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Jornal da UFRJ Gabinete do Reitor Coordenadoria de Comunicação da UFRJ Ano 4 • Nº 40 • Dezembro de 2008 •Edição Especial 28 Com a decretação do Ato Institucional número 5, o AI-5, em 13 de dezembro de 1968, o Brasil mergulha no mais fechado e violento período de sua história recente, que durou exatamente 10 anos. Nesta edição especial do Jornal da UFRJ – concluindo a série de reportagens que rememoraram alguns episódios de 1968 ao longo deste ano – abordamos os antecedentes e os desdobramentos deste fato. Falamos, ainda, de temas que mobilizaram corações e mentes há 40 anos: censura, feminismo, direitos humanos, guerra do Vietnã, Reforma Universitária e Geraldo Vandré, entre outros. No cabeçalho desta edição reproduzimos a previsão do tempo e a chamada publicadas no cabeçalho da edição do Jornal do Brasil que circulou no dia seguinte ao AI-5, apesar de toda a censura da ditadura militar. “Ontem foi o Dia dos Cegos” “Tempo negro. Tempe- ratura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varri- do por fortes ventos. Máx.: 38º, em Brasí- lia. Mín.: 5º, nas La- ranjeiras.” AI-5 Maria Yedda Linhares miúdo” “O Brasil ficou

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Jornal da

UFRJGabinete do Reitor • Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Ano 4 • Nº 40 • Dezembro de 2008 •Edição Especial

EntrevistaEduardo Portella

13a16

28

Com a decretação do Ato Institucional número 5, o AI-5, em 13 de dezembro de 1968, o Brasil mergulha no mais fechado e violento período de sua história recente, que durou exatamente 10 anos. Nesta edição especial do Jornal da UFRJ – concluindo a série de reportagens que rememoraram alguns episódios de 1968 ao longo deste ano – abordamos os antecedentes e os desdobramentos deste fato. Falamos, ainda, de temas que mobilizaram corações e mentes há 40 anos: censura, feminismo, direitos humanos, guerra do Vietnã, Reforma Universitária e Geraldo Vandré, entre outros. No cabeçalho desta edição reproduzimos a previsão do tempo e a chamada publicadas no cabeçalho da edição do Jornal do Brasil que circulou no dia seguinte ao AI-5, apesar de toda a censura da ditadura militar.

“Ontem foi o Diados Cegos”

“Tempo negro. Tempe-ratura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varri-do por fortes ventos.Máx.: 38º, em Brasí-lia. Mín.: 5º, nas La-ranjeiras.”

AI-5

Maria Yedda Linhares

miúdo”

“O Brasil ficou

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Dezembro 2008UFRJJornal da

2

Reitor Aloísio Teixeira

Vice-reitora Sylvia da Silveira Mello Vargas

Pró-reitoria de Graduação (PR-1) Belkis Valdman

Pró-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa (PR-2)

Ângela Maria Cohen Uller

Pró-reitoria de Planejamento e Desenvolvimento (PR-3)

Carlos Antônio Levi da Conceição

Pró-reitoria de Pessoal (PR-4) Luiz Afonso Henriques Mariz

Pró-reitoria de Extensão (PR-5) Laura Tavares Ribeiro Soares

Superintendência Geral de Administração e Finanças

Milton Flores

Chefe de Gabinete João Eduardo do Nascimento Fonseca

Forum de Ciência e CulturaBeatriz Resende

Prefeito da Cidade UniversitáriaHélio de Mattos Alves

Sistema de Bibliotecas e Informação (SiBI) Paula Maria Abrantes Cotta de Melo

Coordenadoria de Comunicação (CoordCom) Fortunato Mauro

Fotolito e impressão Newstec Gráfica e Editora

25 mil exemplares

Av. Pedro Calmon, 550, térreo.Prédio da Reitoria – Gabinete do Reitor

Cidade Universitária CEP 21941-590

Rio de Janeiro – RJ Telefone: (21) 2598-1621 / 1622

Fax: (21) 2598-1605 [email protected]

JORNAL DA UFRJ é UmA PUBlICAção mENSAl DA CooRDENADoRIA DE ComUNICAção DA UNIVERSIDADE FEDERAl Do RIo DE JANEIRo.

Supervisão editorial João Eduardo Fonseca

Jornalista responsável Fortunato mauro (Reg. 20732 mTE)

Pauta e edição Fortunato mauro e Antônio Carlos moreira

RedaçãoAline DurãesBruno Franco,

Coryntho Baldez, márcio Castilho,

Pedro Barreto e Rodrigo Ricardo

Projeto gráfico Anna Carolina Bayer,

Jefferson Nepomuceno e Rodrigo Ricardo

Diagramação Anna Carolina Bayer

Ilustração Anna Carolina Bayer,

marco Fernandes, Jefferson Nepomuceno,

lucas Santoroe Zope

FotosEvandro Teixeira, Hamilton,

marco Fernandes, Acervo UFRJ e CPDoc JB

Revisão mônica machado

Instituições interessadas em receber esta publicação devem entrar em

contato pelo e-mail [email protected]

UFRJJornal da

***

***

2/12 EUA - Conflitos estudantis em Nova York: 132 prisões.

Agenda

3/12 CCC explode bomba no teatro

Opinião no Rio de Janeiro.

Itália - Prostestos e greves atingem

Roma, Florença, Turim, Bolonha,

Nápoles e Gênova.

5/12 “Expropiação da loja de armas Diana, em São Paulo, pela Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).

7 /12Bomba de alto teor explosivo é detonada na agência do Correio da Manhã no Rio de Janeiro.

13/12O general Costa e Silva decreta o Ato Institu-cional número 5 (AI-5), dando início ao período mais fechado e violento da ditadura militar no Brasil, iniciada em 31 de março de 1964.

O AI-5 teve vigência por 10 anos.França - Manifestações estudantis

12 /12Congresso Nacional

rejeita a licença para

processar o deputado

Márcio Moreira Alves

por 216 votos contra

141 e 12 votos em branco.

de Dezembro 1968

Especial 1968

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Dezembro 2008 UFRJJornal da

3Especial 1968

O país nas trevas

No fim de 1968, regime militar dá “golpe dentro do golpe” e inaugura o período mais trágico da ditadura brasileira

Coryntho Baldez

Aquele 13 de dezembro de 1968 estava fadado a entrar para a história como o marco inicial de um pesadelo brasileiro que duraria 10 anos. Caía a tarde quando o marechal Costa e Silva, com uma liturgia farsesca, abriu a reunião do Conselho de Segurança Nacional, no Palácio Laranjeiras. Sem poder deliberativo, o órgão fora convocado tão somente para ratificar uma decisão que, na noite anterior, já circulava nos quartéis entre militares de alta patente. Dizendo-se ultrajados pelas críticas disparadas contras as Forças Armadas pelo deputado Márcio Moreira Alves – que condenara, da tribuna da Câmara do Deputados, no Distrito Federal, a invasão da Universidade de Brasília (UnB) – queriam apertar o torniquete da repressão. A recusa do Congresso Nacional em autorizar qualquer processo contra o deputado, na sessão de 12 de dezembro, foi a senha para a linha-dura fechar o cerco contra o presidente Costa e Silva. No dia seguinte, em um encontro onde a palavra democracia foi pronunciada 19 vezes, a medida que jogaria o país nas trevas de uma cruenta ditadura ganhou forma e nome: Ato Institucional nº 5 (AI-5).

TESTE

O país nas trevasde Dezembro 1968

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4 Especial 1968

Face mais acabada da di-tadura militar brasileira (1964-1985), o AI-5 insti-

tucionalizou a repressão escancarada. O Congresso Nacional foi fechado de dezembro de 1968 a 30 de outubro de 1969. Tornaram-se rotina os assas-sinatos, as torturas e as prisões sem acusação formal e mandado judicial. A censura amordaçou a imprensa. Houve demissões e aposentadorias forçadas nos ministérios, Forças Armadas e uni-versidades. Levantamentos indicam que, na seqüencia da edição do Ato, fo-ram cassados os direitos políticos de 30 prefeitos, 36 vereadores, 178 deputados estaduais e 105 senadores e deputados federais. Apontado como “golpe den-tro do golpe” por muitos historiadores, o AI-5 vigorou até dezembro de 1978 e reavivou a crença de setores da esquerda de que a ditadura militar somente poderia ser varrida do país pela força das armas.“Operação limpeza”

Carlos Fico, historiador e professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, ao comentar o cenário político anterior ao AI-5, afirma que a posse de Costa e Silva (1966-1969) expressou a vitória da linha-dura, anti-castelista (referen-te ao primeiro presidente militar, Humberto Castelo Branco). “Ele se impôs como presidente contra a von-tade do primeiro general-presidente, reconhecido moderado”, observa o pesquisador. O grupo que apoiava Costa e Silva, segundo Carlos Fico, demandava fortemente a reabertura da temporada de punições chamadas de “revolucionárias”, logrando êxito com o AI-5. Professor do Programa de Pós-graduação em História Social do IFCS, Carlos Fico ressalta que os protestos ocorridos ao longo de 1968 foram os principais “pretextos” dos militares

para defenderem a decretação de um novo ato institucio-

nal e o aprofundamento da “operação limpeza”,

Os 22 membros do Conselho de Segurança Nacional cumpriram com louvor o seu papel no cenário burles-co armado, no Palácio Laranjeiras, para coroar o início da fase mais san-guinária da ditadura brasileira. Um gravador disposto estrategicamente na mesa pelo presidente Costa e Silva registrou para a História aquele en-contro. Apesar do discurso inicial do vice-presidente Pedro Aleixo a favor de uma medida que resguardasse a Constituição, os oficiais generais e civis presentes estavam exultantes com o teor do AI-5.

“É oportuno fazer qualquer ato institucional como este”, defendeu o ministro da Marinha, almirante Augus-to Rademaker. O chefe do Ser-viço Nacional de Informação (SNI), gene-

A grotesca reunião que pariu o AI-5

ral Garrastazu Médici, em elogio macabro, frisou que Costa e Silva havia sido tolerante demais até aquele momento por causa de sua formação democrática. Já o ministro do Trabalho e Previdência Social, Jarbas Passarinho, não fez rodeios. Ressaltou que “repugna entrar pelo caminho da ditadura” e completou com a frase que ficaria famosa: “se ela é inevitável, às favas, senhor presidente, todos os escrúpulos de consciência”.

Naquela mesma noite de 13 de dezembro de 1968, o ministro da Jus-tiça, Gama e Silva, e o locutor Alber-to Cury ocuparam cadeia nacional de rádio e TV para ler os 12 artigos do AI-5 e o Ato Complementar que previa o fechamento do Congresso. Como bem assinalou o jornalista Zuenir Ventura, foi uma leitura monótona e ameaçadora como uma sentença de morte.

O ministro da Justiça, Gama e Silva, e o locutor Alberto

Cury ocuparam cadeia nacional de rádio e TV

para ler os 12 artigos do AI-5 e o Ato Complementar.

Coryntho Baldez

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Dezembro 2008 UFRJJornal da

5Especial 1968

demandas que sustentavam desde o golpe de 1964.

Antes mesmo do AI-5, ficaram evidentes os sinais de endurecimento do regime militar para conter as ma-nifestações pela liberdade que eclo-diam em várias cidades. O Estado de Segurança Nacional, definido na Constituição de 1967, dava poderes discricionários ao aparato repressivo oficial para realizar intensa campa-nha de combate às manifestações de rua – especialmente as estudantis – e realizar detenções em todo o país. A Guerrilha do Caparaó, organizada pelo Movimento Nacionalista Revo-lucionário (MNR), foi dissolvida um mês após a posse de Costa e Silva. De outro lado, a Lei Antigreve, de 1º de junho de 1964, era um meio ainda eficaz de coerção sobre os trabalha-dores e ajudaria a abrir caminho para a reorientação produtiva do país, comandada pelo “czar” da economia do regime militar: Delfim Neto. Diri-gida à expansão do consumo de clas-ses mais abastadas, com incentivos ao setor de bens duráveis, a política econômica corroeu os rendimentos de assalariados. Uma pesquisa do Departamento Intersindical de Es-tatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) registrou uma perda de 12% a 26% nos salários de inúmeras categorias de trabalhadores, entre 1965 e 1968.

A legislação repressiva, contudo, não conseguiu abafar completamente os protestos nas fábricas. Em 1967, foi criado o Movimento Intersin-dical Antiarrocho (MIA), formado por metalúrgicos de São Paulo. No mesmo ano, em Contagem (MG) e Osasco (SP) tornaram-se bastante expressivos os movimentos sindicais de oposição. Nessa época, eles já contavam com o apoio de militantes católicos vinculados a uma nova prá-tica pastoral, que, a partir de 1968, seria consagrada na Conferência Episcopal de Medellín (Colômbia) e ficaria conhecida como Teologia da Libertação.

No cenário político pré-ato, a Frente Ampla também incomodou setores militares que garantiam no poder o presidente Costa e Silva. Formada em 1967, dela participavam figuras liberais de proa que apoiaram o golpe, como Magalhães Pinto, Car-los Lacerda e Juscelino Kubitscheck, e que passaram a defender o restabe-lecimento da democracia no país.

Em 1968, eclodiram as maciças manifestações estudantis, as pas-seatas, greves de trabalhadores, movimentos culturais de protesto e começaram a proliferar as organiza-ções armadas. Em outubro daquele ano, já existiam mais de 40 grupos clandestinos apostando na guerri-lha para reconquistar a liberdade no Brasil.

7 de setembro e “seria preciso que as moças, que dançam com os cadetes e namoram os jovens oficiais, repetissem as paulistas da guerra dos Emboabas” – ou seja, os rejeitassem. “Eram, por-tanto, reações à provocação da invasão da UnB. Os discursos tiveram pouca repercussão na mídia, mas foram di-vulgados entre os quartéis. Os minis-tros militares disseram-se ofendidos e, no dia 13 de setembro, apresentaram uma representação contra o deputado, pedindo sua punição, algo que era impossível em função da imunidade parlamentar. A Câmara se pronunciou em 12 de dezembro, quando rejeitou o pedido de suspensão das imunidades parlamentares de Moreira Alves”, relata Fico. O AI-5 veio no dia seguinte.

Provocação sem fimO pesquisador lembra que entre os

discursos de setembro e a decretação do AI-5, em dezembro, vários episódios de provocação ocorreram. Cita a invasão da Universidade de São Paulo (USP) pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC) e o caso Parasar (Primeira Esqua-drilha Aeroterrestre de Salvamento, grupo de elite da Aeronáutica) – um macabro plano de explodir o gasômetro, no Rio de Janeiro, que malogrou pela recusa do capitão-aviador Sérgio Miranda de Carvalho de levá-lo adiante. A ação pro-vocaria a morte de milhares de pessoas e a culpa seria jogada sobre “comunistas subversivos”. Carlos Fico, porém, sublinha que o episódio pode ser entendido mais como uma expressão da “radicalização persecutória” daqueles tempos.

Fico ainda lembra outros casos de per-seguição, como o seqüestro de atores do espetáculo Roda Viva, em Porto Alegre, o espancamento da atriz Norma Benguell, em São Paulo, e a sua liberação no Rio. “Toda essa atmosfera foi usada como pretexto para a decretação do AI-5. Esses pretextos eram vistos como necessários pela linha-dura por causa do rigor do decreto, que instaurava claramente uma ditadura no Brasil. As suspensões de direitos políticos e as cassações de mandato poderiam ser práticas, doravante, sem prazo-limite, ao contrário do AI-1 e do AI-2”, obser-va o professor.

O efeito mais trágico e imediato para o Brasil após o AI-5, segundo Carlos Fico, foi a adoção sistemática da tortura como procedimento para obter confis-sões durante os interrogatórios. Como a tortura passou a ser praticada em unida-des do Exército e por militares, além de constituir-se, em si, prática gravíssima, ela também maculou para sempre a imagem das Forças Armadas, afirma o historiador. Cita o mal-estar instalado a partir do debate acerca da reinterpreta-ção da Lei da Anistia – se abrangeria ou não os torturadores – para concluir que o Brasil ainda tem dificuldade de lidar com esse passado. E ajustar contas com ele.

Após a deposição do presidente João Goulart, em 31 de março de 1964, os militares começaram a governar pelas rédeas centralizadoras dos atos institucionais. Entre 1964 e 1969, foram baixadas 17 normas desse tipo, segundo levantamento feito pelas pesquisadoras Vera Calicchio e Dora Flaksman, da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

A Junta Militar que governava o país editou, em 9 de abril de 1964, o primeiro Ato Institucional. Concedeu a si própria a prerrogativa de cassar mandatos legislativos e suspender direitos políticos. A primeira lista dos cassados pelo AI-1 tinha 102 nomes, entre eles os de João Gou-lart, Jânio Quadros, Luís Carlos Prestes, Leonel Brizola, Celso Furtado e Josué de Castro.

O AI-2 foi baixado em um contexto de vitória de governadores opo-sicionistas na Guanabara (Negrão de Lima) e em Minas Gerais (Israel Pinheiro). Anunciado em 27 de outubro de 1965, extinguiu os partidos políticos e estabeleceu a eleição indireta para a Presidência da República, além de dar poderes ao presidente para decretar o estado de sítio por 180 dias sem consulta prévia ao Congresso Nacional.

As eleições indiretas para os governos estaduais viriam em seguida, com a edição do AI-3, em 5 de fevereiro de 1966. Ele previa a escolha de governantes por votação nominal, pelos membros das assembléias legis-lativas. Os prefeitos das capitais, por sua vez, passariam a ser nomeados pelos governadores estaduais.

Em 3 de outubro do mesmo ano, o Congresso Nacional elegeu Artur da Costa e Silva para a Presidência da República, que havia sido ministro da Guerra do governo Castelo Branco e um dos signatários do AI-1.

O governo militar preparava, desde o início de 1967, uma nova Cons-tituição que incorporaria todos os atos institucionais e complementares, assim como as leis e os decretos promulgados a partir de 1964. O texto, divulgado no final daquele ano, suscitou protestos no Legislativo. Em 7 de dezembro, Costa e Silva baixa o AI-4, convocando o Congresso para promulgar a nova Carta sob regime de urgência. Daquela data até a entrada em vigor da Constituição, em 15 de março de 1967, o Executivo poderia legislar por decretos nas áreas da segurança nacional, adminis-tração e finanças.

Um ano e oito meses depois, foi gestado o mais tenebroso de todos os atos institucionais até então editados. O AI-5 deu poderes ao presidente para fechar o Congresso e outras casas legislativas, cassar mandatos parlamentares, suspender, por dez anos, os direitos políticos de qualquer cidadão e pôs fim à garantia de habeas corpus. E, ao contrário de todos os atos anteriores, não tinha prazo de vigência.

No último dia do ano de 1968, o presidente Costa e Silva falou à nação em cadeia de rádio e televisão. Afirmou que o AI-5 não fora a melhor, mas a única solução para salvar a democracia. Se não convenceu pelas palavras, pouco importava. Tinha fuzis e canhões à sua disposição para fazer-se entender.

Governando com Atos Institucionais

O discurso de Moreira AlvesCom toda essa ebulição social, os

militares passaram a planejar “provo-cações” que encurtassem o caminho para a ditadura aberta e a perseguição sem tréguas aos opositores. Para Car-los Fico, a repressão às passeatas e o assassinato do estudante Édson Luís, ocorridas entre março e julho de 1968, foram ações policiais descoordenadas e, em grande medida, mal-sucedidas. “Mas a invasão do campus da UnB, no dia 30 agosto, foi claramente uma provocação da direita”, assegura o historiador.

Fico lembra que os episódios vio-lentos ocorridos durante a ocupação da UnB atingiram filhos de parlamen-tares. Mesmo os lideres governistas do partido oficial, a Arena, protestaram. Os dois famosos discursos de Márcio Moreira Alves, segundo o historiador, foram feitos nessa atmosfera de protes-

to. Ele se tornara deputado pelo opo-sicionista Movimento Democrático Brasileiro (MDB) da Guanabara, em função da notoriedade que granjeou denunciando a tortura nas páginas do jornal Correio da Manhã, em 1964. Carlos Fico diz que Márcio Moreira Al-ves, ao ao se posicionar contra a inva-são da UnB, durante o chamado “pinga fogo”, no dia 2 de setembro, mencionou a condenação que os parlamentares da Arena fizeram do episódio e acusou o Exército de promover torturadores. Ao término, perguntou: “quando não será o Exército um valhacouto de tor-turadores?”

No dia seguinte, fez novo discurso, desta feita – afirma Carlos Fico – con-clamando um boicote dos civis contra os militares porque “todo e qualquer contato entre civis e militares deve cessar.” Pais e mães deveriam impedir estudantes de participar das paradas de

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Rodrigo Ricardo

Especial 1968

M aria Paula Nascimento Araújo, professora do Programa de Pós-

graduação em História Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, destaca que essencialmente toda a América Latina sofre a influência da vitória, em 1959, do levante comandado por Fidel Castro e Che Guevara. “Entretanto, não quiseram enxer-gar que as condições concretas e o modelo de uma ilha como Cuba eram totalmente diferentes da si-tuação do Brasil. A radicalização com a luta armada se revela politi-camente isolada, favorecendo ainda mais o endurecimento do regime e suas ações repressivas. A sociedade brasileira não apóia a proposta da guerrilha que não atinge o coração e as mentes das pessoas.”

Rachas e outras vitóriasMaria Paula explica que o PCB

detém a hegemonia política da esquerda brasileira. Quadro que começa a modificar a partir de 1962 com a criação do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). “Esse processo de dissidências segue acentuando-se

no período militar, principalmente porque há muitas críticas quanto às estratégias aliancistas e reformistas do ‘Partidão’. Dentro desse contexto proliferam inúmeras organizações como a Aliança Libertadora Na-cional (ALN), o Movimento Revo-lucionário 8 de Outubro (o MR8) e o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR)”.

Entre os exemplos de resistên-cia à invasão imperialista naquela época, a independência da Argélia conquistada ante a França, em 1962, após dez anos de lutas e aproximada-mente um milhão de mortos. Outro ícone de luta explode na Guerra do Vietnã, em particular, no episódio conhecido como a Ofensiva do Tet (o Ano Novo Lunar vietnamita). Na madrugada de 31 de dezembro de 1967, quando os Estados Unidos já pensavam em abandonar o país asiático e passar o controle ao exér-cito sul-vietnamita, os vietcongues e norte-vietnamitas atacam em massa, atingindo simultaneamente várias cidades, estações de rádio, quartéis e outros lugares-chave. A ação alcança a capital Saigon, na qual, espetacu-larmente, 19 guerrilheiros invadem

a embaixada estadunidense com o objetivo de destruí-la. Eles acabam presos e executados publicamente, expondo ao mundo a face violenta e impopular do governo apoiado pelos EUA.

“Minha primeira pichação é uma homenagem ao Tet . Uma guerrilha vencendo a maior força armada do mundo, que representa-va a possibilidade do fraco vencer o forte”, revela o jornalista Cid de Queiroz Benjamin, recordando que inúmeros processos revolucioná-rios marcam a esquerda no século XX. “Da revolução russa de 1917, passando pela China (1949) com o exemplo do cerco das cidades pelo campo até a guerrilha cubana como embrião de um exército popular que cresce e toma o poder. Sem dúvida, havia muita influência desta última experiência que acaba incorporada involuntariamente e transplantada até de forma um tanto quanto me-cânica”, admite Cid, que militou na luta armada, pelo MR8.

Após o ginásio pelo Colégio de Aplicação (CAp) da UFRJ, Cid torna-se estudante do curso de Engenharia, em 1967, da Escola

Politécnica da UFRJ. Na universidade, a situação é de ebulição e qualquer luta, não necessariamente contra a ditadura, tornava-se politizada por causa da repressão. “Embora parcela expressiva da classe média tenha apoiado o golpe, ela já estava ca-minhando para a oposição; porque percebia que os militares não iam somente ‘arrumar a casa’. Por outro lado, internamente, desenrola-se uma queda de braço com a ala mo-derada do presidente Castelo Branco (1964–1967) defendendo a volta do poder civil com uma democra-cia mais restritiva. Entretanto, ele perde essa disputa que se resolve, em dezembro de 1968, com a ins-tituição do AI-5, ficando claro que a ditadura não ia marcar data para sair”, avalia Cid.

Durante 1968, o Brasil conhece a força da mobilização e a ascensão do movimento estudantil com a re-alização de grandes manifestações, como a Passeata dos Cem Mil. Maria Paula frisa, nesta, a grande marca desse simbólico ano. “A guerrilha não é a maior expressão desse período mas, sim, as caminhadas

Diante das pressões pelo retorno à democracia, a ditadura

decreta o Ato Institucional nº 5 (AI-5) para fechar o Congresso

Nacional, censurar a imprensa e restringir liberdades indivi-

duais com a suspensão do habeas corpus. O fim do diálogo

institucional, a vitoriosa revolução cubana e o desconten-

tamento com o principal segmento político da esquerda, o

Partido Comunista Brasileiro (PCB), deflagram o surgimento

das organizações armadas. As bolas de gude para desequi-

librar a cavalaria dão lugar ao revólver e à metralhadora. Em

vez de passeatas e mobilizações, assaltos a bancos e seqües-

tros. Seguindo a lei da ação e reação, brasileiros idealistas

ingressam voluntariamente nas fileiras da guerrilha urbana.

Jefferson Nepomuceno

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nas ruas que, com alegria, reuniam as

energias de estudantes, trabalhadores e de outros setores

sociais. No fundo, ao se pegar em armas, abre-se mão da lógica por um socialismo humanista”, observa a pesquisadora.

No primeiro momento do regime militar, classificado pelo jornalista Elio Gaspari sob o título de Dita-dura envergonhada (Companhia das Letras, 2002), a repressão ocorre de forma relativamente branda. A tortura até existe, mas ainda longe da prática como uma política de Es-tado. O habeas corpus, instrumento judicial contra prisões ilegais, e que mantém a integridade física do preso, ainda vigora. Contudo, o AI-5 cerceia este direito, dando sinal verde à tortura e aos carcereiros para ficarem com as pessoas pelo tempo e condições que quisessem.

Organização e risco de mortePara Cid Benjamim, depois das

grandes passeatas, não existiam mais respostas para o desdobramento da cri-se. “Chegou uma hora em que o movi-mento estudantil bateu no teto. Com

o endurecimento do regime, fecham-se as possibilidades para o

desenvolvimento da luta de massas. Qualquer manifestação, em vez de bombas de lacrimogêneo ou balas de borracha, passa a ser reprimida com armas de fogo. Além do mais, não há praticamente movimento camponês e os operários estavam desmobilizados, com alguns ‘solu-ços’ de organização em Osasco (SP) e Contagem.”

Cid considera que, nos marcos legais, a luta pela democracia quase se inviabiliza, mesmo que ainda hou-vesse alguma brecha, encaminha-se para um natural cerco político. A escolha pela luta armada não parte do movimento estudantil, mas de uma parcela, “uma vanguarda”, que opta por esse caminho. “No contin-gente dessas organizações existem pessoas de todos os extratos sociais, inclusive operários. Elas saíram do PCB e do seu entorno, insatisfeitas com a recuada condução política apegada ao legalismo e ao pacifismo que permite que o golpe de 1964 seja dado sem o disparo de um tiro”.

A fase inicial da guerrilha ocorre com ações armadas nas cidades para a obtenção de recursos materiais. Sem as atuais portas-giratórias com detectores de metais, os bancos configuram-se alvos semanais dos guerrilheiros ou “terroristas”, assim batizados pela terminologia ditatorial. “No interior

de Minas Gerais, com alguma facili-dade, conseguia-se comprar revólve-res calibres 22 e 38. Depois, em um sítio, em Teresópolis, treinávamos tiro. Em nosso grupo, aprendemos com um ex-militar e um amigo que praticava tiro esportivo. A primeira metralhadora veio após rendermos uma sentinela do Hospital da Ae-ronáutica. Aos poucos a gente ia formando um arsenal”, descreve Cid Benjamin, pontuando que ao entrar em um processo deste tipo, arrisca-se a vida e, eventualmente, a vida de outro alguém, caso necessário. “Precisei atirar em um policial mili-tar para proteger dois companheiros no Leblon. Eles simulavam um casal e quando ela pedisse fósforo para o guarda o outro iria rendê-lo para roubar a metralhadora. Eu estava na cobertura e como a ação não saiu como previsto, tive que agir. Feliz-mente, o homem não morreu, como pude acompanhar pelos jornais”, relembra o jornalista.

Entre as ousadas ações da guer-rilha, destaca-se o seqüestro do embaixador dos EUA, Charles Burke Elbrick, no Rio de Janeiro de 1969. Participaram conjunta-mente o MR8 e a ALN, de Carlos Marighela. “Nós tínhamos o plano e decidimos convidar a ALN para estreitar laços, oferecendo inclusive o comando da operação por reco-nhecermos a experiência e a força

deles, principalmente em São Paulo. A ação operacionalmente não foi complicada, tornou-se tensa porque descobriram a casa em Santa Teresa”, relata Cid que, após participar desse evento, é preso em 21 de abril de 1970, prisão somente registrada le-galmente em 11 de maio, no quartel da Tijuca, onde funcionava o centro do Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). “Incomunicável e torturado. Minha liberdade somente acontece após outro seqüestro. De lá saí direto para o exílio”, explica o jornalista, que foi trocado, junto com outros 39 presos políticos, pelo diplomata Von Hel-leben, por exigência da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), de Carlos Lamarca.

Indagado se faria tudo de novo, Cid afirma que sim, mas de uma forma diferente: “ninguém con-seguiu resistir ao regime. A luta armada foi legítima, queria derru-bar uma ditadura. Politicamente, um erro, tanto assim que acabou derrotada. Depois de um início de sucesso, quando surpreendemos a própria repressão, eles se ajustaram e começaram a nos golpear e não conseguíamos revidar. Você perdia os dirigentes e não conseguia repor os quadros. Agora, era uma geração generosa, disposta a pensar o cole-tivo e arriscar a própria pele.”

Especial 1968

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Mãos de tesoura

Especial 1968

O protagonismo que assu-miu a censura no Brasil em 1968 afastou da cena

nacional profissionais do teatro e do cinema, músicos, poetas, escritores e artistas plásticos. Diante das per-seguições e da repressão política que mantinha a produção cultural sob estreita vigilância dos militares, uma parte dos artistas e intelectuais passou a atuar ativamente no palco das ma-nifestações da sociedade civil contra a ditadura. Além das passeatas exigindo a restituição das liberdades e o fim da censura, o segmento teatral brasileiro no Rio de Janeiro e em São Paulo organizou paralisações em protesto contra as arbitrariedades cometidas pelo regime militar.

A censura teatral e a violência con-tra os artistas reforçada por grupos de extrema direita, como o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), haviam chegado ao extremo em 1968. A força do poder autoritário se expressava, por exemplo, na proibição das peças “Um bonde chamado desejo, de Tennesse Williams, Senhora da boca do lixo, de

Jorge de Andrade, e Poder negro, de Le Roy Jones. Outro fato que causou indignação foi uma suspensão de 30 dias imposta à atriz Maria Fernanda e ao escritor e produtor Oscar Araripe, que encenavam Um bonde chamado desejo.

O contexto de adversidade mobi-lizou artistas e intelectuais nos meses que antecederam o AI-5, de 13 de dezembro de 1968. Personalidades como Cacilda Becker, Tônia Carrero, Ruth Escobar, Walmor Chagas, Pau-lo Autran, Grande Otelo e Glauber Rocha, dentre outros, reforçavam as manifestações. No Rio de Janeiro, vigílias cívicas eram realizadas nas escadarias do Theatro Municipal, onde manifestantes recolhiam assinaturas de pessoas que se solidarizavam com o movimento. Em São Paulo, a proibi-ção do espetáculo 1ª Feira Paulista de Opinião, dirigido por Augusto Boal, deflagrou uma greve de atores, músicos e artistas plásticos, como recorda o próprio Boal em entrevista ao Jornal da UFRJ: “Foram vários dias de per-seguição da polícia tentando impedir que fizéssemos partes do espetáculo em outros teatros, mas conseguimos”,

lembra o diretor, comentando que havia um clima de enfretamento com a ditadura militar naquele ano.

A reação de artistas contra a censu-ra teatral levou o governo do marechal Arthur da Costa e Silva a propor uma medida conciliatória: um grupo de tra-balho para formulação de um projeto de lei visando diminuir o rigor censório para obras cinematográficas e teatrais. A comissão teria a coordenação de seu ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, e a participação de re-presentantes de entidades de classe. As novas regras foram reunidas na Lei nº 5.536, de 21/11/1968, sugerindo uma classificação censória por faixa etária. A legislação estabelecia também, em seu artigo 15, a criação do Conselho Superior de Censura (CSC).

A implantação do CSC – indicando, segundo historiadores, uma postura mais flexível por parte do governo – tinha como principal mudança a proposta de institucionalização de uma instância de recurso. Subordinado ao Ministério da Justiça, o conselho de-veria ser composto por 16 membros, sendo oito ligados ao governo e oito à sociedade civil. A essa comissão

caberia “rever em grau de recurso as decisões finais relativas à censura de espetáculos e diversões públicas proferidas pelo diretor-geral do De-partamento de Polícia Federal (...)”, conforme expressa o artigo 17. O CSC não tinha o aval de grande parte dos artistas. Segundo Boal, toda censura é uma forma de ditadura, “por mais disfarçada que seja”.

Editada menos de um mês antes do AI-5, a Lei 5.536/68 não saiu do papel. A criação efetiva do CSC somente ocorreria mais de uma década depois, na esteira do “entulho autoritário” e da decretação da Anistia, em 1979. Para Carlos Fico, a radicalização da repres-são política ocorrida a partir da decre-tação do AI-5 inviabilizava qualquer tentativa de diálogo do governo com a sociedade civil. “Depois do AI-5, a le-gislação ficou discrepante. O conselho somente passaria a atuar muitos anos depois na liberação de peças, filmes e músicas”, afirma o pesquisador.

Para preservar seus interesses polí-ticos, o governo evocava o Decreto nº 20.943, editado em 1946 no governo de Eurico Gaspar Dutra, justificando os pareceres dos censores e determinando

Márcio Castilho

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Além da censura, o ano de 1968 marcou o auge de violentas perseguições organizadas por grupos de extrema direita contra os artistas. O principal alvo dos agressores era a peça Roda Viva, com texto de Chico Buarque e direção de José Celso Martinez Corrêa. Em São Paulo, um grupo de 20 pessoas ligado ao Co-mando de Caça aos Comunistas (CCC), uma das mais violentas facções que apoiavam a ditadura, invadiu o Teatro Ruth Escobar, onde o espetáculo estava sendo encenado, espancando o elenco e a equipe técnica, desfigurando o cenário e destruindo equi-pamentos. A invasão começou quando o público ainda deixava o teatro, provocando pânico e correria.

Em outra demonstração de resistência, os artistas fizeram um protesto na porta do teatro contra o chamado “terrorismo de direita” e exigiram a punição dos culpados. Segundo registros da imprensa, na época, apenas duas pessoas foram detidas no episódio, corroborando a versão de que o crime tinha cobertura dos órgãos de segurança. Com figurino e cenário improvisados, os atores voltaram a encenar Roda Viva no dia seguinte, tiveram a lotação esgotada. Até a proibição do espetáculo pela censura, cenas de agressão também se repetiram em outros palcos do país por pessoas que afirmavam pertencer ao CCC, atuando em defesa da “moral e dos bons costumes” contra o que chamavam de obscenidade teatral.

As mais combativas companhias de teatro de São Paulo neste período – Arena e Oficina – eram também os principais alvos da censura. Este último, fortemente influenciado pelo teatro de Bertolt Brecht, ousou para evitar um possível ataque de grupos de extrema direita. Em uma das encenações, ao fim do espetáculo, utilizou com recurso cênico uma grade de madeira ocupando todo o palco.

Outros teatros passam a sofrer atentados por bomba, em 1968. Foi o caso do Teatro Opinião, no Rio de Janeiro. O clima de “caça às bruxas”, marcado por uma série de intimidações clandestinas, levou muitos artistas a se depararem com situa-ções de humilhação e constrangimento. Na televisão, algumas emissoras também foram pressionadas por órgãos de segurança a demitir atores que mantinham uma postura crítica em relação ao governo militar.

Atores de Roda Viva são espancados

o que podia ou não ser publicado nos jornais, livros e revistas, executado nas rádios ou exibido no teatro, no cinema e na televisão. A avaliação, aprovação ou proibição das produções no campo cultural e artístico cabia ao poderoso Serviço de Censura de Diversões Públi-cas (SCDP), uma agência policial criada também após o fim do Estado Novo, de Getúlio Vargas.

Apesar do nome associado ao uni-verso das diversões públicas e da sua finalidade institucional de zelar pela “moral e pelos bons costumes”, o SCDP atuava durante o regime militar com base em prerrogativas da Lei de Segurança Nacional (LSN), enquadrando peças, filmes e letras de música como amea-ças à soberania do país e identificando seus autores como subversivos. Essa vinculação fazia da censura um ato es-sencialmente político. As manifestações artísticas ficavam assim tuteladas pelo poder do Estado, por meio da atuação do SCDP. “O próprio SCDP que fazia controle de palavrões também fica mais politizado”, observa Fico.

O impacto da censura no cinema e na literatura

Além da produção teatral, os atos censórios atingiam duramente nesse período o cinema, a música e a lite-ratura. Segundo Ronaldo Lima Lins, professor e diretor da Faculdade de Letras (FL) da UFRJ, o impacto do AI-5 foi “demolidor”. “Muitos artistas foram obrigados a sair do país. Quem permaneceu não teve mais liberdade. Houve um rompimento em 1968 com os temas que vinham sendo discutidos até então. Depois de um momento de

grande efervescência, o Brasil acabou perdendo, com o aumento da repressão, o que tinha lucrado nos anos 1960 em termos de impetuosidade e inquietação na cultura”, afirma Lins.

Ronaldo Lins ilustra como exemplos de crítica social, obras como O rei da vela, de Oswald de Andrade, no tea-tro e Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, no cinema. Na música, a proposta estética do tro-picalismo acabou tendo implicações políticas. Dias depois da decretação do AI-5, Gilberto Gil e Caetano Veloso foram presos no Rio de Ja-neiro sob a alegação de subversão da ordem institucional. Em seguida, os compositores seguiram rumo ao exílio em Londres.

Segundo Lima Lins, apesar de iniciativas pontuais que buscavam resgatar uma visão crítica no campo literário, como a revista Encontros com a Civilização Brasileira, dirigi-da por Ênio Silveira, o contexto foi marcado também por uma “pancada na psicologia da criação literária”. A perda da independência da produ-ção artística não estava associada apenas à questão da censura, mas principalmente à imposição do mercado a partir dos anos 1970. A análise dos suplementos literários nos jornais, segundo ele, é indicativa desse fenômeno. “Quando escrevia resenhas literárias no Jornal do Brasil não procurava fazer um mero resumo dos livros. Usava esse espaço para dizer o que eu pensava, mas percebia que a preocupação era transformar cada vez mais o jornalismo literário em uma fonte de lucro”, observa o professor.

Cena da peça Roda Viva

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10 Especial 1968

Em 13 de dezembro de 1968, o locutor da Agência Nacio-nal Alberto Curi, tendo ao

seu lado Luís Antônio da Gama e Silva, então ministro da Justiça, faz a leitura, em rede nacional de televisão, do Ato Institucional nº 5 (AI-5), o mais violento de todos os atos institucionais editados durante a ditadura militar no país. O gesto representou o recrudescimento da repressão política, restringiu ainda mais as liberdades individuais no Brasil e cau-sou forte impacto no campo jornalístico. Profissionais de imprensa foram presos ou intimados a depor e algumas redações invadidas por forças militares. Jornais tiveram edições inteiras apreendidas. Al-gumas publicações passaram a ser alvo de censura prévia, enquanto outras aderiram a uma prática de autocensura, optando, naquele momento, por permanecer pró-ximo às cercanias do poder.

Para Carlos Fico, professor do De-partamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), da UFRJ, o aspecto político da censura foi reforçado a partir da vigência do AI-5. “Já havia censura no Brasil desde 1946, porém uma censura sistemática e mais estritamente política ocorre a partir do AI-5. A censura passa a ser interpretada como medida revolucionária”, observa o historiador.

As ações violentas atingiram as reda-ções do Correio da Manhã, do Jornal do Brasil e de veículos da imprensa alterna-tiva. Antes mesmo da edição do AI-5, o Correio da Manhã sofrera uma série de atos de arbitrariedade, como descreve a proprietária do jornal, Niomar Muniz Sodré Bittencourt, no editorial “Retirada”, em 11/9/1969: “Para inventariar os fatos mais recentes e significativos recordarei apenas que no dia 7 de dezembro de 1968 uma bomba de alto teor explosivo foi atirada contra a nossa agência da avenida Rio Branco, recém-reformada. A 13 do mesmo mês, tivemos a redação invadida por policiais, de metralhadoras e revólveres, para prenderem, não a mim, mas ao nosso diretor-superintendente e redator Osvaldo Peralva, e que somente foi posto em liberdade no dia 28”, recor-dou Niomar, presa durante 23 dias em regime de incomunicabilidade por se recusar a obedecer ordens dos censores e promover “expurgos” em seu jornal.

O mesmo ocorreu com o diário A Tribuna da Imprensa, sediado no Rio de Janeiro e com forte orientação naciona-lista. O diretor do jornal Hélio Fernandes foi aprisionado em Fernando de Noronha após publicar artigo acerca da morte do presidente Arthur da Costa e Silva, acu-sando-o de ser “homem frio, insensível, vingativo, implacável e desumano”.

Além das prisões, dos atentados con-tra redações e das apreensões de jornais, o controle do Estado sobre os meios de comunicação exercia-se através de instrumentos coercitivos como a cen-

Márcio Castilho sura prévia. Esse mecanismo obrigava os veículos informativos a submeter todas as matérias aos agentes da Polícia Federal antes de sua publicação. Alguns censores chegavam a fazer plantões diários nas redações. O próprio jornal dirigido por Hélio Fernandes foi alvo da censura prévia durante 10 anos a partir de 1968. Mas o processo de esvaziamento do debate po-lítico na imprensa também foi reforçado pela prática da autocensura, um tipo de acordo não revelado entre os militares e alguns proprietários de jornais, visando afastar das páginas diárias eventuais crí-ticas e denúncias contra o governo.

A autocensura consistia na aceitação de comunicados escritos dos órgãos de se-gurança ou recados enviados por telefone acerca dos assuntos que não deveriam ser publicados. As ordens impressas, conheci-das como “bilhetinhos”, geralmente eram anônimas, de autenticidade duvidosa, e começavam com a inscrição “De ordem superior, fica proibido...”.

Marco Antônio Roxo da Silva, recém pós-doutor pela Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, pesquisador de Histó-ria da Imprensa, aponta que a questão da autocensura perpassa a história do jornalismo brasileiro, não sendo um traço característico da relação entre Im-prensa e Estado apenas em períodos de exceção e arbítrio. Isso porque, segundo o ele, os jornais se estruturam em uma lógica de mercado. “A autocensura é um termo controverso. Os jornais são grandes empreendimentos jornalísticos que têm um caráter organizacional voltado para o lucro. Portanto, é pre-ciso pensar a autocensura como algo inerente ao trabalho no interior dessas organizações. Isso transcende a questão do AI-5. O caráter de conivência com o regime militar era reforçado pela necessidade de sobrevivência desses jornais, tudo isso acoplado a uma certa lógica política, de intercâmbio e de in-terlocução para sobreviver no interior dessa atmosfera”, analisa Marco Roxo, que atualmente realiza, na ECO, pes-quisa acerca da memória do jornalismo brasileiro.

O jornal Folha da Tarde, de São Paulo, era um caso extremo de cola-boracionismo. A partir de meados de 1969, o diário tinha em seus quadros, jornalistas que atuavam como poli-ciais, apoiando as ações dos órgãos de repressão. Grupos de esquerda chega-ram a destruir carros de reportagem da empresa, acusando a empresa de cedê-los aos agentes do Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), como demonstra a historiadora Beatriz Kushnir em seu livro Cães de guarda – jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988 (Boitempo Edi-torial, 2004). A Folha da Tarde era defi-nida como o jornal de “maior tiragem”, um duplo sentido diante do grande número de policiais e informantes em sua redação.

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E também as memórias gloriosas

Daqueles Reis, que foram dilatando

A Fé, o Império, e as terras viciosas

De África e de Ásia andaram devastando;

E aqueles, que por obras valerosas

Se vão da lei da morte libertando;

Cantando espalharei por toda parte,

Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Cessem do sábio Grego e do Troiano

As navegações grandes que fizeram;

Cale-se de Alexandro e de Trajano

A fama das vitórias que tiveram;

Que eu canto o peito ilustre Lusitano,

A quem Neptuno e Marte obedeceram:

Cesse tudo o que a Musa

antígua canta,

Que outro valor mais alto se alevanta.

E vós, Tágides minhas, pois criado

Tendes em m

im um

novo engenho ardente,

Se sempre em

verso humilde celebrado

Foi de mim

vosso rio alegremente,

Dai-m

e agora um som

alto e sublimado,

Um

estilo grandíloquo e corrente,

Porque de vossas águas, Febo ordene Q

ue não tenham inveja às de H

ipoerene.

dos poemas de Camões à experiência alternativa

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E vós, ó bem nascida segurança

Da Lusitana antígua liberdade,

E não menos certíssima esperança

De aumento da pequena Cristandade;

Vós, ó novo temor da Maura lança,

Maravilha fatal da nossa idade,

Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,

Para do mundo a Deus dar parte grande;

Canto Primeiro - Os Lusíadas

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11Especial 1968

Poemas de Camões ereceitas de bolo

Se nem todos os jornalistas e proprie-tários mantiveram uma postura crítica em relação ao governo militar, nem todos seguiram a cartilha que buscava construir uma imagem mítica do regime, ideali-zando uma sociedade livre de conflitos. Os pesquisadores ouvidos pelo Jornal da UFRJ ressaltam que houve uma pluralida-de de papéis exercidos por jornalistas na relação com o Estado autoritário nas dé-cadas de 1960 e 1970, com aproximações e distanciamentos. Para Carlos Fico, o pós-1968 representou o auge da repressão ao mesmo tempo em que foi momento histórico, também, marcado por uma época de desenvolvimento no país, com o chamado “milagre econômico”. Segundo ele, essas dualidades demonstram que a história da ditadura militar vai além de reducionismos que procuram estabelecer o lugar da vítima e do opressor.

Marco Roxo compartilha essa visão, criticando as dicotomias estabelecidas em algumas pesquisas acerca do tema. “A imprensa não foi o herói da resistên-cia, mas não podemos anular o seu papel combativo, dando espaço às vozes da oposição. O jornalismo brasileiro é mui-to heterogêneo em torno do seu ideário funcional e ideológico. Não há mais como pensar a imprensa nessas dicotomias”, afirma o pesquisador.

Alguns jornais utilizaram estratégias das mais variadas para driblar a censura. São emblemáticas nesse sentido as edições de O Estado de S. Paulo e do Jornal da Tarde, que publicavam poemas de Luiz de Camões e receitas culinárias em substi-tuição ao material vetado pelos órgãos de segurança. O Jornal do Brasil, por sua vez, publicou, no dia seguinte ao AI-5, uma edição com várias metáforas alusivas aos tempos sombrios em que entrava o país. Na primeira página, anunciou “Ontem foi o dia dos cegos” e um quadro com a pre-visão do tempo, denunciando metaforica-mente as turbulências políticas. O informe meteorológico destacava: “Nuvens negras ameaçam o país. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos. Máxima: 38º em Brasília. Mínima: 3º nas Laranjeiras”.

Roxo acrescenta que, apesar do re-crudescimento da repressão e da forte censura aos conteúdos informativos com a decretação do AI-5, uma parte dos jornalistas buscou outros canais e novas linguagens como espaço de resistência intelectual. Esse foi o caso da imprensa alternativa. “Muitos produtos jornalísticos são criados tendo como viés um caráter anti-autoritário modulado por um ideário marxista, mas também contaminado por questões existenciais e comportamentais, fazendo uma crítica de costumes aos va-lores burgueses. Um jornal icônico nesse sentido foi o Pasquim. Tanto a imprensa alternativa como a Revista Realidade são empreendimentos jornalísticos mo-dulados por esse imaginário”, afirma o especialista.

Os anos pós-1968 registram a ascen-são dessas publicações – muitas, efêmeras quanto ao tempo em que efetivamente circularam, outras sem grande visibilida-de, mas todas apresentando uma postura bem mais crítica ao governo em compa-ração aos jornais da grande imprensa. Segundo Bernardo Kucinski, em seu livro Jornalistas e revolucionários nos tempos da imprensa alternativa (Edusp, 1991), surgi-ram cerca de 160 periódicos alternativos na década de 1970, com destaque para o Pasquim, Opinião e Movimento. Outros alcançaram repercussão razoável, como O Bondinho, Em Tempo e Coojornal. O estilo bem-humorado da narrativa e as charges políticas coexistiam muitas vezes com denúncias de torturas, prisões e críticas sistemáticas ao modelo econômico.

O Pasquim foi um dos mais populares, chegando a alcançar uma tiragem de 225 mil exemplares. Reunindo, em épocas diferentes, importantes profissionais de imprensa – dentre eles Millôr, Jaguar, Ivan Lessa, Ziraldo e Henfil – a publicação criada em 1969 costumava ridicularizar slogans conhecidos do governo do ge-neral Emílio Garrastazu Médici, como “Brasil, ame-o ou deixe-o” e “Ninguém segura este país”. Esses veículos conta-vam em seus quadros com intelectuais e ex-militantes da luta armada. Muitos jornalistas de veículos formadores de opi-nião também migraram para a imprensa alternativa. Compositores como Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, cujas músicas eram freqüentemente cen-suradas, colaboravam com o Pasquim.

Identidade jornalísticaDiante de um processo gradual de

esvaziamento do debate político na grande imprensa, decorrente da censura, constrangimentos e perseguições, os modos de atuação dos jornalistas passaram por profundas transforma-ções a partir do AI-5. O contexto de repressão política era incompatível com o conjunto de representações que consolidavam certa identidade do repórter como fiscalizador dos poderes públicos em defesa do in-teresse coletivo, imagem que vinha sendo construída desde o início do século XX.

De acordo com Marco Roxo, a idéia do jornalista como “porta-voz” da socie-dade deve ser relativizada, pois havia uma “certa partidarização da vida política” que se refletia nos jornais, sobretudo a partir dos anos 1950. Ele percebe que, apesar das tentativas de controle do Estado sobre os conteúdos informativos, outro tipo de identidade profissional permaneceu com forte no imaginário jornalístico: a idéia do profissional de imprensa como intelectual. “A imagem do jornalista como ‘fiscal’ ou ‘cão de guarda’ é difícil de visualizar, mas a do jornalista como intelectual, tentando exercer uma parcela de sua influência na defesa de um conjunto de idéias e de uma determinada visão do mundo, tem muita presença”, concluiu o pesquisador.

“Uma nação inteiramente aturdida recebeu ontem à noite a comuni-cação de que deixaram de vigir todos os direitos individuais, substi-tuidos pelo império do arbítrio. De agora em diante, subverte-se um princípio jurídico universal, que é a presunção de que todos são ino-centes até prova em contrário.

Desde ontem, no reinado das trevas, a presunção é outra: somos todos previamente culpados e nos cabe como castigo provar inocên-cia, porque entrou em vigor, antes mesmo da publicação, um nôvo Ato institucional, com margem ilimitada de arbítrio político. Sole-nemente precedido de uma dissertação oral do Ministro da Justiça, o instrumento discricionário é uma contundente agressão às franquias democráticas e aos direitos individuais, que a própria Constituição autoritária, feita na medida das necessidades de defesa e preservação da idéia revolucionária de 64, havia consagrado.

O Ato Institucional declara em vão que é mantida a Constituição por êle derrogada em tudo que representava possibilidade de restau-ração democrática. É igualmente inócua, meramente decorativa, a ressalva do preâmbulo que o Governo editava o documento de arbí-trio, além do aspecto interno mal explicado, para preservar o nome internacional do Brasil. É o efeito oposto que conseguirá atingir, pois o mundo tomará ciência de que o Brasil passa a equiparar-se, em ma-téria de violência antidemocrática, ao refinamento soviético e à bru-talidade fascista.

Com êle, entrou em recesso o Congresso, suspendeu-se a vigência da Constituição, os direitos individuais e as liberdades democráticas são varridas da superfície, como lixo. O mundo entenderá o que se passou ontem no Brasil como uma aberração, pois já havia tomado nota de que se cumprira uma etapa de arbítrio, da qual restara uma Constituição. A Revolução de 64 estava consolidada numa Constitui-ção. Editar um ato de arbítrio é retroagir às trevas jurídicas.

Na noite de 13 de dezembro de 1968 os censores, que já ocupavam a redação do Jornal do Brasil, interferem em toda a edição que chegaria as bancas no dia seguinte com as notícias do AI-5. Como artifício, os textos censurados da seção de editorais (reprodução acima) são substituídos por fotos, uma das quais fala metaforicamente da luta entre o fraco e o forte. Abaixo o texto que deveria estar no lugar da foto.

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Dezembro 2008UFRJJornal da

12 Especial 1968

Fernando Augusto Valente da Fonseca? Presente! José Roberto Spiegner? Presente! Lincoln Bicalho Roque? Pre s e nte ! Lu i z Alberto Benevides? Presente! Mário Prata? Presente! Sônia Moraes? Presente! Stuart Angel Jones? Presente! Paulo Bastos? Presente!” Nas assembléias estudantis, estes – ex-alunos da UFRJ - e outros companheiros que “caíram nas malhas da repressão”, são lembrados numa tradicional chamada. O gesto, além de provocar o moral dos que permaneciam na luta, representava uma reverência aos que deram a própria vida em prol de um ideal. No Brasil, o cuidado com a memória nacional ainda engatinha, ainda mais diante de fatos históricos tão recentes como a ditadura militar (1964–1985). Nas praças públicas prevalece a história dos vencedores, com os homenageados em bustos de bronze ou sobre cavalos. Na direção contrária às estátuas do poder, o campus da Cidade Universitária da UFRJ imagina saudar o presente com o memorial aos estudantes mortos e desaparecidos no estado do Rio de Janeiro pelo regime de exceção brasileiro.

O primeiro passo para o memorial se dará com a realização de um concurso nacional, aberto a artistas, arquitetos e outros profissionais, a ser julgado por um júri de alto nível. A iniciativa surgiu, e está em curso, no âmbito do projeto “40 anos de 68: relembrar, celebrar, entender”. A previsão é que o edital seja lançado no dia 10 de dezembro, data que marca os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

De acordo com Carlos Vainer, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano Regional (Ippur) da UFRJ, um dos coordenadores do projeto, entre as idéias do “40 anos de 68” encontra-se o memorial. “O nosso objetivo é manter viva a experiência e o significado deste momento para que

Concurso escolherá projeto de memorial

aos estudantes mortos e desaparecidos durante o

regime militar.

esse passado não seja apagado. A UFRJ, então Universidade do Brasil, foi palco e sujeito de processos políticos relevan-tes que resultaram na transformação de muitos estudantes em vítimas da perseguição ditatorial, sendo expul-sos e até mesmo mortos. Trazer esta memória histórica para nosso presente é, também, relembrar e celebrar nossos companheiros, vítimas desta violência”, explica o professor, ressaltando que o memorial não se trata necessariamente de um monumento, mas de um registro que busque atualizar uma experiência histórica e a inscreva no cotidiano e no espaço da paisagem universitária.

Carlos Vainer ainda esclarece o porquê da opção por um concurso: “memorial é, antes de tudo, algo que lembre. Decidimos pelo concurso porque somos uma universidade públi-ca. Vamos ver as propostas. A escolha de determinado artista poderia significar a opção de um estilo, uma tradição, o que foge das nossas intenções”.

O professor tenta demonstrar o que vislumbra do memorial: “não im-agino algo do tipo ‘estudante-eqüestre’, como fazem as classes conservadoras para recordar seus heróis, sempre

em poses, como expressão de poder. Aqui não queremos isso. Queremos criar uma homenagem. O que tenho em mente assemelha-se ao memorial que vi no bairro de Soweto, na cidade de Johanesburgo, na África do Sul. No lugar, não há monumento algum, porém, emociona”. Vainer refere-se aos estudantes do equivalente ao Ensino Fundamental que saíram às ruas, em 16 de junho de 1976, para protestar contra o ensino do Africânder, a língua dos colonizadores brancos naquele país. A insurgência é considerada pelos sul-africanos como largada para o fim do Apartheid, que termina oficialmente em 1994. A revolta de Soweto acaba duramente reprimida, a polícia abriu fogo contra os manifestantes. Entre as primeiras vítimas, um menino de 12 anos: Hector Peterson.

Mais do que o nome ao memorial, a imagem de Peterson, carregado por outro colega durante o massacre, acen-deria a chama da indignação pelo país e percorreria o mundo como denúncia à política de segregação racial.

Cecília Coimbra, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, consid-era a idéia do memorial como um

fato inédito nas ações para relembrar episódios da vida brasileira. ”Que bonito! É um pedaço de reparação que servirá para contar o que aconteceu à juventude de hoje. O país ainda está muito atrasado, com relação às nações que viveram ditaduras recentes, nestes aspectos de recuperação histórica. Bem diferente era no passado quando, após as lições dos EUA, o Brasil exporta o seu know-how de tortura, inclusive o ‘pau-de-arara’ para outros países, na condição de primeira ditadura instalada na América Latina”.

Ainda que apesar de predominar a perspectiva dos vencedores, há uma permanente disputa pela narrativa dos acontecimentos históricos. Para Carlos Vainer, “quem a domina, acaba por dominar o povo. A memória é uma arena de luta constante, sendo atualizada no presente. Nicolas Sarkozy afirmou, dois dias antes do pleito presidencial, que aquela eleição mostraria se a França queria enterrar ou não a herança de 1968. Por que eles querem apagar este ano? Por ser um período especial, com a experiência da resistência, da luta e da crença na possibilidade de transformar o mundo”.

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Maria Yedda Linhares

Maria Yedda Linhares ajeita-se na cadeira prefe-rida da sala de estar de seu apartamento, em Copa-cabana – bairro que a acolheu desde que pisou no Rio de janeiro, em 1932. Em seguida, põe-se a desen-rolar o novelo da própria história com a paciência de “cearense renitente” e com a mesma paixão que devota ao Botafogo, escancarada na porta de entra-da por um descomunal escudo do clube.

A vocação para o estudo e a pesquisa em História confirmou-se na adolescência: aos 15 anos, venceu Darcy Ribeiro na disputa final de uma Maratona Intelectual Nacional – na categoria História Geral – promovida pelo Ministério da Educa-ção. Desde então, teve uma tão brilhante como atribulada trajetória profissional.

Foi professora catedrática da Fa-culdade Nacional de Filosofia (FNFi) e escreveu inúmeros livros e artigos. A ditadura militar, no entanto, apo-sentou-a compulsoriamente pelo Ato Institucional nº 5 (o AI-5), em de-zembro de 1968, quando já era professora titular de História Moderna e Contemporânea da UFRJ. No ano se-guinte, depois de sair da prisão, com a incansável ajuda do historiador Fer-dinand Braudel, exilou-se na França e passou a dar aulas na Universidade de Vincenne.

Na volta ao Brasil, em 1974, continuou sendo per-seguida pelo regime autoritário. Somente em 1980, depois de anistiada, conseguiu ser reintegrada à UFRJ. Nos anos seguintes, além de lecionar, também exerceu os cargos de secretária Municipal e Estadual de Educação.

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“O Brasil ficou

Coryntho Baldez

Jornal da UFRJ: Vamos começar con-versando acerca de sua infância. Fale de alguma lembrança dessa época?

Maria Yedda Linhares: Nasci no Ceará, em Fortaleza, em 1921. Saí de lá quando tinha 11 anos, mas continuo cearense até hoje. Sou uma renitente cearense. A minha infância foi uma maravilha. For-taleza era uma cidade pequena, agradá-vel. E a infância é um ponto de referência importante na vida de qualquer um. Tive uma infância alegre e divertida. Saí de Fortaleza com papai, mamãe, meu irmão e bagagens num Ita do Norte. E fomos para o Rio Grande do Sul. Levamos 18 dias para chegar a Porto Alegre.

Jornal da UFRJ: Por que seus pais deci-diram deixar Fortaleza?

Maria Yedda Linhares: Papai era comerciante, corretor de algodão. Ele vendia para exportação. Toda a vida dele estava ligada a isso. Vendia uma variedade de algodão típica do Seridó, que era a melhor. A crise de 1929 atrapa-lhou bastante esse comércio exportador, sobretudo de uma matéria-prima como o algodão. Por uma questão comercial, papai decidiu sair do Ceará e ir para o Rio Grande do Sul, logo depois da cha-mada Revolução de 1932.

Jornal da UFRJ: E seus estudos, onde foram feitos?

Maria Yedda Linhares: Fiquei apenas oito meses no Rio Grande do Sul e vim para o Rio de Janeiro. Aqui fiz meus estudos em colégio de freiras. Embora minha mãe fosse católica muito devota, não gostava das freiras e padres como

H o j e , a p r o f e s s o r a emérita da UFRJ defende uma nova revolução na concepção de História – similar à empreendida, em sua época, por Caio Prado Júnior, que “inaugurou um modelo mal copiado por muita gente”.

Maria Yedda lamenta, nesta entrevista ao Jornal da UFRJ , que o Brasil tenha “f icado miúdo”, mas não dá qualquer sinal de conformismo. Propõe mudanças na formação de alunos, de docentes e n o s p r o g r a m a s d e História. “São as críticas que fazem avançar o conhecimento”, arremata a professora.

educadores. Achava que cabia ao Estado educar. Ela dizia que as freiras podiam ser ótimas educadoras, mas de crianças ricas. Ela não queria que a filha fosse educada como uma menina rica, mas que fosse instruída para trabalhar e sobreviver por meio da sua profissão. A minha família não tinha recursos para me sustentar.

Jornal da UFRJ: Pelo jeito, sua mãe tinha uma consciência social acentuada?

Maria Yedda Linhares: Mamãe era uma mulher muito ativa, inteligente, lia

muito, embora nunca tenha freqüen-tado escola na vida. Lia francês muito bem, conhecia literatura francesa de cabo a rabo. Era uma autodidata.

Jornal da UFRJ: Aqui no Rio, como foi sua experiência inicial?

Maria Yedda Linhares: Foi uma di-ficuldade porque ficamos muito sozi-nhos, não conhecíamos ninguém. A fa-mília Estelita, de cearenses, era a única que conhecíamos aqui. As meninas da família eram minhas amigas e estavam matriculadas em um colégio de freiras.

Cismei de ir para lá também. Mamãe brigou muito, mas acabou cedendo porque eu disse que somente estudaria se fosse lá. Tudo isso por causa desse grupo de amigas. Fiz os cinco anos do secundário naquela escola de freiras, em Ipanema, o Colégio São Paulo.

Jornal da UFRJ: E em que momento “deu aquele estalo” e a senhora soube que queria fazer História?

Maria Yedda Linhares: Eu sempre gostei de História e tinha muitos livros em casa. Foi uma tendência natural.

miúdo”

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memorial

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No colégio, tive uma excelente profes-sora de História, a Ruth de Almeida Prado, que me incentivou muito. Hou-ve também outro fato que me entusias-mou. Quando estava no secundário, participei de uma maratona intelectual de História, promovida pelo Ministério da Educação em nível nacional. Isso foi em 1936. Resolvi me inscrever pelo Rio de Janeiro. Curioso é que o Darcy Ri-beiro também participou da maratona e venceu a etapa de Minas Gerais. Eu venci no Rio de Janeiro e fomos para a final. Diziam-me que quem tinha vencido em Minas também era muito bom. Mas acabei ganhando as provas finais, que incluíam um debate. De-pois, o Darcy Ribeiro virou um grande amigo e brincava muito comigo. Dizia que fui a única mulher a derrotá-lo em toda a vida.

Jornal da UFRJ: E depois, como foi o período na faculdade?

Maria Yedda Linhares: Em 1939, entrei para a Faculdade de Filosofia da Universidade do Distrito Federal (UDF), aqui no Rio de Janeiro. Foi uma instituição criada pelo doutor Anísio Teixeira, de quem já tinha ouvido falar muito. Foi uma universidade pioneira, ela formava professores. Era uma ins-tituição fantástica, moderna. O Anísio Teixeira era um gênio. Foi o mais genial de todos os brasileiros que conheci. Ele teve a sorte de ser aceito no Ministério da Educação e ficar encarregado do sistema educacional.

Jornal da UFRJ: Mas logo depois de entrar para a faculdade, a senhora foi estudar nos Estados Unidos. Por quê?

Maria Yedda Linhares: Recebi uma oferta de bolsa e fui para os Estados Unidos estudar. Fiquei por lá durante dois anos e dei aulas de Língua Portu-guesa na Universidade de Columbia, em Nova York. Quando voltei, fui terminar meu curso na Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) da Uni-versidade do Brasil (UB), tornando-me bacharel e licenciada em História e Ge-ografia. Depois disso, fui assistente de ensino na cadeira de História Moderna e Contemporânea, do professor Carlos Delgado de Carvalho, na FNFi, de 1946 a 1955. Em 1957, me tornei professora catedrática de História Moderna e Contemporânea da instituição.

Jornal da UFRJ: A partir do golpe mi-litar, em 1964, a senhora passou a ser perseguida?

Maria Yedda Linhares: Em virtude do regime militar instaurado em 1964, fui perseguida, sofri ameaças de prisões e fui licenciada da faculdade para aten-der a um convite do governo inglês, em 1964, regressando no segundo se-mestre de 1965 para reassumir minhas

funções. Em dezembro de 1968, fui aposentada compulsoriamente pelo AI-5, sem salário. Somente a partir de meados de 1969 me foi conferida uma pequena remuneração pro forma.

Jornal da UFRJ: E nesse período a senho-ra foi processada inúmeras vezes?

Maria Yedda Linhares: Entre 1965 e 1969 respondi a nove inquéritos, inclu-sive da polícia do Carlos Lacerda, e fui presa várias vezes, sempre por militares. Respondi a última investigação militar diretamente sob o comando do coronel Ernani Airosa, no quartel na entrada da Quinta da Boa Vista. Foi um depoi-mento extremamente longo e o único verdadeiramente civilizado. É evidente que em todas essas investigações a que fui submetida ficou patenteado que, desde 1964, se tratava de uma vingança pessoal de Eremildo Luis Viana, colega na Universidade do Brasil, altamente beneficiado pelos amigos da Marinha e do Exército. Esse fato foi comprovado pela ampla investigação feita, já na Uni-versidade Federal do Rio de Janeiro, pelo general Acyr da Rocha Nóbrega. Foi um período extremamente difícil de vida, para mim e para meu marido, filhos e meus pais, face às infâmias levantadas contra mim, movidas por inveja profis-sional. É profundamente lamentável que interesses mesquinhos fossem acoberta-dos por instituições do Estado brasileiro. Foi-me negado o exercício de minha profissão no meu próprio país, por mim conquistada em concursos públicos de título, provas e teses em bancas oficiais. Negavam-me a subsistência e o direito de trabalhar.

Jornal da UFRJ: Depois do AI-5, a se-nhora foi presa. O que aconteceu então?

Maria Yedda Linhares: Houve pressões do exterior para que me libertassem e comecei a receber convites de amigos dos Estados Unidos e da França para lecionar nesses países. Cheguei a me interessar em ir para os Estados Unidos. Lá eu tinha amigos e que haviam feito parte do meu curso. Mas as universi-dades francesas foram muito solidárias com a minha situação. No auge da repressão, elas se reuniram, elaboraram um documento de protesto pela minha prisão e enviaram para o Ministério da Educação.

Jornal da UFRJ: O historiador francês Ferdinand Braudel teve papel decisivo para que a ditadura libertasse a senhora. Conte essa história.

Maria Yedda Linhares: No momento mais difícil, no Brasil, de prisões, cassa-ções, o diabo a quatro, o Braudel ficava no telefone ligando para o embaixador francês. E dizia: “Não é possível! Ma-dame Linhares está presa novamente. Vou conversar com o ministro”. E o

embaixador dizia que não podia fazer mais nada. O Braudel passou a ligar para o ministro das Relações Exteriores da França pedindo uma intervenção para que me libertassem. O ministro francês ficou louco com o Braudel, que telefonava todo santo dia de manhã para ele. Ele alegava que eu trabalharia com ele na universidade, que não poderia começar o ano letivo sem mim, que eu era competente, séria e insubstituível. E eu nem sabia disso. Então, em nome do governo francês, o ministro passou a pressionar o governo brasileiro.

Jornal da UFRJ: E ele conseguiu o que queria?

Maria Yedda Linhares: O Braudel in-fernizou tanto que conseguiu. E claro que acabei indo para a França. Somente tomei conhecimento do que estava acontecendo porque o último oficial do Exército que tomou meu depoimento era sério, havia sido herói na 2ª Guerra. Ele estava indignado, dizia que aquilo não era função dele. Ele me contou o que se passava e disse que iriam me soltar. Foi então que, em 1969, fui lecionar na Uni-versidade de Vincenne, em Paris, como professora titular, o que possibilitou a minha sobrevivência, já que a aposen-tadoria no Brasil era irrisória.

Jornal da UFRJ: E como foi a sua volta ao Brasil?

Maria Yedda Linhares: Em 1974, retornei por vontade própria e deci-dida a não viver mais longe dos netos. Novamente a luta pela sobrevivência

foi difícil. Encontrei obstáculos in-transponíveis no setor privado. Até como tradutora não me autorizavam a assinar as traduções que eu fazia. Finalmente, fui acolhida por um setor da Fundação Getúlio Vargas, onde eu e um pequeno grupo de jovens professores e economistas montamos um curso pioneiro de mestrado em Planejamento Agrícola, no final dos anos 1970.

Jornal da UFRJ: A senhora foi anistia-da em que ano?

Maria Yedda Linhares: Somente em 1980 fui reintegrada à UFRJ pela Anistia, travei uma verdadeira batalha para obter o regime de tempo integral e dedicação exclusiva, o que somente ocorreu perto de me aposentar, em 1991.

Jornal da UFRJ: Falando um pouco de sua área de atuação acadêmica, por que hoje em dia não se fazem mais ensaios históricos de vulto acerca do Brasil, como faziam Caio Prado Junior e outros?

Maria Yedda Linhares: O Brasil está miúdo. As cabeças diminuíram de es-trutura cerebral. É uma perda porque quem está no comando, muda de acordo com sua vontade. O Caio Prado, por exemplo, foi possivel-mente um dos historiadores mais importantes que já tivemos. E ele criou certo estilo, um modelo para a expli-cação do Brasil. Mesmo este modelo foi se esgotando. Acho que a visão do

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historiador brasileiro está paralisada no tempo e no espaço. Precisamos re-tomar, no plano nacional, um trabalho sério de pesquisa sobre o Brasil, nos arqui-vos locais, em cada aldeia, nos cartórios, em toda a parte do país. Temos que dar um salto, sair da História exclusivamente política para uma História social e cultu-ral. Para isso, é necessário termos alunos e professores com formação adequada. Agora, um dos problemas é que o Brasil é muito grande, as escolas estão cheias de alunos. E mudar o ritmo de trabalho é coisa muito difícil em qualquer lugar do mundo. Mudar a orientação de uma disci-plina, de uma ciência, significa, na prática, criar outra. É uma tarefa difícil e perigosa para quem vai assumir a responsabilidade de apresentar a contrapartida a uma visão de História do Brasil inaugurada por Caio Prado Junior, que foi revolucionária no seu tempo. Isso deve ser feito com muito cuidado.

Jornal da UFRJ: Por quê?

Maria Yedda Linhares: Não se pode, de repente, começar a atacar Caio Prado Ju-nior sem apresentar dados, documentos, aspectos diferentes e, com isso, tentar re-construir a idéia de uma História do Bra-sil. Essa tarefa é difícil porque temos ainda o modelo Caio Prado, que foi excelente, revolucionário e permitiu que se desse um salto enorme no conhecimento do Brasil. Parece que chegou a hora de mudar, sem fazer disso uma guerra entre colegas e sem ataques a Caio Prado Junior. Até porque ele foi notável. E se fosse vivo, entraria neste debate com um ótimo “papo”.

Jornal da UFRJ: Ao longo dos anos, como foi a evolução da concepção de História do Brasil?

Maria Yedda Linhares: A história deu saltos. Aqui no Brasil, ela avançou. Muito diferente daquela História do Hélio Viana, de mero relato de fatos, do tipo “o Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral, no dia 22 de abril de 1500!” Isso é dado como verdade e ninguém discute. Essa é a História daqueles livros didáticos muito limitados e nada confiáveis. O Caio Prado Junior mudou esse enfoque.

Jornal da UFRJ: E que visão de Histó-ria passou a perdurar então?

Maria Yedda Linhares: O que tem perdurado durante um bom tempo é a idéia de que a História é um grande ensaio, não precisa de fontes, de infor-mações originais, que deve ser escrita com a cabeça do historiador a partir dos fatos que ele levantar. Foi um erro. E como havia um grande e maravilho-so modelo de História do Brasil criado pelo Caio Prado Junior, um modelo construído como uma grande síntese, este modelo passou a ser predominante. E muitas pessoas que não tinham nem um centímetro da cabeça do Caio Prado

passaram a copiá-lo. Isso contribuiu para empobrecer nossa compreensão do Brasil. Para fazer um livro de síntese é preciso conhecer muito, ter muita cultura, não é para qualquer pessoa. O Caio Prado pôde fazer e o fez magistralmente. E, no entanto, podemos hoje fazer críticas a essa concepção. O conhecimento avança nas críticas. Elas são empurrões para aprimo-rar o próprio conhecimento.

Jornal da UFRJ: E qual a grande conclu-são que saiu daí?

Maria Yedda Linhares: A conclusão de que a História do Brasil não estava pesqui-sada. Não se pode fazer história-romance, de A Bela Adormecida do bosque ou his-tória da Carochinha. Então, chegou-se à conclusão que é preciso ir às fontes, que é preciso fazer História academicamente. O Brasil tem que reformular as idéias nessa matéria. Os brasileiros vivem na França, mas então porque não fazem a história que os franceses fazem? Somente fazem ler o que eles escrevem? Não precisa copiar, mas se inspirar neles.

Jornal da UFRJ: E o que precisa mudar hoje?

Maria Yedda Linhares: Perdemos e ganhamos muitas coisas ao longo dos anos. Hoje temos a certeza de que pre-cisamos mudar a concepção de Histó-ria, o sistema de formação de professo-res, os programas. Por que o programa de História no Rio de Janeiro vai ser igual ao do Acre ou ao da Bahia? Não pode! Acho que o conteúdo de uma disciplina deve ser discutido constan-temente pelos professores responsáveis pelas disciplinas. Para isso é preciso que haja um amplo movimento, em várias escalas. É necessária uma discus-são séria, objetiva, sem “politiquices”. Precisamos mostrar que História se faz com fontes, com fatos, com memória. É preciso uma mexida revolucionária

no nível dos programas. Precisaríamos fazer múltiplas reuniões. Não é fazer uma grande cúpula de historiadores, mas reunir professores localmente, por regiões. No fim de alguns anos, quem sabe não teremos conquistado algum avanço?

Jornal da UFRJ: A senhora encontrou dificuldades para adotar suas idéias quando exerceu os cargos de secretária municipal e estadual de Educação?

Maria Yedda Linhares: Não encon-trei nenhuma dificuldade. Muito ao contrário. Os companheiros e fun-cionários com os quais eu trabalhava estavam todos dispostos a caminhar juntos comigo.

Jornal da UFRJ: E a concepção de edu-cação integral, a senhora sempre apoiou?

Maria Yedda Linhares: Sem dúvida alguma, isso tem que ser discutido com seriedade. Um horário mais rigoroso é indispensável nas escolas. Para isso, é pre-ciso oferecer pelo menos uma refeição. E o país é grande. Aí está uma dificuldade. O Estado pode arcar com a responsabilidade de dar uma refeição a todos os alunos, sem exceção, da escola pública brasi-leira? Não sei, mas deveria.

Jornal da UFRJ: E como a senhora vê a educação no país?

Maria Yedda Linhares: É preciso um grupo que pense realmente que educação é algo sério e importante. Não é para eleger deputados e nem dar notoriedade. É um trabalho sério, de tempo integral, que exige muita autoridade e experiência. De qualquer forma, é uma tarefa difícil porque o Brasil é um país que tem uma riqueza local grande, é muito diversificado culturalmente. As questões têm que ser tratadas com

paciência e persistência, e com riscos de fracassos.

Jornal da UFRJ: A senhora sempre teve uma relação de paixão com a universidade, seja no Brasil ou no exterior. Como enxergar o papel de uma universidade pública em um país como o Brasil, que ainda não superou suas desigualdades?

Maria Yedda Linhares: Acho que a universidade pública no Brasil não é tão ruim como dizem. Ela também não é maravilhosa, excelente, porque não temos ainda uma qualidade clara e notória em relação às instituições de outros países. Nosso país é muito com-plexo. Podemos planejar uma reforma que cairá maravilhosamente bem no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais e não terá condições de dar certo no Piauí, no Maranhão ou no Amazonas. Então, é preciso fazer mudanças com nuances, que possam ser adaptadas às realidades locais, que são conhecidas. O problema é encontrar os meios e as pessoas para compreender bem essas idéias e realizar as mudanças.

Jornal da UFRJ: E a universidade pública precisa também ampliar o número de vagas para os jovens?

Maria Yedda Linhares: Exatamente. Ela tem que se abrir. Melhor prepa-rar os seus professores e mudar de mentalidade. O professor universi-tário não deve ficar cheio de si com a sua condição. Ele é um professor, como aqueles do primário e do se-cundário também o são. Eles têm equivalência, o mesmo valor. Essa mentalidade elitista é que precisa ser tocada. O professor deve se con-vencer de que ele veio para mudar o Brasil, as cabeças, as mentalidades. Do contrário, esse país não vai dar certo.

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reformulação estrutural. O docu-mento Diretrizes para a Reforma Universitária do Brasil é resultado deste grupo de trabalho, do qual fa-zia parte Raymundo Moniz Aragão, professor da UB. Já em 1966, como ministro da Educação, Moniz Ara-gão elabora o Decreto-lei no 53/66 e, no ano seguinte, o 252. “A Lei 5.540 incorporou os decretos-leis e foi uma espécie de consolidação das leis do Ensino Superior”, resume Luiz Antônio Cunha.

Para ele, a participação de Mo-niz Aragão foi decisiva no processo em que define como “movimento contraditório na universidade bra-sileira”. “O que havia antes eram universidades pouco estruturadas. Cada uma tinha o seu vestibular de-finido diferentemente dos outros. As exigências eram muito distintas. O professor era da faculdade, da escola ou do instituto. A Lei 5.540 foi muito eficaz em forçar as instituições pú-blicas e privadas em ultrapassarem o seu caráter meio medieval, meio bairrista. O fato de ter sido imposta não significa necessariamente que foi ruim”, opina o professor.

RepressãoAo mesmo tempo em que promo-

veu as reformas reivindicadas pelos intelectuais da época, foi também Moniz Aragão quem deu início à re-pressão aos movimentos estudantis que culminou no Decreto-lei 477, de 26 de fevereiro de 1969, que definiu

Pedro Barreto

Ao aproximar-se, Pedro Ar-chanjo notou que Nilo Argolo punha os braços atrás das costas para impedir qualquer tentativa de aperto de mão. Um calor subiu-lhe ao rosto. Com o desplante de quem examinasse bicho ou coisa, atentamente o professor es-tudou a fisionomia e o porte do fun-cionário; no rosto infenso refletiu-se indisfarçável surpresa ao constatar o garbo e a limpeza nos trajes do mulato, o perfeito decoro.”

Assim Jorge Amado narra, em seu romance Tenda dos Milagres (1969), o encontro entre o catedrático, professor Nilo Argolo de Araújo, e o bedel da Faculdade de Medicina da Bahia, Pedro Archanjo. Se na realidade baiana o debate acerca da hierarquia nas instituições universi-tárias fazia-se a partir do contexto racista, no restante do país, a discussão dos poderes absolutos dos professores catedráticos não era menos intensa.

Tenda dos Milagres foi publicado um ano após a implementação do con-troverso Decreto-Lei 5.540, publicado no dia 28 de novembro de 1968, que determinou, na prática, a extinção das cátedras vitalícias, a introdução do sistema departamental, do sistema de créditos, da docência em tempo integral, do vestibular unificado; além da integração entre Ensino e Pesquisa, a divisão entre ciclo básico e ciclo profissional e outras medidas.

Apesar da extinção formal das cá-tedras, a hierarquia nas Instituições de Ensino Superior (IES) se manteve inalterada durante algum tempo, após a promulgação do decreto. “O que não podemos é ter a ilusão de que o desmonte das cátedras tenha acabado com o sistema de poder na universidade. Há todo um jogo de pode-res que não são extintos. A cá-tedra era algo tão arcaico que remete ao Se-na d o d o Im -pério. Ela era vitalícia, como era o mandato do senador. É algo que real-mente concede ao catedrático u m a p o s i ç ã o h i e r á r q u i c a m u i t o s u p e -r i o r a o s d e -mais”, explica o histor iador Antônio José Barbosa de Oliveira, do Sistema de Bibliotecas e Infor-mação (SiBI) da UFRJ.

“Movimento contraditório”Embora o ano de 1968 seja no-

tadamente emblemático para o En-sino Superior brasileiro – além dos acontecimentos históricos contra o autoritarismo em todo o mundo –

suas determinações foram gestadas anos antes. O fim das cátedras, por exemplo, era uma antiga reivindi-cação da comunidade universitária e já na reforma de 1946, o Governo Provisório de José Linhares, em uma tentativa de reversão do pano-rama autoritário do Estado Novo de Vargas, institui, no plano da lei,

a estrutura de-partamental.

O que pavi-mentou mesmo o caminho para a reforma, sete anos mais tar-de, foi a apro-vação da L e i de Diretrizes e Bases da Edu-cação nacional de 1961, que levou a dicoto-mia entre en-sino público e ensino privado - inicia lmen-te restr ito ao meio acadêmi-

co - para o âmbito de toda a socie-dade. “Teve início ali o processo de privatização do Ensino Superior no Brasil”, define Luiz Antônio Cunha, professor da Faculdade de Educação.

No ano seguinte, o Conselho Universitário da então Universi-dade do Brasil (UB) constitui um comitê especial para tratar de sua

Fragmentação universitária

Especial 1968

Arquivo

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infrações disciplinares a professores, funcionários e estudantes.

E o Estado não teve pudores em impor a sua força. O episódio de invasão, por forças policiais, do antigo (e demolido) prédio da Fa-culdade Nacional de Medicina da então Universidade do Brasil (atual Faculdade de Medicina da UFRJ), em 23 de setembro de 1966, ficou conhecido como “O Massacre da Praia Vermelha”, no qual estudantes, que lá se abrigavam, foram agredi-dos e as instalações da escola foram depredadas. Dois anos mais tarde, no dia 20 de junho, o país voltaria novamente suas atenções para a já rebatizada UFRJ. Liderados por Jean-Marc von der Weid, um dos líderes da Ação Popular (AP), cerca de 400 estudantes da Faculdade de Química, que ocupavam a Reitoria, foram levados presos para o campo do Botafogo (Mourisco), onde so-freram humilhações. Seis dias mais tarde, eclodiria a Passeata dos 100 Mil que, além do caráter libertário, tinha como uma de suas bandeiras o clamor contra a privatização do Ensino Superior no país.

Para Roberto Leher, professor da Faculdade de Educação, ademais a violência imposta a estudantes, professores e funcionários; exílios e cassações, a atmosfera de medo interferiu na produção do conhe-cimento nas universidade. “Houve listas de pessoas ‘cassáveis’ elabo-radas por professores da própria universidade. O peso disso sobre a produção acadêmica é difícil de aferir, mas criou-se um ambiente de autocensura interna muito grande. O caso do Eremildo Viana é famoso”, avalia o professor, referindo-se ao então diretor do Instituto de Filo-sofia e Ciências Sociais (IFCS), que teria feito delações contra pessoas com idéias contrárias ao regime da época.

“Junto com isso”, continua Leher, “outros elementos pesaram. Por exemplo, somente poderiam fazer concursos professores que tivessem ‘atestados de idoneidade ideológica’ concedidos pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops)”, aponta Leher, para quem, “como não havia muitos concursos acon-tecendo, muitos professores eram nomeados por afinidade política à ‘ditadura empresarial militar’. E esta é uma situação que vai perdurar por muitos anos, já que, mesmo após a abertura democrática, essas pessoas ainda ocuparam cargos de prestígio na universidade e exerceram cerce-amento à liberdade e ao pluralismo acadêmico”, analisa o docente.

Influência estrangeiraOutro aspecto negativo apon-

tado por Leher é a transposição

de uma estrutura acadêmica nos moldes da praticada nos Estados Unidos, através dos acordos entre o Ministério da Educação e a Uni-ted States Agency for International Development (Usaid). “Os acordos MEC–Usaid, buscados pelo governo brasileiro da época, visavam fragi-lizar a autonomia da universidade brasileira e uma concepção mais unitária enquanto inst ituição”, sugere o pesquisador. Para ele, o modelo implementado pela reforma de 1968 visava atender aos interesses de uma elite empresarial, ligada ao capital estrangeiro. “O que se pre-tendia eram instituições voltadas para a pesquisa, mas de maneira pragmática, apta a conduzir uma modernização conservadora. Havia a necessidade de uma universidade

para formar pesquisadores para tra-balhar nas estatais, ligadas a setores da indústria, como o de autopeças”, aponta Leher.

Luiz Antônio Cunha avalia essa influência externa como fator conver-gente aos interesses da comunidade universitária da época. Ele destaca a importância de Rudolph Atcon, consul-tor norte-americano e autor da proposta de criação do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (Crub), do qual foi o primeiro secretário-geral. “Foi através deste órgão que administrado-res, reitores e professores iam aos EUA fazer pesquisas e era pelo meio dele que consultores norte-americanos visita-vam as universidades brasileiras”, esclarece o professor.

Cunha compara a experiência, reconhecida como uma das mais

modernizantes do Ensino Superior no Brasil, ao modelo norte-america-no de Educação Superior. “A UnB foi um produto livremente concebido pela intelectualidade brasileira, por Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira. Nela não tinha o regime de cátedras, o regi-me de créditos. Não tinha a Faculdade de Filosofia de Ciências e Letras. Lá, os professores de graduação eram os alunos de pós-graduação. Então quan-do nós, no Brasil, pensávamos numa universidade institucionalizada, refor-mada, voltada para o desenvolvimento, essa universidade já estava no Brasil, não precisávamos ir lá fora”. Ressalta o pesquisador.

Reforma de 1968 versus PRE de 2008

Comparações entre 1968 e os dias atuais são inevitáveis. Se a Lei 5.540 determinou a organização das insti-tuições a partir de departamentos, o que as diretrizes gerais do Plano de Reestruturação e Expansão da UFRJ (PRE) pretendem é a desfragmentação do Ensino e um caráter transdiscipli-nar na formação acadêmica. “O ciclo básico foi um dos pontos que fracassou na Reforma de 1968. A passagem do ciclo básico para o profissional não existe. Já o bacharelado interdisciplinar era um aspecto que não estava presente no projeto daquele ano porque não era consensual, mas que se tentou reitera-damente introduzir até hoje. Acredito que a universidade brasileira pode se reorientar para criar esses cursos pre-viamente aos cursos profissionais, mas não para serem enxertados em uma universidade cheia de cursos profis-sionais que continuam a ser criados”, critica Luiz Antônio Cunha.

Roberto Leher considera o atual modelo semelhante à Lei 5.540 por sua semelhança ao Ensino Superior norte-americano. “O que se pretende é incorporar o formato estadunidense das comunity colleges, de dois anos de duração. Atualmente, o modelo em curso tem como pressuposto que a força de trabalho necessária já não tem mais o perfil de qualificação. Não há inovação no Brasil, por isso a for-mação que está sendo pensada é de uma formação mais simples”, dispara o docente.

Para Antônio José Barbosa de Oliveira, a democratização no aces-so à universidade não foi resolvida com a reforma de 1968 e também não tem espaço nas discussões atu-ais. “Eu acho interessante a proposta de interiorização dos cursos, mas, se reproduzirmos fora do Rio de Janeiro as mesmas formas de acesso que temos aqui, já sabemos o perfil de alunos que teremos. Precisamos aumentar os cursos noturnos, discu-tir o Ensino a Distância e melhorar a formação de professores”, avalia o historiador.

Vida e morte de um modelo

Especial 1968

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Rodrigo Ricardo

FNFVida e morte de um modelo

riada a partir do Decreto-Lei número 1.190, de 4 de abril de 1939, assinado pelo então

presidente da República, Getúlio Vargas, a Faculdade Nacional de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Brasil (UB) teve como finalidade, desde sua implan-tação, “preparar trabalhadores intelectuais para o exercício das atividades culturais de ordem desinteressada ou técnica; preparar candidatos ao magistério do Ensino Secundário e Normal; e realizar pesquisas nos vários domínios da cultura, constituidores de objeto do seu ensino”.

A FNFi, como passou a ser conhecida, funcionou durante 21 anos em prédio na avenida Presidente Antônio Carlos,

nº 40, no qual, atualmente, localiza-se a sede do Consulado Geral da Itália. Dela faziam parte as seções de Filosofia, Letras, Ciências, Pedagogia e Didática. Se, em 1940, eram 12 cursos ministrados, em 1948, foi implantado o de Jornalismo e, em 1962, o de Psicologia.

Apesar de seu caráter teoricamente transdisciplinar, na prática, este objetivo não se concretizou, segundo Roberto Leher, professor da Faculdade de Edu-cação (FE) da UFRJ. “O esforço de se constituir em uma universidade mais integrada não pôde se completar naquele contexto. O trabalho acadêmico feito na FNFi não foi capaz de enfrentar proble-mas teóricos e metodológicos, sumamen-

te importantes. O contexto de repressão da época contribuiu para que isso não se concretizasse”, avalia o pesquisador.

Para Leher, a intenção de criar uma faculdade que integrasse diversas áreas do conhecimento antes de encaminhar os estudantes aos respectivos cursos profissionais e ainda selecionar os aptos à carreira científica ou ao magistério do Ensino Médio, deparou-se com uma realidade fragmentada. O docente co-menta, porém, que a FNFi pode servir de inspiração para os dias de hoje. “Ha-via, como elementos aglutinadores, os conhecimentos das Ciências Humanas, da Filosofia. Atualmente, a discussão acerca da integração entre áreas gira em

torno de uma lógica muito utilitarista”, avalia Leher.

A Lei 5.540 de 1968 decretou a ex-tinção da FNFi. A “toque de caixa” a faculdade teve que ser desmembrada. Atualmente são dez as unidades que nela tiveram origem: Escola de Comunicação, Faculdade de Educação, Faculdade de Letras, Instituto de Biologia, Instituto de Física, Instituto de Geociências, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Instituto de Matemática, Instituto de Psicologia e Instituto de Química. A tentativa de re-cuperar, organizar e preservar o material deixado após o término das atividades da FNFi contribuiu para a criação do Progra-ma de Estudos e Documentação Educa-ção e Sociedade (Proedes), localizado na Faculdade de Educação da UFRJ.

Hoje, fazem parte do acervo mais 106 mil documentos, entre manuscritos, livros, periódicos, relatórios, atas, legisla-ções e publicações produzidas pela FNFi e sobre ela. “Por volta de 1987, fui chamada à entrada do Palácio Universitário da Praia Vermelha para receber um material que estava abandonado. Lá chegando, me deparei com documentos valiosíssimos da FNFi, como diplomas de Anísio Tei-xeira, entre outros. A direção do Arquivo Nacional queria levar este material, mas consegui fazer com que hoje ele faça parte do Proedes”, conta a sua coordenadora geral, Maria de Lourdes Fávero.

Para Luiz Antônio Cunha, da Facul-dade de Educação, o saudosismo existente em torno da FNFi não se justifica. “A sua extinção era uma demanda antiga da comunidade universitária brasileira e representou um avanço. Lá não se fazia pesquisa. Foi preciso criar o CBPF e um Instituto de Ciências Sociais fora dela. Aqueles que pedem o seu retorno querem o retorno ao útero, que a Psicanálise deve explicar”, brinca o professor.

Antônio José Barbosa de Oliveira des-carta um eventual retorno da FNFi, mas, para ele, seu modelo pode nortear alguns rumos a serem seguidos nos dias atuais. “É mais prudente pensar na FNFi como a possibilidade da interseção entre os diversos campos de saberes e, a partir daí, repensarmos o atual modelo acadêmico do que propriamente com a intenção de utilizar o modelo tal como era nos anos 1930 e 1940. Como historiador, não posso renegar a importância de procurar nesse passado determinadas soluções, mas que são sempre movidas por uma demanda presente, que é transformar a universida-de pública brasileira em uma instituição mais abrangente do ponto de vista social”, opina o pesquisador.

Pedro Barreto

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Direitos de quem?

A té a elaboração da De-claração Universal, essa temática era abarcada,

sobretudo, pelo Direito Internacio-nal Humanitário, também chamado de Direitos dos Conflitos Armados. Este ramo do Direito visa limitar os efeitos dessas conflagrações, seja protegendo as pessoas que deles não participam (o chamado Direito de Haia) seja restringindo os meios e métodos à disposição dos comba-tentes para a condução das hostili-dades (Direito de Genebra).

Há três princípios basilares acerca dos meios de se proceder em um conflito bélico: o princípio da humanidade - de causar o menor sofrimento possível; da necessidade - o ataque deve ter objetivo militar; da proporcionalidade - perdas cola-terais não podem ser desproporcio-nais à vantagem militar obtida.

A situação muda com a Decla-ração de 1948 que, para Vanessa Batista, professora da Faculdade de Direito (FD) da UFRJ, tem pre-ponderância, pois serve como uma espécie de “guarda-chuva” para criação de um sistema internacional de proteção aos Direitos Humanos (DH). “A partir da Declaração co-meçou a ser construída a própria Organização das Nações Unidas (ONU), em amparo aos DH. Nor-

mas jurídicas criadas em âmbito legislativo, de diversas conferências, nos anos 1990, vão adequar esse sistema aos temas contemporâneos”, explica a pesquisadora que coordena grupo de pesquisa em Direitos Hu-manos, na FD-UFRJ.

O sistema interamericano de DH No esteio desse sistema interna-

cional – à época incipiente - que vão ser construídos os sistemas regio-nais: o europeu e o interamericano. Ainda está em construção o sistema africano de Direitos Humanos e, de forma embrionária, o sistema árabe.

Quatro instrumentos estão entre os tratados principais que compõem o corpus juris (arcabouço jurídico) do sistema interamericano de DH: a Carta da OEA (Organização dos

Estados Americanos); a Declaração Americana de Direitos e Deveres; o Pacto de São José (Convenção Americana de DH); e o Protocolo Adicional à Convenção Americana em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador). A Corte Interamericana de DH é instituição judiciária autônoma em relação à OEA.

Dos 35 países que compõem a OEA, 24 integram o pacto de San José, que estabelece a criação da Corte Interamericana de Direitos Huma-nos. Os EUA o assinaram, mas não o ratificaram ainda e o Canadá não assinou. O Brasil ratificou-o em 1992. Os Estados-membros da OEA podem escolher, livremente, quais acordos assinar e quais obrigações assumir.

Segundo Vanessa Batista, ao contrário de sua contraparte euro-péia, a Corte Interamericana não é acionada diretamente. “A Comissão Interamericana é quem recebe a denúncia, que averigua se houve denegação de justiça (comum em países como o Haiti, onde a estrutu-ra de amparo judiciário é frágil) e o esgotamento dos recursos internos”, informa a professora.

A Assembléia Geral da ONU, reunida em Nova York, em 1966, adotou dois pactos internacionais (ambos entraram em vigor no Brasil, em 1992): um acerca dos direitos ci-vis e políticos e o outro dos direitos sociais, econômicos e culturais. Os EUA consideraram que o segundo pacto expressa idéias socialistas e, portanto, o país não é signatário desse acordo. Não por acaso, a extinta União Soviética priorizava a discussão acerca dos direitos ex-pressos pelo segundo pacto.

Os sistemas de monitoramento, por esses pactos previstos, não têm poder de adjudicação judicial dos casos de violação, ao contrário das cortes Européia e Interamericana, que têm esse poder e por isso são mais fortes. Essas podem ser direta-mente invocadas pelos cidadãos.

Até dezembro de 2005, a Corte Interamericana havia proferido 134 sentenças, 21 pareceres consultivos e publicado cerca de 200 resoluções. A jurisprudência, em conjunto das cortes Interamericana e Européia de Direitos Humanos, é maior que a soma das sentenças de todos os demais tribunais internacionais.

Gerações de direitos humanosHouve época, em que era comum

a doutrina de direito internacional público, apresentar uma divisão dos Direitos Humanos em três gerações, o que, na visão mais contemporânea

Bruno Franco

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Em 1968, foi realizada a I Conferência Internacional sobre Direitos Humanos, em Teerã, a

capital iraniana, vinte anos após a elaboração da Declaração

Universal dos Direitos Humanos. A partir de então, a dignidade da pessoa humana passou a ser uma

das prioridades da agenda de discussões entre Estados.

expressa pelos principais doutrina-dores, como Francisco Rezek, tem finalidade mais didática que pro-priamente jurídica.

A tese das gerações de direitos foi formulada pelo jurista Karel Vasak, em 1979, durante conferência minis-trada no Instituto Internacional de Direitos Humanos, em Estrasburgo, inspirado na bandeira francesa e nos valores associados às suas cores: liberte, egalité, fraternité.

A primeira geração seria a dos direitos civis e políticos (chamados pelo jurista Guido Soares, de direi-tos de liberdade) e visa defender as liberdades individuais frente à interferência estatal: direito à vida, livre expressão, igualdade, honra, integridade física e direito ao voto, como exemplo.

Os de segunda geração são os direitos sociais, econômicos e cul-turais, que permitem aos indivíduos requererem os benefícios relacionados ao bem-estar social, tais como o direito ao trabalho, à educação, à previdência, à saúde, à cultura e ao lazer.

Na terceira geração, seriam direi-tos com vocação comunitária (direitos de coletividade, na doutrina de Fran-cisco Rezek). Nessa categoria, os titu-lares são os povos e não os indivíduos. Direito à paz, ao meio-ambiente ade-quado, ao desenvolvimento, respeito às minorias e autodeterminação são exemplos.

Essa conceituação de que pri-meiro vieram os direitos individuais e nesta ordem, os direitos econômi-co-sociais e o direito de coletividade correspondem à evolução do Direito Constitucional.

Na V Conferência Nacional de Direitos Humanos, Cançado Trin-dade – professor da Universidade de Brasília (UnB) e juiz da Corte Interamericana de Justiça – afir-mou que isso ocorreu no plano dos direitos internos dos países, mas no plano internacional a evolução foi contrária. “No plano internacional, os direitos que apareceram primeiro foram os econômicos e os sociais. As primeiras convenções da Orga-nização Internacional do Trabalho (OIT), anteriores às Nações Uni-das, surgiram nos anos 1920 e 30. O direito ao trabalho, o direito às condições de trabalho, é a primeira geração, do ponto de vista do Direito Internacional. A segunda geração corresponde aos direitos individu-ais, com a Declaração Universal e a Americana, de 1948”, explicou o juiz.

Universais e indivisíveis No entanto, o Artigo 5º da De-

claração e Programa de Ação de Vie-na, de 1993, estabeleceu que “todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma global, justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase”.

De acordo com Vanessa Batista, a reflexão acerca da indivisibili-dade dos Direitos Humanos se fez a partir da própria jurisprudência dos tribunais internacionais. “Eu somente consigo conceber a idéia das gerações de direitos sob a pers-pectiva dos paradigmas de Estado.

Os de segunda geração têm a ver com o corpo social e vão ser recha-çados pelo paradigma de Estado liberal como o dos EUA. Não há uma incoerência norte-americana. A questão da indivisibilidade passa pela capacidade de se efetivar direi-tos”, explica a professora.

Os direitos começam, então, segundo Vanessa, a se ramificar em direitos ligados ao indivíduo – como o direito à vida, à proprie-dade - e à convivência. Os próprios direitos sociais, econômicos e cul-turais passam a ser legislados em âmbito internacional e, posterior-mente, são incorporadas ao direito interno dos países. “Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 é muito significativa, pois já no artigo segundo, parágrafo 5º estabelece que Direitos Humanos, acordados internacionalmente, serão incor-porados para efeitos de aplicação normativa interna”, complementa a especialista.

De acordo com ela, a Emenda Constitucional 45/2004, que acres-centa um terceiro parágrafo a esse artigo é ainda mais profunda, pois estabelece que as declarações e acor-dos internacionais acerca de DH ratificados pelo Brasil passem a ter validade de norma constitucional. “A Constituição brasileira é exemplo do vigor da Declaração Universal de Direitos Humanos, que fazia, então, 40 anos de existência”, enfatiza a pesquisadora.

Renovação de credenciaisQuando os Direitos Humanos

começaram a ocupar papel central na agenda política internacional, o

Brasil vivia a página infeliz de sua história, a ditadura militar. Ale-gando que essa discussão afrontava sua soberania, o país negligenciou o debate, sendo muito pressionado, sobretudo, durante o governo do democrata Jimmy Carter, nos Esta-dos Unidos.

Com o fim do regime autoritá-rio, o Brasil pôde, enfim, renovar suas credenciais internacionalmen-te. Foi emblemática, nesse sentido, a atuação do diplomata Gilberto Sabóia, presidente do comitê res-ponsável pela redação da Declaração e Programa de Ação de Viena, de 1993.

De acordo com Vanessa Batista, o Brasil já ratificou, praticamente, todos os tratados e convenções acerca dos Direitos Humanos. “O último foi o da diversidade cultural e, antes desse, o tratado dos portadores de deficiências, recepcionado com status de norma constitucional. Ou seja, em relação ao período da ditadura, recupe-ramos o tempo perdido”, avalia a professora.

Em sua análise, não adianta apenas dizer “toda criança tem di-reito ao lazer”. Compete ao Estado criar políticas para que as crianças desfrutem desse direito, “como o Bolsa-família, por exemplo, e meca-nismos infraconstitucionais como o Estatuto da Criança e do Adolescen-te”, por exemplo.

Sobretudo, os direitos sociais estão intrinsecamente ligados à idéia de igualdade e não podem ser plenamente contemplados em um ambiente de tamanha desigualdade, como é o Brasil.

“Um programa de distribuição de renda tem como ponta final a integração de direitos. A efetivação de direitos sociais não se faz por lei, se faz por políticas sociais concertadas, com a finalidade do Estado, consagrada constitucionalmente, que é a justiça social”Vanessa Batista

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Um ataque surpresa, em 1968, no dia do Ano Novo Lunar (Tet), no calendário vietnamita, marcou a mudança de rumo da Guerra do Vietnã. Além disso, a emergência de uma juventude crítica, contracultural e pacifista foi preponderante para a retirada dos Estados Unidos do conflito.

A derrota do império

O s antecedentes que motivaram o confli-to entre sul e norte-

vietnamitas e a intervenção es-tadunidense devem ser buscados na independência do Vietnã e na conjuntura daquele momento his-tórico, em âmbito internacional.

O Vietnã era parte da Indochi-na, território do Sudeste Asiático, uma das principais colônias fran-cesas, desde o século XVIII. De acordo com Karl Schurster, pes-quisador do Laboratório de Estu-dos do Tempo Presente (Tempo),

Bruno Franco do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, o signifi-cado econômico dessas colônias tornara-se mais relevante após a derrota militar frente à Alemanha, no século XIX, e na necessidade de re-erguimento econômico após a I Guerra Mundial. “Após a II Guerra, novamente a França viu em suas colônias a possibilidade de ganhos, sobretudo mediante acesso facilitado e barateado às matérias-primas necessárias à reconstrução de seu devastado território”, explica Schurster.

Após a II Guerra Mundial, a debilidade das economias e das

forças armadas européias deu alento aos desejos de autodeter-minação, então sufocados, nas colônias, e ensejou os movimentos de descolonização. Aproveitando-se da adversa situação econômica, política e militar da então metró-pole, o Viet Minh (Liga para In-dependência do Vietnã), apoiado pela China, iniciou a Guerra da Indochina (1946 a 1954).

A França, financiada pelo Pla-no Marshall, tentou manter suas colônias. Mas, segundo Schuster, a opinião pública francesa não via na Indochina uma extensão do território francês e o povo fran-

cês não entendia porque recursos indispensáveis à reconstrução da Grande França, idealizada pelo presidente Charles de Gaulle, eram sacrificados na guerra e por-que seus filhos precisavam morrer para manter uma colônia que não lhes parecia tão vantajosa.

O acordo celebrado na Con-ferência de Genebra, no mesmo ano que a guerra terminara, reco-nheceu a independência de três países: Laos, Camboja e Vietnã, “esta última inegavelmente divi-dida entre uma região sul, ligada aos investimentos franceses, afeita ao capitalismo, e o norte, carente

Anna Carolina Bayer e Lucas Santoro

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de instituições de Estado e mo-bilizado pelos ideais socialistas, difundidos por Ho Chi Minh, oriundo das elites locais e que fora educado na França, na Rús-sia e na China, de onde retornara com o aporte teórico necessário para o engajamento na luta pela independência da região”, relata Karl Schurster.

No entanto, o primeiro-minis-tro Ngo Dinh Diem iniciou um pe-ríodo de forte repressão no sul do país, recebendo o apoio da Casa Branca, interessada em conter a expansão do socialismo na região do Pacífico. A truculência do go-verno motivou o fortalecimento da oposição, representada pela Frente de Libertação Nacional, cujo braço armado era a guerrilha vietcongue.

Segundo Schurster, o que le-gitima a guerrilha é o apoio e o consenso nos locais onde atua. “O movimento era mais forte onde a presença do Estado vietnamita e os investimentos franceses e nor-te-americanos eram mais fracos. De maneira geral, tendências po-líticas com apelo e propostas mais vinculadas ao lado social tendem a prevalecer em locais nos quais a presença do Estado é incipiente”, enfatiza o historiador.

A entrada dos EUA na guerraAté 1964, o conflito teve um

caráter majoritariamente sul-vie-tnamita, pelo menos no que tange às incursões armadas, ainda que os Estados Unidos e a República Democrática do Vietnã (norte-vietnamita) apoiassem o governo e a guerrilha, respectivamente. No entanto, nesse ano, com a alegação de que embarcações da Marinha norte-americana sofre-ram ataque por parte de forças norte-vietnamitas, no golfo de Tonquim, Washington engajou-se definitivamente no conflito.

O suposto ataque fora objeto de controvérsia. As dúvidas a respeito de sua veracidade não foram infundadas. Em 1971, o jornal New York Times publicou documentos oficiais do Pentá-gono, “Pentagon Papers”, como foram genericamente chamados (o título verdadeiro era United States – Vietnam Relations, 1945–1967: A

Study Prepared by the Department of Defense (Estados Unidos – Re-lações com o Vietnã, 1945-1967: um estudo preparado pelo Depar-tamento de Defesa), revelando que o incidente fora forjado para jus-tificar, perante a opinião pública norte-americana, a adesão de seu país à guerra.

Houve grandes impactos nos planos militar, econômico, huma-nístico e midiático. Foram mais de 500 mil vietnamitas mortos, os norte-americanos nunca ti-nham sofrido tantas baixas em um conflito fora de seu território (somente a Guerra Civil matou mais), cerca de 60 mil, além de 300 mil feridos. O conflito custou US$ 250 bilhões ao Tesouro dos EUA e desmantelou a já precária infraestrutura vietnamita. O chefe do Estado-maior da Força Aérea Curtis LeMay afirmava, à época, que levaria o Vietnã à Idade da Pedra, caso fosse preciso.

As agressões aos direitos hu-manos e ao direito internacio-nal foram constantes. O uso do chamado “Agente Laranja”, um herbicida desfolhante, que vi-sava reduzir a capacidade dos vietcongues de se camuflarem e se esconderem, bem como abrir passagem em meio à selva, produ-ziu graves danos à saúde, tanto de guerrilheiros quanto de soldados estadunidenses.

O uso irresponsável e desme-dido do Napalm (mistura de ga-solina com uma resina espessa da palmeira que lhe deu o nome e que, em combustão, gera temperaturas a 1.000ºC) produziu a contunden-te e abominável imagem – ampla e internacionalmente difundida na-quele que foi o primeiro conflito largamente televisionado – que se tornou símbolo do que fora aquela guerra: a menina Kim Phuc, cor-rendo com as roupas em chamas, fugindo desesperada de seu vila-rejo. “A exploração televisiva dos conflitos levava à banalização da dor dos outros, como acreditava Susan Sontag”, explica Schurster.

Ofensiva do Tet e a vitória vietcongue

Em 31 de janeiro de 1968, as forças de Ho Chi Minh e da FNL lançaram um massivo ataque

surpresa contra as tropas norte-americanas e sul-vietnamitas justamente no feriado do Ano Novo Lunar (Tet) vietnamita. Cem cidades, além do quartel-general dos EUA e da embaixada norte-americana em Saigon foram atacadas.

Fora o resultado militar, a ofensiva teve forte impacto junto à opinião pública estadunidense, que julgava por um sucesso a empreitada militar de seu país. Afinal, o general Westmoreland – eleito o “homem do ano” pela revista Time , em 1965, como “a personificação do guerreiro americano” afirmara que o fim do conflito estava próximo. O desmentido foi retumbante, pela ofensiva do Tet.

Os Estados Unidos encerra-ram as operações militares no Vietnã, mediante acordo de paz celebrado em Paris, no dia 27 de janeiro de 1973. O conselheiro de Segurança Nacional do presidente Richard Nixon, Henry Kissinger e Le Duc Tho, responsáveis pelas negociações que culminaram nos “Acordos de Paz de Paris”, foram agraciados nesse mesmo ano com o Prêmio Nobel da Paz.

Com o fim da ajuda militar e um corte drástico no auxílio fi-nanceiro, que recebiam dos EUA, o Vietnã do Sul não suportou a ofensiva de seus compatriotas do Norte. No dia 29 de abril de 1975, a bandeira da Frente Nacional de Libertação era hasteada no palácio presidencial e a Guerra do Vietnã chegava, de fato, ao seu fim.

A Guerra do Vietnã trauma-tizou uma geração e até os dias atuais ainda permeia o imaginário norte-americano. Em busca de credibilidade e status junto ao elei-torado, muitos políticos daquele país enfatizam, em suas campa-nhas eleitorais, serem veteranos da guerra ou dela terem participado de alguma forma. Schurster desta-ca que mesmo o presidente George W. Bush foi muito cobrado pelos democratas por não ter servido a pátria durante o conflito.

Para Karl Schurster, “é compli-cado falar em derrota (dos EUA), uma vez que, militarmente, os norte-americanos foram supe-riores e causaram mais vítimas.

Porém, foram forçados a se retirar do Vietnã, uma vez que não con-seguiam mais justificar, interna-mente, a intervenção”.

A deserção era cada vez mais freqüente. Os jovens estaduniden-ses não desejavam arriscar suas vidas, nem tirar as de outros, em uma luta que parecia desneces-sária. “Hobsbawm (historiador inglês, autor de obras célebres como A Era dos Extremos e A Era das Revoluções) afirmava que a Guerra Fria era uma disputa para ver quem ganhava mais amigos”, relata Schurster. Nesse sentido, a guerra teria sido uma derrota para os americanos, que falharam em arregimentar o Vietnã para sua órbita de influência.

Paz e amorA violência dos ataques dos

marines noticiada pela imprensa, na primeira guerra de grande difusão midiática, sobretudo te-levisiva, ensejou, na juventude americana, um movimento de contestação ao sistema. De acor-do com Schurster, eram os filhos daqueles que haviam vivido a Grande Guerra que rejeitavam o conflito em curso e se recusavam o modelo de sociedade que levara àquela violência.

“Embora os Estados Unidos se afirmassem como uma nação aberta e liberal, sua sociedade era muito conservadora”, pondera Schurster. Contrários à beligerân-cia e ao conservadorismo vigentes; estimulados pelo ativismo social que repercutia pela Europa em 1968 – iniciado pelos ingleses, no começo do ano, seguido pelos acontecimentos de maio, na Fran-ça, e pela Primavera de Praga – os norte-americanos lançaram uma ideologia de paz e amor, que leva-ria ao movimento hippie e culmi-naria no festival de Woodstock.

A revolução desses jovens era a liberdade de costumes, expli-ca Schurster, ”sobretudo o sexo livre, que era um tabu mesmo entre jovens que viviam em campi universitários, longe de seus pais. Não por acaso, nos muitos filmes de terror surgidos na época, eram comuns cenas nas quais casais jovens procuravam momentos de intimidade e eram assassinados”.

Especial 1968

A Guerra do Vietnã traumatizou uma geração e até os dias atuais ainda permeia o imaginário norte-americano. Em busca de credibilidade e status junto ao eleitorado, muitos políticos daquele país enfatizam, em suas campanhas eleitorais, serem veteranos da guerra ou dela terem participado de alguma forma.

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24 Especial 1968

Incendiando tabus

O ano era 1968. Cerca de 400 militantes do grupo Women’s Liberation Movement (Movi-

mento de Liberação das Mulheres) se reuniram em Atlantic City para protestar contra a realização do concurso de Miss America ocorrido em 7 de setembro daquele ano. Para as ativistas, o concurso que elegia a americana mais bonita era, na verdade, uma forma opressiva de exploração comercial da mulher.

No protesto, uma série de acessórios e cosmé-ticos, entre eles sapatos de salto alto e sutiãs, foi exposta no Atlantic City Convention Hall, logo após a Convenção Nacional dos Democratas. A

idéia era, ao desprezar artigos femininos típicos, combater estereótipos e apontar a necessidade de reavaliação do papel social da mulher.Nenhum sutiã foi queimado, mas o episódio entrou para a história como o Bra-burning (a queima dos sutiãs). O termo é uma analogia à queima dos certificados de alistamento militar realizada por alguns homens como protesto

Há quarenta anos, um grupo de ativistas “queimava sutiãs” em praça pública e abria caminho para a redefinição do lugar da mulher em uma sociedade predominantemente machista.

Aline Durães

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“A luta emblemática desse período, muito ameaçadora

aos homens, pode ser resumida no slogan ‘nosso corpo nos pertence’ que expressou o

desejo de autonomia diante dos controles exercidos pelos

homens, pelo Estado e pelas religiões. “

contra a Guerra do Vietnã, na qual os Estados Unidos estavam envolvidos, à época.O Bra-burning é um dos episódios mais emblemáticos do feminismo dos anos 1960.

Influenciadas pelas ressonantes manifestações estudantis em prol do ensino público e pela luta dos negros contra o racismo, as feministas, que vinham se organizando desde 1966, fizeram do ano de 1968 um divisor de águas na emancipação feminina.

Embora já tivessem conquistado o direito ao voto, uma das primeiras bandeiras reivindicadas pelas sufragistas do século XIX, ainda havia muitas causas pelas quais as mulheres de 1968 precisavam lutar. Embaladas por O segundo sexo (1949), polêmico livro de Simone de Beauvoir, escritora francesa e ícone do feminismo, que alerta para a subserviência das mulheres frente aos homens e enfatiza a inexistência de fatores biológicos que expliquem a “inferioridade feminina”, elas saíram às ruas para demarcar e ampliar seu espaço na sociedade.

Direito ao aborto e ao controle de seu próprio corpo, igualdade de acesso à Edu-cação e ao mercado de trabalho, remunerações semelhantes às dos homens. Essas eram algumas das reivindicações exigidas por essas mulheres. As vozes femininas se levantavam contra uma sociedade que, até meados da década, na França, por exemplo, obrigava mulheres que quisessem trabalhar ou abrir uma conta bancária a pedirem autorização a seus maridos. “A luta emblemática desse período, muito ameaçadora aos homens, pode ser resumida no slogan ‘nosso corpo nos pertence’ que expressou o desejo de autonomia diante dos controles exercidos pelos homens, pelo Estado e pelas religiões. É o momento em que as mulheres valorizam a construção da sua indi-vidualidade e a superação dos constrangimentos impostos à sua ação pelos atributos tradicionais de gênero”, explica Bila Sorj, professora do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ.

O feminismo de 1968, influência para inúmeras gerações posteriores, colocou em xeque o modelo idealizado de mulher, restrita, até então, aos papéis sociais de esposa e mãe. “Mesmo que as mulheres trabalhassem antes, a sensação era de que elas esta-vam fora de lugar, que desempenhavam uma ativi-dade desviante do seu script ‘natural’. O feminismo pós-68 é basicamente um movimento de redefinição do lugar de homens e mulheres na sociedade”, pon-tua Sorj, que é especialista em relações de gênero, violência, família e trabalho.

A partir desse movimento as desigualdades de gênero passaram a ser reconhecidas como um dado injusto da realidade. E é nesse contexto que surge a idéia de as mulheres se unirem, em uma espécie de “irmandade”, frente às desigualdades de gênero e em favor de sua liberdade.

Nuanças do feminismoHeterogêneo. Assim era o feminismo dos anos 1960. As mulheres de cada

país detinham um jeito próprio de militar, e essa militância podia variar mesmo em uma determinada região. Isso porque o movimento era composto por grupos distintos. Uns mais radicais outros nem tanto.

O National Organization for Women (NOW), por exemplo, fundado pela psicóloga Betty Friedan, em 1966, e um dos grupos mais atuantes daquele me-morável 1968, foi um obstinado promotor de campanhas de igualdade de direitos nos Estados Unidos, defendendo a participação das mulheres, em colaboração com os homens, em todas as esferas da vida pública.

Já entre os mais radicais, destacam-se aqueles que pregavam o separatismo entre mulheres e homens como a única e verdadeira forma de libertação femini-na. Um deles, o Women’s International Terrorist Conspiracy from Hell (Witch) convocava as ativistas a realizar ataques coordenados contra os homens.

Mais virulento foi o livro Society for Cutting Up Men Manifesto, conhecido como Scum Manifesto, escrito por Valerie Solanas. No documento, Solanas, mundialmente famosa por ter atirado, no mesmo ano de 1968, contra o pintor e cineasta Andy Warhol, propõe a destruição do sexo masculino. Para ela, que já foi considerada a “Malcolm X” do feminismo, o próprio sistema capitalista, contra o qual também militava, era causa e conseqüência do machismo.

Segundo Bila Sorj, embora posturas extremistas como essas fossem minoritá-rias e nenhum homem tenha sido assassinado, a linguagem fortemente emocional de raiva e indignação de alguns grupos contra o sexismo (atitude discriminatória em relação ao sexo oposto) e a opressão à mulher contribuiu para a criação de um estereótipo que vê o feminismo como um movimento de eliminação dos homens. “O mais importante é que os homens se sentiam ameaçados pelo dis-curso de independência e autonomia das mulheres e se colocavam na posição de vítimas de feministas enlouquecidas”, ressalta a pesquisadora.

O desejo de liberdade ameaçava o universo da dominação masculina. Para reagir ao perigo despertado pelas ações feministas, muitos homens tentaram desqualificar o movimento: as mulheres que dele participavam eram adjetivadas,

constantemente, de prostitutas e lésbicas ou desqualificadas como feias e infeli-zes em sua vida amorosa. “Eles (os homens) ficaram muito inseguros. A forma encontrada para se defender dessa novidade foi a de desacreditar as feministas, mediante a manipulação de preconceitos e estigmas, em vez de debater suas idéias”, sublinha Sorj.

Brasil: a luta da mulher na ditaduraA revolução das mentalidades convulsionada em 1968 chegou com força

ao Brasil. E a luta pelos direitos femininos não foi diferente. Nesse período, desenvolvem-se as primeiras organizações de mulheres, embora o movimento feminista somente fosse se enraizar em solo brasileiro nas décadas de 1970 e 1980, em especial após a atuação da intelectual Rose Marie Muraro, autora, dentre outros, de Libertação sexual da mulher (Vozes, 1970).

O contexto em que o feminismo renasce aqui, no entanto, é diverso do norte-americano. Em 1968, o Brasil vivia um momento crítico do regime militar. Foi em dezembro desse ano que o então presidente Arthur da Costa e Silva de-cretou o Ato Institucional nº5 (AI-5), e a ditadura recrudesceu, em direção à censura e ao controle sobre os atos dos cidadãos.

Se nos Estados Unidos havia relativa tranqüilidade política para as mu-lheres reivindicarem mudanças nos padrões sociais e comportamentais, aqui, elas estavam mais inclinadas a fazer coro contra a ditadura e a participar de alianças pela redemocratização do país. “O discurso de enfrentamento do sexismo, do patriarcalismo e da misoginia (desprezo ou aversão às mulhe-

res) não tiveram a mesma ressonância naquele momento”, esclarece Bila Sorj.

Elas foram perseguidas e tachadas de subversi-vas. Seus nomes integravam as listas negras do re-gime militar. O feminismo era encarado como um perigo, era visto como um braço do comunismo. E, de fato, grande parte das mulheres organizadas simpatizava com as idéias socialistas.

Diferentemente do que ocorreu nos Estados Unidos, onde operárias, negras e imigrantes pouco se integravam aos grupos, compostos, em sua maioria, por mulheres ligadas à burguesia, no Brasil, o movimento feminista, apesar de marcado pela participação de mulheres de classe média e com alta escolaridade, conseguiu atrair a atenção

das classes populares: “o feminismo brasileiro, de imediato, adquiriu uma sensibilidade social incomum. Aqui, o foco das demandas sempre foi a questão dos direitos sociais e o interlocutor preferencial era o Estado. Para dar um exemplo, a luta pela legalização do aborto assume, aqui, uma perspectiva de luta por direitos reprodutivos, com todo o sistema público de saúde envolvido no atendimento. O discurso prevalecente não é o da luta por um direito, liber-dade individual de cada uma realizar o aborto, se assim o desejar. O discurso é do aborto enquanto problema de saúde pública. Assim, o feminismo por aqui sempre foi sensível às injustiças sociais”, afirma Bila Sorj.

40 anos depoisNão fossem, talvez, as feministas terem saído às ruas há 40 anos, procla-

mando em voz alta seus direitos e denunciando as desigualdades de gênero que lhes atribuíam uma posição inferior na sociedade, as mulheres do século XXI não desfrutariam da posição que ocupam. Hoje, elas trabalham, casam, se divorciam, exercem sua liberdade sexual e de gênero. O aborto já é permitido em países mais desenvolvidos, como França, Itália e Inglaterra. As condições de igualdade em relação aos homens ainda não foram completamente conquistadas, mas, cada vez mais, o espaço social da mulher se estende.

Diante dessas conquistas, as ações aguerridas da década de 1960 podem parecer ultrapassadas. Recentemente, Maria Elisa Cevasco, professora de Estudos Culturais da Universidade de São Paulo, declarou à imprensa que o feminismo foi derrotado. Para a pesquisadora, ele somente seria possível em uma sociedade que priorizasse os valores humanos e não os mercadológicos como faz a nossa. Mas, na opinião de Bila Sorj, o feminismo, como qualquer outro movimento social, sofre mudanças e adquire novos significados, o que não exclui a profunda transformação que ele promoveu nas ativistas de 1968. “Ele insere nas militantes uma forma diferente e bastante conflituosa de estar no mundo quando comparada às mulheres das gerações precedentes. Hoje em dia, já vivemos em uma sociedade transformada pela injunção do feminismo e certo modo de vida; liberdades e direitos adquiridos pelas lutas anteriores não são percebidos como tal, mas, de alguma forma, são naturalizados pelas novas gerações”, afirma a pesquisadora.

Superado ou não, o feminismo de 1968 deixou para a posteridade a lição: tabus são construções sociais e podem ser quebrados, porém, somente mediante a mobilização dos atores sociais, principalmente os que são alvo do preconceito.

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Quando publicou a sua ambiciosa obra, há 50 anos, o jovem Raymun-

do Faoro contava 33 anos e talvez não esperasse tão fria receptividade. Era uma época em que prevalecia uma determinada visão marxista na análise dos problemas brasileiros. A terminologia aparentemente bizarra de Os donos do poder, nas palavras do próprio autor, com o uso de con-ceitos do então desconhecido Max Weber, também teria causado estra-nheza em leitores – e, certamente, ojeriza a intelectuais de esquerda. Afinal, o livro sustentava a existência de uma camada de poder autônoma – o estamento burocrático – que não teria nada a ver com o domínio eco-nômico de classe sobre as instituições sociais. Ela seria o resultado da nossa pesada e longeva herança ibérica.

Se queria apenas polemizar com outras interpretações do Brasil e não logrou êxito de imediato, tam-bém seria impensável para Faoro o caminho inverso que percorreu a sua obra, tornando-se um marco do pensamento social brasileiro a partir dos anos 1970. Ao lado de obras como Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda, e A formação econômica do Brasil, de Celso Furtado, Os donos do poder – lançado pela Editora Globo, em 1958 – ganhou status de ensaio clássico acerca de nossas origens. No entanto, na data comemorativa de seus 50 anos, predomina o silêncio em torno da obra. “Essas grandes emprei-tadas intelectuais não são mais alvo de

Os donos do poder

Livro de Raymundo

Faoro completa 50 anos como

ensaio clássico de interpretação

do Brasil, mas anda longe

da celebração midiática e do

debate acadêmico.

Coryntho Baldez

Especial 1968

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reflexões. Hoje, o objeto de pesquisa tende a um olhar muito recortado da realidade”, ensaia uma explicação Cristina Buarque de Hollanda, do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ.

Geração pré-LattesA professora chama a atenção para

a tendência à compartimentalização do conhecimento, presente em várias áreas das Ciências Humanas e na ciência em geral. Por isso, considera que a ambição de entender o Brasil, de explicar o que foi e o que é “esse experimento político civilizacio-nal”, que não cabe mais na agenda da Ciência Política da atualidade. A produção ensaística que se fazia naquele tempo não era refém de ri-gores acadêmicos, assinala a doutora em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Em sua opinião, Darcy Ribeiro talvez tenha sido o último desses intelectuais intérpretes do Brasil – seu livro O povo brasileiro praticamente não tem nota de pé de página, lembra a pesquisadora. Esses intelectuais, segundo ela, não estavam preocupados em legitimar o discurso a partir de uma referência exaustiva a trabalhos que o antecederam. Eram de uma geração que ainda não estava colonizada pela obsessão da produção acadêmica. “São pensadores de uma geração pré-Lattes, que produziam porque queriam dizer alguma coisa”, analisa a cientista.

Autor de um artigo sobre o livro (revista Travessia, nº 1, 2000), Renato Lessa, professor de Teoria Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), lembra que Faoro herdou de Montesquieu, além da aversão ao despotismo, a pretensão de “abarcar, num lance geral, a complexa, ampla e contraditória realidade histórica” – como registra o próprio autor no prefácio à segunda edição da obra, de 1974. Segundo Lessa, o gigantismo do empreendimento de Faoro toma a for-ma de regressão quase infinita ao pas-sado. “A escolha desse tempo dilatado, que interpela a trajetória civilizatória portuguesa para além das aventuras de D. João I, define o espaço no qual Faoro apresenta sua concepção de História brasileira, percebida como um longínquo pesadelo”, ressalta o também coordenador do Programas de Pós-graduação em Ciência Política do Iuperj. É uma história que a todo o momento repõe os fatores do atraso, ”sobretudo quando involucra aspectos modernos”, acrescenta o professor.

Contudo, segundo Lessa, a exten-são gigantesca do livro encerra uma grande simplicidade. Uma única tese percorreria o texto, conectando frag-mentos e personagens que se dispõem ao longo do tempo. A existência histó-

rica brasileira seria marcada de forma indelével pelo selo da dominação patrimonial, transposta para o Brasil durante o processo de colonização. Essa marca derivaria – diz o pesqui-sador – do modo pelo qual o Estado Nacional português se afirmou. “Nascido da reconquista do espaço ocupado pelo Islã desde o século VIII, esse Estado inventa e constitui a Nação”, frisa Lessa. E Faoro aproxima esse momento inaugural a um cenário de governo despótico, cujo ator cen-tral é o estamento. O Estado, então, seria constituído como um “feixe de cargos”. O experimento social que daí resultou, complementa Renato Lessa, é um capitalismo politicamente orien-tado, no qual a acumulação material estará sempre associada à captura de recursos econômicos e patrimoniais por parte dos donos do poder.

Novo pessimismoAo comentar as categorias de aná-

lise utilizadas por Raymundo Faoro, Cristina Buarque de Hollanda regis-tra que ele contorna a abordagem mar-xista convencional. Qual? Aquela in-terpretação clássica que via o passado brasileiro como se-mifeudal e incapaz de criar as circuns-tâncias necessárias para o completo desenvolvimento da burguesia eco-nômica e do prole-tariado. As classes seriam amorfas, sem marcações ní-tidas e, portanto, não haveria claro antagonismo entre elas. “Como o Esta-do é tido como um reflexo dessa es-trutura econômica, o resultado é um Estado igualmente frágil, ainda não instrumentalizado por uma burguesia dominante coesa e estabelecida”, ana-lisa a professora. Nessas condições, Cristina afirma que a perspectiva do socialismo seria ainda mais distante porque a experiência capitalista, que deveria antecedê-lo, é ainda bastante precária: “o pessimismo do marxismo convencional era dessa ordem. Aí vem Faoro trazendo Weber e delineando outro tipo de pessimismo, mas que é bastante instigante”.

Ela explica que Faoro autonomiza a política, pensando-a sem as amarras marxistas de então – “via-se a política como uma espécie de efeito externo da vida econômica e não como ins-tância com vida própria”. Ao mesmo tempo em que autonomiza a política,

Os donos do poder

Especial 1968

Faoro tem um olhar muito denso para ela, não a isola como objeto de conhe-cimento. “É uma política que está im-buída em cultura e na sociedade”, ob-serva Cristina. Mas, simultaneamente, ele descola a política da sociedade, pensando no estamento burocrático como algo com vida própria. “É aí que vem o pessimismo de Faoro. Esse estamento burocrático é tido como meio autista com relação à dinâmica real da sociedade e se reproduz sem atenção àquilo que deveria ser o seu fim, o bem-estar da coletividade”, destaca a pesquisadora.

O autor de Os donos do poder bus-ca as origens desse vício constitutivo na formação do Estado português. Haveria um “iberismo entranhado em nosso modo de conduzir a política e esse é o lado angustiante de Raymun-do Faoro, que se traduz na idéia de que somos escravos do nosso passado e de que a realidade é imutável”, frisa Cristina Buarque, lembrando de uma passagem do livro em que Faoro afir-

ma que de D. João I a Getúlio Vargas perdura o mesmo regime político. É um princípio de permanência que choca e produz até certo imobilismo. Mas ela também está convencida de que Faoro lança mão de conceitos que têm enorme poder explicativo acerca da políti-ca brasileira atual, como o patrimo-nialismo, ou seja, a idéia de que pú-blico e privado são campos indistintos. “O brasileiro, inca-paz de enxergar a coisa pública como tal, é uma imagem que ainda povoa o imaginário social”,

destaca a cientista. Aliás, sobre recen-te escândalo de corrupção, Cristina lembra que, ao tentar persuadir o parceiro a cometer um ato ilícito, uma pessoa argumenta que o dinheiro a ser desviado não é de ninguém porque é público. “Nesse caso, o público não é de todos; é de ninguém. Nota-se aí claramente a inconsistência que essa noção de público tem. Mas a idéia de uma cultura política imutável acaba se tornando excessivamente vaga e nos aprisiona”, critica a professora.

Sabrina Evangelista, professora colaboradora do Programa de Pós-graduação em História Comparada do Departamento de História do IFCS, também concorda que o livro inau-gura uma interpretação que equivale a certo pessimismo em relação ao

desenvolvimentismo e à configuração das instituições políticas no Brasil. Em meio ao clima do pós-guerra, que girava em torno do paradigma democrático e do modelo de Estado ocidental, ela diz que Os donos do poder introduziu uma visão pessi-mista em relação ao futuro. Apesar da sabida desigualdade econômica, havia uma crença de que o sistema político pudesse estar a caminho de resolver os grandes problemas brasileiros, frisa Sabrina, doutora em Ciência Política pelo Iuperj.

A tese de Raymundo Faoro, segun-do ela, vai ser amplamente utilizada em benefício de uma liberalização ou de uma acusação mais clara contra a burocracia, que beneficiaria um esta-mento fundado na estrutura colonial portuguesa. A questão é saber - indaga a professora -, se esse aparato, por si só, é condenável ou foi a estrutura social que permitiu que ele pudesse ser instrumentalizado em benefício de uma elite. Na visão de Sabrina Evangelista, quando Faoro aponta o estamento burocrático como o instru-mento para a perpetuação dessa elite, ele também desqualifica a própria estrutura institucional desse Es-tado, que, em princípio, poderia parecer adequada ao desenvolvi-mento do Brasil.

Ética de princípiosEmbora tenha difundido a vi-

são de um destino inelutável para a nação, contra o qual qualquer luta seria vã, Raymundo Faoro foi crítico incisivo do autoritarismo. Em sua biografia, cabe um capítulo robusto a respeito da sua esperan-çosa luta pela anistia ampla, geral, irrestrita e pela redemocratização do país, quando presidiu a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), entre os anos de 1977 e 1979.

Para expl icar ess e aparente paradoxo, Crist ina Buarque de Hollanda levanta a hipótese de Raymundo Faoro ter sido adepto da ética de princípios de Weber, que considera mais importantes os valores (ou princípios) do que as vantagens materiais objetivas – ao contrário da ética da responsabi-lidade, que valoriza os resultados. Ela o identifica como um intelectual à moda antiga – “no bom sentido” –, do tipo em que deveríamos nos espelhar. Um intelectual que pro-duziu conhecimento e teve inserção na arena política, não atrelado ao campo teórico.

Uma das conseqüências da seg-mentação do conhecimento é essa separação entre pensar e fazer po-lítica. E Faoro, realça a professora, não quis apenas interpretar o Brasil, mas atuar politicamente. Nas duas dimensões, atuou com grandeza intelectual e entusiasmo exemplar.

Embora tenha difundido a visão de um destino

inelutável para a nação, contra o qual qualquer luta seria vã, Raymundo Faoro foi crítico incisivo

do autoritarismo. Em sua biografia, cabe um capítulo robusto a respeito da sua esperançosa luta

pela anistia ampla, geral, irrestrita e pela redemocratização do

país, quando presidiu a Ordem dos Advogados

do Brasil (OAB), entre os anos de

1977 e 1979.

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Versos emblemáticosinda menino, Geraldo Pedrosa de Araújo Dias escuta o que con-vencionam como vocação. As cordas do coração deste paraibano, nascido em setembro de 1935, pulsam desde sempre em ser cantor. Entretanto, quis o destino consagrá-lo compositor de toda uma geração. Antes de abraçar a sina, graças ao patrocínio de sua mãe grava um disco no qual imita Francisco Alves e Orlando Silva,

intérpretes populares dos anos de 1930 e 1940. Com a “bolacha” (disco de vinil) debai-xo do braço, percorre as rádios em busca de espaço. O sobrenome artístico deriva do prenome paterno José Vandregísilo, anunciado pela primeira vez em um programa da Rádio Roquete Pinto. Afirma a lenda que a numerologia confere o aval para Geraldo Vandré assim ficar conhecido no panteão da MPB.

A chegada da família ao Rio de Janeiro, em 1951, contribui decisivamente para a carreira de Vandré. Na então capital federal estuda com outro nordestino aspirante ao estrelato: João Gilberto. Os jovens chegam a planejar uma dupla para trabalhar em Porto Alegre, onde morariam em cima de uma boate. A mãe de Geral-do, entretanto, tinha outros sonhos para o filho que ingressa na Faculdade de Direito (FD) da UFRJ, enquanto o colega volta para a Bahia.

Paralelamente aos estudos de advocacia, curso que chega a concluir, participa do Centro Popular de Cultura (CPC), da União Nacional dos Estudantes (UNE), que defende o desenvolvimento de uma arte voltada para o povo. Neste efervescente ambiente, nasce o compositor que encon-tra, como primeiro parceiro, Carlos Lyra, com quem escreve os versos de “Quem quiser encontrar o amor” (1961).

Outra importante parceria de Geraldo, nesse período, configu-ra-se com o violonista Baden Powell, rendendo frutos como “Nosso amor”, “Fim de tristeza”, “Se a tristeza chegar”, “Rosa flor” e “Samba de muda”. Ainda longe da fama, interpretando “Samba em prelúdio”, de Baden e Vinicius de Moraes, Geraldo recebe inúmeros convites para apresentações e, assim, para deixar o emprego de fiscal da Companhia Federal de Abas-tecimento e se dedicar à música.

Segundo Regina Meirelles, professora do Departamento de Musicologia da Escola de Música (EM) da UFRJ, Vandré significa uma era de canções de protesto e um eco de seu próprio tempo. “Trata-se de um gênero existente na música brasileira que, após a Anistia, perdeu um pouco de sua força, mesmo com muitas coisas a serem reivindicadas. ‘Pra não dizer que não falei de flores’ – ou ‘Caminhando’ - torna-se um hino contra o regime militar e seguiu crescente durante a ditadura”, enfatiza Regina, frisando que “Sabiá”, música de Chico Buarque e Tom Jobim, não captava o sentimento do público naquela final do III Festival Internacional da Canção (FIC) de 1968. “Caminhando” é uma apologia à liberdade e os festivais tinham essa marca, além de ser uma vanguarda em comunhão com que estava acon-tecendo. O fato da arte ter inspiração política ou ter esta função engajada não a desqualifica, pelo contrário, a torna mais representativa”.

Regina destaca ainda a característica dos membros do CPC por valorizar ritmos e aspectos folclóricos do cancioneiro popular. Assim, em busca de uma estética musical, vem o primeiro elepê Geraldo Vandré (1964) com a toada “Fica mal com Deus” e “O menino das laranjas”, de Theo de Barros. O segundo disco viria logo em seguida com destaque à faixa-título “Hora de lutar” (1965).

Na era dos festivais, Vandré é um capítulo à parte. Em 1966, vence o II Festival da Música Popular da TV Excelsior com “Porta-estandarte”, composta em parceria com Fernando Lona. Um ano depois, comporia, novamente com Theo, “Disparada”, para dividir com “A banda”, de Chico Buarque, o título do festival de Música Popular da Record.

Na autobiografia Verdade tropical (Companhia das Letras, 1997), Caetano Veloso apresenta as suas impressões. “(...) magistralmente interpretada por Jair Rodrigues, era uma moda caipira modernizada e politizada com maestria composicional que dava uma dimensão épica. A retórica revolucionária aqui encontrava seu tom. É curioso esse empate, quando se tem em mente que aquela canção de Chico, que o fez definitivamente popular, está muito aquém de sua gran-deza como poeta e músico, enquanto a Disparada é muito superior ao que Vandré fez antes ou depois”.

Rodrigo Ricardo

Registre-se que o tropica-lista Caetano e Geraldo Vandré divergem diametralmente acerca da relação entre arte e política. Conflitos à parte, ambos são exilados, confirmando a introdu-ção de “Disparada”: “(...) Eu venho lá do sertão/ E posso não lhe agradar”. Há quem jure que os generais decre-taram o Ato Institucional no 5 (AI-5) por não suportarem o coro de “Caminhando” pelos quatro cantos da nação e a idéia dos brasileiros terem “os amores na mente, as flores no chão, a certeza na frente e a história na mão”.

Com 72 anos, Vandré vive recluso, faz viagens constantes

e prefere o silêncio, embora ainda componha. Em todo esse período, a única obra conhecida é “Fabiana”, composta em 1985 em homenagem à Força Aérea Brasileira (FAB). Seu endereço mais freqüente é em São Paulo.

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