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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Faculdade Mineira de Direito FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE: evolução e novas perspectivas ANDRÉ COUTO E GAMA BELO HORIZONTE 2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Faculdade Mineira de Direito

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA DOS

DIREITOS DA PERSONALIDADE: evolução e

novas perspectivas

ANDRÉ COUTO E GAMA

BELO HORIZONTE

2008

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ANDRÉ COUTO E GAMA

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA DOS

DIREITOS DA PERSONALIDADE: evolução e

novas perspectivas

Dissertação apresentada à Pós-graduação Stricto Sensu / Mestrado, da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, na linha de pesquisa “Reconstrução do Direito Privado no contexto do Estado Democrático de Direito”.

Orientador: Prof. Dr. Leonardo Macedo Poli Co-orientador: Prof. Dr. César Augusto de Castro Fiuza

BELO HORIZONTE

2008

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André Couto e Gama

Fundamentação teórica dos direitos da personalidade: evolução e novas

perspectivas

Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade Mineira de Direito da

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,

Belo Horizonte, 2008.

Leonardo Macedo Poli (Orientador) – PUC Minas

César Augusto de Castro Fiuza (co-orientador) – PUC Minas

José Jairo Gomes – UFMG

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A minha esposa Anneliese, meus pais Elto e Beatriz, meus irmãos Daniel e Caio

e todos os amigos e familiares, pelo incentivo.

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AGRADECIMENTOS

Este trabalho nasceu a partir dos preciosos debates e ponderações

ocorridos nas aulas da pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de

Minas Gerais, mas tomou corpo a partir dos ensinamentos e conselhos do Prof.

Dr. Leonardo Macedo Poli e do Prof. Dr. César Augusto de Castro Fiuza. A

estes, que tiveram o mérito de sempre fazer importantes apontamentos nos

momentos-chave da elaboração e finalização da dissertação, o meu especial

agradecimento.

Ao Prof. Dr. José Jairo Gomes, pelas preciosas sugestões que

possibilitaram o aprimoramento de muitas idéias discorridas no trabalho.

À Prof. Dra. Taisa Maria M. de Lima, pela aprendizagem como seu aluno

e por toda a dedicação acadêmica da qual pude desfrutar.

À Prof. Dra. Maria de Fátima Freite de Sá, pelo estímulo ao estudo

hermenêutico e pelos ensinamentos tão bondosamente dados.

Ao Prof. Dr. Alexandre Travessoni Gomes, cuja dedicação à filosofia

kantiana tive o prazer de desfrutar.

Aos funcionários da biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de

Minas Gerais e da biblioteca da Universidade Federal de Minas Gerais, por toda

a presteza e profissionalismo condicionantes do bom acesso ao acervo.

À minha família também agradeço pelo apoio incondicional. Certamente,

sem a dedicação e ajuda de Anneliese, Elto, Beatriz e Daniel, este trabalho não

teria sido realizado.

Por fim, agradeço a todos os colegas da pós-graduação, sobretudo ao

Bruno F. Bini de Mattos, pelas profundas e calorosas discussões acerca de

assuntos por vezes muito polêmicos.

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RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo estudar e demonstrar como certas

condições históricas, sobretudo a construção Moderna da liberdade e a paulatina

diminuição da dicotomia entre o direito privado e direito público, tornaram

viável o surgimento e a fundamentação dos direitos da personalidade, bem

como um simultâneo alargamento da tutela existencial para além do patrimônio,

a evidenciar os danos morais. Trata-se, mais do que isso, de demonstrar como se

deu o desenvolvimento dos direitos da personalidade segundo a preocupação

com as soluções de conflitos dessa ordem existencial a criar uma ligação com a

responsabilidade civil, danos morais e direitos fundamentais, tudo isso a

proteger a moderna concepção de liberdade e a coroar o fenômeno da

descompartimentalização do Direito. A todas essas premissas seguiu a sua

fundamentação de modo a se alcançar a evolução dos direitos da personalidade

bifurcada na principiologia atual do Estado Democrático de Direito Brasileiro e

no forte condicionamento humano da liberdade dos modernos.

Palavras-chave: Direitos da personalidade; Liberdade; dicotomia direito público

/ privado; Responsabilidade civil; Dano moral.

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ABSTRACT

This work aims to study and demonstrate how certain historical

conditions, especially the construction of Modern freedom and the gradual

decrease of the dichotomy between private and public law, become viable the

emergence and fundametation of the rights of personality and a simultaneous

enlargement of the person’s protection beyond the property, mainly the moral

damage. More than that, it goal to show how was the development os the rights

of personality based on the concern with the solutions of conflicts that regard

person’s protection that makes the conection with civil liability, moral damage

and fundamental rights, all to protect the Modern conception of freedom and to

crown the phenomenon of uncompartmentalization of law. The fundamentation

of all these premises became possible the study os righrs of personality’s

evolution divided in the principiology of the current Brazilian’s Democratic

State of Right and the strong human conditioning of the Modern freedom.

Key-words: Rights of personality; freedom; private / public law dichotomy;

Civil liability; Moral damage.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................. 9 2 FORMAÇÃO HISTÓRICA – FASE EMBRIONÁRIA.................................. 17 2.1 Primórdios ..................................................................................................... 21 2.2 Idade Média................................................................................................... 43 2.3 Modernidade.................................................................................................. 54 3 HISTÓRIA ESPECÍFICA................................................................................ 63 3.1 Contemporaneidade e direitos da personalidade........................................... 66 3.2 Contemporaneidade e danos morais.............................................................. 77 3.3 Do eurocentrismo à realidade doutrinária e jurisprudencial brasileira ......... 80 3.4 Constitucionalização dos danos morais ........................................................ 88 4 FUNDAMENTOS............................................................................................ 92 4.1 Regime de bens dos direitos da personalidade.............................................. 95 4.2 Regra geral de perdas e danos por lesão aos direitos da personalidade...... 109 4.3 Direitos da personalidade e danos morais................................................... 113 4.4 Danos morais e direitos fundamentais ........................................................ 118 5 EVOLUÇÃO E NOVAS PERSPECTIVAS.................................................. 122 5.1 Descompartimentalização do Direito.......................................................... 125 5.2 Direitos da personalidade e direitos fundamentais ..................................... 131 5.3 Nova premissa: o Estado Democrático de Direito...................................... 136 5.4 Por uma contribuição contextualizada ao Estado Democrático de Direito 146 6. CONCLUSÃO .............................................................................................. 153 7. REFERÊNCIAS............................................................................................ 156

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1 INTRODUÇÃO

A investigação que se segue tem por objetivo demonstrar um atual

fenômeno de congruência e complementação entre institutos jurídicos que

circundam o que comumente é chamado de proteção à pessoa ou tutela

existencialista. Trata-se da análise, em especial, da formação, desenvolvimento

e possíveis novas prespectivas acerca dos direitos da personalidade, mas

necessariamente vai caminhar, sem que se perca o foco do presente estudo, para

um exame da responsabilidade civil a evidenciar as formas de solução de

conflitos de forma ampliativa, numa perspectiva constitucional de convergência.

Pretende-se, com isso, alcançar uma fundamentação dos direitos da

personalidade com base em premissas que possam ser evidenciadas à crítica

científica e, mais que isso, evidenciar uma base lógica do instituto que permita

antever possíveis desenvolvimentos dos elementos que o integram.

O enfoque empírico-científico adotado tende levemente para o zetético,

sobretudo através da contextualização desses institutos (plano histórico) a

prover tanto o pano de fundo quanto o ponto de partida para as considerações,

evidenciando, sempre que possível, as premissas utilizadas tanto na doutrina

quanto as do presente trabalho. Com isso, espera-se demonstrar, ao longo das

considerações, que tanto direitos da personalidade como danos morais foram

institutos criados e desenvolvidos de forma autônoma (mas a partir dos mesmos

ideais) e que, no presente momento, sofrem empuxo, induzindo-lhes a uma

comunhão que a responsabilidade civil pode justificar, já que se trata de

disciplina que atrai o exame de tudo que se portar como ilícito privado,

provendo os dois institutos uma complementação mútua no que se refere ao

exame de uma fundamentação jurídica.

Assim, tende a crescer a importância da análise da comunhão entre os

direitos da personalidade e os danos morais (no plano da responsabilidade

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civil) quando se depreende que a matéria começa a ser debatida na doutrina

brasileira de forma muito tímida, seja pelos poucos adeptos1 e críticos2 que se

apresentam, já que todos estes não se debruçaram sobre o assunto por mais que

poucas linhas - notadamente por não terem pretendido uma análise mais

substancial – mas que demonstra tanto certa novidade que envolve o assunto

quanto a carência de estudos a este respeito.

Se pouco é oferecido para estudo nesta conjuntura, muito o é num enfoque

dogmático, isto é, segundo o princípio da inegabilidade dos pontos de partida (a

não por em evidência a premissa inicial) o que pode impedir uma visão crítica

sob os institutos analisados e conseqüente desistência do postulado da pesquisa

independente3.

Mas se a pretensão científica aponta tanto para institutos jurídicos legais e

doutrinários quanto para a delimitação espaço-temporal destes textos e estudos

jurídicos, então a análise histórica (diacrônica4) se faz imprescindível. Mas este

terreno, que já fez grandes juristas relembrarem a advertência segundo a qual o

que é perigoso na história é que ela parece fácil e não o é5, merece todo o

cuidado. Assim, se a busca inicial é contextualização, então apenas o estudo

dogmático parece não ser suficiente, já que geralmente se apresenta de forma

sincrônica, isto é, sem levar em consideração os acontecimentos ao redor do

objeto. E muito embora a grande maioria dos textos examinados siga esta ótica,

recebem todos interpretação necessária para uma abertura à diacronia, sobretudo

a partir dos dados colhidos junto a historiadores da Antigüidade, Idade-Média e

Modernidade. 1 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 14, e FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil, teoria geral. 4ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 149. 2 SANTOS, Antonio Jeová. Dano moral indenizável. 4ª ed. rev. ampl. e atual. de acordo com o novo código civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 93. 3 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 48. 4 A explicação diacrônica de um termo lingüístico visa demonstrar por que ele é o que é com base nas mudanças ocorridas durante os tempos, tendo um notório ponto de vista histórico. Mais sobre o termo in LYONS, John. Lingua(gem) e lingüística. Trad. Marilda Winkler Averburg e Clarisse Sieckenius de Souza. Rio de Janeiro: LTC, 1987, p. 163. 5 Cf. CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 08.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................. 9 2 FORMAÇÃO HISTÓRICA – FASE EMBRIONÁRIA.................................. 17 2.1 Primórdios ..................................................................................................... 21 2.2 Idade Média................................................................................................... 43 2.3 Modernidade.................................................................................................. 54 3 HISTÓRIA ESPECÍFICA................................................................................ 63 3.1 Contemporaneidade e direitos da personalidade........................................... 66 3.2 Contemporaneidade e danos morais.............................................................. 77 3.3 Do eurocentrismo à realidade doutrinária e jurisprudencial brasileira ......... 80 3.4 Constitucionalização dos danos morais ........................................................ 88 4 FUNDAMENTOS............................................................................................ 92 4.1 Regime de bens dos direitos da personalidade.............................................. 95 4.2 Regra geral de perdas e danos por lesão aos direitos da personalidade...... 109 4.3 Direitos da personalidade e danos morais................................................... 113 4.4 Danos morais e direitos fundamentais ........................................................ 118 5 EVOLUÇÃO E NOVAS PERSPECTIVAS.................................................. 122 5.1 Descompartimentalização do Direito.......................................................... 125 5.2 Direitos da personalidade e direitos fundamentais ..................................... 131 5.3 Nova premissa: o Estado Democrático de Direito...................................... 136 5.4 Por uma contribuição contextualizada ao Estado Democrático de Direito 146 6. CONCLUSÃO .............................................................................................. 153 7. REFERÊNCIAS............................................................................................ 156

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1 INTRODUÇÃO

A investigação que se segue tem por objetivo demonstrar um atual

fenômeno de congruência e complementação entre institutos jurídicos que

circundam o que comumente é chamado de proteção à pessoa ou tutela

existencialista. Trata-se da análise, em especial, da formação, desenvolvimento

e possíveis novas prespectivas acerca dos direitos da personalidade, mas

necessariamente vai caminhar, sem que se perca o foco do presente estudo, para

um exame da responsabilidade civil a evidenciar as formas de solução de

conflitos de forma ampliativa, numa perspectiva constitucional de convergência.

Pretende-se, com isso, alcançar uma fundamentação dos direitos da

personalidade com base em premissas que possam ser evidenciadas à crítica

científica e, mais que isso, evidenciar uma base lógica do instituto que permita

antever possíveis desenvolvimentos dos elementos que o integram.

O enfoque empírico-científico adotado tende levemente para o zetético,

sobretudo através da contextualização desses institutos (plano histórico) a

prover tanto o pano de fundo quanto o ponto de partida para as considerações,

evidenciando, sempre que possível, as premissas utilizadas tanto na doutrina

quanto as do presente trabalho. Com isso, espera-se demonstrar, ao longo das

considerações, que tanto direitos da personalidade como danos morais foram

institutos criados e desenvolvidos de forma autônoma (mas a partir dos mesmos

ideais) e que, no presente momento, sofrem empuxo, induzindo-lhes a uma

comunhão que a responsabilidade civil pode justificar, já que se trata de

disciplina que atrai o exame de tudo que se portar como ilícito privado,

provendo os dois institutos uma complementação mútua no que se refere ao

exame de uma fundamentação jurídica.

Assim, tende a crescer a importância da análise da comunhão entre os

direitos da personalidade e os danos morais (no plano da responsabilidade

Page 13: FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE ... e GamaA_1.pdf · personalidade com base em premissas que possam ser evidenciadas à crítica científica e, mais que isso,

civil) quando se depreende que a matéria começa a ser debatida na doutrina

brasileira de forma muito tímida, seja pelos poucos adeptos6 e críticos7 que se

apresentam, já que todos estes não se debruçaram sobre o assunto por mais que

poucas linhas - notadamente por não terem pretendido uma análise mais

substancial – mas que demonstra tanto certa novidade que envolve o assunto

quanto a carência de estudos a este respeito.

Se pouco é oferecido para estudo nesta conjuntura, muito o é num enfoque

dogmático, isto é, segundo o princípio da inegabilidade dos pontos de partida (a

não por em evidência a premissa inicial) o que pode impedir uma visão crítica

sob os institutos analisados e conseqüente desistência do postulado da pesquisa

independente8.

Mas se a pretensão científica aponta tanto para institutos jurídicos legais e

doutrinários quanto para a delimitação espaço-temporal destes textos e estudos

jurídicos, então a análise histórica (diacrônica9) se faz imprescindível. Mas este

terreno, que já fez grandes juristas relembrarem a advertência segundo a qual o

que é perigoso na história é que ela parece fácil e não o é10, merece todo o

cuidado. Assim, se a busca inicial é contextualização, então apenas o estudo

dogmático parece não ser suficiente, já que geralmente se apresenta de forma

sincrônica, isto é, sem levar em consideração os acontecimentos ao redor do

objeto. E muito embora a grande maioria dos textos examinados siga esta ótica,

recebem todos interpretação necessária para uma abertura à diacronia, sobretudo

a partir dos dados colhidos junto a historiadores da Antigüidade, Idade-Média e

Modernidade. 6 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 14, e FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil, teoria geral. 4ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 149. 7 SANTOS, Antonio Jeová. Dano moral indenizável. 4ª ed. rev. ampl. e atual. de acordo com o novo código civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 93. 8 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 48. 9 A explicação diacrônica de um termo lingüístico visa demonstrar por que ele é o que é com base nas mudanças ocorridas durante os tempos, tendo um notório ponto de vista histórico. Mais sobre o termo in LYONS, John. Lingua(gem) e lingüística. Trad. Marilda Winkler Averburg e Clarisse Sieckenius de Souza. Rio de Janeiro: LTC, 1987, p. 163. 10 Cf. CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 08.

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Para que fosse obedecido um rigorismo cronológico, os conceitos e

termos atuais (e mais usuais) que acompanham os direitos da personalidade e os

institutos que o cercam deveriam ser uma preocupação, ou mesmo objeto de

exposição para o final deste texto, assim que ultrapassado o estudo das suas

origens e como teria se desenvolvido historicamente. Contudo, entende-se que a

referida metodologia comprometeria uma compreensão mais ampla do todo, já

que os danos morais, a responsabilidade civil, a ordem dicotômica e a liberdade

oferecem contundente contribuição para uma melhor compreensão do presente

objeto de estudo. Compõem, assim, o segundo plano do presente trabalho, ou

pano de fundo a apresentar a ambientalização dos estudos que se seguem. Com

isso, optou-se por partir de uma definição, ainda que precária, do objeto do

estudo para prover esse - se possível - ideal pano de fundo. Pretende-se, com

isso, que imperfeições possam ser sanadas ao longo do desenvolvimento textual

e, mais que isso, que possam ser evidenciadas eventuais falhas sedimentadas

pelo tempo.

O ponto de partida provisório e precário será o entendimento dogmático

segundo o qual os direitos da personalidade estariam ligados à essencialidade

da pessoa (ser humano) evidenciada pelas manifestações de sua personalidade

através do modo de ser físico e moral11. Adianta-se, nesse momento, a utilizar a

definição de danos morais como aqueles relativos à dor e à lesão de

sentimentos12, bem como o da responsabilidade civil como disciplina que se

11 Este entendimento, com algumas variações, pode ser encontrado em CAPELO DE SOUSA, Rabindranath V. A. O Direito Geral de Personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 92, BELTRÃO, Silvio Romero, Direitos da Personalidade: de acordo com o Novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2005, p. 20, SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da Personalidade e sua Tutela. 2ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 71, DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 36. 12 Cf. DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1954, Tomo I, p. 721, SANTOS, Antonio Jeová. Dano moral indenizável. 4ª ed. rev. ampl. e atual. de acordo com o novo código civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 93, e RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil: Lei nº 10.406, de 10.01.2002. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 18. Certos autores dizem que a dor e sofrimento seriam os elementos que compõem os danos morais, cf. SILVA, Wilson Melo da. O dano moral e sua reparação. 2ª ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 1969, p. 14.

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ocupa com a violação da norma13. Ressalta-se que existem diversos conceitos

para os referidos termos, fazendo da antiga assertiva omnis definitio periculosa

est ainda mais atual e presente. Contudo, momentaneamente, cumprirão a tarefa

de direcionar a investigação científica de modo a subtrair à dúvida, sempre que

possível, tanto as premissas que circundam as definições acima quanto o próprio

dogma que representam, colocando-os à prova. Procura-se, com isso, ampliar e

aprofundar o estudo do fenômeno jurídico em apreço, especulando-o o tanto

quanto possível.

Diante disso, a pretensão inicial se divide na definição de dois espaços

históricos que se complementam reciprocamente e que objetivam prover

unidade aos direitos da personalidade e aos institutos que lhe são pertinentes. O

primeiro se refere à formação embrionária a estudar a atuação do tempo sobre

diversos assuntos que propiciaram o surgimento contemporâneo do objeto do

presente estudo, até onde o rigorismo científico permita e cujos limites

investigativos sejam definidos a partir do conhecimento atual do tema. O

segundo é a análise aprofundada, a partir do primeiro, do objeto de estudo de

forma específica. A escolha de uma divisão nestes termos possui como razão de

ser os elementos que surgiram e se desenvolveram da Antigüidade à

Modernidade (formação história – fase embrionária) de modo a tornar possível

o surgimento dos direitos da personalidade vinculados à responsabilidade civil

(história específica e fundamentos dos direitos da personalidade e sua tutela).

Como já foi observado, durante o desenvolvimento do estudo histórico

será analisado, de forma paralela, além de institutos eminentemente jurídicos, o

condicionamento do ser humano frente à transitoriedade das idéias de liberdade

que as diferentes Eras (sobretudo as da Antigüidade e Modernidade)

apresentaram, notadamente a repercutir junto à situação da dicotomia entre os

ramos público e privado do Direito, bem como entre sociedade e indivíduo, de

13 Cf. DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 11ª ed. rev. e atualizada de acordo com o Código Civil de 2002, e aumentada por Rui Berford Dias. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 05, e FILHO, Sergio Cavalieri. Programa de responsabilidade civil. 6ª ed., 2ª tiragem, rev. ampl. e atual.São Paulo: Malheiros, 2005, p. 24.

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modo a demonstrar a atual convergência dos dois ramos e as conseqüências que

o referido fenômeno de integração acarreta aos direitos da personalidade.

Espera-se que, com a reconstrução do passado, seja possível localizar os

elementos que tornaram possível o recente estabelecimento de uma

compartimentalização do Direito e sua posterior ruína, donde se ergue e se

fundamenta o objeto final de toda a pretensão buscada: compreender os direitos

da personalidade como o atual resultado do processo evolutivo da tutela

existencial da pessoa segundo o condicionamento da liberdade na convergência

entre direito privado e público, estando na atual idéia de liberdade a

fundamentação dos direitos da personalidade.

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2 FORMAÇÃO HISTÓRICA – FASE EMBRIONÁRIA

Parece razoável afirmar que o estudo da história dos direitos da

personalidade e, mesmo, dos principais institutos que o cercam, confina-se no

período compreendido por contemporaneidade – história específica – e cujo

marco (comumente) adotado é o ano de 1789. Os indícios que assim apontam

são muitos e, como se verá, neles é possível sustentar o começo de uma teoria

que, notadamente, se desenvolveu em paralelo à história do movimento

constitucionalista. A doutrina, ao tratar dessa matéria, geralmente se preocupa

em oferecer a diferença entre direitos da personalidade e direitos fundamentais,

e sobre isso há um forte motivo: a semelhança entre um instituto e outro, o que

causa patente aflição ao sistema das dicotomias14. O que se solidificou foi o

entendimento segundo o qual muitos daqueles direitos da esfera pública seriam

direitos da personalidade, mas nem todos os direitos fundamentais teriam

correspondente naqueles15. Conclui-se, outrossim, que uma mesma inspiração (a

compor a “teoria dos direitos naturais jusnaturalista16” ) tocou duas

ramificações jurídicas especializadas (pública e privada), só assim permitindo

tal dicotomia, propiciada pelo fenômeno da compartimentalização do Direito17,

14 Distinguir um instituto de outro é característica marcante da dogmática jurídica da era moderna (bem como a preocupação com a decidibilidade de conflitos e mínimo de perturbação social) e permite a sistematização, estabelecendo princípios teóricos e básicos para operacionalizar as normas de um e outro instituto. Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 138. 15 Cf. CAPELO DE SOUSA, Rabindranath V. A. O Direito Geral de Personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 581, CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed., 2ª reimpressão, Coimbra: Livraria Almedina, 2003, p. 396, SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da Personalidade e sua Tutela. 2ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 43, AMARAL, Francisco, Direito Civil: introdução, 6a ed., rev., atual. e aum., Rio de Janeiro, Renovar, 2006, p. 256, BELTRÃO, Silvio Romero, Direitos da Personalidade: de acordo com o Novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2005, p. 47. 16 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coinbra Editora, 2004, p. 18. 17 Cf. DWORKIN, Ronald, O Império do Direito, trad. Jefferson Luiz Camargo, Rev. téc. Gildo Sá Leitão Rios, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 301.

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próprio da contemporaneidade jurídica18. Por estes motivos, o estudo da história

do movimento constitucionalista torna-se imperioso e se revela como fonte de

contribuição direta à história específica dos direitos da personalidade,

sobretudo pela constatação de uma raiz comum que se bifurcou nos ramos

jurídicos público e privado, tornando-se salutar o estudo simultâneo de ambos.

Ressalta-se que a análise restrita dos direitos da personalidade e dos

danos morais (além dos outros institutos já evidenciados) a partir da

contemporaneidade possui um grave defeito que pode ser evitado: o

entendimento segundo o qual os estudiosos a partir de 1789 teriam chegado aos

dois institutos jurídicos via drástica revolução intelectual, caracterizada por uma

completa cisão entre o conhecimento anterior e o posterior19. Muito pelo

contrário, a história específica é dependente de uma série de elementos próprios

de outras Eras e sem os quais seria impossível o alcance e entrelaçamento

doutrinário, jurisprudencial e legal de todo esse assunto. Assim, o arcabouço de

termos, teorias e proposições deixados pelos antepassados e que propiciaram o

surgimento, desenvolvimento e consolidação desses institutos será tratado por

formação histórica – fase embrionária.

O estudo do direito comparado, considerado aqui como a análise do

Direito de outro país sobre um determinado assunto jurídico comum, traz

contribuição imprescindível e que não pode ser descartada, sobretudo pela

notória adoção na doutrina brasileira da posição tedesca e italiana. Contudo, já

foi dito que não se pode empreender “mera transposição das soluções20”

advindas do direito comparado quando da análise de um determinado tema

jurídico afim. Este aviso serve para advertir que a aplicação da lei, doutrina ou

18 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 49 e 146, e DWORKIN, Ronald, O Império do Direito, trad. Jefferson Luiz Camargo, Rev. téc. Gildo Sá Leitão Rios, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 300. 19 A tendência do objeto de estudo da ciência jurídica tem se mostrado ser, ao invés de um dado, um resultado, isto é, algo que evolui e se transforma, para melhor ou pior, na medida em que atua. Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 39. 20 CAPELO DE SOUSA, Rabindranath V. A. O Direito Geral de Personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 24.

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jurisprudência de outra sociedade deve ser, inicialmente, contextualizada para

que, só então, possa agregar o conhecimento jurídico-científico brasileiro,

limitando-se, quando não for possível afastar, os erros metodológicos.

Por fim, compreendido o âmbito específico da história dos direitos da

personalidade e dos institutos que lhes são afins na contemporaneidade, por uma

questão de metodologia, empreender-se-á em primeiro lugar uma viagem ao

passado da sociedade humana, buscando-se as contribuições por esta deixada –

formação histórica – fase embrionária. Ressalta-se que o recorte dado neste

específico estudo é limitado às sociedades que deixaram contundente

contribuição para que, no período mais recente da história da humanidade,

pudessem-se elaborar tanto os direitos da personalidade quanto a sua específica

tutela firmada pela responsabilidade civil. Procurar-se-á, sempre que possível,

demonstrar que fatos localizados em espaços temporais, geográficos e culturais

diversos não podem ser reunidos como se houvesse total diacronia entre eles.

Tem-se, assim, uma dupla justificativa para o uso metodológico de uma

formação histórica – fase embrionária: evita-se a equivocada idéia de revolução

intelectual e afasta-se do dado histórico, sempre que possível, atribuições

próprias de outros tempos. Assim, pretender-se-á individualizar as contribuições

de outras sociedades para compreender melhor como foi possível o surgimento

dos direitos da personalidade na atual era da história humana.

Dividir a história dos direitos da personalidade em dois campos (ambos

permeados pelos institutos afins), onde o primeiro analisa as contribuições

deixadas pelos antigos para o surgimento desse objeto e o segundo, a partir do

arcabouço formado, encontra os elementos para a constituição e

desenvolvimento possui, se pouco, o benefício de reunir dados colhidos em

diferentes tempos, locais e culturas, sem criar uma falsa união entre eles,

individualizando, na medida do possível, cada contribuição e evitando a mera

transposição de um conhecimento próprio de uma época para outra.

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Para essa construção seguiu-se, o tanto quanto possível, certos marcos

comumente evidenciados pela doutrina e que são, grosso modo, o percurso de

desenvolvimento da responsabilização pessoal, o surgimento do termo e

conseqüente teorização dos direitos da personalidade no jusnaturalismo da

contemporaneidade e a positivação, tanto no ramo privado quanto público, dos

direitos da personalidade, dos danos morais e dos direitos fundamentais. A

formação histórica – fase embrionária se restringe, como dito, às três primeiras

eras e a específica, por sua vez, fica circunscrita à contemporaneidade e, juntas,

formam elos de uma mesma corrente evidenciados (e diferenciados) pelo

contexto social.

Duas são as preferências que se evidenciam nos textos especializados

sobre o assunto quanto à construção histórica: ou os autores se lançam ao estudo

histórico das revoluções sociais, econômicas e jurídicas de forma abstrata,

tendo-se em foco a responsabilização pessoal ou, termo que comumente

empregam, “tutela da personalidade” (da era Antiga à Moderna) para, ao final,

desembocar em uma análise específica da positivação dos direitos da

personalidade nos campos privado e público21; ou simplesmente se restringem a

este último tópico22. Com a devida ressalva que toda generalização exige, as

preferências acima costumam se calcar, respectivamente, no direito natural e no

direito positivo, evidenciando, pelo menos a princípio, a crença do estudioso.

Os dados colhidos na doutrina especializada sobre os direitos da

personalidade e danos morais, bem como quanto à responsabilidade civil,

21 Alguns exemplos seriam CAPELO DE SOUSA, Rabindranath V. A. O Direito Geral de Personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 27, SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da Personalidade e sua Tutela. 2ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 23, AMARAL, Francisco, Direito Civil: introdução, 6a ed., rev., atual. e aum., Rio de Janeiro, Renovar, 2006, p. 253, FRANÇA, Limongi R. Do Nome Civil das Pessoas Naturais. 2ª ed. Rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964, p. 24, FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil, teoria geral. 4ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 100, DONEDA, Danilo. Os direitos da personalidade no código civil. In TEPEDINO, Gustavo (coord.). A parte geral do novo código civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. 2ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 37, entre outros. 22 Ilustrativamente, PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Atual. Vilson Rodrigues Alves. 1ª ed. São Paulo: Bookseller, 1999, Tomo I, p. 216, DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 25, e BELTRÃO, Silvio Romero, Direitos da Personalidade: de acordo com o Novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2005, p. 19/20.

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uniram-se aos elementos sociais que historiadores renomados como o gaulês

FUSTEL DE COULANGES, o italiano GIORGIO FALCO, o francês

JACQUES LE GOFF e o britânico HENRY R. LOYN trataram de reunir, só

assim possibilitando a diacronia procurada a evidenciar uma fundamentação dos

direitos da personalidade bem distante das premissas do naturalismo ou do

kantismo.

2.1 Primórdios

Já foi dito que a história dos direitos da personalidade é comumente

apresentada como instituto jurídico que se insere na “longa e acidentada

evolução das relações sociais, econômicas e jurídicas23” das sociedades,

inclusive a primitiva. A doutrina sobre os danos morais costuma seguir

semelhante percurso, ora atribuindo o conhecimento do referido instituto já aos

romanos antigos24, ora evidenciando o surgimento embrionário da

responsabilização pessoal junto a estes itálicos25 e que viria, no futuro,

possibilitar o surgimento dos danos morais. É de se ressaltar que o termo

responsabilização pessoal é aqui empregado como forma de diferenciar este de

responsabilidade civil, que não era de conhecimento do romano e se limita ao

conhecimento contemporâneo. Na verdade, pela etimologia do termo é possível

alcançar o vocábulo latino spondeo, que nada mais era que a fórmula utilizada

por aqueles itálicos para fazer ligar, de forma solene, o devedor ao contrato

23 CAPELO DE SOUSA, Rabindranath V. A. O Direito Geral de Personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 27. 24 Cf. SANTOS, Antonio Jeová. Dano moral indenizável. 4ª ed. rev. ampl. e atual. de acordo com o novo código civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 84. 25 Cf. FISCHER, Hans Albrecht. A reparação dos danos no direito civil. Trad. Antônio de Arruda Ferrer Correia. São Paulo: Saraiva, 1938, p. 237, e KASER, Max. Direito privado romano. Trad. Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämmerle. Rev. Maria Armanda de Saint-maurice. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p. 209.

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verbal de que fazia parte26. Tratava-se de verbo que corresponde à palavra

prometer na língua portuguesa e, naqueles tempos, restringia-se ao termo que

fixava responsabilidade sempre frente a uma relação contratual.

Com isso, evita-se a perigosa tendência de se “interpretar o passado com

os olhos do presente” ou “atribuir a nossa cultura a povos que a

desconheciam27” . Assim, o que se busca no passado não deve e nem podem ser

os direitos da personalidade, os danos morais ou a responsabilidade civil, mas

sim os principais elementos que, a partir destes, tornaram aqueles possíveis.

Com isso a construção se faz a partir do que se conhece para o que foi conhecido

por outros, direcionando o estudo de modo a evidenciar o percurso evolutivo dos

termos que circundam o presente objeto de estudo. E o que se sabe, conforme

previamente acentuado, é que os direitos da personalidade são entendidos como

algo essencial da pessoa e se manifestam pelo modo de ser físico ou moral da

mesma. E os danos morais seriam aqueles relativos à dor e à lesão de

sentimentos de determinada pessoa.

A partir dessas ressalvas, parece razoável afirmar que a primeira análise

deve recair, iniciando-se a delimitação do espaço histórico a se percorrer, sob o

vocábulo pessoa, justamente por acompanhar, mais e mais, as diversas tentativas

de definição dos dois institutos e de sua notória importância junto à

responsabilidade civil. Adverte-se que esse ponto de partida, aparentemente

hermético, irá atrair a curiosidade investigativa para outros pontos os quais

contribuirão para uma conclusão contundente para evidenciar tanto as preciosas

contribuições deixadas como a distância semântica que podem apresentar um

mesmo termo em diferentes eras. Assim, pela etimologia do termo pessoa tem-

se que foram os romanos da Antigüidade (aqui entendida como o período que

26 Cf. DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1954, Tomo I, p. 06. 27 NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Introdução Crítica às Categorias Jurídicas Relacionais: Relação Jurídica e Situação Jurídica no Direito Privado. Em FIUZA, César. Direito Civil, atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 04.

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começa em 754 a.C. e termina em 565 d.C.28) os primeiros que o conheceu, e se

apresentava como persona29.

Esse noviço termo surgia sem qualquer sentido técnico-jurídico - próprio

de outros tempos - mesmo quando utilizado em textos dessa natureza30. Teria

primeiramente designado a máscara utilizada pelos atores latinos em suas

apresentações31 para, posteriormente, abarcar a idéia de papel, de personagem

desses atores32. O próximo passo evolutivo do vocábulo persona foi, assim, o de

representar o ser humano ou homem (em geral)33, conforme pode ser

interpretado, a título de ilustração, da passagem de MARCO TÚLIO CÍCERO,

orador latino do Sec. I a.C.34, sobre o nomen:

Nomen est, quod uni cuique personae datur, quo suo quaeque proprio et certo vocabulo appellatur35.

O referido orador itálico - cumpre ressaltar - bebeu no conhecimento da

filosofia e retórica ateniense (sobretudo Platão) por cinco longos anos do início

de sua vida adulta36, e o intercâmbio desse conhecimento em Roma viria, ao

28 MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 2000, Vol. I, p. 01. 29 Cf. GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. 14ª Ed., rev. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 362. 30 Cf. CHAPARRO, Enrique Ramos. La Persona e Su Capacidad Civil. Madri: Editorial Tecnos, 1995, p. 21, MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 2000, Vol. I, p. 91, AMARAL, Francisco, Direito Civil: introdução, 6a ed., rev., atual. e aum., Rio de Janeiro, Renovar, 2006, p. 277, e SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da Personalidade e sua Tutela. 2ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 28. 31 Cf. MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 2000, Vol. I, p. 91, CRETELLA JÚNIOR, J. Curso de Direito Romano: o direito romano e o direito civil brasileiro. Rev. e Aum. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 83, e BELTRÃO, Silvio Romero, Direitos da Personalidade: de acordo com o Novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2005, p. 20. 32 Cf. WILLIAMS, Raymond. Palavra-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. Trad. Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 315, e GOMES, José Jairo. Direito Civil: introdução e parte geral. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 137. 33 Cf. MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 2000, Vol. I, p. 91, AMARAL, Francisco, Direito Civil: introdução, 6a ed., rev., atual. e aum., Rio de Janeiro, Renovar, 2006, p. 277. 34 COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 555. 35 “Nome é o vocábulo que se dá a cada pessoa, e com o qual é chamada, por ser o seu designativo próprio e certo”. Proposta de tradução e texto em FRANÇA, Limongi R. Do Nome Civil das Pessoas Naturais. 2ª ed. Rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964, p. 20. 36 Cf. COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 555. Suas obras intituladas De Legibus e De Republica são os únicos extensos escritos romanos de

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final daquela era, possibilitar o desenvolvimento de muitos institutos relevantes

para os direitos da personalidade elaborados quase dois milênios mais tarde.

Assim, ao tratar o nomen como vocábulo próprio e certo segundo o qual

cada pessoa é chamada, deixou-se muito claro que, embora as regras de

nomeação fossem diferentes, todos, sendo pessoas, possuiriam nome, o que

reforça a idéia de persona como gênero de homem, de ser humano. O

entendimento daquela época, justamente, atribuía aos patrícios três nomes

próprios (prenome, nome e cognome), aos de diferentes estirpes a atribuição de

nome que não era de família e aos escravos a designação pueri acrescida do

prenome do seu dono37. À sua maneira, e com distinção frente à polis, todos

eram nomeados e todos eram personæ, diferindo apenas pelo status que

gozavam, justamente, junto à polis. E algumas comprovações podem ser obtidas

a este respeito, além da questão do nomen, e que afastava a idéia segundo a qual

escravos e estrangeiros pudessem ter sido tratados alguma vez como res, e não

como personæ:

Vamos encontrar diversas hipóteses que confirmam a existência de capacidade processual dos escravos: quando ocorria a supressão de cláusula testamentária onde o dominus concedia a alforria ao escravo (D. 35, 1, 51); na liberdade obtida empra propriis nummis, segundo constituição de Marco Aurélio e Lucio Vero, ou ainda no favore libertatis, hipóteses em que o escravo poderia, administrativamente ou mesmo, judicialmente, garantir a obtenção de sua libertação, demonstram a subjetividade e a personalidade desses indivíduos que sofreram a capitis diminutio máxima38.

filosofia legal, cf. MORRIS, Clarence (et al). Os Grandes Filósofos do Direito: leituras escolhidas em direito. Trad. Reinaldo Guarany. Rev. da Trad. Silvana Vieira e Claudia Berliner. Rev. Téc. Sérgio Sérvulo da Cunha. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 32. 37 Cf. FRANÇA, Limongi R. Do Nome Civil das Pessoas Naturais. 2ª ed. Rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964, p. 30/31. O termo pueri pode ser encontrado na literatura como serui, cf. MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 2000, Vol. I, p. 101. 38 Cf. SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da Personalidade e sua Tutela. 2ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 30.

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Justamente sobre a importância do status de persona junto à polis que é de

bom alvitre salientar que esse povo itálico tinha uma idéia de jus como

“fenômeno de ordem sagrada39” , isto é, completamente calcado na cultura

religiosa daqueles tempos, o que reforça o cuidado para que não seja meramente

transposto o conhecimento atual para aquela era. E era o Direito um fenômeno

sagrado porque tudo mais da vida do (cidadão) romano assim o era:

Veja-se o papel que a religião tem na vida do romano. A casa é para o romano o mesmo que para nós é o templo; este homem encontra na sua casa o seu culto e os seus deuses. O seu lar é um deus, do mesmo modo que as paredes, as portas e a soleira são deuses, e ainda deuses são os marcos que rodeiam o seu campo. O túmulo é altar e os seus antepassados são divinos40.

A importância para o antigo itálico do nomen (que era o nome

patronímico) vem, justamente, do culto, já que na antiga religião doméstica era

a família, e não a persona, a unidade absoluta e sagrada41. Assim, pelo nomen, e

mais tarde pelo cognomen e pronomen, é que uma dada persona fazia parte de

sua família, legitimando-o a usar o lar, o túmulo e o patrimônio42 na polis. Todos

aqueles que carregassem o mesmo nome patronímico compunham, assim, a

mesma unidade e, por isso, praticavam o culto em comum, tendo a Lex

Duodecim Tabularum (450 / 449 a.C.43), muito antes de MARCO TÚLIO

CÍCERO, não apenas estabelecida a capacidade para herdarem uns dos outros,

mas também impôs a todos a responsabilização pelas dívidas de qualquer um

39 FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 56. 40 COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 236. 41 Cf. COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 114. 42 Cf. COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 114. 43 Cf. MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 2000, Vol. I, p. 14.

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dos seus, bem como o ônus do resgate do prisioneiro ou multa do condenado44.

E tal se justificou, por muito tempo, pela indivisibilidade do patrimônio, que

pertencia à família e que compunha um dos elementos estruturantes daquela

religião doméstica.

Nota-se que, se pelo cognomen, e mais tarde pelo agnomen (alcunha

honorífica), permitiu-se ao romano uma concretização do indivíduo, aqui

incluído o escravo e, genericamente, os sem status civitatis, pela invenção

posterior45 do vocábulo persona é que se tornaria possível uma abstração (e

teorização) daquele que carrega o nome.

Persona viria, assim, a abrir as portas para as construções das eras

seguintes acerca de pessoa, representando um objeto de estudo notável para a

ciência, aqui incluída a jurídica. Neste tocante, convém relembrar que aquela

Roma possuía “caráter absolutamente inimitável46” , sendo que o fato de o

desenvolvimento da individualização naquele contexto ter ultrapassado o limite

do simples uso de nomes próprios de forma alguma permite a confusão entre a

idéia atual de pessoa e persona. A abstração alcançada, v.g. pelo legislador

brasileiro ao afirmar que “toda a pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem

civil47” é algo inconcebível na Roma da Antigüidade. Isso porque a

individualidade do romano não era igual à individualidade contemporânea ou,

mesmo, da era Moderna, já que profundamente ligada à religião. O romano,

como personæ que era, tinha a sua individualidade necessariamente dependente

da polis e, mesmo, da família48, e é neste contexto que se alarga o espaço

histórico a se percorrer, completando e contextualizando o estudo da persona

44 Cf. COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 113. 45 É desconhecida sociedade antiga cujos indivíduos não se tratassem pelo nome, cf. FRANÇA, Limongi R. Do Nome Civil das Pessoas Naturais. 2ª ed. Rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964, p. 26/27. 46 COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 02. 47 BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, 11 de janeiro de 2002. 48 Cf. FRANÇA, Limongi R. Do Nome Civil das Pessoas Naturais. 2ª ed. Rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964, p. 33. Essas duas ordens de existência também são apontadas em FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 22 e 53.

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através da análise da liberdade representada por uma importante ordem

dicotômica: a esfera privada de um lado e a pública de outro. O alargamento do

enfoque histórico a abarcar a idéia de religião, liberdade, responsabilização e

dicotomia (técnica) possui, além do benefício de melhor compreender a persona,

a comodidade de evidenciar, desde já, elementos a separarem o vindouro

enfoque contemporâneo da dogmática e da zetética quanto aos direitos da

personalidade. Assim, justamente pela ordem social basear-se numa “religião

doméstica” (que tinha como objeto o culto ao antepassado e como principal

símbolo o lar49), se torna possível afirmar que a liberdade individual conhecida

pelos contemporâneos (“liberdade dos modernos50”) não poderia existir naquela

época:

A cidade havia sido fundada sobre uma religião e constituída como uma igreja. Daí sua força; daí também a sua onipotência e império absoluto que exercia sobre seus membros. Em sociedade organizada sobre tais bases, a liberdade individual não podia existir. O cidadão estava, em todas as suas coisas, submetido sem reserva alguma à cidade; pertencia-lhe inteiramente51.

O enfoque na religião romana permite satisfatoriamente afastar qualquer

tentativa de aproximação entre persona e liberdade individual, própria de outros

tempos, mas que possuía já um remoto ancestral, o status libertates. Não ter esta

qualidade ou posição social implica, necessariamente, assumir a condição de

escravo, seja pela captura ou nascimento de mãe escrava (ius gentium), seja pela

falta de declarações ao censo, não apresentação ao exército quando convocado,

49 COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 127. 50 Cf. CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 08. 51 COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 246.

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deserção e extradição (ius civile)52. Contudo, possuir o status libertates ainda

não era gozar integralmente da liberdade romana (“liberdade dos antigos53”) e a

justificativa é colhida junto ao que o romano tinha em mais alta estima: o culto.

Quem não era romano, v.g. o estrangeiro, não tinha acesso ao culto e, por isso,

ficava sem a proteção dos deuses e impossibilitado de invocá-los54. Vê-se que a

dependência do indivíduo à família e à polis era de ordem sagrada, sendo

denominada, por sua vez, de status civitatis55. Trata-se, outrossim, de dois

planos existenciais diferentes. Na família, centro das mais severas

desigualdades, essa liberdade dos antigos só existia quando alguns de seus

membros (geralmente o pater familia) tinham a faculdade de sair do lar para

ingresso na esfera política56. Nota-se que a possibilidade de exercer culto

legitimado pelo fato de pertencer a uma família não acarretava, necessariamente,

o acesso à política da polis, mas por certo era um requisito. É razoável concluir,

assim, que a liberdade só era realmente conhecida dentro e nos termos da

religião, mas não derivava propriamente do nascimento, mas sim da participação

no culto da polis:

Reconhecia-se como cidadão todo homem que tomava parte no culto da cidade, e desta participação lhe derivavam todos os seus direitos civis e políticos. Renunciando ao culto, renunciava aos direitos (...). Em Roma devia ter-se assistido à cerimônia sagrada da lustração para se gozar dos direitos políticos. A quem não assistisse à lustração, isto é, quem não tivesse tomado parte na oração comum e

52 Cf. MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 2000, Vol. I, p. 98/99. Adiciona-se a estas os casos de insolvência, addictus (passar para o patrimônio do credor) e prisão em flagrante. Cf. CRETELLA JÚNIOR, J. Curso de Direito Romano: o direito romano e o direito civil brasileiro. Rev. e Aum. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 91/92. 53 Cf. CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 08. 54 COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 211. 55 Cf. MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 2000, Vol. I, p. 105. 56 Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 42.

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no sacrifício, deixava de ser considerado cidadão até o lustro seguinte57.

Nota-se que, se a esfera familiar daqueles itálicos reunia todo o tipo de

desigualdade que a época Antiga foi capaz de apresentar, na esfera política o

que reinava era a igualdade, termo este que significava “viver entre pares e

lidar somente com eles58” , fundamento da liberdade dos antigos.

A liberdade ainda pode ser olhada pela ótica do delictum, raiz da

responsabilização pessoal, que se caracterizava pela submissão de uma persona

ao poder de outra para que houvesse remição do referido delictum59. No início

do período romano, expunha-se o infrator à exclusiva vingança da vítima, onde

se operava um domínio desta sobre o corpo daquele e a desforra seguia o arbítrio

exclusivo da vítima60. E nesta época de Monarquia (753 a.C. a 510 a.C.61), a

força das famílias e de grupos que estas formavam permitia e sustentava um

campo de ação com poucas restrições, já que o monarca, quase sempre,

limitava-se a simplesmente autorizar a vingança privada62. Nota-se que, como

dito, cada família tinha o seu culto e, tendo-se em vista que religião, política e

Direito eram indissociáveis63, cada família acabava por ter forma própria de

tratar o delictum.

57 COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 210/211. 58 ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 42. 59 Cf. KASER, Max. Direito privado romano. Trad. Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämmerle. Rev. Maria Armanda de Saint-maurice. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p. 192. 60 Cf. KASER, Max. Direito privado romano. Trad. Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämmerle. Rev. Maria Armanda de Saint-maurice. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p. 192. 61 Cf. CRETELLA JÚNIOR, J. Curso de Direito Romano: o direito romano e o direito civil brasileiro. Rev. e Aum. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 03. 62 CAPELO DE SOUSA, Rabindranath V. A. O Direito Geral de Personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 48. 63 COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 442.

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Mais tarde, no período da res publicæ (510 a.C. a 27 a.C.64), ainda era

forte a união entre jus e religião, conforme pode-se constatar da definição de

juris prudentia daqueles romanos:

Iuris prudentia est diuinarum atque humanarum rerum notitia, iusti atque iniusti scientia65.

Esta era a idéia de jus que, como tudo mais da vida daqueles itálicos66, era

entendido como “fenômeno de ordem sagrada67” . Conseqüentemente, a

responsabilização pessoal, seja aquela que examinasse os delicta à alma, ao

corpo, à vida pública e privada do romano, ou qualquer outra coisa, sempre

ficava sobre o domínio e direcionamento religioso68. E sobre isso é possível

apontar algumas evidências, como a visão do romano quanto à injuria. A

etimologia desse vocábulo latino significa, num sentido lato, tudo o que se fazia

sem direito e, num sentido restrito, todo ato voluntário que ofendesse a honra ou

boa reputação69. Ela era, para aqueles itálicos, um delito contra a personæ, mas

muitas das ofensas que os romanos antigos alocavam como injuria recaem, já na

modernidade, sobre coisas, v.g., “o impedimento ou a perturbação do gôzo [sic]

da propriedade imobiliária por parte dum vizinho”70. Ora, já foi dito que a

ordem daquela sociedade antiga baseava-se numa “religião doméstica”, cujo

64 Cf. CRETELLA JÚNIOR, J. Curso de Direito Romano: o direito romano e o direito civil brasileiro. Rev. e Aum. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 03. 65 “A jurisprudência é o conhecimento das coisas divinas e humanas, a ciência do justo e do injusto”. Texto em latim e sugestão de tradução em MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 2000, Vol. I, p. 26. 66 COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 236. 67 FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 56. 68 COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 175/179. 69 Cf. SILVA, Wilson Melo da. O dano moral e sua reparação. 2ª ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 1969, p. 29. 70 Cf. FISCHER, Hans Albrecht. A reparação dos danos no direito civil. Trad. Antônio de Arruda Ferrer Correia. São Paulo: Saraiva, 1938, p. 241.

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objeto era o culto ao antepassado e o principal símbolo o lar71. Portanto, impedir

ou perturbar a propriedade imobiliária (o lar) era ofensivo de tudo que o romano

mais prezava: o culto. Esse delictum representava, assim, verdadeira profanação

do lar (ou, mesmo, altar) e era, acima de tudo, merecedor de uma pœna.

Ultrapassados sessenta anos do início do período da res publica, nota-se já

uma restrição das faculdades da vítima no que concerne à consecução da

vingança. E esse desenvolvimento, que veio dos usos e costumes72, alcançara a

forma jurídica, positivando-se a “Lei de Talião”73, que consiste numa igual

reciprocidade entre crime e pena. É o que se depreende da Lex Duodecim

Tabularum elaborada em 450 e 449 a.C.:

As XII Tábuas (8,2-4) conhecem três casos de lesão da personalidade: a) Si membrum rupsit, ni cum eo pacit, talio esto: a mutilação de um membro é expiada segundo Talião, ou seja, o autor deve sofrer a mesma lesão corporal que produziu. Não se prescreve como obrigatório o pactum de reparação, por pagamento de multa; o se e o quanto ficam a juízo do lesado; b) Manu fisive si os fregit, libero CCC, si servo, Cl poenae sunto: para fractura de osso com a mão ou pau prevêem-se multas fixas de 300 asses para lesão de pessoa livre e 150 para de escravo. c) Si iniuria(m) alteri faxsit, XXV poenae sunto: para outras “injúrias”, que na época antiga incluíram apenas agressões ao corpo, a multa é de 25 asses74.

E é justamente do estudo da injuria que a doutrina atual mais se ocupou

em termos de levantamento histórico, seja frente aos danos morais75, seja quanto

71 Cf. COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 127. 72 Cf. WOLKMER, Antonio Carlos. O direito nas sociedades primitivas. In WOLKMER, Antônio Carlos (org.). Fundamentos de história do direito. 2ª ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 24. 73 Cf. DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1954, Tomo I, p. 26. 74 KASER, Max. Direito privado romano. Trad. Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämmerle. Rev. Maria Armanda de Saint-maurice. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p. 289. No mesmo sentido, SANTOS, Antonio Jeová. Dano moral indenizável. 4ª ed. rev. ampl. e atual. de acordo com o novo código civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 81. 75 Cf. FISCHER, Hans Albrecht. A reparação dos danos no direito civil. Trad. Antônio de Arruda Ferrer Correia. São Paulo: Saraiva, 1938, p. 240, SANTOS, Antonio Jeová. Dano moral indenizável. 4ª ed. rev. ampl. e

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aos direitos da personalidade76. Nesse período republicano, quando havia um

delictum, ocupava-se já a novel figura do pretor (político nomeado para tutelar a

jurisdição77) de fazer nascer a actiones pœnales, cujo fim natural era o

estabelecimento ou não de uma pœna78. Ou seja, as conseqüências jurídicas

desses delicta tinham em primeira linha a cominação de algum mal ao infrator,

sendo a reparação do dano patrimonial algo que figurou no segundo plano79.

Nota-se que a vingança privada ainda prevalecia, mas já era restrita à

pena máxima de Talião, além de depender da obtenção de uma decisão neste

sentido, o que não ocorria antes80. Assim, além de subtrair do lesado o arbítrio

irrestrito da consecução da vingança, ainda estabelecia-se a iurisdictio,

distribuída em várias magistraturas e potestades públicas cujas atribuições se

davam pela localidade81.

E embora o costume continuasse a ser a fonte do ius mais preponderante82,

a Lex Duodecim Tabularum, no que tratou, representa notável desenvolvimento

que o romano da República começa a consolidar frente aos seus antepassados.

Baseado na legislação helênica Sólum83 (que mitigava as regras sobre dívidas

que chegavam até a escravidão84) deixa de ser “ a posteriori, casuístico,

atual. de acordo com o novo código civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 81, e SILVA, Wilson Melo da. O dano moral e sua reparação. 2ª ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 1969, p. 30. 76 Cf. SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da Personalidade e sua Tutela. 2ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 31 / 32, FIUZA, César; GAMA, André Couto e. Teoria geral dos direitos da personalidade. In FIUZA, César (coord.) Curso avançado de direito civil. Vol. II. São Paulo: IOB, 2007, p. 10, SÁ, Maria de Fátima Freire de. Biodireito e direito ao próprio corpo: doação de órgãos, incluindo o estudo da lei n. 9.434/97, com as alterações introduzidas pela lei n. 10.211/01. 2ª ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 22. 77 Cf. KASER, Max. Direito privado romano. Trad. Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämmerle. Rev. Maria Armanda de Saint-maurice. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p. 33. 78 Cf. MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. 6ª ed. rev. e acresc. Rio de Janeiro: Forense, 2000, Vol. II, p. 224. 79 Cf. KASER, Max. Direito privado romano. Trad. Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämmerle. Rev. Maria Armanda de Saint-maurice. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p. 281. 80 CAPELO DE SOUSA, Rabindranath V. A. O Direito Geral de Personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 49. 81 Cf. FIUZA, César. A evolução da jurisdição em Roma sob o prisma da competência. In FIUZA, César (Coord.). Direito processual na história. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 60. 82 Cf. MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 2000, Vol. I, p. 22. 83 Cf. MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 2000, Vol. I, p. 24. 84 Cf. COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 299.

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empírico, pluralista e concreto e passa a ser apriorístico, genérico, mais

científico, monista e abstrato85”.

Sucedeu-se, assim, a idéia de composição à retaliação, reparando-se o

dano através de uma prestação da pœna, “espécie de resgate da culpa, pelo qual

o ofensor adquire o direito ao perdão do ofendido86”. Assim, e com o tempo, os

valores estabelecidos na Lex Duodecim Tabularum passaram a não refletir as

expectativas, tendo os pretores passado a utilizar a fórmula actio iniuriarm

æstimatoria87. Tal ação pretoriana carregava essa denominação porque

prescindia, justamente, da estimativa, feita pelo ofendido sob juramento, do

dano sofrido, e a reparação era, conseqüentemente, uma soma em dinheiro88.

O último enfoque sobre a liberdade dos antigos segue o longo período

que vai de fins da res publica, ultrapassa o Alto Império e chega ao final da era

Antiga. Trata-se da dicotomia do binômio público / privado, que realmente se

possibilita compreender o que era liberdade para o antigo. MARCO TÚLIO

CÍCERO, que não conheceu a época cristã, teria primeiramente abordado o tema

em uma de suas sustentações89 e, mais tarde, seguiu-se a lição de ULPIANO

(jurista do Séc. III90), explicitamente apoderada no Digesto de JUSTINIANO

(Séc. VI) e que comprova o uso da referida dicotomia (agora na forma mais

preponderante de lex) no último período da Roma Antiga (segundo a divisão da

85 Cf. FIUZA, César. Algumas linhas de processo civil romano. In FIUZA, César (Coord.). Direito processual na história. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 16. 86 Cf. DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1954, Tomo I, p. 27. 87 Cf. SANTOS, Antonio Jeová. Dano moral indenizável. 4ª ed. rev. ampl. e atual. de acordo com o novo código civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 81. 88 Cf. SILVA, Wilson Melo da. O dano moral e sua reparação. 2ª ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 1969, p. 30 / 31. 89 “Scripturum autem privatum aliud est publicum aliud. Publicum: Lex senatus consulta foedus; privatum: tabulae, pactum conventum, stipulatio”. Trad. “Dos escritos, há o que é privado, há o que é público. Público: lei, senatus-consultos, tratado; privado: contrato, pacto adjunto, estipulação” em SURGIK, Aloísio. Anotações histórico-críticas em torno do binômio Direito Público-Direito Privado. Em DIAS, Adahyl Lourenço et al. Estudos em homenagem ao professor Washington de Barros Monteiro. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 30, e FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 134. 90 Cf. ULPIANO. Regras de Ulpiano. Trad. Gaetano Sciascia. São Paulo: Edipro, 2002, p. 17.

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história interna do direito romano, chamado ora de Pós-Clássico, ora de

Romano-helênico devido às influências gregas)91:

D.1.1.1.2: Huius studii duae sunt positiones, publicum et privatum. Publicum ius est quod ad statum rei Romanae spectar, privatum quod ad singulorum utilitatem: sunt enim quedam publice utilia, quaedam privatim. Publicum ius in sacris, in sacerdotibus, in magistratibus constitit. Privatum ius tipertitum est: collectum etenim est ex naturalibus praeceptis aut gentium aut civilibus92.

A embrionária e inicial teorização da dicotomia seguiu um longo período

da história da Antigüidade itálica93, notadamente dependente do conhecimento e

uso da dialética, ou “arte do diálogo94” . Ressalta-se que o uso da dicotomia

nessa etapa final da Antigüidade não fez com que o romano entendesse que o ius

se fizesse ora público, ora privado. O antigo chefe de família que exercia nesta o

seu domínio só conhecia lex e jus dentro da esfera pública95. Todo o ius se fazia

público96 via atividade denominada ação97 e se fundamentava no culto à polis.

Mas pela teorização via dicotomia já era possível oferecer critérios de distinção

91 Período que se compreende entre 235 d.C. a 565 d.C., e caracterizado pela elaboração contundente de leis pelos imperadores, cf.. MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 2000, Vol. I, p. 71. 92 “São dois os temas deste estudo: o público e o privado. Direito público é o que se volta ao estado da res Romana, privado o que se volta à utilidade de cada um dos indivíduos, enquanto tais. Pois alguns são publicamente, outros particularmente. O direito público se constitui nos sacra, sacerdotes e magistrados. O direito privado é tripartido: foi, pois, selecionado ou de preceitos naturais, ou cíveis, ou das gentes”. Tanto o original em latim quanto a proposta de tradução foram retirados de JUSTINIANO. Digesto de Justiniano, líber primus: introdução ao Direito Romano. Trad. Hélcio Maciel França Madeira. 3ª ed., rev. da tradução. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 17/18. 93 Cf. SURGIK, Aloísio. Anotações histórico-críticas em torno do binômio Direito Público-Direito Privado. Em DIAS, Adahyl Lourenço et al. Estudos em homenagem ao professor Washington de Barros Monteiro. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 30, e FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 134. 94 LOCHE, Adriana et. Al. Sociologia Jurídica. Proto Alegre: Síntese, 1999, p. 18. 95 Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 44. 96 Cf. SURGIK, Aloísio. Anotações histórico-críticas em torno do binômio Direito Público-Direito Privado. Em DIAS, Adahyl Lourenço et al. Estudos em homenagem ao professor Washington de Barros Monteiro. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 33. 97 Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 15.

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para diferentes situações encontradas na praxis romana98, notadamente limitada

a diferenciações dentro da ordem formal, mas caminharia, ao final da

Antigüidade, para uma distinção material com base no objeto o qual a norma

pública incidiria99.

De qualquer maneira, tornou-se possível, junto aos itálicos antigos, o

estabelecimento de que toda personæ se encontrava adstrita ao campo do privus

– privado. Esse vocábulo latino significava, grosso modo, ser privado de, e por

isso era um adjetivo, caracterizando a submissão do homem às intempéries da

natureza e sua coação derivada da necessidade de buscar os meios de

subsistência via atividade denominada labuta100. Trata-se da atividade vital para

a própria vida. Nele, as personæ se viam privadas até mesmo das mais

“humanas” capacidades e, mesmo, virtudes do homem101. Ao que parece,

designa o homem em sua essência e é justamente por isso que persona se

equipara, como dito, a ser humano. Ter ou não status libertatis, status civitatis

ou status familiæ não afasta, assim, o privus, pois todos eram personæ. A

simples confirmação dos requisitos nascer com vida, apresentar vida intra-

ulterina, possuir forma humana e, mais discutido na doutrina, ter vitalidade102,

implica no reconhecimento da persona, mas não a civitas, não a verdadeira

liberdade romana. Tratava-se, neste contexto, de duas ordens de existência,

onde a segunda se manifestava publicisticamente, não estando ao alcance de

toda a personæ, mas sim adstrito àqueles que alcançavam o status civitatis e,

assim, governando-se mutuamente103. Nota-se que a dicotomia que se

98 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 134. 99 Cf. SURGIK, Aloísio. Anotações histórico-críticas em torno do binômio Direito Público-Direito Privado. Em DIAS, Adahyl Lourenço et al. Estudos em homenagem ao professor Washington de Barros Monteiro. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 33. 100 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 135. 101 Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 48. 102 Cf. MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 2000, Vol. I, p. 92. 103 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 23.

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estabeleceu implica na distinção entre público e privado em relação à liberdade

como a que os romanos a conheciam e - como praticamente tudo em Roma

antiga - a razão de ser era religiosa:

Não havia um único ato da vida pública em que não fizesse intervir os deuses (...). Assim, tanto em paz como em tempos de guerra, a religião intervinha sempre em todos os atos da vida do homem. Estava em toda a parte, e envolvia inteiramente o homem. A alma, o corpo, a vida privada, a vida pública, as refeições, as festas, as assembléias, os tribunais, os combates, tudo estava sob o julgo desta religião da cidade. A religião regulava as menores ações do homem, dispunha de todos os momentos da sua existência, determinava todos os seus hábitos. Governava o ser humano com autoridade tão absoluta que coisa alguma ficava fora do seu poder104.

Assim, o status de persona era necessariamente contextualizado junto ao

privius e, por isso, posto na literal posição de privado, enquanto, no exercício da

atividade público-religiosa, o romano alcançava uma segunda ordem de

existência, colocando-se entre os seus iguais - status civitatis - “sendo livre a

sua atividade 105”.

Personæ é ser humano, e ser humano apenas alcança a liberdade dos

antigos (que é diferente de status libertatis) alcançando o status civitatis, e a

dicotomia estabelecida entre privado e público abarca esta idéia:

“Quando Ulpiano, pois, distinguia entre jus publicum e jus privatum certamente tinha em mente a distinção entre a esfera do público, enquanto lugar da ação, do encontro dos homens livres que se governam, e a esfera do privado,

104 COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 175/179. 105 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 23.

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enquanto lugar do labor, da casa, das atividades voltadas à sobrevivência106”.

Tal assertiva pode ser subtraída à dúvida para uma confirmação, cuja

resposta repousa na relação da personæ com suas atividades. No reino da

necessidade, o ser humano é colocado numa situação em que tem que

sobreviver, seja se alimentando, repousando, etc., e para isto fica obrigado a

exercer alguma atividade que lhe satisfaça a falta, denominada, como já fora

adiantado, labor ou labuta107. Corresponde ao próprio processo biológico do

corpo físico humano (processo biológico), onde a “condição humana do labor é

a própria vida108”. Labutar não era o mesmo que trabalhar. Deste há uma

produção artificial de coisas, uma fabricação de infinita variedade, tudo

consoante a categoria dos meios e fins, tendo-se por artífice o homo faber109.

Aquele, diferentemente, tinha por lugar o lar, local em que todos, inclusive o

pater famílias, se encontravam sob a coação da necessidade (privus) e apenas se

libertavam desta se alcançassem o privilégio contido na outra ordem existencial,

que era a polis ou civitas110. Ou seja, o animal laborans se restringia a uma

atividade fútil e fugas enquanto o politikon zoon (termo aqui emprestado dos

gregos) desfrutava da verdadeira dignidade no exercício da cidadania, que se

chamava ação (política):

Uma vez obtida, a cidadania romana trazia consigo privilégios legais e fiscais importantes, permitia a seu portador o direito e a obrigação de seguir as práticas legais do direito romano em contratos, testamentos, casamentos, direitos de propriedade e de guarda de indivíduos sob sua

106 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 135. 107 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 23. 108 ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 15. 109 Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 149 e 150. 110 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 23.

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tutela (como as mulheres da família e parentes homens com menos de 25 anos) 111.

Nestes termos, o romano antigo conhecia a labuta, a ação e o trabalho (a

compor a vita activa112), todos estes diferentes entre si e o último caracterizado

por uma atividade com termo previsível e relação de meio e fim113, dado de

especial importância para a contextualização social entre a Idade Média e a

Modernidade.

Afora o binômio público e privado já delineado, é de se ressaltar que os

romanos não conheceram a dicotomia dos delitos públicos e delitos privados,

tanto por se tratarem de um povo muito mais da praxe do que da abstração114,

quanto por não distinguir pena de indenização115. Ou seja, o latim in dene, que

significa devolver – o patrimônio – ao seu estado anterior, equivalia a pœna116.

Mas desenvolveram alguns delicta que não caracterizavam a violação de normas

da polis, mas sim a ofensa à personæ ou aos seus bens117, e justamente aqui que

reside o germe da responsabilidade civil, de especial apreço aos vindouros

danos morais.

111 PINSKY, Jaime et al. História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2003, p. 66. 112 Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 15. 113 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 24. 114 Cf. TUHR, Andreas Von. Derecho civil: teoria geral Del derecho civil aleman. Trad. Tito Ravà. Vol. II. Buenos Aires: Depalma, 1946, p.71, KASER, Max. Direito privado romano. Trad. Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämmerle. Rev. Maria Armanda de Saint-maurice. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p. 215 e FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 59. 115 Cf. FISCHER, Hans Albrecht. A reparação dos danos no direito civil. Trad. Antônio de Arruda Ferrer Correia. São Paulo: Saraiva, 1938, p. 237, e KASER, Max. Direito privado romano. Trad. Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämmerle. Rev. Maria Armanda de Saint-maurice. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p. 209. 116 MORAES, Maria Celina Bodin. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 145. 117 Cf. MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. 6ª ed. rev. e acresc. Rio de Janeiro: Forense, 2000, Vol. II, p. 223/224, e CRETELLA JÚNIOR, J. Curso de Direito Romano: o direito romano e o direito civil brasileiro. Rev. e Aum. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 301.

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Esses delicta podem ser divididos em civis e pretorianos, sendo que

dessas classes tem-se a injuria, o furtum e o damnum injuria datum na primeira

e vis, o dolus e a fraus na segunda118.

Com o tempo, o que se observou foi uma tendência de separação, dentre

os itálicos antigos, da actiones pœnales das rei persecutoriae, ficando aquela

para a proteção dos bens jurídicos imateriais e estas a assinalar a única função de

indenizar o patrimônio danificado119. E quanto às actiones pœnales, os pretores

entendiam que, além da concessão ao lesado de uma quantia pecuniária –

indenizando-lhe pelo mal sofrido - ainda determinavam ao culpado que

prestasse, às suas expensas e em patente detrimento, este benefício120.

Da Lei Aquília (possivelmente editada no Séc. III a.C.121), extraem-se os

elementos fundantes tanto da jurisprudência moderna sobre a injúria quanto da

doutrina, de mesmo período, sobre culpa aquiliana122. E o damnum injuria

datum, terceiro e último capítulo da referida legislação antiga, oferecia um

alcance mais ampliado de tutela, estendendo-se a lesão a escravo ou animais e,

ainda, lesão de coisas corpóreas123:

Foi trabalho da jurisprudência dilatar o campo de aplicação do damnum injuria datum. A ação que assistia somente ao proprietário da coisa destruída ou deteriorada, quando cidadão romano, foi, graças àquela influência, sucessivamente ampliada aos titulares de outros direitos reais e aos peregrinos. Os casos de aplicação, por igual, logo exorbitaram dos textos, por extensão aos ferimentos produzidos em homens livres e a quaisquer danos irrogados

118 Cf. CRETELLA JÚNIOR, J. Curso de Direito Romano: o direito romano e o direito civil brasileiro. Rev. e Aum. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 306. 119 Cf. FISCHER, Hans Albrecht. A reparação dos danos no direito civil. Trad. Antônio de Arruda Ferrer Correia. São Paulo: Saraiva, 1938, p. 240. 120 Cf. FISCHER, Hans Albrecht. A reparação dos danos no direito civil. Trad. Antônio de Arruda Ferrer Correia. São Paulo: Saraiva, 1938, p. 240. 121 Cf. MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. 6ª ed. rev. e acresc. Rio de Janeiro: Forense, 2000, Vol. II, p. 234. 122 Cf. DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1954, Tomo I, p. 28. 123 Cf. DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1954, Tomo I, p. 28.

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às coisas em geral, contemplando os imóveis e atos instrumentários, na ausência de outro meio de prova124.

Nas Regras de ULPIANO do Séc. III d.C. a iniuria ou era levis ou

atrox125, e sendo esta última, era avaliada a arbítrio do pretor que analisaria os

fatos, v.g., se houve ferimento, uso de armas, morte, entre outros, decidindo o

conflito:

Iniuria si quidem atrox (id est, gravis) non est, non sine judicis arbitrio aestimatur. Atrocem autem aestimare solere praetorem: idque colligi ex facto, ut puta si verberatus vel vulneratus quis fuerit126.

Mas apenas no período Justinianeu (Séc. VI d.C.) que o dano,

considerado como corpore corpori datum, que exigia contato material entre o

autor do dano e a coisa por ele atingida, passou também a ser damnum non

corpore datum127, notadamente flexibilizando o antigo requisito.

Há de se ressaltar que esta última fase romana representou momento de

transição entre a era Antiga e a Medieval, contendo o germe do

comprometimento dos antigos costumes: o cristianismo. Essa nova religião de

um único Deus manifestado em três pessoas – Pai, Filho e Espírito Santo (cf.

Concílio de Nicéia) - nos primeiros três séculos da era Cristã, desenvolveu-se

lentamente e seus adeptos, quando não tratados com indiferença, sofriam

perseguição128. Contudo, a partir do Edito de Tolerância promulgado por

CONSTANTINO aos 312 d.C., o cristianismo passou a ser visto não mais como 124 Cf. DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1954, Tomo I, p. 29. 125 Cf. SILVA, Wilson Melo da. O dano moral e sua reparação. 2ª ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 1969, p. 30. 126 “Não sendo atrox, i.d., grave, a injúria é avaliada a arbítrio do juiz. A grave constuma ser avaliada pelo pretor; ele se baseia em fatos; por exemplo, se alguém foi chicoteado ou ferido”. Texto itálico e sugestão de tradução em ULPIANO. Regras de Ulpiano. Trad. Gaetano Sciascia. São Paulo: Edipro, 2002, p. 123. 127 Cf. DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1954, Tomo I, p. 29. 128 Cf. FALCO, Giorgio. The holy Roman republic: a historic profile of the middle ages. Translated by K. V. Kent. London: Geroge Allen & Unwin Ltd, 1954, p. 20, e LOYN, Henry R. (org.). Dicionário da Idade Média. Trad. Álvaro Cabral; Ver. Téc. Hilário Franco Júnior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 107.

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seita (por vezes perigosa), mas como religião respeitada e corrente129. E com

tudo isso, o cidadão romano, no final da primeira era, já não tinha a disciplina de

seus antepassados, como pode servir de ilustração o fato de que o exército de

Roma já contava com nove décimos de mercenários estrangeiros130. Mais que

isso, este exército se voltava, essencialmente, para a contenção da guerra civil

interna que eclodia e massacrara, naquela época, mais de quinze mil soldados131.

E a situação frente aos escravos também mudou nesta época, não apenas pela

influência estóica (notadamente pelo desprezo pelos males físicos e rigidez

quanto ao que entendiam por princípios morais), mas também porque a

população escrava, que antes do Império era formada praticamente por inimigos

vencidos, passava a apresentar por maioria os nascidos com esse status132. A

influência do cristianismo no direito romano do dominato – Baixo Império (séc.

III d. C.) - já era evidente133 e, a partir do Imperador Constantino, passara a

religião oficial em 313 d.C134.

Assim, a maioria da teorização sobre o ius civile (a abarcar os novos

ideais) que se pôde alcançar nessa sociedade primitiva se encontra ao fim de sua

história, sobretudo no Baixo Império, último período a separar a Antigüidade da

Idade Média, tendo as INSTITUTAS (533 d.C.) expressamente evidenciado a

importância do estudo da personæ para o ius:

129 Cf. LOYN, Henry R. (org.). Dicionário da Idade Média. Trad. Álvaro Cabral; Ver. Téc. Hilário Franco Júnior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 107. 130 Cf. NETO, Francisco Quintanilha Véras. Direito Romano Clássico: Seus institutos jurídicos e seu legado. Em WOLKMER, Antônio Carlos (org.). 2ª ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 139. 131 Cf. NETO, Francisco Quintanilha Véras. Direito Romano Clássico: Seus institutos jurídicos e seu legado. Em WOLKMER, Antônio Carlos (org.). 2ª ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 139. 132 Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 46. 133 Cf. MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 2000, Vol. I, p. 51. 134 Cf. NETO, Francisco Quintanilha Véras. Direito Romano Clássico: Seus institutos jurídicos e seu legado. Em WOLKMER, Antônio Carlos (org.). 2ª ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 140. Há o entendimento que Constantino apenas fora batizado cristão aos 337 d.C., Cf. GAVAZZONI, Aluísio. História do Direito; dos sumérios até a nossa era. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 47.

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I,1,12: Et primus de personis videamus. Nam parum est jus nosse, si personae, quarum causa constitutum est, ignorentur135.

Com a ponderação das idéias até aqui apresentadas, parece sensato, por

não excessivo, concluir-se que o vocábulo persona não apresenta a mesma carga

semântica que há no termo pessoa da contemporaneidade por possuir uma

essencialidade prática ao invés de abstrata136. Da mesma forma, pode-se

observar a peculiaridade da liberdade dos antigos. Se hoje alguns afirmam ser

assegurada a todos nascidos a qualidade de pessoa, ou seja, “a possibilidade de

ser sujeito de direito137”, por certo, tal não pode ser dito sobre os romanos, os

quais só conheciam a liberdade com a participação no culto da cidade, como

cidadão, como civitatis.

Contudo, e sem dúvida, foi aquela sociedade primitiva (juntamente com

as contribuições helenísticas) quem proveu a base inicial e embrionária

necessária para o surgimento, sedimentação e desenvolvimento dos direitos da

personalidade e de uma série de institutos que os cercam no período mais

recente da história, seja pela formulação do termo persona para designar ser

humano, o aprimoramento de regras sobre nome, o estabelecimento do primeiro

estágio de desenvolvimento da ordem dicotômica público / privado, a teorização

sobre o nascimento e a morte, a consolidação da idéia de liberdade (dos antigos)

ou, ainda, pela diferenciação entre labuta, ação e trabalho. E sobre os danos

morais, também se inclina para o entendimento de que não ocorreu, na

Antigüidade romana, sequer a sua teorização, sobretudo por ter o itálico da

primeira era desenvolvido um rudimentar sistema de delictum e pœna, sequer

mencionando o termo danos morais. Mas foi pelo desenvolvimento da

135 “Vejamos antes as pessoas, pois é conhecer pouco o direito, se desconhecemos as pessoas, em razão das quais ele foi constituído”, Trad. Sugerida por CRETELLA JÚNIOR, J. Curso de Direito Romano: o direito romano e o direito civil brasileiro. Rev. e Aum. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 83. 136 Cf. AMARAL, Francisco, Direito Civil: introdução, 6a ed., rev., atual. e aum., Rio de Janeiro, Renovar, 2006, p. 276. 137 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Atual. Vilson Rodrigues Alves. 1ª ed. São Paulo: Bookseller, 1999, Tomo I, p. 207.

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responsabilização pessoal que, mais tarde, viria se sustentar a responsabilidade

civil da contemporaneidade. Deduz-se, assim, que a era Antiga representa o

momento histórico de surgimento rudimentar dos principais elementos a compor

o objeto do presente trabalho. Mas as condições para se alcançar os direitos da

personalidade dependem, ainda, de um longo caminho a se percorrer.

2.2 Idade Média

O fim dos quase doze séculos (753 a.C. a 476 d.C.138) da Antigüidade

romana para a entrada de uma nova etapa histórica que percorreu quase um

milênio e findou em 1453 com a queda de Constantinopla139 merece, antes de

tudo, uma análise de sua transição.

O que já foi dito, e deve ser evidenciado, é que os antigos costumes

romanos relativos ao culto dos ancestrais, da casa (religião doméstica) e da polis

já se encontravam abalados desde o Séc. III d.C., sobretudo a partir do Edito de

Tolerância (312 d.C.) de CONSTANTINO, onde o cristianismo alcançou o

status de religião140, mais evidenciado ao longo do período denominado Baixo

Império e cujo marco de desintegração fora o ano de 476 d.C. (fim do Império

Romano do Ocidente).

A velha religião romana, que criava o Direito, estabelecendo a relação

entre homens, a posição destes frente à propriedade, ao processo, etc., tudo

regulado de modo a atender àquele dogma, não era inclusiva, mas, pelo

138 Cf. MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 2000, Vol. I, p. 01. 139 Cf. CRETELLA JÚNIOR, J. Curso de Direito Romano: o direito romano e o direito civil brasileiro. Rev. e Aum. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 77, e LOYN, Henry R. (org.). Dicionário da Idade Média. Trad. Álvaro Cabral; Ver. Téc. Hilário Franco Júnior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 118. 140 Cf. FALCO, Giorgio. The holy Roman republic: a historic profile of the middle ages. Translated by K. V. Kent. London: Geroge Allen & Unwin Ltd, 1954, p. 20, e LOYN, Henry R. (org.). Dicionário da Idade Média. Trad. Álvaro Cabral; Ver. Téc. Hilário Franco Júnior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 107.

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contrário, segregacionista. Neste tocante, ou a personæ gozava do status civitatis

e, portanto, verdadeiramente livre (liberdade dos antigos), ou ficava submetida

às privações, adstritas à ordem existencial do privus.

Era neste contexto que a jovem Igreja Católica (e demais comunidades

cristãs, como o judaísmo e o islamismo) se inseria e se desenvolvia, oferecendo

novas e revolucionárias doutrinas que cativavam justamente os excluídos do

status civitatis141:

O cristianismo ensinava ao homem que só pertencia à sociedade por uma parcela da sua personalidade, que não estava sujeito à sociedade senão pelo seu corpo e pelos seus interesses materiais, e que vassalo de um tirano, deve submeter-se, cidadão de uma república, deve dar a vida por ela, mas que, quanto à sua alma, o Homem é livre e só a Deus pertence142.

Se para o romano a religião, o Direito e o governo eram senão ângulos do

mesmo prisma143, para os cristãos o culto era completamente desassociado da

governança e, portanto, pregava-se a desnecessidade do exercício da cidadania

(ação) para que se preste adoração e homenagem a Deus, o que permitiu uma

“distinção decisiva e fundamental entre a esfera da política e da religião144”.

Nota-se que os princípios eram de tal forma antagônicos que não era possível

141 Cf. ISHAY, Micheline R. (org). Direitos humanos: Uma antologia – principais escritos políticos, ensaios, discursos e documentos desde a bíblia até o presente. Trad. Fábio Duarte Joly. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência (NEV), 2006, p. 18, e NETO, Francisco Quintanilha Véras. Direito Romano Clássico: Seus institutos jurídicos e seu legado. Em WOLKMER, Antônio Carlos (org.). 2ª ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 140. 142 COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 448. 143 Cf. COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 442. 144 FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 62. No mesmo sentido, COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 447, e FALCO, Giorgio. The holy Roman republic: a historic profile of the middle ages. Translated by K. V. Kent. London: Geroge Allen & Unwin Ltd, 1954, p. 22.

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para o cidadão e para o cristão conciliarem suas crenças145, posto que uma era

excludente da outra.

Assim, se a religião doméstica é hermética, fechada na família, o

cristianismo é universal e, de pouco em pouco, vai contribuindo com a

modificação da sociedade de modo a retirar paulatinamente a forte e íntima

ligação entre o culto (antigo), política e Direito. Da indivisibilidade veio a

independência, resultado natural do abandono contínuo da religião doméstica146,

já que era o culto quem sustara o Direito e o governo (política), e do seu fim

tem-se a ruína de todo o sistema, alcançando-se, assim, a ruína da liberdade dos

antigos.

Ressalta-se que a idéia de universalização da religião proposta pela Igreja

Cristã representou algo de novo, inesperado, extraordinário e, mesmo,

revolucionário, já que rompia drasticamente com o que fora conhecido pelos

antigos os quais, mesmo dentre os apóstolos, chegaram inicialmente a hesitar em

propagar a nova doutrina junto a outros povos147. E este dado é interessante

porque reflete o sentimento dos antigos, que protegiam a sua religião contra

todos os estrangeiros. Era o início da aplicação da doutrina que viria estabelecer

o fim do privilégio ao culto através de um Deus aberto ao recebimento de

homenagens de todos os homens, indistintivamente. Mais do que isso, criava

uma embrionária doutrina acerca da liberdade individual ao permitir que os

homens se autogovernassem sem que tais atos se dessem em conformidade com

os antigos cultos, restituindo o homem a si mesmo148. A persona, que se via

presa junto ao privus, começava a perceber nas novas doutrinas (v.g.

ontológicas) elementos para experimentar uma liberdade que nem mesmo

145 Cf. FALCO, Giorgio. The holy Roman republic: a historic profile of the middle ages. Translated by K. V. Kent. London: Geroge Allen & Unwin Ltd, 1954, p. 20. 146 COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 443. 147 COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 444. 148 Cf. COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 448.

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aqueles com status civitatis conheceram. Era a idéia (rudimentar) de

individualidade que surgia, onde persona passaria, após longo estágio de

amadurecimento, a designar o “próprio indivíduo que representava149” . E mais

importante, a tendência humanista da consolidação da religião cristã e supressão

da religião doméstica se apresenta como a base histórica dos direitos

humanos150, que costumam ser entendidos pela ótica jusnaturalista como

aqueles direitos cuja validade alcança todas as pessoas e povos, em qualquer

tempo e, por isso mesmo, sequer necessitam de constar em textos legislativos151.

Mas a embrionária doutrina do cristianismo, que prezava a igualdade

entre todos os seres humanos (feitos à imagem e semelhança de Deus) recebeu

do feudalismo uma recepção, no mínimo, diferenciada. Isto porque este regime

(que teria se iniciado na França do Séc. IX, espalhando-se pela Europa e se

extinguindo ao longo do Séc. XVI152) não se baseava na igualdade, mas sim na

relação de dependência e subordinação, o que fazia a doutrina abarcar (contrário

sensu) a idéia de diferença153. Diferença esta distribuída na Europa ocidental

através dos múltiplos e pequenos feudos cuja relação senhor - vassalo

fortemente abrigavam154. E um dos imperadores germânicos das terras que se

estendem da Itália à Alemanha fora OTO III (983 a 1002 d.C.155), o qual teria

desenvolvido exponencialmente o feudalismo a partir do momento em que

introduziu a própria Igreja Católica na sua estrutura, criando um elo entre

149 GOMES, José Jairo. Direito Civil: introdução e parte geral. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 137. 150 Cf. ISHAY, Micheline R. (org). Direitos humanos: Uma antologia – principais escritos políticos, ensaios, discursos e documentos desde a bíblia até o presente. Trad. Fábio Duarte Joly. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência (NEV), 2006, p. 16. 151 RIBEIRO, Marcos Vinicius. Direitos humanos e fundamentais. 1ª ed. Campinas: Russell Editores, 2007, p. 14. 152 Cf. LOYN, Henry R. (org.). Dicionário da Idade Média. Trad. Álvaro Cabral; Ver. Téc. Hilário Franco Júnior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 145. 153 Cf. CHAPARRO, Enrique Ramos. La Persona e Su Capacidad Civil. Madri: Editorial Tecnos, 1995, p. 60, e COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 448. 154 Cf. MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. Direito romano e seu ressurgimento no final da idade média. Em WOLKMER, Antônio Carlos (org.). Fundamentos de história do direito. 2ª ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 196. 155 Cf. LOYN, Henry R. (org.). Dicionário da Idade Média. Trad. Álvaro Cabral; Ver. Téc. Hilário Franco Júnior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 282.

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papado e império156. Fez valer, justamente, a idéia de individualismo frente à

sociedade e sujeição frente ao imperador.

O panorama aponta, após o declínio do Império Romano da Antigüidade,

para uma distinção entre a esfera religiosa e política157, tendo a herança

espiritual se desprendido por completo da cidadania e sido capturada pela Igreja

Católica (e demais comunidades cristãs). Assim, um mesmo solo foi palco tanto

da sucumbência de um Império que reuniu, de forma unitária, Direito, política e

religião, quanto daquilo que reinou absoluto no terreno do culto e fez

compartilhar Direito e política. Ao que parece, a universalidade do Império

Romano foi substituída por outra universalidade, como dito, da Igreja158. E a

tudo isso se junta, ainda, o ius civile romano, que se manteve como Direito das

populações latinas, sobretudo da Itália, Gália (atual França) e Espanha159. O

itálico medievo, assim, manteve consigo o ius civile, mas certamente observou-o

sob o novo paradigma estabelecido:

O direito, assim, não perde o seu caráter sagrado. Adquire, porém, uma dimensão de sacralidade transcendente, pois de origem externa à vida humana na Terra, diferente da dos romanos, que era imanente (caráter sagrado – mítico – da fundação)160.

Este é um período, grosso modo, de institucionalização do sistema da

vingança privada161, fixando-se a pena pecuniária referente a cada delito

patrimonial tomando-se por base o valor da coisa, antes de ser deteriorada,

156 Cf. FALCO, Giorgio. The holy Roman republic: a historic profile of the middle ages. Translated by K. V. Kent. London: Geroge Allen & Unwin Ltd, 1954, p. 181. 157 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 62. 158 Cf. FALCO, Giorgio. The holy Roman republic: a historic profile of the middle ages. Translated by K. V. Kent. London: Geroge Allen & Unwin Ltd, 1954, p. 20. 159 Cf. MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. Direito romano e seu ressurgimento no final da idade média. Em WOLKMER, Antônio Carlos (org.). Fundamentos de história do direito. 2ª ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 196. 160 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 63. 161 SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da Personalidade e sua Tutela. 2ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 34.

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perdida ou destruída, multiplicando-o por determinado fator162. Este era o

caminho das legislações germânicas que a todas as outras contaminava,

enfatizando o status, o wergeld (preço do sangue) e a vendeta163. Assim, se é

certo que o medievo colheu os ensinamentos que compunham a idéia de

spondeo, também souberam desenvolver e, mesmo criar novos termos a abarcar

aquela nova realidade. Fala-se do surgimento do termo responsabilitas, de

origem cristã e que vai se aproximar em muito da idéia moderna de

responsabilidade civil164. Contudo, apresentava-se, como próprio do canonismo,

a partir de uma moral voltada para o sacro, e este é o ponto que afasta

responsabilitas de responsabilidade civil. Ou seja, o simples fato ocorrido

contra o Direito não é o único determinante da culpa, já que há uma regra de

conduta a se pautar segundo os costumes da sociedade cristã165.

E embora os historiadores iluministas do Séc. XIX tenham procurado

definir a Idade Média como a “idade das trevas”, foi nela que a idéia de Europa

(entidade geográfica e historicamente situada a se distinguir da Ásia) se tornou

uma possibilidade, sobretudo com base em uma consciência comum provida

pelo cristianismo166. Também não se pode afastar o reconhecimento de que a

Universidade como instituição foi criação do medievo, e que uma das

conseqüências iniciais foi a quebra do monopólio clerical sobre a educação167.

Assim, das primeiras universidades que se formavam na Europa e que se

firmava como centro de Direito foi a de Bolonha, na Itália do Séc. XI, e

inicialmente conhecida como Escola dos Glosadores (denominação que seguiu

162 FISCHER, Hans Albrecht. A reparação dos danos no direito civil. Trad. Antônio de Arruda Ferrer Correia. São Paulo: Saraiva, 1938, p. 238. 163 Cf. CHAPARRO, Enrique Ramos. La Persona e Su Capacidad Civil. Madri: Editorial Tecnos, 1995, p. 61, e LOYN, Henry R. (org.). Dicionário da Idade Média. Trad. Álvaro Cabral; Ver. Téc. Hilário Franco Júnior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 119. 164 Cf. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes. Responsabilidade pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 58. 165 Cf. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes. Responsabilidade pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 59. 166 Cf. LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da europa. Trad. Jaime A. Clasen. Rio de Janeiro: Vozes, 2007, p. 11 e 12. 167 Cf. LOYN, Henry R. (org.). Dicionário da Idade Média. Trad. Álvaro Cabral; Ver. Téc. Hilário Franco Júnior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 350/351.

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até final do Séc. XIII)168. Trata-se do que FRIEDRICH CARL VON SAVIGNY

(1779-1861) denominaria de marco inicial da história da interpretação,

caracterizada muito mais pela dedicação do que pela técnica e conhecimento169,

já que interpretavam sem qualquer aprimoramento metodológico os textos

copilados por JUSTINIANO, que passaria a ser denominado como Corpus Juris

Civilis170. A partir de então, e com o desenvolvimento das técnicas de

hermenêutica, o ius civile passaria, cada vez mais, a se portar como Direito

europeu.

Neste contexto e a partir do legado de seus antepassados, o romano da

Idade Média trouxe ao mundo o vocábulo personalitas, cuja etimologia indica

que sua raiz se encontra na palavra persona e teria, após complexos debates

escolásticos sobre a Trindade, resultado nos significados de qualidade

generalizada de ser pessoa e não coisa, o de humanidade e, ainda, o sentido de

pertences de uma pessoa171. A polissemia do termo do latim medieval destaca

um sentido de especial relevância para o surgimento futuro dos direitos da

personalidade e, mesmo, para o dos danos morais, caracterizado pela dicotomia

que estabeleceu, assim, que ou algo é uma coisa ou é uma pessoa e, se não é

coisa, necessariamente possui a personalitas172.

Conclui-se que personalitas se portou, junto aos eclesiásticos, como uma

qualidade geral para outra qualidade específica que é personæ e, diga-se de

passagem, mantiveram-se os vocábulos sem qualquer cunho jurídico.

A construção milenar salta aos olhos: do mero uso do nome, limitado ao

concreto, como forma de solução prática das situações sociais passa-se para a

168 Cf. MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 2000, Vol. I, p. 57/58. 169 Cf. VON SAVIGNY, Friederich Carl. Metodología jurídica. Traducción de J. J. Santa-Pinter. Buenos Aires: Depalma, 1994, p. 24/25. 170 Cf. MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. Direito romano e seu ressurgimento no final da idade média. Em WOLKMER, Antônio Carlos (org.). Fundamentos de história do direito. 2ª ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 195. 171 Cf. WILLIAMS, Raymond. Palavra-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. Trad. Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2007, p.315. 172 Cf. CHAPARRO, Enrique Ramos. La Persona e Su Capacidad Civil. Madri: Editorial Tecnos, 1995, p. 52.

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possibilidade, via abstração, de designar como personæ aqueles que eram

nomeados e, apenas então, desenvolveu-se uma nova abstração (personalitas)

que seria, dentre outras, uma forma de teorizar a separação entre res e personæ.

Esta observação, a gosto do historiador francês JACQUES LE GOFF (1924-),

faz evidenciar que os termos que mais se apresentam seguros são comumente

sacudidos pela história, permitindo-se revelar certa fragilidade que carregam173.

Assim, se antes a personæ só tinha valor junto à polis, com o cristianismo

a valorização existia simplesmente pelo ser personæ, independente do exercício

político e, assim, individualizador em sua essência. Substituem-se os laços que

fortemente prendiam junto à cidade para “restituir” o homem a si mesmo174,

formando-se uma idéia de ser humano como indivíduo. E é por esse novo

paradigma que os autores medievais vão se pautar, evidenciando-o e

enaltecendo-o e, mesmo sem poder prever, aproximando mais e mais a

possibilidade do surgimento dos direitos da personalidade e dos diversos

institutos que os complementam.

Elabora-se, assim, a compreensão de pessoa como naturae rationalis

indiviua substantia, fórmula apresentada para compreender o homem como a

substância individual de natureza racional175. A compreensão de pessoa passou

de mero membro de uma sociedade (o valor era social) para a de ente autônomo

e livre (valor passa para individual)176. Mais que isso, a tendência humanista-

estóica dessa crença que constam da Bíblia (Torá), do Novo Testamento e do

Alcorão, fizeram consolidar o que parte dos constitucionalistas chamariam mais

tarde de direitos de primeira geração (direitos cívicos e políticos liberais)177,

173 Cf. LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da europa. Trad. Jaime A. Clasen. Rio de Janeiro: Vozes, 2007, p. 17. 174 Cf. COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 448. 175 Cf. SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da Personalidade e sua Tutela. 2ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 35. 176 Cf. BELTRÃO, Silvio Romero, Direitos da Personalidade: de acordo com o Novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2005, p. 15/16. 177 Cf. ISHAY, Micheline R. (org). Direitos humanos: Uma antologia – principais escritos políticos, ensaios, discursos e documentos desde a bíblia até o presente. Trad. Fábio Duarte Joly. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência (NEV), 2006, p. 16.

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aqueles que “exigem um não-agir do Estado (direito negativo)178”. E um

documento histórico comumente apontado sobre direitos humanos é a Magna

Carta inglesa do Séc. XIII, a qual também é lembrada em alguns levantamentos

históricos sobre os direitos da personalidade179. O referido texto legislativo, de

fato, provê limites à atuação sancionadora e fiscal do soberano, mas ainda não

estabelece o que, na próxima Era, seria a liberdade dos modernos. Isto porque,

v.g., estabelecia diversos tipos de tratamento com base na posição social (status)

de cada um, determinando que homens livres devessem ser julgados como tais,

que vilões (camponeses que trabalhavam para o senhor feudal e que não eram

servos) recebessem o julgamento de vilões, e assim por diante180. A forma

específica de garantias, assim, era o de “confirmar a existência de privilégios e

liberdades181” . E é de se destacar que estes ingleses da Carta de 1215 não

conheceram, igualmente, o termo personalidade (designando a qualidade de ser

uma pessoa e não uma coisa apenas), que é, para eles, de fins do Séc. XIV; mas

já usavam person (do latim personæ) no sentido de indivíduo de forma precoce

no Séc. XIII182.

E toda aquela elaboração canônica (v.g., os valores individuais) se juntou

ao conhecimento dos estudiosos bolonheses e fez surgir os primeiros escritos

sobre pessoas coletivas como entes fictícios (“pessoas fictas”), notadamente

porta de entrada para o estabelecimento da noção formal de subjetividade

jurídica do indivíduo183.

178 SCHÄFER, Jairo. Classificação dos direitos fundamentais: do sistema geracional ao sistema unitário: uma proposta de compreensão. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2005, p. 15 / 16. 179 Cf. FIUZA, César. GAMA, André Couto e. Teoria geral dos direitos da personalidade. In FIUZA, César (coord.) Curso avançado de direito civil. Vol. II. São Paulo: IOB, 2007, p. 10. 180 Cf. INGLATERRA. Magna Carta (1215). in ISHAY, Micheline R. (org). Direitos humanos: Uma antologia – principais escritos políticos, ensaios, discursos e documentos desde a bíblia até o presente. Trad. Fábio Duarte Joly. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência (NEV), 2006, 808 p. 181 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed., 2ª reimpressão, Coimbra: Livraria Almedina, 2003, p. 69. 182 Cf. WILLIAMS, Raymond. Palavra-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. Trad. Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2007, p.315. 183 Cf. CHAPARRO, Enrique Ramos. La Persona e Su Capacidad Civil. Madri: Editorial Tecnos, 1995, p. 61, e AMARAL, Francisco, Direito Civil: introdução, 6a ed., rev., atual. e aum., Rio de Janeiro, Renovar, 2006, p. 278.

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Esta nova forma de ver o mundo trouxe conseqüências cujas raízes não

conheceram limites, por certo não retrocedendo após tocar as idéias de liberdade

e persona. Até o nome se apresentou de forma peculiar na Idade Média, já que a

perpetuidade de referência com a linhagem184, pilar da religião doméstica,

perdera o seu motivo de ser. Se o culto antigo depositava na família a unidade

sagrada, tornando-se notadamente importante a comunhão do nomen, cognomen

e pronomen como legitimadores do uso do lar, túmulo e patrimônio185, na era

seguinte a unidade passou para o indivíduo, que sustentava apenas o nome de

batismo186.

O vocábulo nome nesses dois períodos apresentou, como se vê, pontos

opostos de relevância. O nome na Antigüidade surgia da família para o

indivíduo, isto é, o nome patronímico se portava acima de qualquer outro e

reinou absoluto até o momento em que houve necessidade de prover alguma

independência para aqueles que compunham a família187. Mas a persona, com o

cristianismo, já não era vista como simples membro de algo muito mais

grandioso. Ao contrário, a grandiosidade estava no indivíduo, feito à imagem e

semelhança de Deus188, tendo o medievo presenciado uma inversão de valores,

praticamente desaparecendo o nome de família que somente ressurgiu bastante

mais tarde, “como nome de terras, ou como sobrenomes189” .

Outra peculiaridade desta época foi o desconhecimento quanto à

oposição, em categorias, entre direito público e direito privado, e ao assim se

afirmar não se pretende fazer crer que na Idade Média não se tivesse conhecido

ou estudado os textos de MARCO TÚLIO CÍCERO, as REGRAS DE

184 Cf. COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 112. 185 Cf. COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 114. 186 Cf. FRANÇA, Limongi R. Do Nome Civil das Pessoas Naturais. 2ª ed. Rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964, p. 33. 187 Cf. COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 114. 188 Cf. CHAPARRO, Enrique Ramos. La Persona e Su Capacidad Civil. Madri: Editorial Tecnos, 1995, p. 51. 189 COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. Trad. Fernando de Aguiar. 5ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 115.

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ULPIANO e o DIGESTO DE JUSTINIANO, mas apenas que não lhes era

atribuído valor190. Exemplo de que a referida dicotomia se encontrava abalada e,

mais que isso, renegada na segunda era Cristã pode ser encontrada em TOMÁS

DE AQUINO (teólogo Itálico que viveu do ano 1225 ao 1274191), o qual

traduziu a expressão heleno-aristotélica politikon zoon (animal político) para

animal sociale. A sutileza se encontra na passagem do vocábulo político para o

social, já que este é mais amplo que aquele e, assim, principia-se uma projeção

do ramo privatístico sobre o publicista192 cujas conseqüências terão importância,

sobretudo, para a Modernidade.

Assim, até fins do Séc. XIII restou apagada a dicotomia público-privado,

conseqüência natural da mudança vertiginosa dos paradigmas onde, se antes os

dois ramos eram antitéticos e, portanto, excludentes um do outro, na Idade

Média tendiam à unidade193.

Este período que, para os humanistas e, em geral, para o homem do

Renascimento, representou um período de barbárie a separá-los da arte e

literatura clássica que estes criavam194 foi, sem dúvida, muito mais que isso. De

fato, o preconceito impediu esses iluministas de dar valor ao legado recebido, de

compreender que o Direito Moderno seria outro se não tivesse se utilizado da

idéia de personalitas e responsabilitas do medievo, e por certo não poderiam

construir a liberdade dos modernos se o cristianismo não tivesse fulminado a

liberdade dos antigos. Mais que isso, o vocábulo pessoa, vinculado ao conceito

de capacidade jurídica que surgiu ao final desta era, foi conquista medieval,

190 Cf. SURGIK, Aloísio. Anotações histórico-críticas em torno do binômio Direito Público-Direito Privado. Em DIAS, Adahyl Lourenço et al. Estudos em homenagem ao professor Washington de Barros Monteiro. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 35, e FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 134. 191 Cf. MORRIS, Clarence (et al). Os Grandes Filósofos do Direito: leituras escolhidas em direito. Trad. Reinaldo Guarany. Rev. da Trad. Silvana Vieira e Claudia Berliner. Rev. Téc. Sérgio Sérvulo da Cunha. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 49. 192 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 136. 193 Cf. GAVAZZONI, Aluísio. História do Direito; dos sumérios até a nossa era. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 81. 194 Cf. FALCO, Giorgio. The holy Roman republic: a historic profile of the middle ages. Translated by K. V. Kent. London: Geroge Allen & Unwin Ltd, 1954, p. 15.

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proporcionando-se um primeiro sentido técnico-jurídico ao termo195. Assim,

para as pretensões do presente trabalho, a Idade Média representa um longo

período da vida intra-uterina que representa a formação embrionária dos direitos

da personalidade. E da mesma forma que o cristianismo surgiu no e para o fim

da Antigüidade, é possível localizar no humanismo (a situar o homem como

senhor de seu próprio destino) de fins da Idade Média o propulsor da nova era

que se aproximou196.

2.3 Modernidade

Este período tem por marco inicial a queda de Constantinopla (atual

Istambul na Turquia) causada pelo cerco dos turcos otomanos, no ano de

1453197, e se estende até 1789, quando da Déclaration des Droits de L’Homme

et du Citoyen. Mas o que melhor marca o fim do período anterior e o início deste

é a rebelião contra os princípios medievais que iriam abalar-lhe a fundação e

opor limites à autoridade religiosa e civil198, o que repercutiria em todas as áreas

de estudo, notadamente quanto às ciências jurídicas.

Nesta medida, importante é salientar, desde já, a situação tanto do

naturalismo quanto do liberalismo jurídico desenvolvidos na Era Moderna e que

iriam oferecer a todos os movimentos do séc. XIX a sua perspectiva199. Trata-se

da consolidação da ruína da liberdade dos antigos, até então transmitida pela

195 Cf. BELTRÃO, Silvio Romero, Direitos da Personalidade: de acordo com o Novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2005, p. 19. 196 Cf. GAVAZZONI, Aluísio. História do Direito; dos sumérios até a nossa era. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 90. 197 LOYN, Henry R. (org.). Dicionário da Idade Média. Trad. Álvaro Cabral; Ver. Téc. Hilário Franco Júnior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 283. 198 Cf. FALCO, Giorgio. The holy Roman republic: a historic profile of the middle ages. Translated by K. V. Kent. London: Geroge Allen & Unwin Ltd, 1954, p. 274.. 199 Cf. CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 16.

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tradição clássica de participação ativa no poder religioso-político200, e a

consolidação, já na terceira Era da humanidade, da liberdade (dos modernos),

cujo conteúdo era calcado eminentemente no pensamento liberal201 que se

formava no final da Idade Média. Assim, forma-se uma teoria liberal dos

direitos do homem que, ao passo que estabelece condições que devem ser

protegidas para que o indivíduo possa desfrutar e desenvolver livremente a sua

esfera privada (direito privado), também opõe limites recíprocos para que o

exercício dessa liberdade por um aconteça sem a criação de um estatuto de

sujeição (ou escravidão) para o outro (direito público)202.

Nota-se, aqui, uma renovação da idéia de dicotomia entre público e

privado que, à sua maneira, foi determinante na Antigüidade e irrelevante na

Idade Média. E, nesta nova etapa, os estudiosos da Modernidade iriam

interpretar os antigos textos, v.g., ULPIANO, e projetá-los num vindouro

contexto de Estado (moderno)203.

Inúmeros exemplos dessa dicotomia (e da liberdade dos modernos)

podem ser colhidos na terceira era cristã, como no Leviatã de THOMAS

HOBBES (1652) e no Julgamento sobre a paz perpétua de JEAN-JACQUES

ROUSSEAU (1756). A primeira obra ressalta a necessidade de que cada homem

se resigne ao “direito a todas as coisas” (lei fundamental da natureza),

contendo-se na mesma proporção que os outros também se conterão204. Na

segunda obra há uma sistematização de que a garantia do príncipe contra a

200 Cf. CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 08 e 442. 201 Cf. CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 08. 202 Cf. CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 08. 203 Cf. SURGIK, Aloísio. Anotações histórico-críticas em torno do binômio Direito Público-Direito Privado. Em DIAS, Adahyl Lourenço et al. Estudos em homenagem ao professor Washington de Barros Monteiro. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 36. 204 Cf. HOBBES, Thomas. Leviatã. (1652). In: ISHAY, Micheline R. (org.). Direitos humanos: Uma antologia – principais escritos políticos, ensaios, discursos e documentos desde a bíblia até o presente. Trad. Fábio Duarte Joly. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência (NEV), 2006, p. 162.

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revolta dos súditos é proporcional à garantia desses contra a tirania daquele205.

Interessante ressaltar que JEAN-JACQUES ROUSSEAU se encontra dentre os

primeiros a explorar com eloqüência a intimidade, ponto de especial relevância

tanto para o individualismo quanto para os direitos da personalidade. Voltou-se

contra a sociedade (e não contra o Estado), sobretudo para afastar a intrusão

desta na intimidade do indivíduo, que até então não havia recebido preocupação

ao ponto do desenvolvimento de uma tutela específica206. Nota-se que o que fez

de novo e, para a época, de forma genial, fora o estabelecimento de uma

intimidade que não era a mesma que o lar (moradia) detinha. A intimidade da

moradia (privada) possuía foro específico, local determinado e tangível por

natureza. O íntimo do indivíduo, ao contrário, segue-lhe onde quer que vá, não

possuindo limite espacial objetivo.

Além da construção doutrinária, na Inglaterra desta época era possível

localizar dois textos legislativos de grande valia para a consolidação da

liberdade dos modernos, representados pela Lei de Habeas Corpus (1679) e a

Declaração Inglesa de Direitos (1689). O habeas corpus já existia no

arquipélago britânico, embora fosse comumente ignorado pelas autoridades,

representando este act, conforme suas primeiras linhas, uma “melhor garantia a

liberdade dos súditos e para impedir as prisões no ultramar207” . E com a novel

Declaração Inglesa de Direitos é traçado, no plano político, um reforço ao

modelo parlamentar, além de proteger a liberdade de religião, notadamente, dos

protestantes frente ao totalitarismo do papado208.

205 Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Julgamento sobre a paz perpétua (1756). In: ISHAY, Micheline R. (org.). Direitos humanos: Uma antologia – principais escritos políticos, ensaios, discursos e documentos desde a bíblia até o presente. Trad. Fábio Duarte Joly. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência (NEV), 2006, p. 201. 206 Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 49. 207 INGLATERRA. Lei de Habeas Corpus de 1679. ISHAY, Micheline R. (org.). Direitos humanos: Uma antologia – principais escritos políticos, ensaios, discursos e documentos desde a bíblia até o presente. Trad. Fábio Duarte Joly. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência (NEV), 2006, p. 167. 208 INGLATERRA. Declaração Inglesa de Direitos de 1689. ISHAY, Micheline R. (org.). Direitos humanos: Uma antologia – principais escritos políticos, ensaios, discursos e documentos desde a bíblia até o presente.

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O fenômeno de consolidação da liberdade dos modernos se fez repercutir

fortemente no Direito, já que se portou como contundente condicionante para a

idéia de mundo daqueles tempos. A influência nos sistemas jurídicos foi

evidente, a exemplo da responsabilização pessoal que, a partir de então, era vista

sob uma ótica rigorosamente científica e racional em oposição ao ponto de vista

sacro das eras passadas, perdendo o elemento culpa a sua essencialidade e

tomando o dano a posição de destaque209. Nota-se, assim, que o homem

moderno alcançou as premissas mais fundamentais para o surgimento da

responsabilidade civil.

Cumpre ressaltar que esse mundo Moderno europeu apresentou uma

dicotomia referente às esferas sociais e políticas de forma bastante diferente do

que foi constatado na Antigüidade. Passou-se a observar constante sobreposição

de uma à outra, “como ondas no perene fluir do próprio processo da vida210”.

Ou seja, a delimitação coesa e precisa dos ramos público e privado dos antigos

itálicos (que fazia depender tanto a hegemonia quanto a sustentabilidade do

culto que a tudo se sobrepunha) não alcançara a terceira era.

Outro aspecto singular desta era é o resgate e nova roupagem para a idéia

de trabalho das eras anteriores. Se para os antigos itálicos a atividade público-

religiosa – campo do público – era representada pela ação e tinha uma natureza,

embora digna, fugaz, o trabalho se apresentava como atividade humana com

termo previsível (caracterizada por uma relação de meio e fim) e totalmente

despida de futilidade, transformando e dominando a natureza211. Era através dele

que o arquiteto delimitava fisicamente a polis, que o pretor legislava

(diferenciando lex de jus), e que tudo mais adquiria permanência no plano de

Trad. Fábio Duarte Joly. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência (NEV), 2006, p. 167. 209 Cf. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes. Responsabilidade pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 60 e 61. 210 ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 43. 211 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 23 e 135.

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existência. Já na era Moderna, a separação entre ação e trabalho vai perdendo a

sua nitidez via notável convergência para uma atividade finalista, redutor do jus

a lex, “do direito à norma212” . Trata-se de uma limitação da atividade

jurisdicional para um esquema de exegese normativa213, e a conseqüência foi a

transformação do animal político - politikon zoon – para ser que trabalha –

homo faber - o que acarreta um novo condicionamento, desta vez a fazer com

que todas as coisas se instrumentalizem214, já que passam a servir meramente

como meios para (pré) determinados fins. A partir desse novo modelo propiciou-

se uma fusão entre o ser pessoa e o ser capaz de adquirir direitos e contrair

obrigações, o que fez com que a personalidade também sofresse a redução a

instrumento215. Nesta idéia, o valor das coisas não existe por si só, baseando-se

puramente na funcionalidade. E aqui paira um sério problema de ordem de

significação, mas que viria a ser usado no futuro para justificar filosoficamente

os direitos da personalidade. Trata-se do problema cognitivo que naturalmente

surgiu da instrumentalização que segue o homo faber. Se tudo paira num sistema

de meio e fim (ordem finalística), cria-se um notório ciclo vicioso que acaba por

resultar na complicada (e questionável) compreensão de fim em si mesmo:

A tragédia desta posição está em que a única possibilidade de se resolver o problema do significado das coisas é encontrar uma noção que em si é paradoxal, ou seja, a idéia de um fim em si mesmo. A idéia de um fim em si mesmo, ou seja, a idéia de um fim que não é mais meio para

212 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 24. 213 Cf. POLI, Leonardo Macedo. A funcionalização do direito autoral: limitação à autonomia privada do titular de direitos autorais. In GALUPPO. Marcelo Campos (org.). O Brasil que queremos: reflexões sobre o Estado democrático de direito. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2006, p. 412. 214 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 25. Mais sobre o homo faber na Modernidade em SANTOS, Antonio Jeová. Dano moral indenizável. 4ª ed. rev. ampl. e atual. de acordo com o novo código civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 45. 215 Cf. MARTINS-COSTA, Judith. Os danos à pessoa no direito brasileiro e a natureza de sua indenização. In MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A reconstrução do direito privado: reflexo dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 411.

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outro fim, é um paradoxo, porque todo fim nesta concepção deveria ser meio para um fim subseqüente216.

Mas a solução acadêmica para o problema a que viriam se socorrer

diversos autores que discorreram sobre direitos da personalidade e danos

morais217 viria de IMMANUEL KANT (1724-1804), exposta em diversas obras,

sobretudo na Kritik der reinen vernunft218 (1781) e Grundlegung zur metaphisik

der sitten (1785). Nesta última, o filósofo da então cidade de Königsberg (atual

Kaliningrado, Rússia), estabeleceu uma engenhosa superação do problema

cognitivo criado pela visão utilitarista que predominava através do célebre

princípio segundo o qual “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na

tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como

fim e nunca simplesmente como meio219” , distinguindo-se, assim, pessoas de

coisas:

Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm contudo, se não seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio (e é um objecto de respeito)220.

216 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 25. 217 Cf. MORAES, Maria Celina Bodin. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 80/81, CAPELO DE SOUSA, Rabindranath V. A. O Direito Geral de Personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 112 e 116. Outros autores entendem que a superação do reino dos fins é principiológico (dignidade da pessoa humana), cf. MARTINS-COSTA, Judith. Os danos à pessoa no direito brasileiro e a natureza de sua indenização. In MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A reconstrução do direito privado: reflexo dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 413. 218 Obra em que o autor estabelece a propedêutica de sua filosofia, calcada no espaço e no tempo (quadros a priori) onde os fenômenos vão se depositar (quadro a posteriori). In KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2005. 219 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1992, p. 69. 220 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1992, p. 68.

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Tem-se, assim, a concepção de que nunca o homem deve servir de objeto

para outro homem, idéia esta que, num primeiro momento, teria resolvido o

impasse da instrumentalização do ser humano, ou da passagem da pessoa para o

ser capaz. Contudo, TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR., notadamente adepto das

concepções de THEODOR VIEHWEG e HANNAH ARENDT, trata de

enfatizar a manutenção do circulo vicioso que apenas aparentemente

IMMANUEL KANT teria desvencilhado. Isto porque, relata o doutrinador, ao

fixar o homem no centro de tudo, já que se trata do único fim por si, e com isso

a única coisa per si valiosa, banaliza tudo em sua volta por não compartilhar

tamanha (e primeira) valia, salvo quando possuir sentido e, portanto, servir de

instrumento para o homem:

Em outras palavras, alguma coisa só terá sentido se contiver trabalho humano, pois se instrumentaliza. No mundo do homo faber a esfera pública, que na Antigüidade era a esfera do homem político, passa a ser a esfera do mercador (...) Na sociedade dominada pela concepção do homo faber a troca de produtos se transforma na principal atividade política. Nela os homens começam a ser julgados não como pessoas, como seres que agem, que falam, que julgam, mas como produtores e segundo a utilidade dos seus produtos. Aos olhos do homo faber, a força de trabalho é apenas um meio de produzir um objeto de uso ou um objeto de troca (...) Ora, como no mercado de trocas os homens não entram em contato diretamente uns com os outros, mas com os produtos produzidos, o espaço da comunicação do homo faber é um espaço alienante porque de certa maneira exclui o próprio homem. O homem neste espaço se mostra através de seus produtos. Esses produtos são as coisas que ele fabrica ou as máscaras que ele usa221.

221 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 25 e 26.

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A princípio, a conclusão que se pode alcançar, e que irá justificar a opção

legislativa brasileira de vincular, como regra geral, a tutela dos direitos da

personalidade às perdas e danos222 (tutela patrimonial por excelência), é a de

que o próprio Direito passa a ser considerado como objeto de uso, tornando-se

“mero instrumento de atuação do homem sobre outro homem223” . E esse

enfoque parece ter ampla aceitação da teoria relacional224, a qual analisa o

Direito a partir da autonomia dos sujeitos que cria e modifica a relação jurídica,

justificando-se com arrimo na moral kantiana e doutrina liberal democrática225.

E neste contexto que evidencia a liberdade dos modernos como uma

síntese do pensamento liberal e concepção individualista da sociedade, tem-se o

forte surgimento do jusnaturalismo (ou direitos naturais)226, que se porta como

verdadeira fonte do Direito, criando vastas e, por vezes, elaboradas doutrinas

que acabam incorporadas pelo positivismo jurídico. Este movimento de direito

natural compreende os seus institutos como justos por natureza, ora se

apresentando como derivados da quintessência humana (jusnaturalismo

propriamente dito), ora como princípios da razão (jusracionalismo), mas sempre

na consciência de todo ser humano227. É o que se observa frente aos direitos

humanos (ou direitos do homem), entendidos como direitos cuja validade

alcança todas as pessoas e povos, em qualquer tempo e, por isso mesmo, não

necessitam de constar de textos legislativos228. Seria, nesta linha, inerente ao ser

222 “Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”. In BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, 11 de janeiro de 2002. 223 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 26. 224 A ser futuramente usada por, entre outros, GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. Rev. atual. e aumen. de acordo com o código civil de 2002 por Edvaldo Brito e Reginalda Paranhos de Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 136. 225 Cf. NETO, Francisco dos Santos Amaral. Introdução à teoria geral da relação jurídica. In DIAS, Adahyl Lourenço Dias et al. Estudos em homenagem ao professor Washington de Barros Monteiro. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 210. 226 Cf. BOBBIO. Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho; apre. Celso Lafer. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, 4ª reimpressão, p. 22. 227 Cf. GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. 14ª Ed., rev. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 449. 228 Cf. RIBEIRO, Marcos Vinicius. Direitos humanos e fundamentais. 1ª ed. Campinas: Russell Editores, 2007, p. 14.

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humano. E a partir de tal doutrina, conceberam-se os direitos fundamentais, a

agradar os positivistas, e cuja idéia circunda a “consagração” - expressão

eminentemente naturalista – no âmbito constitucional das liberdades

individuais229:

(...) a idéia subjacente à afirmação dos direitos e deveres individuais foi a de converter os direitos do homem (situado no plano do direito natural) em direitos fundamentais, institucionalizados juridicamente e constituindo direitos objectivamente vigentes230.

Necessário destacar que esse movimento constitucionalista a considerar os

indivíduos como sujeitos a priori de uma autonomia tanto individual quanto

moral e intelectual (pontos básicos do iluminismo)231 é conseqüência do impacto

da realidade vivida e, como se verá, não será força condicionante apenas do

direito constitucional, mas também do direito civil.

O grande triunfo tanto do jusnaturalismo quanto do liberalismo foi, sem

dúvida, o marco final da Modernidade conhecido como a Déclaration des Droits

de L’Homme et du Citoyen de 1789. Esse reconhecimento e, mesmo, proteção

aos direitos do homem passariam, assim, a constar das bases das Constituições

democráticas que surgiriam a partir de então232. Mas até aqui nem os direitos da

personalidade nem os danos morais eram conhecidos, mas seria através do

pensamento naturalista do Direito (sobretudo o Público) que tornaria possível

tanto a vindoura teorização acadêmica quanto a posterior absorção pela

legislação dessas doutrinas. Conclui-se, aqui, o longo período de

desenvolvimento embriológico de institutos e ideais indissociáveis dos direitos

da personalidade e que os tornaram possíveis na próxima era da humanidade.

229 Cf. RIBEIRO, Marcos Vinicius. Direitos humanos e fundamentais. 1ª ed. Campinas: Russell Editores, 2007, p. 14. 230 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed., 2ª reimpressão, Coimbra: Livraria Almedina, 2003, p. 111. 231 Cf. CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed., 2ª reimpressão, Coimbra: Livraria Almedina, 2003, p. 110. 232 Cf. BOBBIO. Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho; apre. Celso Lafer. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, 4ª reimpressão, p. 21.

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3 HISTÓRIA ESPECÍFICA

Pretendeu-se, até o presente momento, oferecer um estudo histórico

diacrônico contextualizado sobre a história das idéias e institutos que compõem

os direitos da personalidade (bem como de outros que o influenciam), sobretudo

para fixar os pontos de partida para uma melhor compreensão do objeto do

presente estudo, que está voltado para a análise da fundamentação dos direitos

da personalidade e das novas perspectivas que eles atualmente alcançam.

Já foi apresentada, obedecendo-se um desenvolvimento cronológico, a

formação história – fase embrionária dos direitos da personalidade, bem como

dos elementos afins e que os cercaram (v.g., responsabilidade civil, a ordem

dicotômica e a liberdade) onde se procurou evidenciar o aparecimento e

desenvolvimento de certos conhecimentos que propiciaram, neste momento da

Contemporaneidade, o surgimento e a consolidação dos dois referidos institutos,

fazendo-se adentrar, assim, a história específica.

O período anterior, era Moderna, finda com a Déclaration des Droits de

L’Homme et du Citoyen, do ano de 1789, a partir de onde o jusnaturalismo se

portou como contundente fonte do Direito a ter seu pensamento incorporado

pelo positivismo jurídico. Os direitos humanos ou, a gosto de outros, os direitos

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do homem, foram e são entendidos como aqueles direitos que possuem validade

frente a todas as pessoas e todos os povos, seja em que tempo for, seguindo este

pensamento jusnaturalista no sentido de que sequer necessitam de positivação,

já que “inerentes” ao ser humano.

Com a absorção pelo positivismo jurídico da doutrina elaborada acerca

dos direitos do homem, outra nomenclatura surgiu, desta vez como direitos

fundamentais, a coroar as liberdades individuais manifestadas pelo duplo

desenvolvimento do sujeito: moral e intelectualmente livre e economicamente

livre no meio da livre concorrência233.

O estabelecimento dessa ordem econômica (liberalismo) calcada numa

idéia de individualismo234 se deve, numa perspectiva constitucional, à

Declaração de 1789 em solo francês, onde os direitos do homem, dispostos

praticamente num ideal maniqueísta, aparecem logo do preâmbulo como

direitos naturais:

Os Representantes do Povo Francês, constituídos em Assembléia Nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do Homem são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos Governantes, resolveram enunciar, numa Declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do Homem, a fim de que essa Declaração, constantemente presente a todos os Membros do corpo social, lhes lembre incessantemente seus direitos e seus deveres; a fim de que seus atos do poder legislativo, e os do poder executivo, podendo ser a cada instante comparados com o objetivo de toda a instituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim de que as reivindicações dos cidadãos, fundamentadas doravante em princípios simples e incontestáveis, tenham

233 Cf. CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed., 2ª reimpressão, Coimbra: Livraria Almedina, 2003, p. 110. 234 Cf. TUHR, Andreas Von. Derecho civil: teoria geral Del derecho civil aleman. Trad. Tito Ravà. Vol. II. Buenos Aires: Depalma, 1946, p. 73.

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sempre em mira a preservação da Constituição e a felicidade de todos235.

Assim, tem-se mostrado razoável afirmar que o arcabouço formado pelas

doutrinas do direito natural ofereceu a todos os movimentos do fim da

Modernidade e início da Contemporaneidade a sua perspectiva236, bem como foi

do direito público, notadamente a partir dos direitos do homem, que se tornou

possível o surgimento dos direitos da personalidade237 e danos morais238 no

Séc. XIX. O contexto desenvolvido até aqui aponta para o estabelecimento do

liberalismo calcado na liberdade dos modernos e cuja garantia se dá pela

proteção do direito subjetivo, evidenciando-se a estrutura racionalista-

individualista consolidada239.

Mais que isso, foi após a Modernidade que o estudo da responsabilidade

civil passou a se dar de forma, o tanto quanto possível, autônoma frente à

obrigação civil, tendo observado o tedesco ANDREAS VON TUHR (1864-

1925) o esforço de seus contemporâneos de distinguir as expressões240 e

possibilitar o já anunciado plano de interseção entre os institutos sob exame.

As próximas linhas pretendem apresentar como se desenvolveram as

teorias de direito natural acerca dos direitos da personalidade e dos danos

morais (como expansão da tutela da responsabilidade civil) nos países europeus

(sobretudo Itália e Alemanha) e como ambas as doutrinas foram recepcionadas,

cada uma a seu modo, pelo Direito brasileiro até fins da década de 1980. Trata-

235 FRANÇA. Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. In ISHAY, Micheline R. (org.). Direitos humanos: Uma antologia – principais escritos políticos, ensaios, discursos e documentos desde a bíblia até o presente. Trad. Fábio Duarte Joly. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência (NEV), 2006, p. 243. 236 Cf. CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 16. 237 Cf. FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 8ª ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 158. 238 Cf. SANTOS, Antonio Jeová. Dano moral indenizável. 4ª ed. rev. ampl. e atual. de acordo com o novo código civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 49. 239 Cf. POLI, Leonardo Macedo. A funcionalização do direito autoral: limitação à autonomia privada do titular de direitos autorais. In GALUPPO. Marcelo Campos (org.). O Brasil que queremos: reflexões sobre o Estado democrático de direito. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2006, p. 411. 240 Cf. TUHR, Andreas Von. Derecho civil: teoria geral Del derecho civil aleman. Trad. Tito Ravà. Vol. II. Buenos Aires: Depalma, 1946, p. 138.

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se, assim, de limitar o estudo eminentemente eurocentrista para abarcar o

entendimento pátrio sobre o assunto, com suas peculiaridades que o espaço

sócio-político justifica. O limite deste capítulo, em atenção à metodologia

proposta, será o período anterior à promulgação do Código Civil de 2002, sendo

pretensão do capítulo seguinte as situações a partir desse início de Séc. XXI,

notadamente a partir da promulgação do Código Civil de 2002.

3.1 Contemporaneidade e direitos da personalidade

Há uma convergência na aceitação de que a doutrina que primeiro cunhou

e teorizou acerca dos direitos da personalidade foi a do anti-romanista e, à sua

maneira, naturalista241 germânico OTTO VON GIERKE242 (1841-1921),

professor da Universidade de Berlim e opositor das idéias deixadas por

FRIEDRICH CARL VON SAVIGNY e do projeto do Bürgerliches Gesetzbuch

(BGB) que viria a ser promulgado em 1896243. Contudo, é de bom alvitre

ressaltar que a construção feita por OTTO VON GIERKE não surgiu fora de um

contexto necessário e preponderante para o surgimento e inicial teorização dos

direitos da personalidade. Mais que isso, veio a agregar um movimento que já

recebia a hercúlea oposição (teoria negativista) de FRIEDRICH CARL VON

SAVIGNY (1779-1861) e RUDOLF VON IHERING (1818-1892)244.

241 Cf. MINHOTO, Antonio Celso Baeta. Teorias sociais do direito em Otto Von Gierke. Revista IMES Direito, São Caetano do Sul, ano 5, n. 9, p. 32-36, jul./dez. 2004, p. 33. 242 BELTRÃO, Silvio Romero, Direitos da Personalidade: de acordo com o Novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2005, p. 20, AMARAL, Francisco, Direito Civil: introdução, 6a ed., rev., atual. e aum., Rio de Janeiro, Renovar, 2006, p. 252 e, ao que parece, já que se trata do único autor citado que cunha o referido termo, TUHR, Andreas Von. Derecho civil: teoria geral Del derecho civil aleman. Trad. Tito Ravà. Vol. II. Buenos Aires: Depalma, 1946, p. 187. 243 Cf. MINHOTO, Antonio Celso Baeta. Teorias sociais do direito em Otto Von Gierke. Revista IMES Direito, São Caetano do Sul, ano 5, n. 9, p. 32-36, jul./dez. 2004, p. 32/33. 244 Sobre a teoria negativista, FRANÇA, Limongi R. Do Nome Civil das Pessoas Naturais. 2ª ed. Rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964, p. 65.

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Destaca-se que o que fortemente marcou esse debate foi a busca pela

elaboração de uma nova categoria de direitos subjetivos, a tangenciar e não se

confundir com os pessoais e os reais, e é justamente por isso que há uma

diversidade de nomenclaturas que até os dias de hoje se renovam. Outro

elemento a se evidenciar é o arcabouço eminentemente dogmático formado

acerca do tema.

BERNARD WINDSCHEID (1817-1892) parece ter sito um dos primeiros

e principais nomes a buscar uma nova categoria de direitos a tangenciar as

categorias já existentes dos direitos subjetivos, teorizando acerca dos seus

persönlichkeitsrechte (direitos sobre a própria pessoa)245 e sofrendo as pesadas e

diretas críticas daqueles opositores246.

Mas a idéia de Direito para OTTO VON GIERKE era, de fato, peculiar,

exatamente por ser contrário ao movimento romanista. Exercia o jusnaturalismo

de modo a criar princípios eternos e indestrutíveis que entendia emanar da

própria natureza, sempre num contexto social alemão (cujo enfoque eram

comunidades e corporações) e que seria incongruente com, v.g., o

individualismo artificioso e abstrato dos sujeitos de direito247. Assim, os direitos

da personalidade deste doutrinador tedesco participa de uma visão social que se

encontra, em grande medida, diametralmente oposta ao enfoque romanista e,

assim, diferente da futura consolidação, sobretudo num âmbito positivista, dos

direitos da personalidade do Ocidente.

JOSEF KOHLER (1849-1919) também intencionou idealizar uma nova

categoria de direitos subjetivos, desta vez empregando o termo direitos

individuais, os quais, juntamente com os direitos de propriedade sobre coisas

materiais e direitos de propriedade sobre coisas imateriais, formariam três

245 Cf. GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. Rev. atual. e aumen. de acordo com o código civil de 2002 por Edvaldo Brito e Reginalda Paranhos de Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 135. 246 Cf. FRANÇA, Limongi R. Do Nome Civil das Pessoas Naturais. 2ª ed. Rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964, p. 140. 247 Cf. MINHOTO, Antonio Celso Baeta. Teorias sociais do direito em Otto Von Gierke. Revista IMES Direito, São Caetano do Sul, ano 5, n. 9, p. 32-36, jul./dez. 2004, p. 32/33.

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categorias dos direitos absolutos248. Nota-se que essa Alemanha de fins do Séc.

XIX portou-se como palco acolhedor dessa nova discussão, tendo diversos

romanistas iniciado uma teorização sobre o assunto, a seu modo, e com

diferentes epígrafes, seja como individualrechte (direitos do indivíduo),

individualitatsrechte (direitos da individualidade) ou persönalichkeitsrechte

(direitos sobre a própria pessoa) 249, entre outros.

Diz-se, inclusive, que a teoria dos direitos da personalidade também foi

conhecida, naquela época, como teoria alemã do direito ao nome250, o que faz

crer ter sido o nome o primeiro objeto de estudo do assunto para aquela

sociedade germânica. Se o nome tinha na Antigüidade um sentido religioso e

sem qualquer conotação jurídica, neste momento o paradigma era outro e a

individualidade tornava-se verdadeiro direito, exigível o seu respeito de

terceiros251:

“(...) o homem tem direitos não apenas sobre os objetos exteriores, mas ainda sobre a própria pessoa e, em primeira linha, ele possui o direito de exigir de terceiros o reconhecimento e o respeito como individualidade distinta, de impedir toda confusão com outras personalidades. Este direito que tem cada pessoa de ser ela própria e de não ser senão ela própria é o próprio fundamento e o ponto de apoio de todos os demais direitos252”.

Mas o debate acadêmico sobre a existência ou não dos direitos da

personalidade manteve-se inflexível e tendeu, fortemente nas primeiras décadas,

248 Cf. FRANÇA, Limongi R. Do Nome Civil das Pessoas Naturais. 2ª ed. Rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964, p. 68. Sobre direitos absolutos como aqueles que podem ser opostos ou reclamados erga omnes, conferir MONCADA, Luís Cabral de. Lições de Direito Civil: parte geral. 4ª ed.. Coimbra: Almedina, 1995, p. 70. 249 Cf. FRANÇA, Limongi R. Do Nome Civil das Pessoas Naturais. 2ª ed. Rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964, p. 68. 250 Cf. FRANÇA, Limongi R. Do Nome Civil das Pessoas Naturais. 2ª ed. Rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964, p. 70. 251 Cf. FRANÇA, Limongi R. Do Nome Civil das Pessoas Naturais. 2ª ed. Rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964, p. 87. 252 Cf. FRANÇA, Limongi R. Do Nome Civil das Pessoas Naturais. 2ª ed. Rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964, p. 87.

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para uma maior aceitação da posição de FRIEDRICH CARL VON SAVIGNY,

que era contra a existência de direitos originários (ou inatos) e, por isso,

manteve os direitos da personalidade sob certa perspectiva, dependente da

superação de tão forte obstáculo253.

Teoria negativista e teoria dos direitos da personalidade iriam se

contrapor por muitas décadas em solo alemão, sobretudo durante o Séc. XIX e

XX, mas a balança iria começar a pesar para a segunda teoria via intercâmbio

ítalo-germânico que se acirrou naqueles tempos254. De fato, o conturbado

cenário italiano formado pelas revoltas e disputas ideológicas comunistas,

fascistas e liberais255 e que iriam, ao final, eclodir no forte movimento liberal e

nacionalista representado pelo risorgimento que unificou a Itália em 1861-1866,

criando um novo Estado, certamente contribuiu para que os itálicos iniciassem

uma teorização sobre os direitos da personalidade256.

E um dos primeiros a fazê-lo foi FRANCESCO FERRARA (1877-1941),

jurista italiano que ferrenhamente defendeu a atividade de subsunção a vincular

os atos interpretativos do aplicador do Direito257, conceituando os direitos da

personalidade como “faculdades específicas sobre diferentes partes de nossa

esfera pessoal258” . E aqui esse doutrinador segue uma idéia de

instrumentalização do Direito, afirmando que, como os direitos da

personalidade seriam absolutos, teriam como objeto não uma res, mas sim todos

253 Cf. GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Rev. atual. e aum. de acordo com o código civil de 2002 por Edvaldo Brito e Reginalda Paranhos de Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 134. 254 A forte formação germânica dos juristas italianos do final do Séc. XIX e início do Séc. XX pode ser encontrado em FRANÇA, Limongi R. Do Nome Civil das Pessoas Naturais. 2ª ed. Rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964, p. 92. 255 Sobre o assunto, PARIS, Robert. As origens do fascismo. Trad. Elisabete Perez. Rev. Mary Amazonas Leite e Barros. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993. 256 Adeptos da idéia de que os direitos da personalidade teriam integrado o movimento liberal contra todos os regimes antidemocráticos seriam, cada um à sua maneira, SÁ, Maria de Fátima Freire de. Biodireito e direito ao próprio corpo: doação de órgãos, incluindo o estudo da lei n. 9.434/97, com as alterações introduzidas pela lei n. 10.211/01. 2ª ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 28/29, GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Rev. atual. e aum. de acordo com o código civil de 2002 por Edvaldo Brito e Reginalda Paranhos de Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 134, entre outros. 257 Cf. FERRARA, Francesco. Como aplicar e interpretar as leis. Trad. Joaquim Campos de Miranda. Belo Horizonte: Líder, 2002, p. 77. 258 Cf. GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Rev. atual. e aum. de acordo com o código civil de 2002 por Edvaldo Brito e Reginalda Paranhos de Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 134.

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os outros homens que deveriam respeitar-lhe o gozo desses direitos259. Nota-se

que o Direito se porta, neste entendimento, como “mero instrumento de atuação

do homem sobre outro homem260” , claramente demonstrando a marcante

característica do mundo do homo faber e seu condicionamento junto ao ser

humano.

Mas a maior conquista viria do campo doutrinário, já que o legislador do

Código Civil italiano (1942) reconheceu como matéria de Direito o nome e

pseudônimo (fortemente negado por RUDOLF VON IHERING261), as partes do

próprio corpo e a imagem, não abarcando por completo a já extensa e complexa

teoria negativista:

Art. 5 Atti di disposizione del proprio corpo Gli atti di disposizione del proprio corpo sono vietati quando cagionino una diminuzione permanente della integrità fisica, o quando siano altrimenti contrari alla legge, all'ordine pubblico o al buon costume (1418). Art. 6 Diritto al nome Ogni persona ha diritto al nome che le è per legge attribuito. Nel nome si comprendono il prenome e il cognome. Non sono ammessi cambiamenti, aggiunte o rettifiche al nome, se non nei casi e con le formalità dalla legge indicati. Art. 7 Tutela del diritto al nome La persona, alla quale si contesti il diritto all'uso del proprio nome o che possa risentire pregiudizio dall'uso che altri indebitamente ne faccia, può chiedere giudizialmente la cessazione del fatto lesivo, salvo il risarcimento dei danni (2563). L'autorità giudiziaria può ordinare che la sentenza sia pubblicata in uno o più giornali. Art. 8 Tutela del nome per ragioni familiari

259 Cf. GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. Rev. atual. e aumen. de acordo com o código civil de 2002 por Edvaldo Brito e Reginalda Paranhos de Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 136. 260 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 26. 261 Cf. FRANÇA, Limongi R. Do Nome Civil das Pessoas Naturais. 2ª ed. Rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964, p. 66.

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Nel caso previsto dall'articolo precedente, l'azione può essere promossa anche da chi, pur non portando il nome contestato o indebitamente usato, abbia alla tutela del nome un interesse fondato su ragioni familiari degne d'essere protette. Art. 9 Tutela dello pseudonimo Lo pseudonimo, usato da una persona in modo che abbia acquistato l'importanza del nome, può essere tutelato ai sensi dell'art. 7. Art. 10 Abuso dell'immagine altrui Qualora l'immagine di una persona o dei genitori, del coniuge o dei figli sia stata esposta o pubblicata fuori dei casi in cui l'esposizione o la pubblicazione e dalla legge consentita, ovvero con pregiudizio al decoro o alla reputazione della persona stessa o dei detti congiunti, l'autorità giudiziaria, su richiesta dell'interessato, può disporre che cessi l'abuso, salvo il risarcimento dei danni.

Embora não tenha o legislador italiano incorporado por completo o

desenvolvimento acerca da matéria que a doutrina apresentava, foi a partir de

então que a teoria dos direitos da personalidade tomaria novo vigor, sobretudo

sob a rubrica de ADRIANO DE CUPIS (1914-) renomado jurista italiano o qual

se dedicou ao desenvolvimento e sistematização de um Direito Privado livre do

Estado Autoritário. Seus estudos, que geraram diversas publicações durante toda

a década de 1940262, pautavam-se pela implementação dos Direitos da

Personalidade como instituto jurídico autônomo, de natureza diversa dos

demais direitos subjetivos263. Nota-se que a procura por uma proteção do ideal

formado pelo movimento constitucionalista alcançou as vias do direito privado,

tendo esse autor italiano expressamente afirmado que a motivação do seu estudo

sobre direitos da personalidade obedecia a “força das exigências éticas

262 I diritti della personalitá (Milano, 1942), Il diritto all’onore e il diritto allá riseratezza (Milano, 1948), Il diritto all’identitá personale (Milano, 1949). Em DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 13. 263 Cf. DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 38.

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dominantes264” , ou seja, traduzia no campo privado a ideologia que a

ramificação pública já apresentava, inclusive de universalidade dos direitos

básicos à manutenção da liberdade dos modernos:

Os ordenamentos jurídicos modernos têm sofrido constantemente, e pode mesmo dizer-se universalmente, a pressão das idéias sociais relativas à essencialidade dos direitos, e tanto assim que se fala da existência de uma communis opinio (opinião generalizada) a tal respeito, expressão de uma vontade comum iminente em qualquer ordenamento jurídico265.

O referido autor aponta a superação do antigo paradigma adotado por uma

Itália manifestamente autoritária nos primeiros dez artigos do recém promulgado

Código Civil italiano de 1942266. E a partir do conceito de personalidade, que

seria a “susceptibilidade de ser titular de direitos e obrigações jurídicas267” ,

ADRIANO DE CUPIS ofereceu a definição de Direitos da Personalidade como

aqueles que constituem a medula da personalidade e, portanto, essenciais268,

absorvendo completamente a idéia de liberdade dos modernos e

instrumentalização da personalidade (onde pessoa se confunde com

capacidade). É de se notar que, consoante este entendimento, tem-se a formação

de um equilíbrio (se é que isso é possível) entre o modelo imposto pela

liberdade dos modernos e a ordem finalística do mundo do homo faber,

portando-se os direitos da personalidade como peso da balança.

264 DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 27. 265 DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 27. 266 Cf. DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 28. 267 DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 19. 268 Cf. DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 24.

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Seguindo a communis opinio, o autor afasta os direitos da personalidade

dos demais direitos subjetivos, atestando que os primeiros seriam “sociais269”,

ou seja, tocariam a todos os seres humanos (naturalismo), sendo os seguintes

individuais por natureza. Assim, afirmou que todos os direitos subjetivos

derivam do ordenamento positivo, mas que apenas para os direitos inatos (sendo

todos estes direitos da personalidade270) o pré-requisito seria estritamente a

personalidade, já que para os demais direitos subjetivos há a necessidade da

verificação de outros requisitos271.

Conduz o doutrinador italiano para o entendimento de enfoque naturalista

segundo o qual os direitos da personalidade revelariam um caráter de

essencialidade, já que objeto e sujeito estariam ligados por um “nexo

estreitíssimo (..) a ponto de poder dizer-se orgânico272” . Mais que isso, se se

tratam de “bens de maior valor susceptível de domínio jurídico273” , tem-se

também um caráter de proeminência que não só faz destacar os direitos da

personalidade dos demais direitos subjetivos, como coloca o objeto daqueles

acima do objeto desses, ou seja, o “modo de ser físico ou moral da pessoa274” ,

que não se pode valorar, se encontra hierarquicamente superior ao meramente

patrimonial275. E os direitos da personalidade, por se conservarem através de

um non facere da coletividade276, são pertinentes à responsabilidade

extracontratual, a esta se confinando:

269 DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 22. 270 Cf. DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 27. 271 Cf. DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 27. 272 DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 29. 273 DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 29. 274 DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 36. 275 Cf. DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 35. 276 Cf. DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 45 e 49.

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Quando se ofende a vida, a integridade física, ou outro dos bens de que nos temos ocupado, nasce uma responsabilidade extracontratual, a que são de aplicar as conclusões de que acabamos de chegar277.

Salienta-se que ADRIANO DE CUPIS parte de uma defesa à não

restrição dos direitos da personalidade nas espécies apresentadas pelo Código

Civil italiano, entendendo que não se limitariam à disposição ao próprio corpo

(direito à integridade física), direito ao nome e direito de imagem (resguardo)278.

Seguindo a herança deixada, tratou o referido doutrinador de interpretar todo o

ordenamento jurídico italiano para fazer incluir, na categoria dos direitos da

personalidade, outros direitos que não os do Código Civil. Se preocupou, assim,

em oferecer embasamento legal a diversos direitos da personalidade junto a

todo e qualquer dispositivo do ordenamento jurídico que tratasse de liberdade,

como é o caso da Constituição do Estado Italiano de 1947, art. 2º (“direitos

invioláveis do homem”) e 13 e seg. (liberdades civis) e o Código Penal (delitos

contra a liberdade individual)279. Com isso, afirmou que são os direitos da

personalidade numerosos, podendo ser verificados no intercâmbio com o

Direito Penal, bastando recordar a existência de “normas que infligem penas por

homicídio, lesões pessoais, delitos contra a liberdade individual, a honra, a

inviolabilidade dos segredos (...)280” . A interdisciplinaridade proposta pelo

referido autor para prover elasticidade aos direitos da personalidade tem por

base o entendimento que é o ordenamento jurídico única fonte do Direito,

concluindo que tais normas penais seriam reflexo do interesse privado:

277 DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 49. 278 Cf. DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 39. 279 Cf. DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 28 e 39. Utilizou-se o referido autor do que no direito é chamado de id quod interest decorrente das reações penais, conforme constatou CAPELO DE SOUSA, Rabindranath V. A. O Direito Geral de Personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 129. 280 DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 39.

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(...) o interesse privado relativo à vida, à integridade física, à honra, e outros, pode considerar-se tutelado, ainda que reflexamente, pelas normas penais; mas um direito subjetivo à vida, à integridade física, à honra, e outros, não pode deduzir-se destas mesmas normas penais281.

A quebra do monopólio do direito público empreendida pela doutrina vai

corroborar com um movimento que cada vez se torna forte e é caracterizado pela

diminuição dos meios mais impositivos e autoritários do poder público282.

Assim, é razoável concluir que, com a inserção de uma nova opção para a

solução de conflitos os quais, antes, restringiam-se ao direito penal, tem-se uma

conseqüente diminuição do uso das ordens constritivas de liberdade a evidenciar

uma maior proteção dos ideais da liberdade dos modernos.

A relação entre a teoria esboçada pelo autor e o direito público é notória.

Ressalta-se que, à época, a academia italiana desenvolvia diversos trabalhos

sobre os direitos fundamentais sempre a partir da ideologia contrária ao

paradigma do estado social283. Tratava-se a teoria dos direitos inatos de

“conseqüência da reação contra o superpoder do Estado de Polícia284” , tendo a

Déclaration des Droits de L’Homme et du Citoyen (1789) expressamente fixado

tais direitos em sua base. Foi neste contexto de franca expansão das liberdades

individuais junto ao direito público que se presenciou forte desenvolvimento da

referida ideologia junto ao direito privado, sobretudo no que se refere aos

direitos da personalidade. Contudo, ADRIANO DE CUPIS preferiu entender

que teria a ramificação jurídica publicista se socorrido junto ao Direito Privado

para acolher certos direitos da personalidade, sobretudo no que se refere aos

281 DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 42. 282 Cf. NETO, Eugênio Facchini. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2ª ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2006, p. 28. 283 Exemplo de Adriano de Cupis foi a obra de Cirga, Libertà giuridica e diritti dondamentali (Milano, 1947). Em DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 14. 284 DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 25.

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direitos da liberdade civil285. Neste tocante, há quem diga que junto à moderna

dicotomia entre os direitos público e privado a presença do segundo sobre o

primeiro é mais marcante286.

Por fim, a teoria dos direitos da personalidade de ADRIANO DE CUPIS

deságua na apresentação e desenvolvimento de um extenso rol (aberto) de

direitos da personalidade:

(...) DE CUPIS considera tutelados por direitos especiais de personalidade, nomeadamente, a vida, a integridade física, as partes separadas do corpo, o cadáver, a liberdade, a honra, o resguardo pessoal, a identidade pessoal, o nome, o pseudónimo, o título, o sinal figurativo e a autoria moral287.

Nota-se, assim, que a idéia de liberdade é uma preocupação presente na

teoria dos direitos da personalidade e se localiza em dois diferentes pontos da

doutrina, já que é fundamento para justificar o instituto (sobretudo contra

regimes totalitários como, v.g., o fascismo da Itália de ADRIANO DE CUPIS),

bem como direito subjetivo propriamente dito.

A conclusão alcançada é que o Séc. XIX foi marcado pela contundente e

engenhosa contribuição doutrinária sobre o assunto, criando-se um complexo

arcabouço de regras e teorias que se mantêem vivas até os dias mais atuais, a

comprovar mais uma vez o viés da doutrina de fonte do Direito, ressoando-se

com certa timidez na produção legislativa do Séc. XX. Tem-se, assim, a

presença marcante do início da fundamentação teórica dos direitos da

personalidade marcadamente pelo viés jusnaturalista.

285 Cf. DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 34. 286 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 136. 287 CAPELO DE SOUSA, Rabindranath V. A. O Direito Geral de Personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 129.

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3.2 Contemporaneidade e danos morais

Se a teoria negativista, que se opôs aos direitos da personalidade, fizera

aproximar as idéias dos romanistas alemães FRIEDRICH CARL VON

SAVIGNY (1779-1861) e RUDOLF VON IHERING (1818-1892), a posição

frente aos danos morais por certo as fizera separar.

O primeiro desses tedescos entendia que os pretendidos “bens ideais” se

encontravam fora do comércio por inalienáveis e, com isso, não poderiam se

tornar objeto de obrigações. Acrescentou à critica o entendimento segundo o

qual os danos morais não podem ser provados, sendo difícil os ressarcir com

critérios de equivalência e, mesmo assim, seria imoral compensar com dinheiro

a honra, vida, etc. e, por fim, importaria em enriquecimento sem causa288.

Mas como ocorreu com a oposição frente aos direitos da personalidade,

as frente aos danos morais iriam eventualmente cair em desuso, e as primeiras

respostas às objeções seguiam no sentido de que as dificuldades encontradas,

v.g., em mensurar a indenização, comprovar o dano, etc., não podem ser vista

como motivo para que o Direito não ofereça a sua proteção289.

Pouco a pouco foi se solidificando a teoria dos danos morais, geralmente

recaindo sobre o exame cognitivo, a dividir esta linha de pensamento, num

primeiro momento, em duas correntes, a primeira que os compreendiam como

resultado (o mal sofrido) da violação de direito que se liga ao bem protegido, e a

segunda como dano extrapatrimonial. Ressalta-se que essas duas correntes, bem

como as outras que ainda viriam, nem sempre se portam com a nitidez ora

apontada, sendo freqüente o socorro de um delas à outra, mas é possível oferecer

uma generalização dos seus pensamentos, pretensão das próximas linhas.

288 Cf. SANTOS, Antonio Jeová. Dano moral indenizável. 4ª ed. rev. ampl. e atual. de acordo com o novo código civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 84/85. 289 Cf. SANTOS, Antonio Jeová. Dano moral indenizável. 4ª ed. rev. ampl. e atual. de acordo com o novo código civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 85.

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O conceito positivo de danos morais da teoria do resultado define o

instituto a partir dos efeitos provocados pelo dano290. Ou seja, segundo este

entendimento, o dano em si sequer é alvo de exame para definição do instituto.

O que provê a idéia de dano moral seria, assim, a conseqüência do dano.

Conceito e efeito são, aqui, uma mesma coisa. A partir da sua idéia de regra

moral a influenciar a relação de direito, sustentou o parisiense GEORGES

RIPERT (1880-1959) que a honra, afeições e crenças deveriam ter tanta

proteção quanto o patrimônio, fazendo com que a cognição do dano moral fosse

repousar junto à idéia de sentimentos291. Contudo, a dor não é algo que possa ser

vista e ouvida por todos, não é aparente, e por isso mesmo se apresenta (aos

outros) de forma obscura e incerta, sendo o sentimento mais intenso conhecido,

tão intenso que se apresenta como o sentimento “mais privado e menos

comunicável de todos292”. Nota-se que a dor assume uma posição

eminentemente privada (e não de direito privado), sendo a sua comunicação

com o mundo, sua exposição junto ao público, tarefa aparentemente

intransponível. Justamente por isso que esta teoria geralmente redunda numa

dogmática expositora de rol de fatos que ocasionariam a dor, como a morte de

um filho, etc., bem como geralmente trazem exemplos do que não seria dor, mas

sim mero aborrecimento, provendo limites à tutela.

O conceito negativo segue uma definição de danos morais como danos

extrapatrimoniais. Para o tedesco HANS ALBRECHT FISCHER (1904-1977),

o dano moral, conceituado de forma negativa, abarca a idéia de prejuízo que não

possa ser qualificado como patrimonial e se estenderia tanto à responsabilidade

extracontratual quanto contratual293. Também prima por uma forte dicotomia

290 Cf. SANTOS, Antonio Jeová. Dano moral indenizável. 4ª ed. rev. ampl. e atual. de acordo com o novo código civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 93. 291 Cf. RIPERT, Georges. A regra moral nas obrigações civis. Trad. Osório de Oliveira. 2ª ed. Campinas: Bookseller, 2002, p. 339-340. 292 ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 60. 293 Cf. FISCHER, Hans Albrecht. A reparação dos danos no direito civil. Trad. Antônio de Arruda Ferrer Correia. São Paulo: Saraiva, 1938, p. 229.

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entre os ramos público e privado, de modo que o recurso à pena do Direito

Público é comumente levantada como forma, até, de exclusão da reparação

civil294. Assim, em determinados casos, a indenização e pena seriam

mutuamente excludentes.

HARM PETER WESTERMANN, professor da Universidade de

Bielefeld, estabelece a referida dicotomia referente aos danos afirmando que ou

serão patrimoniais, ou não-patrimoniais e, nestes últimos, atesta a

ressarcibilidade, inclusive, in natura, ilustrando tal possibilidade com a

retratação de ofensa à honra295.

Desde meados do Séc. XIX, o acúmulo de doutrinadores que se viam

instigados a procurar uma melhor definição cognitiva para danos morais (a

aperfeiçoar a sua aplicabilidade) resultou no paulatino resfriamento da discussão

proposta por FRIEDRICH CARL VON SAVIGNY, restringindo-se tanto debate

quanto crítica para uma melhor solução dos conflitos.

A academia passava, assim, a defender determinado conceito (evitando

discussão sobre as próprias premissas) com base na crítica do conceito alheio.

Foi o que fizeram os adeptos do conceito positivo de danos morais (teoria do

resultado), afirmando que pouco se esclarece com conceitos negativos296, já que

o objeto em análise não deve ser reconhecido a partir da ausência de outro que,

este sim, é definido. Ou seja, o que se conhece é o patrimônio (classicamente

entendido como “complexo de direitos e obrigações de uma pessoa, suscetível

da avaliação econômica297”) e não a sua falta.

E a argumentação crítica a sustentar o conceito negativo (danos morais

como danos extrapatrimoniais) segue a afirmativa segundo a qual podem

294 Cf. FISCHER, Hans Albrecht. A reparação dos danos no direito civil. Trad. Antônio de Arruda Ferrer Correia. São Paulo: Saraiva, 1938, p. 230. 295 Cf. WESTERMANN, Harm Peter. Código civil alemão; direito das obrigações; parte geral. Trad Armindo Edgar Laux. Porto Alegre: Fabris, 1983, p. 136. 296 Cf. SANTOS, Antonio Jeová. Dano moral indenizável. 4ª ed. rev. ampl. e atual. de acordo com o novo código civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 92. 297 FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 8ª ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 184.

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ocorrer danos morais sem que ocorra, necessariamente, dor, vexame e

sofrimento, bem como podem surgir estes sentimentos sem que o dano moral

seja configurado298. Assim, concluem que dor, vexame, constrangimento ou

humilhação (o “mal evidente”) traduzem situações desagradáveis, mas que

podem ser justificáveis e legítimas299.

Mas há uma forte tendência de todas estas correntes em focalizar, o tanto

quanto possível, a lesão, e para isto é contundente o recurso de exclusão do dano

patrimonial para a configuração do dano moral.

3.3 Do eurocentrismo à realidade doutrinária e jurisprudencial brasileira

O estudo do direito comparado até aqui empreendido e que seguiu uma

percepção diacrônica dos acontecimentos analisou o Direito de outros países,

notadamente Itália, Alemanha e França, principalmente quanto aos direitos da

personalidade, responsabilidade civil e danos morais. As imprescindíveis

contribuições, conforme se verá, foram notoriamente absorvidas, à sua maneira,

pela doutrina e jurisprudência brasileira. A análise recairá, neste momento, e

por uma questão de metodologia, sob o desenvolvimento das referidas fontes do

Direito brasileiro até antes da promulgação da Constituição de 1988300. Assim, a

verificação do impacto da legislação sobre essas outras fontes será tema para o

capítulo seguinte, obedecendo-se uma ordem de exposição.

A partir deste apontamento, segue-se para uma análise da teorização dos

direitos da personalidade e dos danos morais que não se restringiu ao

298 Cf. FILHO, Sergio Cavalieri. Programa de responsabilidade civil. 6ª ed., 2ª tiragem, rev. ampl. e atual.São Paulo: Malheiros, 2005, p. 101. 299 Cf. MORAES, Maria Celina Bodin. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 130. 300 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada aos 5 de outubro de 1988. Brasilia: Senado, 1998.

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continente europeu, sendo possível localizá-la embrionariamente na doutrina

brasileira de fins do Séc. XIX. E se de fato esses institutos vieram de um

contexto eurocentrista, necessário é observá-los segundo uma responsabilidade

historicamente situada, ou seja, conforme critérios de conveniência que

determinam como pessoas e grupos devem interagir, de modo a se fixar as

“condições em relação às quais um dano deve ser suportando por um sujeito ou

por outro, isto é, pelo agente causador ou pela própria vítima301” . Assim,

durante o século XX, mormente na vigência do primeiro Código Civil

brasileiro302 (1916), o entendimento majoritário era o de que o dano moral não

poderia ser reduzido a mero valor monetário303. O critério de conveniência

fixava o caráter de indenizabilidade (devolução do patrimônio ao estado

anterior) tão somente quanto aos danos suscetíveis de avaliação pecuniária,

excluindo-se, em conseqüência, os danos morais.

Naturalmente que uma nova modalidade de indenização se fizesse

presente antes na doutrina que na legislação e jurisprudência, e entre os escritos

brasileiros que trataram sobre os direitos da personalidade antes de sua

positivação, destaca-se o da lavra de FRANCISCO CAVALCANTI PONTES

DE MIRANDA (1892-1979), enciclopedista que tratou de matérias próprias da

dogmática e, neste tocante, praticamente igualou-os à personalidade304,

classificou-os como absolutos305 e, juntamente com a doutrina alemã acerca do

tema, apontou aos mesmos regime jurídico diversificado306:

301 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 20. 302 BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Disponível em <http://www.planalto.gov.br /ccivil_03/LEIS/L3071.htm>. Acesso em: 26/11/2007. 303 Cf. MARTINS-COSTA, Judith. Os danos à pessoa no direito brasileiro e a natureza da sua reparação. In MARTINS-COSTA, Judith (Coord.). A Reconstrução do direito privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 434. 304 Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Atual. Vilson Rodrigues Alves. 1ª ed. São Paulo: Bookseller, 2000, Tomo VII, p. 37. 305 Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Atual. Vilson Rodrigues Alves. 1ª ed. São Paulo: Bookseller, 2000, Tomo VII, p. 32. 306 Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Atual. Vilson Rodrigues Alves. 1ª ed. São Paulo: Bookseller, 2000, Tomo VII, p. 30 e seg.

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O direito da personalidade, os direitos, as pretensões e ações que dele irradiam são irrenunciáveis, inalienáveis e irrestringíveis307.

Também houve contribuição assídua do jurista carioca LEVI CARNEIRO

(1882-1971) que, em seu posicionamento positivista, atribuía ao então art. 76 do

Código Civil de 1916308 leitura a possibilitar a propositura de demanda por

“interesse moral”, estando neste dispositivo a legitimidade da indenização por

danos morais309. Ressalta-se que a referida expressão daquele Código seria

objeto de discussão por quase todo o Séc. XX.

Com ORLANDO GOMES (1909-1988), a teoria relacional dos direitos

da personalidade ganharia renovada força, afastando-se a idéia de direitos

inatos e, à moda de ADRIANO DE CUPIS, sublinhando a importância de um

ponto de partida legal a fundamentar os bens jurídicos que abarca310.

Por fim, RUBENS LIMONGI FRANÇA (1927-1999) apresenta os

direitos da personalidade formados por um complexo de bens como direitos

inatos e como categoria autônoma de direitos subjetivos, e que teriam uma forte

ligação com o atributo personalidade311.

Nota-se que estas teorias costumam se preocupar com o exame do Direito

segundo o bem, enquanto que, conforme se verá, o enfoque dado pelos

doutrinadores que versam sobre danos morais costuma se ater à lesão (ou dano

causado).

307 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Atual. Vilson Rodrigues Alves. 1ª ed. São Paulo: Bookseller, 1999, Tomo I, p. 216. 308 “Art. 76. Para propor, ou contestar uma ação, é necessário ter legítimo interesse econômico, ou moral” . In BRASIL. Lei nº 3.071 de 1º de janeiro de 1916. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L3071.htm>. Acesso em: 26/11/2007. 309 Cf. ARRUDA, João. Damno Moral. Revista dos Tribunaes. São Paulo, Anno XIV, Vol. LV, Fasciculo n. 297, p. 12, jul. e ago. 1925. 310 Cf. GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. Rev. atual. e aumen. de acordo com o código civil de 2002 por Edvaldo Brito e Reginalda Paranhos de Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 135. 311 Cf. FRANÇA, Limongi R. Do Nome Civil das Pessoas Naturais. 2ª ed. Rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964, p. 154/155.

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A recepção da teoria dos danos morais também se deu no Brasil e formou

adeptos das duas correntes solidificadas em terras européias de cognição do

instituto nas formas positiva e negativa.

Com os novos interesses jurídicos tutelados pelo Estado e disciplinados

no campo da responsabilidade civil, diversas correntes têm se formado para

desenvolver e pormenorizar a nova situação jurídica. Dos posicionamentos que

se seguem - adverte-se – procurou-se evidenciar e explorar as pequenas nuanças

que puderam ser observadas, abandonando-se tanto quanto possível as certezas

afins.

O primeiro conceito que, como dito, definiu-se a partir dos efeitos

provocados pelo dano e que teve, entre outras, a contribuição francesa de

GEORGES RIPERT (1880-1959), foi amplamente absorvido pela doutrina

brasileira. JOSÉ DE AGUIAR DIAS (1906-1996) manifestamente segue o

ponto de vista segundo o qual ou o dano se reveste das características do dano

patrimonial ou do dano moral, mas seria pelo efeito da lesão (“dolorosa

sensação experimentativa pela pessoa312”) que se caracterizariam os segundos.

E além de ANTÔNIO JEOVÁ SANTOS313, outros autores também trazem o

entendimento de dano moral como “sofrimento psíquico” relativo à dor,

sentimento, frustração e tristeza, como é o caso de ARNALDO RIZZARDO314.

Conceito e conseqüência são, neste enfoque dogmático, uma única coisa, o que

afasta a investigação das suas premissas, a explicação do fenômeno,

acentuando-se exponencialmente uma orientação “para uma ordem

finalista315” , isto é, recaindo-se todo o exame praticamente na solução do

problema social em enfoque. Problema este de ordem reparatória que procura

312 Cf. DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1954, Tomo I, p. 720. 313 Cf. SANTOS, Antonio Jeová. Dano moral indenizável. 4ª ed. rev. ampl. e atual. de acordo com o novo código civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 93. 314 Cf. RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil: Lei nº 10.406, de 10.01.2002. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 18 e 246. 315 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 83.

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completar o que o ressarcimento patrimonial não alcança. Assim, a teoria do

resultado mantém a salvo de questionamento o dano moral de tal forma que

sequer se propõe a analisá-lo, restringindo-se à solução de conflitos.

A segunda corrente, que segue pelo conceito negativo onde danos morais

são danos extrapatrimoniais, encontrou em FRANCISCO CAVALCANTI

PONTES DE MIRANDA um de seus maiores expoentes, segundo o qual é dada

à indenização por lesão a bens não patrimoniais a possibilidade de reparação

que apague a lesão (o que o mesmo chama de reposição natural316),

exemplificando com a “retratação do caluniador ou do injuriante317”.

Desenvolvendo o tema, afirmou o autor que a indenização por ofensa à pessoa

dá à vítima a “opção” de exigir, “em vez da reposição natural, a quantia

necessária à cura ou à reparação318” . Outro jurista a caminhar, a seu modo,

nesta direção é WILSON MELO DA SILVA (1911-1997), que compreende o

dano moral como instituto restrito à pessoa natural e segue a definição negativa

frente ao patrimônio, estabelecendo que ou a lesão sofrida ocorre no patrimônio

material, ou no patrimônio ideal319.

Ressalta-se que, muito embora se constate ao longo do Séc. XX

contundente contribuição da doutrina sobre os direitos da personalidade e os

danos morais, a jurisprudência pouco produziu sobre o assunto. É possível

localizar no ano de 1913, isto é, ainda na vigência das ordenações, alvarás, leis,

decretos e resoluções anteriores ao primeiro Código Civil brasileiro (1916) o

que foi tratado como “exemplo isolado” de uma aceitação da indenizabilidade

dos danos morais. Este exemplo, que alcançou a última esfera judicante do país

na forma de julgado, recebeu reforma a se apresentar, ao final, em sentido

316 PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. Atual. Vilson Rodrigues Alves. 1a ed. Campinas: Bookseller, 2003, Tomo XXII, p. 261. 317 PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. Atual. Vilson Rodrigues Alves. 1a ed. Campinas: Bookseller, 2003, Tomo XXII, p. 251. 318 PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. Atual. Vilson Rodrigues Alves. 1a ed. Campinas: Bookseller, 2003, Tomo XXII, p. 261. 319 Cf. SILVA, Wilson Melo da. O dano moral e sua reparação. 2ª ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 1969, p. 13.

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contrário, fixando-se, a partir de então, entendimento oposto à possibilidade de

indenização dos danos morais que seguiria por inúmeras décadas:

EMENTA: Não é admissível que os sofrimentos morais dêem lugar a reparação pecuniária, se deles não decorre nenhum dano material. (...) O conflito doutrinário se apresenta insolúvel e toda a questão se sintetiza nessa simples fórmula: Admite o direito civil pátrio a indenização por dâno moral? Descabe, com efeito, no âmbito do recurso definir a melhor e mais aconselhavel doutrina, problema reservado à sabedoria legislativa e apenas proclamar a que encontra agazalho à sombra da construção positiva do direito pátrio. Rastreando-se a jurisprudência, lícito é afirmar que a reposta, com peregrinas excepções, se bem manifestado negativamente todas às vezes que enuncia a interrogação ante as côrtes de justiça. Em decisão de 13 de Dezembro de 1913, anterior pois ao direito codificado por solução favoravel mas o arésto, reformado em embargos, permaneceu como exemplo isolado. Sobrevindo o Código Civil, firmou-se a diretriz, parecendo mesmo ao grande mestre de direito que foi o ministro Edmundo Lins, impertinente, sob o novo regime, qualquer discussão sobre o assunto (...) Deante, porém, do Código Civil, não lhe parecia possível o ressarcimento do preço da dor (...)320.

Nota-se que o entendimento jurisprudencial que se consolidava frente à

interpretação da responsabilidade civil do novel Código Civil de 1916

(sobretudo quanto ao art. 159321) levava ao entendimento de que o legislador

não teria adotado expressamente a teoria dos danos morais e, por isso, seria tal

indenização inaplicável, afastando-se a tutela existencial da esfera de interesse

do indivíduo. Como visto, tal posição continuou firme durante toda a década de

320 Conforme português original. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. Ministro Relator Hahnemann Guimarães. RE 11786. Julgado aos 07/11/1950. Disponível em <http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/> Acesso em: 26/11/2007. 321 “Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano. A verificação da culpa e a avaliação da responsabilidade regulam-se pelo disposto neste Código, arts. 1.518 a 1.532 e 1.537 a 1.553”. In BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L3071.htm> Acessado em: 28/11/2007.

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1950322, e a partir da década de 1960, passariam os danos morais a serem

tratados como uma conseqüência ou, mesmo, como próprios danos

patrimoniais:

A jurisprudência vem se firmando no sentido de que os pais são titulares do direito a indenização, decorrente de ato ilícito que haja causado a morte de filho, ainda que menor. Ora com fundamento em que é freqüente, na classe pobre, o filho menor contribuir para a economia do lar; vêzes outras, com apoio em que há valor econômico em estado potencial. Decorrendo daí, indubitavelmente, um dano econômico323.

E a dificuldade que se passava na prática forense de diferenciar o que era

um interesse de ordem econômica do que era interesse de ordem moral já era

evidenciada desde o início do Séc. XX, como firmemente constatou o jurista

JOÃO ARRUDA324.

Mas as incursões no campo da doutrina e da jurisprudência renderam

frutos no âmbito legislativo que, embora tardio, já podia ser localizado na

década de 1960, quando um dos primeiros projetos de lei foi proposto com o

objetivo específico de disciplinar o dano moral como aquele cujo efeito não é

patrimonial. Tratava-se da proposição PL-3829, apresentado aos dez de agosto

de 1966 no plenário da Câmara do Senado pelo Deputado (pelo Ceará)

ARMANDO FALCÃO da Aliança Renovadora Nacional – Arena. Contudo, o

interesse sobre a delimitação da matéria era pouco e o projeto terminou

arquivado em março do seguinte ano325. Ainda na década de 1960, o Deputado

322 STF. Segunda Turma. Ministro Afrânio Costa. RE 29447. Julgado aos 25/11/1958; STF. Primeira Turma. Ministro Relator Nelson Hungria. RE 42723. Ambos Disponíveis em <http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia> Acessados em: 26/11/2007. 323 STF. Primeira Turma. Ministro Djaci Falcão. RE 59111. Julgado aos 15/05/1967. Disponíveis em <http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/> Acessados em: 26/11/2007. 324 Cf. ARRUDA, João. Damno Moral. Revista dos Tribunaes. São Paulo, Anno XIV, Vol. LV, Fasciculo n. 297, p. 13, jul. e ago. 1925. 325 BRASIL. Senado. Projeto de Lei nº 3.829 de 10 de agosto de 1966. Propõe-se a disciplinar o dano moral, de efeitos não patrimoniais, praticados através de meios de divulgação, apresentado pelo Dep. Armando Falcão (Arena). Disponível em <http://www2.camara.gov.br/proposicoes> Acesso em: 20/12/2007.

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(pelo Espírito Santo) FEU ROSA, também da Arena, propôs o PL-1900 ao

plenário do Senado aos vinte e dois de outubro de 1968. Versava o projeto sobre

a regulamentação da “reparação do dano moral, em ação cível”, voltada para

os casos de calúnia e difamação pela imprensa, mas também foi arquivado na

Câmara dos Deputados após três anos de tramitação326.

Se até então no campo legislativo pouca atenção se deu ao assunto, na

jurisprudência a situação se encontrava na difícil delimitação do âmbito dos

danos morais ocasionando, como demonstrado, uma confusão entre a

indenização por danos morais e patrimoniais, o que levou à discussão sobre a

possibilidade ou não da cumulação das duas formas de indenização (que seguiria

até fins da década de 1980)327.

O assunto apenas voltaria para a pauta do legislativo no ano de 1981, com

o PL – 4486 do Deputado VALTER GARCIA (de São Paulo) do PMDB, o qual

pretendeu conceituar os danos morais e disciplinar sua reparação, mas seu

projeto seria arquivado aos dezessete de março de 1987 pela Mesa Diretora da

Câmara dos Deputados328. Quase uma década mais tarde, novo Projeto de Lei

foi oferecido, desta vez pelo Deputado do Rio Grande do Sul WALDOMIRO

FIORAVANTE (PT), o qual pretendeu ver os danos morais definidos e

aplicados nas causas de competência da Justiça do Trabalho. Embora tenha esse

PL – 1533 recebido a recomendação do Relator da Comissão de Constituição e

Justiça e da Cidadania, acabou com o mesmo destino dos outros projetos329.

Nestes termos, a idéia de danos morais, cujo berço é eminentemente

europeu, recebeu de três fontes do Direito brasileiro a atenção com vistas para a

326 BRASIL. Senado. Projeto de Lei nº 1.900 de 26 de novembro de 1968. Propõe-se a regulamentar o dano moral, em ação cível, e dá outras providências, apresentado pelo Dep. Feu Rosa (Arena). Disponível em <http://www2.camara.gov.br/proposicoes> Acesso em: 20/12/2007. 327 STF. Segunda Turma. Ministro Carlos Madeira. RE 109083. Julgado aos 05/08/1986. Disponíveis em <http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/> Acessados em: 26/11/2007. 328 BRASIL. Senado. Projeto de Lei nº 4.486 de 12 de maio de 1981. Propõe-se a conceituar os danos morais, prejuízos, patrimônio, indenização e reparação. Apresentado pelo Dep. Valter Garcia (PMDB). Disponível em <http://www2.camara.gov.br/proposicoes> Acesso em: 20/12/2007. 329 BRASIL. Senado. Projeto de Lei nº 1.533 de 27 de fevereiro de 1996. Define o dano moral e atribui à Justiça do Trabalho competência para apreciá-lo quando decorrente da relação de trabalho. Apresentado pelo Dep. Waldomiro Fioravante (PT). Disponível em <http://www2.camara.gov.br/proposicoes> Acesso em: 20/12/2007.

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sua solidificação e aplicação, absorvendo a base teórica predominantemente

estrangeira. Contudo, no final do Séc. XX a idéia de danos morais já era

suficientemente madura para que o desenvolvimento do instituto já ocorresse

com fundamento na experiência adquirida pela sociedade brasileira.

3.4 Constitucionalização dos danos morais

Pode-se adiantar que a importância da constitucionalização dos danos

morais para os direitos da personalidade se encontra na aproximação dessa

forma específica de tutela junto à lesão da vida privada, imagem, intimidade e

honra, elementos que classicamente integram os direitos da personalidade330.

Contudo, neste momento os danos morais serão analisados conforme o texto

constitucional que o disciplinou. Assim foi que a promulgação da Constituição

de 1988 seguiu a tendência de sua época quanto à forte recepção de institutos

desenvolvidos pelo direito privado331, o que demonstra um direcionamento para

a privatização do direito público. E foi assim que esse texto constitucional

trouxe nova perspectiva para a teoria dos danos morais e para a jurisprudência

acerca da responsabilidade civil. Isto porque, ao contrário do que antes se

entendia, optou-se pela fixação do critério indenizatório de danos morais, tendo

a política legislativa empreendida na promulgação da referida Constituição

levado à positivação expressa de tal opção: “Art. 5º (...) V - é assegurado o

direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano

material, moral ou à imagem (...)332” .

330 Assunto a ser tratado com mais profundidade nos capítulos seguintes, sobretudo nos itens 4.4 e 5.2. 331 Cf. NETO, Eugênio Facchini. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2ª ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2006, p. 28. 332 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada aos 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado, 1998.

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Nota-se que a adoção desse tipo de instituto de direito privado acarreta,

como já se advertiu, uma diminuição de instrumentos mais impositivos e

autoritários por parte do poder público333, o que fortemente agrada a liberdade

dos modernos. Assim, no Brasil do início do Séc. XX já se chamava a atenção

para a “necessária” atuação dos juristas neste sentido:

O insigne magistrado cuja sentença me levou a tomar da penna para escrever essas poucas linhas bem accentou tal circumstancia em seu precioso estudo do caso que decidiu com rara união dos dotes do espirito e do coração. E’ elle uma prova viva de que hoje não é mais o juizo monstro de crueldade que sahia a sorrir do tribunal, quando era grande o numero das sentenças capitaes: que dizia sentir não poder, nos pleitos cíveis, condemnar as duas partes; que suppunha, como suppoz Carpzov, que, condemnando à morte mais de vinte mil homens, tinha regenerado o mundo; que applicava da maneira mais dura a lei, no presupposto de que o legislador quer soffram todos, ou paguem os cidadãos a macula original... Não. Hoje são os bons magistrados aquelles que procuram ser uteis á sociedade, harmonizando quanto possivel os interesses dos litigantes, applicando as leis de fórma a serem ellas um minimo de restricção á liberdade dos membros da communhão334.

A atuação do Estado junto ao indivíduo que infringe o direito vai,

gradativamente, mudando, ao passo que a adoção de instrumentos de tutela

tipicamente de direito privado vão se incorporando ao direito público,

geralmente em prol de um forte condicionante: a liberdade.

Mais que isso, como o legislador não fez nada mais que utilizar o termo

dano moral num contexto, notadamente, de responsabilidade (civil),

praticamente não houve restrição à teoria dos danos morais, e o impacto

legislativo sobre a doutrina foi forte apenas no ponto de afastar em muito a

discussão de sua validade (ou existência). Assim, questionamentos sobre a 333 Cf. NETO, Eugênio Facchini. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2ª ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2006, p. 28. 334 Cf. ARRUDA, João. Damno Moral. Revista dos Tribunaes. São Paulo, Anno XIV, Vol. LV, Fasciculo n. 297, p. 13, jul. e ago. 1925.

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pertinência ou justificativa dos danos morais deixaram de ser pauta de

discussão335. À lesão a bens “não patrimoniais” restou, assim, a “satisfação”

pecuniária, e o enfoque dos debates passou do “por que” para o “como”, ou seja,

qual seria a melhor forma de indenização dos danos morais.

Nota-se que, se o fenômeno até aqui analisado aponta para uma

privatização do direito público pelo meio legislativo, já que a idéia de

indenização (ou reparação) dificilmente se desassocia da responsabilidade civil,

pelo caminho da doutrina tem-se uma retribuição do ramo público (já

contaminado) junto ao direito privado. Trata-se da aplicação principiológica do

ideal constitucional junto ao direito privado, assunto a ser tratado no último

capítulo deste trabalho.

E no Título II (“dos direitos e garantias individuais”) o legislador da

Constituição de 1988 expressamente alocou o termo dano moral (próprio do

direito privado) junto à inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e

imagem como forma de indenização:

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

A partir de então, os danos morais passaram a receber da jurisprudência

outro tratamento, sobretudo a abarcar amplamente a teoria desenvolvida pelo

jusnaturalismo. E os primeiros dois anos da década de 1990 trataram de

sedimentar os danos morais também na seara positivista, já que a edição da

Súmula nº 37336 do Superior Tribunal de Justiça, além de por fim à discussão

acerca da comutatividade das indenizações de cunho patrimonial e moral, ainda

335 “Já foi controvertida a questão da reparabilidade do dano moral, estando hoje pacificada mesmo no que tange à sua cumulabilidade com o dano moral” em FILHO, Sergio Cavalieri. Programa de Responsabilidade Civil. 6a ed., rev., aum. e atual., 2a tiragem. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 102. 336 “São cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato”. In STJ. Súmula nº 37. Corte Especial. Julgado aos 13/03/1992. Publicado no DJ aos 17/03/1992, p. 3172. Disponível em <http://www.stj.gov.br/SCON/sumulas/ > Acessado aos 28/11/2007.

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expressamente fez menção ao então art. 159 do Código Civil brasileiro do Séc.

XX . Ressalta-se que a interpretação que se formava acerca do referido

dispositivo de lei era exatamente contrário ao que se viu nas décadas passadas.

Ou seja, se antes não se concebia o dano moral porque a Código Civil de 1916

não o tratava expressamente e, por isso, te-lo-ia excluído do ordenamento, agora

o simples fato de reger a indenização por atos ilícitos (responsabilidade civil)

era suficiente, já que o dano pode ser patrimonial ou não. Eis o que o Supremo

Tribunal Federal manifestou sobre o assunto, expressamente alocando os

princípios e regras pertinentes à responsabilidade civil junto aos danos morais

que a Constituição de 1988 tratou:

Penso que o que o constituinte brasileiro qualifica como dano moral é aquele dano que se pode depois neutralizar com uma indenização de índole civil, traduzida em dinheiro, embora a sua própria configuração não seja material. Não é como incendiar-se um objeto ou tomar-se um bem da pessoa. É causar-lhe um mal evidente (...)337

E a expansão da indenização (civil) por danos morais foi tamanha que

antes do início do Séc. XXI, a contragosto de grande parte da doutrina

(sobretudo no que se refere à corrente existencialista338), tal reparação alcançou

as pessoas jurídicas, tendo o referido tribunal editado a Súmula nº 227339 neste

sentido, o que representa uma forma de não recepção da própria restrição dada

pela teoria dos direitos naturais.

Nota-se, assim, que a Constituição de 1988 abarcou tanto o instituto dos

danos morais quanto o seu contexto junto à responsabilidade civil, exemplo do

337 Voto do Ministro Francisco Rezek, in BRASIL. STF. Recurso Extraordinário nº 172720. Rel. Min. Marco Aurélio. Julg. Em 06/02/1996 e publ. no Diário da Justiça, pg. 02831, em 21/02/1997 338 Cf. MARTINS-COSTA, Judith. Os danos à pessoa no direito brasileiro e a natureza da sua reparação. In MARTINS-COSTA, Judith (Coord.). A Reconstrução do direito privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 438, e MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 306. 339 STJ. Súmula nº 227. Segunda Seção. Julgado aos 08/09/1999. Publicado no DJ aos 08/10/1999, p. 126. Disponível em <http://www.stj.gov.br/SCON/sumulas/ > Acessado aos 28/11/2007.

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movimento de privatização do direito público a evidenciar, como se verá, a

formação de um plano a fazer aproximar direitos da personalidade, direitos

fundamentais e dos danos morais.

4 FUNDAMENTOS

O dia dez de janeiro do ano de 2002 inaugurou, como o foi na Itália de

meados do Séc. XX, nova fase tanto para os direitos da personalidade quanto

para os danos morais. Estes últimos, convém relembrar, já constavam da

Constituição de 1988 no extenso rol dos “Direitos e Garantias

Fundamentais340” e já tinham a sua disciplina fixada junto à responsabilidade

civil. Mas foi no início do Séc. XXI que o legislador ordinário brasileiro fez

constar expressamente os direitos da personalidade num dos estatutos mais

relevantes para o Direito Privado: o Código Civil341. Trata-se, verdadeiramente,

da absorção do entendimento elaborado pelos teóricos jusnaturalistas ao longo

do Séc. XIX e XX sobre o tema. Contudo, e da mesma maneira que as duas

teorias não se mostravam plenamente unânimes nem mesmo entre os seus

simpatizantes, o exame do texto legislativo não evidencia nenhum acatamento

explícito do entendimento de um ou outro doutrinador. Assim, cabe a

advertência de que, se antes a fonte (do Direito) acerca de direitos da

personalidade era exclusivamente a doutrina (como o fora em grande parte com

os danos morais antes de 1988), após o ano de 2002 o monopólio se quebrou,

tudo isso a muito depender do enfoque utilizado. Nestes termos, o estudo dos

institutos pode seguir um enfoque dogmático para ou fazer continuar a doutrina

340 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada aos 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado, 1998. 341 BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, 11 de janeiro de 2002.

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jusnaturalista, ou iniciar uma nova, nos ditames do legalismo. Para a presente

pretensão, ambos os elementos colhidos na dogmática são importantes, mas

optou-se pelo ponto de vista histórico, diacrônico, a levemente fazer inclinar

para o enfoque zetético. E como antes, procurar-se-á o mesmo caminho, que já

foi evidenciado quanto à estruturação e contexto das eras Antiga, Média,

Moderna e Contemporânea, justificando a solidificação do pensamento liberal

(liberdade dos modernos) e a situação (em parte) condicionante da ordem

finalística. O empreendimento agora é demonstrar quais os limites legislativos

das teorias naturalistas que se sucederam quando da absorção, no plano legal,

da doutrina, bem como (re)evidenciar a contextualização do texto de lei e

doutrina sobre o assunto, de modo a se alcançar uma fundamentação dos

direitos da personalidade. E o que se pretende dizer não é que, com o advento

do Código Civil de 2002, a doutrina do direito natural se tornou obsoleta ou,

mesmo, que esta teria cumprido o seu papel (de forçar a recepção de

determinada teoria na lei). Entende-se que a “idolatria legalista342” restringe em

muito a investigação científica por fazer compreender que a única fonte do

direito é a legislação. Acredita-se, ao contrário, que o direito natural continuará

angariando adeptos para a contínua construção, a seu modo, do Direito.

Contudo, não será o presente estudo limitado nem às premissas do legalismo,

nem as dos jusnaturalistas, muito pelo contrário, tudo isto entrará como

elementos para uma convicção final, devidamente contextualizada.

Nestes termos, nem o exame das velhas e das renovadas concepções da

dogmática naturalista, nem os textos que reúnem regras e princípios se

mostrarão limites para as pretensões buscadas, muito embora se tratem de fonte

de inegável prestígio para o presente trabalho.

E o desenvolvimento da teoria dos direitos da personalidade

extensamente tratada por autores do escol de FRANCISCO CAVALCANTI

342 Cf. POLI, Leonardo Macedo. A funcionalização do direito autoral: limitação à autonomia privada do titular de direitos autorais. In GALUPPO. Marcelo Campos (org.). O Brasil que queremos: reflexões sobre o Estado democrático de direito. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2006, p. 412.

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PONTES DE MIRANDA, ORLANDO GOMES, RUBENS LIMONGI

FRANÇA e tantos outros alcançou, assim, um evidente estado de maturação a

conquistar o campo legislativo, introduzindo-se no Código Civil onze artigos e

quatro parágrafos com essa rubrica.

Seguiu o legislador, precisamente, o caminho da contemporaneidade, com

certo reducionismo da pessoa à sua capacidade, bem estampado no Livro I da

Lei nº 10.406/02343 o qual, embora tenha sido titulado Das pessoas, pouco mais

faz do que disciplinar a personalidade e capacidade. Ou seja, o texto legislativo

não se inaugura pela pessoa, mas sim sobre o que ela (homo faber) é capaz de

fazer344. E sobre o pálio do mesmo Livro I, absorveu-se parte da doutrina

clássica dos direitos da personalidade desenvolvida até meados do século

passado, mas optou-se por apresentar um rol de bens tuteláveis (embora não

tenha utilizado este termo) que a doutrina jusnaturalista trata de ampliar. São

eles, segundo a Lei nº 10.406/02, a integridade física durante a vida (art. 13 e

15) e post mortem (art. 14), o nome, prenome, sobrenome (art. 16 e 17) e

pseudônimo (art. 18 e 19), a imagem, os escritos, as transmissão de palavras e as

publicações (art. 20), bem como a vida privada da pessoa natural (art. 21). Aqui

é possível observar que paira uma das limitações legislativas à teoria de direito

natural, que tratou de estabelecer, na forma de numerus clausus, os direitos da

personalidade.

A categoria dos direitos da personalidade recebe, assim, regime jurídico

próprio (v.g. pela impossibilidade de transmissão ou renúncia345), seguindo,

ainda que não integralmente, a doutrina tedesca e itálica do segundo século da

contemporaneidade. Tem-se, aqui, nova limitação à teoria de direito natural,

posto que o novo regime se restringiu a determinar como princípio (a nortear a

343 BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, 11 de janeiro de 2002. 344 “Art. 1 o Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil” . In BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, 11 de janeiro de 2002. 345 “Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”, in BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, 11 de janeiro de 2002.

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interpretação) a intransmissibilidade e a irrenunciabilidade, enquanto a síntese

do pensamento jusnaturalista aponta para os direitos da personalidade como:

(...) direitos inatos (originários), absolutos, extrapatrimoniais, intransmissíveis, imprescritíveis, impenhoráveis, vitalícios, necessários e oponíveis erga omnes, como leciona, aliás, o art. 11 do novo Código346.

E estes são, grosso modo, os primeiros limites impostos pelo legislador

brasileiro sobre as teorias de direito natural, mas a maior seria, sem dúvida, o

estabelecimento como regra geral da indenização segundo as perdas e danos

quando da lesão a direitos da personalidade, assunto a ser devidamente tratado

após a análise do regime de bens dos direitos da personalidade. Trata-se, assim,

de examinar o que é fundamental para em seguida alcançar o que são os

fundamentos.

4.1 Regime de bens dos direitos da personalidade

Uma advertência inicial deve ser feita sobre a idéia de direitos da

personalidade e dos bens que estes guarnecem. Trata-se da ponderação feita por

HANNAH ARENDT (1906-1975) sobre a capacidade humana de “conhecer,

determinar e definir a essência natural de todas as coisas que nos rodeiam e

que não somos (...)347”. Evidencia-se, assim, uma limitação cognitiva do ser

humano quando o assunto não é “o quê”, mas sim “o quem”. Ou seja, definir a

natureza ou essência humana depende de uma condição prévia a se poder falar

346 BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 7ª ed. Atual. Eduardo C. B. Bittar. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 11. 347 Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 18.

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de um “quem” como se esse fosse um “quê”348. Esta advertência justifica a

dificuldade por que passa a doutrina quando o tema é a definição de direitos da

personalidade, ou seja, quando os estudiosos desse instituto, ao invés de

explicar o significado, afirmam que “estariam ligados à essencialidade da

pessoa”, tendendo a delimitar o assunto com base nos bens que resguarda

(“modo de ser físico e moral349” ), caminhando para certa objetivação. Mas as

conseqüências desse direcionamento já fizeram com que diversos autores que se

debruçaram sobre o tema renovassem a advertência de que o conceito único de

bens costuma acarretar sérias dificuldades tanto da ordem prática quanto

metodolórgica350.

Tratar os direitos da personalidade e seus bens como algo que se

confunde com a própria “natureza humana” é procurar enfrentar esse limite

cognitivo que a filósofa e pensadora política alemã já evidenciava. Este é o

motivo que, aparentemente, faz com que a doutrina caminhe muito mais para o

exame dos bens (como objetos de direito351) que guarnecem os direitos da

personalidade do que para o instituto propriamente dito. Foi o que fez o

legislador do Código Civil de 2002 com a positivação de um rol de direitos da

personalidade e de princípios norteadores da aplicação. Mais que isso, alguns

autores chegam a tratar a própria personalidade (atributo jurídico que confere

348 Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 18 / 19. 349 Este entendimento e com algumas variações (conforme já apontado) pode ser encontrado em CAPELO DE SOUSA, Rabindranath V. A. O Direito Geral de Personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 92, BELTRÃO, Silvio Romero, Direitos da Personalidade: de acordo com o Novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2005, p. 20, SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da Personalidade e sua Tutela. 2ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 71, DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 36. 350 Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Atual. Vilson Rodrigues Alves. 2ª ed. São Paulo: Bookseller, 2000, Tomo II, p. 39, e FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil, teoria geral. 4ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 312. 351 Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Atual. Vilson Rodrigues Alves. 2ª ed. São Paulo: Bookseller, 2000, Tomo II, p. 36, GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Rev. atual. e aum. de acordo com o código civil de 2002 por Edvaldo Brito e Reginalda Paranhos de Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 179, e GOMES, José Jairo. Direito Civil: introdução e parte geral. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 294.

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titularidade para o exercício de direitos e deveres352) como um bem que

possibilita o gozo e exercício de outros bens353. Nota-se, com base neste último

entendimento, que bens e objeto de direito abstrato (regra que diz o que é e o

que não é objeto de direito354) são a mesma coisa. Sendo assim, para as

considerações desse trabalho os bens jurídicos são aqueles que se ligam à idéia

de utilidade355 a abranger, a gosto das regras do Código Civil de 2002356 e

grande parte da doutrina357, coisas e direitos.

Desta primeira ressalva quanto ao limite cognitivo e da definição de bens,

segue a contextualização como meio de auxiliar a delimitação do tema. Assim,

convém salientar que muito mais fácil que a compreensão de natureza humana é

a situação humana, um dos conceitos construídos ao longo do trabalho e que foi,

até o momento, bem sucedido quando submetido à prova. Deriva-se da

contextualização358 social do Direito, onde já foi demonstrado que, na

contemporaneidade, a esfera do social reina absoluta, diferindo-se muito pouco

da esfera política359, tudo isso a coroar a liberdade dos modernos. E se for certo

que isso e tudo o mais que a realidade do mundo oferece condiciona o modo de

ser do homem360, então é necessário relembrar que um dos prismas oferecidos

por essa realidade é a do homo faber a reduzir pessoa à sua capacidade e a se

preocupar exclusivamente com a atividade de produção valorizada por sua

352 Cf. FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 8ª ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 115. 353 Cf. SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Responsabilidade civil por danos à personalidade. Barueri: Manole, 2002, p. 02. 354 Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Atual. Vilson Rodrigues Alves. 2ª ed. São Paulo: Bookseller, 2000, Tomo II, p. 36. 355 Cf. GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Rev. atual. e aum. de acordo com o código civil de 2002 por Edvaldo Brito e Reginalda Paranhos de Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 179, e FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil, teoria geral. 4ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 306. 356 Arts. 79 a 103, in BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, 11 de janeiro de 2002. 357 Cf. AMARAL, Francisco, Direito Civil: introdução, 6a ed., rev., atual. e aum., Rio de Janeiro, Renovar, 2006, p. 310; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Atual. Vilson Rodrigues Alves. 2ª ed. São Paulo: Bookseller, 2000, Tomo II, p. 51 e 52. 358 Cf. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I. Trad. Flávio Paulo Meurer; rev. Enio Paulo Giachini. 7ª ed. São Paulo: Universitária São Francisco, 2005, p. 243. 359 Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 42. 360 Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 17.

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utilidade. E da análise do texto legislativo (ordinário) de nº 10.406/02 encontra-

se, como já apontado, o referido instrumentalismo. Nesta percepção (míope) de

mundo onde apenas o que é útil ao homem tem valor, podem se inserir, como

tudo mais, os direitos da personalidade, fazendo-se introduzir positivamente um

rol de bens de uso da pessoa. Bem como as coisas servem à pessoa para

determinados fins, no mundo do homo faber as pessoas também servem de fim

para outras pessoas, portando-se o Direito como “mero instrumento de atuação

do homem sobre outro homem361”.

Com todas essas advertências, onde a própria liberdade é colocada à

prova, é que se inicia o exame do que se poderia chamar de bens guarnecidos

pelos direitos da personalidade362. Neste tocante, se tanto o Código Civil quanto

a doutrina de direito natural compreendem os direitos da personalidade como

categoria autônoma de direitos subjetivos, necessário se faz o exame da

existência ou não, no plano legal, de uma nova categoria de bens, v.g., os

“extrapatrimoniais363” (ou “não-patrimoniais364” ).

O texto legislativo nº 10.406/02, ao contrário do que é corrente na

doutrina, não segue uma divisão entre bens patrimoniais e extrapatrimoniais.

Adota a divisão clássica de bens imóveis e móveis, de fungíveis e infungíveis,

consumíveis e inconsumíveis, divisíveis e indivisíveis, singulares e coletivos,

reciprocamente considerados e, por fim, os públicos365. Grosso modo, a

primeira classe se divide pela possibilidade (jurídica e fática) de se remover sem

destruição, modificação, dano ou fratura; a segunda prepondera pela

possibilidade ou não de substituição quantitativa ou qualitativa; a terceira indica 361 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 26. 362 Alguns autores que expressamente tratam como bens (objetos de direito) a vida, a honra, a integridade física e psíquica, entre outras, são PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Atual. Vilson Rodrigues Alves. 2ª ed. São Paulo: Bookseller, 2000, Tomo II, p. 31 e 45 e FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil, teoria geral. 4ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 206. 363 Cf. AMARAL, Francisco, Direito Civil: introdução, 6a ed., rev., atual. e aum., Rio de Janeiro, Renovar, 2006, p. 197. 364 Cf. MONCADA, Luís Cabral de. Lições de Direito Civil: parte geral. 4ª ed.. Coimbra: Almedina, 1995, p. 79. 365 Livro II – Dos Bens, arts. 79 a 103, in BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, 11 de janeiro de 2002.

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aquele bem móvel cujo uso acarreta destruição de sua substância; a quarta segue

a possibilidade ou não de fracionamento (jurídica ou fática) sem perda de

substância; a quinta trata de distinguir duas singularidades: ou um único bem ou

uma série de bens que serão vistos como uma universalidade; a quinta aponta

para a coisa que existe per si (principal) e da coisa que a esta depende para

existir366. A sexta classe apenas interessa para mostrar que, ao passo que o atual

estágio da dicotomia público privado aponta para uma ingerência do segundo

sobre o primeiro, algumas poucas exceções, como aquela do Código Civil de

2002 que disciplina os bens públicos, podem ser observadas.

Assim, e a partir das classes de bens que o Código Civil de 2002 reuniu

em seu Livro II, tem-se que os bens guarnecidos pelos direitos da personalidade

seriam infungíveis (não são passíveis de substituição), inconsumíveis (o uso não

importa destruição imediata da própria substância), indivisíveis (não se pode

fracionar sem alteração na substância) e singulares (são individualizados). Mas

apenas isto não oferece explicação satisfatória sobre estes bens, já que um

imóvel (que é coisa) pode reunir todas estas qualidades.

A resposta, que exige um renovar de idéias, também aponta para o socorro

nos conhecimentos prévios. E já ficou constatado (a muito gosto da doutrina de

direito natural) que os direitos da personalidade possuem regime jurídico

próprio a diferenciá-los dos outros direitos subjetivos. São, conforme

estabelecido pelo art. 11 do Código Civil de 2002, intransmissíveis e

irrenunciáveis, o que significa que sua titularidade não pode passar daquele que

a detém para terceiros e que este titular não pode deles abdicar.

A partir destes dois princípios, é possível compreender melhor esses bens,

pois a avaliação pecuniária, ao sofrer a barreira da ilicitude legal (enfoque

positivista), vai corroborando, ao menos inicialmente, com a teoria

jusnaturalista dos bens extrapatrimoniais. Trata-se de simples dedução segundo

366 Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Atual. Vilson Rodrigues Alves. 2ª ed. São Paulo: Bookseller, 2000, Tomo II, p. 55/144.

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a qual a intransmissibilidade impossibilita a alienação, e o fato de não se poder

transferir o domínio afasta (nesta lógica) qualquer interesse em valorar

monetariamente estes bens. Nota-se, assim, uma convergência entre o que se

estabeleceu doutrinariamente e o que foi estabelecido positivamente, apontando-

se para uma dogmática a negar a valoração dos bens que se referem aos direitos

da personalidade. Este caminho em comum, que faz afastar da doutrina e

jurisprudência qualquer aceitação quanto à valoração monetária dos bens que

se referem aos direitos da personalidade, ainda recebe do Estado de Direito

forte repressão à conduta contrária, de cunho mercadológico367, como acontece,

v.g., com o tráfico de seres humanos e o comércio de órgãos e tecidos humanos.

Tem-se, já aqui, uma clara limitação à idéia de mundo do homo faber (e do seu

princípio geral de fins e meios), onde os bens pertinentes aos direitos da

personalidade não adentram ao comércio da mesma maneira como o fazem os

direitos patrimoniais.

Contudo, é de se evidenciar a natureza relacional de tutela existencial dos

direitos da personalidade que pode ser ilustrada, v.g., pela exteriorização da

atividade intelectual criadora (Direito Autoral) que origina, pelo enfoque

subjetivo, tanto uma tutela patrimonial quanto existencial368. Este enfoque se

difere do anterior ao demonstrar que bens que compõem os direitos da

personalidade podem receber ambas as tutelas, o que evidencia o fato de que,

em determinados momentos, os direitos da personalidade serão vistos pelo

prisma patrimonial, inclusive a corroborar com a regra geral de perdas e danos

que será tratada no próximo capítulo.

A comprovação desse posicionamento, que revela certas peculiaridades

até aqui não evidenciadas, pode ser encontrada na localização do instituto em

367

Entre outras leis, há a que disciplina, inclusive no terreno criminal, a remoção de órgãos, tecidos e partes do

corpo humano, in BRASIL. Lei ordinária nº 9.434, de 04 de fevereiro de 1997, Disponível em

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9434.htm> Acessado aos 16/11/2007. 368 Cf. POLI, Leonardo Macedo. A funcionalização do direito autoral: limitação à autonomia privada do titular de direitos autorais. In GALUPPO. Marcelo Campos (org.). O Brasil que queremos: reflexões sobre o Estado democrático de direito. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2006, p. 412.

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seu contexto diacrônico. Retoma-se, aqui, a relação entre liberdade dos

modernos e a ordem finalística, contexto este que pode explicar e, mesmo,

justificar o regime jurídico atribuído tanto pela doutrina quanto pelo legislador

do Código Civil de 2002 no que concerne aos direitos da personalidade.

Ressalta-se, novamente, que a liberdade dos modernos e a ordem finalística são

dois condicionantes da moderna concepção do mundo. Contudo, a categoria

global representada pelo princípio da utilidade a atribuir a tudo (inclusive à

pessoa) o enfoque de fim e meio é supressora da liberdade dos modernos, e o

equilíbrio apenas se mostra possível com a supressão da categoria global.

Justamente aqui se inserem os direitos da personalidade os quais, se se

encontrassem em uma completa ordem jurídica de disponibilidade (própria do

patrimônio), sendo válida a transmissão, ter-se-ia a completa ruína do ideal de

liberdade. Isto porque a disponibilidade do corpo, da imagem, da vida privada,

do nome, dos direitos da personalidade em geral, importa em um estatuto de

sujeição e, mesmo, de escravidão, eliminando-se uma das premissas de

sustentação dessa liberdade. O alcance da ordem finalística do mundo do homo

faber chegaria ao seu apogeu a colocar tudo, sob todos os ângulos, como meio, e

aqui se dispõem como obstáculo desse reino dos fins da moral kantiana tanto os

direitos da personalidade quanto os direitos fundamentais.

Mas se há uma tutela dos direitos da personalidade que se volta para o

patrimônio, razoável a indagação sobre se o equilíbrio entre a liberdade dos

modernos e a ordem finalística seria possível. A resposta, conforme se verá,

poderá explicar um pouco mais sobre o regime de bens dos direitos da

personalidade.

Parte-se da idéia de que os bens que compõem os direitos da

personalidade não podem ser, a princípio, transmitidos (alienados ou dispostos),

seja pela construção da dogmática, seja pela determinação legislativa (caput do

art. 11), seja ainda pela justificativa contextual condicionante (liberdade dos

modernos). Assim, em sendo esta constatação razoável, tem-se que um mínimo

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para se garantir a liberdade dos modernos foi delineado, evitando-se a total

sujeição de um homem para com outro.

Esse mínimo, que impossibilita a transmissão, também acrescenta o

elemento irrenunciabilidade, muito trabalhado pela doutrina e que consta

também do caput do art. 11 do Código Civil de 2002. Esse último princípio se

apresenta diametralmente oposto aos dos direitos patrimoniais, disponíveis por

excelência369 (embora haja exceções).

Mas a “extrapatrimonialidade” de que tanto fala a doutrina merece, neste

momento, uma advertência. E esta advertência, que ressaltará a incongruência

entre a liberdade dos modernos e a ordem finalística, tem sua tônica na

instrumentalização dada aos bens dos direitos da personalidade. Assim, se esses

bens são intransmissíveis e irrenunciáveis e, em conseqüência disso, a discussão

sobre o seu preço ou é banal ou ilícita, evidenciando-se a natureza existencial, o

mesmo não se pode dizer sobre o seu uso. Difícil negar a possibilidade de

licença para o uso de imagem, que mantém o bem no seu domínio original, mas

faz o seu uso caminhar com liberdade e autonomia no mundo dos negócios, a

fazer incidir uma tutela extritamente patrimonial. E a existência no plano dos

direitos da personalidade do aspecto tanto patrimonial quanto existencial pode

ser ilustrada, v.g., com relação ao Direito Autoral:

Essa situação autoral que surge com a exteriorização da criação autoral, tanto no aspecto patrimonial, tanto no aspecto existencial, reveste-se de caráter absoluto, não no sentido de oferecer ao autor um poder ilimitado, mas no sentido de que comportaria oponibilidade erga omnes, visto que a relação jurídica não estaria inicialmente individuada, já que o(s) sujeito(s) passivo(s) ou centro de interesses contrapostos ainda estariam por se determinar370.

369 “Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”. In BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, 11 de janeiro de 2002. 370 Cf. POLI, Leonardo Macedo. A funcionalização do direito autoral: limitação à autonomia privada do titular de direitos autorais. In GALUPPO. Marcelo Campos (org.). O Brasil que queremos: reflexões sobre o Estado democrático de direito. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2006, p. 413.

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Os aspectos patrimonial e existencial podem, de fato, ser encontrados

junto aos direitos da personalidade, mas a localização da tutela fará depender,

justamente, da manutenção do mínimo a proteger a liberdade dos modernos.

Esta linha de pensamento, que leva em consideração a construção dogmática,

mas a ela notadamente não se limita, faz concluir que os direitos da

personalidade (objeto de direito abstrato), como regra jurídica que são,

determina a objetivação371 do que disciplina, criando bens (direitos e coisas)

cujo domínio é despido da disposição de titularidade, mas mantêem válidos

todos os demais elementos da propriedade (v.g. uso, gozo e fruição) desde que

não acarretem, justamente, nessa disposição. Ou seja, o limite para a colocação

do bem a serviço do titular ou a obtenção das vantagens proporcionadas pelo

bem não podem acarretar em uma limitação desse bem, posto que a

conseqüência seria a disposição.

Assim, a indisponibilidade de titularidade desses bens parece caracterizá-

los melhor do que a sua extrapatrimonialidade, até porque o seu titular, de fato,

pode beneficiar-se economicamente do bem quando o utiliza como objeto de um

negócio jurídico. E neste, desde que a titularidade fique incólume, o uso, gozo e

fruição do bem possui preço, seguindo as regras pertinentes ao patrimônio.

Mas antes de elevar esta conclusão à qualidade de premissa, necessário é

colocá-la em evidência, questioná-la junto ao rol de bens de direitos da

personalidade que legislação e doutrina tratam de solidificar. Não se quer, com

isso, adentrar com profundidade a este novo tema, até porque as pretensões do

presente trabalho se limitam à fundamentação dos direitos da personalidade.

Contudo, comprovar as assertivas até aqui produzidas fazem parte dessa

proposta, o que legitima uma verificação do assunto. Seguindo a pauta legal, a

Lei nº 10.406/02, como já sublinhado, trata da integridade física durante a vida

371 Trata-se da idéia segundo a qual a regra jurídica determina ou a subjetivação do que disciplina, como o faz com a pessoa, ou a objetivação, que é o caso dos bens. In PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Atual. Vilson Rodrigues Alves. 2ª ed. São Paulo: Bookseller, 2000, Tomo II, p. 31.

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(art. 13 e 15) e post mortem (art. 14), o nome, prenome, sobrenome (art. 16 e 17)

e pseudônimo (art. 18 e 19), a imagem, os escritos, a transmissão de palavras, as

publicações e, sobretudo, a honra (art. 20), bem como a vida privada da pessoa

natural (art. 21)372.

Mantendo-se o que já foi dito, a idéia de bens de direitos da

personalidade é amplamente abarcada na doutrina segundo uma definição de

bens como gênero das espécies coisa e direito. Assim, os direitos da

personalidade se tratam de objeto de direito em abstrato por se portar como

regra jurídica que diz o que é e o que não é de direito, juridicizando a

integridade física, o nome, a imagem, etc. Estes, por sua vez, ou vão compor

objetos de direito (ou direito sobre direito373) ou bens, objetivados pela regra

jurídica que se ocupa da sua disciplina. Assim, tratando-se de bens, além do

exame específico da indisponibilidade e irrenunciabilidade de titularidade

também se faz necessária a diferenciação, caso a caso, das espécies coisa e bens.

A doutrina comumente trata o “bem da integridade física” como o modo

ser físico da pessoa, cuja percepção se dá mediante os sentidos, tendo sido

tratado por ADRIANO DE CUPIS como bem (direito) cuja tutela visa manter a

incolumidade física374, o que fora tratada pelo Código Civil de 2002 quando

disciplinou a disposição (gratuita) do próprio corpo375. Na verdade, a

integridade física se porta como objeto de direito de bens que podem ser

elemento de suporte fático dessa regra jurídica376, que é o caso do corpo e do

372 BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, 11 de janeiro de 2002. 373 Sobre o assunto, vide GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Rev. atual. e aum. de acordo com o código civil de 2002 por Edvaldo Brito e Reginalda Paranhos de Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 181, e FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil, teoria geral. 4ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 308. 374 Cf. DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 75, AMARAL, Francisco, Direito Civil: introdução, 6a ed., rev., atual. e aum., Rio de Janeiro, Renovar, 2006, p. 260. 375 “Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, qundo importar em diminuição permanente da integridade física, ou contrair os bons constumes. Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante (...). Art. 14. É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte (...)”. In BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, 11 de janeiro de 2002. 376 Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Atual. Vilson Rodrigues Alves. 2ª ed. São Paulo: Bookseller, 2000, Tomo II, p. 37.

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cadáver, bens corpóreos que possuem tutela em diferentes diplomas legais,

como é o caso da Constituição de 1988 (art. 1º, inciso III e art. 5º, inciso III377) e

Código Penal de 1940 (v.g., art. 121 / 127 e art. 129 / 132378). Nota-se, aqui, a

presença dos já chamados direitos sobre direitos, onde os direitos da

personalidade (objeto de direito em abstrato) disciplinam a integridade física

(objeto de direito) que tem por suporte fático os bens referentes ao corpo

humano, às partes destacadas do corpo e ao cadáver.

Tratando-se do corpo humano, há uma primeira confirmação da premissa

de indisponibilidade de titularidade. Isto porque, como dito, dispor do corpo é o

mesmo que se permitir um estatuto de sujeição entre indivíduos, incompatível

com o ideal de liberdade. Sendo indisponível, o seu valor monetário é objeto

marginal ao Direito e, numa visão dogmática (de direito privado), trata-se de

assunto que não desperta maiores interesse. Contudo, se o bem que se refere ao

corpo é indisponível, o mesmo dificilmente se diz de certas partes desse,

colocando-se a premissa segundo a qual os bens resguardados pelos direitos da

personalidade são indisponíveis em questionamento. Trata-se da hipótese do

parágrafo único do art. 13 do Código Civil de 2002, que expressamente admite a

disposição do próprio corpo que importe em diminuição permanente para fins de

377 “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa humana; (...) Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; (...)” in BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada aos 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado, 1998. 378 “Art 121. Matar alguém (...) Art. 122. Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça (...) Art. 123. Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após (...) Art. 124. Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque (...) Art. 125. Provocar aborto, sem o consentimento da gestante (...) Art. 126. Provocar aborto com o consentimento da gestante (...) Art. 127. As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte. (...) Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem (...) Art. 130. Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado (...) Art. 131. Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio (...) Art. 132. Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente (...)”. in BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Diário Oficial da União, Brasília, 31 de dezembro de 1940.

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transplante379. Nota-se que, no momento de exceção ao princípio de

indisponibilidade de titularidade é que se mostra plenamente viável a idéia de

bens fora do comércio. Ou seja, a princípio não se pode dispor ou renunciar à

titularidade de bens que guarnecem os direitos da personalidade, mas nas

hipóteses de exceção, a disponibilidade e a renunciabilidade se operam extra

commercium, não podendo se tornar objeto de obrigações.

Neste ponto, à premissa inicial acresceu-se outra a abarcar a situação das

partes separadas do corpo, corroborando-se com a doutrina que entende que a

parte destacada do corpo se considera res (coisa) de propriedade do seu

titular380, mas deve deter uma específica função, v.g., o transplante feito de

forma plenamente altruísta, a justificar a translaticiedade do domínio. Nota-se

que, consoante este entendimento, o objeto de direito que é a integridade física

(e que é um direito) é também evidenciado pelas partes do corpo que, ao

contrário, é coisa.

A honra (ou integridade moral) é contundentemente tratada pela doutrina

como direito, traduzindo-se na dignidade pessoal vista tanto socialmente (“bom

nome”, “boa fama”, “boa imagem”, “respeitabilidade”, etc.) quanto pelo

próprio indivíduo em seu íntimo381. Nota-se que a tendência é que a honra,

como ocorreu com a integridade física, receba a roupagem de objeto de direito,

onde os seus bens são, sobretudo, o nome e a imagem. Neste tocante convém

lembrar que o Direito reservou tutelas de maior coercibilidade (a restringir a

liberdade) para o desrespeito e lesões a estes direitos, tendo o Código Penal de

1940, expressamente disciplinado os atos de calúnia, injúria e difamação (art.

138 / 140) que compõem o Capítulo V referente aos “crimes contra a honra382” .

379 BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, 11 de janeiro de 2002. 380 Cf. AMARAL, Francisco, Direito Civil: introdução, 6a ed., rev., atual. e aum., Rio de Janeiro, Renovar, 2006, p. 263. 381 Cf. AMARAL, Francisco, Direito Civil: introdução, 6a ed., rev., atual. e aum., Rio de Janeiro, Renovar, 2006, p. 268, DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 122. 382 BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Diário Oficial da União, Brasília, 31 de dezembro de 1940.

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Nota-se que todos estes atos agridem, com maior ou menor intensidade, a idéia

de “respeitabilidade”. Nestes termos, do objeto de direito honra se alcança

tanto o direito ao nome quanto à imagem da pessoa, todos também disciplinados

em conjunto pelo legislador do Código Civil de 2002 quando, v.g., determina

que o nome da pessoa não possa ser empregado em publicações quando a

conseqüência seja o desprezo público oriundo da intensão de difamar383.

O nome como bem (direito) é aquele segundo o qual a pessoa satisfaz sua

necessidade de identidade e, mais que isso, individualidade384. A preocupação,

aqui, volta-se para as idéias de injúria, difamação385 (e calúnia) que exponham o

titular do signo (o nome, prenome ou sobrenome) ao “desprezo público386” , já

que agridem a identidade e a individualidade da pessoa. Notadamente, o nome

não é um bem que seu titular possa dispor, mas tão somente modificá-lo, v.g.

nos casos de erro de grafia, exposição do portador ao ridículo, entre outros que

trata a Lei de Registro Público387.

Diz-se que o bem da imagem (direito) no mundo “pós-moderno”, aqui

tratado por Contemporâneo, sofre o condicionamento da evolução tecnológica

face à facilitação e multiplicação de meios de sua captação388. A idéia de

imagem se aproxima em muito da idéia de nome, já que também é tratada como

característica a individualizar a pessoa frente à coletividade389. Tratar-se-ia,

383 Cf. art. 17 do Código Civil de 2002, in BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, 11 de janeiro de 2002. 384 Cf. GOMES, José Jairo. Direito Civil: introdução e parte geral. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 200, DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 180, SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da Personalidade e sua Tutela. 2ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 189. 385 Cf. SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da Personalidade e sua Tutela. 2ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 189. 386 Cf. GOMES, José Jairo. Direito Civil: introdução e parte geral. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 200. 387 BRASIL. Lei nº 6.015 de 31 de dezembro de 1973. Diário Oficial da União, Brasília, 31 de dezembro de 1973. 388 Cf. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil, teoria geral. 4ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 132. 389 Cf. CAPELO DE SOUSA, Rabindranath V. A. O Direito Geral de Personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 125, FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil, teoria geral. 4ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 132.

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assim, da própria imagem física, dos gestos, voz, escrita e retrato390.

Notadamente, todas estas manifestações podem, como dito, compor negócios

jurídicos, desde que não haja supressão ao princípio da indisponibilidade de

titularidade.

O bem da vida privada, que também foi chamada de “direito à

privacidade391” , remete em muito a idéia de intimidade postulada por JEAN-

JACQUES ROUSSEAU (1756), a afastar da sociedade o interesse sobre o

íntimo do indivíduo. Contudo, a isso não se limita, tratando-se, verdadeiramente,

do estabelecimento de que a pessoa pode gerir a própria vida segundo suas

crenças com um mínimo de ingerências. Não deixa de ser, por certo, uma forma

de se ver a liberdade dos modernos, onde tanto sociedade quanto Estado devem

garantir o livre desenvolvimento da esfera privada da pessoa até o limite em que

este desenvolvimento não acarrete na submissão de outra pessoa. Nota-se,

assim, que a vida privada como bem dos direitos da personalidade se apresenta,

com base na irrenunciabilidade da titularidade, protegido contra ingerências

desnecessárias ou abusivas junto ao desenvolvimento dessa esfera privada. Pode

significar em intimidade, mas isso não é regra geral. Isso porque certas pessoas

desenvolvem sua esfera privada de forma pública, relatando à sociedade toda ou

grande parte da intimidade já vivida, como é o caso das autobiografias. Assim,

esse desenvolvimento da criação humana não se reporta a uma renúncia da vida

privada mas, ao contrário, reforça-a. Neste bem, como visto, não há a exceção

como observado junto à integridade física.

Pode-se concluir, assim, que os objetos de direito e bens guarnecidos

pelos direitos da personalidade são indisponíveis (e irrenunciáveis) quanto à sua

titularidade e, com esta ressalva, podem entrar no comércio (ser objeto em

relações contratuais). Lado outro, no caso das exceções aos princípios da

390 Cf. CAPELO DE SOUSA, Rabindranath V. A. O Direito Geral de Personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 246. 391 Cf. SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da Personalidade e sua Tutela. 2ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 288.

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indisponibilidade e da renunciabilidade, passam necessariamente ao estado de

bens incomerciáveis (v.g., as partes destacadas do corpo da pessoa), tudo isso

segundo o atual ideal de liberdade a fortemente condicionar a humanidade.

Trata-se, em última análise, de um regime de bens que se equilibra entre direitos

objetivamente indisponíveis e irrenunciáveis e em coisas subjetivamente fora do

comércio, já que dependentes da vontade do titular, dos bons costumes e de se

enquadrar em hipótese jurídica de disponibilidade.

4.2 Regra geral de perdas e danos por lesão aos direitos da personalidade

Procurar estudar, explicar e produzir os fundamentos dos direitos da

personalidade é pretensão que ultrapassa o exame sincrônico dos mesmos,

entendendo-se necessário seguir, se pouco, por uma ambientalização junto aos

demais institutos jurídicos que o cercam e que lhes conferem precisão. Assim,

com as considerações até aqui formadas, é que se analisaram os direitos da

personalidade segundo diferentes prismas, sobretudo os que evidenciam a sua

tutela.

Parte-se, assim, para o exame da responsabilidade civil, disciplina que,

como já afirmado, é algo de muito recente e de forma alguma poderia ser

estendido a outras épocas da história humana. Nota-se, v.g., que a etimologia da

palavra aponta para o latim spondeo, que significava a fórmula utilizada pelos

romanos para ligar solenemente o devedor ao contrato verbal de que fazia

parte392. Naquela Antigüidade, fazia-se nascer o termo que fixava

responsabilidade, obrigação de certo ato, mas sempre frente à relação

contratual. Notória a diferença, assim, de spondeo para responsabilidade civil,

392 Cf. DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1954, Tomo I, p. 06.

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que atualmente procura reunir todo o assunto privado referente ao dever, à

obrigação, sobretudo em face do binômio licitude / ilicitude:

A responsabilidade é, portanto, resultado da ação pela qual o homem expressa o seu comportamento, em face dêste [sic] dever ou obrigação (...) O que interessa, quando se fala de responsabilidade, é aprofundar o problema na face assinalada, de violação da norma ou obrigação diante da qual se encontrava o agente393.

E para se falar em responsabilidade civil, necessária é a passagem da

moralidade para a juridicidade, onde o ato daninho à ordem social passa a

integrar o Direito sob a rubrica de ato ilícito394. Nota-se, assim, que somente

com a dessacralização do Direito, iniciada a partir da era Moderna, e através de

uma orientação racional395, é que se tornaria possível uma sistematização dos

deveres advindos dos atos ilícitos e a diferenciá-los da idéia de obrigação civil,

como inicialmente percebeu, v.g., ANDREAS VON TUHR (1864-1925)396.

Nesta ótica, a responsabilidade civil serve de sistema para o estudo e a análise

racional de diversos institutos, notadamente atraindo para exame toda e

qualquer lesão, dando a esta o seu enfoque nos ditames da natureza de sua

ramificação jurídica privada.

E o elo legislativo que se encontra entre os institutos responsabilidade

civil e direitos da personalidade é a Lei nº 10.406/02, segundo a qual, além de

reduzir pessoa à capacidade, estabelece como regra (geral) que, ou é cessada a

lesão aos direitos da personalidade enquanto esta ainda é só uma ameaça, ou há

indenização segundo as perdas e danos:

393 Cf. DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1954, Tomo I, p. 07. 394 Cf. CARNELUTTI, Francesco. Como nasce o direito. Trad. Ricardo Rodrigues Gama. 3ª ed. Campinas: Russel Editores, 2006, p. 25/27. 395 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 66/67. 396 Cf. TUHR, Andreas Von. Derecho civil: teoria geral Del derecho civil aleman. Trad. Tito Ravà. Vol. II. Buenos Aires: Depalma, 1946, p. 138.

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Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau397.

Nota-se que, ao estabelecer o legislador que a lesão a direitos da

personalidade importa em perdas e danos, tem-se a criação de uma regra geral

de tutela patrimonial, já que tal forma de reparação se encontra no Capítulo II

do Título IV referente ao inadimplemento das obrigações, baseada na idéia de

danos emergentes e lucros cessantes:

Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar. Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual398.

Parece razoável afirmar que o legislador alcançou a sua mais severa

limitação à teoria dos direitos da personalidade quando, ao criar a regra geral de

indenização segundo as perdas e danos, disciplinou-as na forma de danos

emergentes e lucros cessantes, conferindo uma inicial tutela patrimonial ao

instituto. Trata-se da evidenciação de uma “natureza relacional da tutela399”

desses direitos a apontar para o patrimônio como regra geral e colocar em

397 BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, 11 de janeiro de 2002. 398 BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, 11 de janeiro de 2002. 399 Expressão que visa estabelecer uma dicotomia entre o enfoque existencial e patrimonial da tutela designada por Leonardo Macedo Poli, in POLI, Leonardo Macedo. A funcionalização do direito autoral: limitação à autonomia privada do titular de direitos autorais. In GALUPPO. Marcelo Campos (org.). O Brasil que queremos: reflexões sobre o Estado democrático de direito. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2006, p. 412.

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dúvida a sustentabilidade do emprego do termo “extrapatrimonial” , neste

tocante, por muitos doutrinadores.

Com isso se faz necessário (e desde a Modernidade, possível) diferenciar

obrigação de responsabilidade, posto que a primeira representa sempre um

dever jurídico originário, enquanto a segunda é baseada em um dever jurídico

sucessivo, visto que resulta da violação da primeira400. Perdas e danos é, assim,

a forma de reparar um prejuízo que, notadamente, advém de uma pretensão de

indenização, conseqüência de uma violação obrigacional e cujo conteúdo é

necessariamente patrimonial401. Aqui é possível localizar os bens dos direitos da

personalidade como objeto de relação jurídica e com um tratamento

praticamente de bens comerciáveis (mas não alienáveis), como é o caso, v.g., do

uso do nome em propaganda com fins comerciais que alude o artigo 18 do

Código Civil de 2002402. O nome, que integra os direitos da personalidade, de

fato é insuscetível de avaliação pecuniária403, mas ele tem uma utilidade, serve

de instrumento para algo, apresenta-se como bem (direito) de que se pode tirar

proveito, e esta qualidade, esta finalidade, inegavelmente possui preço. É

razoável ponderar que foi devido a esta forte característica da

contemporaneidade que o legislador iniciou a tutela dos direitos da

personalidade pelas perdas e danos, onde o desrespeito aos limites

contratualmente estabelecidos para a serventia daqueles direitos da

personalidade acarreta, assim, uma pretensão de ordem patrimonial (obrigação

de indenizar). Essa constatação pode ser subtraída à prova, pairando a resposta

sobre o exame do exercício da autonomia privada com base no Direito Autoral:

400 Cf. FILHO, Sergio Cavalieri. Programa de responsabilidade civil. 6ª ed., 2ª tiragem, rev. ampl. e atual.São Paulo: Malheiros, 2005, p. 24. 401 Cf. SANTOS, Antonio Jeová. Dano moral indenizável. 4ª ed. rev. ampl. e atual. de acordo com o novo código civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 91, e FILHO, Sergio Cavalieri. Programa de responsabilidade civil. 6ª ed., 2ª tiragem, rev. ampl. e atual.São Paulo: Malheiros, 2005, p. 96 e 97. 402 BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, 11 de janeiro de 2002. 403 Cf. GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Rev. atual. e aum. de acordo com o código civil de 2002 por Edvaldo Brito e Reginalda Paranhos de Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 137.

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(...) o fato constitutivo do direito do autor não é a exteriorização da criação, mas o exercício da autonomia privada do autor. Como o caso de o autor celebrar um contrato de edição de sua obra. Os direitos daí decorrentes só são oponíveis pelo autor ao editor e vice-versa404.

Mas a lesão extracontratual aos direitos da personalidade também pode

acarretar perdas e danos, como é o caso do pagamento das despesas com o

tratamento da vítima e seu funeral, bem como do próprio luto da família (art.

948, 949 e 950 do Código Civil de 2002405), entre outros que a legislação

disciplina.

Nota-se que as perdas e danos provêem complemento aos direitos da

personalidade no limite onde são congruentes com o regime dos bens que estes

guarnecem. Delimitam, assim, parte da tutela, notadamente patrimonial, que o

Direito oferece para a solução específica dos conflitos que abarca. Mas a

responsabilidade civil, conforme se verá adiante, também volta as atenções para

a outra ordem de tutela existente no mundo jurídico, comumente chamada de

existencial, representada pela reparação dos danos morais.

4.3 Direitos da personalidade e danos morais

Duas teorias criadas, cada uma a seu tempo e modo, mas, ambas, na

Contemporaneidade, foram a dos direitos da personalidade e dos danos morais.

Elas possuem inegável raiz no jusnaturalismo, e foram igualmente legitimadas,

404 Cf. POLI, Leonardo Macedo. A funcionalização do direito autoral: limitação à autonomia privada do titular de direitos autorais. In GALUPPO. Marcelo Campos (org.). O Brasil que queremos: reflexões sobre o Estado democrático de direito. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2006, p. 413. 405 BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, 11 de janeiro de 2002.

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conforme grande parte dos seus adeptos, por uma tentativa de superação do

patrimonialismo sobre o personalismo406.

Também já foi observado que o texto legislativo de nº 10.406/02

estabelecera para a lesão aos direitos da personalidade a regra geral de

indenização segundo as perdas e danos, evidenciadas na mesma lei como danos

emergentes e lucros cessantes.

Contudo, como esse tipo de indenização tem um cunho patrimonial por

excelência, forte vem crescendo na dogmática jurídica uma doutrina a prover

elasticidade ao conceito de perdas e danos, abarcando-se a idéia de “danos

extrapatrimoniais407” ou, ainda, a concepção de que perda é prejuízo total e

dano é o prejuízo material ou moral408. Notório é o empreendimento de

interpretação voltada para afastar do foco o patrimônio para colocar em seu

lugar a pessoa. Neste tocante cumpre salientar que há, na dogmática jurídica,

posição a desabonar a pretensão de elasticidade das perdas e danos. Trata-se,

v.g., da idéia de romance em cadeia409 da teoria positivista de RONALD

DWORKIN (1931-), segundo a qual a interpretação dos princípios deve ser

feita como se o interpretador estivesse completando, com coerência, o texto

analisado410. Nesta idéia de Direito como integridade, dificilmente o intérprete

poderia alargar um conceito estritamente patrimonial para abarcar uma idéia

antagônica, o existencialismo, o que acarreta contradição com o que se encontra

previamente estabelecido, rompendo-se a harmonia. Ora, se o regime jurídico

das perdas e danos do Código Civil fixa no patrimônio a sua base, não se

poderia, em congruência com a construção de um romance em cadeia, criar uma

interpretação de leitura que permitisse um ponto de partida que não seja a partir

406 Cf. SANTOS, Antonio Jeová. Dano moral indenizável. 4ª ed. rev. ampl. e atual. de acordo com o novo código civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 49, e SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Responsabilidade civil por danos à personalidade. Barueri: Manole, 2002, p. 13. 407 RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil: Lei nº 10.406, de 10.01.2002. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 54. 408 Cf. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 14. 409 Cf. DWORKIN, Ronald, O Império do Direito, trad. Jefferson Luiz Camargo, Rev. téc. Gildo Sá Leitão Rios, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 275-279. 410 Cf. SGARBI. Adrian. Clássicos de teoria do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 182

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do patrimônio, estendendo-se ao “moral”. Conclui-se, assim, que a dogmática,

neste ponto, diverge fortemente.

Mas a abertura que faz os direitos da personalidade alcançar os danos

morais pode seguir outro enfoque dogmático se se partir do exame da regra

positivada no Código Civil, segundo a qual a aplicação de outras sanções que

não as perdas e danos é, inclusive, salvaguardada:

Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei (...)411

As sanções de natureza cível costumam constar do campo da

responsabilidade civil, disciplina que atrai, sobretudo, o estudo da violação

direta e imediata da norma, fazendo nascer o ato ilícito e o conseqüente dever de

indenizar412. Esse ato ilícito daninho da ordem estabelecida foi pormenorizado

pelo legislador do Código Civil de 2002, fazendo-se constar expressamente os

danos morais como meio sancionatório, o que não ocorria com o Código Civil

anterior413:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito414.

O ato ilícito causador de lesão integra, assim, o rol das condutas

expressamente tratadas pelo Código Civil de 2002 e acarreta indenização, fato

este que pode ser confirmado pela regra geral do art. 927 do mesmo texto legal

411 BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, 11 de janeiro de 2002. 412 Cf. GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Rev. atual. e aum. de acordo com o código civil de 2002 por Edvaldo Brito e Reginalda Paranhos de Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 437 e 440, e DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1954, Tomo I, p. 07. 413 “Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano. (...)”. In BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L3071.htm> Acessado em: 28/11/2007. 414 BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, 11 de janeiro de 2002.

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que determina que “aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a

outrem, fica obrigado a repará-lo415” .

Nota-se, outrossim, que o plano legislativo oferecido pela

responsabilidade civil aos direitos da personalidade indica tanto uma proteção

originária - obrigacional - a recair sobre as perdas e danos, quanto a sucessiva –

indenizatória – que tende para o dano moral, e assim tem-se percorrido o

romance em cadeia a satisfazer o positivismo. Na primeira forma de proteção os

direitos da personalidade praticamente se restringem a objetos de contratos,

bens (direitos) a serem aproveitados para determinado fim e que devem seguir,

com algumas ressalvas (como a de indisponibilidade e irrenunciabilidade de

titularidade), os princípios obrigacionais. A segunda vem sendo vista como

uma tendência existencialista, onde o foco patrimonialista das perdas e danos

dá lugar aos danos morais, e o fato de que direitos da personalidade e danos

morais compartilham o mesmo texto legislativo é, no mínimo, uma satisfação

para esta linha de pensamento.

Mais que isso, o terreno dos danos morais se apresenta de tal modo em

aberto que oferece ampla liberdade para as criações e manifestações

doutrinárias (e jurisprudenciais). Isto porque, ao contrário do que foi feito com

os direitos da personalidade, a legislação não fez constar nenhum tipo de limite

especial às teorias de direito natural, salvo as que decorrem naturalmente da

responsabilidade civil.

A fundamentação dos direitos da personalidade passa, nestes termos, a

também se ligar com os contornos dos danos morais, contornos estes que a

doutrina se esmera em ampliar, sempre mais, de modo a exponenciar o alcance

desse específico tipo de indenização. Assim, não só há arguta argumentação de

modo a se expandir o rol de bens dos direitos da personalidade, como também

há uma tendência para não precisar com afinco o conceito dos danos morais.

Neste ponto, convém salientar que a idéia de uma teoria geral dos direitos da

415 BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, 11 de janeiro de 2002.

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personalidade “a proteger a pessoa em todas as suas relações e sua esfera

íntima416” já era enaltecida há pelo menos um século, tendo por adeptos, entre

outros, o catedrático da Universidade de Münster HARRY WESTERMANN

(1909-1986).

A teoria dos danos morais como lesão a direitos da personalidade é

restrita à lesão direta aos bens (direitos ou coisas) que guarnecem referidos

direitos da personalidade, não se fazendo incidir na responsabilidade

contratual, cuja tutela é extritamente patrimonial. Assim, as conseqüências

advindas da lesão não fazem diferença para este entendimento, sendo

irrelevante, para fins de configuração dos danos morais, a discussão acerca dos

sentimentos da vítima. A tutela existencial dos danos morais se restringe, com

isso, à lesão direta de bens que integram os direitos da personalidade, cujo

âmbito é a responsabilidade (civil) extrapatrimonial. Ressalta-se que a esta

teoria a ligar direitos da peronsalidade aos danos morais já se socorreram tanto

o Tribunal de Justiça de Minas Gerais quanto o de São Paulo417 mesmo antes da

promulgação do Código Civil de 2002.

Conclui-se que o impacto decorrente do advento legislativo do Código

Civil junto aos direitos da personalidade foi muito maior do que aquele

observado frente aos danos morais. E isso tanto é verdade que o rol de direitos

da personalidade estabelecido pelo legislador é contundentemente combatido

pela doutrina418, enquanto a discussão acadêmica sobre os danos morais

geralmente se restringe à disputa quanto à “melhor” teoria, isto é, se seria mais

adequada a teoria do resultado, a da lesão extrapatrimonial ou a da lesão aos

416 WESTERMANN, Harry. Código civil alemão; parte geral. Trad. Luiz Dória Furquim. Porto Alegre: Fabris, 1991, p. 38. 417 TJMG. Ap. Acórdão 0362938-1, 10.09.2002, 2ª Câmara. Relator Ediwal José de Morais; TJSP. Ap. Cível 124.851-4, 22.10.2002. 2ª Câmara de Direito Privado. Rel. Cezar Peluzo; TJSP. Ap, Cível 83.325-4, 16.02.2000. 8ª Câmara de Direito Privado. Rel. Zélia Maria Antunes Alves. In AZEVEDO, Álvares Villaça. Código Civil anotado e legislação complementar. São Paulo: Atlas, 2004, p. 50 e 51. 418 Cf. POLI, Leonardo Macedo. A funcionalização do direito autoral: limitação à autonomia privada do titular de direitos autorais. In GALUPPO. Marcelo Campos (org.). O Brasil que queremos: reflexões sobre o Estado democrático de direito. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2006, p. 412.

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direitos da personalidade419. De qualquer maneira, as diferentes fontes do

Direito normalmente tendem a atrair para o exame das soluções de conflitos uma

tutela existencial a fazer aproximar os direitos da personalidade dos danos

morais, fato este que contribui para a fundamentação que este trabalho propõe.

4.4 Danos morais e direitos fundamentais

A trama que envolve os fundamentos dos direitos da personalidade

mostrou-se, até o momento, bastante extensa e complexa, sobretudo por fazer

depender do estudo dos bens jurídicos, da responsabilidade civil, além dos

fatores condicionantes da humanidade, aqui fortemente marcada pela liberdade.

Por uma questão de metodologia, pois acredita-se que tanto a evolução quanto

as novas perspectivas acerca dos direitos da personalidade dependem de uma

visão mais ampliativa do Direito a ultrapassar os limites da ramificação jurídica

do direito privado, procurar-se-á tratar a aproximação dos direitos da

personalidade com o ramo público nas pretensões do próximo capítulo.

Contudo, o que se pode adiantar sem comprometer o percurso intentado é que a

aproximação entre direitos da personalidade e direitos fundamentais é notória420

e muito vai explicar os fundamentos dos direitos da personalidade, seja porque

disciplinam praticamente os mesmos bens, seja porque recebem a mesma tutela.

Quanto a esta última, a projeção dos danos morais é plenamente evidenciada,

tratando-se do assunto a se tratar neste momento.

Como já foi dito, o legislador da constituinte de 1988 não procurou

manter o texto constitucional livre de institutos de direito privado, o que

contribuiu para uma privatização do direito público, tendência que vinha desde

a Modernidade. Positivou-se, assim, o critério indenizatório (da

419 A disputa pela melhor teoria acerca dos danos morais foi tratado no capítulo referente à história específica, sobretudo nos itens 3.1, 3.2 e 3.3 supra. 420 Assunto a ser tratado no item 5.2 do próximo capítulo.

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responsabilidade civil) para os danos morais, contribuindo-se para a limitação

do poder público pela conseqüente restrição de meios mais impositivos e

autoritários de composição de litígio (v.g, as penas restritivas de liberdade).

Outrossim, pode-se dizer que a preocupação contemporânea sobre os

direitos fundamentais deixou de ser a sua fundamentação e passou de forma

expressiva para a questão de sua tutela421, enfocando-se os esforços na tentativa

de criar melhores soluções de conflitos, notadamente a abarcar a

indenizabilidade dos danos morais advindos de lesão a direitos fundamentais.

Nada de intrigante se traz dessa constatação, já que a dogmática é um traço

marcante do Direito pós Idade Média e uma de suas principais premissas é a

busca pela solução de conflitos.

Assim, a universalidade abstrata dos direitos fundamentais recebeu, e vem

recebendo das diversas fontes do Direito, meios de proteção a evitar sua

violação. Caminham no mesmo sentido os esforços para oferecer tutela a estes

direitos após a lesão. Para estes casos foi expresso o legislador da Constituição

de 1988 ao impor indenização por danos morais e materiais quando da lesão a

certos direitos dispostos como “Direitos e Garantias Fundamentais” (Título II):

Art. 5º (...) V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; (...).

Desse plano constitucional colocado pelo legislador extrai-se fortemente

a proteção sucessiva da responsabilidade civil a fazer incidir a indenização por

danos morais quando violada a vida privada, a intimidade, a honra e a imagem

das pessoas. Como se vê, há notória coincidência - em sua plenitude - entre

421 Cf. BOBBIO. Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho; apresentação Celso Lafer. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, 4ª reimpressão, p. 45.

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esses interesses tutelados e os bens dos direitos da personalidade que foram

tratados no capítulo 4.1 supra. A responsabilidade civil vai servindo de meio de

ligação a prover forte intercâmbio entre direitos da personalidade e direitos

fundamentais junto aos meios de tutela privada.

O termo dano moral, que é próprio do direito privado, foi alocado

especificamente junto à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, honra e

imagem como meio de reparação, tendo o Superior Tribunal de Justiça por

vezes solucionado conflitos com base na teoria do resultado (conceito positivo

de danos morais), já que deu especial relevância às conseqüências provocadas

pelo dano:

RESPONSABILIDADE CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. ANISTIA. MORTE DA VÍTIMA. INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS.(...) Seus fundamentos são diversos, porquanto o dano material relaciona-se com o patrimônio, com o prejuízo econômico infligido à vítima, diferentemente do dano moral, o qual atinge a esfera psíquica da vítima, violando direitos e garantias fundamentais, gerando desordens na personalidade da vítima, em razão da humilhação, da dor e do constrangimento422.

Nota-se que o referido julgado sequer se restringiu aos termos

selecionados pelo legislador, fazendo incidir o dano moral na situação de morte,

já que aqui aquele Tribunal não estava exatamente preocupado com o tipo de

direito subjetivo e sim com a tutela de uma lesão. Ou seja, a idéia aqui é muito

mais voltada para a tutela da integridade física, ou da vida, como querem alguns

autores423, que qualquer um dos termos do inciso X do art. 5º da Constituição de

1988. Notório é como institutos tipicamente privados se expandem para cobrir a

tutela dos direitos fundamentais, notadamente com um exame do ponto de vista

422 STJ, Primeira turma, Recurso Especial nº 890.930 - RJ (2006⁄0221228-8), Ministra Relatora Denise Arruada, Ministro José Delgado, Ministro Francisco Falcão e Ministro Teori Albino Zavascki (voto vencido). Julgado aos 17 de maio de 2007, acessado aos 23/11/2007, disponível em http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/. 423 Cf. AMARAL, Francisco, Direito Civil: introdução, 6a ed., rev., atual. e aum., Rio de Janeiro, Renovar, 2006, p. 259.

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indenizatório (e não criminal) a recair sob o fato que acarretou na morte de uma

pessoa.

O que se pode concluir é que a responsabilidade civil segundo os danos

morais possibilita a criação de um alargamento para a solução de conflitos a

atender a angústia acadêmica e social da violação dos direitos fundamentais de

forma muito aproximada, se não a mesma, com a que opera junto aos direitos da

personalidade. Sem dúvida, todo o aparato oferecido pelo movimento

constitucionalista brasileiro irá auxiliar a justificativa e delimitação dos

fundamentos dos direitos da personalidade, tanto a partir da principiologia

constitucional quanto da contextualização do instituto junto ao Estado

Democrático de Direito, assuntos do capítulo que se segue.

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5 EVOLUÇÃO E NOVAS PERSPECTIVAS

A idéia dos fundamentos dos direitos da personalidade, cuja introdução e

desenvolvimento foram trabalhados até aqui, alcançou a conclusão segundo a

qual os direitos da personalidade são objeto de direito em abstrato, contendo as

premissas gerais (v.g., princípios da indisponibilidade e irrenunciabilidade) de

diversos objetos de direito e bens (direitos e coisas). Este complexo jurídico, já

referido como direito sobre direitos, juridicisa os elementos que contém (como a

integridade física, a imagem, etc.) sempre com base na titularidade desses bens.

Com isso, regulamentam-se os possíveis atos e fatos que circundam o bem de

direitos da personalidade, seja com base na postura do seu titular, seja de

terceiros. Ou seja, ao passo que novas possibilidades (juridicisação dos bens dos

direitos da personalidade) são postas dentro da esfera privada da pessoa, que

delas poderá se utilizar para se desenvolver, também são impostas certa

limitação e direcionamento da vontade do titular desses bens, tudo isso para que

não se contrarie os bons constumes, sobretudo pelo repúdio a qualquer forma de

sujeição entre uma pessoa e outra.

Com base nestas assertivas, passa-se para a complementação da

fundamentação dos direitos da personalidade com base nas propostas de

evolução e de novas perspectivas. Mas para tanto, necessário será passar

primeiro pela descompartimentalização do Direito e concluir sobre a

aproximação entre direitos da personalidade e direitos fundamentais.

A prática jurídica da atualidade é marcadamente representada pela divisão

do Direito em partes distintas, seja quando as faculdades dividem seu curso, as

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bibliotecas os seus tratados e a prática forense a sua interpretação para soluções

de conflitos424. Esta constatação comumente acarreta no que já foi e é chamado

de compartimentalização do Direito, onde as ramificações jurídicas

especializadas se limitam mutuamente, cada qual em seu âmbito (v.g, direito

civil, direito constitucional, direito penal, etc.), tendendo-se à total falta de

intercâmbio. Contudo, essa forma de ver o Direito impede certas constatações e,

mais que isso, é barreira para uma reconstrução do direito privado em seu

contexto, seja este dogmático ou não, impedindo os diferentes tipos de

construção e contribuição para um Estado Democrático de Direito. Mais que

isso, acreditar numa separação rígida entre direito público e privado é não

reconhecer o fato de que o direito constitucional da atualidade versa sobre a

iniciativa econômica privada, propriedade privada, a família425, entre outros

institutos eminentemente privados. Ou seja, o processo legislativo que levou à

promulgação da Constituição de 1988 já comprova a flexibilização da dicotomia

entre os ramos a propiciar ambiente fértil para as contribuições

interdisciplinares.

Com essas observações, a primeira intenção será apresentar fatos, pontos

de vista e propostas que visam demonstrar que a dicotomia entre público e

privado já não se encontra, na contemporaneidade, com traços marcantes,

tendendo à descompartimentalização do Direito. Apenas depois de ultrapassado

este ponto é que será possível oferecer, de forma científica, o ambiente de

convergência entre público e privado aonde poderá a fundamentação dos

direitos da personalidade alcançar sua delimitação.

Com essa observação, justificar-se-ão dois diferentes enfoques a prover

mútua reconstrução do direito privado segundo o paradigma político de um

Estado Democrático de Direito. Assim, ou a contribuição vem a partir de um

424 Cf. DWORKIN, Ronald, O Império do Direito, trad. Jefferson Luiz Camargo, Rev. téc. Gildo Sá Leitão Rios, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 300 / 301. 425 Cf. TEPEDINO, Gustavo. A constitucionalização do direito civil: perspectivas interpretativas diante do novo código. In FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coords.) Direito Civil: Atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 120.

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Estado Democrático de Direito já existente e repleto de conflitos que necessita

de soluções, ou vem da análise fática do contexto a evidenciar os caminhos para

a construção desse plano político-social. A tendência em ambos os enfoques é a

compreensão do Direito em sua máxima amplitude (e não

compartimentalizado), mas o primeiro se preocupará mais com as soluções de

conflitos e o segundo tenderá mais a compreender essas premissas segundo o

seu contexto histórico.

O que se percebe é que a análise da convergência entre o direito público e

o privado segue, como costuma ser comum aos estudos acadêmicos, dois

caminhos distintos, um segundo uma realidade conquistada e a se desenvolver, e

outro em conformidade a uma realidade a se conquistar. Esses enfoques, que

nem sempre são tão nítidos, se dividem nas idéias já mencionadas de um Estado

Democrático de Direito já estabelecido e na de que o Estado Democrático de

Direito deve ser construído. E ambos, cada um a seu modo, contribuem para

uma nova percepção do Direito, seja ela dogmática ou não. De qualquer

maneira, o primeiro geralmente tende para uma hermenêutica a atrair os ramos

(daí o termo direito civil-constitucional426) e geralmente dá especial apreço ao

princípio da dignidade da pessoa humana. O segundo procura demonstrar como

a liberdade dos modernos exlui o mundo do homo faber, a impossibilitar a

aplicação da moral kantiana, o que fundamentará a congruência entre direitos

fundamentais e direitos da personalidade, sobretudo quanto à tutela da

responsabilidade civil (notadamente quanto aos danos morais), numa

perspectiva histórica e de influência do direito privado sobre o público como

característica dos últimos séculos.

De fato, as duas construções sobre o Estado Democrático de Direito

podem ser, como comumente o são, consideradas independentemente, mas sua

convergência vem da clara justificação que lhes é comum. Sendo assim, o que é

426 Cf. TEPEDINO, Gustavo. A constitucionalização do direito civil: perspectivas interpretativas diante do novo código. In FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coords.) Direito Civil: Atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 115.

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erguido por um enfoque não é necessariamente repudiado pelo outro. Muito pelo

contrário, alimenta a dialética que pode e deve ser estabelecida entre os

diferentes enfoques.

5.1 Descompartimentalização do Direito

Como se apontou inicialmente, a compartimentalização do Direito é uma

tendência da Modernidade e se caracteriza por ramificar os institutos jurídicos

de modo a formar ambientes discursivos mutuamente limitadores, restringindo-

se cada instituto ao âmbito de sua ramificação especializada de forma a criar

verdadeiros compartimentos a guardar, cada um, soluções específicas para

conflitos específicos.

Essa dicotomia a estabelecer, v.g., um ramo público e outro privado,

diferenciando Estado de sociedade civil é traço marcante do Direito Moderno e

da construção clássica do direito subjetivo427. Esta é a contextualização desse

pensamento, que se envolve de igual maneira com a redução do Direito à norma

e um conseqüente tecnicismo do jurídico, instrumentalizando-o428.

Esta tendência pode ser observada no que concerne à interpretação dos

direitos da personalidade e direitos fundamentais, sobretudo quando há aqueles

que afirmam haver uma “bipartição” da tutela do homem em dois grandes

ramos429, onde o direito privado abarca o primeiro e o direito público o segundo.

Mas este posicionamento pode ser mais brando, sobretudo quando a matéria é

dividida em “direitos públicos de personalidade e em direitos privados de

427 Cf. AMARAL. Francisco. O direito Civil na pós-modernidade. In FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coords.) Direito Civil: Atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 70 / 71, POLI, Leonardo Macedo. A funcionalização do direito autoral: limitação à autonomia privada do titular de direitos autorais. In GALUPPO. Marcelo Campos (org.). O Brasil que queremos: reflexões sobre o Estado democrático de direito. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2006, p. 411 / 412. 428 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 26 / 27, e POLI, Leonardo Macedo. A funcionalização do direito autoral: limitação à autonomia privada do titular de direitos autorais. In GALUPPO. Marcelo Campos (org.). O Brasil que queremos: reflexões sobre o Estado democrático de direito. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2006, p. 411 / 412. 429 Cf. SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da Personalidade e sua Tutela. 2ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 43.

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personalidade430” , meio encontrado para prover intercâmbio entre os institutos

e, ao mesmo tempo, manter-se de certa forma a dicotomia. Contudo, os mais

radicais costumam diferenciar os institutos através da afirmação de que os

direitos da personalidade pressupõem relações de igualdade com “incidência

privatística” e de domínio do direito civil, enquanto os direitos fundamentais

pressupõem relações de poder com “incidência publicista” e de domínio do

direito constitucional, concluindo que o primeiro teria um âmbito pessoal e o

outro político-social431. Este caminho provê meios de diferenciação e

delimitação de um instituto a excluir o outro no momento da solução do conflito,

plenamente congruente com a compartimentalização do Direito onde as

soluções para determinado conflito se encontram adstritos a uma determinada

ramificação jurídica especializada que é, neste sentido, limite para quem

interpreta as fontes jurídicas432.

Contudo, muitos doutrinadores, cada um a seu modo, compartilham a

idéia segundo a qual muitos daqueles direitos da esfera pública seriam direitos

da personalidade, mas nem todos os direitos fundamentais teriam

correspondente naqueles433. Nota-se que essa perspectiva não atende ao sistema

das dicotomias, característica marcante da dogmática jurídica da Modernidade

representada pela técnica de distinguir um instituto de outro a permitir uma

sistematização que estabelece princípios teóricos e básicos para operacionalizar

as normas de um e outro instituto434. Ou seja, na referida constatação pode se

430 Cf. SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da Personalidade e sua Tutela. 2ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 43. 431 Cf. BELTRÃO, Silvio Romero, Direitos da Personalidade: de acordo com o Novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2005, p. 48. 432 Cf. DWORKIN, Ronald, O Império do Direito, trad. Jefferson Luiz Camargo, Rev. téc. Gildo Sá Leitão Rios, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 300 / 301. 433 Cf. CAPELO DE SOUSA, Rabindranath V. A. O Direito Geral de Personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 581, CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed., 2ª reimpressão, Coimbra: Livraria Almedina, 2003, p. 396, SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da Personalidade e sua Tutela. 2ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 43, AMARAL, Francisco, Direito Civil: introdução, 6a ed., rev., atual. e aum., Rio de Janeiro, Renovar, 2006, p. 256, BELTRÃO, Silvio Romero, Direitos da Personalidade: de acordo com o Novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2005, p. 47. 434 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 138.

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encontrar soluções para conflitos nos direitos da personalidade que não excluem

direitos fundamentais, mas, ao contrário, são por estes reforçados.

Nota-se, assim, que a doutrina se divide frente a duas tendências

antagônicas, onde a primeira busca compreender e desenvolver o Direito

segundo o sistema de dicotomias e a segunda procura uma hermenêutica

contrária, através de uma convergência entre direito público e privado.

Para justificar uma descompartimentalização do Direito sem que

simplesmente se adote o segundo posicionamento (como dogma), pode-se

evidenciar o contexto por que passa o Direito da contemporaneidade, colocando-

se o axioma (existência de uma ordem dicotômica) à prova. Trata-se de uma

análise pré-aplicativa a evidenciar a construção cronológica do Direito,

sobretudo quanto ao movimento constitucionalista que passou a abarcar,

juntamente com seus institutos públicos, regras e princípios notadamente

privados, v.g., iniciativa (econômica) privada e propriedade privada, família,

responsabilidade civil, entre outros. Assim, a preocupação inicial deixa de ser o

como aplicar para o porquê é aplicado. Trata-se de procurar identificar as regras

e padrões que se admite como formadoras do conteúdo do que é a prática,

aproximando-se muito do que RONALD DWORKIN chamou de “etapa pré-

interpretativa435” . Contudo, não há, no momento, intensão de apresentar uma

construção de um direito como integridade. Isto porque o exame histórico até

aqui apresentado não objetivou a criação de uma coerência, mas sim pretendeu

evidenciar as grandes diferenças que as regras e padrões de sociedades diversas,

em tempos diversos, apresentam. Essa sincronia, onde não se busca recuperar os

ideais por trás da prática436, é uma forma de análise exatamente oposta às

pretensões do momento.

435 Cf. DWORKIN, Ronald, O Império do Direito, trad. Jefferson Luiz Camargo, Rev. téc. Gildo Sá Leitão Rios, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 81. 436 Cf. DWORKIN, Ronald, O Império do Direito, trad. Jefferson Luiz Camargo, Rev. téc. Gildo Sá Leitão Rios, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 274.

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Nestes termos, necessário é o regresso aos dados colhidos e presunções

desenvolvidas junto aos Modernos (1453 a 1789 d.C.), os quais solidificaram a

compartimentalização do Direito que se pretende primeiro compreender para

depois desconstruir. Um primeiro dado histórico aponta para a impossibilidade

de comparação da dicotomia estabelecida pelos Modernos e Antigos. Junto a

estes, como observaram HANNAH ARENDT e ALOÍSIO SURGIK, todo o jus

se fazia público, aplicando-se a ordem dicotômica frente ao binômio direito

público - direito privado, preponderantemente em seu aspecto formal. A

concepção Moderna é diferente e evidencia fortemente a dicotomia entre o ramo

privado e público, onde o primeiro ramo estabelece condições a se proteger para

que o indivíduo desfrute e desenvolva livremente a sua esfera privada e o

segundo apresenta os limites recíprocos que garantam que o exercício dessa

liberdade por um não acarrete em um estatuto de sujeição, como o é a

escravidão, por outro. Esta é a prática organizacional firmada e afirmada no pós-

medievo fortemente baseada na introdução, à época, da noção de sistematização,

onde era objetivada a criação de estruturas organizadas donde se extrairiam

todas as formas de dedução para a solução do problema437. Daí a idéia de

ramificação jurídica especializada, onde cada ramificação forma um sistema a

prover todos os meios para as soluções dos conflitos que lhe seja afim.

Igualmente daí surgiu a idéia de codificação a servir de instrumento para esse

sistema.

O que essa ordem dicotômica conduz a se entender - e por isso é tão

sedutora - é que esse tipo de divisão equivaleria a uma promoção de

previsibilidade a obstar reinterpretações que “alterem” o Direito438. Fala-se,

assim, na possibilidade de uma “segurança jurídica” própria do pensamento

dogmático e que se põe a evitar qualquer forma de interpretação que reúna

437 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 67 e 68. 438 Cf. DWORKIN, Ronald, O Império do Direito, trad. Jefferson Luiz Camargo, Rev. téc. Gildo Sá Leitão Rios, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 302.

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princípios de mais de uma ramificação jurídica especializada. Contudo, essa

idéia de uma interpretação do Direito segura e previsível é um sonho que a

dogmática propõe, mas a realidade não alcança, como mostrou a história

brasileira em termos de danos morais. Durante todo o Séc. XX discutiu-se se o

termo moral empregado pelo legislador junto ao art. 76 do Código Civil de 1916

dizia ou não respeito aos danos morais. À época, o pensamento dogmático

proveu espaço para discursos que tendiam, nos termos cunhados por CHAÏN

PERELMAN e LUCIE OLBRECHTS-TYTECA, do ceticismo ao fanatismo439,

o que fez pairar discussão secular sobre o que “interesse moral” levaria a

entender, ou seja, se haveria ou não possibilidade de indenização por danos

morais. Eis a prova de que a segurança jurídica é um sonho, seja porque a

própria língua pela qual o Direito se expressa é composta de signos cujos

significados são, rotineiramente, polissêmicos, seja porque as diferentes

correntes que se formam na doutrina costumam apresentar, nos limites

discursivos, diferentes visões sobre um mesmo objeto. Todos os diferentes

enfoques que se pode ter de uma determinada matéria ou, mesmo, de um

determinado vocábulo fazem crer, assim, que não seria por este caminho que a

compartimentalização do Direito se justificaria.

Mas como dito, ela é uma tendência que a prática na Modernidade

apresenta, onde a divisão do Direito, seja como sistematizada pela academia,

seja como organizada nas bibliotecas, acarreta evidente conseqüência quanto à

aplicação do jurídico nas soluções de conflitos. Problemas de ordem civil

deverão ter sua solução no direito civil, problemas empresariais junto ao direito

empresarial, e assim por diante. Naturalmente que essa linha de raciocínio leva

à compreensão que uma situação que verse sobre o patrimônio de um ente

público deverá se restringir ao direito administrativo. Ou que a questão

pertinente à pessoa pública de direito interno e externo seria circunscrita no

439 Cf. PERELMAN, Chaïn; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. 5ª tiragem. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 69.

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direito internacional. Ora, já foi evidenciado que o Código Civil de 2002

expressamente tratou em seis artigos os bens públicos, fixando-lhe a destinação,

o uso, as situações de disposição, etc., bem como tratou de dispor sobre as

pessoas jurídicas, nela incluídas as públicas, sejam estas internas ou externas440.

Nota-se que, se é característica da Modernidade a compartimentalização do

Direito, na Contemporaneidade essa separação passa, sobretudo

legislativamente, a perder sua nitidez. Neste tocante e em especial se encontra o

direito constitucional que, como brevemente resumido, versa sobre diversos

institutos próprios do direito privado. Exemplos colhidos na Constituição de

1988 são muitos, como é o caso da livre iniciativa que, diga-se de passagem, é

um dos fundamentos da república (art. 1º, inciso IV), além do direito de

propriedade, que recebeu o tratamento de direito fundamental (caput do art.

5º)441. Com estas constatações fica difícil compreender os direitos privado e

público como sistemas estruturados e organizados de forma a, cada um, conter

todas as formas de dedução para a solução de conflitos que lhes sejam afins.

Conforme se constatou, há diversos temas afins dos dois ramos, e justamente aí

se encontra a falha do sistema.

Ou seja, nem mesmo essa hermenêutica segundo uma rígida ordem

dicotômica nasceu e já se encontrava em crise. E nasceu forte com a idéia de

codificação, ideologia positivista onde se depositou equivocada crença segundo

a qual seria possível o desenvolvimento de uma legislação de tal forma

completa que abarcaria todo o Direito e, com isso, permitiria um sistema

fechado, mantido a salvo da imaginação interpretativa do aplicador442. E tão

logo proposto esse método hermenêutico onde cada caso que surgisse na

realidade já teria solução pronta e aplicada por simples dedução e, juntamente,

440 BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, 11 de janeiro de 2002. 441 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada aos 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado, 1998. 442 Cf. FIUZA, César. Crise e interpretação no direito civil da escola da exegese às teorias da argumentação. in FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coords.) Direito Civil: Atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 29 e 30.

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implementada a codificação da legislação voltada para um sistema de normas

unitário, completo e coerente443, já percebiam os “casuístas” que o sistema (do

Direito) nunca poderia ser fechado. E por isso, e para que haja um sistema

aberto, necessário é que o vocábulo sistema deixe de significar a estrutura

organizada para conter todas as formas de dedução para a solução de conflitos.

Se se abre, significa que não é sistêmico, e o termo sistema aberto deve ser

compreendido como a aceitação de que o Direito se dá num espaço discursivo e,

por isso, aberto.

A descompartimentalização do Direito representa essa constatação,

sobretudo quanto ao envolvimento que todas as suas fontes (lei, doutrina,

jurisprudência, costumes, etc.) mutuamente apresentam, onde os diversos temas

que abarcam e poderão abarcar são colocados à prova no campo da

argumentação, discutidos e apresentados ora em coerência, ora em contradição,

dependendo-se muitas vezes de onde o intérprete pretende chegar. Essa é a

verdade que certos pensamentos dogmáticos não se propõem a reconhecer.

Tem-se, com estas linhas, a demonstração de que a fundamentação dos

direitos da personalidade é dependente não só de todo o Direito, mas também

dos ideais por detrás dessa ciência, tudo isso a demonstrar as peculiaridades

deste instituto tão extenso e complexo.

5.2 Direitos da personalidade e direitos fundamentais

Demonstrou-se que o movimento constitucionalista que levou à

promulgação da Constituição de 1988 tratou de flexibilizar a dicotomia entre os

ramos público e privado e propiciou ambiente fértil para as contribuições

443 Cf. ROBERTO, Giordano Bruno Soares. Teoria do método jurídico: a contribuição de Theodor Viehweg. in FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coords.) Direito Civil: Atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 81.

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hermenêuticas. Este movimento se traduz na teoria a soerguer princípios

limitadores do governo e, nesta ideologia, indispensáveis à garantia de direitos

cuja dimensão estruturante alcança a organização político-social444.

Nota-se que a tônica é a liberdade (dos modernos), tópico de especial

apreço tanto para os direitos fundamentais como para os direitos de

personalidade. Assim, compartilhando um mesmo pensamento jusnaturalista445

não se parece precipitado afirmar que, se não fosse a forte compartimentalização

do Direito da Modernidade, não haveria dois institutos tão semelhantes em duas

diferentes ramificações jurídicas, mas sim um único instituto no Direito como

um todo a se dedicar aos bens que disciplinam e à tutela (existencial e

patrimonial) que lhes é pertinente.

O problema da eficácia, num enfoque dogmático do direito constitucional

e do direito civil, é um dos pontos que notadamente faz a questão convergir446. E

isso ocorre tanto no plano legislativo quanto no da aplicação (a ressaltar os

métodos hermenêuticos da doutrina).

Mas o Direito, sua interpretação e aplicação, apresentam-se num momento

posterior, um movimento de conseqüência do que o contexto político-social

apresenta, e justamente por isso que a análise pré-interpretativa é importante. E

como dito, a Modernidade tratou de solidificar o seu novo modelo de liberdade,

cujos esforços se voltavam para a exacerbação exponencializada do

desenvolvimento da esfera privada do indivíduo. Mas logo se viu que a

implementação dessa liberdade dos modernos exigia o estabelecimento de

limites práticos, e aqui entrou a dogmática para oferecer suas soluções. O

indivíduo seria protegido para que pudesse livremente desfrutar de todas as

possibilidades encontradas para o desenvolvimento de sua esfera privada, desde

444 Cf. CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed., 2ª reimpressão, Coimbra: Livraria Almedina, 2003, p. 51. 445 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coinbra Editora, 2004, p. 18. 446 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coinbra Editora, 2004, p. 192.

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que isso não acarrete na sujeição de outro indivíduo, o qual ficaria privado da

mesma possibilidade. Justamente aqui, inicialmente, surgiram os direitos do

homem como proposta doutrinária e, em seguida, positivaram-se os direitos

fundamentais e direitos da personalidade.

Com estas constatações fica evidenciado que o ideal dogmático

jusnaturalista de direitos fundamentais e direitos da personalidade “inerentes” e

“universais” frente ao ser humano não ultrapassa o questionamento de suas

premissas, já que estes institutos são calcados numa idéia de liberdade recente

na humanidade e que, como visto, é apenas um dos tipos de liberdades segundo

o qual o ser humano já se submeteu. Não há nada de “natural” nesta liberdade

dos modernos, como não há nada de natural no liberalismo, no racionalismo,

sendo todas estas formas e métodos criados para se encarar certas circunstâncias

que, como quer HANNAH ARENDT, condicionam o comportamento

humano447.

Nota-se que os pressupostos (pré-interpretativos) tanto dos direitos

fundamentais quanto dos direitos da personalidade parecem confluir para o

mesmo ponto. E as conseqüências seguem para o estabelecimento dos mesmos

esquemas de ordem jurídico-dogmática (já no plano interpretativo). Ou seja, um

movimento de abertura e ilimitação desses direitos que versam sobre a liberdade

do indivíduo e uma intervenção restritiva mínima por parte do Estado448. Trata-

se de certo balanceamento de interesses que circundam esse paradigma político,

como é o caso do direito do indivíduo à liberdade e a sentença estatal restritiva

dessa liberdade, ou o direito de propriedade e a expropriação estatal dessa

propriedade, entre inúmeros outros exemplos. Nota-se que o motivo de ser tanto

dos direitos fundamentais quanto dos direitos da personalidade segue em muito

(se não no seu total) o ideal da liberdade dos modernos, e representa, ao mesmo

447 Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 51. 448 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coinbra Editora, 2004, p. 196.

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tempo, o equilíbrio entre liberdade e limite da liberdade, ou seja, segue um

esquema de direito-restrição.

Exemplo disso se encontra, justamente, no exame que já fora apresentado

do impacto legislativo do Código Civil de 2002 sobre a doutrina de direito

natural, onde esta tratou de apresentar os direitos da personalidade de forma

mais ilimitada possível, afirmando a sua proeminência face a todos os outros

direitos. E ao assim fazer, o direito natural afastou qualquer restrição a esses

direitos, incorrendo no problema kantiano já suscitado do reino dos fins.

Justamente para evitar que o exercício desses direitos possa legitimar o

estabelecimento de estatutos de sujeição que se defende a intervenção restritiva.

O texto legislativo que substituiu o Código Civil de 1916, assim, não abarcou a

idéia de proeminência dos direitos da personalidade, os quais também serão

examinados, v.g., sob a ótica do abuso do direito.

Com estas considerações, este momento se parece adequado para

examinar como o legislador incorporou as teorias jusnaturalistas referentes aos

dois institutos e em dois textos legislativos diferentes, cada um sob diferente

rubrica. Outrossim, a vida privada, a honra e a imagem são, conforme disposto

na Constituição de 1988, direitos fundamentais de todos os seres humanos e

cuja inviolabilidade é um de seus princípios e que devem ser indenizados

quando de sua violação, seja ela patrimonial ou moral449. Nota-se que a

incorporação da teoria da responsabilidade civil foi plena no texto

constitucional, onde o dano é elemento essencial para a reparação.

Mas a vida privada, honra e a imagem se encontram também

disciplinados pelo Código Civil de 2002 como direitos da personalidade,

conforme se denota dos seus arts. 20 e 21:

449 Art. 5º: “X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (...)” in BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada aos 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado, 1998.

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Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. (...) Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma450.

Justamente pelo motivo de ter o direito privado e público tratado de

assuntos afins que parte da doutrina compreendeu que o Código Civil de 2002

passara a regular direitos que já haviam sido elevados à categoria de direitos

fundamentais pela Constituição de 1988, o que evidenciaria, assim, a existência

de uma “fundamentalidade dos direitos da personalidade451” .

O mesmo paralelo pode ser traçado entre os planos privado e público

sobre a situação de disposição do próprio corpo. A Constituição de 1988, no §

4º do seu art. 199, expressamente dispõe sobre a remoção de órgãos e tecidos

humanos com finalidade de transplante e veda a sua comercialização452. O outro

texto legislativo, Código Civil de 2002, também lhe confere semelhante

disciplina em dois dispositivos:

Art. 14. É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte. Parágrafo único. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo. Art. 15.

450 BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, 11 de janeiro de 2002. 451 GEDIEL. José Antônio Peres. A irrenunciabilidade a direitos da personalidade pelo trabalhador. In SARLET. Ingo Wolfgang (org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2ª ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2006, p. 151. 452 “Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada. (...) § 4º - A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização”. In BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada aos 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado, 1998.

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Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica453.

Junto à doutrina lusitana, o caminho percorrido tanto pela doutrina que se

dedica ao ramo privado quanto pela que percorre o público tende a compreender

que há uma convergência entre os campos. Os exemplos são muitos,

destacando-se o entendimento de RABINDRANATH V. A. CAPELO DE

SOUSA o qual conclui por uma constitucionalização dos direitos da

personalidade e dos direitos da personalidade fundamentais454, ou a dedução do

catedrático da Universidade de Coimbra JOSÉ JOAQUIM GOMES

CANOTILHO (1941-) segundo a qual “cada vez mais os direitos fundamentais

tendem a ser direitos da personalidade e vice-versa455” .

A tendência por que passa Portugal é bastante similar à do Brasil e a esses

dois países, por certo, não se limita esse processo de suavização da dicotomia

nos textos legislativos. Tratam-se, sobretudo, de institutos que carregam memo

ideal, evidenciado pela liberdade dos modernos.

5.3 Nova premissa: o Estado Democrático de Direito

Contra a concepção de um direito como sistema neutro a servir de

instrumento de atuação de homem sobre outro homem insurgem-se vários

doutrinadores. O mais comum é a adoção de meios principiológicos de revisão

dos textos legislativos, sobretudo com base num Estado Democrático de Direito

já estabelecido e caminhando para um desenvolvimento pleno.

453 BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, 11 de janeiro de 2002. 454 Cf. CAPELO DE SOUSA, Rabindranath V. A. O Direito Geral de Personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 582. 455 Cf. CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed., 2ª reimpressão, Coimbra: Livraria Almedina, 2003, p. 396.

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Para as pretensões que se seguem, o termo Estado Democrático de Direito

é aquele que possui por limite o Direito e como legitimação o povo456. O Brasil é

também uma república, o que evidencia a sua incompatibilidade com o

paradigma da monarquia, notadamente a se posicionar contra privilégios

hereditários e vantagens nobiliárquicas. Da Constituição de 1988 todos esses

elementos são extraídos e apontados logo no início de seu texto:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político457.

Com base nesse modelo é que parte substanciosa da doutrina vem

empreendendo uma reconstrução do Direito, movimento que segue diferentes

caminhos e com diferentes rubricas, como é o caso da “publicização do direito

privado458” , “privatização do direito público”, “constitucionalização do direito

privado” e “civilização do direito constitucional459” . Marcam-se, sobretudo,

pelos esforços doutrinários voltados para a tutela e resgate do ser humano,

construindo-se uma parcela existencialista em um contexto patrimonialista (de

meios). Verdadeiramente, representa a arguta construção argumentativa voltada

contra a forte tendência contemporânea de “desamparo radical do sujeito460”.

Trata-se, assim, da interpretação do direito privado e público segundo,

grosso modo, três enfoques distintos: um primeiro a fazer repousar na 456 Cf. CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed., 2ª reimpressão, Coimbra: Livraria Almedina, 2003, p. 231. 457 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada aos 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado, 1998. 458 Cf. NETO, Eugênio Facchini. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2ª ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2006, p. 29. 459 Exemplos levantados por CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coinbra Editora, 2004, p. 192. 460 Cf. LEAL. Rosemiro Pereira. Direitos fundamentais do processo na desnaturalização dos direitos humanos. In GALUPPO. Marcelo Campos (org.). O Brasil que queremos: reflexões sobre o Estado democrático de direito. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2006, p. 668.

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Constituição de 1988 o epicentro de todo o ordenamento jurídico; outro a

localizar como centro do sistema jurídico o referido texto constitucional e no

centro do direito privado o Código Civil de 2002; e um terceiro a não indicar

um ponto central do sistema, considerando que o direito privado gravita em

torno de normas de caráter fundamental localizadas em todo o sistema461.

Desta constatação tem-se que o estudo do ingresso de institutos

historicamente privados no texto constitucional foge às pretensões desse meio

interpretativo, bem como a compartimentalização do Direito (sobretudo em seu

aspécto de separação do direito privado do público segundo uma forte ordem

dicotômica) é severamente afastada, possibilitando-se ao intérprete buscar

soluções para os conflitos nos dois ramos jurídicos especializados, integrando-

se os campos.

Assim, a Constituição de 1988 estabelece diversas premissas a serem

compreendidas como princípios que devem ser levados em consideração quando

da análise do direito privado (e vice-versa).

Uma das técnicas desenvolvidas para possibilitar uma convergência do

direito privado e direito público é o estabelecimento de cláusulas gerais (ou

principiológicas), de ampla interpretação a simplificar a construção doutrinária

num sentido de fazer comunicar direito público e direito privado. E tal recurso,

cumpre destacar, já era utilizado na Alemanha para fazer comunicar os direitos

fundamentais junto ao direito civil462. Falava-se, naquela época, em “brechas”

que as cláusulas gerais formavam para a ligação dos ramos jurídicos que tão

fortemente sofriam o fenômeno da compartimentalização. Esses espaços, ou

non-liquet, portam-se como verdadeiros campos discursivos, onde as idéias

461 Cf. POLI, Leonardo Macedo. A funcionalização do direito autoral: limitação à autonomia privada do titular de direitos autorais. In GALUPPO. Marcelo Campos (org.). O Brasil que queremos: reflexões sobre o Estado democrático de direito. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2006, p. 416. 462 Cf. NETO, Eugênio Facchini. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2ª ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2006, p. 40.

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neles são colocadas à argumentação, possibilitando criação de novas regras

jurídicas.

A doutrina brasileira soube bem absorver a idéia de cláusula geral, que

num contexto cujo ponto de partida é o paradigma do Estado Democrático de

Direito, provê uma interligação vezes tão forte que faz de dois sistemas uma

unidade:

A necessidade de unidade do sistema jurídico faz com que as regras de Direito Autoral sejam interpretadas dentro do contexto principiológico em que se inserem, à luz dos princípios gerais da propriedade intelectual, do Direito Civil e do Estado Democrático de Direito (...) Além disso, as instituições de Direito Autoral passam por um processo de despatrimonialização e de funcionalização: a obra intelectual deixa de ser o centro gravitacional do Direito Autoral e seu lugar é ocupado pela dignidade da pessoa humana, com direitos à promoção espiritual, cultural, social e econômica463.

O que se percebe sobre essa idéia de constitucionalização do direito

privado é que a interpretação se dá do texto e doutrina constitucional para o

texto e doutrina privado, ou seja, fixa-se um movimento do constitucional para

o privado e a justificativa é simples: o estabelecimento de um paradigma, de um

modelo a ser seguido que se encontra no ramo público e que se quer que alcance

a esfera privada do Direito. Essa é, grosso modo, a premissa que fixa o início e

se irradia para a legislação infraconstitucional, tudo devendo se portar em

conformidade com o Estado Democrático de Direito.

463 POLI, Leonardo Macedo. A funcionalização do direito autoral: limitação à autonomia privada do titular de direitos autorais. In GALUPPO. Marcelo Campos (org.). O Brasil que queremos: reflexões sobre o Estado democrático de direito. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2006, p. 417, em conformidade com FIUZA, César. Crise e interpretação no direito civil da escola da exegese às teorias da argumentação. in FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coords.) Direito Civil: Atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 29.

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Assim, o que antes se assentava na autonomia da vontade, na liberdade

econômica, na dicotomia entre Estado e indivíduo e na igualdade e liberdade em

sua concepção formalista passa, aos 05 de outubro de 1988, a não se justificar464.

Arrisca-se a dizer que o que há de mais virtuoso nessa linha de

pensamento é a tentativa de resgate da pessoa que, como dito, é reduzida, na

legislação privada, a ser capaz de adquirir direitos e contrair obrigações, o que

faz da personalidade mero instrumento465. Assim, e se o caminho é do público

para o privado, do ser genérico do Código Civil passa para o ser em situação

(idoso, mulher, criança, adolescente etc.)466 da Constituição de 1988467. Ou seja,

possibilita-se uma passagem da pessoa como instrumento para pessoa como ente

que se insere num contexto.

Além disso, outra conseqüência que se apresenta é a possibilidade dada ao

intérprete de fazer fluir os direitos fundamentais livremente de um ramo para o

outro, tendo até mesmo os constitucionalistas mais positivistas aceitado que os

referidos direitos não se restringem à clássica linha vertical representada pela

tutela do indivíduo para com o Estado (a gosto da ordem dicotômica), também

se estendendo para a proteção frente a outros indivíduos468.

Com isso, novamente a questão se voltará para o limite da “afinidade”

entre direito público e privado ou, mais especificamente, entre direitos

fundamentais e direitos da personalidade. Isso porque, se antes do Código Civil

de 2002 a possibilidade de defesa (legal) do indivíduo contra outro indivíduo só

era possível com base na hermenêutica a atrair os direitos fundamentais para a 464 Cf. POLI, Leonardo Macedo. A funcionalização do direito autoral: limitação à autonomia privada do titular de direitos autorais. In GALUPPO. Marcelo Campos (org.). O Brasil que queremos: reflexões sobre o Estado democrático de direito. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2006, p. 415, e FIUZA, César. Crise e interpretação no direito civil da escola da exegese às teorias da argumentação. in FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coords.) Direito Civil: Atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 25. 465 Cf. MARTINS-COSTA, Judith. Os danos à pessoa no direito brasileiro e a natureza de sua indenização. In MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A reconstrução do direito privado: reflexo dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 411. 466 Cf. BOBBIO. Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho; apre. Celso Lafer. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, 4ª reimpressão, p. 12. 467 Cf. arts. 226 ao 230, in BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada aos 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado, 1998. 468 Cf. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2002, p. 285.

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responsabilidade civil (via cláusulas gerais), hoje, com a adoção legislativa dos

direitos da personalidade, a interpretação por certo se modifica. Neste ponto, o

caminho interpretativo tem se voltado para uma aproximação dos direitos

fundamentais e direitos da personalidade via alargamento da tutela da pessoa

(sobretudo no âmbito da responsabilidade civil), criando-se a idéia de cláusula

geral dos direitos da personalidade já há muito cunhada pelo tedesco HARRY

WESTERMANN (1909-1986)469.

Uma ilustração da “afinidade” que tende para a unidade pode ser

encontrada em recente julgado do Tribunal Superior de Justiça470, onde a

Primeira Turma, ao discorrer sobre pretensão de indenização por danos

patrimoniais e morais, manifestamente aproximou os conceitos de direitos

humanos, direitos fundamentais e direitos da personalidade de modo a torná-los

praticamente sinônimos, bem como se posicionou no sentido de que os danos

patrimoniais acarretam perdas e danos e a chamada “tutela moral” dos direitos

da personalidade conduzem aos danos morais:

PROCESSUAL CIVIL. (...) ACUMULAÇÃO DE REPARAÇÃO ECONÔMICA COM INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. POSSIBILIDADE. (...) 2. A pretensão indenizatória decorrente de violação de direitos humanos fundamentais durante o Regime Militar de exceção é imprescritível. (...) 4. Não há vedação para a acumulação da reparação econômica com indenização por danos morais, porquanto se tratam de verbas indenizatórias com fundamentos e finalidades diversas: aquela visa à recomposição patrimonial (danos emergentes e lucros cessantes), ao passo que esta tem por escopo a tutela da integridade moral, expressão dos direitos da personalidade. Aplicação da orientação consolidada na Súmula 37⁄STJ. 5. Os direitos dos anistiados políticos, expressos na Lei 10.559⁄2002 (art. 1º, I a V), não excluem outros conferidos

469 Cf. WESTERMANN, Harry. Código civil alemão; parte geral. Trad. Luiz Dória Furquim. Porto Alegre: Fabris, 1991, p. 38. 470 STJ, Primeira turma, Recurso Especial nº 890.930 - RJ (2006⁄0221228-8), Ministra Relatora Denise Arruada, Ministro José Delgado, Ministro Francisco Falcão e Ministro Teori Albino Zavascki (voto vencido). Julgado aos 17 de maio de 2007, disponível em <http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/> Acessado aos 23/11/2007.

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por outras normas legais ou constitucionais. Insere-se, aqui, o direito fundamental à reparação por danos morais (CF⁄88, art. 5º, V e X; CC⁄1916, art. 159; CC⁄2002, art. 186), que não pode ser suprimido nem cerceado por ato normativo infraconstitucional, tampouco pela interpretação da regra jurídica, sob pena de inconstitucionalidade.

É de se ressaltar que a dicotomia entre o direito público e o privado,

analisado do ponto de vista deste julgado, é tão apagada quanto o fora na Idade

Média. Ou seja, da violação do que aquela ministra chamou de direitos humanos

fundamentais (direito público), ter-se ia, in casu, uma pretensão (“poder de

exigir um comportamento471” ) de ordem patrimonial (segundo os danos

emergentes e lucros cessantes) e outra de ordem moral (segundo os direitos da

personalidade e os direitos fundamentais).

A doutrina geralmente é pacífica em atribuir ao princípio da dignidade da

pessoa humana a situação de cláusula geral a proporcionar uma dialeticidade

entre direitos da personalidade e direitos fundamentais. Isto proporciona, assim,

a formação de uma coesão interpretativa, que leva em consideração não apenas

que dois planos jurídicos “opostos” irradiam dois institutos a tutelar a pessoa

humana472, indo além, de modo a compreender que essa tutela que teria se

“bipartido” em dois grandes ramos473 é, verdadeiramente, uma única tutela, seja

qual for seu vocábulo distintivo.

Essa tutela expansiva (ou elástica), que mantém aberta a dialética entre a

disciplina privada e pública, já aponta para uma interseção entre os direitos da

personalidade (aqui incluídos os direitos fundamentais pertinentes) e os danos

morais:

471 FONTES. André. A pretensão como situação jurídica subjetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 11. 472 Cf. CAPELO DE SOUSA, Rabindranath V. A. O Direito Geral de Personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 581. 473 Cf. SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da Personalidade e sua Tutela. 2ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 43.

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“A Constituição (art. 5º, X) consagrou no direito brasileiro, definitivamente, o direito irrestrito ao dano moral, que sempre foi objeto de reações e controvérsias, quanto a sua admissibilidade, podendo ser cumulado com o dano material. Nesse dispositivo ressalta-se que o vínculo que há de ser observado entre dano moral e violação de direitos da personalidade (vida, liberdade, intimidade, vida privada, honra, imagem, identidade pessoal, integridade física e psíquica), indicam ao intérprete o parâmetro hermenêutico a ser seguido, na linha da primazia da dignidade humana, não podendo ser instrumento de valorização do interesse patrimonial474”.

O interessante da adoção de uma cláusula geral é que, através dela, e

desde que não ocorra nenhuma contradição (inadmissível em construções

científicas) não só os elementos da Constituição de 1988 (sobretudo os do art. 5º

que se referem aos direitos fundamentais) migram livremente para o Código

Civil, mas também ocorre a contribuição inversa (sobretudo quanto à

responsabilidade civil). E mais que isso, também a doutrina e jurisprudência de

um ramo auxilia e é auxiliada pelo outro. Assim, na medida da necessidade que

a solução de conflitos exija, mais e mais vão as fontes do Direito se interligando.

Nesta corrente dogmática de visão axiológica o ponto de amplitude do

instituto está intimamente ligado com a idéia de que a pessoa humana detém

prioridade absoluta junto ao ordenamento jurídico475. Esta é a premissa

estabelecida, e por isso mesmo acarreta em uma exceção ao romance em cadeia

(e conseqüente crise dogmática). Isto porque, se é a pessoa humana que se

apresenta como o epicentro dos direitos da personalidade e dos direitos

fundamentais, como fazer tal ideologia se harmonizar com o art. 52 que

estabelece a regra segundo a qual se aplica “às pessoas jurídicas, no que

couber, a proteção dos direitos da personalidade”. Ora, se a premissa é a tutela

474 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 14. 475 Cf. TEPEDINO, Gustavo. A constitucionalização do direito civil: perspectivas interpretativas diante do novo código. In FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coords.) Direito Civil: Atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 120.

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da pessoa humana, e numa visão dogmática não se pode subtrair isso à dúvida,

então se tem evidenciado que esse enfoque do Direito não é compatível com o

positivismo jurídico, aproximando-se mais do jusnaturalismo.

Nessa doutrina que faz gravitar em harmonia os direitos da personalidade

e direitos fundamentais também são colocados como ponto de atração os danos

morais. Civilistas como SERGIO CAVALIERI FILHO entendem por dano

moral a violação ao direito à dignidade (da pessoa humana)476. Nota-se que o

status de cláusula geral dado pela doutrina à dignidade da pessoa humana faz

com que nela se inclua um máximo de interesses juridicamente tutelados, v.g.,

os direitos da personalidade e direitos fundamentais, com um máximo de

solução via indenização por danos morais. Compartilham da idéia de dano

moral como “lesão à dignidade humana” inúmeros autores, como é o caso de

CRISTIANO CHAVES DE FARIA, NELSON ROSENVALD477 e MARIA

CELINA BODIN DE MORAES478.

A tônica representada pela dignidade costuma criar uma dupla

conseqüência. A primeira é o afastamento da investigação das premissas, já que

o dispositivo legal evidenciado, princípio da dignidade da pessoa humana,

sequer é conceituado, seja pela omissão479, seja pelo entendimento de ser uma

tarefa impossível definir pessoa humana480:

A ação e o discurso são também as atitudes que melhor traduzem a singularidade de cada ser humano. Só o homem é capaz de comunicar a si próprio, e não apenas comunicar alguma coisa – sede, fome, afeto, medo. Todavia, quando se

476 Cf. FILHO, Sergio Cavalieri. Programa de responsabilidade civil. 6ª ed., 2ª tiragem, rev. ampl. e atual.São Paulo: Malheiros, 2005, p. 101. 477 Cf. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil, teoria geral. 4ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 149. 478 Cf. MORAES, Maria Celina Bodin. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 130 / 131. 479 Cf. FILHO, Sergio Cavalieri. Programa de responsabilidade civil. 6ª ed., 2ª tiragem, rev. ampl. e atual.São Paulo: Malheiros, 2005, p. 101. 480 Cf. MORAES, Maria Celina Bodin. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 76, 80 e 81, e SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da Personalidade e sua Tutela. 2ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 140.

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trata de definir, filosoficamente, “quem” somos, só é possível enumerar qualidades e características do “que” somos, revelando-se, então, a notória incapacidade filosófica de se chegar a uma definição da pessoa humana, de se revelar a sua “essência viva481”.

Nota-se que a observação epigrafada tem seu conteúdo na advertência já

comentada anteriormente da tedesca HANNAH ARENDT (1906-1975) no que

concerne a limitação cognitiva do ser humano quando o objeto de exame é ele

próprio. Ou seja, quer-se conceituar dignidade, mas não se quer fazê-lo como se

um objeto fosse e é por isso que o problema é praticamente intransponível. A

tendência passa, naturalmente, para um exame da proteção dos bens que essa

dignidade guarneceria, diminuindo-se em muito o interesse pelas definições, ao

passo que o dogmatismo vai se ocupando, mais e mais, da solução de conflitos

(ordem finalística), nunca no questionamento de suas premissas. Com isso, a

possibilidade do uso dos danos morais cresce exponencialmente, já que calcado

num princípio cada vez mais aberto e que pode ser especulado livremente pelo

intérprete (a não ser que ponha em risco a premissa, como é o caso da situação

da pessoa jurídica já mencionada). A segunda conseqüência, também já

destacada, representa a louvável tentativa de resgatar o interesse pelo ser

humano em oposição a uma visão restrita ao patrimônio, coisa que o legislador

do Código Civil de 2002 não fez, e o constituinte de 1988 desenvolveu bem

modestamente. De qualquer maneira, a contribuição para um Estado

Democrático de Direito é evidente, já que substitutiva dos paradimas

eminentemente liberais, e a conseqüência é o provimento de novos contornos

para a fundamentação dos direitos da personalidade.

481 MORAES, Maria Celina Bodin. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 76.

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5.4 Por uma contribuição contextualizada ao Estado Democrático de

Direito

O caminho trilhado pelo capítulo anterior procurou evidenciar a

contribuição de ordem principiológica dada pela doutrina ao direito privado e

público, tendo sua importância calcada, sobretudo, na solução dos conflitos que

necessitam, cada vez mais, de soluções melhores e coerentes com a atual

conjuntura do Direito. Contudo, o Direito é uma conseqüência do que o contexto

sócio-político representa, já que é força condicionante do ser humano, e

compreendê-lo é compreender o porquê do Direito. Assim, a atual pretensão se

inicia do estudo do ingresso de institutos historicamente privados no texto

constitucional, o que não foi feito no capítulo passado. Adianta-se a sublinhar

que a construção doutrinária que a dogmática contemporânea oferece sobre o

assunto não é descartada, mas, ao contrário, incluída e de grande importância

para as linhas que se seguem. Assim, apenas o enfoque que será levemente

alterado, visando-se oferecer, até onde o rigorismo permitir, uma visão mais

ampla do todo.

Assim, ao mesmo tempo em que a dogmática jurídica oferecia a sua

compartimentalização do Direito (v.g. pela Codificação), solidificava-se o que

se chamou de movimento constitucionalista a trazer consigo todo o arcabouço de

idéias que seriam reunidas para a consolidação tanto dos direitos fundamentais

quanto dos direitos da personalidade. Trata-se do condicionamento da

sociedade quanto a tudo o que a liberdade dos modernos representa. Nestes

termos, não só o paradigma do Estado Democrático de Direito se apresenta

como premissa, mas tudo o mais que esse movimento abarcou. Como dito, esse

modelo político tem por base teórica a construção principiológica (diretiva) de

limitação do poder governamental de modo a se proverem as garantias

indispensáveis à liberdade, condicionando-se toda a organização político-

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social482. A tônica é a liberdade dos modernos, acrescida de uma ingerência cada

vez maior entre direito privado e público. O paradigma político evidenciado, o

Estado Democrático de Direito, como é comum de toda política, nunca se porta

como simples meio de proteção da sociedade, mas parte, outrossim, da idéia de

liberdade específica daquela sociedade em determinado tempo a justificar a

limitação da autoridade política:

A política não podia, em circunstância alguma, ser apenas um meio de proteger a sociedade – uma sociedade de fiéis, como na Idade Média, ou uma sociedade de proprietários, como em Locke, ou uma sociedade inexoravelmente empenhada num processo de aquisição, como em Hobbes, ou uma sociedade de produtores, como em Marx, ou uma sociedade de empregados, como em nossa própria sociedade, ou uma sociedade de operários, como nos países socialistas e comunistas. Em todos estes casos, é a liberdade (e, em alguns casos, a pseudoliberdade) da sociedade que requer e justifica a limitação da autoridade política483.

Tudo isso vai explicar como a responsabilidade civil vai sendo

incorporada pelo texto constitucional e como os direitos da personalidade e os

danos morais vão recebendo a aceitação dos diplomas privados. Mais que isso,

ainda vai prover certa coerência no desenvolvimento de todos esses institutos de

modo a se possibilitar uma compatibilidade final, harmônica, coerente e,

principalmente, a gosto da dogmática jurídica. Mas vai além desse enfoque, já

que suas premissas podem ser evidenciadas a se justificar não apenas pela opção

legislativa do constituinte de 1988, mas pelos fatores condicionantes do ser

humano, que demonstrará o afastamento (ou ruína) da categoria global de meios

e fins pelo recente ideal de liberdade e a impossibilidade do uso da moral

482 Cf. CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed., 2ª reimpressão, Coimbra: Livraria Almedina, 2003, p. 51. 483 Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 40.

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kantiana, se não em todo o Direito, pelo menos no que se refere aos direitos da

personalidade e direitos fundamentais.

Assim, a interseção entre os direitos da personalidade e os danos morais,

e destes com os direitos fundamentais é algo que a liberdade dos modernos

plenamente abarca, já que oferece ao jurisdicionado não apenas outra forma de

solução de conflito a tangenciar as que remotam a coercitibilidade via privação

de liberdade ou restrição de direitos484, justificando também a premissa segundo

a atual condição humana frente à liberdade. Ou seja, para aqueles casos em que

a tutela se restringia às normas de direito penal, sobretudo quanto aos crimes

contra a honra (calúnia, difamação, e injúria), agora são oferecidos meios de

tutela muito menos impositivos e autoritários por parte do Estado. Trata-se,

assim, do que já foi constatado sobre a adoção, no terreno público, de institutos

tipicamente privados de solução de conflitos (como a responsabilidade civil), o

que evidencia um processo paulatino de retirada dos meios mais coercitivos que

o Estado possui contra os atos daninhos à sociedade485. Justamente aqui é que a

responsabilidade civil mais se desenvolve, fazendo evidenciar ainda mais o

plano de interseção que faz atrair direitos da personalidade e o meio reparador

dos danos morais.

Até aqui, a reconstrução do direito privado numa perspectiva de

congruência com o Estado Democrático de Direito se mostrou plenamente

possível. Contudo, já foi desenvolvida nas linhas anteriores, distribuída,

sobretudo nas considerações a partir da Modernidade, a situação

comportamental do mundo do homo faber, onde a moral kantiana é acolhida por

alguns adeptos daquela linha de direito civil-constitucional. Sendo verdadeira,

isto é, admitindo-se a hipótese de que há um sistema onde tudo é meio para um

fim, então o impacto dessa realidade deve ser examinado como “força

484 Cf. incisos I e II do art. 32 do Código Penal, in BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Diário Oficial da União, Brasília, 31 de dezembro de 1940. 485 Cf. NETO, Eugênio Facchini. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2ª ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2006, p. 28.

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condicionante486” sobre a existência humana, ressaltando-se que esse

condicionamento não se dá, como todos os outros, de forma absoluta487.

A questão posta, a partir de agora, seria analisar se a recepção da

responsabilidade civil junto ao direito público, a recepção dos direitos da

personalidade junto ao direito privado e a teoria a englobar todos estes

movimentos oferece alguma resistência ao prisma do homo faber. Trata-se de

analisar se há ou não uma incompatibilidade a priori entre a liberdade dos

modernos e a ordem (plenamente) finalística. Essas últimas considerações,

assim, iniciar-se-ão do exame do que já foi referido como tênue equilíbrio entre

esses dois modelos.

O regime jurídico que fora atribuído pela doutrina e pelo legislador do

Código Civil de 2002 no que concerne aos direitos da personalidade fez

conviver tanto os ideais da liberdade dos modernos quanto os da ordem

finalística, e já se evidenciou que o desequilíbrio que favorece um significa a

supressão do outro. Ao que parece, a discussão recai na idéia de disponibilidade

dos direitos da personalidade, onde a exacerbação desta pode acarretar na

sujeição de uma pessoa por outra, abalando-se os fundamentos mais íntimos da

liberdade dos modernos. Não se quer dizer que essa liberdade não seja

congruente com a idéia de fins e meios, mas sim que é dependente de limites

inafastáveis e fundamentais dentro do ordenamento jurídico. Ou seja, se no

mundo do homo faber é global a categoria dos meios e fins, onde se pressupõe

um mundo de objetos (de uso) que cerca o homem e onde este homem se

movimenta488, numa ordem que se pauta pelo Estado Democrático de Direito a

proteger, sobretudo, a liberdade, nem tudo poderá ser visto nos termos de uma

486 Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 17. 487 Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 19. 488 Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 318 e 320.

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ótica instrumentalista e utilitária , e junto aos direitos da personalidade o homo

faber fortemente fracassa.

Como dito, os bens que guarnecem os direitos da personalidade se

apresentam pela fórmula (a princípio) de indisponibilidade de titularidade e,

com esse limite, podem entrar no comércio e servir de meios para determinados

fins (v.g., financeiro). Mas esse reino dos fins não é ilimitado como quer o homo

faber, pois depende da manutenção da titularidade. Nestes termos, a vida

privada não pode ser utilizada ao ponto de que venha a sofrer o domínio de

outro que não o seu titular. O mesmo se diz do nome, que de forma alguma pode

vagar da titularidade daquele que o usa como elemento distintivo.

A princípio, a indisponibilidade (e irrenunciabilidade) da titularidade se

porta como regra geral a conduzir a interpretação nos casos em que versem

sobre direitos da personalidade. Contudo, já foi demonstrada a existência de

exceções a tornar plenamente possível a disposição. Justamente neste ponto que

o equilíbrio e a convivência entre a liberdade dos modernos e o mundo do homo

faber dentro do ordenamento jurídico se apresentam mais ameaçados. A

conseqüência que se observa é um maior rigorismo nos casos de inaplicabilidade

do princípio evidenciado, já que a flexibilização da tutela desses bens numa

circunstância de disponibilidade pode acarretar em um estatuto de sujeição

daquele que abre mão da titularidade de certos bens em face de outro que se

apropria desse bem. Tal situação é excludente do ideal estabelecido pela

liberdade dos modernos, não se firmando nos moldes afixados pelo modelo

paradigmático do Estado Democrático de Direito. Justamente por esse motivo é

que doutrina, legislação e jurisprudência se unem para afastar qualquer tipo de

sujeição direta entre uma pessoa e outra e entre essas e o Estado. O repúdio a

uma filosofia meramente utilitarista acarreta, assim, na ruptura do mundo guiado

pura e simplesmente pelo princípio da utilidade489.

489 Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 320.

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A título ilustrativo, o que comumente se chama de bem da integridade

física (geralmente subdividido em corpo e cadáver) recebe especial atenção das

fontes do Direito quanto ao que o legislador chamou de disposição do próprio

corpo (exceção ao princípio da indisponibilidade de titularidade). Os limites

criados impõem uma maior restrição ao mundo dos fins, já que ingerências no

modo de ser físico da pessoa só são permitidas segundo condutas pré-

determinadas e repletas de condicionantes.

Nota-se que o valor (de utilidade) dos bens que guarnecem os direitos da

personalidade, diferentemente das coisas, é meramente secundário, e justamente

por isso que a doutrina não parece desistir de empregar o mesmo soneto no que

se refere à responsabilidade civil por danos aos bens que guarnecem os direitos

da personalidade: o emprego da indenização por danos morais sem qualquer

tipo de limitação a priori490. Ou seja, se for certo que a manutenção da liberdade

dos modernos depende fortemente dos princípios da indisponibilidade e

irrenunciabilidade dos direitos da personalidade, então a pré-mensuração do

valor desses bens os coloca, em termos de responsabilidade civil, juntamente

com todos os demais bens que operam junto à “certeza” matemática das perdas

e danos.

Conclui-se, e aqui pode pairar a contribuição ao Estado Democrático de

Direito, que as coisas podem ser valiosas por elas mesmas e não simplesmente

enquanto instrumento, enquanto meios491, e os direitos da personalidade

representam parte substanciosa dos elementos que tratam de afastar o ideal do

homo faber e uma visão de mundo segundo a moral kantiana, protegendo o

atual ideal de liberdade.

490 Cf. SANTOS, Antonio Jeová. Dano moral indenizável. 4ª ed. rev. ampl. e atual. de acordo com o novo código civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 165, MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 306, SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da Personalidade e sua Tutela. 2ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 254, FILHO, Sergio Cavalieri. Programa de responsabilidade civil. 6ª ed., 2ª tiragem, rev. ampl. e atual.São Paulo: Malheiros, 2005, p. 102, entre outros. 491 Cf. FERRAS JR, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 25.

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Assim, os direitos da personalidade integram o seleto rol de direitos

subjetivos cujos limites são colocados para a garantia da liberdade que se

solidificou desde a Modernidade, de modo a se evitar os principais estatutos de

sujeição que a atual condição humana apresenta, permitindo, assim, um

desenvolvimento da esfera privada do ser humano sem que isso acarrete na

situação de completa sujeição do próprio titular do direito e da coletividade que

o cerca. Se o itálico antigo prezava sua cidadania mais do que tudo porque era

do exercício dela que se alcançava a liberdade, a partir da Modernidade o fator

condicionante é o desenvolvimento da esfera privada do indivíduo sem

ingerências desnecessárias externas e, assim, o resultado é uma sociedade

voltada para uma proteção geral da possibilidade desse desenvolvimento, de

modo que todos alcancem essa liberdade. Isto representa, assim, a base da

fundamentação dos direitos da personalidade, pois estes se portam como meio

de solução dos conflitos a alargar a tutela para além do patrimônio, fazendo

incidir a reparação por danos morais, resultado do atual condicionamento

humano frente à idéia de liberdade que, hoje, prevalece.

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6. CONCLUSÃO

Os fenômenos jurídicos, por se tratarem de um resultado (em oposição ao

dado) da atuação do tempo e dos fatores condicionantes do ser humano em

determinada sociedade, necessitam de um cuidado redobrado de quem se propõe

ao seu estudo e interpretação. Tal advertência foi, sempre que possível e na

tentativa de um maior rigorismo científico, destacada durante a construção das

diversas conclusões apontadas ao longo dos capítulos passados. Com isso,

propôs-se a examinar os direitos da personalidade com base na sua

fundamentação, que se deu tanto com base no atual fenômeno de integração

entre institutos jurídicos que, tradicionalmente, foram desenvolvidos

separadamente, cada qual inserido em seu respectivo sistema, quanto com base

na contextualização desses direitos. A superação das dificuldades da análise

dessa integração apenas se apresentou possível, num primeiro momento, pela

sua especificidade e pela limitação da curiosidade investigativa junto à teoria

geral de cada um desses institutos. Mais que isso, o primeiro e decisivo passo

foi justificar a tendência e conseqüência da descompartimentalização do Direito,

sobretudo a proporcionar verdadeira crise na idéia de sistema, de dicotomia e de

Codificação. Da construção histórica até o aparecimento dos direitos da

personalidade na Modernidade foi possível comprovar que esse instituto tomou

forças com a doutrina jusnaturalista e com a filosofia kantiana, mas que

nenhuma destas foi capaz de se firmar como a fundamentação procurada. Assim,

ao contrário do que fortemente prevalece na doutrina, justificou-se o

preenchimento da fundamentação dos direitos da personalidade com a

liberdade dos modernos. Esta ideologia possibilita compreender os mecanismos

do instituto em apreço, tornando claro o propósito dos diversos elementos que o

compõem, como a imagem, a vida privada, etc., todos sistematizados de modo a

garantir um máximo de desenvolvimento da esfera privada do seu titular no

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limite em que este desenvolvimento não acarrete ao próprio titular e terceiros

conseqüente obstáculo ao desenvolvimento da esfera privada. Ocorre com a

imagem quando é usada pelo seu titular com propósito econômico até o limite

anterior à disposição desse direito, já que a possibilidade de um

desenvolvimento futuro da esfera privada desse sujeito sem imagem restaria

comprometida. O mesmo se pode dizer do nome. Ainda mais cristalina é a

situação da vida privada, direito que possibilita ao seu titular o máximo

desenvolvimento de sua vida privada com o mínimo de ingerência externa.

Nota-se, aqui, que a possibilidade de ingerência na vida privada dos indivíduos

apenas ocorre quando estes estiverem comprometendo o próprio

desenvolvimento protegido ou o da vida privada de terceiros.

A partir de então, ao objeto de estudo possibilitou-se uma dupla

justificativa a demonstrar que a fundamentação dos direitos da personalidade

com base em seu contexto é plenamente viável. Na primeira, onde predomina a

dogmática jurídica, a principiologia tanto Constitucional quanto jusnaturalista

tende a fixar a realidade e direcionar o intérprete de modo a pôr a salvo os

direitos da personalidade ou, no caso de lesão aos bens que este guarnece, a

tendência é a solução com um mínimo de perturbação social, isto é, a reparação

sem a maculação da liberdade, fazendo evidenciar os danos morais. No segundo

enfoque, a análise é do Direito em seu contexto ou, melhor dizendo, das

repercuções jurídicas das condições apresentadas pela humanidade. Assim, com

a análise histórica, acondicionam-se os específicos institutos do objeto do

presente trabalho no período da contemporaneidade e se torna possível delimitar

de forma mais precisa o condicionamento que sofrem. Com isso, e como dito, a

moral kantiana da Modernidade e a generalização do mundo dos fins se

mostram incompatíveis com a recente idéia de liberdade, demonstrando que tal

filosofia, vezes apontada por dogmáticos como a justificativa para direitos da

personalidade, danos morais e, mesmo, da idéia de dignidade, representa, ao

contrário, a ruptura do sistema. Compreender os fundamentos dos direitos da

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personalidade em seu contexto é concluir que esses direitos possuem uma tutela

existencial, que os bens que eles guarnecem podem possuir peculiaridades, na

ótica jurídica, que o patrimônio não possui. Mais que isso, trata-se do resultado

de um ideal que direciona o estudioso quando este escreve seu tratado, o

julgador quando prolata sua decisão, o legislador quando esboça um projeto de

lei e a sociedade quando espera pela solução de um conflito. Assim, ao

compreender os direitos da personalidade como direitos subjetivos, têm-se duas

conseqüências, onde a primeira é a possibilidade jurídica do uso, gozo e a

fruição daqueles bens pelo seu titular junto a terceiros, aumentando as

possibilidades de desenvolvimento da esfera privada do indivíduo; e a segunda,

a oposição de limites de modo a não se permitir a disposição e renúncia a esses

bens, e com isso faz-se preservar esses bens na medida em que se faz preservar a

liberdade. Esta é um fator tão condicionante da humanidade de hoje que mesmo

aquele que desobedece aos preceitos legais tende a não se responsabilizar ao

ponto de sofrer pelos meios mais impositivos do Estado Democrático de Direito,

como é o caso das penas restritivas de liberdade. A solução via reparação dos

danos morais se porta, assim, como a forma de solução menos perturbadora da

paz social, segundo esse ideal de liberdade, e vai transitar livremente pelo

direito público e privado.

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