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    FRICA: OBJETO DA HISTRIA, SUJEITO NAS ARTES.

    Ricardo Alexandre Rodrigues1

    Se queres saber de tudo De tudo sabers Sou ndio de sangue latino Sou negro dos canaviais

    [Recncavo. Mrcio Valverde Chico porto]

    RESUMO: Sempre falamos sobre frica, destacando aquilo que nos impressiona

    ou nos comove, ao mesmo tempo em que preferimos esquecer o que foge dos

    padres de normalidade. O continente nos foi apresentado como objeto do

    discurso da histria, sem nunca figurar o papel de sujeito. Falamos de frica, mas

    no ouvimos suas vozes, o que ela tem a nos contar por meio de narrativas,

    cantos, esculturas, pinturas, religies...

    Est no horizonte desta comunicao contemplar a expressividade da cultura

    africana por meio da influncia que exerce sobre as manifestaes artstico-

    culturais da sociedade brasileira, onde a voz africana dos negros que aqui

    chegaram como escravos ecoa nos gestos cotidianos, nas artes, no imaginrio...

    Prope-se aqui atentar para o murmrio de vozes; o burburinho melodioso que

    nos contam histrias que a histria no quis ouvir.

    PALAVRAS-CHAVE: cultura afro-brasileira; esttica; semiologia.

    1 Doutorando em Potica e Mestre em Semiologia pela Faculdade de Letras da UFRJ.

  • 2

    VOZES DE FRICA E SUBJETIVIDADES AFRICANAS

    preciso olhar tudo de novo, de vagar. (Bosi, 1999, p.7)

    Desde a poca das longas viagens que proporcionaram encontros culturais,

    frica nunca foi esquecida. Sempre apareceu na histria como objeto de estudo,

    assim como tambm foi objeto da ganncia e da avareza humana. Sempre

    falamos sobre frica, destacando aquilo que nos impressiona ou nos comove, ao

    mesmo tempo em que preferimos esquecer o que foge dos nossos padres de

    normalidade. O continente nos foi apresentado como objeto do discurso da

    histria, sem nunca figurar o papel de sujeito. Falamos de frica, mas no

    ouvimos suas vozes, o que ela tem a nos contar por meio de narrativas, cantos,

    esculturas, pinturas, religies... frica fala, canta, dana, sussurra, rica em

    expresses que ecoam em cada canto do mundo. Somos ns quem no

    queremos perceber, cegos em nossas verdades e convices.

    Aos que embarcaram foradamente no navio e atravessaram o atlntico,

    ainda foi imposta uma condio: o esquecimento de seus sonhos, valores,

    crenas; o abandono da identidade, da vida anterior viagem. Logo que aqui

    chegaram, foram proibidos de abrir as malas e contemplar a bagagem, reviver

    suas referncias culturais, de modo que a nica origem da qual se pode falar

    agora no nem mesmo frica. a dispora, a fratura da identidade. Os negros

    trazidos na condio de escravo foram paridos pelo ventre de um navio negreiro.

    Durante muitos anos, o contedo dessas malas foram silenciados,

    aprisionados em seu interior. Mas por emendas descosturadas vazaram e se

    misturaram rapidamente com outras prticas e costumes trazidos para essa terra,

    formando um mosaico cultural, cujo esplendor est na grande variedade dos

  • 3

    fragmentos usados para compor imagens intrigantes. O contraste cultural est na

    definio de brasilidade e aparece como temtica de festas populares e nos

    modos de compor. O carter hbrido de nossa cultura possibilita a livre

    combinao de elementos e, assim, resulta num produto inusitado e singular.

    Sem dvida, no h acesso verdadeiro subjetividade sem abrir as malas

    de quem veio, ou seja, no possivel compreender o modo como um grupo vive e

    se relaciona com e no mundo se no soubermos da vida pregressa, das histrias

    e dos sonhos, das tragdias ou das agonias. O que trazem so traos de tradies

    africanas sustentadas na oralidade. Remetem s culturas grafas, anteriores

    colonizao, que tm a fala melodiosa, rica em combinaes sonoras e

    espontaneidade traduzida na fisionomia e nos gestos, como estratgia para

    lapidar a memria. Diante de tal lembrana no difcil tecer comparaes com a

    fala ritmada e gestualizada da lngua portuguesa falada no Brasil.

    Nessa linha de pensamento, podemos notar que o tema de nossa conversa

    no frica, mas o que ela pode nos ajudar a compreender sobre a formao da

    cultura brasileira que, durante muito tempo, se confundiu com narrativas que

    contemplam a vida e grandes feitos dos chefes de Estado, polticos e artistas

    influentes, ou ainda registro de construo e realizao de importantes obras. So

    acontecimentos, atitudes, exemplos de vida que faz nascer o sentimento de

    patriotismo e constri o que chamamos de imaginrio popular. No entanto, um

    olhar mais atento acusa a falta de outros personagens, to participativos e to

    importantes para formao de nossa cultura. Quem so? De onde vieram? O que

    fizeram? Perguntas cujas respostas no aparecem no texto da Histria

    convencional.

  • 4

    Por efeito dessas provocaes, somos velados a repensar a histria de

    nossa cultura. Quando rascunhos de uma resposta comeam aparecer,

    percebemos que tudo aquilo contado como oficial composto de acontecimentos

    selecionados, cacos de histrias, para montar uma verso dos acontecimentos

    que ser contada por todos, mas que beneficia os vencedores ou aqueles que

    esto no poder.

    Isso nos faz pensar que o mundo tal como o concebemos uma inveno

    humana que se d a partir dos modos como organizamos e marcamos nossos

    referenciais de tempo e espao. O que nos leva a pensar em outras possibilidades

    de arrumao, como a das artes, vislumbrando outras formas de se relacionar e

    estar no mundo.

    Como falar de uma frica ainda desconhecida entre ns, j que os registros

    existentes foram produzidos e motivados pelo espanto de quem chega ao

    continente e tinha como referncia outros valores culturais? Eis que a arte, por

    apresentar possibilidades de interagir com o mundo, oferece uma oportunidade de

    contemplar outros modos de pensar e de se organizar uma sociedade.

    Em vez de Falar sobre arte africana, pode ser mais enriquecedor no

    estudo de culturas afro-brasileiras falar pela arte africana. Essas duas

    expresses revelam posicionamentos distintos perante manifestaes artsticas

    africanas. Na expresso Falar sobre arte, fica clara a existncia de um sujeito

    que se refere a um objeto (arte africana). Entre um e outro se coloca um

    distanciamento. A arte africana aparece como assunto ou objeto que manipulado

    no discurso. Na segunda proposta, falar pela arte, ao contrrio da primeira, a arte

    africana surge como sujeito que conta histrias de um povo.

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    O trabalho esttico realizado sobre um objeto deixa impressas marcas que

    identificam as maneiras de interpretar o mundo e organizar as informaes

    sensoriais captadas. Faz parte do conjunto de caracterstica de uma sociedade

    tanto a maneira como dispe objetos e combina cores, quanto a reao de quem

    observa as composies propostas. Assim, perceber cada objeto ou gesto como

    integrante de uma composio cultural, onde desempenham funes especficas,

    ajuda evitar avaliaes premeditadas e preconceituosas.

    A arte africana apresenta estreita relao com os gestos cotidianos e utiliza

    materiais como cermica, palha, fibras, tecidos e cip para criar peas rsticas de

    forte impacto visual. Cada objeto ornado com formas bem definidas e o

    predomnio de cores primrias, variando conforme sua utilidade: comemorar os

    ancestrais, cultuar as foras naturais, invocar foras vitais, propiciar boas

    colheitas, at objetos em geral que acompanham os ritos, as danas e as

    cerimnias religiosas.

    Durante muito tempo, as artes africanas foram admiradas pelas sociedades

    europeizadas sob o signo do extico e do mstico. Descontextualizadas, faziam

    parte de um conjunto de peas decorativas. A produo e confeco de objetos

    usados no cotidiano das sociedades africanas, decorados, coloridos, entalhados...

    ganham ento, sob os olhos das sociedades capitalistas, o conceito de arte. O

    conjunto desses artefatos aparece catalogado em enciclopdias e livros tcnicos

    como arte africana. No entanto, parece haver um desacordo no emprego do

    termo arte para designar aquelas manifestaes criativas. O pensamento

    acadmico sobre arte assinala o seu valor esttico, atingido aps a perda da

    funcionalidade.

  • 6

    Nesse modo de pensar cabe uma pergunta: em frica tambm se considera

    arte o que recepcionado como tal no cenrio cultural europeu? Encaminha-se

    para uma resposta ao lembrar que chamamos de arte o trabalho esttico com

    cores e formas combinadas para (re)pensar o mundo em suas vrias formas de

    acontecer, mostrando que ele pode ser muito mais do nos foi apresentado. Nesse

    sentido, pertinente o emprego da palavra/conceito arte para designar as

    manifestaes culturais de frica.

    No entanto, o conjunto de obras de arte africanas perde o sentido quando

    dissociados da religio e do social, transfigurando-se em objetos de ornamentao

    cuja manuteno est no carter extico. O aparecimento das artes africanas no

    cenrio cultural europeu foi sobre tudo uma projeo dos valores ocidentais, como

    podemos conferir no termo primitivismo, usado por artistas que procuraram nas

    manifestaes africanas aquilo que estavam acostumados a ver, mas no

    encontraram.

    Os estudos sobre as culturas africanas foram desestimulados pelo

    pensamento cientfico do sculo XIX. Teve grande impacto sobre as soc