
sensiacuteveis como paus e pedras iguais tecircm um desejo ardoroso por ser do mesmo tipo do
igual em si O que fica claro eacute que Platatildeo estaacute tratando de duas classes de coisas e que
uma eacute nobre (igual em si) a outra vulgar (φαῦλος) (coisas iguais) Essa distinccedilatildeo seraacute
bem desenvolvida no argumento das afinidades Mas por enquanto Platatildeo nos priva de
88
mais informaccedilotildees A obscuridade da noccedilatildeo de lsquodeficiecircnciarsquo e de lsquozelo ardorosorsquo eacute
realmente uma fraqueza na exposiccedilatildeo da condiccedilatildeo a ser cumprida por quem rememora
45 Estrutura Baacutesica do Argumento da Reminiscecircncia
Depois de explicar em linhas gerais o mecanismo de reminiscecircncia eacute possiacutevel
agora observar a estrutura geral do argumento e em seguida desenvolver o ponto preciso
do qual decorre a conclusatildeo de que a alma continua a existir depois da morte Eis a
estrutura do argumento seguida de um comentaacuterio
[1] Noacutes necessariamente (ἀναγκαῖον) conheciacuteamos previamente (προειδέναι) o
Igual quando pela primeira vez vimos as coisas iguais e pensamos (ἐννοεῖν) que
elas tentam ser como o Igual mas satildeo inferiores a elas (74e9-75a3)
[2] Noacutes natildeo pensamos no Igual nem haacute chance de isso ter acontecido exceto
pelos sentidos (τῶν αἰσθήσεων) (75a5-7)
[3] Tudo percebido pelos sentidos se esforccedila para ser como o Igual mas eacute
inferior (75b12)
[4] Noacutes devemos necessariamente ter adquirido o conhecimento (λαμβάνειν
ἐπιστήμην) original do Igual antes mesmo de utilizar os sentidos (75b4-8)
[5] Noacutes natildeo podemos ter adquirido o conhecimento original do Igual a partir
dessas coisas inferiores (sensiacuteveis) (75b4-8)
[6] Noacutes devemos ter adquirido o conhecimento original do Igual (e de todas as
outras coisas desse tipo) antes mesmo de utilizar os sentidos (75c4-5)
[7] Noacutes comeccedilamos a utilizar os sentidos quando nascemos (75b10-11)
89
[8] Portanto a nossa alma existiu antes do nascimento e possuiacutea conhecimento
do Igual (76c)
A ideia central do argumento eacute a necessidade de termos adquirido conhecimento
do igual em si antes do uso dos sentidos porque nem os sentidos nem os objetos
sensiacuteveis podem fornecer esse conhecimento Jaacute que comeccedilamos a usar os sentidos na
ocasiatildeo do nascimento a alma deve ter conhecido o igual em si antes do nascimento e
portanto a alma existe (e tem conhecimento do igual) antes do nascimento
Embora a rememoraccedilatildeo ocorra a partir dos sentidos a aquisiccedilatildeo original do
conhecimento das lsquoFormasrsquo natildeo pode ocorrer a partir do domiacutenio das coisas sensiacuteveis
porque eacute um domiacutenio de coisas inferiores deficientes que natildeo podem servir de fonte
primaacuteria para a obtenccedilatildeo do conhecimento original da lsquoFormarsquo Ateacute mesmo a
rememoraccedilatildeo do conhecimento adquirido previamente eacute difiacutecil e nem mesmo a
explanaccedilatildeo de como isto ocorre eacute bem clara O conhecimento original da lsquolsquoFormarsquo natildeo
pode ser obtido enquanto alma reencarnada e nem mesmo eacute faacutecil recuperar o
conhecimento jaacute adquirido Apenas quando a alma estaacute separada do corpo eacute que poderia
ganhar conhecimento original da lsquolsquoFormarsquo
A ideia de que eacute impossiacutevel adquirir conhecimento das coisas em si atraveacutes do
estiacutemulo dos objetos particulares eacute um dos pontos essenciais que levaratildeo agrave conclusatildeo de
que a alma soacute pode ter adquirido este conhecimento antes de nascer Quando relata a
inferioridade dos objetos sensiacuteveis em contraste com o igual em si Soacutecrates reconhece
que natildeo eacute possiacutevel que por meio da nossa percepccedilatildeo de objetos sensiacuteveis deficientes
possamos ter um conhecimento original do Igual em si A proacutepria capacidade de
observar que lsquosensiacuteveisrsquo querem ser tal como lsquoa coisa em sirsquo mas satildeo inferiores requer
90
obrigatoriamente um conhecimento preacutevio da lsquocoisa em sirsquo que se assemelha com o
objeto sensiacutevel o qual eacute deficiente e inferior em contraste com a lsquocoisa em sirsquo Por meio
da nossa percepccedilatildeo do domiacutenio dos sensiacuteveis seria impossiacutevel reconhecer a deficiecircncia
de pedras e paus iguais em contraste com o igual em si A proacutepria natureza deficiente do
domiacutenio dos sensiacuteveis eacute incapaz de providenciar conhecimento daquilo que eacute nobre
superior Pelo seu caraacuteter coisas sensiacuteveis natildeo podem ser fonte suficiente para o
conhecimento da lsquoFormarsquo A uacutenica resposta plausiacutevel para este problema segundo a
personagem Soacutecrates eacute que a nossa alma deve ter obtido o conhecimento do lsquoigual em
sirsquo antes mesmo de utilizar os sentidos porque ao utilizar os sentidos e perceber que a
deficiecircncia de paus e pedras em contraste com o igual em si a pessoa jaacute estaacute fazendo
uso desse conhecimento original do lsquoigual em sirsquo Essa ideia central jaacute comeccedila a ser
desenvolvida depois do mecanismo de reminiscecircncia ter sido explicado a partir de 74e
ldquoNoacutes necessariamente (ἀναγκαῖον) conheciacuteamos previamente (προειδέναι) o Igual
quando pela primeira vez vimos as coisas iguais e pensamos (ἐννοεῖν) que elas tentam
ser como o Igual mas satildeo inferiores a elasrdquo (74e9-75a3) Quando pela primeira vez
utilizamos os sentidos e jaacute podemos reconhecer a diferenccedila entre lsquosensiacuteveisrsquo e lsquoFormasrsquo
eacute necessaacuterio que nesta ocasiatildeo jaacute tenhamos obtido previamente o conhecimento da
lsquoFormarsquo Conforme Soacutecrates se jaacute comeccedilamos a utilizar os sentidos ao nascer
possuiacutemos conhecimento do igual em si antes mesmo do nascimento e as nossas almas
jaacute existiam antes do nascimento (75c)
91
46 Avaliaccedilatildeo do argumento
Ao final do argumento Soacutecrates acredita que provou que a alma existe antes do
nascimento lsquoPortanto a nossa alma existiu antes do nascimento e possuiacutea
conhecimento do Igualrsquo (76c) Eis algumas falhas do argumento
(i) A prova da reminiscecircncia falha porque se estabelece a partir de uma
mera pressuposiccedilatildeo de que lsquoFormasrsquo existem
(ii) A prova da reminiscecircncia falha porque natildeo estaacute claro que a alma natildeo
possa adquirir um conhecimento de coisas como lsquoo igual em sirsquo a partir
da reencarnaccedilatildeo
(iii) Soacutecrates conclui que fica provado que lsquoFormasrsquo e almas existem antes do
nascimento (76e5-7) mas em momento algum o argumento procura
provar que lsquoFormasrsquo existem
(iv) O argumento da reminiscecircncia natildeo prova que a alma eacute imortal Ainda
que o argumento se estabelecesse nada garantiria que a alma que
conhece as lsquoFormasrsquo no aleacutem natildeo seria destruiacuteda ainda antes de
reencarnar A doutrinda da reminiscecircncia soacute provaria que a nossa alma
sobreviveu no periacuteodo de tempo que vai do aleacutem quando a alma
conheceu as lsquoFormasrsquo ateacute o momento em que as recordamos Estaacute bem
claro que a alma poderia entatildeo se dispersar e destruir na hora da morte
92
47 Observaccedilotildees finais
O argumento eacute bastante difiacutecil e apresenta muitos problema de interpretaccedilatildeo
sobretudo porque Platatildeo deixa boa parte dos pontos centrais do argumento sem uma
explicaccedilatildeo suficiente Haacute muitas sentenccedilas ambiacuteguas e vagas e conceitos essenciais para
o argumento natildeo satildeo esclarecidos como o que significa dizer que as coisas sensiacuteveis
tecircm um forte desejo de ser como as lsquoFormasrsquo
Nestas consideraccedilotildees finais comentamos trecircs toacutepicos relacionados ao argumento
teoria das Formas imortalidade da alma e a sugestatildeo de Soacutecrates de que devemos
combinar argumento ciacuteclico e argumento da reminiscecircncia
471 Teoria das Formas e a prova da imortalidade da alma
O problema da teoria das Formas eacute alvo de grande debate e a interpretaccedilatildeo
majoritaacuteria como apresentamos no estudo tende a reconhecer que a imortalidade da
alma depende da Teoria das Formas apresentada no argumento da reminiscecircncia A
nossa avaliaccedilatildeo do argumento sugere que Platatildeo apresenta uma teoria incipiente com o
fim de apoiar a sua exposiccedilatildeo de uma mecanismo de reminiscecircncia que levaraacute a uma
prova de que a alma existe antes de nascer Natildeo temos aqui uma terminologia teacutecnica
para Formas e a distinccedilatildeo entre lsquoigual em sirsquo e lsquocoisas iguaisrsquo estaacute longe de ser clara
Portanto o maacuteximo que podemos reconhecer eacute uma teoria incipiente uma primeira
tentativa no diaacutelogo de estabelecer a distinccedilatildeo entre lsquoFormasrsquo e lsquoobjetos sensiacuteveisrsquo e
que nos leva a reconhecer uma discreta tentativa de estabelecer ou esboccedilar uma teoria
das Formas Aleacutem disso esta tentativa visa dar suporte agrave explanaccedilatildeo sobre o mecanismo
93
de reminiscecircncia Alguns comentadores tendem a explorar a temaacutetica da teoria das
Formas no argumento das reminiscecircncia e chegam a conclusotildees exageradas como
Kahn segundo o qual Platatildeo comeccedila a desenvolver a noccedilatildeo de lsquoparticipaccedilatildeorsquo no
contexto do argumento da reminiscecircncia 101 Portanto a nossa avaliaccedilatildeo do argumento
indica que Platatildeo apresenta uma teoria incipiente com o fim de dar suporte agrave sua
exposiccedilatildeo sobre o mecanismo de reminiscecircncia que fornece a prova para a preexistecircncia
da alma
472 Imortal (ἀθάνατος)
Temos no argumento da reminiscecircncia a primeira menccedilatildeo expliacutecita da palavra
lsquoimortalrsquo (ἀθάνατος) no diaacutelogo (73a2) Cebes afirma que a doutrina da reminiscecircncia
natildeo seria plausiacutevel se a nossa alma natildeo existisse em algum lugar antes de assumir a
forma humana (τοῦτο δὲ ἀδύνατον εἰ μὴ ἦν που ἡμῖν ἡ ψυχὴ πρὶν ἐν τῷδε τῷ
ἀνθρωπίνῳ εἴδει γενέσθαι) (73a1-2) e finaliza dizendo que a alma parece ser algo
imortal tambeacutem dessa maneira (ὥστε καὶ ταύτῃ ἀθάνατον ἡ ψυχή τι ἔοικεν εἶναι) (Cf
72e1-73a3) Cebes estimula Soacutecrates a construir uma prova da imortalidade da alma
com base na doutrina da reminiscecircncia que lhe parece tambeacutem tratar da imortalidade da
alma Note-se que o emprego da expressatildeo τι ἔοικεν εἶναι (73e2-3) indica que Cebes
natildeo tem qualquer convicccedilatildeo sobre isso A sua observaccedilatildeo eacute um convite para que
Soacutecrates lhe mostre se realmente o ensino da reminiscecircncia pode ser tomado como
prova da imortalidade da alma ou natildeo Cebes eacute o responsaacutevel por vincular incialmente
imortalidade da alma e argumento da reminiscecircncia
101 Cf Kahn in Benson 2011 p 124
94
Mas a intervenccedilatildeo inicial de Soacutecrates visa ratificar a tese central da doutrina da
reminiscecircncia para Siacutemias aprender eacute recordar O filoacutesofo acha que Siacutemias natildeo estaacute
convencido de que o aprendizado pode ser reminiscecircncia e o convida a examinar a
doutrina a partir de outro acircngulo Siacutemias nega que tenha essa duacutevida mas reconhece que
precisa experimentar o ensino da reminiscecircncia (73b) Eacute a partir daiacute que Soacutecrates
introduz o segundo argumento da imortalidade da alma no Feacutedon em 73c Soacutecrates
sequem menciona a palavra lsquoimortalrsquo ao longo do argumento e a sua conclusatildeo aponta
para o que Cebes apresenta desde o iniacutecio a doutrina da reminiscecircncia soacute funciona ou
seja reminiscecircncia soacute lsquoseria impossiacutevel a menos que a nossa alma existisse em algum
lugar antes de assumir essa forma humanarsquo (73a1-2) Ao final o argumento da
reminiscecircncia nem prova que a alma eacute imortal A insistecircncia de Soacutecrates de que
argumento ciacuteclico e da reminiscecircncia juntos consistiria na prova completa que os
amigos esperam natildeo eacute acolhida pelos amigos (77c-d) que continuam assombrados com
a possibilidade de teestemunha em breve natildeo apenas a morte de Soacutecrates a separaccedilatildeo
entre alma e corpo mas a destruiccedilatildeo da sua alma (77e) O argumento ciacuteclico havia
mostrado que as almas existem depois da morte de onde voltam para alojar-se num
corpo A conclusatildeo do argumento da reminiscecircncia reforccedila apenas algo que jaacute havia
sido mencionado no argumento ciacuteclico ndash as almas existem antes de reencarnar ndash mas
agora a partir de um argumento aceito pelos amigos no que concerne agrave existecircncia da
alma antes do nascimento
A sugestatildeo para combinar os argumentos mostra que Soacutecrates entende que
preexistecircncia da alma (argumento da reminiscecircncia) + existecircncia post mortem da alma
(argumento ciacuteclico) = imortalidade da alma Mas a existecircncia da alma antes do
nascimento e a existecircncia da alma depois da morte tomadas juntas natildeo provam que a
95
alma eacute imortal A sugestatildeo de Soacutecrates deve ser entendida com base na concepccedilatildeo de
imortalidade vinculada agrave reencarnaccedilatildeo apresentada no antigo relato a qual Soacutecrates
ainda tem em mente quando sugere essa combinaccedilatildeo como veremos adiante
Tambeacutem vale lembrar que o uso de ὥστε καὶ (73e2) sugere que a discussatildeo
anterior no entendimento de Cebes jaacute poderia ser vista como uma tentativa de provar a
imortalidade da alma mas de modo algum ele considera que o argumento teve sucesso
nisso No Feacutedon natildeo encontramos qualquer sugestatildeo de que Cebes ou Siacutemias aceitam o
argumento ciacuteclico como prova satisfatoacuteria da imortalidade da alma Tudo indica que
natildeo
(i) A introduccedilatildeo abrupta do ensino da reminiscecircncia com uma esperanccedila de
que pudesse provar a imortalidade da alma parece muito mais uma
admissatildeo velada de que Cebes natildeo estaacute satisfeito com a prova
apresentada do que simplesmente um reconhecimento de que o
argumento ciacuteclico prova a imortalidade da alma
(ii) Depois do argumento das afinidades em 85d as personagens se privam
de apresentar as suas criacuteticas natildeo pretendem importunar Soacutecrates na
ocasiatildeo adversa em que se encontra Essa deve ser uma das razotildees pelas
quais pelo menos na transiccedilatildeo para o argumento da reminiscecircncia Cebes
prefere incitar Soacutecrates a um novo argumento em vez de importunar o
mestre com suas objeccedilotildees diretas
(iii) A reaccedilatildeo esperada de Cebes caso estivesse de acordo com a primeira
prova apresentada seria a expressatildeo de sua satisfaccedilatildeo como ocorre no
96
final do uacuteltimo argumento (107a) quando ele simplesmente afirma que
natildeo tem nada para objetar
(iv) Ao final do proacuteprio argumento da reminiscecircncia mesmo depois da
sugestatildeo de que a uniatildeo do argumento ciacuteclico e do argumento da
reminiscecircncia provaria o que eles requerem o temor dos amigos diante
da possibilidade de que a alma de Soacutecrates pudesse ainda ser dissipada e
destruiacuteda e o clamor para que Soacutecrates pudesse ainda persuadi-lo a natildeo
temer por meio um novo argumento tambeacutem indicam que Cebes e Siacutemias
rejeitam o argumento ciacuteclico (e tambeacutem o da reminiscecircncia) como prova
da imortalidade da alma (77e)
(v) Tambeacutem depois do argumento das afinidades Soacutecrates pergunta se os
amigos haviam aceitado todos ou apenas alguns dos argumentos
apresentados e Siacutemias e Cebes afirmam que aceitam apenas alguns e
rejeitam outros ressaltando que aceitam o argumento da reminiscecircncia
no que diz respeito agrave preexistecircncia da alma (91e-92a) Eacute bem provaacutevel
que o argumento ciacuteclico esteja na lista dos rejeitados
Ao dizer que a alma parece ser algo imortal (ἀθάνατον ἡ ψυχή τι ἔοικεν εἶναι)
(73a) Cebes estaacute reconhecendo que a discussatildeo que toma lugar na etapa demonstrativa
eacute especialmente sobre a imortalidade da alma Desde que ele mesmo apresenta a crenccedila
comum de que a alma pode ser destruiacuteda na separaccedilatildeo do corpo (70a) eacute especialmente
sobre a imortalidade da alma No Feacutedon os amigos de Soacutecrates natildeo aceitam um
argumento filosoacutefico que natildeo seja capaz de provar nada mais do que a imortalidade da
alma Esta transiccedilatildeo para o argumento da reminiscecircncia eacute sem duacutevida a ocasiatildeo precisa
97
em que Platatildeo emprega a palavra lsquoimortalrsquo (ἀθάνατος) pela primeira vez no diaacutelogo na
voz de Cebes com o fim de nos deixar saber que o tema da imortalidade da alma
individual (o contexto do Feacutedon deixa claro que o problema em questatildeo eacute provar que a
alma de Soacutecrates natildeo seraacute destruiacuteda assim que beber o veneno) se estabelece como tema
central do diaacutelogo
473 Eacute necessaacuterio combinar argumento ciacuteclico e da reminiscecircncia
Haacute alguns indiacutecios textuais que mostram que Platatildeo se preocupa em relacionar o
argumento ciacuteclico e o argumento da reminiscecircncia Ao final do argumento da
reminiscecircncia Cebes concorda com Siacutemias de que soacute fora demonstrado (ἀποδείκνυμι)
metade (ἥμισυς) daquilo que seria necessaacuterio que a alma existe antes do nascimento
(ὅτι πρὶν γενέσθαι ἡμᾶς ἦν ἡμῶν ἡ ψυχή) (Cf77b1 77c2-3) Agora seria necessaacuterio
provar que a alma continua a existir depois da morte (77c) Soacutecrates entatildeo trata os dois
argumentos como unidade e pede que os amigos os combinem (συντίθημι) para obter
uma uacutenica prova (77c)
Alguns comentadores admitem pelo menos uma relaccedilatildeo complementaacuteria entre os
dois argumentos e ateacute que uma completa prova da imortalidade da alma dependeria da
combinaccedilatildeo dos dois102 Mas geralmente natildeo se oferece uma resposta convincente para
esse tratamento singular e relaccedilatildeo dos dois argumentos A nossa anaacutelise procura mostrar
que o elo de ligaccedilatildeo dos dois argumentos eacute a doutrina religiosa de cunho oacuterfico
pitagoacuterico apresentada no relato antigo em 70a e que eacute um componente fundamental da
doutrina da reminiscecircncia no Mecircnon As duas primeiras provas da imortalidade
102 Cf Bluck 1955 p62 Dorter 1982 p45 Hackfort 1955 p1998 White 1989 p80
98
oferecem uma fundamentaccedilatildeo filosoacutefica para a mesma crenccedila apresentada no antigo
relato Vejamos como isto ocorre
O argumento ciacuteclico eacute introduzido a partir de um lsquoantigo relatorsquo de cunho oacuterfico
e pitagoacuterico ndash a transmigraccedilatildeo da alma ndash e a doutrina da reminiscecircncia tal como vemos
no Mecircnon estaacute intrinsecamente ligada com a ideia de imortalidade e transmigraccedilatildeo da
alma Como diz Kahn no pensamento oacuterfico e pitagoacuterico a imortalidade eacute concebida
em funccedilatildeo da transmigraccedilatildeo das almas103 A doutrina da reminiscecircncia eacute apresentada no
Mecircnon 81a-e como doutrina que tem origem em autoridades ndash sacerdotes sacerdotisas e
poetas divinamente inspirados ndash que dizem que a alma humana eacute imortal e agraves vezes
chega ao fim o que eles chamam morrer e agraves vezes reencarna mas nunca perece A
alma eacute imortal e estaacute sujeita agrave reencarnaccedilatildeo e disso decorre a necessidade de viver de
modo tatildeo piedoso quanto possiacutevel (81b 86b) e de recordar tudo o que ainda natildeo foi
recordado (86b1-4) Fica claro que argumento ciacuteclico e da reminiscecircncia manteacutem uma
relaccedilatildeo com aquela mesma crenccedila religiosa apresentada com o nome de lsquorelato antigorsquo ndash
a transmigraccedilatildeo da alma ndash a qual estaacute intrinsecamente ligada como a crenccedila na
imortalidade da alma O relato antigo diz basicamente o seguinte (70c-d)
(i) a alma dos que morrem existem no Hades
(ii) a alma dos que partiram existem no Hades de onde regressam para a vida
terrena
103 Cf Kahn 2007 p18
99
Natildeo eacute difiacutecil perceber que as duas premissas que constituem o antigo relato
estaratildeo presentes na conclusatildeo do argumento ciacuteclico e argumento da reminiscecircncia
respectivamente
Antigo relato
As almas dos que morrem
existem no Hades
As almas dos que morrem
existem no Hades de onde
regressam para a vida terrena
Ciacuteclico As almas dos que morrem
existem no Hades (existecircncia post
mortem da alma ndash conclusatildeo do
argumento ciacuteclico)
As almas dos que morrem
existem no Hades antes do
nascimento de onde regressam
para a vida terrena
Reminiscecircncia As almas dos que morrem
existes antes do nascimento
A soluccedilatildeo de Soacutecrates para combinar os dois argumentos natildeo muda a prova
porque o argumento da reminiscecircncia simplesmente prova algo que jaacute estaacute presente no
argumento dos opostos almas existem antes do nascimento e reencarnam
100
O argumento eacute destinado a provar a imortalidade desde o iniacutecio com a clara
indicaccedilatildeo de Cebes mas a concepccedilatildeo de imortalidade em funccedilatildeo da doutrina da
transmigraccedilatildeo da alma natildeo eacute aquilo que os amigos de Soacutecrates desejam como prova da
imortalidade da alma O tema da imortalidade deve ser tratado num sentido platocircnico
ldquoinovadorrdquo sem a dependecircncia ou vinculaccedilatildeo com a ideia de transmigraccedilatildeo No
decorrer do diaacutelogo os interlocutores apelam para a necessidade de que se fique claro
que natildeo eacute provando que as almas transmigram que podemos provar que as almas satildeo
imortais Transmigraccedilatildeo pode ocorrer por um periacuteodo de tempo e ao final a alma poderaacute
ser destruiacuteda Eacute necessaacuteria uma radical ruptura desta ideia para que se prove que a alma
eacute imortal nos termos de uma nova compreensatildeo filosoacutefica que natildeo depende do
componente religioso de cunho oacuterfico e pitagoacuterico Ao final dos dois primeiros
argumentos o problema continua o mesmo a alma existe antes e depois da morte mas
ateacute quando
Em suma argumento ciacuteclico e argumento da reminiscecircncia estatildeo vinculados
especialmente pelo antigo relato Esta observaccedilatildeo nos ajuda a entender por que esses
dois argumentos estatildeo interligados no Feacutedon
(i) a uacutenica ocasiatildeo em que temos uma transiccedilatildeo imediata para o argumento
seguinte
(ii) os uacutenicos argumentos em que Soacutecrates nunca emprega a palavra
lsquoimortalrsquo (ἀθάνατος)
(iii) os uacutenicos que Soacutecrates trata como se fossem uma unidade cada um
prova uma metade ndash o ciacuteclico que a alma existe depois da morte o da
reminiscecircncia que a alma existe antes do nascimento (77c)
101
(iv) os uacutenicos argumentos que Soacutecrates diz que devem ser combinados
(συντίθημι) (77c)
(v) os uacutenicos argumentos especialmente conectados pela doutrina da
transmigraccedilatildeo da alma (o relato antigo eacute um componente religioso da
doutrina da reminiscecircncia)
102
5 ARGUMENTO DAS AFINIDADES (78B-80B)
51 Introduccedilatildeo
A literatura secundaacuteria costuma tratar o argumento das afinidades como sendo o
menos atrativo o mais fraco e o mais negligenciado pelos comentadores 104
O argumento das afinidades em si eacute apresentado em 78b-80b e eacute seguido por
uma discussatildeo de cunho miacutetico e especulativo em 80c-84b a qual Platatildeo utiliza para
defender o modo filosoacutefico de viver O argumento eacute bastante diferente dos demais ele
se constitui basicamente de duas analogias uma que estabelece a relaccedilatildeo entre almas e
Formas e outra entre almas e deuses com base nas quais se defende que a alma seria
mais como as Formas e como os deuses concluindo-se entatildeo que ela seria indissoluacutevel
imune agrave desintegraccedilatildeo por ocasiatildeo da morte ou algo proacuteximo disso
52 Contexto
Ao final do argumento da reminiscecircncia Cebes e Siacutemias acreditam que Soacutecrates
conseguira provar apenas que a alma continuaria a existir antes do nascimento mas
restaria ainda a necessidade de provar se a alma haveraacute de existir depois da morte
Siacutemias esclarece que a objeccedilatildeo levantada por Cebes no ponto de transiccedilatildeo entre a
primeira e a segunda parte do diaacutelogo ainda permanece sem soluccedilatildeo a crenccedila popular
de que na ocasiatildeo da morte a alma da pessoa se dissipa sendo este o fim de sua
104 Cf Apolloni 1996 p5 Elton 1997 p313
103
existecircncia Ao final do argumento da reminiscecircncia os amigos de Soacutecrates parecem
convencidos de que Soacutecrates natildeo havia provado que a alma continua a existir depois da
morte
Platatildeo parece ter um interesse especial em enfatizar ao longo do diaacutelogo que os
amigos de Soacutecrates natildeo possuem nenhuma reserva em relaccedilatildeo ao argumento da
reminiscecircncia desde que ele natildeo seja utilizado para provar que a alma continua a existir
depois da morte
(i) Ao final do argumento da reminiscecircncia Siacutemias manifesta absoluta
confianccedila na conclusatildeo de que as almas existem antes do nascimento e
que Formas existem e diz que seu amigo Cebes natildeo rejeita o argumento
soacute natildeo concorda assim como ele mesmo que o argumento possa provar
que a alma continua a existir quando se separa do corpo (77a-b)
(ii) Depois do argumento das afinidades quando os amigos de Soacutecrates
apresentam suas famosas objeccedilotildees Cebes afirma que manteacutem a mesma
posiccedilatildeo de outrora ele acredita que estaacute completamente demonstrado que
a alma existia antes de nascer (conclusatildeo do argumento da
reminiscecircncia) mas natildeo estaacute convencido de que ela continua a existir
depois da morte (76e-77a)
(iii) Quando Soacutecrates refuta o argumento de Siacutemias (alma eacute harmonia) o
filoacutesofo pergunta se os amigos haviam aceitado todos ou apenas alguns
dos argumentos apresentados e Siacutemias e Cebes afirmam que aceitam
apenas alguns e rejeitam outros Soacutecrates pergunta abertamente se eles
aceitam o argumento da reminiscecircncia e sua conclusatildeo de que as almas
104
existem em algum lugar antes de alojar-se num corpo e ambos
respondem positivamente Cebes diz que na ocasiatildeo em que Soacutecrates
apresentara o argumento ele estava completamente convencido e que
agora ele aceita o argumento mais do que qualquer outro Siacutemias por sua
vez concorda com o amigo e afirma que se surpreenderia se um dia
tivesse de mudar de opiniatildeo acerca desse argumento (91e-92a)
(iv) Pouco depois Soacutecrates convence Siacutemias de que o argumento de que a
alma eacute harmonia conflita com o argumento da reminiscecircncia (aprender eacute
recordar) jaacute que o argumento da reminiscecircncia requer que a alma tenha
existido antes de alojar-se no corpo enquanto a harmonia de uma lira natildeo
pode existir antes de uma lira ser construiacuteda Sendo assim Siacutemias teria
de escolher um dos argumentos Sem titubear ele abandona o proacuteprio
argumento (alma-harmonia) sob a justificativa de que ele ocorrera sem
demonstraccedilatildeo (ἀπόδειξις) e fica com o argumento da reminiscecircncia o
qual deriva de uma hipoacutetese digna de aceitaccedilatildeo e para que natildeo reste
nenhuma duacutevida ele ratifica que eacute certo que a alma existe antes de entrar
num corpo assim como existe a lsquoFormarsquo aquilo que eacute (92c-92d)
(v) Posteriormente Soacutecrates afirma que Cebes busca uma prova de que a
alma eacute imortal e indestrutiacutevel mas que segundo Cebes provar que a
alma eacute robusta divina e que jaacute existia antes do nascimento natildeo implica
que ela eacute imortal (ἀθάνατος) (95c)
105
Pelo menos ao final do argumento da reminiscecircncia Cebes e Siacutemias seratildeo
consistentes no seu posicionamento de que o argumento da reminiscecircncia demonstra a
existecircncia da alma antes do nascimento mas de modo algum a sua imortalidade (77b-c)
Jaacute que os amigos de Soacutecrates rejeitam o argumento da reminiscecircncia como prova
da existecircncia da alma depois da morte Soacutecrates apresenta uma soluccedilatildeo bem
controversa a combinaccedilatildeo dos dois argumentos num soacute Mas a conclusatildeo do argumento
da reminiscecircncia ndash a preexistecircncia da alma ndash jaacute estaacute presente na conclusatildeo do argumento
ciacuteclico os vivos procedem dos mortos e as almas dos mortos continuam a existir (72d8-
10) Se o argumento ciacuteclico fosse aceito ele por si soacute provaria as duas metades a que
Soacutecrates se refere a preexistecircncia da alma e a existecircncia da alma depois da morte Mas
se os amigos de Soacutecrates rejeitam o argumento ciacuteclico como eacute o que tudo indica a
combinaccedilatildeo dos argumentos natildeo resolve o problema colocado por Siacutemias e Cebes Eles
acreditam que o argumento da reminiscecircncia prova a preexistecircncia da alma mas por
outro lado natildeo se comprometem com o argumento ciacuteclico Soacutecrates parece entender a
posiccedilatildeo dos seus interlocutores porque nem mesmo espera que eles avaliem a sua nova
proposta (combinaccedilatildeo dos argumentos) como se jaacute soubesse que seria rejeitada pelos
amigos mas logo assume que seus amigos requerem um argumento ainda melhor (77c-
d)
Soacutecrates imediatamente desqualifica a motivaccedilatildeo dos amigos para continuar a
discussatildeo ele despreza a possibilidade de que os amigos tenham simplesmente rejeitado
a sua proposta de que os argumentos juntos provariam a imortalidade da alma e logo
assume que a necessidade de fundamentar melhor a questatildeo decorre meramente de um
temor pueril de que o vento possa dispersar e destruir a alma que deixa o corpo
especialmente se a pessoa morrer num dia de ventania (77d-e) O argumento das
106
afinidades eacute introduzido por Platatildeo no Feacutedon para responder ao temor de Cebes de que
mesmo que a alma possa existir antes de nascermos (como demonstra o argumento da
reminiscecircncia) ela ainda poderia ser destruiacuteda quando morrermos retomando a a
questatildeo essencial que Cebes apresenta em 70 a
Em resposta agrave afirmaccedilatildeo do mestre Cebes ri e pede que Soacutecrates os liberte do
temor o qual por sua vez afirma que para isso seriam necessaacuterios encantamentos
diaacuterios (77e) A ocasiatildeo se torna notadamente laudatoacuteria Cebes exalta Soacutecrates como o
uacutenico capaz de livraacute-los do temor da morte ao mesmo tempo em que lamenta a sua
partida iminente Soacutecrates por sua vez louva a grandeza da Greacutecia e de seus cidadatildeos
onde eles encontrariam ldquoencantadoresrdquo capazes e aptos a substituiacute-lo depois de sua
partida especialmente se buscassem no proacuteprio ciacuterculo socraacutetico (78a) Numa grande
Greacutecia e entre muitos cidadatildeos Soacutecrates e seus disciacutepulos satildeo aqueles capazes de
realizar os encantamentos necessaacuterios para expurgar temores infundados numa clara
indicaccedilatildeo de que ainda que morra seu legado continuaraacute por meio dos seus amigos que
estatildeo ali presentes aguardando a ocasiatildeo fatiacutedica Mas Cebes tem pressa e natildeo responde
ao elogio do mestre Em vez disso impele-o a continuar e retomar a discussatildeo na acircnsia
de que Soacutecrates antes de partir apresente o argumento suficiente que acabara de
prometer (78b)
Portanto neste ponto do diaacutelogo tudo leva a crer que os amigos de Soacutecrates
acreditam que argumento ciacuteclico e argumento da reminiscecircncia ndash juntos ou separados ndash
natildeo demonstram a imortalidade da alma e que eles ainda esperam uma prova
satisfatoacuteria de Soacutecrates O filoacutesofo prontamente inicia um novo argumento o qual se
convencionou chamar de argumento das afinidades
107
53 O argumento propriamente dito
O argumento das afinidades trata diretamente do problema levantado por Cebes
em 70a ndash a possibilidade de a alma se dispersar O argumento ciacuteclico lida com o antigo
relato miacutetico da transmigraccedilatildeo das almas enquanto o segundo argumento eacute introduzido
no diaacutelogo por uma lembranccedila e sugestatildeo de Cebes de que a doutrina da reminiscecircncia
tambeacutem serviria para provar a imortalidade da alma mas agora Soacutecrates se dispotildee a
examinar se a alma eacute um tipo de coisa suscetiacutevel a dispersatildeo (mortal) ou natildeo (imortal)
Portanto o argumento tem o meacuterito de reorientar a discussatildeo para o problema crucial do
diaacutelogo ndash a imortalidade da alma ndash o qual requer uma prova satisfatoacuteria de que a alma
seria imune agrave dispersatildeo e assim imortal
Soacutecrates comeccedila apresentando o que seria um programa resumido do argumento
em 78b4-9
(i) Primeiro Soacutecrates apresenta uma questatildeo essencial que pode ser
dividida em duas partes (i) ldquoa que tipo de coisa pertence aquilo que sofre
dispersatildeordquo (ii) ldquoa que tipo de coisa pertence aquilo que natildeo sofre
dispersatildeordquo Essa questatildeo seraacute respondida inicialmente em 78c1-4
Posteriormente ele estende a sua explanaccedilatildeo em 78c5-79a11
(ii) Segundo Soacutecrates pergunta ldquoa qual desses dois tipos de coisas pertence a
almardquo Essa questatildeo receberaacute tratamento em 78b1-80ab
(iii) Por fim a conclusatildeo diraacute se a alma pertence a uma classe de coisas
suscetiacuteveis a dispersatildeo ou natildeo com base na qual os amigos de Soacutecrates
108
confiaratildeo ou temeratildeo por suas almas Essa conclusatildeo aparece em 80a10-
81a3
Vejamos entatildeo roteiro geral de como o argumento se desenvolve seguido de uma
comentaacuterio
1 Coisas compostas satildeo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo coisas simples satildeo imunes agrave
dispersatildeo (78c1-4)
2 Coisas cuja condiccedilatildeo varia em ocasiotildees diferentes e nunca se encontram no
mesmo estado satildeo compostas coisas que estatildeo sempre no mesmo estado e
condiccedilatildeo satildeo simples (78c6-8)
3 lsquoFormasrsquo permanecem sempre na mesma condiccedilatildeo e estado (78c10-d9)
objetos particulares estatildeo sempre mudando (78d10-e6)
4 Coisas particulares satildeo visiacuteveis e percebidas pelos sentidos lsquoFormasrsquo satildeo
invisiacuteveis e apreendidas apenas pelo raciociacutenio (79a1-5)
5 Existem duas ldquoclasses de seres uma visiacutevel e que nunca permanece no
mesmo estado uma invisiacutevel e que sempre permanece no mesmo estado (79a6-
11)
6 A alma eacute mais semelhante ao invisiacutevel do que o corpo enquanto o corpo eacute
mais semelhante ao visiacutevel do que a alma (79b1-b17)
7 Quando a alma examina com os sentidos corporais ela eacute arrastada para as
coisas particulares e anda erraacutetica confusa e trocircpega como se estivesse
embriagada porque assim eacute o tipo de coisa com a qual estaacute em contato (79c2-9)
mas quando a alma sozinha por si mesma examina ela se encaminha para o
109
puro eterno imortal e que permanece na mesma condiccedilatildeo e entatildeo cessa o
desvio e permanece no mesmo estado e condiccedilatildeo porque assim eacute o tipo de coisa
com a qual estaacute em contato (79d1-9)
8 A alma tem maior semelhanccedila e afinidade ao que estaacute sempre na mesma
condiccedilatildeo do que ao que natildeo estaacute (79d10-e6)
9 Por imposiccedilatildeo da natureza a alma governa o corpo e o corpo eacute governado
pela alma (79e9-80a2)
10 O divino (τὸ θεῖον) naturalmente eacute o que governa enquanto o mortal (τὸ
θνητόν) eacute o governado (80a2-6)
11 A alma eacute como (ἔοικεν) o divino enquanto o corpo eacute como o mortal (80a7-
9)
12 A alma eacute extremamente semelhante (ὁμοιότατον) ao divino imortal
inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e estado
consigo mesmo o corpo eacute extremamente semelhante ao humano mortal
multiforme sensiacutevel soluacutevel e nunca na mesma condiccedilatildeo consigo mesmo
(80a10-b8)
13 O corpo seria o tipo de coisa que se dissolve rapidamente a alma seria o tipo
de coisa completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso (80b9-11)
Comentaacuterio
1 Coisas compostas satildeo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo coisas simples satildeo imunes agrave
dispersatildeo (78c1-4)
110
A pergunta apresentada no programa inicial de Soacutecrates eacute respondida em 78c1-4
(i) a que tipo de coisa pertence aquilo que pode sofrer dispersatildeo
Acaso natildeo pertence ao que foi posto junto agravequilo que eacute composto por natureza
sofrer decomposiccedilatildeo assim como foi posto juntordquo (78c1-3)
(b) a que tipo de coisa pertence aquilo que natildeo pode sofrer dispersatildeo
ldquoPor outro lado se haacute algo simples natildeo pertence somente a isso mais do que a
qualquer outra coisa o natildeo se sujeitar a sofrer decomposiccedilatildeordquo (78c 3-4)
Soacutecrates simplestemente assume que haacute coisas que sofrem dispersatildeo e coisas que
natildeo sofrem coisas que deixam de existir e outras natildeo natildeo havendo necessidade de
exposiccedilatildeo a esse respeito Cebes tambeacutem concorda que devem considerar esses dois
tipos de coisa O problema que se haacute de enfrentar natildeo eacute se haacute coisas que sofrem
dispersatildeo ou natildeo mas se a alma eacute suscetiacutevel agrave dispersatildeo Ao trazer essa questatildeo da
dispersatildeo ou natildeo das coisas no argumento das afinidades Soacutecrates estaacute lidando
diretamente com a alegaccedilatildeo de Cebes de que muitos temem que a alma se dispersa e se
esvai como fumo na ocasiatildeo da morte Portanto o argumento traz uma expectativa de
que Soacutecrates possa mostrar que alma natildeo estaacute entre o tipo de coisas que se dispersa
quando finalmente se teria um argumento suficiente
Com base na suscetibilidade ou natildeo agrave dispersatildeo a sua preocupaccedilatildeo agora eacute
estabelecer a existecircncia de duas classes de coisas (i) coisas compostas as quais satildeo
suscetiacuteveis a dispersatildeo (ii) coisas simples as quais satildeo imunes a dispersatildeo
111
As coisas compostas podem ser de dois tipos (i) aquelas que naturalmente tecircm
partes ndash compostas por natureza (ii) e aquelas cujas partes satildeo postas juntas num
proceso diferente daquele que as coisas naturalmente compostas experimentam (78c1)
A essas coisas compostas ldquopertencerdquo (προσήκω) o sofrer dispersatildeo (διαιρέω)
(78c2) Nesse contexto dispersatildeo eacute a decomposiccedilatildeo desagregamento ou divisatildeo dos
elementos que compotildeem algo composto Soacutecrates explica que assim como eacute possiacutevel a
composiccedilatildeo de elementos para a formaccedilatildeo de algo composto o processo contraacuterio ndash a
decomposiccedilatildeo ndash eacute plenamente possiacutevel a qual implica em destruiccedilatildeo do objeto (78c2-
3) Sendo assim sugere-se que um item composto pode sofrer destruiccedilatildeo enquanto um
item simples seria imune agrave destruiccedilatildeo
Assim o argumento sugere uma relaccedilatildeo entre composiccedilatildeo e destrutibilidade
simplicidade e indestrutibilidade Mas essa relaccedilatildeo encontra dificuldades se o escopo do
diaacutelogo contempla objetos materiais e imateriais seria razoaacutevel pensar que objetos
materiais compostos seriam suscetiacuteveis agrave dispersatildeo e destruiccedilatildeo quando sofre a
decomposiccedilatildeo das suas partes mas a ideia de que uma entidade imaterial e composta
poderia ser destruiacuteda ao sofrer decomposiccedilatildeo eacute bem diferente Tambeacutem seria difiacutecil
entender como o argumento ajudaria a provar que uma entidade imaterial e simples
seria imune agrave destruiccedilatildeo
Embora o termo ldquopertencerdquo (προσήκω) seja vago eacute plausiacutevel que Soacutecrates natildeo
esteja propondo que as coisas compostas devem necessariamente sofrer dispersatildeo mas
simplesmente que elas satildeo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo Portanto o que fica estabelecido eacute
que coisas compostas satildeo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo enquanto coisas simples satildeo imunes agrave
dispersatildeo o que acaba criando uma expectativa inevitaacutevel de que a alma seria em breve
tida como algo simples e imune agrave dispersatildeo Mas a ideia eacute construir um argumento
112
analoacutegico baseado na lsquosemelhanccedilarsquo entre a alma e as lsquoFormasrsquo Sendo assim eacute
necessaacuterio apresentar paulatinamente os atributos da lsquoFormarsquo e estabelecer a afinidade
entre almas e lsquoFormasrsquo No proacuteximo passo Soacutecrates afirma que as coisas lsquosimplesrsquo satildeo
as coisas que estatildeo sempre no mesmo estado e condiccedilatildeo e logo depois identifica essas
coisas como sendo as lsquoFormasrsquo enquanto aquelas cuja condiccedilatildeo varia em ocasiotildees
diferentes e nunca se encontram no mesmo estado satildeo as lsquocompostasrsquo os lsquoobjetos
particularesrsquo (Cf 78c-d)
2 Coisas cuja condiccedilatildeo varia em ocasiotildees diferentes e nunca se encontram no
mesmo estado satildeo compostas coisas que estatildeo sempre no mesmo estado e
condiccedilatildeo satildeo simples (78c6-8)
No proacuteximo passo em 78c6-8 Soacutecrates faz a seguinte associaccedilatildeo
(i) coisas cuja condiccedilatildeo varia em ocasiotildees diferentes (τὰ δὲ ἄλλοτ᾽ ἄλλως) e
nunca se encontram no mesmo estado (μηδέποτε κατὰ ταὐτά) coisas compostas
(ii) coisas que estatildeo sempre no mesmo estado (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) e condiccedilatildeo
(ὡσαύτως ἔχει) coisas simples
O argumento se baseia numa associaccedilatildeo bastante plausiacutevel (μάλιστα εἰκός)
(78c7) O contexto imediato sugere que a associaccedilatildeo eacute razoaacutevel porque as coisas
compostas sofrem dispersatildeo que eacute um tipo de variaccedilatildeo um tipo de mudanccedila no estado
e condiccedilatildeo do objeto Sendo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo dos seus componentes as coisas
113
compostas estatildeo fadadas agrave mutaccedilatildeo e inconstacircncia As coisas simples por sua vez satildeo
imunes agrave dispersatildeo sendo plausiacutevel associaacute-las com aquilo que eacute constante e natildeo varia
Dando um novo passo na construccedilatildeo dessa cadeia de associaccedilotildees Soacutecrates
busca um grupo de coisas que pode ser identificado como lsquocoisas que estatildeo sempre no
mesmo estadorsquo O filoacutesofo entatildeo faz um convite aberto para retomar as coisas que
discutiam no argumento anterior lsquoas coisas em sirsquo (lsquoFormasrsquo) lsquoFormasrsquo satildeo o que
Soacutecrates identificaraacute como o tipo de coisa que natildeo sofre alteraccedilatildeo em hipoacutetese alguma
(78c10-78d1) e aquilo que serviraacute de base para a construccedilatildeo da analogia central do
argumento Com a introduccedilatildeo das lsquoFormasrsquo na discussatildeo os termos lsquocompostorsquo
(σύνθετος) e lsquosimplesrsquo (ἀσύνθετος) satildeo completamente abandonados
3 lsquoFormasrsquo permanecem sempre na mesma condiccedilatildeo e estado (78c10-d9)
objetos particulares estatildeo sempre mudando (78d10-e6)
Agora Soacutecrates pede para voltar agravequelas coisas sobre as quais jaacute haviam
conversado no argumento anterior a essecircncia (ἡ οὐσία) cujo ser ou existecircncia (τοῦ
εἶναι) se apresenta por meio de um loacutegos que consiste de perguntas e respostas (78c10-
78d2) Segundo Gallop lsquodar um loacutegosrsquo nesse contexto pode significar tanto lsquodar uma
definiccedilatildeorsquo como lsquoapresentar uma provarsquo podendo significar tanto lsquodefinir a natureza
essencial das lsquoFormasrsquo como lsquoprovar que elas existemrsquo105 Neste contexto Soacutecrates
retoma esse grupo de coisas apresentados antes como ldquoo igual em si o belo em si
aquilo que cada coisa eacute em si aquilo que eacuterdquo (αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ
ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν) (78d3-4) que desde o contexto do argumento das
105 Gallop 2002 p139
114
reminiscecircncias estamos chamando de lsquoFormasrsquo apenas de uma terminologia teacutecnica
ainda natildeo aparecer nesta fase do diaacutelogo
Expressotildees como ἡ οὐσία τὸ ὄν αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ τὸ ἴσον e αὐτὸ ὃ ἔστιν
natildeo satildeo novas no diaacutelogo mas ganham um significado especial no contexto do
argumento das afinidades No argumento da reminiscecircncia a expressatildeo αὐτὸ ὃ ἔστιν ou
apenas ὃ ἔστιν (a qual aparece agora em αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) jaacute se destaca como
foacutermula usual para designar de modo geral o objeto da discussatildeo (Cf74b2 74d6
75b1) o que reflete uma tentativa de fixar uma foacutermula ndash ὃ ἔστιν (o que eacute) ndash para
designar objetos que ele costuma apresentar pelo uso de exemplos como τὸ καλόν e τὸ
ἴσον Os termos εἶδος e ἰδέα conhecidos como termos teacutecnicos para designar lsquoFormasrsquo
ainda natildeo foram introduzidos no diaacutelogo exceto quando εἶδος eacute empregado em sua
acepccedilatildeo comum como em 73d9 a imagem do amado (τὸ εἶδος τοῦ παιδὸς)
Nesta etapa do argumento das afinidades Soacutecrates identifica lsquoaquilo que eacutersquo as
lsquoFormasrsquo como sendo coisas cujo estado natildeo muda ou altera e esta passagem visa
estabelecer justamente isso em 78d10-d9 depois de estabelecer que nenhum elemento
da classe em questatildeo deve ser posto de fora do exame ndash eacute necessaacuterio considerar lsquocada
um deles que eacutersquo (αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι) cada membro da classe em questatildeo ndash ele
estabelece que cada membro dessa classe eacute o tipo de coisa que
(i) cada coisa que eacute sendo uniforme e sozinha por si soacute permanece sempre na
mesma condiccedilatildeo e estado
(ii) em hipoacutetese alguma cada coisa que eacute se sujeitaria a qualquer tipo de
mudanccedila
115
Duas expressotildees merecem particular atenccedilatildeo lsquouniformersquo (μονοειδής) e lsquosozinha
por si soacutersquo (αὐτὸ καθ᾽ αὑτό) A primeira ndash lsquouniformersquo ndash pode ser entendida como algo
que possui apenas um componente ou parte ou simplesmente como algo de uma soacute
aparecircncia Se a primeira ideia prevalece o termo μονοειδής pode ser entendido como
sinocircnimo para o termo lsquosimplesrsquo o qual natildeo aparece novamente no decorrer do
argumento Mas essa interpretaccedilatildeo natildeo eacute completamente segura ou definitiva
Platatildeo certamente tem uma razatildeo especial para incorporar a expressatildeo lsquosozinha
por si soacutersquo (αὐτὸ καθ᾽ αὑτό) neste ponto da discussatildeo dada a sua frequecircncia no diaacutelogo e
o contexto imediato Temos no diaacutelogo dois empregos frequentes da expressatildeo uma em
referecircncia agraves lsquoFormasrsquo outra em referecircncia agraves almas
(i) lsquoa Forma sozinha por si mesmorsquo a expressatildeo jaacute havia sido empregada em
relaccedilatildeo a essas coisas que Soacutecrates chama de lsquoaquilo que eacutersquo na primeira etapa do
diaacutelogo quando o filoacutesofo fala da necessidade de utilizar o pensamento sozinho
por si mesmo e sem mistura (αὐτῇ καθ᾽ αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) para
perseguir cada coisa em si a qual eacute sozinha por si mesma (αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ) e
sem mistura (66a1-3)
(ii) a alma sozinha sozinha por si mesma (αὐτὴ καθ᾽ αὑτὴν ἡ ψυχὴ) a expressatildeo
eacute empregada com frequecircncia para a alma na ocasiatildeo em que se afasta do corpo e
pode finalmente sozinha por si mesma alcanccedilar lsquoaquilo que eacutersquo a verdade ou o
conhecimento puro 64c7-8 65d1 66e6-67a1 Em 70a7 depois de Cebes
apresentar a crenccedila popular na dispersatildeo da alma como fumo a questatildeo crucial eacute
saber se a alma realmente existiria em algum lugar sozinha por si mesma (αὐτὴ
καθ᾽ αὑτὴν) quando viesse a separar-se do corpo e de suas mazelas
116
(iv) Portanto quando Soacutecrates diz que a lsquoFormarsquo eacute uniforme e lsquosozinha por si
mesmarsquo neste ponto do argumento das afinidades ele traz de volta toda a
discussatildeo anterior e prepara a introduccedilatildeo da analogia entre lsquoalmarsquo e
lsquoFormarsquo Posteriormente em 79dc-d Soacutecrates diz abertamente que jaacute
haviam discutido sobre a necessidade de a alma se separar do corpo e
sozinha por si mesma alcanccedilar aquilo que eacute puro Depois de apresentado
o argumento das afinidades em si em 83a-b Soacutecrates volta a lembrar que
a filosofia tem o papel de persuadir a alma a distanciar-se do corpo e dos
sentidos e sozinha por si mesma (αὐτὴ καθ᾽ αὑτὴν) refletir naquilo que
eacute sozinho por si mesmo (αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ)
No proacuteximo passo em 78d10-e6 o desafio eacute identificar o tipo de coisa que
nunca eacute constante e entatildeo estabelecer o contraste entre as coisas que satildeo sempre
constantes (lsquoFormasrsquo) e as coisas que natildeo satildeo (objetos particulares)
Soacutecrates entatildeo introduz uma multiplicidade de objetos particulares (i) as muitas
coisas belas ndash pessoas belas cavalos belos roupas belas e tudo mais desse tipo (ii) as
coisas iguais (iii) as coisas que compartilham o mesmo nome das coisas mencionadas
antes Esses objetos particulares ao contraacuterio daqueles ldquonunca e de modo algum
permanecem no mesmo estado nem consigo mesmas nem entre sirdquo Desse modo em
contraste com aslsquoFormasrsquo os particulares apresentam dois tipos de variaccedilatildeo eles
variam em relaccedilatildeo a si mesmos ndash num dado momento um cavalo belo pode se tornar
menos belo do que era antes e variam entre si ndash num dado momento um cavalo belo
pode se tornar menos belo do que outros cavalos belos O ponto que se estabelece eacute a
mutabilidade dos objetos particulares os quais estatildeo sujeitos a serem caracterizados por
117
atributos diferentes em ocasiotildees diferentes Aleacutem disso eacute razoaacutevel considerar que os
objetos particulares variam porque satildeo passiacuteveis agrave dispersatildeo eles passam a existir pela
composiccedilatildeo de suas partes e chegam ao fim com a desintegraccedilatildeo das suas partes Fica
entatildeo estabelecido o contraste entre lsquoFormasrsquo e objetos particulares lsquoFormasrsquo
permanecem sempre na mesma condiccedilatildeo e estado enquanto objetos particulares estatildeo
sempre mudando O terreno foi preparado para a apresentaccedilatildeo da semelhanccedila entre
almas e lsquoFormasrsquo
4 Coisas particulares satildeo visiacuteveis e percebidas pelos sentidos lsquoFormasrsquo satildeo
invisiacuteveis e apreendidas apenas pelo raciociacutenio (79a1-5)
Soacutecrates manteacutem a distinccedilatildeo entre lsquoFormasrsquo e objetos particulares agora
apresentando mais um elemento de contraste entre ambos as coisas particulares satildeo
percebidas pelos sentidos as coisas que permanecem no mesmo estado satildeo apreendidas
somente pelo raciociacutenio do pensamento (τῆς διανοίας λογισμῷ) Mais uma vez fica
claro que o argumento das afinidades retoma a discussatildeo apresentada na primeira etapa
do Feacutedon especialmente em 65b-e Soacutecrates jaacute havia estabelecido que a alma deve
raciocinar (λογίζομαι) sozinha por si mesma (αὐτὴ καθ᾽ αὑτὴν) atraveacutes do pensamento
sozinho (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) e sem a interaccedilatildeo dos sentidos para que possa alcanccedilar as
coisas em si mesmas (Cf 65c2-9 65e7 66a1-2)
Soacutecrates esclarece entatildeo que coisas invisiacuteveis ndashlsquoFormasrsquondash soacute podem ser
apreendidas pelo pensamento da razatildeo e sugere que apenas coisas visiacuteveis ndash objetos
particulares ndash satildeo percebidos pelos sentidos Agora a ecircnfase recai sobre a invisibilidade
das lsquoFormasrsquo e natildeo sobre a vilania do corpo e seus sentidos
118
5 Existem duas ldquoclasses de seresrdquo (εἴδη τῶν ὄντων) uma visiacutevel (τὸ ὁρατόν) e
que nunca permanece no mesmo estado uma invisiacutevel (τὸ ἀιδές) e que sempre
permanece no mesmo estado (79a6-11)
A distinccedilatildeo entre lsquoFormasrsquo invisiacuteveis e particulares visiacuteveis serve de base para
que Soacutecrates estabeleccedila a existecircncia de duas classes de coisas ndash as invisiacuteveis e as
visiacuteveis ndash e relacione essa informaccedilatildeo com aquilo que havia apresentado antes que
lsquoFormasrsquo permanecem sempre na mesma condiccedilatildeo e estado enquanto objetos
particulares estatildeo sempre mudando Assim em 79a6-11 ele estabelece que existem duas
ldquoclasses de seresrdquo sendo uma delas visiacutevel e que nunca permanece no mesmo estado e
a outra invisiacutevel e que sempre permanece no mesmo estado O proacuteximo passo eacute
introduzir dois elementos no argumento das afinidades ndash corpo e alma ndash e identificar
com base na semelhanccedila e afinidade a classe a qual cada um deles possa pertencer
6 A alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpo enquanto
o corpo eacute mais semelhante ao visiacutevel do que a alma (79b1-b17)
Pela primeira vez os termos lsquocorporsquo e lsquoalmarsquo satildeo introduzidos no argumento das
afinidades O ponto de partida de Soacutecrates eacute a ideia da composiccedilatildeo baacutesica do ser
humano em corpo e alma o que natildeo enfrenta qualquer objeccedilatildeo no diaacutelogo (79b1-3)
Essa concepccedilatildeo de que somos parte corpo e parte alma serve de base para praticamente
toda a discussatildeo que segue Jaacute fora estabelecido que haacute duas ldquoclasses de seresrdquo ndash uma
visiacutevel (τὸ ὁρατόν) e uma invisiacutevel (τὸ ἀιδές) e que objetos particulares satildeo membros
119
da classe de coisas visiacuteveis que satildeo passiacuteveis de mudanccedila e que no contexto geral do
argumento mudanccedila inclui dispersatildeo e destruiccedilatildeo
Jaacute fora estabelecido que lsquoFormasrsquo satildeo membros da classe de coisas invisiacuteveis e
que permanecem sempre no mesmo estado ndash natildeo satildeo passiacuteveis a mudanccedila e assim natildeo
podem sofrer dispersatildeo e destruiccedilatildeo Se assim como as lsquoFormasrsquo a alma fosse um
membro da classe de coisas invisiacuteveis e nunca sofresse alteraccedilatildeo ficaria demonstrado
que ela natildeo sofreria dispersatildeo e destruiccedilatildeo quando deixa o corpo natildeo havendo razatildeo
para temer Embora o argumento gere a expectativa de que Soacutecrates simplesmente
coloque almas na classe de coisas invisiacuteveis e corpo na classe de coisas visiacuteveis ele
introduz a ideia de semelhanccedila e afinidade
(i) o tipo de coisa visiacutevel eacute mais semelhante e tem mais afinidade (ὁμοιότερον
καὶ συγγενέστερον) com o corpo (79b4-5)
(ii) a alma seria invisiacutevel pelo menos para as pessoas (79b6-7)
(iii) a alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpo
enquanto o corpo eacute mais semelhante ao visiacutevel do que a almardquo (79b16-17)
Portanto a conclusatildeo considera as duas partes constitutivas do indiviacuteduo natildeo se
diz simplesmente que a alma eacute mais semelhante ao invisiacutevel e que o corpo eacute mais
semelhante ao visiacutevel mas que a alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do
que o corpo enquanto o corpo eacute mais semelhante ao visiacutevel do que a alma Isto levanta
o problema do grau de semelhanccedila entre alma e invisiacutevel O que temos aqui natildeo eacute uma
declaraccedilatildeo de que a alma eacute ao maacuteximo semelhante ao invisiacutevel mas apenas que a alma
eacute mais semelhante ao invisiacutevel do que o corpo Isso pode ser um ponto de fraqueza do
120
argumento se considerarmos que corpo e o invisiacutevel satildeo extremamente dissemelhantes
admitir que a alma eacute mais semelhante ao invisiacutevel do que o corpo pode continuar sendo
uma fraca declaraccedilatildeo da semelhanccedila entre alma e o invisiacutevel A alma poderia ter pouca
semelhanccedila com o invisiacutevel embora continuasse sendo mais semelhante ao invisiacutevel do
que o corpo
Aleacutem disso a invisibilidade da alma natildeo garante a sua imutabilidade Platatildeo jaacute
havia estabelecido a existecircncia de uma classe de seres visiacuteveis e que nunca permanecem
no mesmo estado e uma classe de seres invisiacuteveis e que sempre permanecem no mesmo
estado (79a6-11) Mas agora ainda que se consiga estabelecer que ldquoa alma eacute mais
semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpordquo ou que a alma eacute invisiacutevel e o
corpo natildeo a invisibilidade da alma natildeo estabelece necessariamente a sua imutabilidade
As lsquoFormasrsquo satildeo membros por excelecircncia da classe de coisas invisiacuteveis e imutaacuteveis e
natildeo as almas
Eis algumas outras fraquezas do argumento
(i) A ideia de semelhanccedila eacute essencial no argumento mas em momento algum
Platatildeo apresenta uma clara definiccedilatildeo de lsquosemelhanccedilarsquo ou lsquoafinidadersquo o que faz
com que o argumento se estabeleccedila sobre uma vaga noccedilatildeo de semelhanccedila
(ii) Talvez a ideia baacutesica de lsquosemelhanccedilarsquo seja a de lsquoter caracteriacutesticas em
comumrsquo Neste caso a caracteriacutestica comum que alma e o tipo de coisa invisiacutevel
(lsquoFormasrsquo) possuem eacute a invisibilidade e a caracteriacutestica comum que o corpo e o
tipo de coisa visiacutevel (objetos particulares) compartilham eacute a visibilidade
Contudo ainda que alma e o tipo de coisa invisiacutevel possuam essa caracteriacutestica
em comum a qual estaacute ausente no corpo isto natildeo eacute suficiente para concluir que
121
a alma eacute mais semelhante ao tipo de coisa invisiacutevel (lsquoFormasrsquo) do que o corpo
eacute106 Ainda que se possa dizer que a alma eacute invisiacutevel assim como a lsquoFormarsquo eacute
invisiacutevel natildeo eacute possiacutevel dizer que a alma permanece sempre na mesma
condiccedilatildeo assim como a lsquoFormarsquo permanece na mesma condiccedilatildeo Aina que a
alma seja invisiacutevel isto natildeo estabelece necessariamente a sua imutabilidade ela
continua passiacutevel a mudanccedila que no contexto do argumento inclui destruiccedilatildeo
Os amigos ainda podem temer que a alma se desintegre quando deixa o corpo
(iii) Outro problema para o estabelecimento de uma analogia eficiente eacute o
desbalanccedilo na relaccedilatildeo entre corpo e os membros da classe de coisas visiacuteveis e
alma e os membros por excelecircncia da classe de coisas invisiacuteveis Eacute evidente que
o corpo eacute um objeto particular razatildeo pela qual em 81d10 pessoas belas
aparecem na lista de coisas particulares ao lado de cavalos belos e roupas belas
Portanto ele natildeo apenas possui maacutexima semelhanccedila com objetos particulares
visiacuteveis e mutaacuteveis mas que ele eacute um objeto particular visiacutevel e mutaacutevel No
caso da alma pode-se dizer que ela eacute mais semelhante agrave classe de coisas
invisiacuteveis do que o corpo eacute mas natildeo eacute possiacutevel dizer que ela eacute uma lsquoFormarsquo
invisiacutevel e imutaacutevel
(iv) A hesitaccedilatildeo de Cebes em aceitar que a alma eacute invisiacutevel pode gerar
dificuldades no estabelecimento de uma analogia coerente Ele concorda
plenamente com a ideia de que o corpo possui semelhanccedila com o tipo de coisa
visiacutevel ldquoeacute bem evidente a qualquer pessoardquo assevera Cebes (79b6) Contudo
quando Soacutecrates pergunta se a alma seria visiacutevel ou invisiacutevel Cebes apresenta
uma reserva ldquoPelo menos ao ser humano eacute invisiacutevelrdquo (79b8) Soacutecrates entatildeo
106 Gallop 2002 p140
122
necessita esclarecer que estatildeo considerando coisas que satildeo visiacuteveis ou invisiacuteveis
ao ser humano (79b9-11) Esta hesitaccedilatildeo de Cebes tem gerado diferentes
interpretaccedilotildees Gallop afirma que seria uma maneira de anunciar a possiacutevel
objeccedilatildeo de que a alma natildeo seria invisiacutevel para os deuses107 Rowe dize que
Cebes estaria representando a tradicional perspectiva homeacuterica da morte
segundo a qual as almas satildeo invisiacuteveis apenas para os vivos108 Bostock sugere
uma perspectiva materialista da alma ele diz que embora Platatildeo acredite que a
alma eacute totalmente imaterial ele natildeo esperaria unanimidade a esse respeito e
lembra que agrave eacutepoca de Platatildeo havia concepccedilotildees filosoacuteficas segundo as quais a
alma seria material embora composta de elementos extremamente pequenos
invisiacuteveis pelo menos para os ordinaacuterios olhos humanos Se este for realmente o
caso Cebes hesita em concordar plenamente com a idea assim como o fez em
relaccedilatildeo ao corpo e precisa enfatizar que a alma eacute invisiacutevel pelo menos para os
seres humanos109
Agora Soacutecrates busca ratificar a semelhanccedila entre almas e a classe de coisas
invisiacuteveis Essa etapa de 79c2-79d9 retoma a discussatildeo sobre a aquisiccedilatildeo do
conhecimento das lsquoFormasrsquo a qual aparece na primeira etapa do Feacutedon e agora aparece
no argumento das afinidades Mais uma vez o leitor eacute convidado a considerar a
discussatildeo anterior e que o argumento individual natildeo estaacute isolado do contexto geral da
obra
107 Gallop 2002 p140 108 Rowe 1993 p185 109 Cf Bostok 1989 p118
123
7 Quando a alma examina com os sentidos corporais ela eacute arrastada para as
coisas particulares e anda erraacutetica confusa e trocircpega como se estivesse
embriagada porque assim eacute o tipo de coisa com a qual estaacute em contato (79c2-9)
mas quando a alma sozinha por si mesma examina ela se encaminha para o
puro eterno imortal e que permanece na mesma condiccedilatildeo e entatildeo cessa o
desvio e permanece no mesmo estado e condiccedilatildeo porque assim eacute o tipo de coisa
com a qual estaacute em contato (79d1-9)
Na etapa anterior em 79b Soacutecrates apresenta a sua primeira consideraccedilatildeo sobre
a semelhanccedila entre a alma e a classe de coisas invisiacuteveis Agora ele apresenta a sua
segunda consideraccedilatildeo sobre a semelhanccedila entre a alma e a classe de coisas invisiacuteveis
mas num contexto bem mais complexo
Esta complexa passagem retoma a discussatildeo anterior sobre a busca do
conhecimento Na primeira etapa do diaacutelogo Soacutecrates afirma que o corpo (τὸ σῶμα) eacute
obstaacuteculo para a aquisiccedilatildeo do conhecimento (φρόνησις) porque os sentidos corporais
natildeo satildeo confiaacuteveis e natildeo garantem nem precisatildeo (ἀκριβής) nem clareza (σαφής) no
exame (65a9-65b7) O argumento das afinidades retoma toda essa discussatildeo num
contexto mais complexo e com implicaccedilotildees adicionais e a passagem termina justamente
com um esclarecimento de que essa experiecircncia da alma em contato com as lsquoFormasrsquo eacute
o que se pode chamar de conhecimento (φρόνησις) (79d6-7)
Em 79c2-9 Soacutecrates explica que alma que examina por meio do corpo e dos
sentidos eacute arrastada pelo corpo diretamente para objetos particulares Aqui
provavelmente se estabelece a mesma ideia de relaccedilatildeo ou afinidade que Soacutecrates
descreve em seguida quando fala da relaccedilatildeo entre alma e lsquoFormarsquo (Cf 79d3 συγγενὴς)
124
Como o corpo possui uma lsquorelaccedilatildeorsquo com os objetos fiacutesicos a alma deve examinaacute-los
lsquopor meio do corporsquo (διὰ τοῦ σώματος) lsquopor meio dos sentidos corporaisrsquo (δι᾽
αἰσθήσεως) Essa lsquorelaccedilatildeorsquo eacute tatildeo forte que a alma natildeo tem escolha e passivamente eacute
arrastada pelo corpo (ἕλκεται ὑπὸ τοῦ σώματος) para aquilo com que tem afinidade
para as coisas que nunca permanecem no mesmo estado (εἰς τὰ οὐδέποτε κατὰ ταὐτὰ
ἔχοντα) Desse modo a alma perde o controle do processo cognitivo nessa ocasiatildeo em
que o corpo assume a lideranccedila
Pouco antes havia sido estabelecido que objetos particulares satildeo membros da
classe de coisas visiacuteveis (Cf 79a6-11) Assim a forte relaccedilatildeo entre corpo e objetos
particulares decorre da filiaccedilatildeo de ambos na mesma classe de coisas Para examinar os
membros dessa classe de coisas visiacuteveis a alma teraacute de se utilizar do corpo Por outro
lado Soacutecrates ressalta a discrepacircncia entre a alma e os objetos particulares quando
entra em contato com eles a alma anda errante confusa trocircpega porque esta eacute a
natureza dessas coisas com as quais estaacute em contato Soacutecrates havia estabelecido que ldquoa
alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpordquo (79b16-17) e agora
ratifica que as almas natildeo tecircm afinidades com a classe de coisas visiacuteveis Por um lado o
corpo e os sentidos corporais satildeo a via para o exame dos objetos sensiacuteveis por outro eacute
um empecilho para o alcance dos membros por excelecircncia da classe de coisas invisiacuteveis
as lsquoFormasrsquo
Soacutecrates emprega forte linguagem pejorativa para enfatizar a natureza inferior
dos objetos particulares a alma anda erraacutetica confusa trocircpega como se estivesse
embriagada porque estaacute em contato com objetos dessa natureza O corpo jaacute foi
apresentado como um vilatildeo que oblitera o percurso da alma que tenta alcanccedilar as
lsquoFormasrsquo e agora natildeo apenas os sentidos corporais mas tambeacutem os objetos particulares
125
satildeo apresentados como algo vil de natureza inferior O objeto de aspiraccedilatildeo do filoacutesofo eacute
a lsquoFormarsquo e para alcanccedilaacute-la eacute necessaacuterio que a alma se dissocie do corpo e se dirija aos
objetos congecircneres
Em busca de estabelecer a familiaridade entre a alma e as lsquoFormasrsquo Platatildeo
apresenta a discrepacircncia entre alma e objetos particulares quando a alma examina
atraveacutes do corpo ela eacute arrastada para objetos particulares e fica em estado de
perturbaccedilatildeo Isso acontece porque a alma entra em contato com aquilo com que natildeo
possui lsquoafinidadersquo ela eacute arrastada pelo corpo para aquilo que tem lsquoafinidadersquo com ele
mesmo natildeo com a alma (79c2-9) Em 79d1-9 Soacutecrates explica o que acontece quando
a alma examina lsquosozinha por si mesmarsquo (αὐτὴ καθ᾽ αὑτήν) sem a mediaccedilatildeo do corpo e
de seus sentidos ela se encaminha para aquilo com que tem relaccedilatildeo familiaridade ou
afinidade (συγγενής) ndash o puro eterno imortal e que permanece na mesma condiccedilatildeo
Enquanto a alma que examina por meio do corpo eacute arrastada por ele para objetos
particulares a alma que examina sem interaccedilatildeo com o corpo (sozinha por si mesma)
encaminha a si mesma (οἴχεται) para os objetos com os quais tem lsquoafinidadersquo
recuperando o papel ativo que lhe eacute natural no processo de aquisiccedilatildeo do conhecimento
Ela entatildeo alcanccedila as lsquoFormasrsquo e fica em harmonia com elas porque alma e lsquoFormasrsquo satildeo
afins e essa dita lsquoafinidadersquo possibilita que a alma conheccedila seu afim e se relacione
harmonicamente com ele Com base na discrepacircncia entre alma e objetos particulares e
no livre acesso e harmonia entre a alma sozinha e a lsquolsquoFormarsquoque repousa a conclusatildeo de
que ldquoa alma tem maior semelhanccedila e afinidade ao que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo
do que ao que natildeo estaacuterdquo (79d10-e6)
A ideia de lsquorelaccedilatildeorsquo lsquofamiliaridadersquo lsquoafinidadersquo entre alma e lsquoFormasrsquo eacute
expressamente estabelecida pelo termo συγγενής (79d3 Cf 79e1-2 84b2) Jaacute na
126
primeira etapa do diaacutelogo Soacutecrates apresenta uma vaga ideia de que o que eacute lsquopurorsquo pode
conhecer o que eacute puro e o que eacute impuro natildeo pode conhecer o que eacute puro A alma pura
(sozinha por si mesma dissociada do corpo e dos sentidos corporais) pode conhecer
aquilo que eacute puro (sem mistura) mas quando impura (em comunhatildeo com o corpo) natildeo
pode ter acesso agravequilo eacute puro ndash as lsquoFormasrsquo (Cf 67a-b) Conforme essa ideia a alma
por si soacute sem mistura tem direto acesso aos objetos de aspiraccedilatildeo do filoacutesofo Por outro
lado quando estaacute impura o corpo lhe oblitera o acesso agraves lsquoFormasrsquo Ao que parece essa
ideia eacute retomada e desenvolvida no argumento das afinidades sendo alma e lsquoFormasrsquo
entidades congecircneres a alma tem livre acesso cognitivo a elas
Mas a ideia de lsquorelaccedilatildeorsquo lsquofamiliaridadersquo ou lsquoafinidadersquo eacute tambeacutem vaga e obscura
no contexto do argumento das afinidades Existe uma forte evidecircncia textual de que os
termos lsquorelaccedilatildeorsquo e lsquosemelhanccedilarsquo satildeo utilizados como sinocircnimos no argumento Em
79b4-5 Soacutecrates pergunta ldquoqual dos dois tipos de coisa diriacuteamos ser mais semelhante e
ter mais afinidade (ὁμοιότερον καὶ συγγενέστερον) com o corpordquo Pouco depois
apenas a expressatildeo ὁμοιότερον eacute empregada na resposta (no lugar de ὁμοιότερον καὶ
συγγενέστερον) ldquoa alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpordquo
(79b16-17) Esse padratildeo se repete pouco depois com a pergunta formulada com os dois
termos ndash ldquo() com qual desses dois tipos de coisa a alma teria maior semelhanccedila e
afinidade (ψυχὴ ὁμοιότερον εἶναι καὶ συγγενέστερον)rdquo (79e1-2) ndash e a resposta apenas
com um termo ndash ldquo() a alma se assemelha mais ao que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo
do que agravequilo que natildeo estaacuterdquo (ὁμοιότερόν ἐστι ψυχὴ τῷ ἀεὶ ὡσαύτως ἔχοντι μᾶλλον ἢ
τῷ μή) (79e5-6) Gallop afirma que Platatildeo se baseia na ideia empedocleana de que
lsquosemelhante conhece semelhantersquo com base na qual para uma coisa conhecer outra as
127
duas devem possuir algumas caracteriacutesticas ou componentes compartilhados110
Contudo o contexto natildeo deixa claro que Platatildeo realmente emprega essa ideia de
maneira consistente no argumento das afinidades Dizer que ldquoa alma se assemelha mais
ao que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo do que agravequilo que natildeo estaacuterdquo (79e5-6) natildeo eacute o
mesmo que dizer que alma e lsquoFormasrsquo compartilham a mesma caracteriacutestica a
imutalibilidade Soacutecrates diz que a lsquoFormarsquo eacute pura eterna imutaacutevel mas hesita em dizer
que a alma eacute pura eterna imutaacutevel imortal A linguagem da lsquoafinidadersquo e lsquosemelhanccedilarsquo
no argumento das afinidades eacute sempre uma linguagem que apela mais para algum niacutevel
de aproximaccedilatildeo do que para a ideia de compartilhamento de caracteriacutesticas essenciais
Portanto o que se pode afirmar com base no texto eacute que deve existir um tipo de
profunda relaccedilatildeo de lsquoafinidadersquo e lsquosemelhanccedilarsquo entre almas e lsquoFormasrsquo o que confere agraves
almas acesso cognitivo privilegiado a lsquoFormasrsquo
Eacute tambeacutem importante notar que ao contraacuterio dos objetos particulares as
lsquoFormasrsquo satildeo apresentadas como uma classe de coisas superiores que exerce impacto
positivo sobre as almas no contato da alma com a lsquoFormarsquo a alma deixa seu andar
erraacutetico e passa a comportar-se como uma lsquoFormarsquo ela permanece no mesmo estado e
condiccedilatildeo relativamente agraves Formas (79d1-9)
Em 79d1-2 temos uma caracterizaccedilatildeo mais completa das lsquocoisas que satildeorsquo
Cada lsquolsquoFormarsquo eacute
110 Cf Gallop 2002 p140 No De Anima 404b16-18 Aristoacuteteles afirma que Platatildeo no Timeu
sustenta que a alma e as coisas que ela conhece seriam compostas pelos mesmos componentes
particulares pois ldquoo semelhante eacute conhecido pelo semelhanterdquo
128
(i) invisiacutevel (τὸ ἀιδές) embora a lsquoinvisibilidadersquo das lsquolsquoFormasrsquo natildeo apareccedila
nesta lista em 79d1-2 haacute pouco havia ficado estabelecido que lsquoFormasrsquo satildeo
membros da classe de coisas invisiacuteveis (79a6-11)
(ii) pura (τὸ καθαρόν) na primeira etapa do diaacutelogo Platatildeo utiliza a expressatildeo
lsquosem misturarsquo para comunicar a ideia de pureza Nesse contexto apenas
utilizando o pensamento sozinho por si mesmo e sem mistura (αὐτῇ καθ᾽ αὑτὴν
εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ χρώμενος) eacute possiacutevel perseguir cada uma das coisas que
satildeo sozinhas por si mesma e sem mistura (αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ εἰλικρινὲς ἕκαστον
τῶν ὄντων) (66a1-3) Agora Platatildeo utiliza o termo τὸ καθαρόν para caracterizar
essa qualidade permanente da lsquoFormarsquo certamente enfatizando que a lsquoFormarsquo
estaacute completamente separada da classe de coisas visiacuteveis Eacute interessante
observar que embora na primeira etapa do diaacutelogo a expressatildeo lsquosem misturarsquo
possa ser empregada para lsquoo pensamentorsquo e para lsquoas coisas que satildeorsquo em
momento algum eacute dito que a alma eacute pura (τὸ καθαρόν) Platatildeo estaacute
provavelmente tentando estabelecer uma terminologia proacutepria para lsquoaquilo que
eacutersquo Eacute interessante observar que ele continua utilizando a expressatildeo lsquoa alma
sozinha por si mesmo e sem misturarsquo (ψυχὴν αὐτὴν καθ᾽ αὑτὴν εἰλικρινῆ) com
referecircncia agrave alma que se dissocia do corpo no contexto da etapa especulativa que
segue o argumento em si (81c1-2)
(iii) eterna (ἀεὶ ὂν) a lsquoFormarsquo sempre eacute Essa eacute uma caracteriacutestica esperada
porque o argumento jaacute havia estabelecido que lsquoFormasrsquo estatildeo sempre no mesmo
estado e condiccedilatildeo sendo dispersatildeo e destruiccedilatildeo mudanccedilas no estado e condiccedilatildeo
do ser O problema que motiva o argumento das afinidades eacute justamente o receio
129
de que a alma natildeo seja o tipo de coisa que lsquosempre eacutersquo o temor de que ela exista
apenas por um tempo e em seguida seja destruiacuteda
(iv) imortal (ἀθάνατον) Platatildeo coroa a sua caracterizaccedilatildeo das lsquoFormasrsquo com o
reconhecimento de que elas satildeo imortais o que eacute de suma importacircncia num
diaacutelogo cujo tema eacute a imortalidade da alma O termo ἀθάνατον aparece pela
primeira vez no diaacutelogo na transiccedilatildeo entre o primeiro e o segundo argumento
quando Cebes de modo casual sugere que tambeacutem segundo o ensino da
reminiscecircncia a alma parece ser imortal (73a2-3) Depois disso ἀθάνατον volta
a aparecer novamente apenas no argumento das afinidades Esta passagem
(79d1-2) eacute o primeiro registro de uso da palavra ἀθάνατον por Soacutecrates e ele o
faz para caracterizar a lsquoFormarsquo Mas assim como Soacutecrates nunca diz no
contexto do argumento das afinidades que a alma eacute pura (καθαρόν) ou eterna
(ἀεὶ ὂν) em nenhum momento a personagem afirma que a alma eacute imortal
(ἀθάνατον) O que se conclui no argumento das afinidades eacute que a alma eacute mais
semelhante (ὁμοιότατον εἶναι ψυχή) ao que eacute imortal (Cf 80a1-b3) E esta eacute
pela primeira vez no diaacutelogo em que Soacutecrates se utiliza da palavra lsquoimortalrsquo na
conclusatildeo do argumento Ao que parece a discussatildeo se movimento rumo agravequilo
que finalmente se pretende provar a imortalidade da alma o argumento ciacuteclico
conclui que a alma continua a existir depois morte o argumento das
reminiscecircncias que a alma existe antes do nascimento e o das afinidades que a
alma eacute mais semelhante ao que eacute imortal Posteriormente depois de ouvir as
objeccedilotildees dos amigos a respeito do argumento das afinidades Soacutecrates faz um
resumo de todas as objeccedilotildees e criacuteticas levantadas contra os trecircs argumentos que
ele havia apresentado e reconhece que ningueacutem pode morrer confiante a menos
130
que se demonstre ldquoque a alma eacute completamente imortal e indestrutiacutevelrdquo (ὅτι ἔστι
ψυχὴ παντάπασιν ἀθάνατόν τε καὶ ἀνώλεθρον) (88b5-6) Se natildeo fosse possiacutevel
provar seria plausiacutevel temer que na ocasiatildeo da morte a alma poderia ficar
completamente destruiacuteda (88b6-8) Pela primeira vez no diaacutelogo Soacutecrates
formula uma questatildeo que exige nada menos do que uma conclusatildeo de que a
alma eacute imortal a qual seraacute apresentada no uacuteltimo argumento
(v) algo que permanece na mesma condiccedilatildeo (ὡσαύτως ἔχον) por fim Soacutecrates
retoma a ideia jaacute apresentada em 78c10-d9 onde diz que as lsquoFormasrsquo satildeo coisas
lsquoque estatildeo sempre na mesma condiccedilatildeo e estadorsquo (ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ)
Sendo algo que permenece sempre na mesma condiccedilatildeo a lsquoFormarsquo eacute tambeacutem
imune a destruiccedilatildeo
8 A alma tem maior semelhanccedila e afinidade ao que estaacute sempre na mesma
condiccedilatildeo do que ao que natildeo estaacute (79d10-e6)
Agora temos uma mudanccedila na forma da conclusatildeo111
i Em 79b1-b17
ldquoa alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpo eacuterdquo
ii Em 79d10-e6
ldquoa alma tem maior semelhanccedila e afinidade ao que estaacute sempre na mesma
condiccedilatildeo do que ao que natildeo estaacuterdquo
111 Gallop 2002 p 140
131
Como jaacute dissemos a conclusatildeo de que as almas devem ter maior semelhanccedila
com as lsquoFormasrsquo (aquilo que eacute puro eterno imortal e permanece na mesma condiccedilatildeo)
do que com os lsquoobjetos particularesrsquo (aquilo que nunca estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo)
se baseia na discrepacircncia entre alma e objetos particulares e no acesso livre e relaccedilatildeo
harmocircnica entre a alma sozinha e a lsquoFormarsquo Isto se explica em termos de
lsquofamiliaridadersquo lsquoafinidadersquo entre a alma que conhece e o objeto que eacute conhecido (a
lsquoFormarsquo)
Esta etapa do argumento e a conclusatildeo a que chega eacute passiacutevel de criacuteticas aleacutem
das que jaacute foram apresentadas
(i) O argumento eacute inconsistente Apresenta-se a alma como ser passiacutevel de
mudanccedila quando em contato com o mundo fiacutesico ndash ldquoanda erraacutetica confusa e
trocircpega como se estivesse embriagada porque essa eacute a natureza das coisas que
ela estaacute alcanccedilandordquo (79c7-8) ndash ao mesmo tempo em que afirma que a alma
apresenta maacutexima semelhanccedila e afinidade com aquilo que natildeo muda de modo
algum (79d10-e6) Eacute difiacutecil conciliar essa dupla caracterizaccedilatildeo da alma no
argumento razatildeo pela qual Bostock assevera que Platatildeo apresenta a alma com
caraacuteter camaleocircnico porque assume a natureza daquilo com que estaacute em contato
Sendo assim o argumento mostraria que a alma tem maior afinidade com aquilo
que sofre variaccedilatildeo (o corpo por exemplo) do que com aquilo que estaacute sempre na
mesma condiccedilatildeo112
(ii) A linguagem eacute bastante imprecisa Termos-chave como lsquosemelhanccedilarsquo e
lsquoafinidadersquo natildeo satildeo definidos e o contexto natildeo oferece suporte suficiente para
112 Bostock 1989 p 119
132
uma compreensatildeo satisfatoacuteria Eacute possiacutevel que o argumento se baseie no
princiacutepio de que lsquoo semelhante eacute conhecido pelo semelhantersquo mas o contexto
natildeo fornece uma evidecircncia definitiva de que Platatildeo estaacute recorrendo
especificamente a essa ideia
(iii) O argumento apresenta fraquezas O fato de a alma compartilhar com as
lsquoFormasrsquo uma dada caracteriacutestica que o corpo natildeo possui natildeo mostra que a alma
eacute mais semelhante a elas do que o corpo eacute o fato de a alma sozinha poder
alcanccedilar as lsquoFormasrsquo e ter harmonia em contato com elas natildeo eacute suficiente para
estabelecer que as almas satildeo ao maacuteximo semelhantes agraves Formas imutaacuteveis e
com isso concluir que a alma assim como a lsquoFormarsquo eacute imune a qualquer
variaccedilatildeo e consequente destruiccedilatildeo
Soacutecrates agora oferece um argumento suplementar em favor da semelhanccedila entre
a alma e lsquoFormasrsquo O argumento assume a existecircncia de certa relaccedilatildeo hieraacuterquica entre
alma e corpo em que o corpo se subordina ao governo da alma e entre divino e mortal
em que o mortal se subordina ao governo do divino
9 Por imposiccedilatildeo da natureza a alma governa o corpo e o corpo eacute governado
pela alma (79e9-80a2)
10 O divino (τὸ θεῖον) naturalmente eacute o que governa enquanto o mortal (τὸ
θνητόν) eacute o governado (80a2-6)
11 A alma eacute como (ἔοικεν) o divino enquanto o corpo eacute como o mortal (80a7-
9)
133
Platatildeo introduz uma terminologia nova no argumento o divino (τὸ θεῖον) e o
mortal (τὸ θνητόν) A terminologia divino (τὸ θεῖον) e mortal (τὸ θνητόν) natildeo foi usada
ateacute agora no argumento Platatildeo entatildeo alinha a alma com o divino (τὸ θεῖον) os quais
exercem papel de governantes e o corpo com o mortal (τὸ θνητόν) os quais exercem
papel de governados estabelecendo uma relaccedilatildeo de semelhanccedila bastante vaga o divino
e a alma devem ser parecidos porque ambos dominam e governam enquanto o corpo e
o mortal dever ser parecidos porque ambos satildeo dominados e governados (79e-80a2-6)
A distinccedilatildeo entre divino (τὸ θεῖον) e mortal (τὸ θνητόν) revela que o termo
lsquodivinorsquo eacute equivalente ao termo lsquoimortalrsquo113 Para a mente grega eacute natural que o lsquodivinorsquo
traga consigo a ideia de imortalidadersquo114 Contudo natildeo fica claro se Platatildeo introduz uma
nova linha de pensamento no argumento e dessa forma lsquodivinorsquo se refere a lsquodeusesrsquo ou
se essa passagem eacute uma extensatildeo da ideia em progresso e nesse caso lsquodivinorsquo poderia
ser uma referecircncia agraves lsquoFormasrsquo
A Forma jaacute foi apresentada como aquilo que eacute lsquoeternorsquo (ἀεὶ ὂν) e lsquoimortalrsquo
(ἀθάνατον) (79d2) e agora Platatildeo utiliza o termo divino (τὸ θεῖον) provavelmente
como equivalente ao termo lsquoimortalrsquo Platatildeo costuma tomar de empreacutestimo termos
comuns no acircmbito da religiatildeo grega para caracterizar a lsquolsquoFormarsquorsquo Ao utilizar o termo
lsquodivinorsquo ele procura estabelecer a distinccedilatildeo entre dois tipos de existecircncia o mortal
caracterizaria os objetos particulares os quais satildeo inferiores subjugados cuja existecircncia
eacute passageira suscetiacutevel agrave destruiccedilatildeo o lsquodivinorsquo (imortal) caracterizaria as lsquoFormasrsquo que
satildeo governantes ndash membros de um domiacutenio superior imunes agrave mudanccedila e destruiccedilatildeo
Talvez Platatildeo esteja utilizando agora o termo lsquodivinorsquo justamente para comunicar a
113 Rowe 1993 p187
114 Cf Taylor 1922 p176
134
ideia ainda que inacabada e imprecisa da superioridade das lsquoFormasrsquo sobre os objetos
particulares assim como os deuses imortais estatildeo acima dos mortais e os governam as
lsquoFormasrsquo divinas (imortais) satildeo superiores a tudo que pertence ao domiacutenio das coisas
mortais e de alguma maneira pode-se dizer que governam e dominam os objetos
particulares
Aleacutem disso Platatildeo coloca o lsquodivinorsquo no grupo de termos que qualificam as
lsquoFormasrsquo em (80b1-3) Se lsquodivinorsquo dificilmente se refere agraves Formas teriacuteamos uma
divisatildeo entre (i) lsquoo divinorsquo e (ii) a Forma lsquoaquilo que eacute imortal inteligiacutevel uniforme
indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e estado consigo mesmorsquo Mas o texto natildeo
sugere essa divisatildeo e aparentemente a lsquoFormarsquo eacute apresentada como aquilo que eacute divino
imortal inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e estado
consigo mesmo Ao final a ideia de que lsquoa alma eacute como o divinorsquo necessariamente traz
consigo duas ideias inseparaacuteveis nesse contexto natureza superior (natureza divina) e
imortalidade A ideia de governo e domiacutenio em si mesmas natildeo ajudariam o argumento a
provar que a alma seria diferente dos objetos fiacutesicos e que ao contraacuterio deles natildeo estaacute
sujeita agrave destruiccedilatildeo A analogia serve apenas para mostrar que a alma eacute como o divino
superior e imortal
Contudo os comentadores geralmente acreditam que dificilmente o termo
lsquodivinorsquo se refere a Formas por causa da ideia baacutesica de lsquogovernarrsquo115 Realmente eacute
difiacutecil entender em que sentido lsquoFormasrsquo exercem algum tipo de domiacutenio sobre objetos
mortais Isso natildeo fica claro no argumento
Uma das maiores fraquezas do argumento eacute a ausecircncia da ideia de hegemonia
absoluta da alma sobre o corpo Haacute vaacuterios exemplos no diaacutelogo em que a lsquoalma
115 Cf Rowe 1993 p187
135
governantersquo e lsquoo corpo governadorsquo trocam de papel Na primeira etapa do diaacutelogo a
personagem Soacutecrates menciona a crenccedila das religiotildees de misteacuterio segundo a qual ldquonoacutes
seres humanos estamos num tipo de prisatildeordquo (62b) Nesse caso a alma estaria
subordinada ao corpo em que se aloja do qual natildeo poderia deliberadamente se libertar
Adiante eacute dito que a alma se subordina agraves demandas corporais ndash fome doenccedilas desejos
eroacuteticos apetites temores fantasias futilidade (66b-d) Por exemplo ldquoeacute o corpo que
nos forccedila a adquirir riquezas tornando-nos escravos de sua diligecircnciardquo (66d) No
contexto do argumento das afinidades a alma eacute arrastada passivamente pelo corpo para
os objetos particulares (79c) Pelo menos nesses casos natildeo se vecirc com clareza a alma
exercendo um papel soberano sobre o corpo aparentemente contradizendo o que a
passagem afirma sobre a alma que domina e governa o corpo Ainda que a ideia de
governar lsquopor naturezarsquo pode ser entendida como um conceito meramente normativo em
Platatildeo ndash algo que deve ser feito mas que nem sempre eacute ndash a ideia natildeo deixa de ser
estranha num diaacutelogo em que se enfatiza a constante submissatildeo da alma agraves demandas
corporais116 Se governar o corpo significa disciplinaacute-lo resistir aos seus desejos e
examinar com independecircncia a alma costuma falhar no exerciacutecio da sua natural
condiccedilatildeo de governante117
12 A alma eacute extremamente semelhante (ὁμοιότατον) ao divino imortal
inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e estado
consigo mesmo o corpo eacute extremamente semelhante ao humano mortal
116 Gallop 2002 p139
117 Cf Bostock 1989 p 119
136
multiforme sensiacutevel soluacutevel e nunca na mesma condiccedilatildeo consigo mesmo
(80a10-b8)
Nesta etapa final Soacutecrates conduz o argumento para uma conclusatildeo com base
em tudo que foi dito (ἐκ πάντων τῶν εἰρημένων) (80a10-80b1) Aqui fica bem claro que
o argumento eacute do tipo analoacutegico baseia-se na extrema semelhanccedila (ὁμοιότατον) entre
alma e a lsquoFormarsquo Ao dizer que a alma eacute extremamente semelhante (ὁμοιότατον) agravequilo
que eacute divino imortal inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e
estado consigo mesmo Soacutecrates retoma vaacuterios aspectos em que a alma e Forma satildeo
semelhantes
Em suma o argumento apresenta trecircs pontos cruciais de semelhanccedila entre alma
e lsquoFormarsquo
(i) Invisibilidade
Existem duas classes de coisas visiacutevel e invisiacutevel
A alma eacute mais semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpo eacute
(ii) Inteligibilidade
O corpo arrasta a alma para objetos particulares e em contato com eles fica
confusa Sozinha por si a alma alcanccedila a lsquoFormarsquo (aquilo que eacute puro eterno
imortal e que permanece na mesma condiccedilatildeo) e fica em harmonia com ela
A alma possui maior semelhanccedila e afinidade (ὁμοιότερον εἶναι καὶ
συγγενέστερον) com a Forma (aquilo que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo) do
que com o objeto particular (aquilo que natildeo estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo)
(iii) Divindade
137
Ao divino e agrave alma compete o governar e dominar
A alma eacute como (ἔοικεν) o divino (imortal)
Essas trecircs etapas do diaacutelogo estabelecem a semelhanccedila baacutesica entre alma e
lsquoFormarsquo e mostram que almas e lsquoFormasrsquo possuem apenas alguns atributos em comum
Apesar disso o argumento analoacutegico de Platatildeo parece tomar por certo que o fato de
alma e lsquoFormarsquo sejam semelhantes em alguns aspectos isso garantiria que alma e
lsquoFormarsquo seriam extremamente semelhante pelo menos em todos os aspectos que
Soacutecrates alista em 80b1-3
A conclusatildeo traz uma forte declaraccedilatildeo de semelhanccedila no argumento em vez de
simplesmente falar na lsquomaior semelhanccedila e afinidadersquo (ὁμοιότερον εἶναι καὶ
συγγενέστερον) da alma com a Forma (79c1-2) que a lsquoalma se assemelha (ὁμοιότερόν)
mais ao que estaacute sempre na mesma condiccedilatildeo do que agravequilo que natildeo estaacutersquo (79c5) ou que
a alma eacute como (ἔοικεν) o divino (imortal) (80a7) agora se enfatiza a semelhanccedila entre
alma e lsquoFormarsquo pelo uso do superlativo ὁμοιότατον Gallop esclarece que o superlativo
ὁμοιότατον pode ter um sentido intensivo ndash lsquomuito ou extremamente semelhantersquo ndash ou
pode significar lsquomais semelhante do que qualquer outra coisarsquo118 Embora o argumento
natildeo persuada o leitor de que a alma eacute lsquoextremamentersquo semelhante agraves lsquoFormasrsquo isso natildeo
significa que em seu cliacutemax a ideia apresentada natildeo seja justamente aquela da
intensidade O anuacutencio de que estatildeo chegando a uma conclusatildeo com base em tudo que
fora dito a apresentaccedilatildeo de um complexo cataacutelogo de atributos das Formas com as
quais as almas se assemelham (80a10-b3) e a conhecida convicccedilatildeo de Soacutecrates de que a
alma de modo algum se dissolve por ocasiatildeo da morte podem indicar que a personagem
118 Gallop 2002 p142
138
procura afirmar nada menos do que uma grande ou extrema semelhanccedila entre alma e
lsquoFormasrsquo Se este for o caso a ideia eacute realmente de que a alma eacute extremamente
semelhante (ὁμοιότατον) ao divino imortal inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e
sempre na mesma condiccedilatildeo e estado consigo mesmo (80b1-3)
Quase todos os itens dessa lista em 80b1-3 aparecem ao longo do argumento
Trecircs itens satildeo mais importantes para o proacutepoacutesito especiacutefico do argumento que eacute o de
afastar o temor de que a alma se desintegra na hora da morte imortal lsquosempre na
mesma condiccedilatildeo e estado consigo mesmorsquo e indissoluacutevel Mas eacute o termo indissoluacutevel
(ἀδιάλυτος) que chama atenccedilatildeo nessa etapa de conclusatildeo ele aparece pela primeira vez
no argumento e provavelmente tem alguma ligaccedilatildeo ou talvez ateacute sirva de substituto do
termo lsquosimplesrsquo (ἀσύνθετος) que aparece no iniacutecio do argumento em 78c O termo
ἀδιάλυτος pode expressar aquilo que eacute impossiacutevel de ser dissolvido (ou desintegrado)
ou aquilo que embora possa ser dissolvido natildeo o seraacute119 Mas se o termo realmente
retoma a ideia de que coisas simples (ἀσύνθετος) satildeo imunes agrave dispersatildeo enquanto as
compostas somente satildeo suscetiacuteveis agrave dispersatildeo (Cf 78c1-4) a ideia natildeo pode ser nada
menos do que impossibilidade de dissoluccedilatildeo As coisas compostas podem ser
dissolvidas ou dispersas num processo inverso ao que colocou as suas partes juntas mas
isto natildeo significa elas necessariamente seratildeo dissolvidas As almas satildeo extremamente
semelhantes (seja laacute o que isso significa) agraves Formas entatildeo elas devem ser indissoluacuteveis
imunes agrave desintegraccedilatildeo assim como a lsquoFormarsquo eacute
Enquanto a alma eacute insoluacutevel o corpo eacute soluacutevel (διάλυτος) (80b4) e o termo
soluacutevel (διάλυτος) provavelmente recupera ou estaacute relacionado ao termorsquocompostorsquo
(σύνθετος) que aparece em 78c Logo depois de serem introduzidos no diaacutelogo os
119 Rowe 1993 p188
139
termos lsquocompostorsquo (σύνθετος) e lsquosimplesrsquo (ἀσύνθετος) natildeo aparecem novamente no
argumento mas curiosamente Soacutecrates termina o argumento em si com termos que
recuperam a ideia de lsquosimplesrsquo e lsquocompostorsquo A ideia de solubilidade e insolubilidade
que aparecem na lista em 80b1-5 passam a ser cruciais na conclusatildeo final em 80b9-c1
onde satildeo empregados διαλύω e ἀδιάλυτος ldquo() acaso o corpo natildeo seria o tipo de coisa
que se dissolve rapidamente enquanto a alma por sua vez o tipo de coisa
completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo dissordquo (ἆρ᾽ οὐχὶ σώματι μὲν ταχὺ
διαλύεσθαι προσήκει ψυχῇ δὲ αὖ τὸ παράπαν ἀδιαλύτῳ εἶναι ἢ ἐγγύς τι τούτου)
O argumento das afinidades enfrenta a criacutetica de ser o uacutenico argumento
analoacutegico no Feacutedon por ser de natureza analoacutegica natildeo eacute probatoacuterio Como lembra
Bostock o proacuteprio Platatildeo certamente sabia que analogias natildeo podem ser consideradas
como provas conclusivas E embora analogias possam ser bastante persuasivas quando
completas e propriamente detalhadas isso natildeo acontece com o argumento das
afinidades120 Assim como Bostock os comentadores em geral criticam o argumento
das afinidades por ser o uacutenico do tipo analoacutegico no diaacutelogo e como argumento
analoacutegico eacute fraco pouco persuasivo
(a) Bluck assevera que o argumento das afinidades natildeo constitui uma prova ele
eacute um mero argumento de probabilidade sem rigor loacutegico cuja funccedilatildeo eacute
simplesmente preparar o terreno para o uacuteltimo argumento o qual Platatildeo
considera como sendo uma prova real e final da imortalidade da alma121
120 Bostock 1989 p120-121
121 Bluck 1955 p73
140
(b) Dorter observa que enquanto os outros argumentos satildeo estabelecidos com
uma boa dose de rigor formal o argumento das afinidades eacute baseado meramente
em analogia estando assim aberto agrave rejeiccedilatildeo por qualquer pessoa que natildeo aceite
analogia122
(c) Elton afirma que Platatildeo inclui o argumento das afinidades para expor as
armadilhas do raciociacutenio analoacutegico e natildeo para apoiar a defesa da imortalidade
Assim o argumento funcionaria como liccedilatildeo objetiva sobre como natildeo fazer boa
filosofia isto eacute sobre como natildeo argumentar em favor da imortalidade da
alma123
(d) Gallop entende que o argumento tomado como analogia eacute fraco apresenta
uma fraca cadeia de argumentos que tenta estabelecer a analogia entre almas e
Formas124
13 O corpo seria o tipo de coisa que se dissolve rapidamente a alma seria o tipo
de coisa completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso (80b9-11)
Com base na extrema semelhanccedila entre alma e lsquoFormarsquo a personagem Soacutecrates
chega a uma conclusatildeo final ldquoao corpo pertence (προσήκει) a raacutepida dissoluccedilatildeo (τάχυ
διαλύεσθαι) enquanto agrave alma por sua vez ser inteiramente indissoluacutevel (τὸ παράπαν
ἀδιαλύτῳ) ou algo proacuteximo disso (ἤ ἐγγύς τι τούτου)rdquo (80b8-11)
Platatildeo retoma a ideia vaga de lsquopertencerrsquo (προσήκω) que ele emprega
anteriormente em 78c Agora ele diz que pertence ao corpo o sofrer dissoluccedilatildeo
122 Dorter 1982 p 72
123 Elton 1997 p 313316
124 Gallop 2002 p 140
141
(διαλύω) antes que pertence agraves coisas compostas o sofrer dispersatildeo (διαιρέω) (78c2)
Agora pertence agrave alma o ser completamente indissoluacutevel (ἀδιάλυτος) antes ao simples o
natildeo se sujeitar a sofrer dispersatildeo (78c3-4) O verbo προσήκω e as palavras com mesmo
campo semacircntico ndash διαιρέω διαλύω ἀδιάλυτος ndash sugerem que Platatildeo aproxima
intencionalmente os dois contextos (78c e 80b) A ideia de que haacute coisas simples e
compostas eacute crucial no iniacutecio do argumento mas depois de 78c ela eacute abandonada Logo
depois que Soacutecrates relaciona as coisas simples com lsquoas coisas que estatildeo sempre no
mesmo estado e condiccedilatildeorsquo (Formas) e as compostas com lsquoaquelas cuja condiccedilatildeo varia
em ocasiotildees diferentes e nunca se encontram no mesmo estadorsquo (objetos particulares)
(78c6-8) ele introduz definitivamente as lsquoFormasrsquo no argumento (78c10-d7) A partir
daiacute Soacutecrates natildeo menciona a distinccedilatildeo entre lsquocoisas simplesrsquo e lsquocoisas compostasrsquo
novamente mas fica claro que as lsquoFormasrsquo satildeo as coisas simples e imunes agrave dispersatildeo e
as compostas e suscetiacuteveis agrave dispersatildeo satildeo lsquoobjetos particularesrsquo A ideia de sofrer
dissoluccedilatildeo (διαλύω) sofrer dispersatildeo (διαιρέω) e ser indissoluacutevel (ἀδιάλυτος) natildeo se
sujeitar a sofrer dispersatildeo satildeo cruciais para o argumento que visa confrontar a crenccedila
popular de que a alma seria destruiacuteda (διαφθείρω) e pereceria (ἀπόλλυμι) na ocasiatildeo da
separaccedilatildeo do corpo ocasiatildeo em que seria dispersa (διασκεδάννυμι) como vento e
fumaccedila (70a3-6) que na compreensatildeo de Soacutecrates natildeo passa de uma crenccedila ldquopueril de
que o vento realmente dissipe (διαφύομαι) e disperse (διασκεδάννυμι) a alma na ocasiatildeo
em que ela deixa o corpordquo (77d7-e1)
Dentre outras coisas a conclusatildeo desponta por causa falta de clareza O proacuteprio
termo lsquopertencerrsquo eacute vago sem qualquer sentido especializado O argumento utiliza uma
linguagem de confianccedila seguranccedila e certeza apenas quando caracteriza as lsquoFormasrsquo
elas satildeo imortais indissoluacuteveis Mas quando se refere agrave alma diz-se vagamente que a
142
ela lsquopertencersquo o ser completamente indissoluacutevel A ideia de lsquopertencerrsquo (προσήκει) natildeo
traz qualquer certeza ou garantia e apenas atenua a conclusatildeo
A expressatildeo lsquoou algo proacuteximo dissorsquo (ἤ ἐγγύς τι τούτου) (80b11) conduz o leitor
para um mar de incertezas Ao que parece o texto faz um tipo de confissatildeo mais ou
menos aberta de que o argumento das afinidades repousa no terreno da incerteza A
conclusatildeo reflete uma maneira platocircnica de reconhecer a inseguranccedila do argumento
como se fosse uma admissatildeo mais ou menos velada de que o argumento apresenta
problemas125
Como jaacute foi dito o argumento procurar estabelecer que (i) a alma eacute mais
semelhante (ὁμοιότερον) ao invisiacutevel do que o corpo eacute (ii) que a alma deve possuir
maior afinidade com a Forma do que com o objeto particular porque quando examina
sozinha alcanccedila a lsquoFormarsquo e fica em harmonia com ela (iii) que a alma eacute como (ἔοικεν)
o divino (imortal) porque compete a ambos governar e dominar Com base nessas trecircs
comparaccedilotildees Soacutecrates conclui que lsquoa alma eacute extemamente semelhante ao que eacute ao
divino imortal inteligiacutevel uniforme indissoluacutevel e sempre na mesma condiccedilatildeo e
estado consigo mesmorsquo portanto lsquoa alma seria o tipo de coisa completamente
indissoluacutevel ou algo proacuteximo dissorsquo Contudo as trecircs comparaccedilotildees baacutesicas soacute
providenciam base para a conclusatildeo de que a alma eacute lsquocompletamente indissoluacutevelrsquo ou
algo proacuteximo dissorsquo se aceitarmos que a semelhanccedila em alguns aspectos entre alma e
lsquoFormasrsquo ndash invisibilidade inteligibilidade divindade ndash pode garantir a semelhanccedila em
vaacuterios outros aspectos como indissolubilidade Se isso natildeo for aceito dificilmente
algueacutem poderia afirmar que a conclusatildeo de que a alma eacute lsquocompletamente indissoluacutevel
ou algo proacuteximo dissorsquo decorre das trecircs comparaccedilotildees baacutesicas do diaacutelogo
125 Rowe 1993 p189
143
Por fim resta apenas reconhecer todas as deficiecircncias do argumento apontadas
ao longo desta seccedilatildeo para concluir que o argumento das afinidades falha em provar que
a alma eacute imortal Por outro lado o argumento eacute extremamente importante para
convencer os amigos de que a alma eacute um tipo de ser ldquointermediaacuteriordquo o argumento deixa
claro que ela natildeo eacute nem possui afinidades com os objetos particulares mas mesmo
assim consegue interagir com eles a ponto de carregar consigo elementos corporais Por
outro lado ela se assemelha ao maacuteximo com as lsquoFormasrsquo mas ainda assim natildeo eacute uma
delas Portanto a uacutenica saiacuteda para entender essa forte e consistente caracterizaccedilatildeo da
alma no argumento das afinidades eacute concluir que ela eacute um ente que se coloca entre
lsquoFormasrsquo e lsquoobjetos particularesrsquo o que poderiacuteamos chamar de ente intermediaacuterio
bull Formas
bull Alma
bull Objetos sensiacuteveis
Embora seja um argumento analoacutegico que natildeo eacute suficiente para persuadir os
amigos de que a alma eacute completamente indissoluacutevel o argumento tem os seguintes
meacuteritos geralmente desprezados pela literatura criacutetica
(i) O argumento eacute a primeira tentativa direta de provar que a alma eacute por
natureza imune agrave morte A exigecircncia que Cebes apresentaraacute adiante eacute
basicamente que se apresente um argumento capaz de provar aquilo que
o argumento das afinidades pelo menos aponta provar que a alma eacute
completamente indissoluacutevel ou seja imortal e indestrutiacutevel
144
(ii) O argumento eacute a primeira tentativa de provar a imortalidade da alma sem
qualquer vinculaccedilatildeo com a doutrina oacuterfica e pitagoacuterica da transmigraccedilatildeo
(iii) O argumento apresenta pela primeira vez uma caracterizaccedilatildeo consistente
das lsquoFormasrsquo em contraste com os objetos particulares Pela primeira vez
podemos vislumbrar com maior clareza que Platatildeo considera a existecircncia
de trecircs coisas lsquoFormasrsquo lsquoalmasrsquo e lsquoobjetos sensiacuteveisrsquo Eacute precisamente
neste ponto do diaacutelogo que jaacute temos uma caracterizaccedilatildeo suficiente das
lsquoFormasrsquo para reconhecermos que Platatildeo possui uma teoria segundo a
qual existem entidades ldquosuperioresrdquo distintas das almas e dos sensiacuteveis
(iv) A caracterizaccedilatildeo da alma como ente lsquointermediaacuteriorsquo eacute de fundamental
importacircncia para a correta interpretaccedilatildeo do uacuteltimo argumento Platatildeo
certamente espera que interpretemos o uacuteltimo argumento a partir desta
compreensatildeo da alma como ente cuja existecircncia estaacute entre lsquoFormasrsquo e
lsquosensiacuteveisrsquo
54 Etapa Especulativa (80c-84b)
O argumento em si finda em 80b mas daacute margem para que Soacutecrates introduza
imediatamente um tipo de discussatildeo complementar com base no que foi dito no
argumento das afinidades em si Mas essa etapa que inicia em 80c consiste numa
elaboraccedilatildeo especulativa e miacutetica A passagem do argumento em si para essa nova etapa
eacute bastante sutil O primeiro tema desenvolvido nessa etapa trata da distinccedilatildeo baacutesica do
ser humano ndash corpo e alma ndash e manteacutem uma especial ligaccedilatildeo com a conclusatildeo final do
argumento das afinidades Contudo natildeo deve ser tomado como parte ou extensatildeo do
145
argumento em si porque fica claro que o argumento natildeo acomoda qualquer especulaccedilatildeo
de cunho miacutetico-religioso Aleacutem disso a nova etapa se volta para a glorificaccedilatildeo do
modo de vida filosoacutefico e finda com a conclusatildeo de que esse modo de vida eacute o que
finalmente garante a ausecircncia dos temores do filoacutesofo
541 Corpo e alma (80c-d)
bull Corpo (80c2-d4)
No argumento das afinidades fica estabelecido que haacute duas classes de coisas
visiacutevel e invisiacutevel sendo a alma mais semelhante ao invisiacutevel do que o corpo enquanto
o corpo eacute mais semelhante ao visiacutevel do que a alma (79b1-b17) Agora Soacutecrates retoma
parte dessa ideia reafirmando a distinccedilatildeo baacutesica do ser humano em corpo que eacute a parte
visiacutevel (τὸ ὁρατὸν) da pessoa e pouco depois falaraacute da alma que eacute a parte invisiacutevel (τὸ
ἀιδές) (80d5)
Na conclusatildeo do argumento das afinidades Soacutecrates afirma que o corpo se
dissolve rapidamente (τάχυ διαλύεσθαι) (80b9) mas agora a personagem Soacutecrates
parece confrontar o proacuteprio argumento com a ideia de que o cadaacutever ao qual pertence o
dissolver-se desfazer-se dissipar-se (ᾧ προσήκει διαλύεσθαι καὶ διαπίπτειν καὶ
διαπνεῖσθαι) natildeo sofre todas essas coisas imediatamente (οὐκ εὐθὺς τούτων οὐδὲν
πέπονθεν) mas lsquopermanece por um longo temporsquo (συχνὸν ἐπιμένει χρόνον)
especialmente se o falecido eacute jovem ou o cadaacutever embalsamado Aleacutem disso certas
partes como os ossos na praacutetica satildeo imortais (ἀθάνατά ἐστιν) (80c2-d4) Sendo assim a
146
dissoluccedilatildeo do corpo eacute vista agora mais como um processo que varia em cada caso do
que algo imediato como foi apresentado na conclusatildeo do argumento das afinidades
Talvez esse remendo visa reforccedilar a ideia de que a alma natildeo eacute imediatamente
desintegrada na hora da morte se nem mesmo o corpo ndash a parte visiacutevel do ser humano ndash
eacute dissolvido imediatamente apoacutes a morte quanto mais a alma a parte invisiacutevel do ser
humano
Apesar dessa constataccedilatildeo da durabilidade do cadaacutever que de algum modo
aponta para uma imprecisatildeo na conclusatildeo do argumento das afinidades Soacutecrates
reafirma a sua convicccedilatildeo de que lsquodissolver-se desintegrar-se dissipar-sersquo satildeo proacuteprios
do corpo natildeo da almarsquo (80c4-5) como se estivesse reforccedilando ou dando um suporte
adicional para a ideia jaacute apresentada pelo argumento das afinidades
bull Alma (80d5-e1)
Platatildeo tambeacutem se utiliza da ideia de semelhanccedila entre almas e lsquoFormasrsquo
apresentada no argumento das afinidades nessa etapa especulativa No argumento das
afinidades a alma que examina sem a mediaccedilatildeo corporal se encaminha para as Formas
aquilo com que ela possui semelhanccedila e afinidade e fica em harmonia com elas (79c-d)
no acircmbito especulativo miacutetico-religioso a alma que se liberta do corpo vai para um
lugar da mesma natureza um lugar nobre puro invisiacutevel (γενναῖον καὶ καθαρὸν καὶ
ἀιδῆ) chamado Hades onde fica junto a uma divindade boa e saacutebia (παρὰ τὸν ἀγαθὸν
καὶ φρόνιμον θεόν) (80d5-7) A alma que vive em constante afastamento do corpo parte
para o aleacutem pura (sem carregar elementos corporais consigo) e desse modo lsquose
147
encaminha para aquilo que eacute semelhante puro invisiacutevel divino imortal e saacutebiorsquo (εἰς τὸ
ὅμοιον αὐτῇ τὸ ἀιδὲς ἀπέρχεται τὸ θεῖόν τε καὶ ἀθάνατον καὶ φρόνιμον) (81a4-5)
Aleacutem disso assim como no argumento das afinidades a alma que se utilizada do
corpo eacute arrastada para o mundo fiacutesico e anda erraacutetica confusa e trocircpega como se
estivesse embriagada e soacute cessa o desvio quando entra em contato com lsquoaquilo que
permanece sempre na mesma condiccedilatildeorsquo (79c6-8) na versatildeo miacutetico-religiosa de Platatildeo a
alma soacute encontra plena realizaccedilatildeo (εὐδαίμων) quando deixa o mundo fiacutesico e natildeo eacute mais
afetado pelas mazelas oriundas do corpo como lsquoo desvio insensatez tipos selvagens de
amor e os outros males humanosrsquo (πλάνης καὶ ἀνοίας καὶ φόβων καὶ ἀγρίων ἐρώτων καὶ
τῶν ἄλλων κακῶν τῶν ἀνθρωπείων) (81a6-8)
Como lida agora com o domiacutenio miacutetico-religioso e especulativo Soacutecrates
concede agrave divindade seu lugar de primazia apenas se a divindade quiser (ἂν θεὸς θέλῃ)
a sua alma tambeacutem percorreraacute esse mesmo caminho em direccedilatildeo ao divino e agrave completa
realizaccedilatildeo (80d7-8) No entanto ele nutre uma boa esperanccedila de que o divino lhe
permitiraacute desfrutar desse destino assim como havia manifestado antes ao falar da
esperanccedila (ἐλπίς) que os filoacutesofos nutrem de que apenas no Hades alcanccedilariam a
sabedoria que desejaram ao longo de uma vida inteira (68a7-b6) Vale lembra que o
Hades que havia sido completamente excluiacutedo do argumento das afinidades eacute
retomado nessa etapa especulativa
Por fim assim como no argumento das afinidades Soacutecrates confronta o temor
pueril de que o vento possa dispersar e destruir a alma que deixa o corpo especialmente
se a pessoa morrer num dia de ventania (77d-e) a etapa especulativa tambeacutem visa
confrontar a ideia de que na ocasiatildeo da morte a alma seria lsquoimediatamente dissipada e
destruiacuteda como afirmam as pessoasrsquo (εὐθὺς διαπεφύσηται καὶ ἀπόλωλεν ὥς φασιν οἱ
148
πολλοὶ ἄνθρωποι)rsquo Soacutecrates reforccedila que isso natildeo aconteceria lsquolonge disso caros
Siacutemias e Cebesrsquo (80d9-e2) E a sua apresentaccedilatildeo do percurso da alma depois da morte
com base na doutrina da reencarnaccedilatildeo ilustra a sua posiccedilatildeo de que a alma natildeo eacute
aniquilada na hora da morte mas experimenta diferentes tipos de existecircncia de acordo
com a vida que teve unificando todas essas temaacuteticas
542 Vida Filosoacutefica
Um dos objetivos dessa etapa especulativa eacute a defesa da vida dedicada agrave
filosofia Platatildeo explora o tema da vida filosoacutefica e o relaciona a diversos temas
especiacuteficos
bull Filosofia e Reencarnaccedilatildeo
Se por um lado o destino do filoacutesofo depende da vontade divina por outro
depende do modo de vida ndash filosoacutefico ou natildeo ndash que a pessoa leva O destino da alma e o
modo de vida de uma pessoa satildeo diretamente ligados ao tema da reencarnaccedilatildeo nesta
etapa O objetivo desta longa seccedilatildeo em que Platatildeo utiliza a doutrina da reencarnaccedilatildeo
conforme seus interesses eacute apresentar uma vigorosa defesa da vida filosoacutefica mais do
que propagar a crenccedila na reencarnaccedilatildeo
A reencarnaccedilatildeo eacute experimentada por aqueles que natildeo se dedicam agrave filosofia e
assim natildeo se purificam durante a vida Aqueles que se entregam ao modo de vida
corporal entregando-se aos seus deleites nunca podem chegar ao Hades no estado de
pureza e a sua alma parte para o aleacutem contaminada e carregada com os resiacuteduos
149
corporais e logo reencarna em outro corpo porque o Hades natildeo lhe permite ali ficar em
contato com os deuses (80e2-81a1 Cf 83d7-e3) Isto levaria a uma consequente
reencarnaccedilatildeo num corpo de acordo com o gecircnero de vida praticado ( Essa temaacutetica eacute
desenvolvida e ilustrada atraveacutes de trecircs grupos cada grupo caracterizado pela
reencarnaccedilatildeo correspondente ao modo de vida que teve
(i) Aqueles que se entregam agrave glutonaria e embriaguecircs reencarnam como
burros e animais dessa natureza (81e)
(ii) Aqueles que praticam injusticcedilas tiranias e roubos retornam como lobos
falcotildees e abutres (82a)
(iii) Aqueles que praticam a virtude popular e poliacutetica ndash temperanccedila e justiccedila
ndash mas por mero haacutebito sem o exerciacutecio consciente da filosofia e
inteligecircncia nascem como uma espeacutecies sociais como eles satildeo podem
voltar como abelhas vespas formigas ou novamente como humano
(82b-c)
Todo o cenaacuterio em que a personagem principal discute a reencarnaccedilatildeo da alma eacute
construiacutedo para uma seguinte exaltaccedilatildeo do modo de vida filosoacutefico e tudo que se
relaciona a ele
543 Filosofia e salvaccedilatildeo da alma
Filosofia eacute o uacutenico meio de salvaccedilatildeo de um interminaacutevel ciclo de reencarnaccedilotildees
Eacute impossiacutevel quebrar o ciclo de reencarnaccedilotildees e chegar agrave linhagem dos deuses sem o
150
exerciacutecio da Filosofia a qual prepara os filoacutesofos para partirem completamente
purificados para o Hades (82b10-c1) Esse modo de vida filosoacutefico no qual a alma
encontra redenccedilatildeo eacute exemplificado em 82c3-8 os filoacutesofos se afastam e se manteacutem
afastados de todos os desejos que dizem respeito ao corpo como o desejo daquele que
ama o dinheiro e receia pobreza e o daquele que ama poder e honra e receia desonra e
maacute reputaccedilatildeo Platatildeo se utiliza da ideia religiosa da metempsicose e da quebra dos
ciclos de renascimentos ao seu interesse de propagar a sua proacutepria praacutetica filosoacutefica
como via uacutenica de salvaccedilatildeo No Feacutedon vemos um tipo de ldquoproselitismo filosoacuteficordquo jaacute
que natildeo haacute outro meio de quebrar o ciclo de reencarnaccedilotildees o melhor a se fazer eacute
dedicar a vida agrave praacutetica de morrer e estar morto ou seja tornar-se um filoacutesofo
544 Filosofia e libertaccedilatildeo purificaccedilatildeo
O tema da lsquosalvaccedilatildeo da almarsquo (entendida como a quebra do ciclo de
reencarnaccedilotildees) e o tema da lsquopurificaccedilatildeo e libertaccedilatildeo da almarsquo estatildeo intrinsecamente
relacionados A vida de reclusatildeo da alma dissociada do corpo e dedicada agrave filosofia o
que o filoacutesofo chama de verdadeiro filosofar (ὀρθῶς φιλοσοφοῦσα) e exerciacutecio de
morte (μελέτη θανάτου) (80e2-81a1 Cf 83d7-e3) eacute basicamente o que Platatildeo
apresenta como purificaccedilatildeo e libertaccedilatildeo purificaccedilatildeo (καθαρμός) e libertaccedilatildeo (λύσις) se
efetuam por meio da filosofia (82d5-6) Semelhante ideia eacute apresentada no primeiro
estaacutegio do diaacutelogo onde lsquopurificarrsquo eacute a alma afastar-se ao maacuteximo do corpo e viver
longe dele (67c5-d1) O corpo eacute como uma prisatildeo e somente a filosofia pode efetuar a
libertaccedilatildeo da alma encarcerada em seu proacuteprio corpo Sem a praacutetica da filosofia a alma
eacute cativa do corpo e obrigada a examinar as lsquocoisas que satildeorsquo (τὰ ὄντα) por meio dele
151
como atraveacutes de uma prisatildeo (82e3-4) Tambeacutem no primeiro estaacutegio do Feacutedon o tema
da purificaccedilatildeo e libertaccedilatildeo eacute desenvolvido juntamente com a ideia de que o corpo eacute um
tipo de prisatildeo da alma a constante reclusatildeo da alma ldquoeacute um um ato de constante
libertaccedilatildeo do corpo como se estivesse se libertando de cadeiasrdquo (67d1-2)
Quando algueacutem eacute iniciado na filosofia o processo de libertaccedilatildeo comeccedila a tomar
lugar paulatinamente (83a9-b1)
bull Filosofia gentilmente aconselha a alma
bull Filosofia tenta libertar a alma do exame atraveacutes dos sentidos
bull Filosofia persuade a distanciar a alma dos sentidos exceto
quando eacute imperativo usaacute-los
bull Filosofia encoraja a alma a recolher-se em si mesma e a confiar
apenas em si mesma quando usa a inteligecircncia para captar as
coisas que satildeo sozinhas por si mesmas (αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ τῶν
ὄντων)
bull Filosofia encoraja a alma a considerar falso tudo que examine por
outros meios
bull Filosofia ajuda a identificar o que eacute sensiacutevel e visiacutevel e o que eacute
inteligiacutevel e invisiacutevel
152
545 Afinidade entre alma e o divino
O argumento das afinidades em si procura estabelecer a afinidade entre almas e
lsquoFormasrsquo enquanto a etapa especulativa procura estabelecer a versatildeo miacutetico-religiosa da
lsquoafinidadersquo ou seja a afinidade entre alma e o domiacutenio do divino que inclui o lugar as
divindades e tudo que faccedila parte desse domiacutenio Esta etapa chega ao fim com a
declaraccedilatildeo de que ao findar a vida a alma vai alcanccedilar aquilo que com ela possui
lsquoafinidadersquo e que eacute do mesmo tipo dela (εἰς τὸ συγγενὲς καὶ εἰς τὸ τοιοῦτον) (84b2-3)
Platatildeo utiliza vaacuterias expressotildees e termos para expressar a ideia de semelhanccedila relaccedilatildeo
afinidade familiaridade mesma natureza O termo συγγενής em particular eacute aparece
duas vezes no argumento das afinidades em si uma para estabelecer a familiaridade ou
afinidade entre corpo e a classe de coisas visiacuteveis e a alma e a classe de coisas
invisiacuteveis (79d3) outra para estabelecer a afinidade entre lsquoo que eacute puro eterno imortal
e permanece na mesma condiccedilatildeorsquo e a alma (79e1-2) Nesta conclusatildeo em 84b2-3 na
qual eacute dito apenas que a alma que deixa o corpo vai alcanccedilar aquilo com que ela possui
lsquoafinidadersquo (συγγενής) o contexto miacutetico-religioso sugere o encontro entre alma e o
domiacutenio do divino como jaacute havia sido sugerido pelo menos em duas ocasiotildees em
80d5-7 a alma que se liberta do corpo vai para outro lugar da mesma natureza que a sua
(εἰς τοιοῦτον τόπον ἕτερον) um lugar nobre puro invisiacutevel chamado Hades onde fica
junto a uma divindade boa e saacutebia em 81a4-5 a alma que parte para o aleacutem pura lsquose
encaminha para aquilo que eacute semelhante puro invisiacutevel divino imortal e saacutebiorsquo (εἰς τὸ
ὅμοιον αὐτῇ τὸ ἀιδὲς ἀπέρχεται τὸ θεῖόν τε καὶ ἀθάνατον καὶ φρόνιμον) (81a4-5) Toda
aspiraccedilatildeo post mortem do filoacutesofo nesta etapa especulativa diz respeito ao mundo
idealizado pela perspectiva miacutetico-religiosa e a semelhanccedila entre a alma e o domiacutenio do
153
divino e imortal parece tentar reforccedilar aquilo que foi apresentado no argumento das
afinidades em si Mas eacute importante lembrar que as lsquoFormasrsquo ainda satildeo objeto de desejo
do filoacutesofo durante a vida na etapa especulativa em 82e3-4 menciona-se o exame das
lsquocoisas que satildeorsquo (τὰ ὄντα) e pouco depois a utilizaccedilatildeo da inteligecircncia para captar lsquoas
coisas que satildeo sozinhas por si mesmasrsquo (αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ τῶν ὄντων) Nesse caso o
objetivo eacute reforccedilar a ideia de que eacute necessaacuterio examinar as lsquoFormasrsquo sem a
intermediaccedilatildeo corporal
546 Vida filosoacutefica e o temor da desintegraccedilatildeo da alma
No argumento das afinidades em si a extrema semelhanccedila entre almas e
lsquoFormasrsquo leva agrave conclusatildeo final de que a alma deve ser algo indissoluacutevel e assim natildeo
haveria razatildeo para nutrir os temores pueris de Cebes e Siacutemias de que a alma se
desintegraria assim que deixasse o corpo Por semelhante modo na etapa especulativa a
ideia de semelhanccedila entre a alma do filoacutesofo e o domiacutenio do divino eacute imediatamente
seguida pela afirmaccedilatildeo de que de modo algum a alma vai ser dissipada pelo vento e
destruiacuteda por ocasiatildeo da morte Mas nesse contexto especulativo natildeo eacute a afinidade da
alma com o divino que fundamenta a ideia de que a alma natildeo se desintegra na hora da
morte as a vida vida filosoacutefica eacute o que assegura que a alma natildeo seraacute desintegrada na
ocasiatildeo da morte eacute com base no modo de vida filosoacutefico (ἐκ δὴ τῆς τοιαύτης τροφῆς)
que natildeo haacute risco algum de que se tema que a alma possa ser dissolvida por ocasiatildeo da
morte esvaindo-se conforme o vento passando a natildeo mais existir em lugar algum
(84b3-7)
154
Esta seccedilatildeo especulativa retoma em grande parte a defesa de Soacutecrates na primeira
parte do diaacutelogo pela qual Soacutecrates tenta persuadir um seleto grupo de disciacutepulos que
natildeo estaacute convencido de que a morte eacute o melhor para o filoacutesofo procurando justificar sua
confianccedila e intrigante atitude diante da morte iminente e ateacute mesmo seu desejo de
morrer (60c-62c) Tanto em sua defesa como nessa etapa especulativa a vida filosoacutefica
eacute o que fundamenta qualquer esperanccedila no porvir
155
6 UacuteLTIMO ARGUMENTO ndash PROLEGOcircMENOS (102A-105C)
61 Introduccedilatildeo
A interpretaccedilatildeo do uacuteltimo argumento eacute bastante discordante Ele tem a reputaccedilatildeo
de ser difiacutecil e insatisfatoacuterio e qualquer nova proposta de interpretaccedilatildeo tende a ser
tomada como mais uma maneira possiacutevel de lecirc-lo126
A etapa que vem depois do argumento das afinidades aparentemente prepara o
terreno para a introduccedilatildeo do argumento final propriamente dito mas a relaccedilatildeo entre ela
e o argumento final estaacute longe ser clara Esta longa estapa se desenvolve ateacute a
introduccedilatildeo do uacuteltimo argumento propriamente dito em 105c
61 O impacto do Argumento das Afinidades
Com base na afinidade entre alma e lsquoFormarsquo o argumento das afinidades conclui
que a alma eacute algo completamente indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso (80b9-11) O
argumento natildeo consegue estabelece a prova definitiva da imortalidade mas representa
um grande avanccedilo na discussatildeo que evolui de duas provas vinculadas a uma concepccedilatildeo
de imortalidade da alma vinculada a uma crenccedila de cunho oacuterfico e pitagoacuterico segundo a
qual imortalidade e transmigraccedilatildeo da alma se confundem para um argumento que
apesar de analoacutegico ataca o cerne de questatildeo a natureza da alma a sua imunidade agrave
126 Sedley 2011 p 31
156
morte O argumento provoca um forte impacto nos amigos pela primeira vez
apresentam suas proacuteprias ideias a teoria da alma-harmonia o tecelatildeo e seus mantos
Sobretudo Cebes poderaacute reconhecer que a alma eacute um ser especial diferente dos objetos
particulares divina longeva mais duradoura do que o corpo Mesmo assim a sua
afinidade com as lsquoFormasrsquo no argumento analoacutegico natildeo consegue convencecirc-lo de que
ela seria imortal completamente indissoluacutevel O proacuteprio Soacutecrates reconhece a fraqueza
do argumento ao concluir que a alma poderia ser algo proacuteximo de indissoluacutevel
Dialogando com a conclusatildeo do argumento das afinidades Cebes exigiraacute uma prova de
que a alma eacute imortal e completamente indestrutiacutevel A expressatildeo completamente
indestrutiacutevel visa explicar o tipo de concepccedilatildeo de imortalidade que eacute requerida agora
imortal natildeo apenas com o sentido de divino na religiatildeo tradicional ou vinculada agrave
doutrina da transmigraccedilatildeo da alma na tradiccedilatildeo oacuterfica e pitagoacuterica ou a quase
indissolubilidade da alma como uma admissatildeo de sua imortalidade mas a imortalidade
num sentido filosoacutefico especializado ndash a alma imortal eacute a alma completamente imune a
destruiccedilatildeo a alma cuja natureza eacute essencialmente viva e natildeo admite morte e destruiccedilatildeo
em hipoacutetese alguma Ateacute o momento Soacutecrates natildeo apresenta uma resposta para o
problema apresentado inicialmente por Cebes em 70a a desintegraccedilatildeo da alma na
ocasiatildeo em que se desaloja do corpo O argumento ciacuteclico estabelece apenas a
continuidade da vida em geral e a continuidade da alma em particular O argumento da
reminiscecircncia estabelece a existecircncia da alma antes de alojar-se no corpo e os amigos de
Soacutecrates enfaticamente apoiam essa tese em vaacuterias partes do diaacutelogo mas o maacuteximo
que isto poderia provar seria que a existecircncia da alma do momento em que no aleacutem
capta as lsquoFormasrsquo para a corrente reencarnaccedilatildeo sem qualquer garantia de que ao deixar
novamente o corpo a alma seria destruiacuteda e o argumento das afinidade como
157
acabamos de relatar acentua a duacutevida de que a alma seria completamente indissoluacutevel
O problema continua o mesmo ainda existe a possibilidade de dispersatildeo e aniquilaccedilatildeo
da alma
Mas sem duacutevida o argumento das afinidades provoca um especial impacto nos
amigos de Soacutecrates como acabamos de sugerir Soacutecrates silencia por um longo periacuteodo
e os amigos conversam em voz baixa O filoacutesofo entatildeo pergunta o que se passa A
verdade eacute que Siacutemias e Cebes tecircm algumas dificuldades com o argumento mas natildeo
querem perturbaacute-lo em sua presente desgraccedila (84c-d) O argumento analoacutegico natildeo
persuade os amigos de que a alma eacute imune agrave dispersatildeo e destruiccedilatildeo O temor persiste
Soacutecrates quebra o silecircncio para reforccedilar que natildeo vecirc a sua situaccedilatildeo que enfrenta como
infortuacutenio e ateacute evoca dotes divinatoacuterios com o fim de expressar a sua confianccedila de que
se reuniraacute com os deuses no Hades (84e-85a) e para pedir que os amigos apresentem
suas consideraccedilotildees (85a) O argumento das afinidades inspira os amigos de Soacutecrates a
apresentar as suas proacuteprias objeccedilotildees baseadas em algum tipo de analogia entre a alma e
a harmonia produzia por um instrument musical e a alma e o tecelatildeo com os mantos
que fabrica e com os quais se veste
62 Objeccedilotildees de Siacutemias e Cebes
Siacutemias e Cebes apresentam suas proacuteprias objeccedilotildees
(i) Siacutemias (85e-86d) a alma eacute como uma harmonia e o corpo eacute como uma
lira e suas cordas A harmonia eacute algo invisiacutevel incorpoacutereo e
158
absolutamente belo e divino na lira afinada enquanto a proacutepria lira e
suas cordas satildeo corpos e semelhantes ao mortal A alma perece com o
corpo assim como a harmonia deixa de existir quando a lira for destruiacuteda
(ii) Cebes (87a-88b) a analogia involve um tecelatildeo e seu manto Cebes estaacute
convencido de que alma existe antes do nascimento (argumento da
reminiscecircncia) mas ainda duvida que ela continue existindo apoacutes a
morte O tecelatildeo representa a alma e o manto representa os corpos nas
vaacuterias reencarnaccedilotildees Jaacute que o manto eacute mais fraacutegil do que o tecelatildeo ele
precisaraacute fazer e vestir vaacuterios mantos ao longo da vida assim como a
alma precisaraacute reencarnar em vaacuterios corpos sendo assim mais duraacutevel do
que o corpo mas natildeo imortal
Soacutecrates Soacutecrates faz uma breve revisatildeo dos dois argumentos em 91c7ndashd7 com o
sutil propoacutesito de revelar que os problemas das objeccedilotildees dos amigos O primeiro deles eacute
a discordacircncia dos proacuteprios amigos
(i) Os amigos natildeo concordam sequer no seguinte ponto fundamental
quando a alma deve perecer Siacutemias acredita a alma perece com ou antes
do corpo (86b2) Cebes acredita que a alma deve ter uma consistecircncia e
duraccedilatildeo maior do que a do corpo vindo a perecer apoacutes o corpo num dos
ciclos de reencarnaccedilotildees (87d1 e2)
(ii) Os amigos tambeacutem discordam na compreensatildeo da relaccedilatildeo de
interdependecircncia entre alma e corpo Com a sua teoria da alma-
159
harmonia Siacutemias tende a pensar que eacute a alma que depende do corpo
sendo destruiacuteda a lira (corpo) a harmonia que produz (a alma) tambeacutem
perece (86c5) Quando Cebes retrata o tecelatildeo (alma) como fazedor de
sua proacutepria vestimenta (corpo) ele daacute a entender que a alma deve durar
mais do que o corpo (87e1)
Quando confronta diretamente Siacutemias Soacutecrates facilmente lhe mostra que a sua
posiccedilatildeo eacute inconsistente e contraditoacuteria porque ele tenta sustentar o argumento da
reminiscecircnca e a teoria da alma-harmonia ao mesmo tempo Por um lado ele concorda
que a alma eacute como uma harmonia e assim sua existecircncia estaacute completamente
dependente do corpo ndash a harmonia de uma lira natildeo pode existir independentemente da
lira Por outro ele concorda com o argumento da reminiscecircncia segundo o qual a alma
existe independentemente do corpo antes mesmo do nascimento (92bndashe) Siacutemias teria
de escolher um dos argumentos e sem titubear ele abandona o proacuteprio argumento
(alma-harmonia) sob a justificativa de que ele ocorrera sem demonstraccedilatildeo (ἀπόδειξις) e
reafirma o argumento da reminiscecircncia o qual deriva de uma hipoacutetese digna de
aceitaccedilatildeo Como o proacuteprio Siacutemias admite natildeo se trata propriamente de um argumento
uma demonstraccedilatildeo (ἀπόδειξις) mas sim de uma objeccedilatildeo baseada numa imagem e
verossimilhanccedila (μετὰ εἰκότος τινὸς καὶ εὐπρεπείας) Para que natildeo reste nenhuma
duacutevida ele termina ratificando que eacute certo que a alma existe antes de entrar num corpo
assim como existe a Forma aquilo que eacute (92c-92d) Platatildeo deixa claro que a noccedilatildeo de
da alma-harmonia eacute completamente insustentaacutevel
No argumento do tecelatildeo e seus mantos a alma sobrevive a vaacuterios ciclos de
reencarnaccedilotildees mas perece no final sendo apenas mais resistente do que o corpo mas
160
natildeo imortal (87a-88b) A partir deste argumento Cebes apresenta objeccedilotildees gerais
essenciais para corrigir o rumo do diaacutelogo e para a construccedilatildeo do uacuteltimo argumento Em
suma eis a suas objeccedilotildees
(i) Cebes aponta o problema natildeo estaacute demonstrado que a alma continua a
existir em algum lugar depois da morte (87a4-5) Com essa consideraccedilatildeo
ele aponta a falha dos trecircs argumentos em providenciar uma prova final
da imortalidade da alma
(ii) Cebes critica a insuficiecircncia dos argumentos apresentados ainda que se
suponha que a alma eacute de natureza robusta (αὐτὸ φύσει ἰσχυρὸν εἶναι) e
resiste a uma seacuterie de ciclos de renascimentos (πολλάκις γιγνομένην
ψυχὴν ἀντέχειν) ainda assim natildeo haacute garantia de que ela natildeo se
desgastaria e numa das mortes ficaria totalmente aniquilada (ἔν τινι τῶν
θανάτων παντάπασιν ἀπόλλυσθαι) sem que ningueacutem saiba em qual
dessas mortes isso poderia ocorrer (88a1-10) A sua observaccedilatildeo estaacute
imediatamente relacionada ao seu argumento do tecelatildeo e do manto mas
parece se aplicar tambeacutem a todos os argumentos apresentados ateacute agora
a comeccedilar pelo argumento ciacuteclico o qual tenta provar que a alma
sobrevive atraveacutes dos ciclos de reencarnaccedilotildees mas natildeo garante que num
desses ciclos a alma simplesmente seria destruiacuteda
(iii) Cebes apresenta a necessidade lsquoprovar que a alma eacute completamente
imortal e indestrutiacutevelrsquo (ἀποδεῖξαι ὅτι ἔστι ψυχὴ παντάπασιν ἀθάνατόν τε
καὶ ἀνώλεθρον) (88b3-6)
161
(iv) Cebes critica a confianccedila e atitude de Soacutecrates diante da morte iminente
eacute insensato se mostrar confiante perante a morte a natildeo ser que se possa
lsquoprovar que a alma eacute completamente imortal e indestrutiacutevelrsquo (88b3-6)
Sem isso aquele que estaacute na iminecircncia da morte deve temer
constantemente que a sua alma seja completamente destruiacuteda
(παντάπασιν ἀπόληται) na ocasiatildeo em que ela se separa do corpo (88b6-
8) Mais uma vez essa criacutetica contempla a atitude de Soacutecrates diante da
morte em todo o diaacutelogo
(v) Cebes conduz a discussatildeo para um momento dramaacutetico de crise depois
de sua explanaccedilatildeo os amigos ficam tristes confusos increacutedulos (88c1-
5)
(vi) Cebes cria ocasiatildeo para o narrador Feacutedon exaltar Soacutecrates o qual se
posiciona para continuar a discussatildeo o filoacutesofo recebe a criacutetica com
maestria e como um general cujo exeacutercito foi disperso realinha as
fileiras de batalha e convoca os soldados para retornar ao campo de
batalha ndash o campo da argumentaccedilatildeo (88e-89a)
O problema da mortalidade da alma ainda persiste Se a alma for mortal a alma
de Soacutecrates corre o risco de ser destruiacuteda em breve assim que tomar o veneno e o corpo
perecer
A discussatildeo vem se desenrolando passo a passo O primeiro argumento que
aponta para a necessidade de provar que a alma eacute lsquoo tipo de coisa completamente
indissoluacutevelrsquo (τὸ παράπαν ἀδιαλύτῳ εἶναι) eacute o argumento das afinidades mas ele
mesmo falha com a conclusatildeo de que a alma pode ser lsquoalgo proacuteximo de ser
162
completamente indissoluacutevelrsquo (80b10-11) O argumento do tecelatildeo e seus mantos
desenvolve semelhante problemaacutetica a ideia de uma alma robusta longeva quase
imortal e indestrutiacutevel mas que depois de uma sobreviver a uma seacuterie de reencarnaccedilotildees
se desgasta e num desses ciclos acaba aniquilada
Sendo assim Cebes requer uma prova definitiva de que a alma eacute completamente
imortal e indestrutiacutevel o que fica claro pela adiccedilatildeo das palavras lsquocompletamentersquo e
lsquoindestrutiacutevelrsquo O risco de que a alma lsquoficasse completamente aniquilada em uma das
mortesrsquo (ἔν τινι τῶν θανάτων παντάπασιν ἀπόλλυσθαι) (88a9-10) exige um argumento
que prove que ela eacute completamente imortal e indestrutiacutevel (παντάπασιν ἀθάνατόν τε καὶ
ἀνώλεθρον) (88b5-6) Esta reivindicaccedilatildeo eacute essencial neste ponto do diaacutelogo porque
Soacutecrates a acolhe e o argumento final busca satisfazecirc-la ldquoa alma eacute imortal e
indestrutiacutevelrdquo (ψυχὴ ἀθάνατον καὶ ἀνώλεθρον (106e8-107a1)
Essa lista de observaccedilotildees de Cebes eacute acolhida recapitulada e utilizada por
Soacutecrates como paracircmetro a ser seguido na construccedilatildeo do proacuteximo argumento Eis a
recapitulaccedilatildeo que Soacutecrates faz das objeccedilotildees de Cebes (95b-e)
(i) Deve ser demonstrado que a nossa alma eacute imortal e indestrutiacutevel (ἀξιοῖς
ἐπιδειχθῆναι ἡμῶν τὴν ψυχὴν ἀνώλεθρόν τε καὶ ἀθάνατον οὖσαν)
(ii) Sem uma demonstraccedilatildeo da imortalidade da alma a mera confianccedila e
esperanccedila do filoacutesofo de ter um vida feliz e melhor no aleacutem eacute nada mais
do que uma confianccedila insana e vatilde
(iii) Apresentar a alma como algo resistente e divino (τὸ δὲ ἀποφαίνειν ὅτι
ἰσχυρόν τί ἐστιν ἡ ψυχὴ καὶ θεοειδὲς) e que existia antes mesmo de nos
163
tornarmos seres humanos natildeo prova a sua imortalidade mas apenas a sua
longa duraccedilatildeo em algum lugar
(iv) A entrada da alma num corpo humano jaacute eacute para ela como se fosse uma
doenccedila o iniacutecio da sua ruiacutena ateacute que se extinga na morte
(v) Sem ter um argumento de que a alma eacute imortal (λόγον διδόναι ὡς
ἀθάνατόν ἐστι) o que conveacutem eacute temer natildeo importa se ela entra uma ou
vaacuterias vezes num corpo
(vi) Toda pessoa que tem bom senso deve temer a morte se natildeo souberem o
que eacute imortal e natildeo poderem oferecer um argumento sobre isso
Quando Soacutecrates pergunta se os amigos aceitaram todos os argumentos
apresentados ou apenas alguns (πότερον οὖν ἔφη πάντας τοὺς ἔμπροσθε λόγους οὐκ
ἀποδέχεσθε ἢ τοὺς μέν τοὺς δ᾽ οὔ) Cebes e Siacutemias revelam que apenas alguns haviam
sido aceitos outros natildeo mas ambos salientam que aceitam completamente o argumento
das reminiscecircncias ndash as almas existem antes do nascimento (91e-92a) Cebes aceita
algumas das demonstraccedilotildees anteriores o que significa que em sua perspectiva o
diaacutelogo havia progredido na explanaccedilatildeo sobre a natureza da alma ndash os argumentos
anteriores (pelo menos alguns) ajudam a entender a superioridade da alma em relaccedilatildeo
ao corpo ndash mas natildeo satildeo suficientes para provar o que se requer nesta ocasiatildeo ndash a
imortalidade da alma Eles ajudam a entender a alma em parte principalmente a sua
superioridade em relaccedilatildeo ao corpo mas ainda natildeo satildeo suficientes para atender as
exigecircncias de Cebes provar que a alma eacute imortal e indestrutiacutevel Em suma Cebes
admite que a alma eacute (91e-92a95c)
164
A alma eacute lsquorobustarsquo (ἰσχυρός) Mas natildeo imortal e indestrutiacutevel
A alma eacute lsquodivinarsquo (θεοειδής) Mas natildeo imortal e indestrutiacutevel
A alma eacute lsquolongevarsquo (πολυχρόνιος) Mas natildeo imortal e indestrutiacutevel
A alma eacute lsquopreexistentersquo (argumento
da reminiscecircncia)
Mas natildeo imortal e indestrutiacutevel
Apesar de o argumento de Cebes ndash tecelatildeo e o seu manto ndash seja tambeacutem baseado
numa mera lsquoimagemrsquo ou lsquoilustraccedilatildeorsquo sem demonstraccedilatildeo (assim como o de Siacutemias) que
eacute como a maioria das pessoas fundamental suas opiniotildees (τοῖς πολλοῖς δοκεῖ
ἀνθρώποις) (92d) e mesmo assim a ideia apresente claras inconsistecircncias ndash natildeo haacute
razatildeo para pensar que a alma pode sofrer um processo de desgaste vestindo o corpo ao
longo de diversas reencarnaccedilotildees porque natildeo eacute o manto que veste o tecelatildeo mas o
tecelatildeo o manto e assim o que se deteriora pelo uso eacute o mantocorpo natildeo o
tecelatildeoalma ndash ainda assim as objeccedilotildees gerais que Cebes levanta satildeo bem colocadas e
Soacutecrates afirma que lsquoisto requer uma exposiccedilatildeo sobre a causa da geraccedilatildeo e da
destruiccedilatildeorsquo (95e-96a) A nova etapa inicia com a autobiografia intelectual de Soacutecrates
que nos apresenta a busca inicial de Soacutecrates pela verdadeira lsquocausarsquo das coisas Durante
este estaacutegio Soacutecrates encontra uma resposta completamente sem sentido para a sua
busca da causa verdadeira Isto faz com que ele apele para uma outro tipo de
investigaccedilatildeo da causa
A cuidadosa leitura do texto sugere que a etapa entre as objeccedilotildees de Cebes e o
argumento final apresenta trecircs tipos de resposta concernentes agrave lsquocausarsquo das coisas
165
Quando em sua juventude Soacutecrates se decepciona com aquilo que os filoacutesofos da
natureza consideram como αἴτια Soacutecrates diz que ldquo(hellip) chamar esse tipo de coisa de
causa eacute completamente sem sentidordquo (ἀλλ᾽ αἴτια μὲν τὰ τοιαῦτα καλεῖν λίαν ἄτοπον)
(99a4-5) Soacutecrates entatildeo busca outra resposta Na seccedilatildeo seguinte temos duas tentativas
de desenvolver uma noccedilatildeo platocircnica de causa Quando a personagem Soacutecrates expressa
a sua primeira formulaccedilatildeo de uma noccedilatildeo proacutepria de causa nos termos lsquoeacute por causa da
beleza que todas as coisas satildeo belasrsquo (100d7-8)rsquo ele diz que ele pensa que esta lhe
parece a afirmaccedilatildeo lsquomais segurarsquo (τοῦτο γάρ μοι δοκεῖ ἀσφαλέστατον εἶναι) (100d8-9)
Ele repete a ideia para deixar claro o tipo de resposta que ele chama de mais segura
lsquocontudo eacute seguro responder tanto a mim mesmo quanto a qualquer outra pessoa que eacute
por causa da beleza que as coisas belas se tornam belasrsquo (ἀλλ᾽ ἀσφαλὲς εἶναι καὶ ἐμοὶ
καὶ ὁτῳοῦν ἄλλῳ ἀποκρίνασθαι ὅτι τῷ καλῷ τὰ καλὰ γίγνεται καλά) (100e1-3) Mas
depois desta primeira tentativa Platatildeo desenvolve ainda mais a sua noccedilatildeo de causa
preparando terreno para a introduccedilatildeo do argumento final Portanto achamos razoaacutevel
dividir a etapa entre as objeccedilotildees gerais de Cebes e o uacuteltimo argumento da seguinte
maneira em trecircs ocasiotildees
(i) Causa conforme os fiacutesicos contemporacircneosAnaxaacutegoras127 ndash 96a-99c
(ii) Tentativa de construir uma noccedilatildeo segura de causa ndash 99d-101e
(iii) Tentativa de construir uma noccedilatildeo sofisticada de causa ndash 102a-105c128
127 Utizamos a expressatildeo ldquoA resposta extremamente improacutepriardquo ou ldquoA resposta completamente
sem sentidordquo com base em 99a4-5 ldquoContudo chamar esse tipo de coisa de causa eacute
extremamente improacutepriordquo (ἀλλ᾽ αἴτια μὲν τὰ τοιαῦτα καλεῖν λίαν ἄτοπον)
128 O texto natildeo traz a palavra lsquointeligentersquo mas apenas lsquooutra resposta segurarsquo (Cf 105b5-c1)
166
Essa etapa eacute desenvolvida ateacute a introduccedilatildeo do argumento final em 105c
63 Causa conforme os fiacutesicos contemporacircneosAnaxaacutegoras129 ndash 96a-99c
Soacutecrates apresenta sua chamada autobiografia intelectual que eacute introduzida no
diaacutelogo logo depois que a personagem recapitula as objeccedilotildees gerais de Cebes O
filoacutesofo imediatamente silencia por um tempo e quando retoma a discussatildeo louva a
busca de Cebes por algo que natildeo eacute trivial (95e8-9) e reconhece que diante das objeccedilotildees
eacute necessaacuterio discutir como um todo sobre a causa da geraccedilatildeo e da destruiccedilatildeo (ὅλως γὰρ
δεῖ περὶ γενέσεως καὶ φθορᾶς τὴν αἰτίαν διαπραγματεύσασθαι) (95e10-96a3)
Nesta seccedilatildeo autobiograacutefica a personagem fala das suas proacuteprias experiecircncias (τά
γε ἐμὰ πάθη) em busca de conhecer a causa da geraccedilatildeo e da destruiccedilatildeo (96a2) Em sua
mocidade era dado agrave lsquoinvestigaccedilatildeo sobre a naturezarsquo (περὶ φύσεως ἱστορίαν) buscando
conhecer as causas das coisas Parecia-lhe maravilhoso conhecer as causas de casa coisa
(εἰδέναι τὰς αἰτίας ἑκάστου) ldquopor que cada coisa eacute gerada perece e subsisterdquo (96a6-10)
Mas ele percebeu que o conhecimento sobre as causas era insatisfatoacuterio A sua
esperanccedila de que o livro de Anaxaacutegoras lhe ensinaria sobre as lsquocausasrsquo terminou numa
grande decepccedilatildeo e ao final ele rejeitou o modo de investigaccedilatildeo que os filoacutesofos da
natureza empregaram na busca da causa
129 Utizamos a expressatildeo ldquoA resposta extremamente improacutepriardquo ou ldquoA resposta completamente
sem sentidordquo com base em 99a4-5 ldquoContudo chamar esse tipo de coisa de causa eacute
extremamente improacutepriordquo (ἀλλ᾽ αἴτια μὲν τὰ τοιαῦτα καλεῖν λίαν ἄτοπον)
167
Ao longo desta etapa a personagem Soacutecrates apresenta vaacuterios exemplos de
lsquocausasrsquo de acordo com os filoacutesofos da natureza Eis alguns alguns deles
OBSERVACcedilAtildeO CAUSA
96d-e
Um homem eacute maior do que o outro Cabeccedila
Um cavalo eacute maior do que o outro Cabeccedila
Dez eacute mais numeroso do que oito Adiccedilatildeo do dois
Dois cuacutebitos eacute maior do que um Dois cuacutebito excede um cuacutebito pela
metade
100c-d
Algo eacute belo Brilho da cor forma outra desse tipo
Soacutecrates rejeita este tipo de abordagem dos fiacutesicos contemporacircneos elas natildeo
podem ser a verdadeira αἰτίαι das coisas Soacutecrate sugere que a resposta dos filoacutesofos da
natureza para a sua busca pela causa verdadeira eacute algo do tipo completamente sem
sentido ldquoContudo chamar esse tipo de coisa de causa eacute extremamente improacutepriordquo (ἀλλ᾽
αἴτια μὲν τὰ τοιαῦτα καλεῖν λίαν ἄτοπον) (99a4-5)
Decepcionado o filoacutesofo recorre a um modo proacuteprio de investigaccedilatildeo que ele
chama de lsquosegunda navegaccedilatildeo a respeito da causarsquo (τὸν δεύτερον πλοῦν ἐπὶ τὴν τῆς
αἰτίας) (99c-d) Na seccedilatildeo que se inicia Platatildeo apresenta duas tentativas de resposta para
a questatildeo da causa verdadeira
168
64 Modo proacuteprio de investigaccedilatildeo (99c-101e)
Quando Soacutecrates ainda jovem busca a verdadeira causa das coisas fica
decepcionado com o tipo de resposta totalmente sem sentido apresentada pelos filoacutesofos
da natureza e resolve recorrer a um modo proacuteprio de investigaccedilatildeo que ele chama de
lsquosegunda navegaccedilatildeo a respeito da causarsquo (τὸν δεύτερον πλοῦν ἐπὶ τὴν τῆς αἰτίας) (99c-
d) O novo modo de investigaccedilatildeo ao contraacuterio do anterior natildeo se baseia nos sentidos
corporais (99d-e) mas em argumentos (εἰς τοὺς λόγους) (99e) Ao longo do diaacutelogo
Platatildeo salienta que haacute coisas como o Belo em si cujo alcance pleno soacute pode ocorrer
atraveacutes da alma sozinha sem a mediaccedilatildeo corporal De alguma maneira a nova
abordagem tem uma ligaccedilatildeo direta com aquilo que jaacute havia sido apresentado ao longo
do diaacutelogo A ligaccedilatildeo fica clara posteriormente a nova abordagem tem como hipoacutetese
fundamental a existecircncia de coisas como o belo em si e sabemos que jaacute em 65d Platatildeo
fala da existecircncia de coisas desse tipo
A partir deste ponto Soacutecrates se dispotildee a explicar com mais clareza esse novo
modo de investigaccedilatildeo A chamada autobiografia intelectual de Soacutecrates inicia com o
problema da αἰτία e nesta nova seccedilatildeo o texto deixa claro que a busca de Soacutecrates pela
verdadeira αἰτία continua A partir de agora Platatildeo poderaacute apresentar a sua tentativa de
contruir uma noccedilatildeo platocircnica de αἰτία com o fim de provar a imortalidade da alma
Antes de tudo eacute necessaacuterio observar que Platatildeo procurar deixar claro que toda a
seccedilatildeo que se inicia tem o compromisso expresso de estabelecer princiacutepios para provar a
imortalidada da alma Em 100b8-9 ele explica o objetivo desta seccedilatildeo lsquodemonstrar a
169
causa e descobrir que a alma eacute imortalrsquo (τὴν αἰτίαν ἐπιδείξειν καὶ ἀνευρήσειν ὡς
ἀθάνατον ἡ ψυχή) (100b8-9) Portanto a demonstraccedilatildeo da causa estaacute a serviccedilo da prova
da imortalidade da alma que eacute sem duacutevida o objetivo principal do diaacutelogo Outro
elemento importante nesta seccedilatildeo eacute o estabelecimento de uma hipoacutetese essencial ou
fundamental que eacute introduzida e reafirmada no diaacutelogo
O novo modo de investigaccedilatildeo que rompe completamente com os filoacutesofos da
natureza parte do pressuposto de uma hipoacutetese essencial lsquoFormasrsquorsquoFormasrsquo existem e
as coisas recebem os seus nomes pela sua participaccedilatildeo nelas A hipoacutetese de que existem
coisas como o belo em si nas quais as demais coisas participam passa a ser a condiccedilatildeo
sine qua non para a busca da causa verdadeira Em suma Soacutecrates considera o seguinte
(102a-d)
(i) Deve-se partir da hipoacutetese de que existe algo que eacute belo em si e por si
bom grande e todas as demais coisas como essasrsquo(ὑποθέμενος εἶναί τι
καλὸν αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ καὶ ἀγαθὸν καὶ μέγα καὶ τἆλλα πάντα) (100b5-7)
(ii) Admitindo a existecircncia dessas coisas eacute necessaacuterio considerar o seguinte
ldquose existe outra coisa bela aleacutem do que eacute belo em si natildeo eacute bela por causa
de coisa alguma a natildeo ser porque participa daquele belo em sirdquo (εἴ τί
ἐστιν ἄλλο καλὸν πλὴν αὐτὸ τὸ καλόν οὐδὲ δι᾽ ἓν ἄλλο καλὸν εἶναι ἢ
διότι μετέχει ἐκείνου τοῦ καλοῦ) (100c3-6) Depois Soacutecrates diz que lsquoeacute
pela beleza que as coisas belas satildeo belasrsquo (100d4-6)
(iii) Platatildeo desenvolve uma ideia de partipaccedilatildeo eacute por participar no belo em
si que as coisas belas satildeo belas Platatildeo desenvolve a sua ideia de
170
participaccedilatildeo utilizando principalmente trecircs palavras lsquoparticipaccedilatildeorsquo
(μετέχω) (100c5) lsquopresenccedilarsquo (παρουσία) (100d5) e lsquocomunhatildeorsquo
(κοινωνία) (100d6)
Com a hipoacutetese fundamental Platatildeo deixa claro que estaacute estabelecendo a noccedilatildeo
de lsquocausarsquo quando Soacutecrates diz que as coisas belas satildeo belas porque participam daquele
belo em sirdquo (100c3-6) finaliza com a pergunta ldquoconcordas com esse tipo de causardquo (τῇ
τοιᾷδε αἰτίᾳ συγχωρεῖς) (100c6-7) Apesar da nossa divisatildeo para fins didaacuteticos entre
hipoacutetese fundamental e lsquoresposta mais segura poreacutem ignorantersquo na verdade a hipoacutetese
fundamental eacute a condiccedilatildeo baacutesica para o estabelecimento da lsquoresposta mais segura
poreacutem ignorantersquo
Tendo como base a hipoacutetese fundamental a noccedilatildeo de causa eacute desenvolvida
principalmente a partir das seguintes formulaccedilotildees
(i) Dativo de causa ndash lsquopor causa dersquo eacute bem comum especialmente no
contexto da resposta lsquomais segura poreacutem ignorantersquo para se referir agrave
lsquoFormarsquo como causa τῷ καλῷ (100d7 e2) πλήθει (101b6) and ἡμίσει
(101b7)
(ii) A preposiccedilatildeo διά + accusativo a construccedilatildeo pode ser encontrada em
101a onde Soacutecrates diz que coisas grandes satildeo grandes lsquopor causa da
grandezarsquo (διὰ τὸ μέγεθος) e coisas pequenas satildeo pequenas lsquopor causa da
pequenezrsquo (διὰ τὴν σμικρότητα) e em 101b quando Soacutecrates diz que dez
excede oito διὰ τὸ πλῆθος
171
(iii) O substantivo αἰτίααἴτιον no contexto da autobiografia intelectual de
Soacutecrates em 97c-99c αἰτία aparece pelo menos 19 vezes A partir do
momento em que Soacutecrates afirma que recorreu a uma lsquosegunda
navegaccedilatildeorsquo e ao longo do primeiro esboccedilo de uma noccedilatildeo de causa
(resposta mais segura poreacutem ignorante) αἰτία eacute empregada pelo menos 9
vezes em 99d 100-c 101b-101c
(iv) O verbo ποιέω em 99b100d130
O uso de todas essas formulaccedilotildees nessa etapa do Feacutedon deve indicar que Platatildeo
tem um interesse especial em construir uma noccedilatildeo de lsquocausarsquo embora isto ocorra de
maneira progressiva ao longo desta etapa comeccedilando com uma trivial ideia de αἰτία
especialmente no contexto da lsquoresposta segura poreacutem ignorantersquo e desenvolvendo a
noccedilatildeo no contexto da resposta lsquosegura e inteligentersquo onde Formas realmente produzem
algo nos objetos particulares Mesmo que o mecanismo de causaccedilatildeo natildeo seja
completamente expliacutecito nesse contexto veremos que a ideia de Formas como causa
passa a ser bem mais do que a de mera lsquoculparsquo lsquoresponsabilidade porrsquo Todo esse
esforccedilo platocircnico utilizando todos os meios possiacuteveis para expressar uma noccedilatildeo de
lsquocausarsquo numa soacute etapa do diaacutelogo nos faz rejeitar o pensamento de Vlastos de que
nenhuma dessas formulaccedilotildees eacute utilizada por Platatildeo com o fim de expressar qualquer
noccedilatildeo de causa131
130 Hackfort 1998 p 143-144
131 Vlastos 1969 p 146
172
Nesta etapa a noccedilatildeo fraca trivial de lsquocausarsquo eacute amparada principalmente pelo uso
do dativo numa lista de exemplos apresentados por Platatildeo que satildeo a principal fonte de
explicaccedilatildeo da ideia de lsquoFormarsquo como causa
(i) Beleza ldquoEacute por causa da beleza que todas as coisas belas satildeo belasrdquo (ὅτι
τῷ καλῷ πάντα τὰ καλὰ καλά) (100d7-8)
(ii) Beleza Grandeza Pequenez ldquoEacute por causa da beleza que as coisas belas
satildeo belasrdquo (ὅτι τῷ καλῷ τὰ καλὰ καλά) e ldquoeacute por causa da grandeza que as
coisas grandes se tornam grandes as maiores e por causa da pequenez
que as coisas menores se tornam menoresrdquo (καὶ μεγέθει ἄρα τὰ μεγάλα
μεγάλα καὶ τὰ μείζω μείζω καὶ σμικρότητι τὰ ἐλάττω ἐλάττω) (100e2-
6)
(iii) Dois ldquoE vocecirc gritaria bem alto que natildeo conhece qualquer outra maneira
de cada coisa se originar exceto pela participaccedilatildeo em cada Forma
apropriada na qual venha a participar e nesses casos vocecirc natildeo possui
qualquer outra causa para algo tornar-se dois a natildeo ser a sua participaccedilatildeo
no doisrdquo (καὶ μέγα ἂν βοῴης ὅτι οὐκ οἶσθα ἄλλως πως ἕκαστον
γιγνόμενον ἢ μετασχὸν τῆς ἰδίας οὐσίας ἑκάστου οὗ ἂν μετάσχῃ καὶ ἐν
τούτοις οὐκ ἔχεις ἄλλην τινὰ αἰτίαν τοῦ δύο γενέσθαι ἀλλ᾽ ἢ τὴν τῆς
δυάδος μετάσχεσιν) (101c2-5)
Ainda que todos os indiacutecios textuais sugiram que Platatildeo estaacute desenvolvendo uma
noccedilatildeo de αἰτία eacute realmente difiacutecil entender com precisatildeo o que exatamente significa
173
dizer que ldquoeacute por causa da beleza que todas as coisas belas satildeo belasrdquo (ὅτι τῷ καλῷ
πάντα τὰ καλὰ καλά)rdquo (100d7-8) Agrave luz da lsquohipoacutetese das Formasrsquo que o contexto sugere
que se considere o que Platatildeo procura dizer com isto eacute que existe uma uacutenica Forma ndash o
belo em si ndash que eacute causarazatildeoresponsaacutevel (αἰτία) por fazer com que tudo que eacute belo
seja belo por causa da sua participaccedilatildeo na beleza Mas ainda assim natildeo fica claro que
tipo de αἰτία eacute esta e nem como ela seraacute uacuteltil para provar a imortalidade da alma Natildeo haacute
nenhuma indicaccedilatildeo de como entidades metafiacutesicas atuam no mecanismo de causaccedilatildeo
que Platatildeo por alguma razatildeo natildeo explicita
Neste contexto se Forma eacute uma αἰτία ndash e tudo indica que ela eacute ndash isto significa
apenas que as coisas satildeo e se tornam o que elas satildeo atraveacutes da participaccedilatildeo nas Formas
(100b-e 101c) Assim na ausecircncia de informaccedilatildeo suficiente sobre o mecanismo de
causaccedilatildeo apresentado por Platatildeo parece prudente consentir que o filoacutesofo estaacute
trabalhando com o sentido primaacuterio de αἰτία neste contexto que eacute a ideia de
lsquoresponsabilidadersquo ou lsquoacusaccedilatildeorsquo Gallop explica que aplicado a agentes humanos αἰτία
significa responsaacutevel ou culpado (cf 116c8) e o verbo cognato significa acusar
ou culpar Este conceito que estaacute enraizado na noccedilatildeo de responsabilidade humana (cf
98e2-99a4) eacute provavelmente a ideia baacutesica no contexto da primeira resposta ndash a mais
segura poreacutem ignorante132 Portanto quando dizemos que a lsquoFormarsquo eacute a αἰτία estamos
dizendo simplesmente que ela eacute lsquoresponsaacutevel por fazer com que algo seja ou se torne o
que ele eacute pela sua participaccedilatildeo ou comunhatildeo nela como na ideia de que as coisas belas
participam no belorsquo (μετέχει τοῦ καλοῦ) (100c5-6) Essa parece a opccedilatildeo mais razoaacutevel
na ausecircncia de explicaccedilotildees mais detalhadas que possam garantir uma noccedilatildeo de αἰτία
132 Gallop 2002 p169
174
ainda sem um compromisso metafiacutesico profundo Portanto a noccedilatildeo de lsquocausarsquo eacute
bastante limitada e chega ateacute a ser tautoloacutegica lsquoeacute por causa da beleza que todas as
coisas belas satildeo belasrsquo lsquotodas as coisas belas satildeo belas por causa da belezarsquo Certamente
por causa desse vaacutecuo de informaccedilotildees suficientes sobre a noccedilatildeo de lsquocausarsquo e seu
mecanismo de causaccedilatildeo eacute que Platatildeo sugere que essa resposta eacute a mais segura no
sentido de que jaacute aponta para lsquoFormasrsquo como causa rompendo completamente com a
ideia de causa dos filoacutesofos da natureza mas ainda assim eacute ignorante por natildeo ter
fundamentaccedilatildeo filosoacutefica suficiente sendo assim vaga inconsistente e tautoloacutegica
Mas eacute importante lembrar que a maioria dos comentadores acredita que neste
contexto da lsquoresposta mais segura poreacutem ignorantersquo a noccedilatildeo de causa jaacute deve ser
interpretada agrave luz de uma teoria metafiacutesica completa das Formas sendo as Formas
objetos com existecircncia133 Hackfort em seu comentaacuterio canocircnico do Feacutedon sugere que
a noccedilatildeo de causa que Platatildeo apresenta neste contexto deve ser entendida agrave luz da
doutrina das Formas134
A nossa pesquisa confirma que agora lsquoFormasrsquo podem ser interpretadas como
lsquoFormasrsquo com base no contexto anterior (argumento das afinidades) e contexto imediato
(no proacuteximo passo Platatildeo estabelece uma terminologia padratildeo para lsquoFormasrsquo)
Portanto quando Soacutecrates pela primeira vez hipotetiza a existecircncia de coisas como
lsquobelo em si e por si bom grande e todas as demais coisas como essasrsquo (100b5-7) ele
mesmo lembra que natildeo estaacute falando de nada novo (οὐδὲν καινόν) mas daquilo natildeo
havia cessado de falar no diaacutelogo (100b) No argumento das afinidades as lsquoFormasrsquo satildeo
133 Cf Vlastos 1969 p298
134 Hackfort 1998 p146
175
consistentemente caracterizadas como entidades metafiacutesicas Antes de avanccedilar com a
noccedilatildeo de causa vejamos novamente um breve apanhado de algumas passagens em que
as personagens tratam lsquoFormasrsquo como se jaacute fossem velhas conhecidas e as personagens
pressupotildee um saber a respeito delas como facilmente compreensiacutevel e sem necessidade
de uma fundamentaccedilatildeo detalhada135
bull Primeiro estaacutegio do diaacutelogo pela primeira vez Soacutecrates introduz coisas
como o justo em si no diaacutelogo ldquoafirmamos que existe um justo em si
mesmo ou natildeordquo (φαμέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν) (65d4-5) Ainda
que seja a primeira vez que o filoacutesofo apresente esse tipo de coisa e sem
qualquer explicaccedilatildeo adicional Siacutemias parece conhecer bem essas coisas
ldquoPor Zeus claro que simrdquo Soacutecrates complementa ldquoestou falando de
todas as coisas como por exemplo grandeza sauacutede forccedila e todas as
demais para ser conciso falo da essecircncia daquilo que cada coisa eacuterdquo (τῆς
οὐσίας ὅ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) (65d13-e1) Juntamente com isto haacute
duas questotildees fundamentais sobre essas coisas em si ldquoE alguma vez
vocecirc jaacute viu algo desse tipo com seus proacuteprios olhosrdquo ldquoE vocecirc jaacute
alcanccedilou essas coisas atraveacutes de algum outro sentido que opera por meio
do corpordquo(65d-e) Neste contexto as perguntas ainda natildeo estatildeo
comprometidas com uma teoria metafiacutesica A questatildeo levantada eacute
concernente agrave aquisiccedilatildeo do conhecimento lsquoverrsquo eacute simplesmente uma
135 Schafer 2012 p152
176
referecircncia aos sentidos As coisas sobre as quais fala satildeo captadas pela
alma pura sem a mediaccedilatildeo corporal136
bull Argumento da reminiscecircncia a mesma questatildeo do tipo φαμέν τι εἶναι
volta a ser empregada em 74a9-13 Digamos como presumo que existe
um Igual (φαμέν πού τι εἶναι ἴσον) Soacutecrates se refere ao lsquoigual em si
mesmorsquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) que passa a ser o exemplo principal no
argumento (74a 74c 74e) Siacutemias fala que eles natildeo cessam de falar de
coisas como ldquoo Belo o Bom e toda essecircncia dessa naturezardquo (καλόν τέ τι
καὶ ἀγαθὸν καὶ πᾶσα ἡ τοιαύτη οὐσία) (76d) Ao final do argumento
Siacutemias afirma que as duas coisas satildeo necessaacuterias as coisas das quais eles
falavam devem existir (ταῦτα ἔστιν) assim como tambeacutem as nossas
almas antes do nosso nascimento (καὶ τὴν ἡμετέραν ψυχὴν εἶναι καὶ πρὶν
γεγονέναι ἡμᾶς) (76e) Neste contexto jaacute haacute indiacutecios de que Platatildeo estaacute
utilizando uma teoria para apoiar o argumento da reminiscecircncia mas
ainda eacute difiacutecil entender com clareza a distinccedilatildeo entre igual em si e coisas
iguais entre aquilo que eacute nobre e as coisas vulgares e deficientes Eacute
possiacutevel reconhecer no maacuteximo um esboccedilo incipiente de uma teoria
segundo a qual haacute duas classes de coisas uma representada no diaacutelogo
pelo lsquoigual em sirsquo em contraste com a outra classe representa pelas
multiplicidade de lsquocoisas iguaisrsquo as quais satildeo vulgares e deficientes
quando comparadas com o lsquoigual em sirsquo
bull Argumento das afinidades o argumento inicia com um lembrete de
que vatildeo tratar daquela mesma essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) sobre a qual
136 Dancy 2007 p246
177
estavam discutindo antes Mas neste contexto pela primeira vez Platatildeo
apresenta uma consistente caracterizaccedilatildeo das lsquoFormasrsquo O exemplo
primordial no argumento da reminiscecircncia ndash αὐτὸ τὸ ἴσον ndash volta a ser
mencionado ao lado de outros exemplos ldquoO igual em si o belo em si
aquilo que cada coisa eacute em sirdquo (αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ
ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν) (78d) mas agora se sabe que essas coisas fazem
parte de uma classe de entidades especiais que Platatildeo caracteriza bem
neste argumento porque a prova da imortalidade da alma depende da
semelhanccedila e afinidade entre alma e lsquoFormasrsquo Eacute neste contexto em que
pela primeira vez no diaacutelogo as propriedades de trancendecircncia
invisibilidade imortalidade eternidade uniformidade imutabilidade e
outras propriedades das lsquoFormasrsquo satildeo apresentadas com detalhes
inclusive num viacutevido contraste com as coisas que integram uma outra
classe de objetos as coisas sensiacuteveis
bull Contexto que antecede o uacuteltimo argumento antes de apresentar a sua
hipoacutetese Soacutecrates lembra que vai falar de nada novo (οὐδὲν καινόν) mas
daquilo natildeo havia cessado de falar no diaacutelogo (100b) Entatildeo Soacutecrates
hipotetiza que ldquohaacute algo como belo em si e por si bom grande e todas as
demais coisas como essasrdquo (εἶναί τι καλὸν αὐτὸ καθ᾽ αὑτὸ καὶ ἀγαθὸν
καὶ μέγα καὶ τἆλλα πάντα) (100b5-7) O contexto anterior (argumento
das afinidades) e o contexto imediato (a introduccedilatildeo de uma terminologia
especializada para Formas) indicam que Platatildeo estaacute tratando de entidades
metafiacutesicas
178
bull Contexto que antecede o uacuteltimo argumento o narrador Feacutedon fala que
os amigos de Soacutecrates concordaram com ele de que cada uma das
Formas existe (εἶναί τι ἕκαστον τῶν εἰδῶν) (102b)
Apesar de jaacute termos suporte textual suficiente para entendermos que lsquoFormasrsquo
satildeo entidades metafiacutesicas Formas platocircnicas ainda estamos limitados pela texto que na
ausecircncia de detalhes nos convida a interpretar a noccedilatildeo de causa como sendo a mais
baacutesica possiacutevel ateacute que Platatildeo desenvolva uma noccedilatildeo mais sofisticada
Portanto no iniacutecio natildeo eacute plausiacutevel afirmar que uma ordem superior de realidade
literalmente causa um determinado evento Na ausecircncia de suporte textual e filosoacutefico o
sentido regular da palavra αἰτία ndash ser responsaacutevel ou culpado ndash deve ser preferido
Na proacutexima etapa teremos um contexto renovado sobretudo no que tange agraves Formas
um vocabulaacuterio especializado uma terminologia especiacutefica para Formas aparece pela
primeira vez e se firma no diaacutelogo Aleacutem disso uma explanaccedilatildeo sobre lsquoFormas em sirsquo e
lsquoFormas opostasrsquo traratildeo uma nova compreensatildeo da noccedilatildeo de causa no diaacutelogo
65 Tentativa de construir uma noccedilatildeo sofisticada de causa ndash 102a-105c
Ateacute agora eacute importante reconhecer que a primeira tentativa de contruir uma
noccedilatildeo de αἰτία aponta para a lsquoFormarsquo como sendo a αἰτία de cada coisa Imputa-se ao
lsquobelo em sirsquo a responsabilidade pelas coisas serem ou tornarem-se o que elas satildeo A
ideia ainda eacute limitada imprecisa e o proacuteprio Platatildeo faz questatildeo de mostrar isto no texto
chamando essa primeira tentativa de mais segura do que qualquer outra tentativa de
encontrar uma causa apresentada pelos filoacutesofos da natureza mas ainda assim
179
lsquoignorantersquo sem fundamentaccedilatildeo filosoacutefica suficiente Eacute necessaacuterio passar a uma nova
tentativa de construccedilatildeo da noccedilatildeo de causa a partir de 102a Este posterior
desenvolvimento seraacute fundamental para a compreensatildeo do argumento final em si que eacute
introduzido no dialogo apenas em 105c
O texto indica o momento de transiccedilatildeo da primeira para a segunda tentativa de
construir uma noccedilatildeo de causa A conversa inesperada entre Equeacutecrates e o narrador
Feacutedon indicam essa transiccedilatildeo em 102a-b
(i) Equeacutecrates elogia o filoacutesofo pelo brilhante raciociacutenio apresentado
(ii) O narrador Feacutedon ratifica que todos os presentes concordaram com a
exposiccedilatildeo e Equeacutecrates acrescenta que eles que natildeo estiveram laacute
tambeacutem concordaram
(iii) Equeacutecrates pede que o narrador revele o que aconteceu depois
(iv) Antes de revelar o que aconteceu depois o narrador Feacutedon salienta que a
discussatildeo seguinte (uacuteltimo argumento) soacute ocorreu depois que os amigos
concordaram que Formas existem e que por participar nelas as demais
coisas recebem o seu nome
O primeiro passo para o desenvolvimento desta seccedilatildeo eacute a reafirmaccedilatildeo da
hipoacutetese receacutem-apresentada mas agora com uma designaccedilatildeo especial para lsquoFormasrsquo
bull lsquoE foi acordado que cada uma das Formas existersquo (καὶ ὡμολογεῖτο εἶναί
τι ἕκαστον τῶν εἰδῶν) (102b1) e que as demais coisas participando delas
180
(Formas) levam o seu nomersquo (καὶ τούτων τἆλλα μεταλαμβάνοντα αὐτῶν
τούτων τὴν ἐπωνυμίαν ἴσχειν (102b2-3)
Portanto a primeira coisa que Platatildeo procura estabelecer eacute que a hipoacutetese das
lsquoFormasrsquo lsquoFormasrsquo continua sendo essencial nesta nova etapa A lsquooutra respostarsquo que
seraacute apresentada tambeacutem depende dessa hipoacutetese essencial que se estabelece como
condiccedilatildeo sine qua non para a construccedilatildeo de uma noccedilatildeo de causa que sirva de base para
a prova final da imortalidade da alma em 105c-107b)
A outra observaccedilatildeo fundamental eacute que pela primeira vez no diaacutelogo Platatildeo
utiliza o termo εἶδος no diaacutelogo para designar aquilo que ele vinha chamando de lsquocoisa
em sirsquo lsquoessecircnciarsquo lsquoaquilo que eacute lsquoo belo em sirsquo Portanto as formulaccedilotildees natildeo
terminoloacutegicas satildeo utilizadas ateacute o contexto da lsquoresposta segura mas ignorantersquo e
somente a partir de 102b observamos a tentativa de fixaccedilatildeo da terminologia Platatildeo
finalmente utiliza um termo especiacutefico ndash εἶδος ndash para marcar a especificidade da
entidade que eacute a lsquocausarsquo das coisas Os termos εἶδος e ἰδέα satildeo os principais termos para
designar essas entidades neste contexto Em 102b-106d temos a sugestatildeo de que satildeo
termos intercambiaacuteveis Aleacutem deles a palavra μορφή tambeacutem aparece carregada do
mesmo significado numa passagem em que Platatildeo fala de τὸ εἶδος e μορφή (103e2-7)
O termo εἶδος jaacute havia aparecido antes no diaacutelogo mas em momento algum para
designar diretamente os elementos singulares da filosofia platocircnica ndash as Formas
inteligiacuteveis
181
bull lsquoa imagem do amadorsquo (τὸ εἶδος τοῦ παιδὸς) (72d9) nesta passagem o
termo possui a sua ideia baacutesica ndash o aspecto exterior a forma visiacutevel de
algo
bull lsquoexistem duas classes de seres a visiacutevel e a invisiacutevelrsquo (δύο εἴδη τῶν
ὄντων τὸ μὲν ὁρατόν τὸ δὲ ἀιδές) (79a6) o termo εἶδος eacute utilizado para
expressar a ideia de lsquoclassesrsquo ou lsquogecircnerosrsquo de existecircncia
bull lsquoa menos que a nossa alma existisse em algum lugar antes de assumir
essa forma humana (εἰ μὴ ἦν που ἡμῖν ἡ ψυχὴ πρὶν ἐν τῷδε τῷ
ἀνθρωπίνῳ εἴδει γενέσθαι) (73a1-2) vaacuterias vezes εἶδος eacute empregado para
expressar a ideia que fica estabelecida no argumento das reminiscecircncias
ndash a alma existe antes de passar a adquirir a lsquoformarsquo o lsquoaspectorsquo ou
mesmo a lsquoespeacuteciersquo humana (Cf76c 79b 87a 92b)
bull lsquoSiacutemias tem duacutevidas e tambeacutem receia que a alma seja algo mais divino e
mais belo do que o corpo e ainda assim pereccedila por ser um tipo de
harmoniarsquo (Σιμμίας ἀπιστεῖ τε καὶ φοβεῖται μὴ ἡ ψυχὴ ὅμως καὶ
θειότερον καὶ [91d] κάλλιον ὂν τοῦ σώματος προαπολλύηται ἐν
ἁρμονίας εἴδει οὖσα) (91c9-d1-2) Aqui εἶδος expressa mais uma vez a
ideia de um lsquotiporsquo ou lsquogecircnerorsquo de existecircncia A alma poderia perecer pelo
seu gecircnero de existecircncia ser lsquoum tiporsquo ou lsquoespeacuteciersquo de harmonia
bull lsquoSe ele me mostrasse essas coisas eu estaria pronto a parar de buscar
qualquer outro tipo de causarsquo (καὶ εἴ μοι ταῦτα ἀποφαίνοι
παρεσκευάσμην ὡς οὐκέτι ποθεσόμενος αἰτίας ἄλλο εἶδος) (98a1-2)
Esta eacute uma referecircncia a Anaxaacutegoras segundo o qual o νοῦς seria o
responsaacutevel pela ordenaccedilatildeo e causa de todas as coisas (νοῦς ἐστιν ὁ
182
διακοσμῶν τε καὶ πάντων αἴτιος) (Cf 97c1-2) O termo εἶδος expressa
meramente um lsquotiporsquo ou lsquoespeacuteciersquo de causa Se Anaxaacutegoras pudesse
demonstrar a αἰτία de todas as coisas Soacutecrates dispensaria a busca por
outro lsquotiporsquo de causa Mas o filoacutesofo se desponta com Anaxaacutegoras e
pouco depois utiliza o termo εἶδος com o mesmo sentido para falar de um
lsquooutro tipo de causarsquo aquele que Soacutecrates encontra por si mesmo
Soacutecrates entatildeo passa a demonstrar o lsquotiporsquo ou lsquogecircnerorsquo de causa (τῆς
αἰτίας τὸ εἶδος) que descobriu a partir de proacutepria investigaccedilatildeo
investigaccedilatildeo (100b4-6) lsquoesse outro tipo de causarsquo tem como hipoacutetese
fundamental a existecircncia de algo como lsquoo Belo em sirsquo lsquoo Bom em sirsquo
Portanto a partir de 102b temos pela primeira vez no diaacutelogo os termos εἶδος e
ἰδέα (utilizados intercambiavelmente) para falar de entidades inteligiacuteveis que satildeo
responsaacuteveis por fazer com que as coisas sejam ou se tornem o que elas A partir de
agora os termos εἶδος e ἰδέα satildeo empregados consistentemente como terminologia
especializada para Formas Vejamos uma tabela com as ocorrecircncias de termos para
Formas neste contexto e depois uma breve apreciaccedilatildeo considerando o contexto de cada
passagem
102b1 τι ἕκαστον τῶν εἰδῶν
102d6 αὐτὸ τὸ μέγεθος
183
103e3 αὐτὸ τὸ εἶδος
103e5 τὴν ἐκείνου μορφὴν
104d9-10 ἐκείνῃ τῇ μορφῇ
104b9 ἐκείνην τὴν ἰδέαν
104c7 τὰ εἴδη τὰ ἐναντία
104d2 τὴν αὑτοῦ ἰδέαν
104d6 ἡ τῶν τριῶν ἰδέα
104d9 ἡ ἐναντία ἰδέα
104e1 ἡ τοῦ ἀρτίου ἰδέα
105d13
τὴν τοῦ ἀρτίου ἰδέαν
106d6 τὸ τῆς ζωῆς εἶδος
184
Vejamos de forma bastante resumida cada exemplo em seu contexto antes de
passarmos agrave anaacutelise desta seccedilatildeo
bull 102b1 esta primeira ocorrecircncia de εἶδος revela o termo aplicado
diretamente a entidades que possuem existecircncia (cada εἶδος existe) e
Platatildeo procura mostrar a relaccedilatildeo entre εἶδος e as coisas a participaccedilatildeo
das coisas em um εἶδος eacute a causa delas possuiacuterem as suas qualidades e
assim puderem ser chamadas pelo seu nome apropriado
bull 103e2-5 Platatildeo explica a relaccedilatildeo entre a entidade inteligiacutevel e as coisas
A Forma em si (αὐτὸ τὸ εἶδος) eacute digna de levar o seu nome para sempre
(εἰς τὸν ἀεὶ χρόνον) Mas existe tambeacutem outra coisa que natildeo eacute uma
lsquoForma em sirsquo (αὐτὸ τὸ εἶδος) mas tem o privileacutegio de levar um nome
porque possui sempre aquela μορφή (ἔχει δὲ τὴν ἐκείνου μορφὴν ἀεί) O
contexto sugere que αὐτὸ τὸ εἶδος e μορφή se referem a Formas Esse
jogo entre palavras de mesmo domiacutenio semacircntico eacute repetido novamente
em 104d9-10 mas com ἰδέα e μορφή
bull 104b9-c1 Platatildeo introduz o termo ἰδέα para designar lsquoFormarsquo as coisas
que carregam consigo uma ἰδέα oposta tambeacutem natildeo toleram a ἰδέα
oposta rival Em 104c7 ele desenvolve a explicaccedilatildeo dizendo que natildeo satildeo
apenas τὰ εἴδη τὰ ἐναντία (as Formas opostas) que natildeo toleram a
aproximaccedilatildeo do oposto rival mas os objetos particulares que participam
numa Forma oposta
bull 104d1-3 Quando uma lsquoForma em sirsquo ocupa algo ela lhe impotildee a proacutepria
Forma dela (τὴν αὑτοῦ ἰδέαν αὐτὸ) e uma Forma oposta Em 104d9-10
185
Soacutecrates salienta que a respeito desse tipo de coisa (as coisas ocupadas
por lsquoFormas em sirsquo) a Forma oposta (ἡ ἐναντία ἰδέα) jamais viraacute sobre
aquela Forma rival (ἐκείνῃ τῇ μορφῇ) que estaacute nela Aqui temos ἰδέα e
μορφή como termos intercambiaacuteveis
bull 104d6 A etapa seguinte providencia um exemplo numeacuterico que figura
como chave hermenecircutica para a compreensatildeo da passagem Pela
primeira vez se apresenta de maneira especiacutefica a Forma de algo a
Forma do trecircs (ἡ τῶν τριῶν ἰδέα) Acompanhando a ideia anterior
quando Forma do trecircs ocupa algo ela faz com que ele seja
necessariamente trecircs e iacutempar A Forma do trecircs traz para a coisa que
ocupa (i) a proacutepria Forma ndash razatildeo pela qual ela eacute necessaacuteriamente trecircs
(ii) a Forma oposta correspondente ndash a Forma Iacutempar A Forma rival do
par natildeo poderaacute vir sobre a Forma oposta que nela estaacute Formas opostas
natildeo podem coexistir naquilo que eacute ocupado pela Forma em si e pela
Forma oposta que a Forma em si traz Temos um exemplo claro em
104e1 lsquoassim a Forma do par jamais sobreviraacute ao trecircsrsquo (ἐπὶ τὰ τρία ἄρα
ἡ τοῦ ἀρτίου ἰδέα οὐδέποτε ἥξει)
bull 105d13-14 o mesmo exemplo ndash a Forma do par ndash eacute relembrado no
argumento final lsquoO que haacute pouco concordaacutevamos que natildeo admite a
Forma do parrsquo (τὸ μὴ δεχόμενον τὴν τοῦ ἀρτίου ἰδέαν τί νυνδὴ
ὠνομάζομεν) Cebes responde o iacutempar (105d13-14) Este exemplo daacute
iniacutecio a uma lista que finda com a conclusatildeo de que a alma eacute imortal o
justo natildeo admite a injusticcedila a cultura natildeo admite o inculto o imortal natildeo
186
admite a morte a alma natildeo admite a morte Jaacute que a alma natildeo admite a
morte ela eacute imortal (105d16-e7)
bull 106d5-7 ao final Soacutecrates relaciona a alma com trecircs coisas que satildeo
imortais e nunca perecem o deus (ὁ θεὸς) a proacutepria Forma de vida (αὐτὸ
τὸ τῆς ζωῆς εἶδος) e tudo mais que seja imortal (τι ἄλλο ἀθάνατόν ἐστιν)
(106d5-7) Esse tipo de contruccedilatildeo lsquoa Forma de Xrsquo aparece apenas trecircs
vezes (i) a Forma do trecircs (ἡ τῶν τριῶν ἰδέα) (104d6) A Forma do par (ἡ
τοῦ ἀρτίου ἰδέα) (104e1 105d13-14) A Forma da vida (τὸ τῆς ζωῆς
εἶδος) (106d5-6)
651 A grandeza casual (102b-d)
A questatildeo inicial nesta etapa eacute lsquoSimmias eacute maior do que Soacutecrates mas menor
do que Feacutedonrsquo (102b) Antes de prosseguir na anaacutelise conveacutem observar que ela nos
remete ao contexto anterior e sugere a evoluccedilatildeo filosoacutefica da argumentaccedilatildeo quando
Soacutecrates buscava as causas das coisas sob a influecircncia dos filoacutesofos da natureza
acreditava que estava correto quando pensava que ao colocar um homem alto ao lado de
um homem baixo aquele se apresentava maior do que o menor pela altura da cabeccedila
(96e) Mas quando descobre seu proacuteprio modo de filosofar e descobre a verdadeira
causa das coisas ele sugere que natildeo se deve admitir que algueacutem eacute maior do que outro
pela cabeccedila mas lsquoeacute por causa da grandeza que as coisas grandes satildeo grandesrsquo (μεγέθει
ἄρα τὰ μεγάλα μεγάλα) (100e-101a) Essa questatildeo eacute retomada no uacuteltimo argumento Eis
os trecircs estaacutegios da discussatildeo
187
(i) X eacute maior do que Y pela cabeccedila (resposta completamente sem sentido)
(96d-e 101a)
(ii) X eacute maior do que Y pela grandeza (lsquoresposta mais segura poreacutem
ignorantersquo) (100e-101a)
(iii) X eacute maior do que Y pela grandeza acidental (102c-d)
(iv) lsquoA Grandeza essencialrsquo (resposta segura e inteligente) (102d-e)
O problema que se coloca agora eacute que Siacutemias eacute ao mesmo tempo maior do que
Soacutecrates e menor do que Feacutedon Platatildeo procura explicar em termos da relaccedilatildeo entre as
coisas como no caso em que X (Siacutemias) eacute maior do que Y (Soacutecrates) e Y (Soacutecrates) eacute
menor do que X (Siacutemias) O primeiro ponto eacute reafirmar a rejeiccedilatildeo do tipo de lsquocausarsquo
apresentado pelos filoacutesofos da natureza Natildeo eacute pela cabeccedila que algueacutem eacute maior do que
outro Esta rejeiccedilatildeo eacute expressa nos termos
bull Natildeo eacute pela natureza de Siacutemias natildeo eacute por Siacutemias ser Siacutemias (ou nos
termos dos filoacutesofos da natureza natildeo eacute simplesmente pela cabeccedila de
Siacutemias) que ele eacute maior
bull Natildeo eacute por Feacutedon ser Feacutedon (natildeo eacute por Feacutedon ser maior natildeo eacute pela
cabeccedila de Feacutedon) que Siacutemias eacute menor do que ele
Existe outro erro que Platatildeo nos previne de cometer achar que ao dizer
lsquoSimmias eacute maior do que Soacutecrates mas menor do que Feacutedonrsquo isto corresponde
188
literalmente agrave verdade (102b9-c1) Neste ponto Platatildeo introduz uma ideia de lsquograndeza
casualrsquo que natildeo pode ser tomada como a verdade final
bull Siacutemias eacute maior do que Soacutecrates mas lsquopela grandeza que ele casualmente
temrsquo (ἀλλὰ τῷ μεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων) (102c1-3)
Essa grandeza casual se mostra apenas nas relaccedilotildees a grandeza em Siacutemias
excede a pequenez em Soacutecrates enquanto a pequeneza em Siacutemias eacute excedida pela
grandeza em Feacutedon A grandeza ou pequenez em Siacutemias eacute o produto do nosso ato de
comparaacute-lo com outro Soacutecrates entatildeo escolhe um exemplo em que Siacutemias natildeo eacute nada
aleacutem do centro ldquoacidentalrdquo de duas relaccedilotildees opostas grandeza e pequenez137
Esse tipo de lsquoqualidade acidentalrsquo que certos elementos possuem nas relaccedilotildees
com outros jaacute foi sugerido no argumento das reminiscecircncias pedras e gravetos agraves vezes
parecem iguais para uns e desiguais para outros Nesta ocasiatildeo Platatildeo dirige a atenccedilatildeo
para lsquoo Igual em sirsquo salientando que existe uma diferenccedila entre o Igual em si e as coisas
iguais (74b-c) Na passagem que agora analisamos Platatildeo inicia com Siacutemias e suas
qualidades casuais e faz um desvio para o elemento que realmente importa nesta seccedilatildeo
lsquoa grandeza em sirsquo Como no argumento das reminiscecircncias Platatildeo poderia muito bem
dizer lsquoa grandez em sirsquo eacute diferente de dizer que algo eacute grande em relaccedilatildeo a alguma
outra coisa Agora estamos tratando de uma entidade especiacutefica e responsaacutevel por outro
tipo de qualidade
137 Cf Burger 1984 p 162
189
OrsquoBrien jaacute havia sugerido Platatildeo comeccedila com uma vaga distinccedilatildeo entre uma
grandeza lsquopor naturezarsquo (πεφυκέναι) que ele entende como um tipo de lsquograndeza
essencialrsquo e uma grandeza que Siacutemias casualmente possui (ὃ τυγχάνει ἔχων) para
introduzir uma distinccedilatildeo entre lsquoqualidades acidentaisrsquo e lsquoqualidades essenciaisrsquo que se
estabeleceraacute como elemento crucial na prova de Platatildeo (102c) 138 Esta explanaccedilatildeo
continua bastante uacutetil com a uacutenica ressalva de que natildeo vemos indiacutecio suficiente de que
ao falar de grandeza lsquopor naturezarsquo (πεφυκέναι) Platatildeo jaacute esteja introduzindo a ideia de
lsquograndeza essencialrsquo Platatildeo trata dessa lsquograndeza essencialrsquo em contraste com a
lsquograndeza acidentalrsquo apenas com a introduccedilatildeo da lsquograndeza em sirsquo pouco depois (102d)
A expressatildeo lsquopor naturezarsquo eacute completamente trivial remete ao aspecto fiacutesico (a cabeccedila
como diriam os filoacutesofos da natureza)139
OrsquoBrien tambeacutem afirma que Platatildeo natildeo tem vocabulaacuterio teacutecnico para lsquoacidentalrsquo
e lsquoessencialrsquo e a maneira como Platatildeo expressa a presenccedila dessa qualidade essencial eacute o
uso de lsquosemprersquo e lsquonuncarsquo Alguns elementos carregam qualidades essenciais
perpetuamente
138 OrsquoBrien 1967 p199-200
139 Hackfort (1998 p154) rejeita a tese de OrsquoBrien segundo ele natildeo haacute qualquer indicaccedilatildeo de
que Platatildeo esteja fazendo uma distinccedilatildeo entre predicados essenciais e acidentais Segundo ele o
texto sugere que Siacutemias seria um depoacutesito de Formas Siacutemias eacute concebido como natildeo mais do
que um conteiner de formas um conteiner que sempre permanece o que eacute mas no qual residem
vaacuterias formas entre as quais dois opostos ndash grandeza e pequenez Essa tese de que Siacutemias eacute um
conteiner de Formas enfrenta pelo menos dois problemas baacutesicos mas estaacute claro no texto que a
Forma soacute aparece em 102d (a grandeza em si) e que essa ideia de um depoacutesito de Formas que
admite e acolhe em si Formas opostas (grandeza e pequenez) parece contrariar aquilo que seraacute
dito posteriormente opostos deixam o posto ou perecem na chegada do seu respectivo oposto
190
(i) O fogo eacute sempre quente e nunca frio
(ii) A neve eacute sempre fria e nunca quente
(iii) Trecircs eacute sempre iacutempar e nunca par
(iv) Dois eacute sempre par e nunca iacutempar
(v) E afinal Soacutecrates afirma que a alma estaacute sempre viva e nunca morta 140
Esta qualidade essencial perpeacutetua depende das Formas No argumento das
afinidades Platatildeo jaacute enfatiza que as lsquoFormasrsquo permanecem sempre na mesma condiccedilatildeo e
estado enquanto objetos particupares estatildeo sempre mudando (78c-e) Agora Platatildeo
mostraraacute que as Formas satildeo as responsaacuteveis pela qualidade essencial (algo que sempre
um item carrega consigo) de certos itens com os quais ela se relaciona Toda a discussatildeo
eacute conduzida para o sujeito principal deste contexto a grandeza em si
652 A Grandeza em si
Siacutemias eacute apenas lsquoacidentalmentersquo maior do que Soacutecrates Por outro lado existem
elementos que apresentam qualidades essenciais como diraacute Soacutecrates depois trecircs eacute
essencialmente iacutempar O ponto central nesta etapa eacute que os objetos particulares satildeo
constituiacutedos de qualidades que eles casualmente adquirem e perdem de acordo com as
suas relaccedilotildees ao longo do tempo qualidades que chamariacuteamos de acidentais Pode ser
que em algum periacuteodo do tempo Siacutemias fosse menor do que Soacutecrates e maior do que
140 OrsquoBrien 1967 p199-200
191
Feacutedon e em outro periacuteodo maior do que Soacutecrates e menor do que Feacutedon Em um dado
momento Siacutemias ocorre de ter uma qualidade acidental na relaccedilatildeo entre Siacutemias e
Soacutecrates e em outro dado momento essa qualidade acidental eacute perdida para dar lugar a
outra qualidade acidental na relaccedilatildeo entre Siacutemias e Soacutecrates Mas a qualidade essencial
eacute aquilo que um objeto particular possui atraveacutes da sua relaccedilatildeo com a Forma cujo
caraacuteter eacute singular e se mostra a mesma em todo tempo e em todas as relaccedilotildees Esta
discussatildeo inicial nos leva diretamente para a Forma ndash a lsquograndeza em sirsquo (αὐτὸ τὸ
μέγεθος) (102d6-8)
653 A Grandeza em si e a grandeza em noacutes
Possuidor de qualidades acidentais Siacutemias pode ser ao mesmo tempo μέγεθος
καὶ σμικρότητα (102c4-5) e possuir tanto o nome pequeno quanto o grande (102c11-
12) Mas o mesmo natildeo pode acontecer com lsquoa grandeza em sirsquo ou com lsquoa grandeza em
noacutesrsquo (102d)
bull A grandeza em si nunca admite ser ao mesmo tempo grande e pequena
bull A grandeza em noacutes jamais aceita o pequeno (oposto)
Eacute neste ponto que Platatildeo apresenta o princiacutepio da incompatibilidade de opostos
um oposto nunca seraacute seu oposto Existem coisas que jamais apresentam a
versatilidade de Siacutemias com suas qualidades acidentais ndash grandeza e pequenez ao
mesmo tempo ndash por causa da sua relaccedilatildeo com a lsquoForma em sirsquo e lsquoa Forma em noacutesrsquo
192
O termo αὐτὸ τὸ μέγεθος certamente eacute uma referecircncia a uma Forma mas natildeo
temos detalhes para saber se Platatildeo faz uma distinccedilatildeo no diaacutelogo entre Formas
transcendentes e Formas imanentes ao falar de lsquograndeza em sirsquo e lsquograndeza em noacutesrsquo
Mas essa distinccedilatildeo entre αὐτὸ τὸ μέγεθος e τὸ ἐν ἡμῖν μέγεθος estaacute longe de ser clara no
diaacutelogo natildeo fica claro se Platatildeo estaacute falando de uma Forma transcendente e de uma
Forma imanente e que o status ontoloacutegico da primeira diferente do da segunda como
Keyt defende inclusive afirmando que a Forma transcendente eacute por natureza
indestrutiacutevel enquanto a Forma imanente pode ser destruiacuteda141 Mas na verdade ateacute
agora nem mesmo sabemos ao certo se τὸ ἐν ἡμῖν μέγεθος eacute uma referecircncia a Formas
imanentes142 Apenas no desenvolvimento da discussatildeo eacute que Platatildeo deixaraacute claro que
τὸ ἐν ἡμῖν μέγεθος eacute uma Forma Apenas a partir de 104d eacute que temos a explicaccedilatildeo
completa existem Formas que ocupam um particular e que carregam consigo outra
Forma Mesmo nesse contexto seraacute difiacutecil entender a distinccedilatildeo no status ontoloacutegico das
duas Formas Mas Keyt estaacute parcialmente correto em ao observar que o contexto nos
levaraacute a pensar que a Forma na coisa (o que poderiacuteamos chamar de Forma imanente)
sofre uma experiecircncia negativa ndash destruiccedilatildeo ndash com a chegada da Forma oposta Mas eacute
bom lembrar que essa destruiccedilatildeo talvez natildeo seja literal porque a ideia estaacute vinculada e
se expressa por meio da metaacutefora militar Ainda assim em momento alguma o texto
sugere que a Forma que traz consigo a outra Forma pode sofrer destruiccedilatildeo a partir de
104d a metaacutefora militar perde a sua forccedila Em vez da ameaccedila de uma oposta rival que
pode destruir a Forma que ocupa um objeto temos uma Forma que natildeo admite em
141 Keyt 1963 p168
142 Cf Gallop 2002 p 195
193
qualquer hipoacutetese a ameaccedila de uma Forma oposta rival Mas ao final Platatildeo natildeo deixa
claro se temos aqui a claacutessica distinccedilatildeo entre Forma transcendente e imanente Agora
neste contexto inicial o que eacute essencial eacute observar que Platatildeo marca a distinccedilatildeo entre
duas coisas lsquoa Forma em sirsquo e lsquoalgo em noacutesrsquo E a repeticcedilatildeo desta distinccedilatildeo sugere que
ela tem importacircncia nesta etapa
bull a grandeza em noacutesrsquo (τὸ ἐν ἡμῖν μέγεθος) (102d6-8)
bull o pequeno em noacutes (τὸ σμικρὸν τὸ ἐν ἡμῖν) (102de5-6)
bull o oposto que estaacute em noacutes (τὸ ἐν ἡμῖν) (103b4-5)
Este algo lsquoem noacutesrsquo (ἐν ἡμῖν μέγεθος) nem sempre eacute intepretado como Forma
aleacutem de Formas imanentes pode tambeacutem ser interpretada como um tipo especial de
particular ou ainda como um elemento imanente que nem eacute uma Forma nem mesmo um
particular
bull OrsquoBrien entende que algo ἐν ἡμῖν natildeo eacute uma Forma mas um tipo
especial de particular que ele chama de lsquoparticularizaccedilatildeorsquo que como as
Formas natildeo podem admitir seus opostos Mas seu status ontoloacutegico se
manteacutem ndash eles satildeo particulares natildeo um terceiro tipo de entidade143
143 OrsquoBrien 1967 p201-202
194
Mas a nossa leitura baseada no contexto imediato tende a privilegiar a ideia de
que haacute dias Formas em jogo aqui ndash a Forma em si e a Forma em noacutes ndash ainda que Gallop
advirta que a terminologia apresentada por Platatildeo natildeo eacute suficiente para garantir uma
distinccedilatildeo consistente entre Formas lsquoimanentesrsquo e lsquotranscendentesrsquo (embora o contexto
tambeacutem natildeo negue essa ideia)144 Alguns comentadores tendem a enfatizar que Formas
no Feacutedon satildeo Formas imanentes
bull Hackfort entende que ateacute mesmo lsquograndeza em sirsquo (αὐτὸ τὸ μέγεθος)
(102d6-8) eacute uma referecircncia a uma Forma imanente porque Soacutecrates estaacute
aqui lidando com isto elementos que se aproximam e residem em
objetos fiacutesicos145
Mas sabemos que eacute possiacutevel que Platatildeo assuma que Formas possuem existecircncia
proacutepria peculiar e independente e ainda assim eacute possiacutevel que elas estejam presentes nas
coisas O inteacuterprete do Feacutedon precisa lidar constantemente com as lacunas deixadas por
Platatildeo num diaacutelogo cujo objetivo natildeo eacute apresentar uma teoria das Formas mas provar a
imortalidade da alma
Mas o ponto essencial eacute que duas Formas estatildeo em jogo aqui lsquoa gradeza em sirsquo
e lsquoa grandeza em noacutesrsquo satildeo Formas O texto natildeo nos deixa saber se haacute uma distinccedilao
ontoloacutegica entre a lsquoForma em sirsquo e a lsquoForma em noacutesrsquo ou uma clara estrutura hieraacuterquica
144 Gallop 2002 p195
145 Hackfort 1998 p150
195
entre elas ndash uma Forma suprema e uma Forma subordinante Essa passagem introduz
um princiacutepio que seraacute desenvolvido apenas em 104d
654 Incompatibilidade de opostos
O princiacutepio que agora Platatildeo se esforccedila para apresentar eacute o da incompatibilidade
dos opostos enquanto Siacutemias pode participar na grandeza e pequenez ao mesmo tempo
nem a lsquograndeza em sirsquo nem lsquoa grandeza em noacutesrsquo aceitaraacute em condiccedilatildeo o seu oposto
Platatildeo expotildee a noccedilatildeo de incompatibilidade de opostos apresentando uma seacuterie de
exemplos ao longo da lsquoresposta segura e inteligente (102d-e)
bull A grandeza em si jamais quer ser grande e pequena ao mesmo tempo
(αὐτὸ τὸ μέγεθος οὐδέποτ᾽ ἐθέλειν ἅμα μέγα καὶ σμικρὸν εἶναι) (102d5-
7)
bull A grandeza em noacutes jamais admite o pequeno e nem quer ser excedida (τὸ
ἐν ἡμῖν μέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σμικρὸν οὐδ᾽ ἐθέλειν
ὑπερέχεσθαι) (102d7-9)
bull Aquilo que eacute grande natildeo ousa ser pequeno (ἐκεῖνο δὲ οὐ τετόλμηκεν
μέγα ὂν σμικρὸν εἶναι) (102e5-6)
bull Por semelhante modo o pequeno em noacutes natildeo quer de modo algum ser ou
tornar-se grande (ὡς δ᾽ αὕτως καὶ τὸ σμικρὸν τὸ ἐν ἡμῖν οὐκ ἐθέλει ποτὲ
μέγα γίγνεσθαι οὐδὲ εἶναι) (102e5-6)
bull Nem qualquer dos opostos pode ao mesmo tempo permanecer o que era
e ser ou se tornar o seu oposto mas parte em retirada ou perece ao sofrer
196
esse golpe (οὐδ᾽ ἄλλο οὐδὲν τῶν ἐναντίων ἔτι ὂν ὅπερ ἦν ἅμα
τοὐναντίον γίγνεσθαί τε καὶ εἶναι ἀλλ᾽ ἤτοι ἀπέρχεται ἢ ἀπόλλυται ἐν
τούτῳ τῷ παθήματι) (102e8-103a2)
bull O oposto em si de modo algum viria a ser oposto de si mesmo nem o
oposto em noacutes nem o oposto na natureza (αὐτὸ τὸ ἐναντίον ἑαυτῷ
ἐναντίον οὐκ ἄν ποτε γένοιτο οὔτε τὸ ἐν ἡμῖν οὔτε τὸ ἐν τῇ φύσει)
(103b4-5)
bull () O oposto jamais seraacute oposto de si mesmo (μηδέποτε ἐναντίον ἑαυτῷ
τὸ ἐναντίον ἔσεσθαι) (103c7-8)
Platatildeo cuidadosamente utiliza uma metaacutefora militar como observa Burnet para
ilustrar essa incompatibilidade146 A lsquoForma em noacutesrsquo e a lsquoForma oposta rivalrsquo satildeo
caracterizados como se fossem inimigos em confronto num campo de batalha quando
um combatente avanccedila o outro eacute obrigado a partir em retirada ou acaba perecendo na
chegada do inimigo Esta viacutevida metaacutefora eacute aplicada incialmente para os opostos
grandeza e a pequenez Quando a pequenez ndash o oposto (τὸ ἐναντίον) da grandeza ndash
avanccedila sobre ela a grandeza possui apenas duas opccedilotildees (102d9-102e2)
(i) Fugir e partir em retirada (ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν)
(ii) Ou sobrevindo a pequenez ser eliminada (ἢ προσελθόντος ἐκείνου
ἀπολωλέναι)
146 Cf Burnet p 102
197
Sendo assim se alguma Forma estaacute em uma determinada coisa essa coisa natildeo
admitiraacute qualquer Forma oposta ela bateraacute em retirada ou pereceraacute
655 Objeccedilatildeo de um anocircnimo (103a-103c)
Depois de apresentar o princiacutepio da incompatibilidade de opostos um
interlocutor anocircnimo tenta relacionar o argumento presente com o primeiro argumento
apresentado ndash argumento ciacuteclico ndash e Soacutecrates aproveita para apresentar as distinccedilotildees
baacutesicas sobretudo explicando que a noccedilatildeo de opostos agora eacute completamente nova
antes se falava de coisas grandes mas agora da grandeza em si A distinccedilatildeo eacute
apresentada em 103b
(i) Primeiro argumento a coisa oposta proveacutem de seu oposto (ἐκ τοῦ
ἐναντίου πράγματος τὸ ἐναντίον πρᾶγμα γίγνεσθαι)
(ii) Uacuteltimo argumento o oposto em si (αὐτὸ τὸ ἐναντίον) jamais pode ser
oposto de si mesmo nem o que estaacute em noacutes (οὔτε τὸ ἐν ἡμῖν) nem o que
estaacute na natureza (οὔτε τὸ ἐν τῇ φύσει)
656 Fogo calor neve e frio (103c-d)
Na continuaccedilatildeo Platatildeo enfatiza o papel do portador de opostos O princiacutepio
tambeacutem seraacute aplicado a ele Haacute principalmente trecircs elementos em cena nesta etapa
bull Forma oposta
198
bull Portador da Forma oposta
bull Forma oposta rival
Sabemos que nem a Forma em si nem a Forma oposta podem admitir a Forma
oposta rival Sabemos o que acontece a metafoacutera militar continua operando neste
contexto Mas agora Platatildeo chama atenccedilatildeo para a reaccedilatildeo do portador do oposto quando
a Forma oposta se aproxima o portador do oposto (que natildeo eacute uma Forma) e a Forma
que ele carrega consigo teratildeo de partir em retirada ou perecer Isto ficaraacute claro em 104b
mesmo a coisa que natildeo eacute um oposto mas carrega consigo um oposto natildeo admite a
Forma oposta rival O nuacutemero trecircs (natildeo eacute uma Forma) natildeo admite a Forma oposta rival
ndash par ndash porque carrega consigo a Forma iacutempar Neste caso a metafoacutera militar permanece
viva Seria razoaacutevel pensar num combatente que natildeo possui um inimigo especiacutefico mas
por forccedila de alianccedila estaacute junto ao aliado num campo de batalha e o inimigo do seu
aliado passa a ser o seu inimigo ao se aproximar tambeacutem teraacute de bater em retirada ou
perecer
Platatildeo apresenta uma seacuterie de exemplos nesta seccedilatildeo De iniacutecio temos uma lista
de quatro elementos distintos fogo calor neve e frio Agora fogo e neve satildeo portadores
de opostos e na relaccedilatildeo com as Formas opostas que carregam tambeacutem natildeo admitiratildeo o
oposto rival Os primeiros exemplos satildeo os seguintes em 103c-d
(i) A neve o frio o oposto do frio ndash o calor a neve eacute diferente do frio que
carrega consigo mas ao se aproximar o oposto do frio ndash o calor ndash a neve
199
se retira ou eacute destruiacuteda Portanto a neve natildeo admite o oposto do frio que
carrega consigo ndash o calor
(ii) O fogo o calor o oposto do calor ndash o frio o fogo eacute diferente do calor
que carrega consigo mas ao se aproximar o oposto do calor ndash o frio ndash ou
se retira ou eacute destruiacutedo Nesta etapa existe um reforccedilo aleacutem de recusar o
oposto do calor que carrega consigo o fogo jamais permaneceraacute o
mesmo quando se aproxima a frieza ndash jamais seraacute fogo e frio ao mesmo
tempo A ideia lembra a que aparece em 103a nenhum oposto enquanto
permanece o mesmo pode ser ou tornar-se no seu oposto Agora o
princiacutepio tambeacutem se aplica agravequilo que carrega consigo um oposto
Os comentadores debatem se fogo e neve satildeo Formas ou natildeo neste contexto
especialmente se forem considerados no mesmo niacutevel que o exemplo numeacuterico lsquotrecircsrsquo
que seraacute apresentado no proacuteximo passo no diaacutelogo
(i) Vlastos entende que tudo eacute referecircncia a Formas nesta passagem fogo
neve quente frio147
(ii) Hackfort afirma que lsquoquentersquo e lsquofriorsquo satildeo lsquoformas imanentesrsquo que podem
residir em objetos concretos sendo necessaacuterio usar a letra minuacutescula
inicial para distingui-la da Forma transcendente Mas sugere Hackfort
147 Vlastos 1969 p318
200
sugere que Platatildeo provavelmente teria achado complicado especificar
neste ponto o que ele tinha em mente 148
(iii) OrsquoBrien sugere que lsquoquentersquo e lsquofriorsquo devem ser entendidos como
particularizaccedilotildees da Forma mas pouco depois admite que a verdade eacute
que na presente passagem natildeo podemos dizer se lsquoquentersquo e lsquofriorsquo satildeo uma
lsquoformarsquo ou uma lsquoparticularizaccedilatildeo da formarsquo149
(iv) Burnet salienta que natildeo foi sugerido em momento algum que o fogo e a
neve satildeo Formas e parece improvaacutevel que sejam assim considerados
Por outro lado trecircs que para o propoacutesito do presente argumento estaacute no
niacutevel do fogo e da neve eacute reconhecido como Forma Burnet entatildeo
ressalta que eacute essa incerteza que cria todas as dificuldades da presente
passagem150
Apesar da incerteza que a falta de detalhes do texto traz tomaremos a posiccedilatildeo de
que nesses exemplos em 105b-c natildeo temos Forma como a a Forma do fogo por
exemplo A nossa conclusatildeo decorre da seguinte observaccedilatildeo no Feacutedon haacute Formas que
trazem Formas opostas para aquilo que ocupam (104d) mas nunca Formas que
participam em Formas e este seria o caso se admitiacutessemos a Forma do fogo segundo
esses exemplos Esta passagem eacute de fundamental importacircncia porque introduz o caso da
alma e o argumento final propriamente dito e seraacute retomado adiante
148 Hackfort 1998 149-150
149 OrsquoBrien 1967 p202 203
150 Burnet 1911 p104
201
O que importa por enquanto eacute observar que Platatildeo apresenta trecircs elementos neste
cenaacuterio um portador de um oposto o oposto portado e o oposto rival O portador
(fogoneve) natildeo eacute uma Forma mas portador da Forma oposta (calorfrio)
Fogo ndash portador (natildeo eacute Forma)
Calor ndash Forma oposta carregada pelo Fogo
Frio ndash Forma oposta rival
657 Os exemplos numeacutericos (103e-104c)
A introduccedilatildeo de exemplos numeacutericos traz um desenvolvimento filosoacutefico
consideraacutevel neste contexto Aqui temos uma passagem de exemplos de coisas fiacutesicas
(fogo neve) para um exemplo numeacuterico que nem sempre eacute bem aceito pelos
comentadores Mas Gallop lembra que a transiccedilatildeo decorrer da aproximaccedilatildeo entre alma e
nuacutemero Natildeo se pode perder de vista que Platatildeo estaacute preparando o terreno para
apresentar a sua uacuteltima prova da imortalidade da alma e exemplos numeacutericos servem
para ligar e ateacute mesmo esconder a seacuteria lacuna entre a alma e as coisas fiacutesicas com as
quais ela foi ateacute agora comparada No uacuteltimo argumento a alma seraacute pensada como
transmissora de vida aos corpos que ocupa assim como o fogo e a neve transmitem
calor e frio sendo essa analogia enfraquecida pelo fato de que a alma ao contraacuterio do
fogo e da neve natildeo eacute observaacutevel (79b7-15) Portanto a transiccedilatildeo para a alma eacute
202
facilitada pelo exemplo de trecircs uma vez que nuacutemeros assim como a alma natildeo satildeo
sensiacuteveis observaacuteveis em si mesmos151
Desde o iniacutecio Formas satildeo protagonistas na discussatildeo
bull A proacutepria Forma (αὐτὸ τὸ εἶδος) eacute apresentada como um tipo de
dignataacuteria a quem pertence originalmente o direito de portar seu nome
para sempre
bull Natildeo somente a proacutepria Forma (μὴ μόνον αὐτὸ τὸ εἶδος) eacute digna de ter o
mesmo nome para sempre mas tambeacutem certas coisas que natildeo satildeo
Formas mas que tem sempre a sua Forma (ἔχει δὲ τὴν ἐκείνου μορφὴν
ἀεί) (103e2-5)
bull As coisas que possuem uma Forma e manteacutem um viacutenculo essencial com
ela sem que jamais dela se separe satildeo as coisas que tambeacutem possuem o
direito de portar seu nome para sempre (104a)
Portanto a proacutepria Forma (αὐτὸ τὸ εἶδος) eacute um tipo de dignataacuteria a quem
pertence originalmente o direito de portar seu nome para sempre Parece que Platatildeo
utiliza a imagem de membros de famiacutelias de alto prestiacutegio suas dignidades possuem o
direito de portar os tiacutetulos de nobreza da famiacutelia perpetuamente Formas satildeo aquelas que
possuem naturalmente esse privileacutegio Mas assim como em famiacutelias da nobreza tiacutetulos
de honra podem ser concedidos agravequeles que se agregam agrave famiacutelia por exemplo pelo
viacutenculo de casamento Essa metaacutefora sutilmente elaborada eacute o que daacute sustentaccedilatildeo a essa
passagem assim como a metaacutefora militar sustenta a ideia da incompatibilidade dos
151 Gallop 2002 p200
203
opostos Os opostos natildeo podem coexistir mas a Forma e aquilo que a possui estatildeo em
alianccedila perpeacutetua Vejamos os exemplos (104-c)
bull O nuacutemero trecircs possui um viacutenculo essencial com o iacutempar (Forma) ele
deve ser sempre designado com o seu nome (trecircs) mas tambeacutem com o
nome iacutempar (o nome da Forma que carrega consigo) O trecircs eacute sempre
iacutempar porque possui a Forma do iacutempar o que lhe agracia com o direito
de ldquonobrezardquo de ter o tiacutetulo para sempre
bull O mesmo se aplica ao nuacutemero cinco e ao demais nuacutemeros iacutempares eles
natildeo satildeo o iacutempar (τὸ περιττὸν a Forma) mas lsquocada um deles eacute sempre
iacutemparrsquo (ἀεὶ ἕκαστος αὐτῶν ἐστι περιττός) (tem o direito de serem
perpetuamente chamados de iacutempares pelo viacutenculo inalienaacutevel com a
Forma)
bull O mesmo se aplica ao dois ao quatro e a todos os nuacutemeros pares eles
natildeo satildeo o par (τὸ ἄρτιον) mas lsquocada um deles eacute sempre parrsquo (ἕκαστος
αὐτῶν ἄρτιός ἐστιν ἀεί)
Em todos esses exemplos numeacutericos temos a relaccedilatildeo essencial entre um portador
que natildeo eacute uma Forma mas que possui um viacutenculo perpeacutetuo com uma Forma o que lhe
daacute o direito de ser chamado para sempre de certo nome Mas no primeiro exemplo
Platatildeo sugere que esse portador possui uma relaccedilatildeo com outra Forma a qual tambeacutem
lhe garante seu proacuteprio nome o nuacutemero trecircs deve ser sempre designado com o seu
nome (trecircs) Se o trecircs deve ser sempre designado com nome iacutempar por causa do seu
204
viacutenculo com o iacutempar (a Forma) o texto fortemente sugere que o trecircs eacute chamado de trecircs
por causa da sua relaccedilatildeo essencial com outra Forma Mas isto natildeo fica claro agora e
posteriormente teremos mais indiacutecios que apoiam esta tese que talvez seja essencial para
a compreensatildeo da uacuteltima prova da imortalidade da alma no Feacutedon
658 Coisas que natildeo admitem opostos (104b-c)
Neste proacuteximo passo temos algumas das passagens mais disputadas no Feacutedon
Primeiro Platatildeo busca esclarecer que natildeo eacute apenas o oposto que natildeo admite o oposto
rival mas tambeacutem o portador deste oposto A mesma ideia da incompatibilidade de
opostos toma lugar no diaacutelogo mas a ecircnfase recai sobre o portador dos opostos
ldquoNatildeo satildeo apenas aqueles opostos dos quais falamos (opostos muacutetuos)
que natildeo se admitem entre si mas tambeacutem as coisas que natildeo apresentam
respectivos opostos mas possuem um oposto (Forma) natildeo admitem
aquela Forma oposta ao oposto que estaacute neles (ἐκείνην τὴν ἰδέαν ἣ ἂν τῇ
ἐν αὐτοῖς οὔσῃ ἐναντία ᾖ) Se ocorresse de ela se aproximar essas coisas
que possuem opostos bateriam em retirada ou pereceriamrdquo (104b6-c3)
O exemplo do nuacutemero trecircs revela claramente o tipo de coisa em questatildeo o
nuacutemero trecircs natildeo eacute uma Forma mas eacute portador de uma Forma oposta ndash a Forma iacutempar
205
estaacute no trecircs Sendo assim o proacuteprio trecircs jamais acomodaraacute consigo a Forma oposta rival
(o par) (104c1-3)
Eacute importante notar que a metaacutefora militar continua em cena neste contexto da
lsquoresposta segura e inteligentersquo principalmente em 102d-104c A aproximaccedilatildeo da Forma
oposta pode trazer destruiccedilatildeo agraves coisas que possuem um Forma oposta Eacute interessante
observar que o mesmo verbo lsquoperecerrsquo - ἀπόλλυμι - que Soacutecrates utiliza na sua
autobiografia intelectual (96a 97b 97c) quando relata a fase em que estava em busca
da causa da geraccedilatildeo e destruiccedilatildeo eacute empregado pelo menos seis vezes em 102d-104c
para expressar a ideia da metaacutefora militar Temos a sugestatildeo de que Platatildeo ainda estaacute
discutindo como as coisas surgem e como satildeo destruiacutedas mas a partir de uma nova
noccedilatildeo de αἰτίαι e num contexto completamente novo Formas satildeo αἰτίαι e agora Platatildeo
explica como elas fazem com que as coisas sejam o que elas e como elas participam na
destruiccedilatildeo de coisas Sobrevindo uma Forma oposta rival as coisas que possuem uma
Forma oposta podem perecer (ἀπόλλυμι) Na chegada do par o nuacutemero trecircs perece
Geralmente passa despercebido que a partir de 104d Platatildeo natildeo emprega
diretamente a metaacutefora militar na discussatildeo ndash a ideia de fugir e partir em retirada (ἢ
φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ) ou de perecer na chegada da Forma oposta (ἢ προσελθόντος
ἐκείνου ἀπολωλέναι) natildeo eacute mais mencionada diretamente e parece arrefecer com a
introduccedilatildeo de Formas que natildeo admitem opostos rivais daquele que carrega consigo
659 Outras coisas que natildeo admitem opostos (104c-105b)
206
Neste novo passo o desafio proposto pela personagem Soacutecrates eacute definir lsquoque
tipo de coisas satildeo essasrsquo ou seja quais satildeo essas coisas indefinidas ateacute entatildeo que
tambeacutem natildeo admitem Formas opostas
ldquoNesse caso natildeo apenas as Formas opostas natildeo resistem ao avanccedilo das rivais
mas tambeacutem algumas outras coisas natildeo resistem ao avanccedilo dos opostosrdquo (οὐκ
ἄρα μόνον τὰ εἴδη τὰ ἐναντία οὐχ ὑπομένει ἐπιόντα ἄλληλα ἀλλὰ καὶ ἄλλ᾽ ἄττα
τὰ ἐναντία οὐχ ὑπομένει ἐπιόντα) (104c7-9)
ldquoEntatildeo vocecirc gostaria disse se fosse possiacutevel que determinaacutessemos que tipo de
coisas elas satildeo (βούλει οὖν ἦ δ᾽ ὅς ἐὰν οἷοί τ᾽ ὦμεν ὁρισώμεθα ὁποῖα ταῦτά
ἐστιν) (104c11-12)
Platatildeo jaacute havia estabecido que a Forma oposta que estaacute em algo natildeo pode
admitir acomodar ou coexistir com a Forma oposta Agora ele introduz um novo
sujeito que natildeo eacute a Forma oposta mas uma Forma que traz a Forma oposta para aquilo
que ocupa Agora nem a coisa ocupada pela Forma oposta pode acomodar em si a
Forma oposta rival nem mesmo a Forma que traz a Forma oposta para o objeto que
ocupa poderaacute admitir essa Forma oposta rival Eacute certamente desta Forma que natildeo eacute um
oposto mas natildeo admite opostos que Soacutecrates pergunta se Cebes quer definir
A questatildeo colocada em 104c7-9 ndash ldquoNesse caso natildeo apenas as Formas opostas
natildeo resistem ao avanccedilo das rivais mas tambeacutem algumas outras coisas natildeo resistem ao
avanccedilo dos opostosrdquo ndash (104c7-9) e que levanta o pedido pela determinaccedilatildeo desse lsquotipo
de coisasrsquo (104c11-12) natildeo tem em si mesma nenhum elemento que a comprometa
207
unicamente com a ideia de algo que participa de uma Forma Vejamos que nesta
questatildeo especiacutefica
bull Soacutecrates natildeo sugere a ideia de que as coisas em questatildeo possuem opostos
nelas (como em 104b6-c3) o que necessariamente indicaria que Platatildeo
estaria falando de portadores que carregam opostos em si Essa parte eacute
omitida e a ideia eacute geneacuterica algumas outras coisas
bull Agora Soacutecrates utiliza ἄττα um pronome indefinido o qual deixa a
questatildeo em aberto Eacute realmente estranha a sugestatildeo de uma indefiniccedilatildeo
quando jaacute havia sido dada uma resposta para o problema o portador de
opostos inclusive com o exemplo do nuacutemero trecircs (104c8)
Se realmente levarmos em consideraccedilatildeo a indefiniccedilatildeo sugerida pelo pronome
poderiacuteamos considerar que Platatildeo poderia estar sugerindo um terceiro elemento que
engrossaria essa linha de resistecircncia contra o oposto rival
bull Uma Forma oposta natildeo admite a Forma oposta rival
bull A coisa que participa de uma Forma oposta natildeo admite a Forma oposta
que rivaliza com a Forma oposta que carrega em si
bull Um elemento indefinido tambeacutem natildeo admitiria a Forma oposta que
rivaliza com a Forma oposta que um portador carrega em si
208
Mas os termos empregados por Platatildeo satildeo ambiacuteguos natildeo apenas ἄττα mas o
pronome demonstativo ταῦτά em lsquoque tipos de coisas satildeo essasrsquo (ὁποῖα ταῦτά ἐστιν)
(104c11-12) sugerem que eacute algo novo Embora haja duas possiacuteveis interpretaccedilotildees para
aquilo que se quer definir com base na obscura construccedilatildeo gramatical em 104d1-3 ndash as
coisas ocupadas por Formas e as Formas que ocupam coisas ndash a nossa opccedilatildeo eacute pela
ideia de que essas coisas satildeo lsquoaquelas que ocupam algo e as compelem a adquirir a sua
proacutepria Forma e uma Forma opostarsquo Essa interpretaccedilatildeo se baseia principalmente no
passo seguinte com o exemplo da Forma do trecircs (ἡ τῶν τριῶν ἰδέα) que eacute aquilo que
ocupa trecircs e o compele ser trecircs e iacutempar (104d5-7) Fazendo uma revisatildeo a pergunta
lsquoque tipo de coisas satildeo essasrsquo nos remete a lsquoaquelas coisas que ocupam outras e as
compelem a possuir a sua proacutepria Forma e a Forma opostarsquo que por sua vez nos remete
agrave Forma do trecircs que eacute o sujeito que ocupa e compele e que por sua vez faz com que
trecircs seja necessariamente trecircs e iacutempar
A Forma do trecircs eacute responsaacutevel inclusive pela Forma oposta nas coisas Tambeacutem
vale lembrar que ao comentarmos 104c vimos que o nuacutemero trecircs deve ser sempre
designado como iacutempar por causa do seu viacutenculo essencial com a Forma oposta (iacutempar)
que carrega consigo mas Platatildeo tambeacutem afirma que o nuacutemero trecircs deve ser sempre
designado com o seu nome (trecircs) sem explicar por que deixando a questatildeo em aberto
Mas agora temos a sugestatildeo de que o nuacutemero trecircs deve ser sempre designado com o seu
nome por causa da Forma do trecircs Natildeo eacute por acaso que temos agora justamente a Forma
de trecircs (104d)
Platatildeo entatildeo firma a ideia ldquoa Forma oposta natildeo poderia jamais sobrevir agravequela
Forma que realiza esse trabalhordquo (ἡ ἐναντία ἰδέα ἐκείνῃ τῇ μορφῇ ἣ ἂν τοῦτο
ἀπεργάζηται οὐδέποτ᾽ ἂν ἔλθοι) (104d9-10) O verbo ἀπεργάζομαι sugere que a ideia
209
de lsquocausarsquo neste contexto eacute bem mais desenvolvida do que a mera ideia de
lsquoresponsabilidadersquo no contexto da resposta segura mas ignorante Agora Formas fazem
algo e assim produzem um efeito num objeto particular Antes jaacute tiacutenhamos a ideia de
participaccedilatildeo ndash lsquoFormasrsquo estatildeo presentes em contato ou comunhatildeo (κοινωνία παρουσία
100d5 6) com as coisas e satildeo responsaacuteveis por fazer com que elas sejam o que elas satildeo
Mas agora os verbos revelam uma atividade que gera causa ou produz um efeito nos
objetos particulares A partir de 104c a linguagem do movimento forccedila possessatildeo
domiacutenio e trabalho caracterizam plenamente as Formas elas ocupam (κατέχω)
particulares compelem-nos (ἀναγκάζω) a adquirir certas qualidades carregam
(ἐπιφέρω) consigo outras Formas natildeo admitem (δέχομαι ) as Formas opostas rivais e
produzem (ἀπεργάζομαι) algo naquilo que ocupa152 O verbo ἀπεργάζομαι traz a ideia
de um trabalho realizado e trazido ao fim A μορφή eacute um sujeito ativo cujo trabalho
produz o resultado esperado ela caracteriza aquilo que ocupa de duas maneiras por ela
mesma (a proacutepria Forma) e pela Forma oposta que carrega consigo Portanto aqui jaacute
podemos falar de Formas como αἰτία num sentido que vai bem aleacutem de mera
lsquoresponsabilidadersquo Forma neste contexto eacute um agente ativo de uma ordem mais alta de
realidade que eacute literalmente ldquoresponsaacutevel porrdquo fazer com que um efeito especiacutefico seja
produzido num objeto particular Formas satildeo a causa verdadeira que a personagem
Soacutecrates estava agrave procura Pelo menos esta eacute a mensagem que o texto sugere
O texto natildeo nos deixa saber se haacute uma distinccedilao ontoloacutegica entre a lsquoForma em
sirsquo e a lsquoForma em noacutesrsquo ou uma clara estrutura hieraacuterquica entre elas ndash uma Forma
suprema e uma Forma subordinante Mas pelo menos temos a sugestatildeo de que eacute papel
152 Cf Teloh 1975 p 21
210
da lsquoForma em sirsquo trazer a lsquoForma em noacutesrsquo e produzir causar ou fazer com que a coisa
que ocupa seja o que ela eacute (104d)
A Forma eacute vista agora como principal responsaacutevel pelas coisas serem o que satildeo
bull A Forma Trecircs determina que aquilo que ela ocupa seja trecircs ndash a coisa
ocupada pela Forma trecircs eacute necessariamente trecircs
bull A Forma Trecircs eacute responsaacutevel por carregar a Forma oposta para a coisa
que ocupa eacute dessa maneira que ela tambeacutem determina que aquilo que ela
ocupa tambeacutem seja iacutempar
bull A Forma Trecircs eacute responsaacutevel pela exclusatildeo da Forma oposta Iacutempar
A Forma eacute agora natildeo apenas uma forccedila de ocupaccedilatildeo mas um combatente que
traz consigo um aliado na prevenccedilatildeo e defesa da aacuterea ocupada contra a chegada do
oposto rival Agora natildeo apenas a coisa ocupada natildeo admite a Forma oposta mas
tambeacutem a proacutepria Forma que ocupa natildeo admite a Forma oposta rival da Forma que ela
traz para a coisa que ocupa
A passagem seguinte eacute uma extensatildeo daquilo que foi apresentado agora e deve
ser interpretada agrave luz do que foi dito Alguns pontos satildeo explicitados a comeccedilar pela
ideia de que a Forma traz consigo uma Forma oposta para as coisas que ocupam e
jamais admite o oposto daquilo que leva consigo Para explicar essa nova ideia um novo
verbo empregado o verbo ἐπιφέρει eacute utilizado para descrever a accedilatildeo da Forma que
mesmo natildeo sendo um oposto carrega consigo outra Forma (a Forma oposta) (104e-
105a) O verbo eacute utilizado especificamente aqui em 104e-105a em conexatildeo com o que
211
foi apresentado em 104d para trazer luz ao trabalho realizado pela Forma o trabalho de
carregar a Forma oposta para aquilo que ocupa Pelo menos trecircs exemplos mostram que
a Forma carrega consigo a Forma oposta
bull ἡ τριὰς (a Forma Triacuteade) ἡ δυὰς (a Forma Dois) τὸ πῦρ (a Forma Fogo)
ndash natildeo sendo um oposto (οὐκ οὖσα ἐναντία) carrega sempre consigo um
oposto (τὸ ἐναντίον ἀεὶ αὐτῷ ἐπιφέρει) e jamais admite (δέχεται) o
oposto rival do que carrega consigo (104e8-105a5)
Por fim Soacutecrates reforccedila a ideia novamente
ldquoNatildeo apenas o oposto natildeo admite o seu oposto mas haacute tambeacutem aquilo
que carrega um oposto para a coisa que ocupa e isto que carrega nunca
admite o oposto do que carregardquo
μὴ μόνον τὸ ἐναντίον τὸ ἐναντίον μὴ δέχεσθαι ἀλλὰ καὶ ἐκεῖνο ὃ ἂν
ἐπιφέρῃ τι ἐναντίον ἐκείνῳ ἐφ᾽ ὅτι ἂν αὐτὸ ἴῃ αὐτὸ τὸ ἐπιφέρον τὴν τοῦ
ἐπιφερομένου ἐναντιότητα μηδέποτε δέξασθαι ( 105a2-5)
Essa lista de exemplos numeacutericos provavelmente eacute uma lista de Formas uma
vez que temos nesta passagem um desenvolvimento da ideia apresentada em 104d ἡ
τριὰς ἡ δυὰς τὸ πῦρ τὰ πέντε τὰ δέκα τὸ διπλάσιον τὸ ἡμιόλιον τὸ ἥμισυ (1004e-
105b) certamente satildeo Formas e em 104d-105b procuram estabelecer o princiacutepio de que
212
Formas satildeo causas que ocupam objetos carregam consigo as Formas opostas e realiza
neles uma obra completa fazendo com que eles sejam o que eles satildeo e prevenindo a
chegada de qualquer oposto rival Vaacuterios exemplos satildeo apresentados para ratificar a
ideia de que a Forma mesmo natildeo sendo um oposto natildeo admite o oposto daquele
oposto que carrega consigo (105a-b)
Depois de estabelecer o princiacutepio essencial que envolve Formas Formas opostas
e coisas ocupadas Soacutecrates se oferece para refrescar a memoacuteria do Cebes ainda que
esteja sendo repetitivo ldquoMas lembre-se mais uma vez pois natildeo haacute mal algum em ouvir
isso muitas vezesrdquo (πάλιν δὲ ἀναμιμνῄσκου οὐ γὰρ χεῖρον πολλάκις ἀκούειν) (105a5-
6) Os exemplos podem ser divididos em duas etapas
bull Cinco natildeo admitiraacute a Forma do par153
bull Dez o dobro de cinco natildeo admitiraacute a Forma do iacutempar (que eacute o oposto da
Forma do par que o dez carrega consigo)
bull Dobro (embora seja oposto de algo) natildeo admitiraacute a Forma do iacutempar
bull Fraccedilotildees como frac12 e outras assim natildeo admitiratildeo a Forma do todo
6510 Exemplos adicionais (105b-c)
Ao final Soacutecrates convida Cebes para voltar ao comeccedilo e apresenta alguns
exemplos adicionais que introduzem o caso da alma Eacute difiacutecil saber se Platatildeo continua a
153 Platatildeo omite ἡ ἰδέα mas ela pode ser recuperada no contexto imediato numa construccedilatildeo
semelhante agrave que emprega agora ἐπὶ τὰ τρία ἄρα ἡ τοῦ ἀρτίου ἰδέα οὐδέποτε ἥξει (104e1) τὰ
πέντε τὴν τοῦ ἀρτίου οὐ δέξεται (105a6-7)
213
desenvolver a ideia de ocupaccedilatildeo em continuaccedilatildeo com o contexto anterior a ideia de que
a Forma ocupa algo A ruptura com o contexto anterior pode ter ocorrido quando
Soacutecrates deixa os exemplos eminentemente numeacutericos e convida a voltar ao comeccedilo
Por outro lado eacute tambeacutem possiacutevel que ele utilize exemplos adicionais para retomar a
ideia de uma Forma ocupar algo Em 104d o verbo κατέχω eacute utilizado e agora em
105b-d o verbo ἐγγίγνομαι ndash lsquoentrar ir pararsquo ndash eacute utilizado trecircs vezes depois uma vez
mais no caso da alma Como jaacute vimos anteriormente a ideia de Formas movendo-se
para objetos particulares e neles produzindo efeitos eacute o mais comum 102e1 103d7
d10 104b10 c7 Se realmente Platatildeo continua com essa ideia desenvolvida no contexto
anterior Fogo Febre e Unidade satildeo Formas que entram nas coisas trazem consigo a
Forma oposta e produzem nela um efeito calor doenccedila imparidade Vejamos os
exemplos em 105b8-c6
bull O que vem para o corpo que o torna quente natildeo eacute o calor mas o fogo
bull O que vem para o corpo que o torna enfermo natildeo eacute a doenccedila mas a
febre
bull O que vem para o nuacutemero que o torna par natildeo eacute a imparidade mas a
unidade
Gallop lembra que se esses exemplos forem tomados como Formas o sentido da
relaccedilatildeo entre Formas e as coisas que elas ocupam natildeo eacute meramente loacutegico mas
causal154
154 Gallop 2002 p221
214
Finalmente os exemplos introduzem a alma e com isso o uacuteltimo argumento
bull O que vem para o corpo que o torna vivo eacute a alma (105c8-d4)
215
7 UacuteLTIMO ARGUMENTO PROPRIAMENTE DITO (105c-107b)
O argumento final propriamente dito comeccedila precisamente em 105c9 e finda em
107b10155 A tradiccedilatildeo interpretativa diverge na delimitaccedilatildeo do argumento mas nos
parece claro que a etapa que interpotildee entre as objeccedilotildees de Cebes e o uacuteltimo argumento
propriamente dito que soacute eacute introduzido em 105c visa preparar o terreno para a
compreensatildeo do uacuteltimo argumento mas natildeo deve ser confundido com o argumento
propriamente dito
O argumento eacute introduzido com o fim de responder as objeccedilotildees gerais de Cebes
de que a alma pode passar por diversos ciclos de reencarnaccedilotildees e ao final ser destruiacuteda
Isto indica que desde o iniacutecio o argumento pretende lidar com almas individuais Aleacutem
disso o amplo contexto do Feacutedon nos mostra que as demonstraccedilotildees visam assegurar
que a alma de Soacutecrates natildeo pereceraacute na ocasiatildeo da morte O problema colocado por
Cebes era justamente que sem ter um argumento de que a alma eacute imortal (λόγον διδόναι
ὡς ἀθάνατόν ἐστι) o que conveacutem eacute temer natildeo importa se ela entra uma ou vaacuterias vezes
num corpo e a questatildeo de Cebes tem em vista a alma de Soacutecrates e o receio dos seus
disciacutepulos de que ela seria dispersa e destruiacuteda na hora da morte (Cf 95b-e) A palavra
alma (ψυχή) aparece sem o artigo e no singular ao longo do argumento e na conclusatildeo
em 106e8-107a1 temos a palavra no singular e tambeacutem no plural ndash lsquoalmarsquo e lsquoas nossas
almarsquo (ἡμῶν αἱ ψυχαὶ) o que revela que o argumento estaacute tratando de almas individuais
Informaccedilotildees adicionais sobre a natureza da alma em questatildeo seratildeo apresentadas adiante
155 Keyt 1963 p 169 ldquoO argumento propriamente dito para a imortalidade da alma comeccedila com
a afirmaccedilatildeo de que a alma sempre chega a tudo o que ocupa tendo vida em 105crdquo
216
71 Estrutura baacutesica do argumento e Comentaacuterio
O argumento eacute relativamente simples Eis a estrutura baacutesica do argumento eacute a
seguinte
[1] A alma sempre carrega vida para o que ela ocupa (105c9-d5)
[2] A vida eacute oposta agrave morte (105d6-9)
Portanto
[3] A alma jamais admitiraacute a morte e portanto eacute imortal (105d10-e9)
Portanto
[4] Se o imortal fosse indestrutiacutevel a alma seria indestrutiacutevel (105e10-106d1
e1-4)
[5] O imortal eacute indestrutiacutevel (106d2-9)
Portanto
[6] A alma eacute indestrutiacutevel (106e5-107a1)
Vejamos uma explanaccedilatildeo do argumento
217
A exegese textual levanta a suspeita de que a primeira premissa eacute construiacuteda a
partir de um paralelo com 104d1-7156 O elemento mais importante eacute a ideia de
lsquoocupaccedilatildeorsquo com o emprego do verbo κατέχω em 104d e 105d
ἃ ὅτι ἂν κατάσχῃ (104d)
ὅτι ἃ ἂν ἡ τῶν τριῶν ἰδέα κατάσχῃ (104d)
ψυχὴ ὅτι ἂν αὐτὴ κατάσχῃ (105d)
lsquoqualquer coisa que aqueles ocupemrsquo
lsquoquaisquer coisas que a Forma do trecircs ocupersquo
lsquoqualquer coisa que a alma ocupersquo
Temos entatildeo uma relaccedilatildeo entre os dois contextos mas com uma diferenccedila
crucial ndash o sujeito
156 Pelo menos Hackfort (1998 p162) e Keyt (1963 p169) defendem a ideia de que essa
primeira declaraccedilatildeo do argumento final em 105d3-5 manteacutem um paralelo com 104d5-7 A
exegese textual confirma esse paralelo Platatildeo natildeo dependeria especificamente do vocabulaacuterio
em 104d sem uma razatildeo forte para isso A dificuldade eacute saber o que o exegeta vai fazer com esta
informaccedilatildeo
218
Sujeito Predicado Objeto
ἃ κατάσχῃ ὅτι (particular)
ἡ τῶν τριῶν ἰδέα κατάσχῃ ὅτι (particular)
ψυχὴ κατάσχῃ ὅτι (particular ndash corpo)
Enquanto o sujeito em 104d eacute a Forma que ocupa um particular em 105d o
sujeito eacute a alma Temos aqui o que poderia ser o primeiro grande embaraccedilo no uacuteltimo
argumento apesar de natildeo haver nenhuma menccedilatildeo expliacutecita de uma Forma da alma no
uacuteltimo argumento algueacutem pode sugerir que ela seria requerida pelo paralelo
(104d105d) Se aplicaacutessemos o modelo e princiacutepio de 104d para o caso da alma talvez
tiveacutessemos a Forma da alma como segue
Trecircs Alma
Forma do trecircs Forma da alma
Forma do trecircs ocupa algo e carrega consigo
a Forma oposta ndash a Forma do iacutempar
Forma da alma ocupa algo e carrega consigo a
Forma oposta ndash a Forma da Vida
Forma do trecircs produz causa faz com que a
coisa que ocupa seja necessariamente trecircs e
iacutempar
Forma da alma produz causa faz com que a
coisa que ocupa seja necessariamente alma e
viva
Forma do trecircs natildeo admite a Forma oposta
(Forma do par) que rivaliza com a Forma
que carrega (Forma do iacutempar)
Forma da alma natildeo admite a Forma oposta
(Forma da morte) que revaliza com a Forma que
carrega ndash a Forma da vida
219
Alguns comentadores antigos e contemporacircneos insistem na ideia de que existe
uma Forma da alma e que assim como particulares participam em Formas as almas
individuais participam na Forma da alma sobretudo por causa do paralelo entre 104d e
105d Archer-Hind admite que a ideia de uma Forma da alma eacute uma mostruosidade
metafiacutesica da qual natildeo podemos escapar no Feacutedon157 O inteacuterprete contemporacircneo
Prince se esforccedila para provar a tese de que existe uma Forma da alma e que ela
desempenha um papel central no uacuteltimo argumento para a imortalidade da alma De
iniacutecio ele apela para o argumento de que Platatildeo natildeo diz que existe uma Forma da alma
mas tambeacutem natildeo rejeita esta ideia158 Apesar do seu esforccedilo para provar a sua tese o
silecircncio de Platatildeo natildeo pode ser tomado como uma fala em favor de uma Forma da alma
da qual o argumento final depende Talvez Platatildeo pudesse ateacute construir um argumento
melhor com base na existecircncia de uma Forma da alma seguindo a ideia de 104d1-7
Mas natildeo o fez ou porque natildeo considerava a possibilidade da existecircncia de uma Forma
da alma ou porque simplesmente desprezou essa possibilidade ou por algum outro
motivo O silecircncio absoluto de Platatildeo nos diz simplesmente que uma Forma da alma eacute
algo que natildeo estaacute presente no argumento final ainda que possa existir
Voltando agrave questatildeo do paralelo estaacute bem claro que Platatildeo natildeo o manteacutem no
uacuteltimo argumento Existe uma diferenccedila significativa entre o emprego do verbo κατέχω
em 104d e 105d no primeiro caso a Forma do trecircs (ἡ τῶν τριῶν ἰδέα ἡ τριάς) ocupa o
nuacutemero trecircs e eacute a causa pela qual trecircs eacute trecircs e eacute iacutempar Em 105d o cenaacuterio muda a
157 Archer-Hind 1894 p 116
158 Prince 2011 p1-2
220
alma ocupa o corpo e natildeo eacute a causa pela qual o corpo eacute 159 O elemento que
aparentemente remanesce eacute que tanto a Forma do trecircs quanto a alma trazem uma Forma
para aquilo que ocupam
Mas a ideia das duas passagens paralelas levou alguns comentadores a acreditar
que para seguir de perto o paralelo entre 104d1-7 e 105d3-5 no uacuteltimo argumento a
alma eacute uma Forma ou eacute considerada como tal
(i) Hackfort defende que a alma jaacute eacute considerada como uma Forma
imanente juntamente com todos os exemplos apresentados em 105c o
fogo a febre a unidade e conclui que o uso do verbo κατέχω em 105d
com base em 104d revela sem sombra de duacutevida que o que estaacute em jogo
no uacuteltimo argumento eacute a alma como Forma imanente que ocupa o
corpo160
(ii) Keyt tambeacutem considera que o argumento final inicia com uma
declaraccedilatildeo que eacute paralela a 104d5-7 e chega a uma conclusatildeo um pouco
diferente embora natildeo possamos dizer que no uacuteltimo argumento Platatildeo
admite que a alma eacute uma Forma eacute plausiacutevel dizer que ele a trata como se
fosse uma Forma imanente e a primeira premissa simplesmente admite
159 Cf Archer-Hind 1894 p 116
160 Hackfort 1998 p162
221
que qualquer coisa que tem a alma tem vida ou seja quando uma alma
estaacute presente em um corpo esse corpo estaacute vivo 161
Mas essa posiccedilatildeo estaacute longe de ser defensaacutevel Como diz Dixsaut Platatildeo natildeo diz
que existe uma Forma e evita cuidadosamente dizer isso 162 E se a alma fosse uma
Forma no Feacutedon seria suficiente simplesmente assumir que ela eacute eterna imortal e
incorruptiacutevel como todas as outras
Aleacutem de todos esses argumentos eacute necessaacuterio observar que apesar da insinuaccedilatildeo
textual de que as passagens 104d e 105d apresentam um paralelo na verdade os uacuteltimos
exemplos que Platatildeo apresenta e que introduzem a alma no cenaacuterio mostram que
Platatildeo jaacute natildeo mais estaacute seguindo exatamente a ideia apresentada em 104d A ideia de
uma Forma do trecircs natildeo exerce influecircncia sobre os exemplos em 105b8-c6 fogo febre
unidade
Como jaacute vimos anteriormente a ideia de Formas se movendo para objetos
particulares e neles produzindo efeito eacute comum mas no caso de fogo febre unidade
alma natildeo temos uma clara indicaccedilatildeo de que satildeo Formas O contexto sugere que
Soacutecrates estaacute aqui lidando com uma Forma do fogo por exemplo assim como 104d
temos a Forma do trecircs Este eacute um problema constante nesta seccedilatildeo nem sempre Platatildeo
tem o interesse de explicitar o status metafiacutesico de diferentes tipos de coisa Sedley diz
que uma causa no Feacutedon pode ser uma coisa fiacutesica como o fogo um processo
161 Keyt 1963 p169
162 Dixsaut 1991 p 397
222
matemaacutetico como adiccedilatildeo o bem alma a inteligecircncia ou uma Forma como grandeza ou
pequenez163 Mas vale lembrar que nem sempre o texto eacute completamente vago e
hermeacutetico A ausecircncia de especificaccedilotildees 105b8-c6 jaacute pode ser um primeiro indiacutecio de
que Platatildeo natildeo trata de uma Forma Ademais natildeo eacute difiacutecil ver como esses objetos que
desempenham um papel crucial na prova final (fogo febre unidade) tem um tratamento
diferente de 1054d onde a Forma do trecircs ocupa algo e o compele a ser trecircs e iacutempar Em
105b8-c6 temos uma ideia diferente
(i) o Fogo que vem para o corpo natildeo faz com que o corpo seja corpo
(ii) a Febre que vem para o corpo natildeo faz com que o corpo seja corpo
(iii) a Unidade que vem para o nuacutemero natildeo faz com que o nuacutemero seja
nuacutemero
(iv) a Alma que vem para o corpo natildeo faz com que o corpo seja corpo
Platatildeo estaacute realmente preparando o leitor para o uacuteltimo argumento de modo que
dois dos trecircs exemplos apresentam o corpo (fogo-corpo febre-corpo) para facilitar a
transiccedilatildeo para o exemplo alma-corpo Tambeacutem eacute importante observar que 104d eacute
apresentado como resposta para a busca por alguma outra coisa que natildeo eacute um oposto
mas natildeo admite o oposto rival do oposto que carrega consigo O uacutenico exemplo
numeacuterico em 105b-c rompe com essa ideia de 104d porque o dobro tambeacutem possui um
oposto Talvez a inclusatildeo deste elemento que possui um oposto seja uma abertura para a
possibilidade de no proacuteximo argumento considerarmos a proacutepria alma e corpo como
163 Sedley 1998 p 115
223
opostos O ponto que eacute necessaacuterio observar eacute que os uacuteltimos exemplos natildeo seguem
completamente 104d e servem de modelo para o caso da alma
Portanto o contexto realmente natildeo sugere que esses uacuteltimos exemplos sejam
tomados como Formas Se quisermos comparar temos na verdade o seguinte
(i) Em 104d1-7 Forma do Trecircs ndash trecircs (objeto que a Forma ocupa e compele
a ser o que eacute) ndash Forma oposta que a Forma do Trecircs carrega consigo
(iacutempar) ndash Forma oposta rival (par)
(ii) Em 105b8-c6 Fogo ndash corpo (objeto que o fogo ocupa) ndash calor (qualidade
essencial que o fogo possui)
(iii) Em 105d3-5 Alma ndash corpo (objeto que a alma ocupa) ndash vida (qualidade
essencial que a alma possui) Forma da Vida (Forma na qual a alma
participa) ndash Forma oposta rival (morte)
Aleacutem disso temos no Feacutedon Formas que trazem Formas opostas para aquilo que
ocupam (104d) mas nunca Formas que participam em Formas Isto mostra que nos
exemplos em 105b-c fogo por exemplo natildeo eacute uma Forma Fogo tem em si a
caracteriacutestica de uma Forma ndash o calor ndash porque participa numa Forma assim como o
nuacutemero trecircs eacute iacutempar porque participa na Forma do iacutempar Neste caso se fogo fosse uma
Forma estariacuteamos admitindo que Forma participa numa Forma e isto natildeo eacute o caso
O mesmo se aplica agrave alma a qual possui a qualidade essencial ndash vida ndash porque
participa na Forma da vida Eacute descabido pensar que a alma eacute uma Forma que participa
em outra Forma A conclusatildeo de Hackfort e outros comentadores de que a alma eacute uma
224
Forma com base no paralelo entre 104d e 105d natildeo procede Eacute improvaacutevel que Platatildeo
queira provar que a alma eacute imortal se ao mesmo tempo a considera uma Forma uma vez
que no Feacutedon a imortalidade das Formas eacute simplesmente assumida Como diz Loriaux
estamos convencidos de que se o Feacutedon natildeo diz em nenhum lugar que a alma eacute uma
Forma eacute porque nunca pretendeu fazecirc-lo164
Em suma o argumento final natildeo eacute de modo algum apresentado com base na
ideia de uma Forma da alma nem mesmo a alma individual eacute uma Forma transcendente
ou uma Forma imanente Nenhuma dessas leituras possui apoio textual seguro e
definitivo
Portanto seria a alma um tipo de ser com um status ontoloacutegico intermediaacuterio
Seria a alma uma entidade que natildeo eacute uma Forma nem um objeto particular mas que
estaacute entre os dois A resposta deve considerar especialmente o argumento das
afinidades
No argumento das afinidades Platatildeo caracteriza dois grupos de seres Formas
fazem parte do grupo de coisas invisiacuteveis imortais invariaacuteveis eternas e objetos
particulares Mas imediatamente apoacutes a divisatildeo apresenta a alma como ser que possui
extrema semelhanccedila e afinidade com as Formas e que ao mesmo tempo possui alguma
semelhanccedila com objetos particulares tambeacutem a alma pode sofrer mudanccedila por
exemplo Portanto temos pelo menos uma sugestatildeo de que a alma natildeo pertenceria a
nenhum dos dois grupos e talvez Bostock esteja certo ao dizer que natildeo haacute razatildeo para
acreditar que na ontologia platocircnica soacute existe lugar para apenas duas classes de coisas
Formas e particulares165
164 Loriaux 1975 p132
165 Bostock 1989 118
225
Se a alma fosse uma Forma natildeo seria necessaacuterio provar que ela eacute imortal mas
se Platatildeo a considerasse como particular teriacuteamos um conflito no Feacutedon enquanto
Platatildeo tenta provar que a alma eacute imortal ao mesmo tempo se esforccedila para caracterizar
objetos particulares como membros de uma classe de coisas passiacuteveis agrave dissoluccedilatildeo e
destruiccedilatildeo Portanto eacute plausiacutevel que a alma esteja numa posiccedilatildeo ldquointermediaacuteriardquo
enquanto se relaciona harmonicamente com as Formas quando opera sem a mediaccedilatildeo
corporal e compartilha algumas de suas caracteriacutesticas mas natildeo todas Por outro lado
assim como particulares a alma pode sofrer variaccedilatildeo mudanccedila
O argumento das afinidades provoca um impacto no proacuteprio Cebes o qual
entende que a alma natildeo eacute uma Forma mas tambeacutem reconhece que ela eacute superior em
relaccedilatildeo ao corpo (91e-92a95c) eacute robusta divina longeva goza da capacidade de
existecircncia sem o corpo (preexistecircncia) e de conhecer Formas o que seria impossiacutevel
para membros comuns da classe de coisas visiacuteveis
No argumento final propriamente dito a vida e a morte satildeo opostos Tudo que
possui a alma eacute vivo Eacute portanto a alma que traz vida ao corpo A proacutepria alma carrega
consigo uma Forma da vida Ela natildeo eacute um oposto mas natildeo admite o oposto rival do
oposto que leva consigo ou seja natildeo admite a morte
O argumento comeccedila em 105d com um paralelo com 104c1-3 Formas que
trazem consigo Formas opostas e natildeo admitem as Fomas rivais Assim como as Formas
as almas ocupam um objeto Soacute temos esse paralelo entre almas e Formas no Feacutedon
Neste caso poderiacuteamos ateacute pensar que Platatildeo estaria apresentando um terceiro tipo de
coisa que natildeo eacute oposto mas carrega um oposto e natildeo admite um oposto rival ndash a alma
um intermediaacuterio Esta seria a maneira mais harmocircnica de entender o porquecirc do paralelo
226
entre almas que ocupam um corpo e o compele a ser vivo e Formas que ocupam um
nuacutemero e o compele a ser iacutempar Sendo um intermediaacuterio a semelhanccedila eacute explicada
Platatildeo tem que lidar com o problema apresentado antes a possibilidade de a
alma sofrer um ataque da Forma rival restando uma das duas opccedilotildees bater em retirada
ou perecer (Cf 104b6-c3) Caso o oposto rival arremeta contra o nuacutemero trecircs ele bateraacute
em retirada ou pereceraacute (ἀλλ᾽ ἐπιούσης αὐτῆς ἤτοι ἀπολλύμενα ἢ ὑπεκχωροῦντα)
(104b10-c1) E se isto puder acontecer com a alma Platatildeo estaria assumindo que a alma
pode perecer Teriacuteamos o seguinte com base em 104b-c
Almas satildeo objetos particulares que carregam a Forma da vida e assim
jamais admitiratildeo a morte Isto significa que elas jamais admitiratildeo
acomodaratildeo coexistiratildeo com a Forma da morte Quando a Forma rival
arremeter contra a alma ou ela bateraacute em retirada ou tombaraacute morta
Mas o argumento claramente elimina esta possibilidade Platatildeo tenta mostrar que
a alma possui uma relaccedilatildeo essencial com uma Forma cuja natureza natildeo pode aceitar de
modo algum lsquomortersquo a Forma da vida Sendo assim a alma eacute essencialmente viva a
Forma oposta natildeo pode trazer morte para aquilo que carrega consigo a Forma da vida O
que acontece quando a alma sofre o ataque da Forma oposta eacute o seguinte ldquoSendo
assim quando a morte arremete contra a pessoa a sua parte mortal ao que parece
tomba morta e a sua parte imortal bate em retirada intacta e sem destruiccedilatildeo ela parte
retirando-se da presenccedila da morterdquo (106e4-6)
O segundo modelo de coisas que natildeo satildeo opostos mas natildeo admitem opostos (o
caso das Formas) parece providenciar um exemplo de algo que natildeo pode perecer com o
227
ataque da Forma rival a proacutepria Forma que ocupa algo As Formas satildeo imortais e
indestrutiacuteveis assim como as almas segundo a conclusatildeo do argumento final Quando
as Formas que ocupam algo sofrem o ataque de uma Forma rival elas saem ilesas e
intactas Portanto o viacutenculo essencial das almas com aquilo que a torna essencialmente
viva e imortal faz com que ela seja como as Formas que ocupam um objeto e natildeo
podem perecer pelo ataque da Forma rival daquela que carrega consigo Se a alma for
uma entidade diferenciada um intermediaacuterio eacute mais faacutecil entender essa aproximaccedilatildeo
entre alma e Forma Se a considerarmos um intermediaacuterio teriacuteamos o seguinte com
base no modelo apresentado no contexto anterior em 104d
Almas satildeo intermediaacuterios que carregam a Forma da vida e assim jamais
admitiratildeo a morte (Cf105d10-e9) Isto significa que elas jamais
admitiratildeo acomodaratildeo coexistiratildeo com a Forma da morte e que elas
natildeo pereceratildeo por ocasiatildeo da arremetida da Forma rival assim como eacute
impossiacutevel que uma Forma rival golpeie e aniquile uma Forma que
ocupa um corpo e carrega uma Forma oposta
Assim com as Formas satildeo ldquoblindadasrdquo contra os ataques das Formas rivais as
almas satildeo ldquoblindadasrdquo ou seja imunes agrave morte por causa do seu viacutenculo com a Forma
da vida A fase final da prova lida com o problema da aproximaccedilatildeo dos opostos nos
exemplos apresentados na etapa anterior sobrevindo uma Forma oposta rival os
particulares que possuem uma Forma oposta podem perecer (ἀπόλλυμι)
O encontro com a Forma rival termina imediatamente com uma das duas
possibilidades fuga ou perecimento (104b6-c3) Platatildeo percebe este problema e
228
soluccedilatildeo para ele eacute que a alma por seu viacutenculo com a Forma da vida eacute essencialmente
viva e para Soacutecrates isto significa que ela eacute imortal Soacutecrates e Cebes tambeacutem
concluem que tudo que eacute imortal eacute indestrutiacutevel porque se o imortal natildeo fosse
indestrutiacutevel nada mais seria (Cf 106e) Portanto neste argumento Platatildeo associa as
ideias de vida imortalidade e indestrutibilidade (106d2-9)
(i) Tudo o que tem a alma eacute essencialmente vivo
(ii) Tudo o que eacute essencialmente vivo eacute ἀθάνατος
(iii) Tudo o que eacute ἀθάνατος eacute indestrutiacutevel
(iv) Portanto tudo que tem uma alma eacute indestrutiacutevel
(v) Portanto a alma eacute indestrutiacutevel (106e5-107a1)166
Eacute interessante observar que no contexto do argumento ciacuteclico alma viva eacute alma
reencarnada e alma morta eacute alma desencarnada Agora a proacutepria alma e natildeo o corpo
animado (alma alojada no corpo) eacute imortal e indestrutiacutevel lsquoIndestrutiacutevelrsquo e lsquoimortalrsquo natildeo
satildeo mais a pessoa que tem a alma mas a proacutepria alma
O argumento final eacute o uacutenico argumento no Feacutedon cuja conclusatildeo decisivamente
declara que a alma eacute imortal e indestrutiacutevel Eacute sem duacutevida o argumento que mais se
aproxima de uma prova satisfatoacuteria da imortalidade da alma
Contudo a uacuteltima prova da imortalidade da alma apresenta falhas e dificilmente
se estabelece como prova da imortalidade da alma
166 Keyt 1963 p171
229
(i) Platatildeo parece se equivocar quanto ao que constitui o oposto da morte ele
considera que lsquovidarsquo eacute oposto de lsquomortersquo
(ii) O argumento eacute circular reivindica que a alma eacute imortal porque natildeo
admite morte
(iii) A uacutenica razatildeo clara pela qual a alma eacute imortal eacute que ela possui um
viacutenculo com a Forma da vida a qual eacute imortal e indestrutiacutevel (Cf106b)
Essa declaraccedilatildeo de que a Forma da vida eacute imortal eacute um estranho
argumento para a imortalidade da alma porque todas as Formas satildeo
imortais e indestrutiacuteveis
(iv) No argumento aquilo que eacute essencialmente vivo eacute necessariamente
imortal mas este ponto eacute questionaacutevel Portanto a transiccedilatildeo entre algo
essencialmente vivo para algo imortal eacute questionaacutevel Tambeacutem eacute
importante notar que Platatildeo considera apenas a Forma da vida e na
transiccedilatildeo da vida para imortalidade ele natildeo considera a Forma da
imortalidade Mas eacute possiacutevel que Platatildeo considera que a Forma da vida
engloba imortalidade e indestrutibilidade
(v) Soacutecrates simplesmente assume que o que eacute essencialmente vivo eacute
imortal e que o que eacute imortal eacute indestrutiacutevel A conclusatildeo de que a alma
eacute imortal parece uma mera inferecircncia a partir do viacutenculo essencial da
alma com a vida e a necessaacuteria rejeiccedilatildeo da morte
(vi) Keyt aponta uma falaacutecia de ldquoequivocaccedilatildeordquo no uso dos termos ἀθάνατος
θάνατοςθνητός No iniacutecio do argumento ἀθάνατος eacute oposto de θάνατος
mas ao final eacute oposto de θνητός (Cf 105e2-3 106e5-6)167
167 Keyt 1963 p170
230
(vii) A teoria das Formas ainda eacute incipiente Vaacuterios pontos da passagem
merecem uma explicaccedilatildeo mais detalhada no que concerne agrave teoria das
Formas
(viii) A identidade da alma como um portador de uma Forma eacute essencial para a
compreensatildeo do argumento mas Platatildeo natildeo deixa claro o que eacute a alma
A nossa anaacutelise a considera como uma entidade intermediaacuteria com base
nas evidecircncias apresentadas ao longo do diaacutelogo mas em momento
algum Platatildeo deixa isto claro
(ix) A relaccedilatildeo entre a etapa anterior e o argumento propriamente dito estaacute
longe de ser clara Este problema deixa o argumento aberto a
interpretaccedilotildees diversas
72 A reaccedilatildeo ao uacuteltimo argumento
O argumento final do Feacutedon eacute o uacutenico no diaacutelogo a persuadir Cebes de que a
alma eacute imortal Ele eacute construiacutedo em resposta agraves objeccedilotildees de Cebes e ao final da
exposiccedilatildeo o ceacutetico mais obstinado no mundo (77a) como salienta Hackforth natildeo
levanta qualquer objeccedilatildeo (107a1-3)168 Agora natildeo haacute mais receio de que a alma por ser
mortal seja destruiacuteda num dos ciclos de reencarnaccedilotildees e a corajosa atitude de Soacutecrates
diante da iminente execuccedilatildeo eacute sensata visto que estaacute amparada pelo argumento final
Mas a reaccedilatildeo de Siacutemias eacute diferente ele diz que natildeo tem nada a objetar mas por
ser o assunto tatildeo denso e a natureza humana fadada ao fracasso ele diz ldquoeu estou
compelido a ter uma descrenccedila em meu iacutentimo a respeito do que foi dito (ἀναγκάζομαι
168 Hackfort 1998 p 165
231
ἀπιστίαν ἔτι ἔχειν παρ᾽ ἐμαυτῷ περὶ τῶν εἰρημένων) (1007a8-b3) Ainda assim Siacutemias
eacute incapaz de apontar falhas especiacuteficas no argumento chamando atenccedilatildeo para um
problema mais geral da existecircncia humana e da sua proacutepria experiecircncia e descrenccedila em
relaccedilatildeo agrave natureza e estado futuro da alma
Soacutecrates parece bastante confidente a respeito do argumento e diz a Siacutemias que
concorda que ateacute mesmo as primeiras hipoacuteteses sejam revisitadas mas logo afirma que
se forem analisadas pelos amigos de maneira suficiente eles seguiratildeo o argumento e
natildeo haveraacute mais necessidade de prosseguir a pesquisa (107b4-9) Siacutemias simplesmente
concorda com a afirmaccedilatildeo do amigo ldquovocecirc fala a verdaderdquo (107b10)
Cebes o mais capaz dos interlocutores estaacute completamente convencido A
resposta de Siacutemias pode sugerir sua insatisfaccedilatildeo depois de ouvir o argumento contudo
duacutevida de Siacutemias eacute bastante geral e natildeo diz respeito ao argumento em si169
169 Conforme Sedley (2009 p146) Platatildeo criou esse argumento para explicar por que Soacutecrates
partiu confiante e alegre para a morte e sendo assim seria inconcebiacutevel que Platatildeo pretenda
transmitir a mensagem de que o ato final de Soacutecrates como um maacutertir filosoacutefico e sua aceitaccedilatildeo
confiante da morte baseava-se em um argumento duacutebio
232
8 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
A nossa anaacutelise das provas da imortalidade da alma no Feacutedon revela que as duas
primeiras provas estatildeo comprometidas com uma concepccedilatildeo de imortalidade vinculada agrave
doutrina oacuterfica e pitagoacuterica da transmigraccedilatildeo da alma O argumento ciacuteclico conclui
apenas que a alma continua a existir depois da morte enquanto o argumento da
reminiscecircncia que a alma existe antes do nascimento O argumento das afinidades eacute o
primeiro argumento que ataca diretamente o problema apresentado por Cebes ndash a
possibilidade de a alma se desintegrar na hora em que se separa do corpo O argumento
tenta provar que a alma eacute por natureza imune agrave morte algo completamente
indissoluacutevel ou algo proacuteximo disso Mas o uacuteltimo argumento eacute sem duacutevida a grande
prova da imortalidade da alma no Feacutedon Mas todos os argumentos apresentam falhas e
nenhum se estabelece como prova inequiacutevoca da imortalidade da alma nem mesmo o
argumento final apesar de Soacutecrates e os amigos natildeo apontarem qualquer falha no
argumento Os amigos de Soacutecrates satildeo finalmente libertos dos temores de que a alma
individual seja desintegrada e o filoacutesofo pode partir seguro para o aleacutem onde desfrutaraacute
dos benefiacutecios de ter dedicado a vida ao exerciacutecio de morrer e estar morto
233
9 TRADUCcedilAtildeO PARCIAL DO FEacuteDON DE PLATAtildeO
[57a] EQUEacuteCRATES Feacutedon vocecirc mesmo estava presente no dia em que Soacutecrates
bebeu o veneno na prisatildeo ou ficou sabendo por outra pessoa
FEacuteDON Eu mesmo estava presente Equeacutecrates
EQUEacuteCRATES Entatildeo o que ele falou antes de morrer Como foi a sua morte Eu
gostaria de ouvir sobre isso pois nenhum cidadatildeo de Fliunte visita Atenas com
frequecircncia nessa eacutepoca [57b] e haacute tempo natildeo vem de laacute sequer um estrangeiro capaz de
informar com precisatildeo o que aconteceu Contam apenas que Soacutecrates morreu ao tomar o
veneno e nada mais
[58a] FEacuteDON Tampouco souberam como foi o julgamento
EQUEacuteCRATES Sim sobre isso uma pessoa nos informou e ficamos surpresos por que
se sabe que ele morreu bem depois da realizaccedilatildeo do julgamento Afinal por que isso
aconteceu Feacutedon
FEacuteDON Por coincidecircncia Equeacutecrates Aconteceu que no dia anterior ao seu
julgamento a popa do navio que os atenienses costumam enviar para Delos tinha sido
coberta
EQUEacuteCRATES E que navio eacute esse
234
FEacuteDON Esse eacute o navio como dizem os atenienses em que certa vez Teseu foi a [58b]
Creta levando os ldquodois grupos de seterdquo os quais ele salvou bem como salvou a si
mesmo Conta-se que nessa eacutepoca prometeram a Apolo que se eles fossem salvos lhe
retribuiriam com o envio de uma missatildeo anual para Delos E eacute justamente essa missatildeo
anual que desde aquela eacutepoca ateacute agora eles sempre enviam ao deus No tempo
decorrido entre o iniacutecio e o fim da missatildeo a lei ateniense determina que a cidade
permaneccedila purificada e que natildeo se mate ningueacutem em nome dela ateacute que o barco
enviado a Delos retorne ao seu ponto de partida E quando eventualmente ventos
contraacuterios deteacutem a tripulaccedilatildeo o que ocorre [58c] agraves vezes a viagem demora bastante A
missatildeo tem iniacutecio depois que o sacerdote de Apolo cobre a popa do navio e como eu
disse por coincidecircncia isso aconteceu bem na veacutespera do julgamento Eacute por essa razatildeo
que Soacutecrates passou muito tempo na prisatildeo entre o dia do julgamento e a ocasiatildeo de sua
morte
EQUEacuteCRATES E sobre a morte dele precisamente Feacutedon O que se disse e o que se
fez e quais de seus amigos estiveram com ele Ou os magistrados natildeo permitiram que
estivessem presentes e ele acabou morrendo longe dos amigos
[58d] FEacuteDON De forma alguma Natildeo apenas alguns na verdade muitos estiveram
presentes
EQUEacuteCRATES Entatildeo a menos que vocecirc esteja ocupado empenhe-se para nos
informar tudo com a maior clareza possiacutevel
235
FEacuteDON Natildeo estou ocupado e desejo descrever para vocecircs como ocorreu ateacute porque
lembrar de Soacutecrates sempre me daacute o maior prazer seja quando eu mesmo falo ou
quando escuto algueacutem falando sobre ele
EQUEacuteCRATES Mas certamente Feacutedon estes que iratildeo te escutar natildeo satildeo diferentes
Portanto tente relatar tudo com a maacutexima precisatildeo
[58e] FEacuteDON Eu realmente tive uma experiecircncia paradoxal estando ao seu lado
naquela ocasiatildeo pois natildeo fui tomado de compaixatildeo enquanto presenciava a morte de
um amigo O fato eacute que ele me parecia feliz Equeacutecrates tanto pela sua conduta quanto
pelas suas palavras tatildeo destemida e nobre a maneira como morreu Por essa razatildeo ateacute
me passou pela cabeccedila que embora estivesse indo para o Hades ele ia na [59a]
companhia de uma Moira Divina e que ao chegar ali estaria bem se eacute que algueacutem jaacute
experimentou isso Por isso mesmo natildeo fui tomado de forte compaixatildeo o que
pareceria natural ao se presenciar tal sofrimento tampouco senti prazer como aquele a
que estamos acostumados quando nos envolvemos com filosofia ndash de fato nossas
conversas foram dessa natureza Todavia eu experimentei um sentimento atiacutepico uma
estranha mescla de prazer e dor ao me dar conta de que ele estava prestes a morrer logo
mais E todos noacutes ali presentes tiacutenhamos semelhante disposiccedilatildeo de acircnimo ora rindo ora
chorando embora um dentre noacutes se destacasse
[59b] Apolodoro ndash vocecirc certamente conhece o indiviacuteduo e o seu jeito de ser
EQUEacuteCRATES Como natildeo
236
FEacuteDON Pois bem ele estava no limite dessa disposiccedilatildeo e eu mesmo fiquei abalado
assim como os demais
EQUEacuteCRATES Quem por acaso esteva ali presente Feacutedon
FEacuteDON Dentre os locais estavam Apolodoro como acabei de dizer Critoacutebulo e seu
pai Hermoacutegenes Epiacutegenes Eacutesquines e Antiacutestenes estavam tambeacutem Ctesipo do demo
Peacircnia Menecircxeno e alguns outros locais Platatildeo creio eu estava doente
EQUEacuteCRATES E havia alguns estrangeiros
[59c] FEacuteDON Sim Siacutemias de Tebas Cebes e Fedondes estavam laacute e de Meacutegara
Euclides e Teacutercio
EQUEacuteCRATES Quem mais Aristipo e Cleocircmbroto tambeacutem estavam presentes
FEacuteDON Com certeza natildeo Disseram que eles estavam em Egina
EQUEacuteCRATES Algueacutem mais estava presente
FEacuteDON Acho que eram basicamente esses todos os presentes
EQUEacuteCRATES Agora entatildeo poderia me falar sobre as conversas que tiveram
[59d] FEacuteDON Eu tentarei lhe descrever tudo desde o iniacutecio Nos dias que precederam a
sua morte eu e os demais amigos costumaacutevamos visitar Soacutecrates diariamente Como o
Tribunal onde ocorreu o julgamento fica perto da prisatildeo noacutes nos encontraacutevamos ali
bem cedo e todos os dias aguardaacutevamos que a prisatildeo fosse aberta Enquanto isso
ficaacutevamos conversando uns com os outros pois a prisatildeo natildeo abria cedo Mas assim que
abria entraacutevamos para ficar com Soacutecrates e
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[59e] quase sempre passaacutevamos o dia todo com ele E naquela ocasiatildeo nos reunimos
mais cedo pois no dia anterior quando saiacutemos da prisatildeo ao anoitecer tomamos
conhecimento de que o barco havia chegado de Delos Entatildeo combinamos de chegar no
dia seguinte o mais cedo possiacutevel no lugar de costume o que de fato aconteceu
Chegamos e o porteiro que costumava nos receber saiu ao nosso encontro para nos pedir
que aguardaacutessemos e natildeo entraacutessemos ateacute que ele mesmo nos autorizasse ldquoEacute que os
Onzerdquo disse ele ldquoestatildeo liberando Soacutecrates das correntes e notificando que ele haacute morrer
naquele mesmo diardquo Mas natildeo demorou muito ateacute que ele voltasse para nos autorizar a
[60a] entrada Em seguida entramos e nos deparamos com Soacutecrates jaacute solto das
corrrentes e Xantipa que vocecirc conhece segurando seu filho e sentada ao seu lado E
assim que Xantipa nos viu comeccedilou a gritar e a falar aquele tipo de coisa que as
mulheres costumam dizer ldquoSoacutecrates esta eacute a uacuteltima vez que seus amigos se dirigem a
vocecirc e vocecirc a elesrdquo Entatildeo Soacutecrates olhou para Criacuteton e lhe disse ldquoCriacuteton que algueacutem
a leve para casardquo
Parte do pessoal que acompanhava Criacuteton tirou a mulher dali enquanto ela
gritava e [60b] batia no peito Soacutecrates por sua vez sentando-se na cama dobrou a
perna e comeccedilou a esfregaacute-la com a matildeo e enquanto esfregava disse ldquoQuatildeo estranho
amigos parece ser aquilo que as pessoas chamam de prazer Quatildeo surpreendente eacute sua
relaccedilatildeo natural com o que parece ser o seu oposto a dor Ambos se recusam a
permanecer ao mesmo tempo num indiviacuteduo mas se algueacutem busca e captura um deles eacute
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quase sempre forccedilado a capturar tambeacutem o outro como se [60c] estivessem unidos por
uma soacute cabeccedila embora sendo duas coisas distintas E me parece querdquo disse ele ldquose
Esopo tivesse refletido sobre eles teria composto uma faacutebula em que um deus
desejando reconciliar a ambos que viviam em guerra mas natildeo sendo capaz resolveu
unir a cabeccedila deles em uma soacute Por esse motivo se um deles se fizer presente em
algueacutem o outro vem em seguida Eacute o que parece acontecer comigo quando
acorrentado sentia dor na perna retiradas as correntes o prazer jaacute veio logo em
seguidardquo
Cebes o interrompeu e lhe disse ldquoPor Zeus Soacutecrates fez bem demais em
recordar-me [60d] Muitos jaacute me perguntaram sobre os poemas que vocecirc fez
versificando as obras de Esopo e sobre o proecircmio a Apolo Anteontem o proacuteprio
Eveno me perguntou o que deu na sua cabeccedila para comeccedilar essa atividade soacute depois que
veio para a prisatildeo uma vez que nunca havia se ocupado com isso antes Se tiver
interesse que eu decirc uma resposta a Eveno quando ele voltar a me perguntar porque sei
que ele iraacute me perguntar novamente diga-me o que devo lhe dizerrdquo
[60e] ldquoSimples Cebesrdquo respondeu ldquodiga-lhe a verdade que natildeo compus
poemas querendo tornar-me seu rival ou de suas poesias pois sabia que natildeo seria faacutecil
mas para tentar entender o sentido de certos sonhos e cumprir meu dever religioso no
caso de ser essa a muacutesica que os sonhos me orientavam a compor Deixe-me explicar
tive o mesmo sonho ao longo de toda a minha vida e apesar de cada vez aparecer sob
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um aspecto diferente dizia sempre a mesma coisa ldquoSoacutecratesrdquo dizia ldquocomponha e
trabalha a muacutesicardquo Antes eu pensava que o sonho estava me exortando e me
incentivando a fazer exatamente aquilo que eu jaacute vinha fazendo assim como quem
incentiva os corredores da mesma maneira o sonho me incentiva a fazer exatamente
aquilo que eu jaacute vinha fazendo ou seja compor muacutesica uma vez que a filosofia era a
mais excelsa muacutesica e que era isso o que eu fazia No entanto [61a] depois que
ocorreu o julgamento e a festa do deus adiou a minha morte pareceu-me conveniente
que se o sonho estivesse recorrentemente me ordenando compor muacutesica no sentido
popular eu natildeo lhe desobedecesse mas comeccedilasse a compocirc-la Pois pareceu-me mais
seguro partir somente depois de ter cumprido [61b] meu dever religioso compondo
poemas em obediecircncia ao sonho Foi assim que em primeiro lugar eu compus um
poema dedicado ao deus da festa em curso Mas depois desse poema ao deus passei a
refletir que o poeta quando se propotildee a ser poeta deve compor mitos e natildeo
argumentos E como eu natildeo sou inventor de mitos peguei os que estavam agrave minha
disposiccedilatildeo e jaacute conhecia de antematildeo os mitos de Esopo e dei forma poeacutetica agravequeles
com os quais primeiro me deparei Portanto Cebes explica tudo isso a Eveno tambeacutem
lhe diga que [61c] passe bem e que se for sensato venha a ser meu seguidor o mais
raacutepido possiacutevel Parto hoje ao que parece pois assim ordenam os ateniensesrdquo
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Entatildeo Siacutemias disse ldquoque tipo de apelo eacute esse que faz a Eveno Soacutecrates Eu jaacute
me encontrei com ele diversas vezes e estou bem certo pelo que percebi que de modo
algum ele atenderaacute de bom grado ao seu apelordquo
ldquoComo natildeordquo disse ele ldquoEveno natildeo eacute filoacutesofordquo
ldquoParece-me que simrdquo disse Siacutemias
ldquoEntatildeo Eveno desejeraacute atender ao meu apelo e qualquer um que desempenha
essa atividade com dignidade Contudo natildeo praticaraacute talvez violecircncia contra si
mesmo pois dizem [61d] que isso eacute iliacutecitordquo E enquanto dizia essas coisas colocou os
peacutes no chatildeo e sentado nesta posiccedilatildeo continuou o resto da conversa
Cebes entatildeo perguntou-lhe ldquoComo vocecirc pode dizer Soacutecrates que eacute iliacutecito
praticar violecircncia contra si mesmo e que o filoacutesofo desejaria seguir algueacutem que estaacute
morrendordquo
ldquoO quecirc Cebes Vocecirc e Siacutemias natildeo ouviram falar sobre esse assunto em seu
conviacutevio com Filolaurdquo
ldquoNada com clareza Soacutecratesrdquo
ldquoNa verdade eu tambeacutem falo desse assunto com base em coisas que ouvi falar
[61e] poreacutem nada me impede de dizer o que chegou aos meus ouvidos A propoacutesito
talvez o mais conveniente a quem estaacute prestes a viajar para o aleacutem seja mesmo examinar
a fundo e contar os mitos sobre essa viagem de que tipo acreditamos que ela seja Pois
que outra coisa fariacuteamos no tempo que nos resta ateacute o pocircr do solrdquo
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ldquoEntatildeo por que razatildeo afirmam que eacute iliacutecito matar a si mesmo Soacutecrates Pois eu
mesmo ainda respondendo agravequela sua pergunta jaacute ouvi de Filolau quando ele convivia
conosco e tambeacutem de alguns outros que natildeo se deve fazer isso Mas nunca ouvi
algueacutem falar algo sobre esse assunto com clarezardquo
[62a] ldquoTenha acircnimordquo disse ldquopois de repente vocecirc poderaacute ouvir Contudo talvez
vocecirc se surpreenda por essa ser a uacutenica questatildeo simples entre as outras a qual nunca
ocorre a algueacutem como as demais que haacute ocasiatildeo em que para algumas pessoas melhor
seria estar morto do que viver vocecirc se surpreenderia se para essas pessoas ndash a quem
seria melhor estar morto ndash fosse iacutempio fazer um bem a si mesmas mas tivessem de
esperar por outro benfeitorrdquo
Cebes riu discretamente e lhe disse ldquoQue Zeus seja a minha testemunhardquo
falando em seu proacuteprio dialeto
[62b] ldquoA questatildeo ficaria sem sentidordquo disse Soacutecrates ldquopelo menos posta dessa
forma todavia eacute provaacutevel que tenha algum sentido A propoacutesito o que se diz nos
misteacuterios sobre esse assunto ndash que noacutes seres humanos estamos num tipo de prisatildeo e
que ningueacutem por si mesmo deve libertar-se nem fugir dela ndash eacute algo que me parece
extraordinaacuterio e difiacutecil de desvendar Poreacutem Cebes acho que uma coisa estaacute bem
colocada que satildeo os deuses que cuidam de noacutes e que noacutes seres humanos somos um
propriedade dos deuses Vocecirc natildeo pensa assimrdquo
ldquoPenso simrdquo disse Cebes
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[62c] ldquoPois entatildeordquo disse ele ldquose acaso um de seus bens viesse a matar a si
mesmo sem que vocecirc tivesse dado sinal de que o queria morto acaso natildeo se exasperaria
com ele e se pudesse lhe aplicaria uma puniccedilatildeo
ldquoCertamenterdquo disse
ldquoSendo assim talvez tenha algum sentido a proibiccedilatildeo de tirarmos a proacutepria vida
sem que antes um deus nos imponha uma necessidade tal como a que agora estaacute diante
de noacutesrdquo
[62d] ldquoPelo menos isso parece plausiacutevelrdquo disse Cebes ldquoMas o que vocecirc disse haacute
pouco ndash que os filoacutesofos desejariam prontamente morrer ndash parece absurdo se o que
dissemos for razoaacutevel que o deus eacute quem cuida de noacutes e que noacutes somos seus bens Pois
natildeo faz sentido dizer que as pessoas mais sensatas natildeo deveriam ficar irritadas ao
perderem um cuidado administrado pelos mais nobres seres que existem ndash os deuses
Presumo que pelo menos uma pessoa sensata natildeo [62e] pensaria que poderia cuidar
melhor de si mesmo depois de libertar-se Soacute uma pessoa insensata talvez pensasse que
deveria fugir de seu dono pois natildeo raciocinaria que em vez de fugir de um senhor
beneacutevolo deveria antes permanecer atrelada a ele o maacuteximo possiacutevel Por esse motivo
sua fuga seria irrefletida Uma pessoa sensata por sua vez desejaria permanecer para
sempre ao lado de quem eacute melhor do que ela Portanto Soacutecrates o mais plausiacutevel eacute o
contraacuterio do que dissemos conveacutem que as pessoas sensatas se irritem por morrer e que
as insensatas se alegremrdquo
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[63a] Ao ouvir isso Soacutecrates me parecia se contentar com a persistecircncia de
Cebes E olhando para noacutes disse ldquoCebes estaacute mesmo sempre perscrutando os
argumentos e natildeo se deixa persuadir pela primeira coisa que algueacutem venha a lhe dizerrdquo
E Siacutemias disse ldquoCom efeito Soacutecrates parece-me que agora algo faz sentido no
que Cebes estaacute dizendo com que motivaccedilatildeo homens verdadeiramente saacutebios fugiriam
de donos que satildeo melhores do que eles e os deixariam facilmente Parece-me que
Cebes em sua fala referia-se diretamente a vocecirc que aceita sem dificuldade
abandonar tanto a noacutes quanto aos beneacutevolos governantes os deuses como vocecirc mesmo
reconhecerdquo
[63b] ldquoEacute justo o que vocecircs falamrdquo disse ldquoE acho que vocecircs estatildeo dizendo que
eu devo me defender de seus questionamentos como se estiveacutessemos num tribunalrdquo
ldquoCertamenterdquo disse Siacutemias
ldquoEntatildeo vamos em frenterdquo disse ele ldquoQue eu tente me defender perante vocecircs
de modo mais convincente do que perante os meus juiacutezes Siacutemias e Cebesrdquo disse ldquose
eu natildeo pensasse que em primeiro lugar eu me juntaria a outros deuses saacutebios e bons e
depois a pessoas mortas [63c] que satildeo melhores do que as daqui seria injusto se eu natildeo
me irritasse por morrer Todavia estejam certos de que eu espero me juntar a homens
bons embora natildeo insista muito nisso no entanto que eu espero me juntar a deuses
senhores absolutamente bons estejam certos de que se haacute algo que eu asseguraria seria
isso Eacute por esse motivo que natildeo me irrito como aconteceria se natildeo fosse assim mas
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tenho uma boa expectativa de que haja algo reservado para os mortos Pelo menos o que
se diz haacute muito tempo eacute que haacute algo muito melhor reservado para os bons do que para
os mausrdquo
[63d] ldquoMas entatildeo Soacutecratesrdquo perguntou Siacutemias ldquovocecirc vai partir com esse
pensamento em sua cabeccedila ou vai compartilhaacute-lo conosco Pois me parece que ele eacute
mesmo um bem comum a todos noacutes e ao mesmo tempo serviraacute como sua defesa caso
venha a nos persuadir do que estaacute dizendordquo
ldquoTentarei fazecirc-lordquo disse ldquomas antes vejamos o que eacute isso que o nosso amigo
Criacuteton estaacute aparentemente querendo dizer jaacute haacute algum tempordquo
ldquoQue mais poderia ser Soacutecratesrdquo questionou Criacuteton ldquoHaacute algum tempo o
homem que vai lhe ministrar o veneno tem me dito que eu devo te orientar a falar o
miacutenimo possiacutevel Segundo ele a temperatura corporal sobe quando as pessoas estatildeo
conversando e isso deve ser [63e] evitado na aplicaccedilatildeo do veneno Haacute casos em que a
pessoa natildeo segue essa orientaccedilatildeo e eacute obrigada a tomar o veneno duas ou trecircs vezesrdquo
ldquoMande-o passearrdquo disse Soacutecrates ldquoEle que prepare uma duas ou ateacute trecircs doses
se for necessaacuterio eacute o trabalho delerdquo
ldquoJaacute adivinhava a sua respostardquo disse Criacuteton ldquomas eacute que haacute tempo ele me
perturba com issordquo
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ldquoEsqueccedila-ordquo disse ldquoMas para vocecircs meus juiacutezes quero agora oferecer a
explicaccedilatildeo de como me parece plausiacutevel que um homem que dedicou de fato sua vida agrave
filosofia esteja confiante em face da morte iminente e tenha uma boa
[64a] expectativa de que receberaacute as maiores benesses no aleacutem quando morrer Como
isso pode ser Siacutemias e Cebes eu tentarei lhes explicarrdquo
ldquoTodos que se entregam corretamente agrave filosofia correm o risco de as demais
pessoas natildeo perceberem que eles se dedicam a morrer e estar morto e nada mais do que
isso Portanto caso isso seja verdade suponho que seria um absurdo almejar
exclusivamente isso durante uma vida inteira e afinal irritar-se por justamente ter
alcanccedilado aquilo que se desejou e se praticou por longo tempordquo
[64b] Siacutemias riu e disse ldquopor Zeus Soacutecrates agora vocecirc me fez rir embora hoje
eu natildeo esteja para brincadeira Pois acho que se a maioria das pessoas ouvisse isso daiacute
pensaria que se aplica bem aos filoacutesofos E nossos conterracircneos concordariam com eles
de que os filoacutesofos desejam a morte e eles perceberiam que isso mesmo que merecemrdquo
ldquoMas eles estariam dizendo a verdade Siacutemias com exceccedilatildeo de que natildeo deixam
de notar Pois eles natildeo notam qual eacute o sentido em que os verdadeiros filoacutesofos desejam
morrer e merecem morrer e o tipo de morte em questatildeo Conversemos sobre isso
apenas entre noacutesrdquo disse ldquoe [64c] mandemos essa maioria passear Consideramos que a
morte eacute alguma coisardquo
ldquoCom certezardquo disse Siacutemias em sua resposta
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ldquoAcaso natildeo seria outra coisa senatildeo a separaccedilatildeo da alma do corpo E estar morto
natildeo seria isto o corpo apartado da alma passar a estar sozinho ele por si mesmo
enquanto a alma apartada do corpo passar a estar sozinha ela por si mesma A morte
seria outra coisa senatildeo isso
ldquoNatildeo eacute isso mesmordquo disse
[64d] ldquoObserve agora meu amigo se vocecirc tem a mesma visatildeo que eu tenho
Pois acredito que eacute a partir disso que vamos conhecer melhor o que propomos examinar
Vocecirc acha que o filoacutesofo se preocupa com aquilo que chamam de prazeres tais como os
de comer e beber
ldquoMinimamente Soacutecratesrdquo respondeu Siacutemias
ldquoE com o prazer sexualrdquo
ldquoDe modo algumrdquo
ldquoE quanto agraves demais diligecircncias relativas ao corpo Vocecirc acha que algueacutem como
um [64e] filoacutesofo daria valor a essas coisas Por exemplo a posse de vestes e calccedilados
de luxo e outros objetos que embelezam o corpo vocecirc acha que valorizaria ou
desprezaria essas coisas a menos que fosse realmente necessaacuterio se envolver com elas
ldquoEu acho que as desprezariardquo respondeu ldquopelo menos o filoacutesofo de verdaderdquo
ldquoEntatildeo vocecirc natildeo acha que em sumardquo perguntou ldquoa preocupaccedilatildeo de algueacutem
assim natildeo recairia sobre o corpo mas se voltaria para na medida do possiacutevel libertar-se
dele e inclinar-se para a almardquo
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ldquoSim eu achordquo
ldquoEm primeiro lugar natildeo fica claro que em questotildees dessa natureza o[65a] filoacutesofo
busca desvincular o maacuteximo possiacutevel a sua alma da comunhatildeo com seu corpo
diferentemente das demais pessoas
ldquoEacute o que parecerdquo
ldquoDe fato a maioria das pessoas presume Siacutemias que o indiviacuteduo para quem
nada disso eacute apraziacutevel e que natildeo toma parte nessas coisas que mencionei natildeo merece
viver para essa maioria quem natildeo tem qualquer interesse nas coisas que se obteacutem por
meio do corpo estaacute agrave beira da morterdquo
ldquoEacute bem verdade o que vocecirc falardquo
ldquoE o que dizer sobre a aquisiccedilatildeo da proacutepria sabedoria O corpo seria ou [65b]
natildeo um obstaacuteculo caso algueacutem o tomasse como um parceiro na investigaccedilatildeo Estou
perguntando aproximadamente o seguinte visatildeo e audiccedilatildeo captam alguma verdade para
as pessoas ou os poetas tecircm razatildeo em estar sempre repetindo para noacutes aquela ladainha
de que nada ouvimos ou vemos com precisatildeo E se de fato esses sentidos do corpo natildeo
tecircm precisatildeo nem clareza dificilmente os demais teriam pois satildeo todos inferiores a
esses dois presumo eu Vocecirc tambeacutem natildeo achardquo
ldquoCom certezardquo disse
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ldquoEntatildeordquo disse ele ldquoquando a alma alcanccedila a verdade Pois sempre que busca
examinar algo em companhia do corpo fica claro que nessas circunstacircncias eacute enganada
por elerdquo
[65c] ldquoVocecirc estaacute falando a verdaderdquo
ldquoPortanto natildeo seria porventura no ato de raciocinar e natildeo de outro modo que as
coisas que satildeo se mostram com clareza para a almardquo
ldquoSimrdquo
ldquoA alma raciocina melhor suponho eu quando nenhuma dessas coisas seja
audiccedilatildeo visatildeo dor ou algum prazer vier a perturbaacute-la mas mandando o corpo passear
ficar o maacuteximo possiacutevel sozinha ndash ela por si mesma ndash e mantendo-se o quanto puder
livre de comunhatildeo e contato com o corpo busca alcanccedilar aquilo que eacute
ldquoEacute assim mesmordquo
ldquoNatildeo eacute tambeacutem nessa ocasiatildeo que a alma do filoacutesofo despreza o corpo e [65d]
foge dele em busca de ficar sozinha ndash ela por si mesmardquo
ldquoEacute o que parecerdquo
ldquoE sobre a seguinte questatildeo Siacutemias afirmamos que existe um justo em si
mesmo ou natildeordquo
ldquoPor Zeus claro que simrdquo
ldquoE tambeacutem um belo e um bomrdquo
ldquoComo natildeordquo