gaelen foley - família knight 01 - o duque

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Belinda Hamilton, uma linda dama, se vê perseguida por um obcecado

baronete que a quer a todo custo.

Ele arrisca tudo para se vingar. . . Mas nunca planejou perder seu Coração

Conduzido para descobrir a verdade sobre a misteriosa morte de sua amada, o Duque de

Hawkscliffe tomará todas as medidas para desmascarar um assassino. Mesmo que isso signifique

comprometer sua reputação por envolvimento em um caso escandaloso com a mais provocante

cortesã de Londres, a desejável, mas distante Belinda Hamilton.

Bel usou sua inteligência e sagacidade, para encantar cavalheiros de títulos da cidade, enquanto

lutava para juntar os pedaços de sua vida novamente. Ela precisa de um protetor, de modo que

aceita o convite de Hawk, para se tornar sua amante apenas no nome. Ele não pede nada do seu

corpo, mas pede sua ajuda para enganar o mesmo homem que quebrou sua virtude.

Juntos, eles tentam a ira implacável da sociedade, até que sua arriscada charada se transforma em

uma atração perigosa, e Bel deve tomar uma decisão devastadora que poderá arruinar sua última

chance no amor. . .

Nota da Revisora: A mocinha, embora de boa família, acaba se tornando “má”, isto é, uma cortesã. O mocinho quer usá-la

como arma para vingar-se de um baronete que também é detestado pela mocinha. O tal bandido perseguiu

tanto a mocinha que ela acaba nessa vida. E sem nenhuma prática, só com traumas. O mocinho e a mocinha

se unem para dar caça ao tal. Mas, é claro, se apaixonam e o mocinho ensina uma porção de coisas boas

(ufa!) para a mocinha. Entretanto, ele terá de vencer muita coisa para poder ficar com ela. Um livro gostoso, com muito romance.

Edith.

Disponibilização: PRT

Revisão Inicial: Edith Suli

Revisão Final: Suzana Kraemer

Formatação: Dyllan Lira

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UM

Londres, 1814

Quando era um jovem de cabelos encaracolados, em plena viagem pela Europa fazia

muitos anos, apaixonou-se loucamente pela beleza, e por ela tinha se estabelecido em

Florença para receber lições de um autêntico professor italiano. Idealista e romântico, ele

tinha seguido as musas aladas para o sul, até a Baía de Sorrento, onde tinha ouvido pela

primeira vez o antigo refrão italiano: “A vingança é um prato que se serve frio”.

Agora era um ancião sem ilusões, distante e precavido como um pontífice curioso. A

beleza o tinha traído, mas, por estranho que parecesse décadas mais tarde o refrão siciliano

provou sua veracidade em um dia invernal na Inglaterra.

James Breckinridge, conde de Coldfell, um homem impecável de constituição

franzina, agarrou o punho de mármore de sua bengala com seus nodosos dedos, doloridos

pela constante chuva de abril. Desceu de sua luxuosa carruagem negra com ajuda de seu

lacaio enquanto outro criado o cobria com o guarda-chuva.

O silêncio do lugar, só perturbado pelo tamborilar da chuva, o fazia se lembrar de

uma igreja. Voltou-se lentamente, olhou para além dos rostos inexpressivos de seus criados,

para além da grade pontuda de ferro forjado, em direção ao cemitério de St. George em

Uxhridge Road, ao norte de Hyde Park. Fazia três semanas que tinha enterrado ali sua

jovem esposa. O monumento de mármore em sua memória se erguia, sob a fria e cinzenta

garoa, no lugar onde a colina formava uma curva verde, como uma agulha furiosa contra o

céu da cor da fumaça. Ao pé do monumento, justo onde Coldfell esperava encontrá-lo,

divisava-se a silhueta alta e poderosa de um homem; despenteado pelo vento e absorto em

seus pensamentos, sem parecer perceber o vento em rajadas que agitava seu capote negro.

Hawkscliffe.

A boca de Coldfell se converteu em uma fina linha. Tomou o guarda-chuva da mão

do lacaio.

— Não demorarei muito.

— Sim, senhor.

Apoiando-se em sua bengala, começou a lenta ascensão pelo atalho de cascalho.

Com sua postura pétrea e imóvel, similar ao monumento, Robert Knight, de trinta e

cinco anos, nono duque de Hawkscliffe, não deu mostras de perceber sua chegada.

Permaneceu em uma quietude digna de um pedaço de granito, com o olhar cravado nos

narcisos amarelos plantados na tumba, enquanto a chuva lhe batia no cabelo moreno e

ondulado em sua testa, deslizava em filetes frios por suas faces lisas e firmes, e gotejava por

seu duro perfil.

Coldfell fez uma careta ao pensar na intrusão pouco cavalheiresca que se dispunha a

fazer na intimidade daquele homem. Apesar de tudo, Hawkscliffe era o único membro da

nova geração a quem respeitava. Alguns membros mais conservadores da velha escola

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consideravam que suas ideias tinham um tom inquietantemente liberal, mas ninguém podia

negar que Hawkscliffe era muito mais homem que era o covarde do seu pai.

Esse era o motivo, refletiu Coldfell enquanto subia com dificuldade pelo atalho, pelo

qual o tinha visto converter-se em duque aos dezessete anos, administrar três grandes

propriedades rurais e criar virtualmente sem ajuda, quatro irmãos pequenos e rebeldes e uma

irmã. Mais recentemente o tinha ouvido pronunciar discursos na Câmara dos Lordes com

uma serenidade e uma eloquência que faziam com que todos os presentes se pusessem de

pé. A integridade de Hawkscliffe estava além de toda dúvida; sua honra era tão autêntica

como a de uma pessoa dos mais elevados méritos. Dentro do grupo dos jovens havia alguns,

como o estúpido sobrinho e herdeiro de Coldfell, sir Dolph Breckinridge, que consideravam

o virtuoso duque um intransigente; mas, na opinião das mentes mais sensatas e prudentes,

Hawkscliffe era, em uma palavra, impecável.

Era uma lástima ver como o tinha afetado a morte de Lucy.

Enfim, os homens viam em uma mulher o que queriam ver.

Coldfell pigarreou. Hawkscliffe, sobressaltado, estremeceu ao ouvir o som e se

voltou.

Uma emoção turbulenta brilhava em seus olhos escuros. Ao ver Coldfell, sua

expressão aturdida deixou transparecer uma pontada de culpa. Tendo em conta o caráter

íntegro do duque, não cabia dúvida de que se atormentava por ter desejado à mulher de um

velho amigo. Ele nunca tinha sido tão cavalheiresco. James o saudou com a cabeça.

— Hawkscliffe.

— Rogo-lhe que me desculpe senhor, mas ia agora mesmo — disse entre dentes,

baixando a cabeça.

— Por favor, fique, excelência — respondeu Coldfell, aliviando a tensão do

momento. — Acompanhe um ancião em um dia tão cinzento como o de hoje.

— Como desejar, senhor. — Entreabrindo os olhos ante a chuva, Hawkscliffe afastou

o olhar com inquietação e estudou o anguloso horizonte formado pelas lápides.

Coldfell avançou coxeando até a beira do atalho de cascalho amaldiçoando suas

doloridas articulações. Quando fazia bom tempo podia passar o dia inteiro caçando sem

cansar-se. Mas não tinha tido suficiente energia para Lucy, não é verdade?

Bom, ela tinha tido um funeral elegante em Londres, como teria gostado. Ao ter

morrido em sua casa situada nas imediações de Londres, teve um lugar no cemitério mais

exclusivo da cidade, com um monumento funerário de Flaxman e tudo, o máximo do bom

gosto, para o qual não economizou gastos. Ele devia pagar agora seu engano mais caro: “a

loucura de um velho”, pensou com amargura. A beleza era certamente sua fraqueza. Sem

melhores recomendações além de sua esplêndida cabeleira de um cobre intenso e as coxas

mais sensuais da cristandade, Lucy O’Malley, de vinte e seis anos, fazia-se de modelo para

artistas em Sheffield antes de persuadi-lo para que a convertesse em sua segunda esposa.

Ele tinha a feito jurar que manteria seu passado em segredo e lhe tinha proporcionado uma

mentira. Ao menos ela se comprometera sinceramente com isso, ansiosa como estava por

formar parte da alta sociedade.

Coldfell somente se alegrava de que não o tivessem obrigado a enterrá-la junto a

Margaret, sua primeira esposa, que tinha sido reverentemente depositada em Seven Oaks, o

pavilhão ancestral situado no condado de Leicester. Ah, a sábia Margaret, sua companheira

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de alma, cujo único defeito tinha sido sua incapacidade para lhe dar um filho.

— Lamento... Muito sua perda, senhor — disse Hawkscliffe com rigidez, evitando

seu olhar.

Coldfell lançou uma olhada furtiva ao duque e suspirou enquanto assentia com a

cabeça.

— Custa acreditar que se tenha ido. Era tão jovem, estava tão cheia de vida...

— O que vai fazer agora?

— Amanhã partirei para o condado de Leicester. Algumas semanas no campo me

fará bem, asseguro. — Uma visita a Seven Oaks também afastaria dele as suspeitas quando

aquele homem fizesse seu trabalho por ele.

— Estou seguro de que o reconfortará — disse Hawkscliffe de forma cortês e

automática.

Ambos permaneceram em silencio durante um longo tempo; Hawkscliffe, absorto em

seus pensamentos, e Coldfell, meditando sobre o desconforto de abandonar sua elegante vila

em South Kensington, com seu bonito hectare e meio de jardins esculpidos: o lugar onde

tinha morrido Lucy.

— “Deixem na terra para que brotem violetas de sua carne formosa e pura” —

recitou Hawkscliffe de forma apenas audível. Coldfell o olhou com pena.

— O discurso de Laertes na tumba de Ofélia.

O duque não disse nada; limitou-se a contemplar fixamente as letras gravadas no

monumento: o nome de Lucy, a data de seu nascimento e a de sua morte.

— Nunca a toquei – soltou bruscamente, voltando-se para Coldfell com uma angústia

impetuosa. — Dou-lhe minha palavra de cavalheiro. Nunca o traiu.

Coldfell sustentou seu olhar sem alterar-se, e a seguir assentiu com a cabeça como se

estivesse satisfeito, embora obviamente aquilo não fosse nenhuma novidade para ele.

— Ah, Robert — disse com ar grave ao cabo de um longo momento-, é tão estranha

a forma em que a acharam... Todo dia ia ao nosso lago desenhar os cisnes. Como é possível

que escorregasse? Pode ser que esteja confundido pela tristeza, mas não me parece que

tenha sentido.

— É impossível que escorregasse — disse o duque com veemência. — Era ágil...

Muito ágil.

Coldfell ficou surpreso por sua impetuosidade. Aquilo ia ser muito mais fácil do que

tinha pensado.

— Naquele dia seus criados lhe informaram de algo estranho, senhor, se me permite

a pergunta? — continuou o duque.

— Não.

— Alguém viu algo ou ouviu algo? Ela estava a um tiro de pedra da casa. É possível

que não ouvissem seus gritos de socorro?

— Talvez não tenha tido tempo de gritar antes de afundar na água.

Hawkscliffe se afastou novamente, franzindo os lábios de forma áspera.

— Senhor, eu tenho uma terrível suspeita.

Coldfell o observou em silencio por uns instantes.

— Tomara pudesse tranqüilizá-lo, mas temo que eu também tenha sérias dúvidas —

disse por fim.

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Hawkscliffe se voltou e ficou olhando-o de forma penetrante. Seus olhos escuros

brilhavam como as chamas do inferno.

— Continue.

— Não tem sentido. Não havia sangue na rocha com a qual dizem que... Golpeou a

cabeça. O que posso fazer? Sou um velho. Minhas pernas doloridas estão fracas. Não tenho

a força suficiente — disse lenta e enfaticamente — para fazer o que corresponde a um

marido.

— Eu o farei — prometeu Hawkscliffe.

O conde sentiu um estremecimento ao ver a determinação que refletiam os ardentes

olhos do jovem.

— De quem suspeita? — perguntou Hawkscliffe com uma ferocidade mal contida.

Coldfell nunca o tinha visto em um estado tão exaltado e impetuoso. Devia ocultar

seu regozijo. Tudo o que tinha que fazer era pronunciar o nome, facilitar um objetivo àquela

fúria agitada, e então Hawkscliffe se bateria em duelo e a víbora que o tinha atacado cairia

fulminada. Estava disposto a fazer com que os admiradores de Lucy se enfrentassem para

salvar a si mesmo e a Juliet, sua doce filha deficiente. Que outra coisa podia fazer? Tinha

quase setenta anos e cada dia se sentia mais fraco. Dolph estava na flor da vida; era um

caçador brutalmente dotado que estreou à tenra idade de nove anos com seu primeiro cervo.

Um tremor autêntico lhe sacudiu as pernas.

— Que Deus me perdoe — disse Coldfell entre dentes com um olhar de inquietação.

— De quem suspeita Coldfell? Sabe algo? Estou convencido de que não foi um

acidente, embora o juiz de instrução tenha dito isso. Você e eu não somos idiotas — disse

acaloradamente. — Ela esteve quatro dias no lago até que a acharam. Não há forma de saber

que outras coisas puderam lhe fazer antes de matá-la.

— Vejo que nossos temores são muito parecidos, Robert. Ambos pensamos que pôde

ter sido... Violada. Oh, Deus. — apoiou-se no Hawkscliffe, e o duque o segurou. — É pior

que a morte.

Hawkscliffe apertou sua pronunciada mandíbula.

— Rogo, senhor. Diga-me o que sabe.

— Não sei nada, Robert. Só tenho suspeitas. Uma vez Lucy me disse...

— Sim?

Coldfell se deteve. “Anseia castigar alguém, culpar alguém”, pensou, jogando um

olhar sagaz ao rosto de Robert e examinando suas feições como um artista que se preparava

para pintar um retrato. Era o rosto duro e nobre de um guerreiro. O cabelo escuro lhe caía

abundantemente na ampla fronte; sob as sobrancelhas, longas e negras como o carvão,

brilhavam uns olhos penetrantes com uma vontade férrea, tinha um nariz aquilino como o

bico de um falcão, e uma boca firme e sombria, embora houvesse em seus lábios uma

sensibilidade que cativava as mulheres.

— Disse-me que havia um homem que... Assustava-a.

— Quem era? — inquiriu Hawkscliffe.

Coldfell respirou fundo e afastou o olhar, consciente de que estava ditando uma

sentença de morte. Alegrava-se disso.

— Meu sobrinho, excelência — disse, com a serenidade de um italiano de pura cepa.

— Meu herdeiro, Dolph Breckinridge.

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— Laranjas! A um penny a peça, senhor. Obrigado, e que passe um bom dia! Quem é

o seguinte?

Estava tão fora de lugar no meio da agitação de um dia cinzento no centro de

Londres, como as laranjas brilhantes e doces que vendia na concorrida esquina de Fleet

Street e Chancery Lane, oferecendo-as como pequenos sóis aos ocupados cavalheiros

vestidos de negro que iam e vinham do mundo do governo ao das finanças: Westminster e o

centro econômico da cidade, respectivamente. Empregados de bancos e advogados,

jornalistas, escritores, alfaiates, lojistas respeitáveis; inclusive um diácono que ia a toda

pressa para o St. Paul e que parou em seco ao vê-la e, como o resto das pessoas, sentiu-se

irresistivelmente atraído por ela.

Se a senhorita Belinda Hamilton era consciente de que havia uma qualidade

indecifrável em sua pessoa que fazia com que o tráfego masculino se detivesse, não

mostrava o menor sinal disso; era toda seriedade e eficiência contando o troco com seus

dedos avermelhados pelo frio que apareciam por umas luvas puídas, decidida a confrontar

sua queda com a elegância resignada de uma autêntica dama.

Meses antes tinha estado na Academia para Jovens Damas da senhora Hall

preparando moças de risada tola para sua apresentação à sociedade; agora estava ali, quase

no limite da respeitabilidade, aferrando-se com tenacidade unicamente pela força de seu

orgulho.

Uma mecha ruiva como o trigo caiu sobre sua face rosada quando ergueu a vista para

seu cliente e lhe deu o troco com um viçoso sorriso, cansado, mas alegre.

— Laranjas! Quem é o seguinte, por favor?

Um de seus clientes habituais deu um passo adiante; tratava-se de um advogado

corpulento de um dos escritórios próximos. Sua roupa negra ondeava ao vento, e lhe

dedicou um sorriso insípido enquanto segurava a peruca de advogado em sua enorme

cabeça para evitar que saísse voando. Lançou-lhe um olhar de cima abaixo.

Bel afastou a vista e selecionou uma laranja grande e reluzente para ele. Esfregou-a e

tirou-lhe brilho com o extremo de seu avental e, reprimindo seu tremendo orgulho mediante

um esforço de vontade, estendeu a mão em espera.

— Um penny, senhor — disse suspirando.

O advogado vacilou e lhe entregou algo que não era uma moeda, mas sim uma nota

que esteve a ponto de sair voando. Bel franziu o cenho e o olhou de perto. Vinte libras!

Conteve um grito abafado de assombro e apertou a nota contra a palma suada de sua mão,

enojada, apesar de que aquela quantidade equivalia praticamente à soma que ganharia com

três meses de trabalho.

— Não, senhor. Não.

— Não? — repetiu ele, com um brilho em seus olhos pequenos. — Simplesmente

pense-o, querida.

— Senhor, ofende-me — respondeu, lhe dedicando um gesto glacial como se fosse

uma baronesa em um salão e não uma garota desesperada e virtualmente sem um penny, só

nas ruas da grande cidade.

— Dobrarei a quantidade — sussurrou o homem, aproximando-se.

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Ela ergueu o queixo.

— Não estou à venda.

O homem bochechudo ficou vermelho como um tomate ante aquele olhar imponente

e desdenhoso. Partiu correndo cheio de vergonha, com a peruca colocada de lado. Bel

estremeceu ligeiramente, coçou a testa para recuperar a compostura e se voltou para atender

a toda pressa os outros clientes. Não tinha demorado muito para dar-se conta de que nem

todos desejavam comprar laranjas, um fato que se permitiu passar cortesmente por alto.

Quando partiu o último cliente, inclinou-se sobre a grande cesta ovalada e começou a

colocar as laranjas em filas ordenadas.

— Ei, jovenzinha — gritou um dos vendedores ambulantes de rosto sério que havia

do outro lado da rua. — Não iremos deixar que você permaneça em nossa esquina, boneca.

Temos bocas a alimentar. Está nos deixando sem clientes.

— Por que não vai ganhar dinheiro de verdade? — chiou seu companheiro. — Por

que vender laranjas quando poderia tirar mais com seus bonitos pêssegos?

Os dois riram a gargalhadas de sua graça como se fossem uns bêbados.

— Calem-se, cretinos! — replicou ela em um tom briguento que teria escandalizado

suas alunas na academia da senhora Hall. Entretanto, em realidade, a grosseria era a única

coisa que entendiam aquelas criaturas grosseiras e vulgares. Aquela gente interpretavam as

boas maneiras como um sinal de fraqueza ou covardia... E em suas circunstâncias era

imprescindível não mostrar medo.

— Este não é seu lugar, dona Finória. Cedo ou tarde se converterá na amante de

algum rico.

— Sou a filha de um autêntico cavalheiro!

— É exatamente o que parece com esses farrapos.

Os dois homens riram a gargalhadas, e ela lançou um olhar ao redor com uma

vergonha digna de uma dama, bem a tempo para ver como o pequeno Tommy, o varredor,

quase era atropelado por uma carruagem de aluguel. Seu irmão Andrew o pegou pelo

cangote e puxou-o com força bem a tempo. Bel soltou um suspiro ao ver que se salvava por

milagre, e conteve a irritação.

— Andy! Tommy! — chamou-os.

— Olá, senhorita Bel! — responderam os dois meninos travessos e desnutridos,

saudando-a com a mão.

Ela lhes fez gestos para que se aproximassem. Estiveram a ponto de meter-se entre as

rodas de uma carreta pesada, e quando chegaram ao outro lado da rua e ficaram a salvo, ela

os repreendeu por serem tão pouco cuidadosos. Depois deu a cada um alguns pennies e uma

laranja. Com semblante preocupado, viu como os dois moços retornavam ao trabalho,

Tommy, cortando sua laranja, e Andrew, empregando todo seu encanto jovial com o fim de

convencer um cavalheiro com cartola de que o deixasse varrer o cruzamento antes de

passar.

Ela achava que sua própria sorte era funesta até que descobriu a aqueles moços. Para

ela foram uma inspiração, com seus corações alegres e seu espírito despreocupado apesar

das condições infernais que suportavam. As ruas estavam infestadas de meninos como eles,

sem lar, descalços, meio nus e famintos. Não se deu conta da autêntica e terrível dimensão

do problema até uma noite gélida de janeiro em que Londres ficou coberta pela maior

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tempestade de neve que se recordava. Enquanto os ricos celebravam um festival de inverno

no Tâmisa gelado, ela foi procurar Andrew e Tommy com a intenção de levá-los ao cômodo

do desmantelado bloco de pisos em que se alojava para que, pelo menos pudessem estar

debaixo de um teto. Procurou por toda parte e finalmente uma moça arisca lhe indicou um

edifício escuro que parecia um armazém vazio. Uma vez dentro, ergueu sua lanterna e

contemplou uma massa trêmula de meninos amontoados. Devia haver uns setenta.

Quando deu com o Andrew, este lhe explicou que se tratava de um albergue. O moço

não teve que lhe dizer o que sua mente adulta compreendeu imediatamente: ali os meninos

aprendiam a serem ladrões, e as meninas, prostitutas. Aquele era o momento mais espantoso

e terrível que tinha vivido em seus vinte e três anos. Durante sua etapa como dama refinada

no condado de Oxford não tinha imaginado em nenhum momento um pesadelo semelhante.

O pior de tudo era o pouco que ela podia fazer para ajudar. Não tinha a arrogância

suficiente para lhes dizer que não roubassem quando estavam famintos. O maior crime,

entretanto, cometia-o o desumano código penal, que enviava à forca qualquer menino maior

de sete anos por ter roubado cinco miseráveis xelins. Tudo o que ela podia fazer além de dar

uma mão às sociedades de beneficência, era dar seu carinho àqueles desgraçados, cuidar

deles o melhor que pudesse e aborrecê-los para que fossem à igreja.

Viu como Tommy, se caía um pedaço de laranja no chão, rapidamente o recolhia,

limpava-o com seus dedos imundos e o metia na boca. Ela soltou um suspiro e se voltou

justo no momento em que um faetonte luxuoso que lhe era muito familiar dobrava a esquina

e se aproximava dela.

Seu rosto empalideceu. Fez-se um nó no seu estômago vazio. Inclinou-se

rapidamente e levantou a cesta entre seus braços enquanto o estrondo dos cavalos se fazia

cada vez mais forte.

“Meu Deus, não deixe que me veja, por favor.”

Enquanto partia a toda pressa carregando sua cesta, o brilhante faetonte reduziu a

velocidade e se deteve a altura dela com um tinir de rédeas. Ela apertou os dentes,

consciente de que daria a seu atormentador uma enorme satisfação ver que ia correndo. Era

melhor ficar e manter-se firme, por muito desagradável que fosse a longa batalha que

travariam. Voltou-se lentamente preparando-se para o combate, enquanto sir Dolph

Breckinridge, vestido de forma extravagante, saltava de sua limusine com seu indispensável

charuto pendurado a um lado da boca.

Deixando o faetonte nas mãos de seu cavalariço, que tinha um olho arroxeado,

aproximou-se dela com ar fanfarrão. Era um homem alto, bronzeado e musculoso, com o

cabelo loiro cortado sem cuidado. Ao sorrir, o charuto se balançou entre seus dentes,

brancos e afiados; era a viva imagem do que havia descrito as garotas da academia da

senhora Hall como “um homem repugnante”.

— Não se aproxime de mim com isso — lhe advertiu ela.

— Sim, senhora — respondeu o homem; nesse dia lhe divertia a ideia de obedecê-la.

Atirou cuidadosamente o charuto ao chão e o pisou com uma de suas caras botas de

cor champanha brilhante e a seguir se dedicou a segui-la... Como tinha estado fazendo

durante os últimos oito meses. Sir Dolph estava obcecado com ela de forma absoluta e

destrutiva desde o princípio do outono do ano anterior. Ela não tinha nem ideia do por que.

Talvez fosse próprio de ele fixar-se em um objeto até que conseguisse apanhá-lo ou destruí-

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lo. Só tinha certeza de uma coisa, tudo o que lhe tinha ocorrido era culpa daquele homem.

Desviou-se com uma expressão indiferente e seguiu caminhando, carregando a cesta

de laranjas. Podia cheirar sua presença atrás dela. Sempre usava muita colônia.

— Vai a alguma parte, querida?

Bel se limitou a lhe lançar um olhar desdenhoso e avançou em direção aos

transeuntes.

— Laranjas!

O brilhante sorriso do homem se alargou e revelou seus dentes trincados, produto de

uma de suas inumeráveis brigas, assim como seu nariz inclinado.

Dolph estava orgulhoso de suas feridas de guerra. Carente do menor sentido do

decoro, costumava tirar a roupa à menor provocação, para impressionar com suas ilustres

cicatrizes todo aquele com quem topava. Estava especialmente orgulhoso de uma que

atravessava obliquamente seu peito musculoso e que tinha sido causada por um urso ao

golpeá-lo durante uma caçada nos Alpes. Bel tinha visto a cicatriz. Ele a tinha mostrado na

noite em que se conheceram o que tinha provocado nela pasmo e embaraço, pois ambos se

achavam em um baile. Ela só desejou que o urso tivesse sido mais atrevido.

Dolph esfregou as mãos e fingiu um calafrio.

— Hoje faz frio. Aposto que tem fome.

— Laranjas! Laranjas doces e frescas da ensolarada a Itália!

— É sua última oportunidade para vir a Brighton comigo. Parto amanhã. Não haverá

nenhuma outra mulher presente, se for o que a preocupa. — Permaneceu a espera, mas ela

seguiu sem lhe fazer caso. — A amante do regente vai dar uma festa na casa da costa. Meus

amigos e eu estamos convidados...

— Laranjas! A um penny a peça!

Dolph grunhiu, irritado.

— Não significa nada para você que a tenha escolhido entre todas as mulheres do

mundo?

— Se vier me incomodar todos os dias, pelo menos poderia comprar uma laranja.

— Um penny, não é? Sinto muito, não tenho dinheiro trocado — disse ele com um

risinho. — As laranjas me produzem urticária. E, além disso, por que deveria ajudá-la? É

muito má, sempre está fugindo de mim. Quanto tempo mais vai me fazer esperar?

— Até que dê resultado — murmurou ela, enquanto carregava com a cesta pela rua.

Dolph avançou atrás dela e riu com gosto. Seu cavalariço conduzia o faetonte,

seguindo-os pela rua a uma distância respeitosa.

Bel afastou a vista desesperada, ansiosa por vislumbrar um uniforme escarlate entre a

multidão e ver seu querido e voluntarioso Mick Braden aproximar-se dela de volta da

guerra. Agora era o capitão Mick Braden, pois tinha demonstrado seu valor nos campos da

França. Bel pensou, com uma onda de orgulho, no jovem e presunçoso oficial de sua cidade

natal, Kelmscot; o homem com quem mais ou menos tinha planejado casar-se desde que

completara dezesseis anos.

— Bel, querida, é uma presa muito digna, mas já é hora de pôr fim ao jogo. Já

demonstrou que é tão geniosa como teimosa, e tão inteligente como formosa. Fez frente a

cada um meus movimentos com uma energia admirável. Aplaudo-a. E agora pelo amor de

Deus, deixa de tolices e venha comigo para casa. Está se desrespeitando.

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— É um trabalho honrado — replicou ela, apertando os dentes. — Laranjas!

— Acaso duvida de meu carinho?

— Carinho? — Bel se voltou para ele e deixou a cesta no chão com tanta brutalidade

que as laranjas saíram rolando. — Olhe o que nos fez, a mim e a meu pai. Quando alguém

se interessa por outro não lhe arruína a vida!

— Afastei-a daquela vida para lhe dar uma melhor! Vou convertê-la em condessa,

mocinha ingrata.

— Não quero ser condessa, Dolph. Só quero que me deixe em paz.

— Oh, estou farto de você e de seus ares — disse ele com desprezo, agarrando a por

um braço. — É minha. Só é questão de tempo.

— Me solte agora mesmo.

Dolph lhe apertou com força o braço.

— Esta vez nada vai evitar que a recupere, Bel. Não se dá conta? Meus atos

demonstram meu amor por você.

— Seus atos demonstram que é egoísta até extremos inimagináveis.

O homem entrecerrou os olhos, furioso.

— Seja boa...

— Boa? — gritou ela quando Dolph lhe soltou o braço, e se afastou com um puxão.

— Fez que encerrassem meu pai no cárcere e que me despedissem da academia. Perdemos

nossa casa!

— E agora pode recuperar tudo... Só fazendo assim! — Estalou seus dedos, em luvas

de couro, olhando-a lascivamente. — Renda-se. Diga que vai ser minha esposa. Desta vez

não pode ganhar, Bel. Não é que minha proposta seja desonesta, que digamos... Já não é—

acrescentou carrancudo.

— Supõe-se que vai casar-se com a filha de lorde Coldfell.

— Que faço eu com uma mulher boba e surda-muda? Acredito que mereço algo

melhor.

— Dolph, isso é muito pouca consideração de sua parte. Já sabe que estou

comprometida com o capitão Braden — disse, modificando ligeiramente a verdade, pois sua

longa relação não era realmente um compromisso formal.

— Braden! Não mencione esse nome. Não é ninguém! Provavelmente esteja morto.

— Está vivo. Vi seu nome na lista do Time depois da batalha de Toulouse.

— Onde está então, Bel? Onde está seu herói? Em Paris? Celebrando a volta do rei

Luis com as putas francesas? Porque não o vejo por aqui, se é que tanto a quer.

— Virá — disse ela, com mais convicção do que sentia.

— Perfeito, porque estou desejando conhecer esse tipo e lhe dar uma boa surra. Não

se casará com ele.

— Pois tampouco me casarei com você. Conheço-o muito bem. — E, segurando a

alça da cesta com um braço, levantou o queixo e seguiu caminhando.

— É uma orgulhosa — disse ele com um repentino e perigoso desprezo que

conseguiu transformar em um sorriso tenso e destemperado. — Muito bem, continue se

negando a ceder. Pode ser que hoje ainda resista. Mas logo cederá.

— Nunca. Está perdendo tempo.

— A doce, boba e formosa senhorita Hamilton. — Dolph percorreu seu corpo com o

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olhar de forma possessiva. — Diz que me conhece. Não se dá conta de que quanto mais

fugir, mais aumentará meu desejo de persegui-la?

Bel deu um passo atrás e pegou uma laranja, com a vaga intenção de atirá-la para que

ele fosse embora.

Com um brilho especial nos olhos e um sorriso afetado nos lábios, Dolph tirou outro

charuto.

— Até a próxima semana, querida. Vou passar umas semanas em Brighton, mas pode

descansar tranquila, voltarei.

Acendeu o charuto, exalou a fumaça em direção a ela e se voltou para subir em seu

faetonte. E soltando um rugido, fustigou seus medrosos cavalos, que imediatamente

começaram a trotar a galope.

Sobressaltada pelo estalido do couro, Bel conseguiu manter a serenidade até que o

elegante faetonte se afastou. Os dois vendedores ambulantes que estavam do outro lado da

rua, zombaram dela com gritos, umas brincadeiras que estavam começando a cobrar uma

nova e temerosa consciência. Fez caso omisso deles, engoliu em seco e percorreu a rua com

os olhos, rezando para divisar o elegante uniforme, mas até o momento continuava sem

haver rastro de seu salvador. Quando vendeu o resto das laranjas chegou a hora da visita

diária a seu pai na prisão de Fleet, onde estava encarcerado desde o Natal por uma pequena

dívida de pouco mais de mil libras. O trajeto até a gigantesca prisão de tijolo vermelho na

Faringdon Street era longo e frio, e a cada passo Bel gastava um pouco mais as solas furadas

de suas botas de couro de pelica. Enquanto caminhava sonhava com a casa de campo cálida,

confortável e de cor de rosa em que tinha vivido no Kelmscot, um pitoresco povoado

situado junto ao Tâmisa, a vários quilômetros de Oxford.

Seu pai era um cavalheiro erudito e, para falar a verdade, um tanto excêntrico. Nada

agradava mais ao Alfred Hamilton que passar o tempo estudando os antigos manuscritos do

Iluminismo que constituíam sua verdadeira paixão, ou frequentar a impressionante

Biblioteca Bodleian, da Universidade de Oxford. Ela e seu pai levavam uma vida tranqüila e

plácida que se movia ao majestoso ritmo do rio, mas um bom dia apareceu Dolph e

intimidou os credores de Hamilton para que o processassem por suas dívidas não pagas. Ele

sempre era despreocupado com essas coisas. Bel tentou ocupar-se dos problemas

financeiros da casa, mas, como um menino culpado, seu pai lhe tinha ocultado o quão

seriamente comprometido se achava a economia familiar por culpa de seu incontrolável afã

por possuir todos os manuscritos da época do Iluminismo que encontrava. De modo que em

pouco tempo foi parar na a prisão de Fleet.

Bel mudou precipitadamente para Londres para estar perto dele, e achou trabalho na

academia da senhora Hall com a esperança de aliviar seus problemas, mas então Dolph as

convenceu que a despedissem. Ele queria que ficasse necessitada e privada de recursos, de

modo que não teria ficasse mais opção senão lhe pedir ajuda. Bel sacudiu a cabeça para si

mesma enquanto caminhava. Aquilo era algo que nunca faria.

Quando a enorme entrada em forma de arco da prisão de Fleet apareceu entre os

elevados muros do cárcere, Bel ficou nervosa e começou a ensaiar mentalmente a súplica

que ia levar ao administrador para que lhe concedesse um crédito durante quinze dias,

depois dos quais ela poderia pagar inteiramente os gastos da habitação de seu pai.

A dúvida a atormentava enquanto avançava penosamente para as imensas portas da

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entrada. Sendo realista, sabia que as possibilidades de que seus rogos comovessem ao

enorme administrador com o rosto atravessado por uma cicatriz eram limitadas. Nem sequer

o próprio Senhor retorcendo-se na cruz teria comovido ao administrador da prisão de Fleet,

um homem que se curtiu fiscalizando prisioneiros na colônia penitenciária de Nova Gales

do Sul, segundo ela tinha ouvido. Dizia-se, inclusive, que se ocupara dos cárceres de

mulheres, de modo que Bel não esperava um trato humanitário apoiado em sua condição de

dama de linhagem.

Os diferentes carcereiros e guardas a conheciam de suas visitas diárias. Um deles a

conduziu através do longo vestíbulo. Ao aproximar-se do escritório do administrador, Bel

ouviu sua voz rouca e grave através da porta aberta, enquanto insultava em tom vulgar um

de seus subordinados, citando códigos e normas como um tirano mesquinho.

Tremeu ante a ideia de ter que solicitar uma graça a um homem assim.

Quando o guarda entrou com ela no escritório, os esvaídos olhos do administrador,

carentes da menor emoção, piscaram ao vê-la. Estava de pé atrás de sua escrivaninha, um

homem grande, quadrado e robusto, com a pele tão bronzeada e curtida como uma sela.

Uma cicatriz esbranquiçada e rosada lhe sulcava uma sobrancelha e uma face e se deslizava

até a mandíbula. Levava um pesado aro com chaves pendurado no cinto, junto com a pistola

e o porrete. Fez um gesto a Bel com a cabeça quando entrou, e ela pôde sentir como a

seguia com o olhar.

Quando o guarda a levou à cela de seu pai se estremeceu, embora conhecesse bem o

caminho. Ao chegar à sólida porta de madeira, entregou ao guarda a moeda obrigatória. O

homem a meteu no bolso com um sorriso lisonjeador e, a seguir, virou a chave e a deixou

passar.

Quando entrou, achou seu pai, Alfred Hamilton — sonhador, violinista, estudioso da

Idade Média — absorto, estudando os estranhos e preciosos manuscritos que tinham caído

em suas mãos no cárcere para devedores. Usava óculos redondos apoiados no nariz. Tinha

os cabelos brancos como a neve, revoltos e encrespados, e as mechas apareciam sob sua

querida face em todas as direções.

— Olá — disse ela, divertida.

Ao ouvir sua saudação, ele ergueu a vista surpreso e sobressaltado, e retornou ao

século atual. Um sorriso apareceu em seu enrugado e rosado rosto, como se não tivesse

visto sua filha no próprio dia anterior, e o anterior a este.

— O que é essa luz que entra pela janela? Vá, se for a bela Linda!

— Oh, papai. — aproximou-se dele dando grandes passadas e o abraçou. Ele a

chamava “a bela Linda” desde que era uma criança, era algo típico dele. Sentou-se de novo

em seu tamborete, enquanto ela permanecia de pé junto a ele e lhe dava tapinhas

carinhosamente no ombro.

— Como o trataram hoje? Jantou já?

— Sim, guisado de cordeiro. Receio que vou tornar-me irlandês com tanto cordeiro –

exclamou ele, dando-se palmadas na coxa enquanto ria entre dentes. — Como eu gostaria de

comer um bom bife inglês. Ah, carne de vaca guisada e uns pãezinhos como os que

costumava fazer... O paraíso!

— Bom, se tornar-se irlandês acabasse com suas desgraças, eu estaria encantada.

Parece animado.

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— Sempre o estou, querida, sempre, embora aqui nem todos possam dizer o mesmo.

Esta tarde saí ao pátio e vi tantos rostos compridos que me pus a tocar o violino para

entreter a todo mundo com um pouco de ar do norte. Em pouco tempo alguns inclusive se

puseram a dançar. Confesso que recebi uma calorosa ovação.

— Bem feito! — disse ela rindo. Sabia que o velho Albert tinha cativado a maioria

dos guardas e a todos os detentos com seu caráter alegre e doce, sua forma de tocar o

violino e suas histórias sobre a antiga cavalaria e sobre dragões, cavalheiros e donzelas que

ajudava a passar as horas de interminável aborrecimento de quem permanecia ali encerrado.

De momento já tinha conseguido que os detentos mais fortes e alguns dos guardas

mais amáveis cuidassem dele, mas a prisão de Fleet não era um clube de cavalheiros, e seu

cavalheiresco pai nunca se viu em um lugar semelhante. Com a cabeça assediada por

semelhantes pensamentos, a risada de Bel diminuiu.

Ele colocou os óculos na ponta do nariz e a olhou com olhos míopes.

— Vamos, conheço esse olhar. Não tem que preocupar-se por mim, pequena

rapariga. As nuvens se afastarão, sempre o fazem. Só tem que cuidar de você e de suas

jovens alunas. A profissão de professora é a mais nobre do mundo civilizado. Quando suas

bobas debutantes tiverem aprendido as posturas corretas e a forma de caminhar, lembre-se

de lhes dizer que a nenhuma dama aconteceu nada por agarrar o livro que sustentam na

cabeça e abri-lo para variar. Como eu ensinei a você.

— Sim, papai. — Afastou a vista.

Seu pai era um otimista contumaz, mas sem dúvida não estaria tão alegre se ela não

lhe tivesse escondido a verdade. Decidida a conseguir que não se preocupasse, dedicou-se a

manter as aparências e a fazer boa cara. Não lhe havia dito uma palavra de sua injusta

demissão da academia da senhora Hall.

— Não se esqueça da frase de Milton — acrescentou seu pai-: “A mente é um âmbito

próprio, e pode fazer do inferno um céu, e do céu um inferno”. Quando você olha estas

quatro paredes vê uma cela, mas eu vejo... O estúdio de um feiticeiro — afirmou com um

amplo sorriso.

— Oh, papai, é que... Não sei como vou tirá-lo daqui. É muito dinheiro. É meu pai e

nunca lhe reprovaria, mas às vezes desejaria... Que tivesse vendido os manuscritos em vez

de doá-los à Biblioteca Bodleian.

Seu pai franziu suas grossas sobrancelhas e lhe lançou um raro e severo olhar de

desaprovação.

— Vendê-los? Pelo amor de Deus, filha. Pensa no que acaba de dizer. São obras de

arte de um valor inestimável que resgatei as mãos de comerciantes sem escrúpulos. Pode-se

vender a beleza? Pode-se vender a verdade? Esses livros pertencem à humanidade.

— Mas para comprá-los gastou o dinheiro reservado para o aluguel da carruagem e

da comida, papai.

— E sou eu quem vai pagar por seus princípios, não é assim? Nesse sentido me

considero em boa companhia: São Paulo, Galileu... Bom tem tudo o que necessita, não é? A

academia lhe proporciona uma habitação e comida, e ali tem outras garotas com quem falar.

— Sim, sim, mas...

— Então não se preocupe por meu bem-estar. Nesta vida todos pagamos o preço de

nossas decisões. Não me dá medo o que me proporcionar o destino.

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— Sim, papai — murmurou Bel, abaixando a cabeça. Zangou-se ao ouvir ingênuo

sermão, mas não lhe ocorreu lhe dizer que vivia comodamente em seu estúdio de feiticeiro

graças ao constante trabalho e os sacrifícios dela. Em lugar disso, decidiu pôr fim a sua

visita. Sem dúvida ele estava ansioso por voltar para seu trabalho naquele texto deteriorado.

Beijou-o obedientemente na face e lhe prometeu que voltaria no dia seguinte. Deu-lhe um

tapinha carinhoso na cabeça e a seguir o guarda a deixou sair.

Bel recuperou o ânimo enquanto seguia ao guarda por debaixo da escada. Era o

momento de enfrentar ao administrador da prisão. A porta traseira do longo vestíbulo estava

aberta. Viu como os detentos saíam do pátio arrastando os pés para retornar a suas celas.

Tinha começado a chover de novo. Lançou um suspiro de desgosto ao pensar em suas botas

furadas e no longo caminho de volta a casa.

Deu-lhe um tapinha no ombro do guarda.

— Posso falar um momento com o prefeito em privado, por favor?

— Claro senhorita. Estará encantado de reunir-se com você... Em privado — disse o

guarda com um olhar malicioso e cúmplice.

Bel o olhou com o cenho franzido, mas um instante depois se achava no interior do

escritório. O gigantesco administrador ficou em pé quando ela entrou, mas não sorriu. O

guarda fechou a porta ao sair.

— Obrigado por me receber — disse nervosa. — Sou a senhorita Hamilton. Meu pai,

Alfred Hamilton, está na cela cento e doze B. Importa-se que me sente?

O administrador assentiu com a cabeça com ar marcial. Bel se sentou com cuidado na

cadeira situada do outro lado da escrivaninha e deu uma olhada ao redor daquele escritório

pequeno, escuro e lúgubre. Havia rifles colocados nas paredes, uma caixa de munição

fechada e um chicote para touros enrolado que pendia de um prego.

— Qual é o problema? — perguntou ele em tom brusco e impaciente, com um

sotaque australiano em sua voz rouca. Aquele homem a deixava nervosa.

— Bom, senhor, verá... O caso é que... Temo que este mês não consiga pagar o

dinheiro da cela de meu pai. O... Sinto-o muito, e lhe prometo que não voltará a acontecer,

mas se pudesse me dar um prazo de quinze dias só por esta vez, poderia pagar-lhe tudo...

Vacilou ao ver que aquele rosto curtido se endurecia. A julgar por seu olhar cético,

parecia que albergava a ligeira suspeita de que gastara o dinheiro em genebra ou em outra

coisa igualmente desonrosa.

— Esta não é uma casa de empréstimos, senhorita.

— Entendo-o, mas... Com certeza se pode fazer algo. — Tentou lhe dedicar um

sorriso encantador. — Tenho vários trabalhos, mas uns amigos necessitavam sapatos para o

inverno... — Sua voz se apagou. A expressão do homem lhe indicava claramente que não

queria ouvir suas desculpas. — Estou em uma situação bastante desesperada, senhor. Isso é

tudo.

— Não tem nenhum homem que possa ajudá-la? Irmãos? Tios? Um marido?

— Não senhor, eu não tenho ninguém.

O administrador baixou a vista.

— Bom, vamos dar uma olhada. — As chaves tilintaram quando se sentou em sua

escrivaninha e começou a folhear o livro maior, a seguir indicou uma coluna. — Parece que

é a primeira vez que há atrasos em sua conta.

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— Certamente faço tudo o que posso — assentiu ela, ao ver uma débil faísca de

esperança.

— Hum. — O homem lhe lançou um olhar, e seus olhos frios e viciosos emitiram um

brilho que fez que Bel retrocedesse ligeiramente. Vamos ver. — Acariciou a cicatriz. —

Tendo em conta as circunstâncias, tenho certeza de que podemos chegar a um acordo

satisfatório. Deixe que eu pense. Jones! — rugiu bruscamente, chamando a seu ajudante. —

Traz minha carruagem para a senhorita.

— Como? — disse ela, com os olhos muito abertos.

Ele não a olhou até que seu ajudante desapareceu.

— Observei que vem a pé todos os dias, senhorita Hamilton. E agora está chovendo.

Meu ajudante a levará a casa.

— Agradeço senhor. É muito amável, mas não é necessário...

— Claro que o sou. Que tenha um bom dia.

Depois de despedir-se sumariamente dela, o administrador da prisão de Fleet

retornou a seu trabalho.

— Que tenha um bom dia — -respondeu ela de forma vacilante, ficando em pé. E,

franzindo o cenho com inquietação, voltou para a parte dianteira do cárcere. Não queria

aceitar o passeio na carruagem. Era algo muito pouco decoroso. Mas, por outra parte,

tampouco queria ofender a aquele homem, pois o destino de seu pai estava em suas mãos.

Mordeu-se o lábio com indecisão sob o arco da entrada, enquanto caía a chuva, fria e

deprimente. Fundamentalmente era uma mulher prática. O que aconteceria se adoecesse ao

ir para casa caminhando com aquele tempo? Não se podia permitir perder um dia de

trabalho. Outra coisa seria se aquele homem fosse com ela na carruagem.

Uma antiga carruagem de aluguel desmantelada puxada por um cavalo com o lombo

fundo se deteve diante dela. O cocheiro, que levava uma cartola empapada, indicou-lhe por

gestos que subisse. Depois de duvidar por um momento, Bel pôs-se a correr pela calçada e

subiu na carruagem.

Com total inocência, disse ao cocheiro do administrador onde vivia.

Quando o duque de Hawkscliffe estava na cidade, hospedava-se em um suntuoso

palácio urbano com vistas para o Green Park. Atrás de um muro de tijolo rematado com

pregos de ferro forjado, erguia-se Knight House em todo seu esplendor público, distante e

inexpugnável, deslumbrante, frio e nacarado em meio à escura e úmida noite de abril.

As longas sombras das luzes esculpiam a austera e elegante simetria de sua perfeita

fachada, enquanto os grandes cães Terranova e os mastins de corpo robusto pisavam com

suavidade o chão polido, atentos aos intrusos, embora nos arredores da enorme mansão

reinasse o silêncio. Atrás da porta principal, dentro da opulenta entrada com lustres de luzes

e através dos corredores de mármore, uma quietude vazia se estendia por toda parte. Os

criados, ativos e silenciosos, limpavam a sala de jantar onde o amo tinha jantado só, como

sempre.

Agora estava sentado imóvel ante o esplêndido piano situado em um canto da escura

biblioteca. Possuía vários instrumentos, pois tinha um pouco de colecionador e de perito

musical. Tinha um Clementi no salão de baile, um piano de cauda Broadwood no salão, um

Walter junto com o querido e velho clavicórdio na sala de música... Mas aquele, seu

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adorado Graf, o rei dos pianos, era seu orgulho e sua alegria. O fato de manter seu melhor

instrumento guardado com chave em uma sala em que ninguém podia entrar constituía um

traço típico de seu caráter obstinado e extraordinariamente reservado. Qualquer pessoa que

tivesse pagado uma soma semelhante por um piano sem dúvida o teria exposto em um dos

salões públicos, mas a música era um assunto muito pessoal para Hawkscliffe, e, de

qualquer modo, não havia ninguém que pudesse ouvir a poderosa voz do Graf.

Tocou as teclas tristemente com uma mão e descobriu que aquilo já não lhe oferecia

nenhum consolo. Sua música e suas nobres causa tinham ficado esquecidas. Essa noite

havia uma sessão na Câmara dos Lordes, mas não se sentia com coragem suficiente para ir.

Ajeitado no banco, ficou olhando fixamente as teclas brancas e negras. A tênue luz

procedente do fraco fogo da lareira piscava em seu rosto, mas não conseguia acabar com o

frio que o invadia há três semanas, quando Lucy desapareceu.

Apertando em sua mão o relicário de prata que continha seu retrato em miniatura,

estendeu a mão para pegar a taça de brandy, colocada em um dos suportes sobre o mudo

piano. Ergueu a taça e examinou o matiz da luz do fogo que brilhava através do cristal. “A

cor de seu cabelo”, pensou. Mas não, suas longas mechas eram de um vermelho mais

intenso; não vermelhos, mas sim de um acobreado brilhante.

Perguntou-se quem ou o que era ele, e onde estava antes que Lucy Coldfell entrasse

em sua vida e a mudasse por completo. “Ah, sim — pensou com amargura. — Estava

procurando uma mulher.”

Afastou de novo o brandy, recordando a primeira vez que tinha pousado seus olhos

na jovem esposa de Coldfell. Certamente não tinha reagido da mesma maneira ante a filha

do Coldfell, o que teria sido muitíssimo mais adequado. “Essa é a mulher com quem deveria

me haver casado”, havia dito a si mesmo então.

Muito tarde.

Muito tarde para amá-la. Muito tarde para salvá-la.

Ficou de pé de repente e lançou a taça com todas suas forças ao fogo. O cristal se

rompeu em pedaços e as chamas brotaram violentamente na chaminé, avivadas pelo álcool.

Tremendo de raiva ao recordar o que Coldfell lhe havia dito nesse mesmo dia,

levantou-se e começou a andar de um lado a outro ao longo da sala, esmagando o tapete

Aubusson sob suas botas. Dirigiu-se para a chaminé, apoiou-se contra o suporte de

alabastro, e esfregou a boca com o punho, pensativo.

Em algum momento do passado tinham lhe apresentado o fanfarrão grosseiro e

vigoroso sobrinho do Coldfell, sir Dolph Breckinridge. Naturalmente, tinha ouvido falar da

reputação de Dolph como caçador. O baronete era conhecido por ser um atirador de

primeira. Também era conhecido por ser um homem amigo dos prazeres e que gostava de

viver acima de suas possibilidades. Por essa razão, Hawk supôs que o tal Dolph desejava

enormemente passar a ser o novo conde de Coldfell.

Hawk não sabia nem se atrevia a perguntar-se se o velho James seria capaz de gerar a

um filho em sua idade avançada... Abraham, na Bíblia, tinha-o conseguido, não era certo? A

única coisa que sabia era que, se Coldfell tivesse deixado grávida Lucy, teria sido seu filho,

e não Dolph, quem estaria na linha de sucessão para herdar o título de conde. De modo que

graças ao livre acesso que tinha às propriedades de seu tio, Dolph contava com muitas

oportunidades de enfrentar Lucy a sós. Como o célebre caçador que era, sem dúvida possuía

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destreza na arte de matar, e com a ameaça da possível gravidez da condessa, tinha um

motivo irrefutável para afastar Lucy de seu caminho de fortuna e dignidade.

Hawk avaliou a possibilidade de contratar um detetive de Bow Street para que

investigasse o assunto, mas decidiu que era um tema profundamente pessoal para confiar a

um estranho.

Depois de abandonar a tumba de Lucy essa tarde, e graças a uma breve parada no

White’s e a várias perguntas casuais, inteirou-se de que o regente ia dar outra festa em

Brighton. Todos os esbanjadores que iam atrás do grupo de Carlton House seguiriam o

príncipe até ali, entre eles Dolph e seus amigos.

Hawk desejava ardentemente ir à busca de Dolph imediatamente. Mas, como lhe

havia dito Coldfell, não sabia se tinha sido ele, só tinha suspeitas. Passou uma mão pelo

cabelo, abundante e escuro.

Ia se tornar louco se não descobrisse a verdade, mas não podia transgredir e lançar

graves acusações sem nada que as respaldasse; acusações que implicavam à mulher de outro

homem. Um comportamento tão impulsivo de sua parte daria lugar a todo um torvelinho de

rumores na alta sociedade, e o escândalo, Deus não o quisesse, era a única coisa que não

estava disposto a tolerar.

Tinha que pensar em todo momento no prestígio de sua família, em sua própria

reputação e na de sua jovem irmã. Jacinda faria sua estréia ao cabo de um ano

aproximadamente, e ele não queria que se visse manchada pelo mais mínimo rastro de

escândalo. Era uma garota caprichosa e teimosa por natureza, e, como seu tutor, ele tinha

albergado intimamente o temor a que o famoso destempero de sua mãe corresse também por

suas veias.

Por outro lado, também devia proteger suas aspirações políticas. O primeiro-ministro,

lorde Liverpool, tinha posto seus olhos nele para a próxima vaga do gabinete que surgisse.

Enquanto isso, Hawk seguia sendo deputado na junta formada por uma dúzia de comitês

parlamentares, sua reputação de homem íntegro se traduzia em poder e influência para

introduzir seus projetos de lei nas duas câmaras. Uma perda de credibilidade poderia

prejudicar seus esforços por obter uma reforma do código penal, entre outros projetos.

Tampouco podia carregar com a responsabilidade de manchar a lembrança de Lucy com

rumores maliciosos. Além disso, pensou que, se realizasse acusações de forma prematura,

Dolph podia escapar das mãos e a única coisa que conseguiria seria ficar em ridículo.

Ficou olhando fixamente o tapete com os braços cruzados, absorto em seus

pensamentos. A razão lhe ditava que reconhecesse que havia uma pequena possibilidade de

que a morte de Lucy tivesse sido o acidente que parecia. Como homem de justiça, estava

obrigado por seus princípios a agir com fria objetividade. Não podia passar cada minuto do

dia lutando pela justiça no Parlamento, e logo, em um arrebatamento de fúria, matar num

duelo um homem que possivelmente fosse inocente.

Tinha que conhecer os fatos antes de poder entrar em ação, mas Dolph não ia limitar

se a admitir o assassinato. Era preciso um subterfúgio. Teria que investigar Dolph, talvez

inclusive fingir que era amigo dele até que encontrasse o modo de pô-lo entre a espada e a

parede. Todos os homens tinham um ponto fraco. Ele acharia o de Dolph e o utilizaria para

acabar com ele. Tirar-lhe-ia a verdade de algum modo.

Paciência.

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Invadia-o uma ira que clamava justiça, mas a conteve dando forma a seu plano. A

espera até o momento adequado exigiria um enorme exercício de autocontrole de sua parte,

mas com mais informação poderia agir de forma mais discreta... E letal.

Resolvido a seguir seu caminho, dirigiu-se à porta da biblioteca dando grandes

passadas e enviou o lacaio que permanecia postado no vestíbulo em busca do criado de

quarto. Partiria para Brighton ao amanhecer.

A tênue luz da vela de sebo piscou no aposento quando Bel terminou de remendar as

camisas em cuja reparação trabalhava a toque de caixa.

Levantou-se, estirou suas doloridas costas e foi vestir sua capa cinza de lã. Tinha

prometido à lavadeira que lhe entregaria as camisas essa noite para que pudessem ser

engomadas, passadas e devolvidas a seus donos pela manhã. Depois de alisar as camisas

cerzidas com o braço, fechou a porta de sua habitação com chave e levantou o capuz com

barras vermelhas de sua capa. As dobras ondulantes se agitaram atrás dela quando saiu às

ruas escuras.

Aquela noite de abril sem lua era escura como boca de lobo. A temperatura tinha

baixado dez graus ou mais. Sua respiração formava um bafo que brilhava sob a luz do

solitário lampião da esquina, mas quando deu uma olhada ao cruzamento não viu o sereno.

Aqueles tipos lhe pareciam um problema durante o dia, sempre lhe dizendo que partisse e

fosse vender laranjas em outra parte, mas lhe alegrava contar com sua presença de noite.

Amarrou a fita de sua capa ao redor do pescoço e apertou o passo. Quando se aproximou da

ruidosa e sórdida taverna, cruzou para o outro lado da rua e caminhou sem fazer ruído entre

as sombras. Os homens sóbrios já eram suficientemente indecentes.

Finalmente chegou sã e salva à casa da lavadeira, com um suspiro de alívio, e

entregou à mulher as camisas remendadas. A lavadeira inspecionou seu trabalho assentindo

com satisfação, deu-lhe outras que devia arrumar para o dia seguinte e depois lhe pagou. Bel

se deteve para esconder as moedas na carteira de couro que levava na cintura, sob a capa. E

respirando profundamente, subiu o capuz, deu boa noite à lavadeira fazendo um gesto com a

cabeça, e se obrigou a sair de novo na fria escuridão.

Só demorava um quarto de hora para chegar ao chiqueiro que chamava lar. A névoa

pegajosa e amarelada parecia ter-se tornado mais espessa, e a suas costas se erguiam sons

que soavam como passos, até seus próprios passos soavam de forma estranha ao afastar-se

das casas de tijolos nas ruelas estreitas e serpenteantes daquele bairro de malfeitores. Olhou

por cima do ombro e caminhou mais depressa. Um gato de rua com a pelagem a raias

deslizou Sigilosamente. Uma gargalhada estridente escapou de uma janela iluminada em

cima dela. Olhou para cima, dobrou a esquina e, em uma fração de segundo, um homem a

pegou.

Seu grito de terror se viu amortecido por uma mão áspera e calosa.

Imediatamente começou a lutar, lançando golpes às cegas contra o homem que a

pegava ferreamente enquanto a arrastava para um beco lateral.

— Cale-se. — O homem a sacudiu e a empurrou com força contra a parede.

Conseguiu agarrar-se a tempo e evitou cair de cabeça. Olhou ao homem, aterrorizada,

com os olhos esbugalhados, e descobriu que era o administrador da prisão de Fleet,

visivelmente bêbado. Sentiu que uma insuportável certeza descia pela boca de seu estômago

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e ficou paralisada. O passeio na carruagem...

Ele tinha planejado aquilo.

— Olá, querida — balbuciou, empurrando-a com força contra o muro do beco como

se fosse um de seus detentos rebeldes.

Bel engoliu a saliva fazendo um esforço por acalmar-se. Tremia de forma

incontrolável. Estava aterrada e o peito lhe palpitava. Tentou retroceder deslizando-se pelo

muro. Ele a deteve, apoiando sua mão carnuda nos tijolos para lhe impedir o passo. Com a

outra mão lhe tocou o cabelo e sorriu. Ela soluçou.

— Disse-lhe que tínhamos chegado a um acordo, não é? Tudo vai sair bem, garota.

Desde que me dê o que quero.

— Não — Bel replicou.

— Oh, claro que sim — disse ele com voz rouca. Aproximou sua boca pestilenta a

ela e tentou beijá-la.

Ela começou a gritar enquanto afastava o rosto, mas o homem conseguiu reprimir o

som lhe tampando outra vez a boca com a mão. Bel lutou contra a força brutal daquele

indivíduo, como se de algum modo sua mente se negasse a aceitar o que estava ocorrendo.

Então o homem lhe rodeou o pescoço com sua mão, quente e suja, e se grudou a seu corpo,

respirando de forma entrecortada na altura da orelha de Bel. Ela se debatia completamente

aterrada, e seus olhos se inundaram de lágrimas.

— E agora se tranqüilize, pequena, e fique quieta — disse em tom estridente, com

uma voz que parecia um ferro oxidado. — Já sabia o que a esperava. — Segurou-lhe as

mãos por cima da cabeça.

Ela nunca conseguiria recordar com clareza os detalhes dos vários minutos que

seguiram. O mundo se obscureceu e seu ritmo se tronou lento, e ela só podia ouvir os

batimentos de seu coração retumbando em seus ouvidos. Soluçou e ergueu a vista para

contemplar as estrelas, pequenos e frios pontos de luz como cabeças de agulhas. Só o tinido

metálico do enorme chaveiro que ele levava na cintura conseguiu atravessar o véu de sua

selvagem e escura histeria, enquanto a segurava contra os tijolos frios e cortantes, rasgava-

lhe o vestido, pegava-a e lhe fazia dano. E depois, uma dor mais intensa que o horror, uma

dor que não tinha conhecido antes, surgiu ante seus olhos angustiados, cegadora como um

relâmpago e afiada como uma faca no ventre. O administrador soltou um grunhido e se

encurvou de repente contra ela, ofegando, afrouxando a pressão. Ela se soltou com

dificuldade emitindo um grito abafado e pôs-se a correr.

— Se o disser a alguém farei em pedaços a seu pai! — gritou fracamente atrás dela.

Cegada pelas lágrimas, com a roupa rasgada e o cabelo despenteado, meteu-se em

uma rua movimentada iluminada por luzes. Não se lembrava do tipo que a tinha encontrado

e que ao ver seu estado desarrumado e incoerente a tinha confundido com uma rameira

bêbada, e aparentemente a tinha acompanhado ao asilo para prostitutas. Não se lembrava

das mulheres que a tinham ajudado ali. Só recordava ter estado quase três dias sentada em

uma cama de armar contra uma parede, vazia, com as pernas flexionadas, pensando uma e

outra vez: “É a única coisa para a qual sirvo agora”.

A vida que ela tinha conhecido tinha terminado.

Ela — a dissimulada e respeitável senhorita Hamilton— sabia melhor que ninguém

que havia uma linha clara que separava a decência da desonra.

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Tinham se passado séculos desde que tinha sido uma refinada dama de boa família do

Kelmscot que conversava com seus vizinhos, dava aula na escola dominical aos meninos

camponeses depois do serviço, e assistia ao baile ocasional da assembléia. Agora era outro

tipo de criatura, tão perdida e degradada como as prostitutas que iam àquele lugar em busca

de comida, um refúgio onde se proteger do frio e de tratamentos a base de mercúrio para

suas horríveis enfermidades.

Não tinha nenhum lugar aonde ir. A ideia de visitar seu pai estava descartada. Nem

sequer podia denunciar seu atacante porque, como responsável por uma importante prisão

de Londres, sem dúvida o administrador teria amigos dentro do tribunal de Bow Street. Nem

sequer podia fazer algo para evitar que tentasse outra vez.

No terceiro dia uma das mulheres da rua que se refugiaram naquele lugar tentou falar

com ela enquanto permanecia aninhada olhando a parede. Bel não recordava grande parte da

conversa que teve lugar, até o momento em que aquela rameira descarada e envelhecida se

inclinou para ela e lhe disse em tom perspicaz:

— Se eu tivesse seu aspecto e seu ar de senhorita fina, iria à casa de Harriette Wilson

e buscaria um protetor rico. Então sim que viveria no alto!

Ao ouvir aquilo, Bel elevou a vista com um olhar diferente. Tinha escutado antes

aquele nome pronunciado unicamente em sussurros. A divina Harriette Wilson era a mulher

mundana mais famosa de Londres.

Ela e suas irmãs eram cortesãs por excelência. Nos sábados de noite, depois da ópera,

celebravam escandalosas festas em sua casa que, conforme se dizia, só eram equiparáveis às

do clube White’s nos corações dos varões mais ricos e poderosos de Londres. Os rumores

asseguravam que o regente, o poeta rebelde lorde Byron, e inclusive o grande Wellington

podiam ser vistos em companhia dessas mulheres impuras especialmente aficionadas aos

diamantes.

Dolph se movia nesses círculos. Ao pensar na possibilidade de converter-se na

amante de seu pior inimigo, um fraco e frio sorriso lhe iluminou o rosto. Como se sentiria

humilhado, como ela se sentia agora, que impotente e furioso ficaria se visse que ela

preferia ser a amante de outro homem que sua esposa. Porque aquilo, ao fim e ao cabo, tinha

ocorrido por culpa de Dolph.

Protetor. Uma palavra deliciosa.

Alguém que a ajudasse, que limpasse seus temores. Alguém que fosse amável com

ela e não lhe fizesse mal. Aquela ideia insensata e destrutiva ardeu como a febre em seu

cérebro. Por que não? Estava perdida de forma irrevogável. Nem sequer Mick Braden, em

qualquer lugar que estivesse, casar-se-ia com ela naquele vergonhoso estado.

Ao pensar em seu amor da infância a invadiu uma sensação de desgosto. Tinha lhe

falhado, agora podia admitir. Provavelmente estaria ali em algum lugar de Londres,

paquerando com uma fulana de uma taverna, desfrutando sem pressa de seu celibato antes

de partir para Kelmscot, onde sem dúvida pensava que ela continuava esperando-o.

Que estúpida era. Se não fosse pelas ingênuas esperanças que tinha depositado nele,

teria se convertido na esposa de outro homem e nada daquilo teria porque ocorrer, ela

pensou amargamente. Harriette Wilson podia lhe ensinar a arrumar-se por si mesma.

Sua ardente ira se tornava cada vez mais poderosa, mais férrea, mais perigosa.

Tinha muito orgulho para jogar-se nos braços da impopular caridade das cortesãs,

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mas podia dirigir-se a ela como uma mulher de negócios que enfrenta a outra. Se

prometesse a Harriette Wilson uma percentagem dos lucros que obtivesse de seu futuro

protetor, sem dúvida aquela mulher aceitaria lhe ensinar as artes de uma cortesã. Que mais

podia perder?

Momentos mais tarde, Bel estava recolhendo suas escassas posses, com as mãos

ligeiramente trêmulas pela sua decisão impetuosa. Sabia que não pensava com clareza, mas

sua raiva era muito fria e profunda para preocupar-se com isso. Agradeceu às pessoas que

tinham cuidado dela durante os últimos três dias e perguntou à despachada prostituta onde

vivia Harriette Wilson.

Com a capa bem fechada, partiu em busca de seu destino num dia com sol e nuvens

prateadas. Esperava-lhe um longo passeio do centro da cidade até os arredores limpos e

luxuosos do Marylebone, no norte do Mayfair, onde se estavam construindo estradas e

esplêndidas urbanizações do novo Regent’s Park. A ira que formava redemoinhos em seu

interior a mantinha quente. Não tinha comido há alguns dias, mas a fome física não era

comparável à ânsia aguda de vingança.

Protetor. Uma doce palavra.

Não tinha por que ser atraente. Não tinha por que ser jovem, pensou enquanto

caminhava rapidamente dando grandes passadas pelas ruas sem olhar atrás, abraçando-se

com força. Não tinha por que enchê-la de delicadezas e jóias.

Unicamente tinha que ser amável e não lhe fazer a vida muito desagradável, e devia

ajudá-la a tirar seu pai do cárcere e apoiá-la quando enfrentasse aquela besta abominável.

Se o destino a enviasse a essa pessoa, jurou amargamente ao céu, agora que era uma

mulher perdida compensaria a esse homem generosamente.

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DOIS

Com as tonificantes brisas do mar de Brighton, Hawk descobriu que podia respirar.

Já fosse pela distância que o separava das multidões de Londres e de todos os lugares que

recordavam a ela, ou pelo influxo do mar sereno e silencioso, a tristeza começou a afrouxar

a pressão que exercia sobre seu coração.

Destinava as noites a sua investigação, mas durante os aprazíveis dias de abril achava

solidão sempre que o desejava, caminhando descalço sobre a areia com as calças

arregaçadas à altura das panturrilhas. Longe do passeio marítimo e das barracas da praia, só

se ouvia o murmúrio do mar e o som das gaivotas. Sentia que se estava curando, que se

estava repondo.

Em muitas manhãs gostava de afastar-se da praia remando até perder virtualmente de

vista a Inglaterra. Costumava pescar. Um dia, estando sob o caloroso sol primaveril, tentado

pela água plácida da cor de um jade pálido, tirou as botas, a jaqueta e o colete, e mergulhou

no mar.

A água estava gelada e ficou sem fôlego ao afundar aos poucos em meio das ondas

agitadas, como uma flecha lançada por um arco. O frio era intenso, mas lhe limpou a cabeça

até o extremo de lhe proporcionar uma lucidez quase visionária. Mergulhou profundamente,

saboreando o silêncio, a luz verde azulada que se via sob a superfície. Pensou em Lucy ao

afogar-se no lago e tratou de imaginar o que devia haver sentido.

Contendo a respiração até que lhe doeram os pulmões, sentiu-se igualmente só como

sempre, mas livre, flutuando, e sentiu que se desligava da escravidão de Lucy, até que

finalmente emergiu na superfície ofegando, sem nenhuma pérola nas mãos, exceto a vaga

certeza estranhamente reconfortante, de que talvez tivesse estado mais apaixonado por sua

ideia de Lucy de que pela própria mulher. Sabia que sua tendência a viver muito encerrado

em sua mente era tanto uma virtude como um defeito.

Sentia-se ele mesmo, algo que não lhe ocorria fazia meses, e finalmente remou de

novo até a praia com movimentos largos e vigorosos, tremendo por causa do vento fresco.

Alojava-se na Estalagem Castle, no lado oeste do Steine. Quando chegou a seus aposentos

tomou um banho, trocou de roupa, comeu e a seguir saiu para assistir a habitual festa

noturna. Seu novo amigo, Dolph Breckinridge, iria a um concerto no jardim do regente, e

Hawk pensava fazer outro tanto.

Cultivar a amizade do libertino grupo do baronete tinha sido mais fácil do que tinha

imaginado, embora ainda fosse muito cedo para trazer à baila o tema de Lucy sem levantar

suspeitas. Teve que aguentar pacientemente que aqueles folgazões zombassem da

superioridade de sua moral, mas eles aceitaram sua associação casual como uma forma de

melhorar sua própria reputação. Ele esperava o momento adequado, sentindo que seu

objetivo estava muito perto.

As festas que o regente celebrava em Brighton eram tão cheias de multidão que

Hawk quase se sentia como um personagem anônimo, passeando distraidamente de sala em

sala para sair por fim na grama, onde tocava uma orquestra alemã. Para sua satisfação achou

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Dolph só em um sítio do terraço, contemplando o mar em atitude pensativa.

Possivelmente depois de cultivar a amizade do baronete durante dez dias, essa noite

por fim poderia descobrir a pista que procurava. Hawk se aproximou da balaustrada,

ocultando sua inflamada hostilidade sob uma fachada impecável de cordial reserva.

— Breckinridge.

— Hawkscliffe — balbuciou Dolph, e a seguir suspirou profundamente e bebeu um

gole de sua garrafa.

“Está bêbado — pensou Hawk. — Perfeito.”

— Acontece algo, amigo?

Dolph o olhou de esguelha, com aqueles olhos de grossas pálpebras que pareciam

mais apagados do que o normal.

— Alguma vez esteve apaixonado, Hawkscliffe?

Com as mãos nos bolsos, Hawk olhou discretamente ao mar.

— Não.

— Não, suponho que um tipo aborrecido como você não se apaixonou nunca – disse,

muito bêbado para reparar em sua insolência. — Com certeza nasceu sob o signo de

Saturno.

Hawk arqueou uma sobrancelha.

— E você, está apaixonado, pode saber-se, Breckinridge?

— Hawkscliffe, eu encontrei um diamante.

— Ah, aquela morena que estava sentada em seu regaço a outra noite depois do

teatro?

Dolph sacudiu a cabeça e fez um gesto distraído com a garrafa.

— Aquela só era para passar o tempo. Não, encontrei à garota mais formosa,

adorável, desejável, inteligente e doce. Sinto... Tanto amor — disse, apertando a garrafa

contra seu coração— que não pode nem imaginar isso.

Hawk o olhou fixamente, desconcertado. Até esse momento nunca tinha ouvido

aquele homem falar de nada com tanta paixão, excetuando a caça, os cavalos e os cães de

caça.

— Me conte.

— Teria que vê-la — continuou Dolph. — Não... Não... O caso é que ninguém

poderá vê-la até que me tenha casado com ela. Mantenho-a afastada de todos vocês. Deus

sabe que se lançaria sobre ela com seu título de duque e sua grande reputação, e tentaria

roubar-me — disse , rindo com voz de bêbado. — E se não você, um de seus insuportáveis

irmãos.

— Deve ser uma jóia.

— Mais do que saberá algum dia — declarou Dolph com arrogância, e bebeu um

gole.

— E tem nome seu anjo?

— Belinda.

— Quando é o casamento?

Dolph suspirou outra vez.

— Não vai se casar comigo. Ainda.

— Está brincando — disse Hawk com suavidade.

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— Fá-lo-á no devido tempo — lhe assegurou. — Deve estar sentindo minha falta

enquanto estou fora, e quando voltar à cidade com certeza terá reconsiderado minha oferta.

— Bom, desejo-lhe que tenha muito êxito com ela — disse Hawk

despreocupadamente, e se voltou com um olhar calculista nos olhos.

“Justo no alvo” pensou.

Depois de ter concedido à sua presa tempo suficiente para meditar sobre a desgraça

de sua existência sem ele, Dolph Breckinridge retornou à cidade com o entusiasmo otimista

de um caçador no ponto culminante de sua perseguição. A raposa estava encurralada. Não

restava nenhum lugar onde esconder-se.

Que magnífico troféu seria! Pensava enquanto fustigava seus cavalos pela costa.

Belinda lhe tinha levado vantagem naquela alegre perseguição, mas a separação forçosa que

lhe tinha imposto certamente teria feito com que sua resistência cedesse. Dolph pensava que

finalmente se comportaria docilmente e se mostraria ansiosa por reunir-se com ele. Se não

fosse assim, ele teria que planejar alguma forma de impedir seus ridículos esforços de viver

sem ele.

Correu a toda velocidade pela rua em seu faetonte, sem prestar atenção aos estragos

que esteve a ponto de causar e aos pedestres que por pouco não atropelava sob as rodas

rangentes. Impaciente por encontrá-la, percorreu com o olhar os rostos das vendedoras e fez

que seu faetonte se inclinasse ao virar no seguinte cruzamento. Gritou um impropério a uma

carruagem da partilha que avançava muito lenta pela estrada e a ultrapassou, e quase bateu

de frente com um coche de aluguel.

Soltou um grito ao condutor e se não tivesse coisas mais importantes que fazer teria

gostado de parar e brigar com ele. Fustigou seus cavalos, mal-humorado, e se precipitou

para diante.

Onde diabos ela estava? Não podia esperar para discutir com ela, e Belinda tinha sido

um dos poucos desafios reais com os quais tinha topado.

A vida tinha sido fácil para o Dolph Breckinridge. Tudo parecia sair sempre a seu

favor, como a herança do título de conde de seu tio. Seus pais nunca tinham estado à altura

de sua férrea vontade, nem sequer quando era menino. Tinha passado por Eton e Oxford

sem esforço obrigando aos ratos de biblioteca dos primeiros cursos universitários que

trabalhassem para ele. Graças ao seu extraordinário físico e à aparência que Deus lhe tinha

dado, as mulheres também o obedeciam... Todas exceto a deliciosa e indomável senhorita

Hamilton.

Nenhuma mulher tinha conseguido que desejasse tão ardentemente conquistá-la.

Muito se apontaria quando a conseguisse! Com uma esposa tão refinada, obediente e

formosa, seria a inveja de seus amigos... Entre os quais se contava agora o extremamente

poderoso duque de Hawkscliffe, pensou felicitando-se por isso.

— Demônios! Onde se coloca, moça? — disse entre dentes. As orelhas de seus

cavalos se moveram nervosamente ante o som de sua voz.

Ao não divisá-la nos lugares onde habitualmente se achava, Dolph fez uma pausa em

plena perseguição e saiu a toda velocidade em direção a seu clube, consciente de que uma

boa comida e uma taça aliviariam sua frustração. Logo reataria a busca e sem dúvida acharia

a sua presa em campo aberto.

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Não demorou muito em tirar suas grossas luvas de couro e entrar pavoneando-se no

Watier’s. A visão de uma buliçosa conversa no salão principal não era estranha, pois aquele

era um dos clubes mais animados.

Uma dúzia de homens estava discutindo cordialmente sobre alguma nova aposta.

Dolph avançou a grandes passos para reunir-se com seus companheiros do clube, e trocou

saudações com alguns enquanto prosseguia a discussão. Mal escutou o que diziam, pois

estava mais interessado em pedir um bom bolo de carne.

— Primeiro artigo. Ninguém se aproximará dela a menos que lhe dê carta branca, já

me entendem.

— Isso me exclui... No mínimo até que meu venerado parente expire. Ouviram-se

risinhos e gargalhadas vãs.

— A quem acha que escolherá?

— Dez libras que escolhe ao Argyll.

— Não, Argyll pertence à Harriette.

— E Worcester?

— Não gosta.

— Gosto dela eu!

— Oh, por favor.

— Disse que eu era gracioso!

— Não gosta de ninguém. Por isso é tão atraente. Ah, mas o que consiga derreter o

gelo... Isso sim que tem mérito.

— Pois não parou para olhá-lo duas vezes, nem a você nem a nenhum de nós.

— Mas o que quer? Um semideus? A perfeição? Um santo?

— Aposto vinte guinéus que diz que está esperando que chegue o czar Alexandre. As

mulheres estão meio apaixonadas por ele. O Time diz que chegará de um dia a outro...

— Não, não, ela é uma boa garota inglesa. Não quererá nada com um estrangeiro! —

disse outro em tom de mofa. — Eu acredito que escolherá ao Wellington, lembre bem do

que lhes digo. Ponha-me dez libras em Wellington! E me atreveria a dizer que ele a merece

mais que qualquer de nós.

— Com o devido respeito, Wellington poderia ser seu pai — murmurou alguém.

— Eu acho que como não me escolhe me vou acabar pendurado — disse outro com

jovialidade.

— De acordo, de acordo — declarou Dolph, dando a volta com os braços na cintura.

— Aguçou minha curiosidade. De quem estão falando?

Os homens se detiveram de forma brusca, olhando-se uns aos outros, e sorriram

maliciosamente.

— Como diz? — perguntou Luttrell com ar inocente. — Onde esteve? — inquiriu

outro.

— Em Brighton, com o regente — respondeu Dolph altivamente. — O que

aconteceu?

— Há uma nova cortesã que nos traz a todos pela rua da amargura — disse o coronel

Hanger. — Estamos fazendo apostas para ver a quem aceitará como seu protetor.

Dolph soltou um risinho, indiferente. Aqueles idiotas pensavam que sabiam o que era

a beleza.

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— Não nos acredita? — perguntou indignado um dos deliciosos cavalheiros.

— Como é fisicamente? — respondeu Dolph com cepticismo. Um suspiro coletivo se

ergueu do grupo. — Seus cabelos parecem fios de luz...

— Oh, economize sua poesia, pelo amor de Deus, Alvanley — disse Brummell

arrastando as palavras. — É loira e tem os olhos azuis. Em uma palavra, impressionante.

— Ora — disse Dolph com um grunhido. — Essas se conseguem facilmente.

De repente sentiu algo incômodo por razões que não podia determinar, e lhes deu as

costas quando apareceu o garçom e lhe colocou seu bolo de carne em frente.

— Soube onde vai estar a senhorita Hamilton esta noite? — perguntou um dos

homens atrás dele.

Dolph se engasgou com o bocado do bolo.

— Suponho que passará a noite em casa de Harriette.

Dolph apagou a tosse com um gole de cerveja, saltou de seu assento e se deu a volta,

limpando a boca com o antebraço.

— Como dizem que se chama?

— Quem?

— A cortesã — rugiu, baixando a cabeça como um touro preparado para investir.

O coronel Hanger lhe sorriu e levantou seu copo em um brinde.

— É a senhorita Belinda Hamilton.

Dolph retrocedeu aterrorizado.

— Pela senhorita Hamilton! — brindaram alegremente, mas então Dolph já tinha

saído pela porta.

Pediu a gritos seu faetonte e um momento depois estava atravessando St. James em

direção ao Marylebone. Sabia onde vivia Harriette Wilson, pois tinha assistido a muitas das

festas com fulanas que celebravam os sábados de noite em sua casa de York Place.

Era impossível. Era um engano, ou uma brincadeira, ou uma coincidência. Não podia

ser ela... Não podia ser ela! Ela era uma dissimulada, uma virgem, uma dama. Maldição, ela

era propriedade dele.

Muito furioso para concentrar-se na tarefa de conduzir, semeou o caos em sua

passagem pelas ruas, enquanto corria estrepitosamente até a modesta e elegante residência

urbana da rainha das cortesãs.

Se aquilo fosse certo... Se sua Belinda estava realmente ali, Deus não o quisesse,

derrubaria a porta e a tiraria a rastros daquela casa pelo cabelo e a levaria assim até Gretna

Green.

Uma vez diante da casa de Harriette Wilson, saltou do faetonte antes que se

detivesse, aproximou-se dando grandes passadas à porta principal, e começou a golpeá-la

com o punho.

— Abre! Abre Harriette, pedaço de prostituta! Maldita seja, Bel, sei que está aí! Vais

receber-me!

A porta se abriu bruscamente sob seu punho, e Dolph se achou cara a cara com um

dos seguranças das fulanas, um lacaio alto e corpulento que parecia um antigo boxeador

profissional. Um traidor vestido com libré. Harriette tinha um par deles rondando pelo local

como guarda-costas, conforme recordou Dolph.

— No que posso ajudá-lo? — resmungou o ameaçador lacaio.

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— Vim ver... — Fez um esforço por serenar-se. Um filete de suor lhe corria pela

face. — Está aqui uma garota que responde pelo nome da Belinda Hamilton?

— A senhorita Hamilton está recebendo a uns convidados neste momento — grunhiu

o robusto lacaio. — Pode deixar seu cartão.

“De modo que era certo.”

Dolph ficou olhando-o fixamente com uma incredulidade fruto do terror, até que o

lacaio soprou e fechou a porta diante de seu nariz. Dolph ouviu como jogava o ferrolho.

Bateu na porta gritando, mas ninguém respondeu. Afastou-se da casa cambaleando, cruzou

a calçada e se colocou no meio da rua; inclinou a cabeça para trás e bradou com ira:

— Belinda!

Percebeu movimento na janela superior. A cortina se agitou. Ofegando furiosamente,

e com um olhar selvagem e sinistro, fixou a vista naquele ponto. O sol da tarde refulgiu nos

vidros quando a janela se abriu para dentro. Então apareceu ela... Só que, de certo modo,

não era ela, sua pequena e manchada Bel com sua puída capa de lã.

Não podia ser ela.

Dolph contemplou assombrado à formosa e estranha cortesã.

A mulher da janela era uma deusa pálida e elegante. Tinha o cabelo loiro e brilhante

recolhido em um penteado impecável e sofisticado. Levava uns brincos de pedras preciosas

e um luxuoso traje de noite muito curto para usá-lo à tarde. A brisa inchava suas longas e

finas mangas moldando seus elegantes braços, enquanto ela apoiava suas mãos cuidadas no

batente da janela e lhe dedicava um sorriso zombador como uma rosa com espinhos.

— Sim?

— Belinda! — rugiu ele com incredulidade. — O que... O que fez?

Ela arqueou as sobrancelhas com tranqüilidade.

— Sinto muito, não tenho a honra de conhecê-lo. Au revoir.

Apesar de lhe ter falado com correção, Dolph era consciente de que lhe tinha atirado

o golpe mais direto e demolidor que uma jovem dama podia propiciar. Bel começou a

fechar a janela.

— Espere Belinda!

Ela riu alegremente dele e logo olhou por cima do ombro para ao aposento que tinha

a suas costas.

— Precisam ver o pobre mendigo que há na rua — disse, chamando a seus

acompanhantes.

Duas vagas figuras masculinas apareceram na janela, flanqueando-a de ambos os

lados.

“Santo Deus! — pensou Dolph ao reconhecê-los. — Argyll! Hertford! Esses

relaxados estão tentando seduzi-la!” Entretanto, eram uns relaxados poderosos, um duque e

um marquês respectivamente, homens inteligentes e distintos. Dolph apertou os dentes,

contendo uma enxurrada de imprecações, consciente de que devia vigiar o que dizia.

Pelo que sabia, o próprio regente podia estar ali, ou os duques reais, ou Wellington,

pois podia ouvir outras pessoas falarem e rirem no salão.

— Belinda Hamilton — disse Dolph entre dentes-, não sei o que acha que está

fazendo nesse lugar, mas será melhor que desça agora mesmo.

Ela se pendurou no braço dos homens e riu descaradamente enquanto o olhava.

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— Sei perfeitamente o que estou fazendo, Dolph. Estou recebendo uns amigos

encantadores, como já lhe disse nosso criado.

— Tenho que falar com você! — gritou Dolph, quase gemendo. Ela riu alegremente

e soltou os cavalheiros, que franziram o sobrecenho enquanto olhavam Dolph com uma

atitude protetora de desaprovação. Apoiou os cotovelos no peitoril da janela e pousou seu

rosto imaculado entre suas mãos com um sorriso de falsa pena.

— Pobre Dolph, parece muito alterado.

— Pelo amor de Deus, Belinda, desce e fale comigo.

— É um grosseiro, Dolph. Que mais posso dizer?

— Isto é inaceitável! — gritou ele, jogando atrás a cabeça.

As portas e as portinholas das janelas da rua se abriram e a gente apareceu para ver

quem estava armando tanto barulho.

— Muito bem, esta noite lhe concederei uma breve audiência na festa — disse ela

com doçura-, mas só que quero ouvir de sua boca uma desculpa. E agora vá antes que

desperte o oficial.

E, depois de dizer essas palavras, meteu-se dentro e fechou a janela.

Com lágrimas nos olhos, Dolph ficou olhando fixamente a janela vazia, a ponto de

explodir, com a boca franzida pela raiva. Gritou-lhe de novo, mas os vidros só mostraram o

reflexo do céu azul. Incapaz de acreditar em sua traição virou-se, saltou em seu faetonte e

partiu correndo rua abaixo, enquanto o pulso lhe palpitava de forma ensurdecedora,

consciente de que desta vez ela o tinha vencido.

O coração de Bel pulsava de satisfação depois do momento longamente esperado da

vingança inicial sobre seu inimigo acérrimo. Recordaria a expressão de assombro do

abominável rosto de Dolph enquanto vivesse, mas aquilo não era nada comparado com o

sofrimento que lhe tinha reservado para essa noite.

— Disse-lhe que logo se estaria brigando nas ruas por você, senhorita Hamilton —

disse lorde Hertford com um risinho quando ela se reuniu de novo com o grupo.

Harriette, sua irmã Fanny e sua amiga, a muito elegante Julia Johnstone, estavam

mexericando com vários de seus cavalheiros favoritos enquanto tomavam o chá.

— Estão seguras de que é aconselhável que esse resmungão venha esta noite? —

perguntou o duque do Argyll, olhando carrancudo para a janela.

— O que seja para atormentá-lo — respondeu Bel em tom ligeiro, ao mesmo tempo

em que tomava uma bolacha redonda da bandeja.

— Uma beleza cruel — murmurou Hertford, vendo como ela comia o doce.

Bel se encolheu de ombros, dedicou-lhe um sorriso calmo e voltou a colocar-se no

lugar que ocupava no sofá, ocultando os pés sob o corpo.

A seu lado se sentou Harriette, uma mulher miúda, mas voluptuosa, que tinha pouco

mais de trinta anos, com o cabelo encaracolado castanho avermelhado e uns bonitos olhos

escuros que brilhavam com seu engenho.

— Ande com cuidado esta noite.

— Fá-lo-ei, não se preocupe.

Talvez fosse uma temeridade permitir que Dolph assistisse à festa, pensou Bel, mas o

desprezava o suficiente para desejar que a visse em todo seu esplendor, convertida na nova

sensação entre as mulheres mundanas. E para deixar que se afogasse de raiva. Ele merecia.

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Esfregar-lhe-ia sua nova fama pelo rosto. Com a casa cheia de admiradores dela e a

presença dos robustos lacaios de Harriette, não poderia lhe fazer absolutamente nada.

O afável grupo retomou suas conversas, mas Bel ficou em silêncio, mordiscando sua

bolacha enquanto sua mente repassava os sucessos das últimas três semanas.

O dia de abril em que ela se apresentou na soleira das irmãs Wilson, Harriette tinha

manifestado uma imediata reticência em ajudar uma jovem que claramente tinha recebido

uma boa educação a destruir-se. Por sorte, sua irmã Fanny era mais compassiva e estava ali

para impor-se a Harriette com o fim de lhe oferecer ajuda.

Amy, a malvada irmã maior, tinha dado uma olhada ao Bel, viu-se embargada pela

inveja e se negou a participar. Entre os rogos da Fanny e a tendência de Harriette a

contrariar Amy, Harriette tinha decidido examinar Bel, seu aspecto, seu porte, a amplitude

de sua cultura. Ao ver que não era um completo desastre, fez Bel entender que o ofício de

cortesã era uma profissão que exigia um importante investimento quando se fazia bem,

principalmente pela necessidade de seguir o ritmo da enriquecida clientela. Por exemplo,

necessitaria uma reserva de trajes de noite bonitos, e teriam que ser de primeira classe. Em

troca de uma garantia de vinte por cento dos lucros procedentes do futuro protetor de Bel,

Harriette tinha aceitado apoiar seu ingresso no território das mulheres mundanas.

Bel tinha sido imediatamente alojada no dormitório adicional das irmãs Wilson, e sua

primeira obrigação no negócio tinha sido escrever uma carta a seu pai onde lhe explicava

que lhe tinham solicitado que acompanhasse algumas alunas da academia em uma viagem a

Paris, agora que a cidade estava aberta aos visitantes ingleses. Tinha entregado a carta a um

dos grandes e corpulentos lacaios de Harriette, e este a tinha levado à prisão de Fleet.

A partir desse momento, a professora se converteu em estudante.

Entusiasmada com o projeto, pelos benefícios, diversão e pelo fato de que Amy

estivesse indignada, Harriette começou a convertê-la na perfeita cortesã. Depois de ter

deixado para trás a pessoa tremendamente humilhada e desgraçada que tinha sido Bel estava

mais que ansiosa por transformar-se em algo formoso e novo... E atrevido e forte.

Nunca mais voltaria a passar fome. A fortuna que obteria lhe proporcionaria

segurança. Harriette ganhava cem guinéus por um par de horas de flerte, e nem sempre tinha

que consentir em ir à cama com o cliente. Às vezes o cavalheiro em questão só queria uma

companheira para o jantar, alguém com quem falar. Mas a primeira coisa que Harriette lhe

ensinou — a regra principal do credo de toda cortesã— foi: “Nunca se apaixone”.

Amar um homem significava estar em seu poder, e para uma cortesã o poder era

tudo.

Bel aprendeu que uma cortesã era algo mais que uma companheira de cama ou uma

hábil sedutora. Devia ser um brilhante modelo de inteligência e alegria, uma perita no

prazer, capaz de contentar todos os sentidos do homem, físicos, psíquicos e intelectuais.

Além de tirar o máximo partido de sua beleza, devia ser uma agradável animadora,

uma anfitriã competente, uma ouvinte compreensiva e uma discreta confidente. Ser uma

intrépida e enérgica amazona capaz de chamar a atenção em Rotten Row era de grande

ajuda. Devia manter-se a par dos assuntos políticos que obcecavam os homens, o que

implicava em ler o Times a cada manhã, assim como os jornais Tory, Quarterly Review. O

periódico whig — Edinburgh Review — era opcional. Apesar de ter sido fundado por um

dos amantes de Harriette, o jovem e brilhante Henry Brougham Wickedshifts, Harriette o

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considerava muito árduo e difícil de entender. Em qualquer caso, os conservadores eram

maioria.

Também tinha que aprender como investir seus ganhos, pois uma mulher não podia

ser sempre uma cortesã. A Bel causava perplexidade a arte de acumular riquezas, sobretudo

depois de ouvir que algumas das ilustres cortesãs aposentadas, como a descarada Bellona e

a Cerva Branca, tinham centenas de libras em recursos. Ela nunca tinha sonhado em levar

uma vida tão independente, já que nenhuma mulher, por muito respeitável que fosse,

possuía seu próprio dinheiro.

Harriette se converteu em sua heroína. Harriette entendia o poder.

Bel não tinha contado à sua mentora o terrível episódio do beco. Não o tinha contado

a ninguém. Na realidade, estava convencida de que o tinha esquecido. Os pesadelos eram a

única coisa que ainda a atormentava.

Em meados do mês de maio, o mundo parecia cheio de infinitas possibilidades,

enquanto Londres se enchia de dignitários e heróis de guerra que entravam em torrentes

para viver o verão da vitória. Bel fez sua estreia na cidade assistindo à ópera no King’s

Theater, em Haymarket, em companhia do célebre trio conhecido como as Três Graças:

Harriette, Fanny e Julia.

Durante toda a peça, enquanto a Catalani expressava seu lamento no melodrama de

amor “A morte de Semíramis”, o camarote das cortesãs estava infestado de homens, velhos

e jovens, bonitos e feios, inteligentes e aborrecidos, forasteiros e nativos; cada um com um

título mais diferente que o anterior. Todos rendiam homenagem às cortesãs, às vezes na

vista de suas esposas.

Havia aristocratas, oficiais, diplomatas, poetas, artistas, homossexuais, dandis e

janotas, ociosos de Bond Street abrindo passagem com cotoveladas, junto a magnânimos

homens de ciência da Royal Academy, e o que tinham em comum era apenas que todos

desejavam o sonho sensual de amor voluptuoso que só uma cortesã podia oferecer.

Atônita devido a sua inexperiência, Bel via como Harriette e as outras eram tratadas

como verdadeiros ídolos, encarnações terrestres da própria Vênus. Harriette lhe aconselhou

que exigisse o trato reverente que merecia. Disse-lhe que podia parecer arrogante e

grosseiro, mas que era a única forma de que a levassem a sério. Se quisesse que todos a

considerassem um prêmio valioso, tinha que comportar-se como tal.

Tudo eram jogos, e Bel aprendeu rapidamente a jogar bem.

Havia várias filosofias para escolher. Fanny achava mais simples consagrar-se a um

protetor bem escolhido, em seu caso, lorde Hertford. Harriette desaprovava essa prática pois

se negava a jogar tudo em uma só carta, depois de uma má experiência anterior com lorde

Ponsonby. Em seu lugar, recebia com regularidade um punhado de seus favoritos, entre os

quais se achavam Argyll, Worcester e Henry Brougham, que detestava a sua esposa.

Harriette adorava gabar-se, com ar indiferente, de ter tido Wellington a sua mercê em uma

ocasião.

Bel preferia a estratégia mais modesta da Fanny, que consistia em procurar um

protetor agradável a quem agradar, mas tomou em consideração a advertência de Harriette

sobre o ciúme das esposas ante esse tipo de acordos exclusivos. Tendo em conta tudo isso,

Bel se impôs mais uma norma de conduta além do credo das cortesãs, segundo o qual não

deviam apaixonar-se. Negou-se a aceitar o amparo de um homem casado.

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Apesar de que isso restringia em muito a seleção, Harriette considerou uma decisão

acertada, por mais estranho que parecesse. Teria gostado de seguir o mesmo conselho

quando era mais jovem conforme lhe disse, já que nunca se chegava a relaxar bem sabendo

que seu benfeitor tinha uma mulher ciumenta em casa. Bel não tinha nenhuma intenção de

granjear inimigos.

Além disso, era uma forma de recordar-se que, por muito que fosse uma prostituta,

continuava tendo uma noção clara do que estava certo e o que estava errado. Os viúvos ricos

lhe pareciam certo, os jovens solteiros também serviriam. Mas a Belle Hamilton se negava a

ser participante de adultério.

Tinha conhecido uma quantidade de potenciais benfeitores na ópera. Nas noites

seguintes começou a conhecer melhor a alguns deles nas festas de Harriette e nos jardins

Vauxhall. Recebeu propostas aos montes, dirigidas à Harriette como sua representante,

embora continuasse sem achar alguém com quem pudesse imaginar-se fazendo algumas das

surpreendentes coisas que Harriette e Fanny lhe haviam descrito. Até a data, todos os seus

conhecimentos eróticos se limitavam à teoria. Na realidade, resultava-lhe muito difícil não

sobressaltar-se quando um homem passava roçando-a entre a multidão, do mesmo modo

que também lhe custava não reagir com hostilidade se alguém se atrevia a lhe agarrar a mão.

Mesmo assim, seguiu adiante, reencarnada em uma das encantadoras marginalizadas

da cidade, sem dar importância às suas dúvidas, entusiasmada com a perspectiva da fortuna

que constituiria sua segurança. Então ninguém poderia voltar a fazer mal a ela e a seu pai.

Seria livre, independente. Ninguém suspeitava que fosse uma absoluta farsante, mas não

estava disposta a permitir que esse pensamento lhe fizesse mudar de opinião. Seguiu

construindo cuidadosamente uma fachada de perfeita cortesã, jovial, maliciosa e

despreocupada.

Julia a considerava muito suscetível, mas Bel seguia esperando ao homem adequado.

Aferrava-se, com ilusão, à imagem de um cavalheiro de brilhante armadura, embora

temesse que estivesse procurando uma agulha em um palheiro.

Em algum lugar ali fora, a estava esperando o protetor ideal, pensava distraidamente,

separada do rumor das conversas no salão bem mobiliado. O perfeito amante que a ajudaria

a superar seus temores. Alguém em quem pudesse confiar. Alguém a quem pudesse beijar

sem sentir asco. Alguém amável, nobre e bom. “Quando o achar – pensou – eu saberei.”

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TRÊS

Era um sábado à noite depois da ópera, e a pequena e elegante casa geminada das

cortesãs estava quase cheia até o teto quando Hawk abriu caminho entre a multidão,

sentindo-se coibido e fora de lugar.

A festa era um chamativo caleidoscópio de cores brilhantes e gargalhadas estridentes.

Percorreu com o olhar o salão em busca de Dolph Breckinridge enquanto era empurrado na

multidão ébria e majoritariamente masculina. Em algum lugar deviam ter aberto uma janela,

já que uma corrente fria, quase imperceptível, penetrou entre a multidão e lhe acariciou a

face como se fosse um sinal de prudência. Necessitava-a nesse momento.

Não tinha nem ideia de que, quando Dolph lhe tinha falado extensamente de sua

amada, a tal Belinda, estava-se referindo a uma mulher mundana. Tampouco esperava

descobrir ao voltar para a cidade, que a metade da população masculina de Londres havia

tentado conquistar a moça. No livro de apostas do White’s havia três páginas cheias com as

apostas que vaticinavam quem obteria a companhia da incomparável senhorita Hamilton.

As mulheres de sua classe não tinham moral, mas Hawk tinha ouvido no clube que

podia se afirmar que a senhorita Hamilton, excepcionalmente, tinha moral: recusava toda

oferta que procedesse de um homem casado. “Que delicadeza”, pensou secamente.

As intrigas sobre o ridículo do comportamento de Dolph na rua naquele dia, por

culpa da garota, circularam com rapidez. Assim que ouviu falar do incidente, Hawk soube

que ela era a chave para ter seu inimigo na palma de sua mão.

Entretanto, havia um problema: Hawk não sabia nada sobre as mulheres mundanas e

o muito que gostavam que lhes fizesse a corte. O meio de vida destas, apoiado na obtenção

de benefícios a partir das relações sexuais, sempre lhe tinha sido um pouco repugnante

devido ao espírito romântico que se escondia sob sua puritana fachada.

A única coisa que sabia era que não bastava mostrar uma carteira recheada ante seus

olhos: as cortesãs não eram as típicas prostitutas. Tinham reputações — embora ruins — a

manter, caprichos que cumprir, e vaidades que acariciar. Supunha-se que um homem

desfrutava com a perseguição e os obstáculos a que os submetiam as seletas cortesãs para

ganhar seus favores.

“Jogos e disparates”, ele pensou indignado, soltando um suspiro de impaciência.

Mesmo no caso de a senhorita Hamilton ser tão encantadora como todo mundo afirmava,

ele nunca poderia respeitar uma mulher que não era mais que uma prostituta com

pretensões. Mesmo assim, e apesar de que a dignidade de Hawk se viu um pouco rebaixada

por todo aquele assunto, estava suficientemente decidido em sua busca para prosseguir o

jogo. Tentou parecer relaxado, mas mal pôde ocultar seu senhorial desdém por aquele lugar

e as fulanas que viviam nele. Sua mãe teria se encaixado naquele lugar, pensou com

desprezo.

Justo então se topou com um trio de conhecidos que imediatamente lançaram

exclamações de surpresa ao vê-lo naquela casa de luxúria. Deram-lhe palmadas nas costas e

lhe colocaram uma bebida na mão. Sentindo-se envergonhado, bebeu com eles mal

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prestando atenção às suas divagações, fruto da bebida. Esquadrinhou a sala furtivamente, e

de repente posou o olhar em um grande espelho com marco dourado que havia sobre a

chaminé. Nele viu Dolph Breckinridge.

O sobrinho do Coldfell estava escondido em um canto afastado do salão. A princípio,

Hawk não pôde ver a mulher que estava ali abandonada. Então Dolph ficou de joelhos em

atitude implorante, e Hawk vislumbrou seu rosto.

Arregalou os olhos, permaneceu imóvel e ficou olhando fixamente. Assombrado,

afastou bruscamente o olhar antes que alguém suspeitasse que estivesse espiando. O coração

lhe palpitava.

“Meu Deus, é um anjo.”

Forçou um sorriso tenso dirigido a seus amigos, apertou a taça de vinho com tanta

força que esteve a ponto de partir o pé de cristal, e não prestou a menor atenção a seus

companheiros enquanto alardeavam seu êxito no ringue.

Uma ardência lhe percorreu a coluna vertebral. Lançou outro olhar furtivo ao espelho

e contemplou a imagem dourada e argêntea da jovem e elegante cortesã, que reinava em seu

lugar como uma rainha virgem de algum país ártico. Celestial e sensual ao mesmo tempo, a

senhorita Hamilton olhou à frente, fazendo caso omisso de seu devoto prostrado, em uma

atitude de cruel e serena beleza. Tinha um rosto inexpressivo, como se suas belas feições

tivessem sido esculpidas em alabastro. Possuía faces de traço delicado, um nariz

aristocrático e um queixo firme e obstinado. O olhar de Hawk seguiu a graciosa curva de

seu pescoço até chegar a seu corpo esbelto.

Usava um vestido branco de musselina com mangas longas e finas, um atraente

decote reto e uma gola rígida de renda de Brabante ao estilo isabelino que lhe emoldurava a

nuca. O cabelo, ruivo e encaracolado, estava recolhido em um esplêndido toucado alto.

Algumas mechas frisadas flutuavam como segredos sussurrados contra a curva de seu

pescoço, exatamente onde teria gostado de beijá-la.

Estremeceu e se obrigou a afastar o olhar, sentindo que o sangue lhe pulsava com

força. A simples certeza de que aquela moça estava expertamente adestrada para dar prazer

a um homem em todos os sentidos fez que uma onda de ansiedade chegasse até o poço

vazio de sua alma. “Deus, fazia tanto tempo...”.

“Traidor”, disse-se com desprezo.

Um de seus companheiros lhe fez uma pergunta, mas Hawk tinha deixado de

responder, pois ao voltar a olhar ao espelho, viu que Dolph e a senhorita Hamilton tinham

começado a discutir. O baronete ficou de pé e se ergueu junto a ela com um grunhido. Mas

ela, sentada em seu banco coberto de almofadas, olhou-o em um silêncio insultante. Dolph

começou a gesticular grosseiramente. A boca da senhorita Hamilton se curvou em um

pequeno sorriso de mofa, e ao ver isso, Dolph meteu a mão no bolso e lhe jogou um

punhado de moedas ao rosto.

Hawk tomou ar enquanto a fúria lhe fazia arder o sangue. A jovem beleza se

sobressaltou quando as moedas a golpeara, uma delas lhe bateu no queixo, antes de caírem

dispersas em seu regaço e rolarem pelo chão.

Hawk se voltou rapidamente, abandonou seus amigos sem dar uma explicação e

começou a abrir passagem pelo salão com empurrões, para ir a socorro da jovem. Culpou-se

por haver se mantido afastado e se limitado a observar enquanto um suspeito de violação e

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assassinato acossava uma mulher indefesa, fosse cortesã ou não. Certamente não esperava

um arrebatamento de violência por parte de Dolph em meio de uma sala a transbordar de

admiradores da senhorita Hamilton. Parecia que ninguém mais tinha reparado no espetáculo

que estava acontecendo no lugar, do contrário, teria se elevado um clamor geral para linchar

aquele descarado.

Hawk olhou de novo à imagem refletida no espelho quando a abundante multidão lhe

entorpeceu o passo. Pôde ver como os lacaios de Harriette, dois valentões cockneys,

rodearam Dolph imediatamente e o levaram a empurrões. Hawk abria passagem aos trancos

entre a multidão com tal ímpeto, que chocou com alguém e derramou o vinho que segurava

sobre as luvas brancas da moda. Tinha se esquecido de que levava uma taça de vinho em

uma mão. Amaldiçoou entre dentes, entregou a taça vazia a um garçom com libré, e tirou

rapidamente as luvas e as deixou também na bandeja do criado. Seguiu avançando

descuidadamente e de repente se achou cara a cara com Dolph, ladeado pelos dois lacaios.

Imediatamente percebeu que Dolph estava bastante bêbado.

— Hawkscliffe! — O baronete pegou Hawk pela lapela com desespero. — Estão me

expulsando! É Belinda! Está me deixando louco! Tem que me ajudar!

Hawkscliffe apertou os dentes para conter uma onda de repugnância.

— O que quer que eu faça? — Estava seriamente tentado de levar Dolph para fora e

lhe dar uma surra, mas aquele homem merecia muito mais que aquilo.

— Fala com ela por mim — balbuciou Dolph. — Tente fazê-la entrar em razão...

Diga-lhe que já me castigou o suficiente. A única coisa que quero é cuidar dela. E lhe diga...

— Seu rosto avermelhado pelo álcool se endureceu. — Diga-lhe que se escolher outro que

não seja eu, arrepender-se-á.

Os guarda-costas grunhiram ao ouvir sua ameaça.

Dolph soltou a lapela de Hawk enquanto os lacaios o levavam arrastado.

Fazendo um esforço por reprimir sua fúria, Hawk abriu e fechou os punhos contra os

flancos. Girou sobre os calcanhares e abriu passagem com brutalidade entre as pessoas. Os

homens se separavam de seu caminho ao ver que se aproximava com o rosto nublado pela

ira. Chegou junto à senhorita Hamilton justo quando ela punha na bandeja de um criado as

últimas moedas que lhe tinha atirado Dolph. Hawk sentiu uma pontada de dor ao ver que

tremiam as mãos da mulher.

— Desfaça-se de tudo isto. Leve-lhe isso. Vamos! Apressem-se. Deve estar a ponto

de partir – disse com voz nervosa, indicando ao criado com a mão que devolvesse a Dolph

seu dinheiro.

Quando Hawk se aproximou sem saber o que ia dizer, a senhorita Hamilton franziu o

cenho, meteu a mão na blusa e tirou meia coroa de prata com um olhar de asco. Agarrou a

moeda como se fosse um inseto que lhe tivesse entrado no vestido. De repente estendeu a

moeda a Hawk com um olhar ofegante.

— Por favor, devolva isto a seu amigo — disse, com um olhar vulnerável que

contrastava com seu arrogante pedido.

Ele ficou deslumbrado enquanto lhe sustentava o olhar. A cor de seus olhos lhe fez

pensar em orquídeas selvagens; mas não, eram mais azuis ainda: como o azul delicado,

intenso e violáceo dos gerânios dos prados. Obscurecidos por umas longas pestanas de cor

cinzenta, seus olhos eram misteriosos, cautelosos... E inocentes.

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— Ouviu-me? — disse ela em tom impaciente.

Desconcertado, Hawk estendeu a mão. Ela soltou a moeda sobre sua palma. Robert

sentiu que o metal ainda conservava a sedosa calidez de seu corpo. Um momento antes,

tinha estado oprimida contra seu peito. Hawk afastou a vista.

— Quer ir embora? — insistiu ela. — Estará a ponto de ir-se.

Hawk sacudiu o atordoamento.

— Claro, dar-lhe-ei mais tarde. Vim ver se estava bem, senhorita... Hamilton,

verdade?

— Oh, você não me serve.

Arrebatou-lhe a moeda e chamou outro de seus criados com título de nobreza para

que entregasse a moeda a Dolph: o jovem e saudável duque de Leinster. Deu-lhe a moeda e

lhe acariciou a lisa face, lhe dedicando um sorriso tão doce como as brisas das míticas Ilhas

Benditas.

— Obrigado, Leinster — murmurou com um tom de voz alegre e brincalhão, de

modo que para Hawk ficasse claro que tinha o poder das sereias para enfeitiçar os homens.

O jovem e atraente cavalheiro irlandês partiu flutuando antes que andando para cumprir seu

encargo.

Hawk se voltou outra vez para ela perplexo, só para descobrir que tinha perdido sua

oportunidade de falar com ela. Dois jovens elegantes se pavonearam diante dele para lhe

apresentar seus respeitos, alheios ao que acabava de ocorrer.

Todo rastro de angústia tinha desaparecido do rosto da senhorita Hamilton sob seu

impecável sorriso. Os dois jovens, com quem ela estava agora flertando alegremente, não

tinham nem ideia de que tinha estado a ponto de ser atacada por Dolph. Só Hawk sabia. Ele

seguiu olhando fascinado.

“Vá, é uma atriz consumada — pensou Hawk. — Certamente que sim.” Franziu o

sobrecenho e ficou a um lado como um idiota, com um ligeiro temor por achar-se fora de

lugar. Em sua vida jamais imaginou que se acharia suplicando e competindo pelos favores

de uma jovem de vinte e três anos. Quem ela achava que era? Ele, o duque de Hawkscliffe,

tinha ido a seu resgate e parecia como se não lhe importasse.

A senhorita Hamilton se levantou de seu banco e passou em meio do par de dandis.

Elevando o nariz, passou roçando Hawk e caminhou dando grandes passos em direção ao

grupo que se voltou para adorá-la enquanto gritava seu nome. Ela riu alegremente e lhes

estendeu os braços em um sinal simples e natural de aceitação de sua reverência. Os duques

de Rutland e Bedford se colocaram de um salto a seu lado e, sem deixar de sorrir, levaram-

na para as mesas de jogo com toalha verde enquanto, para surpresa de Hawk, seu principal

oponente político, o velho e rude lorde chanceler Eldon, punha-lhe uma taça de vinho em

sua delicada mão. Aquela moça tinha meio Parlamento adulando-a.

Hawk ficou atrás, tão perplexo, derrotado e confundido como os dois jovens

emperiquitados. Que ele recordasse, nenhuma mulher da rua tinha passado diante dele como

se não existisse.

Evidentemente ela não sabia nada de sua elevada reputação, seu poder e

transcendência... “Oh, cale-se”, disse-se. E, pondo-se a rir de repente sem nenhum motivo

aparente, seguiu a jovem.

Deixar que Dolph assistisse à festa tinha sido um engano. Agora sabia. Ela não

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deveria haver se permitido aquela satisfação, mas tinha pagado por sua estreiteza de vista,

não é? Certamente tinha conseguido assustá-la e envergonhá-la, pensou Bel com um

calafrio, tratando de esquecer seu julgamento desacertado e continuar a noite.

Mesmo assim, não podia evitar culpar-se por ter superestimado sua capacidade para

dominá-lo. Pouco depois de chegar à festa, Dolph parecia a beira das lágrimas enquanto lhe

rogava que o escutasse. “Lágrimas de crocodilo” pensou Bel. Ela teria preferido falar em

privado com ele em um canto ao invés de montar uma cena, mas, quando a abandonou ali, a

situação desembocou em um desagradável enfrentamento. Ao final, graças a Deus, ninguém

tinha presenciado aquele momento humilhante à exceção daquele homem alto e carrancudo,

o amigo de Dolph.

Um tanto afetada ainda pelo violento arrebatamento de Dolph, Bel separou de sua

cabeça o baronete e seu amigo alto, moreno e elegante, e se sentou para jogar seu jogo

favorito, o vinte e um.

Não era uma autêntica jogadora, mas aquele simples jogo sempre lhe trazia

benefícios. As apostas estavam ao seu favor: se a sorte lhe permitisse derrotar seu atual

oponente, um ricaço da alta sociedade, ela ganharia seu alfinete de gravata com pedras

preciosas, avaliado em cinquenta guineus. Se perdesse, a única coisa que teria que lhe dar

era um beijo. Mas nunca perdia, talvez pelo simples fato de que os cavalheiros se

dedicavam a beber enquanto ela permanecia sóbria.

Dúzias de homens se reuniram em torno da mesa, e a animaram quando conseguiu

frustrar os planos de seu oponente na primeira das três mãos. O jovem cavalheiro acariciou

o queixo e olhou suas cartas com o cenho franzido.

Apesar de estar olhando para seu oponente, Bel era totalmente consciente da

presença do alto e taciturno estranho amigo de Dolph-, que perambulava por ali para ver

como jogava. Enquanto o estudava pela extremidade do olho fazendo ver que olhava suas

cartas, a Bel pareceu um personagem muito augusto e imponente. Para falar a verdade,

achou-o um tanto intimidante.

Em seus trinta e tantos anos, tinha um aspecto impressionante e cosmopolita, com um

físico atlético e a pele bronzeada de um esportista. Alisou para trás o cabelo negro como o

carvão para assistir a noitada, o que acentuava os firmes traços de seu rosto. Mantinha o

queixo alto e as costas erguidas. E, com um imperioso ar de reserva, deslocava seu olhar

agudo e sério pela multidão. Levava o lenço atado de forma impecável, e seu traje de

etiqueta era de um austero branco e negro. Vestia essa roupa como se aquelas fossem as

cores com que via o mundo, pensou ela com desdém, alheia aos dandis com coloridos trajes

que tinha a seu redor.

Incapaz de resistir mais, Bel lhe lançou uma breve olhada quando ele a estava

olhando. Os olhos de ambos coincidiram; ela sustentou o olhar com ar sincero e lhe dedicou

um fraco e ardiloso sorriso. Por um instante, os aveludados olhos castanhos de Hawk a

hipnotizaram. Olhou dentro deles e sentiu como se o conhecesse por toda a vida.

— Seu turno, senhorita Hamilton.

— É claro. — Surpreendida, revolveu-se em seu assento para voltar a encarar seu

oponente e lhe sorriu de forma atraente enquanto o coração lhe pulsava a toda velocidade.

“Arrogante descarado!”, pensou. Como se atrevia a olhá-la fixamente? Dava-lhe na mesma

que fosse tão atraente, não queria ter nada que ver com ele. Era amigo de Dolph. Sabia por

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que os tinha visto se falarem brevemente depois que Dolph a tinha tratado de forma tão

horrível. Além disso, nenhum homem tão atraente podia estar solteiro. A vida não se

comportava tão bem.

— Uma carta, por favor — disse Bel com doçura.

Jogou sua mão e logo soltou uma gargalhada ao converter-se na nova proprietária do

alfinete de gravata. O jovem janota aceitou sua derrota com uma risada zombadora, sabendo

que no dia seguinte poderia ir à casa de penhores e recuperá-lo, se quisesse.

Quando Bel lhe estendeu a mão, ele se inclinou e lhe beijou galantemente os dedos, e

depois se retirou fazendo uma reverência. De repente, antes que ela pudesse protestar, o

estranho deslizou no assento vazio, entrelaçou os dedos sobre a mesa e a olhou fixamente

numa atitude serena e desafiadora.

Entrecerrando os olhos, Bel pousou graciosamente o queixo sobre seus dedos e lhe

dirigiu um sorriso de desdém.

— Você outra vez.

— O que joga senhorita Hamilton? — perguntou ele em tom afável.

— Vinte e um.

— Suponho que o prêmio é um beijo.

— Só se eu quiser... E isso não vai ocorrer.

Um sorriso apareceu na sedutora boca de Hawk. Tirou um grosso anel de ouro do

mindinho e o pôs diante dela.

— Servirá isto?

Erguendo-se em seu assento, Bel pegou o anel e o examinou com um olhar cético.

Tinha uma pedra oval de ônix adornada com um “H” dourado. Lançou-lhe um olhar

interrogativo, perguntando-se quem era e o que significaria aquele “H”, mas não se

incomodou em satisfazer sua curiosidade perguntando-lhe. Nenhum amigo de Dolph era

amigo seu.

— Bonita bagatela. Desgraçadamente tenho outros doze como este. — Devolveu-lhe

o anel. — Não desejo jogar com você.

— Vá, acaso pareço um jogador profissional? — perguntou em um tom tranqüilo e

educado.

— Eu não gosto de suas amizades.

— Talvez esteja tirando conclusões precipitadas... Ou talvez só seja uma desculpa? –

ele sugeriu com outro sorriso malicioso. — Talvez a “indomável” senhorita Hamilton

simplesmente deseja voltar atrás.

Bel o olhou franzindo o cenho com elegância, e os homens que estavam ao redor

puseram-se a rir.

— Muito bem — concedeu com tom severo. — Ganha o melhor de três mãos. As

figuras valem dez pontos. Os azes podem ser altos e baixos. Arrepender-se-á.

— Não, não me arrependerei. — Colocou o anel de novo entre ambos e, reclinando-

se tranquilamente, passou um braço por detrás do espaldar da cadeira, e cruzou a perna

esquerda sobre a direita. — Reparta as cartas, senhorita Hamilton.

— Já estamos dando ordens.

— Só estou lhe pagando com sua mesma moeda, querida.

Enquanto sustentava o olhar zombador de Hawk, Bel compreendeu que se referia à

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ordem de entregar a moeda a Dolph e adotou uma expressão sarcástica.

— Sou sua servidora, senhor.

— Interessante conceito — murmurou ele.

Bel começou a sentir-se inusitadamente sobressaltada sob seu olhar penetrante. As

mãos lhe tremiam ligeiramente e faziam que lhe fosse difícil embaralhar as cartas, mas ao

final conseguiu repartir duas cartas para cada um, uma voltada para baixo e a outra para

cima. Deixou o maço e virou a carta oculta: o rei de ouro. Posto que a carta de face para

cima fosse um seis, decidiu agarrar uma terceira carta, mas primeiro lançou um olhar

interrogativo a seu oponente.

Ele moveu os dedos, declinando a oferta com elegância. Bel pegou outra carta, que

resultou ser um três, e conteve um sorriso de satisfação ante seus dezenove pontos totais.

— Me mostre o que tem — pediu ela, com um muito leve vislumbre de flerte.

Parecia que não o podia evitar. Aquele homem tinha algo.

Endereçou-lhe um sorrisinho de cumplicidade e mostrou uma rainha e um dez.

— Vinte.

Bel franziu o cenho e descartou seus dezenove.

Repartiu outra vez, mais decidida que nunca a derrotar aquele arrogante descarado,

um impulso que não tinha nada a ver com a pequena fortuna que poderia obter empenhando

o anel no caso de ganhar. Aquele homem era presunçoso e dominante.

Desta vez tocou a Bel um par de valetes. Vinte. “Maravilhoso — pensou. Com

certeza desta vez ganho.”

— Quer outra carta?

— Me dê.

— Não me tente — murmurou Bel, separando um oito do baralho para ele.

— Demônios — disse Hawk, lançando suas cartas. — Passo.

— Sinto muito –consolou— o ela, com os olhos brilhantes.

Enquanto afastava as cartas franzindo altivamente o cenho com irritação, ela pegou o

anel e o colocou no mindinho, fazendo ver que admirava como ficava bem. Ele a olhou

arqueando uma sobrancelha. Com o anel lhe dançando no dedo, Bel repartiu a última mão.

A carta voltada para cima que correspondia a Hawk era um dois de paus.

Obviamente pediria outra carta, pensou ela, preparando sua estratégia enquanto

examinava sua mão: um quatro voltado para baixo e um nove para cima, que somavam um

total de treze. Teria que tomar o cuidado de não ultrapassar os vinte e um pontos.

Olhou por cima da mesa a seu enigmático oponente. Fez-lhe um gesto. Repartiu um

cinco.

— Outra — murmurou Hawk.

— O quatro de espadas.

— Paro.

Bel o olhou com atenção, tentando decifrar sua vaga expressão, e pegou uma terceira

carta: um cinco. Com ela somava dezoito. Se pegasse outra carta, o mais provável era que

ultrapassasse. Era melhor jogar sobre o seguro.

— Mostre-me querido — disse em tom travesso.

— Você primeiro — replicou ele com um sorriso sombrio.

Aquele sorriso a inquietou.

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— Dezoito. — Bel mostrou sua última carta.

Ele se inclinou para diante para examinar as cartas e assentiu com a cabeça.

— Uma mão respeitável.

— Bem? –instigou-o ela, incapaz de determinar se aquele homem a incomodava ou a

divertia. — Vai me mostrar as cartas ou não?

— Mostre-as! Mostre-as! Que as mostre! — clamaram os espectadores.

Ele os observou e depois olhou para baixo e deslizou suas cartas uma por uma: o

dois, o cinco e o quatro, que somavam um total de onze pontos.

“Oh, não”, pensou Bel, com os olhos dilatados.

Hawk virou um dez e lhe dedicou um sorriso ladino.

— Vinte e um.

— Um beijo! Um beijo! — gritaram os homens em um ruidoso brinde, e pediram

mais bebidas.

Bel se recostou em seu assento, cruzou os braços e fez uma breve careta, depois tirou

o anel e o devolveu a Hawk franzindo o cenho. Devolveu-lhe um sorriso inocente.

Ao seu redor, os homens lançavam exclamações, riam a gargalhadas, vociferavam e

bebiam.

Sem lhes fazer o menor caso e mantendo a calma, seu alto e arrogante oponente se

inclinou para frente e apoiou os cotovelos sobre a mesa, orgulhoso como todo conquistador.

Entrechocou os dedos enquanto a olhava divertido e com expectativa.

— Estou contendo a respiração à espera de meu prêmio.

— Oh, muito bem — murmurou ela. — Acabemos de uma vez.

— Vá, você é uma má perdedora — a repreendeu com suavidade.

Bel ficou de pé, apoiou as mãos sobre a toalha verde da mesa e se inclinou para ele,

consciente de que a ovação adquiria um volume ensurdecedor. O coração lhe pulsava a toda

velocidade, enquanto ele, por sua parte, parecia totalmente sereno.

Inclinou-se mais se armando de coragem, vacilando à medida que se aproximava

dele, até que seus lábios ficaram a escassos centímetros dos de Hawk.

— Poderia cooperar — sugeriu Bel.

— Por que, se é muito mais divertido vê-la sobressaltada?

Ela entrecerrou os olhos. Fazendo caso omisso do estrondoso público mediante um

esforço de vontade, percorreu a distância que os separava e o beijou na boca com decisão.

Um instante depois se afastou com as faces rosadas, incapaz de ocultar o brilho do triunfo

em seus olhos.

Ele a observou com ceticismo, roçou a mesa com os dedos e ficou a tamborilar

aborrecido.

— Achava que havia dito que ia beijar-me.

— Eu... Acabo de beijá-lo.

— Não.

— O que quer dizer? Acabo de fazê-lo. — Suas faces passaram da cor rosada ao

vermelho enquanto os homens riam a gargalhadas da prosaica recriminação de Hawk.

Estendeu-lhe de novo o anel deslizando-o sobre a mesa.

— Olhe este anel. Vale por dez alfinetes de gravata como o que ganhou antes.

Apostei este anel. Não pode me dar um beijo como o que acaba de me dar e dizer que é

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justo. As normas são normas, senhorita Hamilton. Quero um beijo de verdade, a menos que

queira passar a ser conhecida como uma dama pouco esportiva.

Bel ficou boquiaberta e indignada.

— É o único beijo que vou dar.

Ele levou na brincadeira suas palavras e afastou a vista, coçando a face.

— E se considera uma cortesã.

— O que quer dizer? — perguntou Bel.

Hawk encolheu os ombros, ajeitando-se em sua cadeira.

— Recebi beijos melhores de leiteiras.

— Oh! — exclamaram os homens, presenciando seu duelo com crescente interesse.

Bel cruzou os braços e se conteve, olhando-o fixamente. Teria atirado o anel em seu

arrogante rosto se seus olhos não tivessem brilhado tão alegremente. Podia ver que ele não

tinha intenção de deixá-la escapar.

— Não acredita que deve a estes fiéis cavalheiros uma autêntica demonstração de sua

técnica profissional? — disse ele arrastando as palavras, enquanto brincava com seu anel,

fazendo-o rodar entre o polegar e o indicador.

Bel observou com ar vacilante os admiradores que tinha ao seu redor, e a seguir o

olhou. Como se atrevia aquele canalha a pôr em dúvida seus dotes... E a ameaçar sua forma

de vida? Por menos que ele soubesse, tinha posto o dedo na chaga. Depois de tudo, a

principal preocupação de Bel era que seus pretendentes, que tinham devotado somas

enormes de dinheiro para acolhê-la sob seu amparo, inteirassem-se de que na realidade a

ideia de ir para cama com um homem a aterrava. Se não demonstrasse naquele preciso

momento o que valia, poderiam começar a suspeitar.

Muitos deles riram ante a sugestão de Hawk, embora os mais entusiastas parecessem

realmente ofendidos pelo que a ela dizia respeito. Aquele vaidoso cavalheiro quem quer que

fosse teria sorte se não se visse envolvido em um duelo. Não, recordou um instante depois,

os homens não se batiam em duelo pelas mulheres mundanas, só pelas damas. As mulheres

de sua condição não tinham honra que defender.

Enquanto pensava em seu seguinte movimento, Bel sacudiu a cabeça com altiva

indiferença e levou as mãos à cintura.

— O caso é que nunca dou beijos de verdade em homens cujos nomes nem sequer

conheço.

— Isso é fácil de remediar. — disse ele com um sorriso. — Chamo-me Hawkscliffe.

— Hawkscliffe? — repetiu ela, olhando-o de alto abaixo com uma comoção mal

dissimulada.

Tinha ouvido falar do duque de Hawkscliffe — Robert Knight-, o jovem e entusiasta

líder Tory em plena ascensão, famoso nos círculos do governo por sua coragem, seu forte

caráter e seu inquebrável sentido da justiça. Não era um simples solteiro, era o partido da

década, com lucros de cem mil libras ao ano. Até o momento, nenhuma dama tinha estado à

altura dos exigentes requisitos de Hawkscliffe.

Conhecia os detalhes mais importantes da história de sua família e também aqueles

relacionados com seus títulos: conde de Morley, visconde de Beningbrooke. Sabia que a

mansão Hawkscliffe era um enorme castelo normando que se erguia orgulhosamente em um

penhasco no cume das montanhas de Cumberland. Sabia tudo aquilo porque os segredos da

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aristocracia constituíam uma grande parte do programa de estudos de suas alunas na

Academia para Jovens Damas da senhora Mai, o lugar onde Bel tinha instruído

desastrosamente a revoltada irmã menor do duque, lady Jacinda

Knight.

“Oh, Deus”, pensou, lançando um inquieto olhar aos nobres briguentos que rodeavam

a mesa. Depois olhou novamente para Hawkscliffe. Fosse quem fosse aquele homem não

era amigo de Dolph Breckinridge. De algum modo, aquela certeza junto com a relação que a

tinha unido à sua irmã menor fez com que se sentisse um pouco mais segura com ele.

Também contribuía sua excelente reputação e os brilhantes artigos escritos por ele que tinha

lido no Quarterly Review, nos quais defendia enfoques humanitários que ela aplaudia

sinceramente.

Procurando ocultar seu interesse repentino, Bel cruzou os braços e o olhou com altiva

diversão.

— Pode-se saber o que faz aqui o duque virtuoso, jogando e tentando obter de uma

cortesã uns beijos que não merece?

Os homens riram a custa de Hawk, embora não de forma maliciosa.

— Oh, só estou me divertindo — respondeu ele com um sorriso calculista. — Sabe

perfeitamente que ganhei um beijo que é devido conforme todas as regras de lei, senhorita

Hamilton.

— Bom — disse Bel com malicia — , sem dúvida o necessita.

A aguda réplica despertou algumas gargalhadas ao seu redor, mas a maior parte dos

lordes e dandis presentes se calaram, cativados, esperando para ver se ela beijava

Hawkscliffe.

Agora que sabia quem ele era, Bel compreendeu que não havia nenhuma forma

honrosa de voltar atrás. Não se deixaria intimidar por um famoso e puritano santarrão.

Provavelmente não sabia mais do que ela sobre beijos de verdade.

Quando apoiou as mãos sobre a mesa e se inclinou para ele pela segunda vez, seu

coração pulsava mais rápido devido à espera, à curiosidade e à inegável atração. Tinha

chegado o momento de comprovar se se lembrava do que Harriette lhe havia ensinado.

Pousou sua mão sobre a face barbeada de Hawk, vislumbrou seus olhos ardentes

antes de fechar os seus e, a seguir, acariciou sua boca com seus lábios e lhe deu um beijo

que fez que a buliçosa festa, a cidade e o mundo ficassem atrás.

Ele tinha a boca quente e sedosa, sua pele suave ardia sob seu toque. Bel acariciou

seu cabelo escuro e o beijou mais profundamente, inclinando-se ainda mais sobre a mesa.

Hawk lhe rodeou a nuca com a mão e a segurou com firmeza e suavidade quando ela abriu

os lábios e lhe ofereceu seu sabor. Ele respondeu de forma apaixonada embora com

comedimento, extasiando-a com aquele beijo embriagador, até virtualmente fazê-la tremer

de prazer.

Finalmente acabou de beijá-la de forma lenta e suave e a soltou.

Bel recuperou o juízo em meio a uma sonora ovação, com uma sensação de

atordoamento. Tinha os lábios como se tivessem sido picados por uma abelha, as faces

rosadas, e não parava de ofegar. O cabelo de Hawkscliffe estava revolto, seu rígido lenço

amassara, e ele parecia qualquer coisa, menos alguém exemplar.

O duque dirigiu a ela um intenso olhar de desejo que fez com que Bel experimentasse

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pela primeira vez a emoção de sentir-se como uma verdadeira cortesã, e não uma garota

boba e orgulhosa tratando de fingir. Baixou a cabeça, mordeu o lábio timidamente e voltou

a olhá-lo.

Esboçando um sorriso sensual, o duque lhe estendeu o anel.

— Pegue-o — murmurou. — Insisto.

Bel compreendeu que, com aquele gesto, pretendia lhe dar a entender que o tinha

ganhado, e o devolveu com um sorriso de cumplicidade.

— Fique com ele excelência. Foi um prazer.

Os homens que os rodeavam estalaram em gargalhadas, mas Hawkscliffe se limitou a

sorrir para si, observando como ela se afastava, com a promessa de voltar àquele lugar

escrita nos olhos.

Bel mal tinha chegado à outra sala quando ouviu como o duque era aplaudido de

forma ensurdecedora pelos homens que ocupavam o salão.

Deu uma olhada por cima do ombro e viu que Hawk ria cordialmente enquanto lorde

Alvanley lhe dava palmadas nas costas jovialmente. Talvez alguém tivesse acabado de lhe

dizer que ela nunca tinha concedido esse favor a nenhum de seus admiradores. As

bronzeadas faces de Hawkscliffe estavam tingidas de um rubor viril.

Bel riu para si mesma e se virou. Era tarde, de modo que abandonou o salão e foi

para a cama antes que aparecesse algum de seus admiradores procurando uma oportunidade

para conseguir um beijo. Agora sabia quem queria que a beijasse.

Quando pousou a cabeça sobre o travesseiro, ainda continuava sorrindo, e embora o

coração lhe pulsasse com excitação e uma nova esperança, negou-se a dar ouvidos à

buliçosa festa que se estava celebrando abaixo. Fechou os olhos e conseguiu descansar à

força de vontade. Era tarde e não estaria bem ter olheiras quando voltasse seu futuro

protetor.

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QUATRO

Hawk passou a noite só em sua enorme cama lavrada, agitado e dando voltas entre os

lençóis de cetim,olhando o dossel de veludo em um estado de incerteza, cheio de excitação,

frustração e curiosidade.

Uma cortesã.

Nunca antes tinha beijado uma cortesã, nem havia tocado nem tinha deixado que o

tocasse. Tinha tomado cuidado com elas. Tinha seus preconceitos é certo, pois um homem

de sua posição devia ser cauteloso. E entretanto... O que ocorreria se ela estivesse ali?

Fechou os olhos, aliviando sua desesperada solidão com imagens dela sob a luz das

velas, misteriosa e adorável, enquanto sua risada altiva e enlouquecedora ressoava em seus

ouvidos, mofando-se dele.

Ele queria mais.

Um beijo não bastava. Queria explorar cada curva de seu corpo, saborear sua pele

sob seus lábios... Com um gemido surdo, colocou-se de frente à parede, cheio de um desejo

culpado. Não podia parar.

Pensou na fina textura de seu cabelo enquanto sonhava que ele o soltava, vendo

como caía em loiras mechas sobre seus ombros. Então, em sua imaginação, despiam-se um

ao outro e ele a levava a sua cama, onde Bel utilizava cada centímetro de sua sedosa pele

juvenil para enfeitiçá-lo com seu sonho amoroso. Fille de joie. Garota de prazer. Enquanto

seu corpo ansiava e desejava ardentemente seu toque, ele era consciente de que podia fazer

que aquilo acontecesse pagando um preço.

Fosse qual fosse o preço, poderia permitir-se sem problemas. Mas não se atrevia.

Uma mulher como aquela podia aceitá-lo por suas posses e depois afastar-se bem

contente. Ou pior ainda, atar-se a ele para sempre por meio de filhos ilegítimos. Era

perigosa.

Mas condenadamente atraente.

No domingo, quando se fez dia, Hawk sentiu que deveria ter ficado adormecido, pois

despertou com o som dos sinos que tocavam para a missa. Tinha a cabeça limpa e o corpo

revitalizado, e todo o seu ser estava ansioso por voltar para junto de Belinda Hamilton antes

que Dolph Breckinridge acabasse de dormir a matina e ouvisse falar do beijo.

A julgar pelo comportamento de Dolph na noite anterior, sua reação à notícia não

seria agradável. Hawk tinha intenção de permanecer com ela para protegê-la quando o

baronete chegasse.

E mais, tinha lhe ocorrido uma solução. A senhorita Hamilton era evidentemente o

ponto de apoio por meio do qual podia obter uma enorme influencia sobre Dolph. Em

primeiro lugar, teria que pôr Bel um pouco a prova, determinar em quem recaía sua

simpatia. Mas se Dolph a desagradava tanto como parecia, seria unicamente questão de

acolhê-la sob seu amparo.

O plano que estava tomando forma em sua mente implicava em associar-se

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intimamente com a senhorita Hamilton durante as semanas vindouras, mas à luz do dia não

achou nenhuma razão pela qual não pudesse confiar plenamente em seu férreo autocontrole.

Ele era o forte duque virtuoso, não era assim? Todo mundo sabia que podia rechaçar

facilmente a tentação. Trataria Belle Hamilton com cortesia e lhe pagaria por seu tempo,

mas não se comprometeria “daquela maneira” com uma cortesã.

Fazendo um esforço de vontade, obrigou-se a esperar até a tarde para visitá-la.

Eram quatro e quinze quando saltou de sua carruagem. Deixou a carruagem aos

cuidados de William, seu competente cavalariço, um ossudo rapaz de dezenove anos.

Aproximou-se resolutamente da porta de Harriette Wilson e bateu.

Esperou que alguém respondesse, entrecerrando os olhos para se proteger do

brilhante sol de maio, enquanto o forte vento lhe encrespava o cabelo e brincava com as

abas de seu suave fraque de cor parda. Olhou ao céu azul, desfrutando da brisa fresca, do

fantástico conjunto de nuvens e da promessa do iminente esplendor do verão.

Quando a criada lhe abriu a porta, Hawk lhe entregou seu cartão de visita e perguntou

pela senhorita Hamilton. A criada fez uma reverência e se apressou a subir a estreita escada

de madeira para ver se a senhorita estava preparada para receber visitas. Ele passeou pelo

pequeno vestíbulo da entrada, fazendo soar seus passos com um estranho eco. Quase não

parecia o mesmo lugar abarrotado da noite anterior. A excitação de voltar a ver a adorável,

impertinente e incrivelmente deliciosa senhorita Hamilton apenas se via diminuída pela

pontada de culpa que lhe recordava que estava ali unicamente por Lucy.

A criada retornou e lhe perguntou se ele podia esperar alguns minutos mais. Ele deu

de ombros e continuou passeando, dando batidinhas a sua cartola contra a coxa,

inspecionando com curiosidade a cadeira de mãos de Harriette que estava apoiada junto à

escada.

A senhorita Hamilton o fez esperar — a ele, o poderoso duque de Hawkscliffe— um

longo quarto de hora antes de dignar-se a lhe permitir subir para que gozasse de sua seleta

companhia. Ele não tinha a menor duvida de que o único propósito daquilo consistia em lhe

ensinar onde era seu lugar: junto a ela. Que outra coisa podia fazer a não ser suspirar e

aceitá-lo? Enquanto não estivesse sob seu exclusivo amparo, aquela cortesã teria os trunfos

em sua mão. Por estranho que parecesse, suas transparentes maquinações não afetaram o

humor surpreendentemente jovial de Hawk. Não podia evitá-lo. Aquela moça o divertia.

Quando finalmente a senhorita Hamilton enviou a criada para lhe dizer que subisse, o

coração do duque começou a acelerar-se de forma ridícula à medida que subia os degraus. A

criada o conduziu através do grande salão, que nesse momento estava vazio, pela frente da

mesa com o pano verde, até uma sala situada na parte traseira do segundo piso. A donzela

fez uma reverência e o deixou na soleira da sala.

Entrou e achou a senhorita Hamilton colocada com recatada perfeição em um

elegante sofá de estilo egípcio, junto a uma mesa redonda com um vaso que continha umas

hortênsias recém-cortadas. Tinha um periódico no regaço, e seus pés repousavam sobre uma

banqueta bordada. Inclusive o sol da tarde que entrava pela janela parecia irreal ao reluzir

em seu cabelo loiro claro, que nesse dia se derramava sobre seus ombros em ondas loiras e

cachos brilhantes como o champanha. Suas suntuosas mechas mantinham certa aparência de

ordem graças a um par de pentes de marfim.

Hawk sorriu quando a atraente criatura fingiu que não o tinha visto, deixando que a

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olhasse até fartar-se. Usava um vestido de musselina amarelo pálido com botões e uma

ampla gola redonda. As mangas curtas e abauladas convidavam o duque a admirar seus

finos braços. Todo mundo a considerava um anjo doce e terno, pensou Hawk com um

estúpido sentimentalismo. E, mesmo sabendo que a cena que tinha ante seus olhos era o

resultado calculado da conquista feminina e mercenária, sentia-se cativado.

— Boa tarde, senhorita Hamilton.

Bel ergueu a vista no momento justo, e a seguir lhe dedicou um cálido sorriso.

Brilhavam-lhe os olhos com um novo fulgor.

— Excelência!

— Espero não interromper — disse ele em um tom bastante irônico.

— Absolutamente — declarou ela com alegria, lhe estendendo a mão como uma

princesa inclinada a tratá-lo com favoritismo.

Ele se aproximou obedientemente, tomou sua mão e lhe deu o esperado beijo na

ponta dos dedos. Os grandes olhos azuis violeta de Bel brilharam quando ele a saudou e,

salvo engano por parte de Hawk, a jovem e bela cortesã se achava indubitavelmente

ruborizada.

Depois do beijo ela não se soltou da mão do duque, mas sim a rodeou com os dedos e

puxou-o para que se sentasse no sofá situado junto a ela, obsequiando-o com um generoso

sorriso. Hawk não afastou o olhar de seu rosto, empapando-se daquela visão.

— Perguntava-me se me visitaria hoje — disse Bel, quase com acanhamento.

Ele riu com ternura.

— Acaso o duvidava?

Ela sorriu e seu rubor se tornou mais intenso. Os dois ficaram olhando-se fixamente

em um silêncio cativante e prazeroso. Hawk achou que o coração lhe tinha dado um salto.

O que está lendo? — perguntou, antes que sentisse a tentação de estreitá-la entre seus

braços e beijá-la no sofá até que perdesse o sentido.

— O Quarterly Review.

— De verdade? — Surpreso de que não se tratasse de uma absurda história gótica

publicada por entregas, pousou o braço no espaldar do sofá por detrás dela, e se aproximou

para examinar o exemplar que estava lendo. Cheirou a fragrância suave e pura de seu

cabelo, uma mescla saudável de botões de rosa, amêndoas doces e camomila que penetrou

diretamente em sua cabeça.

— Acabo de ler um artigo fascinante intitulado “Uma chamada para a abolição

internacional da escravatura”, escrito por sua excelência, o duque de Hawkscliffe. Ouviu

falar dele?

Surpreso, Hawk notou como lhe avermelhavam as faces. Foi invadido pelo

acanhamento ante aquele interesse por seu trabalho.

— Um tipo aborrecido, né?

— Ao contrário, excelência. Parece-me que seus ensaios estão escritos com muita

destreza. É lógico em seus argumentos, contundente em seu estilo, e me atreveria a dizer

que... Apaixonado com o tema. Só me pergunto se seus colegas tories não se assustam.

— Por que o diz? — perguntou ele desconcertado.

— Algumas de suas opiniões se aproximam das dos whigs.

Hawk a olhou fixamente, em parte divertido e em parte indignado. Além de tudo, não

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era mais que uma mulher. O que sabia ela de política?

— Oh, sério? — disse indulgentemente com voz lenta.

— Absolutamente. — Agarrou um exemplar dobrado do Edinburgh Review que

havia na mesa situada junto a ela— você desfrutaria se conhecesse um amigo de Harriette, o

senhor Henry Brougham. Estive lendo os periódicos dos dois partidos, e suas opiniões sobre

certos tema se parecem notavelmente.

Hawk arqueou uma sobrancelha. Era-lhe impossível determinar se se sentia

insultado, surpreso, ou simplesmente divertido ao ter sido comparado tão alegremente com

seu grande rival político.

A senhorita Hamilton se dirigiu a ele com inocência.

— Conhece o senhor Brougham, excelência?

— Sim... Encontramo-nos algumas vezes.

Ela jogou o Edinburgh Review a um lado e voltou a folhear o Quarterly.

— Também lido seu ensaio “O castigo deve adequar-se ao crime”. Suas ideias sobre

a reforma penal me parecem excelentes. Não estou dizendo que entenda todos os matizes

legais, mas um homem que sabe distinguir o que está bem do que está mal merece meu

respeito. Restam poucos como você — acrescentou com altivez.

Contendo uma gargalhada de perplexidade e bastante incomodado por seu elogio,

Hawk afastou o periódico de suas mãos.

— Vamos senhorita Hamilton, faz um dia muito bonito para ficar encerrada em casa

lendo ensaios aborrecidos de política.

— É muito modesto – recriminou-o ela, mas seus olhos brilharam de alegria ante o

convite. Ficou em pé de um salto e se afastou a grandes passadas em busca de seu xale, seu

chapéu e sua sombrinha.

Sozinho na sala, Hawk não podia deixar de sorrir. Baixou a cabeça, soltou um

suspiro e passou a mão pelo cabelo, tratando de manter a calma. Caramba, não esperava que

fosse tão perspicaz como era formosa.

Alguns minutos mais tarde Bel retornou, pronta para sair. Desceram saltando os

crepitantes degraus como crianças excitadas, e saíram à gloriosa luz do sol.

Hawk a ajudou a subir em seu coche e deu a volta em direção ao assento do condutor,

enquanto William se colocava em seu lugar na parte traseira. Agarrou as rédeas e as fez

estalar contra as costas de seus velozes cavalos baios de raça pura.

O som dos cascos dos cavalos reverberava contra as impecáveis casas com fachadas

lisas enquanto o coche descia pela rua de pedras. Os meninos que jogavam bola na rua se

dispersaram ao ver que eles se aproximavam. Quando deixaram para trás o buliçoso grupo

de crianças, Hawk fustigou os cavalos para que avançassem a meio galope. Belinda ria com

deleite da velocidade alcançada, e seu cabelo ondeava para trás e lhe açoitava o rosto de

ambos os lados de seu chapéu. Ele sorria abertamente, desfrutando da estranha ocasião de

poder se exibir nas rédeas do coche ante uma formosa jovem.

O passeio até o Hyde Park não foi longo. Quando chegaram, acharam Inner Ring

Road lotada de cavaleiros e carruagens abertas. Todo mundo tinha saído a dar um passeio

dominical em plena temporada. Avançavam a passo rápido e o meio-fio se achava coberto

de barro.

Hawk percebeu rapidamente os olhares que lhes dirigiam. Os jovens contemplavam

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Belinda boquiabertos, enquanto as mulheres casadas olhavam para ele atônitas. Mas aquilo

era apenas o início. Sabia que o rumor se espalharia rapidamente. Logo todos — inclusive

Dolph— teriam se informado de que ele tinha sido visto escoltando a desejada cortesã pelo

centro da cidade.

Enquanto isso, só podia perguntar-se como se sentia sua formosa companheira

quando passavam junto a algumas damas da sociedade que lhe viravam a cabeça, ou pior

ainda, quando alguns homens que se renderam a seus pés na noite anterior se apressavam

em suas carruagens com suas esposas e filhos e fingiam que não a conheciam, que ela não

existia. Toda aquela hipocrisia despertava no duque seu instinto protetor de um modo

furioso.

Fixou-se nela e soube que estava desgostosa, pois o olhar que dirigia para frente se

tornou inexpressivo, como tinha ocorrido na noite anterior durante a diatribe de Dolph. O

rosto de Hawk se endureceu. Fosse cortesã ou não, ele não pensava deixar que lhe fizessem

aquilo.

Sem perguntar a Bel aonde preferia ir, seguiu por West Carriage Drive, onde Hyde

Park dava passagem aos jardins de Kensington. Como era domingo, os jardins estavam

abertos. Conduziu o coche até afastar-se ligeiramente dos olhares hostis e invejosos.

Ao aproximar-se de Long Water, reduziu a marcha dos cavalos até que se detiveram.

Virou-se e descobriu a senhorita Hamilton olhando-o de modo interrogativo.

— Pensei que podíamos caminhar um pouco junto à água — disse ele.

Ela assentiu com a cabeça, visivelmente aliviada por ter conseguido escapar do

grosseiro escrutínio da gente fina. Hawk pôs o freio, desceu do coche e a ajudou a descer

enquanto William se ocupava de suas obrigações, dirigindo-se à parte dianteira para segurar

as rédeas dos cavalos.

Deixaram ao moço o cuidado do coche e caminharam pela borda do lago seguindo

um atalho de cascalho. Um ruidoso bando de patos os seguiu e, como ambos permaneciam

em silêncio, os grasnidos das aves em busca de miolos se converteram na única linguagem

audível.

Enquanto passeava com as mãos às costas, Hawk observou como Bel caminhava

lentamente junto a ele, com os braços cruzados e os finos ombros cobertos por um xale

transparente de seda azul. Retirou o chapéu e o tinha caído nas costas, com as fitas de cetim

seguras ainda ao redor do pescoço. Seu delicado perfil tinha um ar pensativo enquanto

contemplava a água reluzente.

— Seu cavalariço parece de confiança para um moço tão jovem — comentou em um

esforço artificial por romper aquele eloqüente silêncio.

— Acreditar-me-ia se lhe dissesse que antes era limpador de chaminés? — respondeu

Hawk com um meio sorriso, agradecido pela oportunidade que lhe dava. — Há anos o

último patrão de William o enviou para limpar algumas das chaminés de Knight House, e

minha cozinheira o achou caído no chão da cozinha. Demo-nos conta de que o moço se

achava em estado de inanição e de esgotamento. A cozinheira e a senhora Laverty, minha

governanta, cuidaram dele e o alimentaram até que ficou bom. Uma vez recuperado,

acolheram-no como moço de cozinha, mas logo mostrou um talento especial para com os

cavalos, assim o mudamos para os estábulos. Em dez anos se converteu em cocheiro chefe.

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— Que bonito ato de generosidade — disse ela suavemente.

Hawk agachou a cabeça, envergonhado pelo elogio.

— Tudo foi coisa da senhora Laverty, lhe asseguro. Eu gostaria que me chamasse de

Robert.

Bel lhe sorriu.

— Como quiser.

Os dois contemplavam o chão enquanto caminhavam, deixando que suas mãos

enluvadas se roçassem e deslizassem em um flerte sensual embora sutil que estimulou

Hawk mais do que estava disposto a admitir.

Bel lhe dedicou um sorriso vacilante quando se detiveram atrás de um sombrio

sarçal.

— Temo que depois da excursão pelo Rotten Row, seu acesso aos salões do

Almack’s pode ver-se em perigo.

— Almack’s — disse ele soprando, rindo-se ao pensar nas aborrecidas contradanças

que assistia obedientemente junto às filhas casadoiras e dissimuladas de seus colegas.

Provavelmente se casaria com uma delas ao cabo de um ano.

Uma ideia deprimente.

O mais certo era que acabasse com a filha surda do Coldfell, mais por compaixão ou

cavalheirismo que por qualquer outro motivo. As poucas vezes que tinha visto lady Juliet,

ela lhe tinha parecido uma garota boa e obediente. Posto que ninguém quisesse a pobre

criatura devido a sua deficiência, lhe pareceu que seria o mais correto.

— Quando tinha dezessete anos estive a ponto de ir ao Almack’s — comentou a

senhorita Hamilton com um suspiro, enquanto deslizava a mão pelo seu braço e retomavam

o passeio.

— O que aconteceu? Por que não foi?

— Minha mãe morreu algumas semanas antes da esperada data de minha entrada...

— Sinto muito.

— Obrigada, não se preocupe. — Sorriu-lhe com ar melancólico. — Ao estar de luto,

obviamente, não podia ir a parte alguma.

— Deveria ter ido se isso a tivesse ajudado a animar-se.

— Acredita que me deixariam entrar agora? — perguntou com um sorriso irônico.

— Não se preocupe. — Ele riu entre dentes e lhe deu uns tapinhas na mão que

repousava em seu antebraço. — Não perde grande coisa. A comida é terrível, o ponche é

fraco, a companhia é aborrecida, e o chão da sala de baile é tão desigual que deveriam

declarar em ruína todo o edifício. E não deixam jogar vinte e um em troca de beijos.

— Bom, então não me incomoda que me proíbam a entrada. — Sorrindo com

malícia, apertou o braço do duque e se inclinou para ele com ar cúmplice. — Assim Robert,

me diga, onde aprendeu, um homem virtuoso como você, a beijar desse modo?

Ele arqueou as sobrancelhas e a olhou.

A senhorita Hamilton retirou sua mão do braço do duque e riu.

— Bem?

— Viajei muito — afirmou ele com ar de superioridade, e continuou caminhando.

— Oh, de verdade? — Bel o seguiu dando um saltinho. — Solte isso, Hawkscliffe!

Ele pôs-se a rir.

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— Nunca falo dos beijos que dou.

— Oh, vamos, pode me contar isso!

— Bom — murmurou ele, baixando a voz até empregar um tom digno de um

conspirador. — Para que saiba, houve uma dama a quem conhecia. Uma viúva.

— Uma viúva alegre?

— Muito alegre — sussurrou com uma risada zombadora. — Era mais jovem que eu.

Estive loucamente apaixonado durante dois ou três anos — disse repentinamente indignado.

— Inclusive lhe pedi que se casasse comigo.

— A armadilha do casamento, Robert? Por Deus!

— Já sei que soa estranho, mas é o que queria. — Deu de ombros. — Não sou

partidário dos flertes.

Ela riu dele como se já tivesse ouvido aquilo antes.

— De verdade? Então do que é partidário?

Hawkscliffe olhou a água reluzente e sentiu a tentação de não lhe responder, mas

uma palavra escapou suavemente de seus lábios, por absurda que fosse.

— Da devoção.

Ela ficou olhando-o fixamente por um instante, como se fosse incapaz de determinar

se falava sério ou se estava brincando. De repente forçou um sorriso alegre e continuou

caminhando como se ele não houvesse dito nada.

Hawk percebeu que Bel se ruborizara e arqueou uma sobrancelha enquanto ela se

adiantava ligeiramente.

— Rechaçou ao duque de Hawkscliffe! Que estranho! E por que não quis casar-se

com você sua viúva alegre?

Hawk a seguiu com o olhar, intrigado por sua reação nervosa.

— Já tinha cumprido com sua obrigação, dar a luz aos futuros herdeiros — disse de

forma despreocupada. — Tinha recebido uma fortuna, e não tinha nenhuma intenção de

lançar raízes pela segunda vez, nem comigo nem com nenhuma outra pessoa. Deus, como a

queria. Mas ela só desejava ser livre e independente.

— Não há nada de mal no fato de ser independente se uma mulher se pode permitir.

— Bom essa mulher com certeza se arrependeu mais tarde por essa decisão, tenho

certeza.

A senhorita Hamilton se voltou e o olhou por fim.

— Voltou junto a você arrastando-se, não é verdade? A viúva alegre não era tão

alegre depois de ter se divertido.

— Sim.

— E você se livrou dela? Jogou-a na rua?

O duque riu ironicamente enquanto olhava para diante atalho abaixo. Era um

cavalheiro para reconhecer que nunca lhe tinham faltado companheiras de cama. Apesar de

tudo, embora ele preferisse as relações discretas e exclusivas, todas as amantes que tinha

tido tinham acabado acusando-o, de forma histérica e incompreensível, de não preocupar-se

com elas, ou de estar muito ocupado com sua carreira política, ou de algo parecido. Quando

ameaçavam partir, ele raramente discutia com elas, pois segundo sua experiência era

impossível agradar às mulheres bem como compreendê-las.

Contemplou de novo o olhar de expectativa da senhorita Hamilton.

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— Basta dizer que a pessoa só dispõe de uma oportunidade comigo, querida.

Geralmente sou intolerante com as manias das pessoas que me rodeiam e não posso suportar

a estupidez. É um defeito de meu caráter, sei, mas compenso minha pouca caridade

trabalhando com exigências mais altas que as que emprego para avaliar a outros. E acredito

que no momento já falei suficiente sobre mim — declarou lhe agarrando a mão. Conduziu-a

cortesmente fora do atalho de cascalho, em direção à borda do lago. — Gostaria de saber

coisas sobre você.

— Que deseja saber?

Sustentou-a enquanto ela passava com delicadeza de uma grande rocha cinza a outra,

segurando as barras amarelas para que não se manchassem de barro.

— Tudo.

— Não há muito que contar. Nascimento: Kelmscot, no condado de Oxford, em três

de setembro de mil setecentos e noventa e um. Línguas: francês e um pouco de latim.

Habilidades: toco o piano regular, e não sei desenhar. Adoro história e gatos.

— Gatos? E os cães?

— Sou um pouco precavida com os cães, confesso-o. Sobretudo com os grandes.

— Hum, eu tenho seis. Mastins e cães da Terranova. Cada um deles pesa mais que

você.

Ela deu de ombros.

— Sua excelência vive em um canil.

— Não lhes permito entrar em casa. Conte-me algo mais.

— Como o que?

Hawkscliffe a olhou diretamente nos olhos.

— O que há entre você e Dolph Breckinridge?

A senhorita Hamilton ficou rígida e o olhou fixamente nos olhos durante um longo

tempo, com um aspecto extremamente receoso.

— Dolph Breckinridge é um imbecil — disse finalmente. — É tudo o que tenho que

dizer sobre o tema. — Afastou a vista, fingindo que contemplava a água.

— Dá-me a impressão de que o reprova.

— Não me faça rir.

— Bem?

Ela sorriu com um refinado desdém.

— Dolph se dedicou a me fazer a vida impossível durante os últimos dez meses. Já

viu a forma como se comportou comigo ontem à noite. Sei que o viu.

— Sim, mas não tinha certeza do que estava presenciando. Não sabia se era uma

discussão entre amantes ou outra coisa.

— Uma discussão entre amantes? — Enrugou o nariz, indignada. — Uf! Antes

beijaria a um sapo. É necessário que falemos disto? Só de pensar nele me amargura o dia...

— Minha querida senhorita Hamilton, sabe perfeitamente que Dolph virá me buscar

feito uma fúria assim que se inteire de que a beijei...

Ela levantou um dedo.

— Desculpe, mas fui eu quem o beijou.

— Em qualquer caso mereço saber o que enfrento.

— Foi culpa sua. Você foi quem insistiu que lhe desse um segundo beijo – ela

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recordou, apontando com o dedo no seu peito.

— Oh, acaso não gostou? — perguntou ele em tom agradável.

A senhorita Hamilton lhe dirigiu um olhar de superioridade, virou-se e começou a

caminhar diante dele pavoneando-se.

Hawk ficou olhando-a, cativado por seu melífluo andar, e de repente a seguiu em um

estranho arrebatamento de vigorosa euforia. Deus, ela era uma maliciosa tentadora.

— Pretendo ganhar seu favor como já sabe e assim me poderia contar isso tudo —

disse ele com ar premeditadamente despótico.

— De verdade? — voltou-se e o olhou com uma surpresa cheia de receio. —

Harriette diz que você despreza as mulheres de nossa classe.

Ele ergueu a mão de Bel e depositou um galante beijo em seus dedos.

— Não sou mais insensível à beleza que outros homens — disse, adulando-a com

destreza.

— Sempre sabe o que tem que dizer?

— Na maioria das vezes.

Ela soltou um suspiro.

— Muito bem, mas compreenda que estou me confiando a você.

— Nunca repetiria o que me contasse em confiança.

— Conheci Dolph no outono passado, no baile da temporada de caça. Eu não tinha o

menor desejo de conhecê-lo, já que durante toda a noite tinha estado vendo como zombava

de nós, os populares, mas considerou que eu era digna de que me convidasse a dançar.

Conhecia um de meus vizinhos e lhe pediu que nos apresentasse: não tinha escapatória.

Demorei três segundos em descobrir o odiosamente repugnante que é. Entretanto,

desgraçadamente, sir Dolph se sentiu atraído por mim e começou a me perseguir no dia

seguinte. Quando se deu conta de que eu estava decidida a recusar suas tentativas, sua

perseguição se tornou desagradável.

— Quanto de desagradável? — perguntou ele, franzindo o cenho.

— Fez que encerrassem meu pai na prisão de Fleet. Assim é como começou tudo.

Hawk se deteve e a olhou dos pés à cabeça.

— Como o conseguiu?

Ela estremeceu ligeiramente.

— Meu pai é um colecionador com uma obsessão muito grande pelos manuscritos do

Iluminismo. Teria que conhecê-lo. Todo mundo que o conhece acaba adorando-o. Inclusive

nossos credores, que nunca foram muito duros com ele. Quando deviam arrecadar seu

dinheiro, ele os arrastava até sua biblioteca e lhes mostrava os últimos manuscritos que

comprara em vez de pagar nossas faturas. Os credores se comoviam ao ver seu entusiasmo e

o deixavam em paz lhe advertindo que pagasse no mês seguinte, mas ele nunca o fazia.

Então apareceu Dolph e ameaçou aos lojistas para que recuperassem seu dinheiro.

Prometeu-lhes que se pressionassem meu pai para que lhes pagasse o que lhes devia, ele

ofereceria negócios graças a seus amigos de Londres. Em pouco tempo, papai estava no

cárcere. Ainda está ali... E eu aqui.

— E você aqui? O que quer dizer isso?

Dedicou-lhe um débil sorriso de abatimento.

— Já sabe o que quer dizer, Robert.

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— Senhorita Hamilton, rogo-lhe que me diga o que é seu pai.

— Um cavalheiro...

— Um cavalheiro? Um homem que compra livros velhos e deixa que sua filha venda

seu corpo para não morrer de fome? E você o chama cavalheiro?

— Não insulte a meu pai, senhor. Ele é a única coisa que tenho — disse ela

taxativamente.

Hawk apertou os dentes, mas não ficou de todo satisfeito.

Aparentemente tinha atacado as defesas da jovem, pois parecia irritada e lhe era

impossível deixar as coisas como estavam.

— O culpado de que me convertesse no que sou não foi meu pai. Foi Dolph, que nos

arrebatou tudo o que tínhamos. Como se atreve a me desprezar? Não tinha opção.

— E o que pensa seu pai de que se prostitua para lhe salvar a pele?

— Papai não sabe nada disto.

— Famosa como se tornou, não acredita que é provável que um dia o descubra?

— Meu pai nem sequer sabe o século no qual estamos! — gritou ela, levando-as

mãos à cabeça. Depois soltou um suspiro de frustração e se voltou.

Hawk mal podia conter seu desgosto.

— Quer dizer que é impossível convencer seu pai de que se separe de seus livros para

salvá-los, aos dois?

— Já não tem seus manuscritos. Doou-os à coleção da biblioteca Bodleian.

— Oh, nunca tinha ouvido um disparate maior — murmurou ele, zangado a extremos

que lhe impediam de refrear sua língua. — Rogo-lhe que me desculpe, mas seu pai parece

tolo. Essa é exatamente a classe de idiotice amalucada e irresponsável que desprezo...

Bel chiou os dentes, indignada; seus olhos brilhavam como fogos de artifício.

— A visita terminou. — virou-se, fazendo que seu chapéu se balançasse atrás dela.

Começou a afastar-se dele na direção oposta à carruagem.

— Aonde vai?

— Para casa — respondeu ela, sem olhar para trás.

— Não quer que a leve no coche, senhorita Hamilton?

— Não quero nada de você!

— Então vai caminhando.

— Sim! — Ela se virou para encará-lo, com as faces tintas de carmesim pela raiva.

— É o que faz a gente que não tem carruagens luxuosas. Por mim, pode colocar esse

maldito traste no Long Water — gritou, e a seguir se voltou e seguiu seu caminho.

Hawk ficou olhando-a assombrado. Subitamente se pôs em movimento e a seguiu

dando grandes passadas.

— Senhorita Hamilton! Senhorita Hamilton!

Ela se virou com uma atitude de distante curiosidade, de novo com aspecto insensível

e altivo.

“Deus, isso é desesperador”, ele pensou.

— Senhorita Hamilton, sinto muito. Não me correspondia dizer isso. Por favor. Estou

acostumado a ser teimoso, não posso evitar.

Ela sacudiu a cabeça e soprou de forma afetada.

Agora que sua curiosidade tinha posto de manifesto que aquela jovem tinha quase

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tantos motivos como ele para odiar Dolph, Hawk decidiu que tinha chegado o momento de

deixar os jogos. Era hora de pôr mãos à obra.

— O certo é que tenho que falar com você. Em privado.

Bel cruzou os braços e lhe lançou um olhar indeciso, pouco convencida de que o que

lhe interessasse fora precisamente falar com ela.

— Sobre o que?

— Explicarei tudo, mas este não é o lugar adequado.

— Por que não me diz que me vai conceder carta branca, excelência?

A ousadia da jovem o indignou.

— Senhorita Hamilton – respondeu ele, com o tom mais sério de que foi capaz-, não

concederia carta branca nem a própria Vênus. Não sou tão tolo... Embora talvez você seja a

mulher mais parecida com ela que há em toda Londres.

— Boa tentativa, excelência, mas se não me concede carta branca não temos nada

que discutir... Em privado ou de qualquer outra forma. Que tenha um bom dia. — E pôs-se a

caminhar.

— Belinda!

— Por favor, não me faça perder mais tempo. Tento ganhar a vida, já sabe.

— Seja razoável, malandra — murmurou, enquanto a seguia pelo atalho dando

grandes passos. — Não lhe posso dar acesso ilimitado às minhas contas quando sou o

responsável por administrar a fortuna de toda minha família. Poderia ser uma jogadora. Ou

uma ladra, pelo que sei de você. Além disso... — Agarrou-lhe a mão e a deteve.

Ela se virou com o braço estendido e o olhou franzindo o cenho.

— Além do que, puritano insuportável?

O duque puxou-a com delicadeza, sorrindo maliciosamente apesar de si mesmo.

— Não se atreva.

— Então não me insulte.

— Você começou.

Os olhos da senhorita Hamilton brilhavam de forma desafiante, e, entretanto se

deixou arrastar para ele até que seus seios roçaram o peito de Hawk. Sustentou-lhe o olhar, e

os dois se deixaram levar imediatamente por uma fascinação magnética que impulsionava

seus corpos a tocarem-se apesar do conflito existente entre suas mentes e suas vontades.

— Posso lhe dar algo melhor que carta branca — disse ele, enquanto deslizava as

mãos por sua esbelta cintura, desfrutando do contato de seu esplêndido e ágil corpo através

da fina capa de musselina. Hawkscliffe se deleitou com sua falta de resistência, mas,

embora ela permitisse aquele toque, continuava mantendo seu ar desafiante erguendo o

queixo.

— O que pode haver de melhor que a carta branca?

Ele inclinou a cabeça e se deteve, roçando o lóbulo de sua orelha com os lábios,

virtualmente incapaz de resistir, apesar de amaldiçoar-se por estar agindo como um traidor.

Esperou até que ela tremeu de desejo e então sussurrou:

— A vingança.

Ela ficou imóvel e o olhou com receio.

— De Dolph?

— Interessa-lhe?

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— Talvez.

— Vamos falar em algum lugar, senhorita Hamilton?

Ela o observou com suspeita, mas o deixou que a levasse até o coche. Enquanto se

dirigiam de volta à casa de Harriette, ele só desejava que seu inimigo mútuo não os

estivesse esperando.

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CINCO

Pouco depois, quando chegaram à casa de Harriette, acharam-na vazia. Bel ainda

continuava indignada pelo arrogante julgamento que o duque tinha emitido dela e de seu

pai, e o conduziu à sala onde tinham iniciado sua visita em um frio silêncio cheio de

ressentimento. A figura do duque, alta e longa de costas, irradiava energia e autoridade, e

fazia com que a elegante sala parecesse pequena.

Bel lhe jogou uma olhada com cautela pela extremidade do olho e seguiu vigiando.

Já era suficientemente grave que a tivesse chamado prostituta, mas não tinha nenhum direito

a julgar seu pai um idiota irresponsável, pensou enquanto tirava as luvas, atirando-as com

rancor. O pior de tudo era que sabia que aquele bruto insuportável tinha razão em ambas as

coisas. Depois de colocar as luvas a um lado, tirou o chapéu e o xale.

Hawkscliffe tinha atirado sua cartola sobre a mesa redonda e estava tirando as luvas

de conduzir. E, depois de atirá-las também à mesa, começou a passear. Para um homem de

uma estatura tão imponente, movia-se de forma elegante com sua roupa cara, pensou ela

enquanto se sentava no sofá e o observava, esperando para ouvir o que lhe tinha a dizer.

Com expressão meditativa , como se sopesasse cada palavra antes de abordar o tema,

Hawkscliffe tirou a jaqueta de seu fraque inexoravelmente talhado, deixou-a em uma

cadeira e descarregou a tensão de seus ombros.

Bel franziu o cenho. Se ela tivesse sido uma dama, provavelmente ele não teria se

exposto a cometer uma informalidade tão escandalosa como tirar as luvas, e muito menos a

jaqueta. Por outra parte, ela não podia menos que admirar a perfeição de seu tórax hercúleo,

como se fosse um modelo de um dos mármores do Panteão. Percorreu com o olhar a curva

de suas fortes costas. Seu apertado colete acentuava a largura de seus ombros e de sua

cintura e seus quadris estreitos, as mangas brancas folgadas unicamente sugeriam a vigorosa

musculatura de seus braços. Bel se surpreendeu desejando tocá-lo.

Escandalizada pelo impulso, ergueu seu olhar furtivo de reconhecimento até seu

rosto, forte e quadrado. Ele se aproximou da janela com forma de arco e o sol vespertino

iluminou seu pronunciado perfil, o nariz aquilino que lhe dava um ar de uma intensidade

sombria e ameaçadora. Sua boca tinha um aspecto duro e turvo, mas de repente recordou a

suave calidez do beijo que lhe tinha dado. Que diabos, era um homem formoso, impecável e

feroz como uma ave de rapina, com seu cabelo negro e sua pele bronzeada.

“Devoção” pensou Bel, soprando para si mesma com um ar de cético desdém.

Com os braços na cintura, Hawkscliffe olhava nervosamente pela janela como se

estivesse esperando que alguém chegasse.

— Não insultarei sua inteligência fingindo que me agrada sua profissão, senhorita

Hamilton. Entretanto, considero-me um bom juiz do caráter das pessoas, e acredito que você

é uma pessoa sensível, com uma forte vontade, e capaz de atuar com discrição. Embora não

tenha por costume deixar a jugular descoberta, parece que não me fica outra opção que

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confiar em você e esperar que me ajude. O que tenho que lhe contar não pode sair desta

sala. — Afastou-se tenso da janela e se sentou junto a ela. — Recorda ter ouvido Dolph

Breckinridge mencionar alguma vez uma mulher chamada Lucy?

Bel rebuscou em sua memória e depois sacudiu a cabeça.

— Não.

— E lady Coldfell?

— Sei que o conde de Coldfell é o tio de Dolph, mas nunca mencionou à condessa.

— Me diga: alguma vez Dolph a ameaçou violentamente? Teria lhe feito sentir em

alguma ocasião que corria perigo físico?

— Até ontem à noite, não. — Vacilou. — Disse-me que, se não deixasse de procurar

um protetor, arrepender-me-ia. Por que me pergunta por lorde e lady Coldfell?

Um raio de dor brilhou através dos olhos escuros de Hawk como um relâmpago.

— Acredito que seja possível que Dolph albergasse uma obsessão parecida por ela

antes de fixar-se em você. Senhorita Hamilton, lady Coldfell está morta. Algumas pessoas

acreditam que Dolph pode havê-la assassinado.

Bel esbugalhou os olhos e ficou olhando-o impressionada.

— Por esse motivo estou aqui. Quero contratá-la para que interprete uma espécie de

farsa comigo. Preciso averiguar a verdade sobre a morte de lady Coldfell, senhorita

Hamilton. Você é a chave para controlar Dolph. Se ficasse sob meu amparo, eu poderia

levar Dolph até o limite e lhe tirar a verdade.

— E depois o que? — perguntou ela fracamente.

Uma ira letal ardeu nos olhos do duque.

— Então irei buscá-lo e o matarei.

Matar Dolph? Enquanto olhava para Hawkscliffe assombrada, o primeiro

pensamento foi que lady Coldfell devia ter significado muito para ele. “Amantes — pensou.

— É claro.” A seguir caiu na conta de que o único motivo pelo qual a perseguia era para

esclarecer a morte de sua amada.

A decepção a deixou virtualmente sem fôlego. Abaixou a cabeça, procurando ocultar

a dor que sentia por dentro sob um sorriso débil e amargo. Naturalmente, ele tinha formado

uma opinião dela suficientemente clara.Evitando seu olhar, cruzou as pernas e alisou as

saias por cima do joelho.

— Vejamos se o entendi. Quer que me faça de anzol para que você possa demonstrar

a culpa de Dolph e depois vingar sua amante?

— Lady Coldfell não era minha amante... Mas, basicamente, sim.

— Vamos, Robert, não tem que haver segredos entre nós. Pode me contar a verdade.

Era sua amante.

— Não, não o era, senhorita Hamilton. Lady Coldfell era uma mulher casta e

virtuosa. Nossa relação não era como a que há entre nós dois. Era algo mais elevado, melhor

que isto. Ela era... Pura.

“Não como eu”, ela pensou, mantendo de algum modo seu sorriso tenso e forçado,

enquanto abaixava o queixo e olhava para as mãos entrelaçadas. Um sentimento de

vergonha invadiu seu ser.

— Caramba, você sim, é um homem virtuoso.

— Não, simplesmente vi como as flagrantes infidelidades de minha mãe

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desmoralizavam meu pai. Eu nunca faria algo assim a uma pessoa, e menos ainda a um

velho amigo da família como Coldfell.

— Admirável.

Bel se sentou e cruzou os braços. A devoção do duque pela dama morta lhe parecia

digna de elogio, mas não se dava conta de como estava insultando a ela? Ou não lhe

importava insultá-la porque não era mais que uma mundana?

— Talvez primeiro devesse ter me conquistado antes de me contar seu plano.

— Não a empurraria a uma situação perigosa sem antes me haver assegurado de que

é plenamente consciente dos riscos.

— Sinto lhe dizer que Dolph não o fez.

— O que?

— Que ele não o fez.

— Sim, o fez.

Bel revirou os olhos. Hawkscliffe sabia o que sabia e ponto.

— Tinha motivos e, além de Coldfell, é a única pessoa que tem total acesso à casa e

às terras, senhorita Hamilton.

— Conheço o Dolph— disse ela com moderação. — Apesar do muito que o odeio,

devo admitir que é valente, imprudentemente valente. Gaba-se disso. Assassinar uma

mulher fraca e indefesa não é seu estilo. Não é algo digno de orgulho. Ele prefere os ursos,

os lobos e as criaturas que se defendem. Prefere ter um digno oponente.

— Também prefere viver acima de suas possibilidades. Se Lucy tivesse ficado

grávida e tivesse dado um filho a Coldfell, Dolph não teria podido herdar a fortuna e o título

que reclama.

Bel não podia lhe discutir aquele ponto. Dolph estava certamente obcecado com a

ideia de herdar um abundante patrimônio.

— Ou a morte pode ter sido acidental — continuou Hawkscliffe. — Dolph pôde

tentar levá-la à horta e, a seguir, pôde desencadear uma violenta briga.

— Isso sim poderia acreditar — disse Bel tranquilamente. Afastou a vista e ficou

completamente imóvel. Ao pensar em seus pesadelos recorrentes, lhe formou um nó

angustiante e muito familiar no estômago.

Hawkscliffe ficou em pé e foi olhar pela janela.

Bel se esfregou energicamente os braços cruzados com as palmas das mãos, pois de

repente sentiu um frio gélido e úmido, apesar da sala estar quente. Não se sentia com a

coragem suficiente para olhar ao duque enquanto resistia a aceitar seu pedido. Se lady

Coldfell tinha sofrido realmente o que ela tinha sofrido — e inclusive mais-, não tinha o

dever de fazer justiça àquela companheira de padecimentos? Não tinha esse dever consigo

mesma? Mas não tinha certeza de querer envolver-se naquele assunto. A mera sombra da

lembrança fazia que se sentisse suja, maltratada e envergonhada. Era melhor esquecer.

— O que acontece se me nego?

— Negar-se? Senhorita Hamilton, se Dolph fez isso a Lucy, não lhe parece lógico,

inclusive provável em vista de sua obsessão, que você seja a próxima?

Bel se sobressaltou e continuou com a vista fixa no chão, embora pudesse sentir o

turbulento olhar de Hawk.

— Posso protegê-la. Para chegar até você, primeiro terá que chegar até a mim. De

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verdade acredita que estará mais segura aí fora com qualquer outro homem que não saiba do

que Dolph é capaz?

— O que é que propõe exatamente, excelência? — conseguiu dizer ela com

serenidade.

— Que me aceite como seu protetor. Ficará comigo em Knight House, onde a

manterei a salvo de qualquer ameaça por parte dele...

— Não, isso é muito pouco habitual. Não pode fazer com que eu viva sob o mesmo

teto que você. Haveria rumores...

— Já não me importam os escândalos! — gritou ele, passando a mão pelo cabelo. —

Que importa o que digam? Que direito tem alguém de dizer uma palavra sobre o que faço

ou deixe de fazer? Estou farto de viver sob sua tirania, e juro por Deus que não penso deixar

morrer outra mulher para proteger minha impecável reputação.

— O que quer dizer com isso?

Visivelmente constrangido, Hawkscliffe abaixou a cabeça.

— Preocupava-me com o que as pessoas diriam sobre Lucy e eu. As pessoas intuem

coisas, já sabe e... Posso lhe assegurar que ela não se mostrava indiferente ante mim.

“Que mulher poderia?”, perguntou-se Bel.

— Eu a evitava todas as horas. Queria fazer o correto. Mas agora não posso evitar me

reprovar... Se lhe tivesse dado a oportunidade de falar comigo em privado, talvez tivesse

confiado em mim... E isso me teria permitido salvá-la. Quando a olhou, os escuros olhos de

Hawk estavam cheios de angústia. — Sabia ela que Dolph era uma ameaça? Sabia que

estava em perigo? Cada noite me faço essas perguntas mil vezes, mas suponho que nunca

chegarei a saber.

— Não se faça isto, Robert — disse ela com delicadeza. — Fosse o que fosse o que

ocorreu, não foi culpa sua. Você fez o que achava correto naquele momento. É o máximo a

que pode aspirar uma pessoa.

Bel se fixou em como ele sopesava aquela afirmação e logo a descartava.

— Possivelmente não me comportei de forma virtuosa — disse. — Talvez

simplesmente tivesse medo.

Ela o olhou com compaixão, mas ele se afastou coçando a mandíbula.

— Sou consciente de que você poderia escolher qualquer homem de Londres, e de

que o que lhe peço não está isento de perigo, por isso estou disposto a compensá-la

generosamente, senhorita Hamilton. O que lhe pareceria receber mil libras por todo o

projeto? Não deve durar mais que dois meses quando muito. Além disso, terá sua própria

carruagem e um cavalo selado, todos os criados que necessitar, camarotes no teatro, uma

atribuição para o vestuário, e muitas outras coisas. E, além disso... — Sua postura se tornou

mais rígida quando juntou as mãos por detrás das costas e inspecionou a rua através da

janela. — Não exigirei sua companhia na cama.

Bel ficou olhando-o fixamente, sem atrever-se a respirar.

— Está brincando.

Ele sacudiu a cabeça.

— A mulher a quem amava morreu, senhorita Hamilton. Eu... Não posso. Espero que

o entenda.

— É claro — disse ela em voz baixa. “Espera que eu o entenda?”, pensou exaltada.

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“Mil libras por dois meses de meu tempo?” Era uma soma imponente, uma terceira parte da

dívida de seu pai... E nem sequer teria que ir para cama com ele!

Oh, livrar-se-ia do que mais temia... E para arrematar tudo, veria como Dolph recebia

o castigo que merecia!

Entretanto, de repente reparou na dor que se refletia de forma tão visível no

bronzeado rosto do duque, e sua sensação de triunfo desapareceu. Sentiu uma grande pena

por ele. Levantou-se e foi ao seu lado. Tomando a mão entre as suas, olhou-o com terna

compaixão.

— Lamento sua perda, Robert, de verdade. Ao menos lady Coldfell se encontra agora

com Deus, e em paz.

Ele assentiu com seriedade e contemplou suas mãos unidas: a sua, grande e morena, e

a dela, pequena e pálida. Quando a olhou, seus olhos escuros transbordavam uma pena

tormentosa e sua voz soou grave.

— Ajudar-me-á a lhe fazer justiça, senhorita Hamilton? Por favor. Você é a única

pessoa que pode me ajudar.

Bel o olhou, totalmente comovida.

“Oh, quem fosse amada por um homem assim.” Sua dama havia falecido e ele

continuava amando-a. Bel não sabia que houvesse homens como ele no mundo.

Não tinha a força necessária para opor-se a ele, embora naquela historia ela só ia ser

a isca dispensável, enquanto que a lembrança de lady Coldfell ia manter se como algo

sagrado. Desejava consolá-lo de algum jeito, mas ele não parecia querer que lhe

arrancassem aquela pena.

— Dois meses?

— Se lhe for mais cômodo, podemos fixar uma data em que vença nosso acordo; por

exemplo, em primeiro de agosto.

— De acordo. E... De verdade não me pedirá que vá com você à cama? — aventurou-

se a perguntar ela.

— Dou-lhe minha palavra, mas terá que ser nosso segredo. Nosso plano não serviria

de nada se Dolph ou qualquer outra pessoa suspeitasse da verdade do nosso trato. Teremos

que ser convincentes.

— Bom. — Bel se aproximou dele, pegou-lhe com suavidade as lapelas do colete e

inclinou para trás a cabeça sorrindo ironicamente, com a esperança de alegrá-lo. — Nesse

caso, Hawkscliffe, já achou sua amante.

Um sorriso triste, quase tímido, cruzou o rosto de Hawkscliffe.

— Vou ser a inveja de toda Londres.

“Sou eu a que vai ser invejada”, pensou Bel com um ligeiro sorriso, enquanto seu

coração se acelerava.

— Uma coisa mais, Robert.

— Sim?

— Soube que tem uma irmã pequena que ainda não fez sua estréia em sociedade.

— Sim, por quê?

— Não deixe que entre em sua casa enquanto eu estiver ali.

— De acordo. Agradeço sua discrição.

— Nos paga para que sejamos discretas — disse ela com um sorriso tenso. A seguir

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houve um pesado silêncio.

— Bom, então suponho que deveria pôr o acordo por escrito.

— Na mesa de Harriette há papel e tinta, disse ela, apontando a escrivaninha com a

cabeça.

Hawkscliffe se dirigiu à escrivaninha e logo havia descrito o negócio, tinha

estampado sua assinatura e lhe tinha outorgado legalidade mediante seu selo ducal. Soprou

para afastar o pó da tinta, e esta secou.

— Espero que saiba o que está fazendo — refletiu Bel em voz alta enquanto se

inclinava para frente, e incluiu sua assinatura junto à dele.

— Sei o que faço em todo momento, senhorita Hamilton. É a maldição de minha

existência – disse entre dentes com ironia.

Nesse preciso instante se produziu um estrondo que sobressaltou aos dois. Olharam

em direção à porta fechada e o som de um furioso rugido atravessou a casa e chegou até

eles; um frenesi de gritos e golpes. Alguém estava esmurrando a porta da entrada.

— É Dolph — disse Bel, e um estremecimento de inquietação percorreu todo seu ser.

Instintivamente se aproximou de Hawkscliffe.

— Não se preocupe — murmurou ele. — Fique aqui dentro.

Ela assentiu com a cabeça e observou como ele se dirigia para a porta.

“Protetor” sussurrou uma voz em sua cabeça.

— Tome cuidado — lhe advertiu de forma angustiada, e só então reparou no

ameaçador ar de excitação que emanava de seu alto e magro corpo.

Hawkscliffe se deteve na porta e lhe dirigiu um sorriso lúgubre.

— Não tema, senhorita Hamilton. Às vezes o urso acaba ganhando.

Hawk atravessou o salão com grandes passadas, perversamente entusiasmado com a

ideia de jogar com o frenético Dolph Breckinridge. À medida que se aproximava da escada

a voz de Dolph se ouvia mais forte.

— Onde está? Onde está essa putinha?

Desceu devagar os degraus que davam ao vestíbulo, assobiando, e se achou Harriette

Wilson ao pé da escada, um diminuto vulto ruivo de fúria feminina.

— Afaste-se de minha casa antes que chame o oficial! — gritou a Dolph.

O baronete, por sua vez, insultou-a enquanto tentava abrir passagem entre os dois

robustos lacaios que lutavam com ele para expulsá-lo. Pegou-se com uma mão ao marco da

porta e se negava a ser expulso dali à força. Tinha o rosto vermelho pelo esforço, e o cabelo

loiro e curto despenteado.

— Eu me ocuparei dele, senhorita Wilson — murmurou Hawk, afastando

educadamente a altiva rainha das cortesãs.

— Sim, por favor, faça algo, Hawkscliffe! Está montando um espetáculo diante de

todos os meus vizinhos.

— Não se preocupe, logo terá partido. Por certo, acredito que a senhorita Hamilton

quer falar com você.

— Oh — exclamou ela, voltando-se para ele timidamente. — É possível que tenham

chegado a um acordo?

Hawk esboçou um sorriso.

— Ela a porá a par.

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— Estupendo! Parabéns, excelência. Pensava que ela não mudaria nunca de opinião.

–Harriette partiu a toda pressa para falar com Belinda.

— Você! — rugiu Dolph ao ver que se aproximava. — Velhaco miserável e traidor!

Canalha! Serpente! Venha aqui e deixa que eu o agarre!

— Meu querido amigo qual é o problema?

Enquanto caminhava em direção à porta, Hawk fez um sinal com a cabeça aos

lacaios de rude aspecto, que soltaram Dolph e se retiraram. Imediatamente, Dolph se

precipitou pela porta com os punhos em alto, e tentou atacá-lo. Entretanto, o fato de ter

crescido aplicando a disciplina sobre seus quatro irmãos rebeldes e de havê-los criado ao

longo da adolescência tinha servido a Hawk de algo. As inumeráveis brigas entre irmãos,

sobre tudo com o Jack, que era mais corpulento que ele, tinham-lhe ensinado a prever quase

todos os movimentos que um homem pode realizar com seus punhos.

Esquivou-se da investida de Dolph e, lhe agarrando o braço direito por detrás, o

dobrou para as costas e puxou-o com força para cima. A Dolph apenas deu tempo de

grunhir antes que Hawk lhe rodeasse o pescoço com o braço esquerdo em uma impecável

chave asfixiante.

— Não podemos acertar isto como homens civilizados?

Dolph se retorceu e o insultou, embora em vão.

— Traidor! Sabia que me faria isto! Disse-me que falaria com ela por mim, não que a

cortejaria para ficar com ela! Hoje me levantei e soube que a beijou! –cuspiu. Imagino o que

terá acontecido aqui a noite.

— Basta dizer que ofereci à senhorita Hamilton meu amparo e ela me disse que sim.

Assim, pelo que diz respeito a você, acabou-se tudo.

Dolph soltou um grito. Hawk se esquivou de uma cotovelada direta a suas costelas.

— Não pode ser sua!

— Ela não é sua para decidir se a retém ou a oferece a alguém.

— Sim... O... É! — Dolph conseguiu se soltar. — O matarei — disse ofegando,

enquanto tentava virar ao redor dele.

Hawk o observou, divertido.

— Meu amigo, não vai fazer nada disso. Precisa aprender a controlar suas paixões.

Algum dia elas farão que te meta em problemas.

— Enganou-me! Crê que é muito preparado e que eu sou estúpido, mas pelo menos

eu não vou por aí fingindo ser uma espécie de santo!

— Meu Deus, quanto veneno. Não é nada bom para a digestão, Dolph.

— Belinda Hamilton é minha. Belinda! — gritou em direção à escada. — Desça!

Venha comigo!

— Por que pensa que é sua?

— Eu a vi primeiro!

— Não entende que ela é um ser sensível com seus próprios desejos e sua própria

vontade? Não o quer e não vai descer.

— Belinda! Desça agora mesmo, prostituta asquerosa!

— Vá, isso não está nada bem — o repreendeu Hawk, dando um passo ameaçador

para ele e logo outro. — Saímos?

— Com muito gosto — grunhiu Dolph, sem reparar na mutreta de Hawk para

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conseguir que saísse da casa.

Olhando-o com o cenho franzido, Dolph voltou receoso ao exterior, preparado para

atacar. Ao passar ante um lacaio, Hawk lhe fez um gesto com a cabeça. O homem

corpulento vestido com libré fechou a porta da entrada e passou o ferrolho.

Só então Hawk sentiu um ligeiro alívio, sabendo que Belinda estava a salvo lá dentro.

Entreabriu os olhos enquanto se acostumava ao deslumbrante sol da tarde. O faetonte de

Dolph estava perto, na rua de pedra; o pobre cavalariço tinha um olho arroxeado. “Maldito

animal.”

— Aproximei-me da senhorita Hamilton em seu nome, Dolph — disse, afastando-se

um tanto da verdade despreocupadamente. — Quando me assegurou que não tinha nenhuma

possibilidade com ela, não vi razão pela qual eu não pudesse ir atrás dela. É muito bonita, e

eu gosto bastante dela. Um homem de minha posição necessita uma anfitriã: já sabe, para

todos meus convidados do mundo da política.

— Uma anfitriã? — perguntou Dolph com uma estrondosa gargalhada de raiva —

isso é tudo o que te ocorre fazer com ela, insosso? Por que me surpreendo? Nunca a quererá

como eu a quero. Ninguém pode fazê-lo.

— Amor, Dolph? Seus atos em relação à senhorita Hamilton fazem pensar em

qualquer coisa menos no amor. Tendo em conta tudo o que lhe fez, não o assombra que o

deteste? Depois de colocar seu pai no cárcere? No que estava pensando?

— Eu não tenho culpa! Não fui eu quem carregou de dívidas a esse velho louco —

replicou, mas suas faces se ruborizaram de vergonha. — Ele mesmo o buscou.

— E você mesmo procurou isto. Passarei por cima de seu arrebatamento e de suas

estúpidas ameaças porque é jovem e impulsivo. Mas inteira-se disto: Belinda Hamilton está

agora sob meu amparo. Expliquei-me claramente?

O desespero apareceu nos olhos de Dolph.

— Me deixe só falar com ela... — Deu uma passada em direção à porta, mas Hawk

lhe bloqueou o passo, lhe pondo firmemente uma mão no peito.

— Tire a mão de cima de mim antes que o quebre — grunhiu Dolph.

— Vejo que não ouviu minha advertência. — Hawk lhe sustentou o olhar. — Está

prestando atenção, Dolph? Mantenha-se afastado dela. O que acha que diriam os sócios do

White’s, Watier’s e todos os clubes de St. James se soubessem como maltratou seu ídolo?

Pensa Dolph. Quer que eles saibam?

— Não tenho medo de ninguém! Além disso, ninguém vai se bater em duelo por uma

mundana — respondeu acalorado.

— Talvez não se batam em duelo, mas o colocarão de lado. Será marginalizado.

Condenado ao ostracismo. Se voltar a ofender a senhorita Hamilton ou a incomodar de

alguma forma, a sociedade começará a tratá-lo com muita frieza.

A ameaça se manifestou nos olhos cor avelã de Dolph. Sua expressão se tornou séria,

mas olhou de novo para a porta fechada da casa de Harriette de forma diabólica, como se

continuasse meditando o planejando um modo de entrar.

Ao ver aquele olhar, Hawk se alegrou no mais profundo de sua alma de contar com a

construção fortificada de Knight House. Belinda estaria a salvo ali. Não se atrevia a deixá-la

em nenhum outro lugar.

— De modo que, se de verdade quer se congraçar com a Belinda, pode começar

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fazendo tudo o que esteja ao seu alcance para que o velho saia do cárcere — sugeriu Hawk

com eloquência. — Você o colocou ali. Faça o correto. Eu em seu lugar conseguiria todo o

dinheiro que deve e saldaria as contas.

— Pagar suas dívidas? Está louco? — gritou Dolph. — Esse velho louco deve quase

três mil libras, e no caso de que quisesse pagar suas dívidas (coisa que não desejo), não

poderia fazê-lo porque não tenho tanto dinheiro. Já tenho suficientes preocupações com

meus próprios credores até que herde.

— Ah, é uma lástima. Mas então... Se não pode pagar umas miseráveis três mil

libras, não se poderia ter permitido à senhorita Hamilton. Que tenha um bom dia,

Breckinridge.

E, depois de pronunciar essas palavras, voltou para a casa deixando Dolph jogando

fumaça.

Os lacaios abriram a porta, deixaram-no passar, e voltaram a fechá-la quando Dolph

se arremeteu contra ela e começou a golpeá-la com renovada fúria. Enquanto limpava o pó

das mãos, Hawk lançou um olhar à porta e viu como saltava sobre as dobradiças. A seguir

olhou aos lacaios.

— Esse tipo está desequilibrado. Bem feito, meninos. Agradeço-lhes como reagiram

rápido tanto ontem à noite como agora. — Passou uma nota de dez libras a cada um. — Se

dentro de cinco minutos ainda não tiver ido, venham me chamar.

— Sim, excelência. Obrigado, senhor!

Assentiu com a cabeça e retornou acima para recolher sua nova companheira. O que

não esperava era achar-se cara a cara no vestíbulo com o próprio Wickedshifts, Henry

Brougham, em mangas de camisa, coçando o peito e com aspecto de que acabava de sair da

cama. A cama de Harriette, Hawk supôs, franzindo os lábios com uma hostilidade contida.

— Que demônios é esse alvoroço? — perguntou o menino bonito do partido whig.

Henry Brougham era da idade de Hawk; de fato, tinha nascido em Westmorland, o

condado vizinho de Cumberland, a terra natal de Hawk. Brougham, o advogado mais

brilhante e reformista mais radical de Londres, era temido e odiado pelo governo Tory por

completo, algo que possivelmente só ocorria com o Boney. O partido de Hawk tinha

motivos para temê-lo. Aquele homem era um gênio com uma firme moral. Embora, pelo

visto, era tão sensível aos encantos das cortesãs como qualquer outro homem.

Um sorriso de cínica diversão cruzou o atraente rosto de Brougham enquanto

avançava pelo vestíbulo em direção a Hawk.

— Vá, vá, a quem temos aqui? Muito bom dia, excelência. Trocou de ambiente, não?

— Brougham — disse Hawk resmungão.

— O que é esse ruído?

— Um cliente insatisfeito.

— Necessita ajuda com ele?

Hawk apertou ligeiramente os lábios.

— Não, obrigado.

— Nesse caso, se me desculpar, vou voltar para a cama. — Virou-se e se encaminhou

para o quarto de Harriette. — Lady Holland continua querendo que a acompanhe a um de

seus serões – disse por cima do ombro. — Já sabe que estamos decididos a trazê-lo para

nosso bando.

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Hawk não pôde conter a réplica.

— O bando dos que ficam de braços cruzados criticando?

— Não, Hawkscliffe, o bando da humanidade e da reforma.

— Agradeço, mas pode dizer a sua senhoria que declino respeitosamente a oferta.

— Como desejar, mas recorde isto. — Brougham se deteve e se voltou para ele. —

Tudo o que é velho, corrupto e decadente deve desaparecer. Aproxima-se a mudança,

Hawkscliffe, o advirto. É só questão de tempo. Espero que quando esse dia chegar saiba de

que lado ficar.

— Um discurso maravilhoso, Brougham, mas deveria saber que é difícil fazer algo

pelo mundo quando ninguém quer que seu partido governe.

— Não me preocupa isso. A justiça triunfará.

— Só se lhe der um pequeno empurrão, como aprendi por experiência.

Brougham sorriu amargamente e sacudiu a cabeça.

— Bom, pois siga deixando de lado esses tiranos com os quais está acostumado a

jantar, excelência, como Liverpool, Sidmouth e Eldon, e um dia o povo da Inglaterra

poderia começar a empurrar contra vocês. Todos vocês vão acabar provocando-o, sobre

tudo com o informe dos gastos do regente. A julgar por seu olhar, não acredita em mim. Por

que não? Se já aconteceu na França, por que não vai ocorrer aqui?

— Gostaria que acontecesse, não é? Caos, rebelião, violência em ruas. É isso o que

quer?

— Cavalheiros — disse Harriette, entrando no vestíbulo justo nesse momento.

Passou depressa em frente de Hawk e, indo para junto de Brougham, deslizou um braço ao

redor de sua cintura. — Isto não é o Parlamento, queridos. Não quero discussões em meu

vestíbulo — recriminou-os. — Hawkscliffe, Bel o está esperando no salão, e eu tenho que

tratar de uns assuntos privados com o senhor Brougham. Se nos desculpar.

— Como não, ele disse tranquilamente.

Harriette conduziu Brougham para seus aposentos.

Hawk permaneceu ali um segundo, subtraindo importância à irritação que lhe

produzia o modo como o partido whig tentava persuadi-lo continuamente. Os duques de

Flawkscliffe eram tories, e ponto. E o governo não era absolutamente perfeito, e era certo

que o regente era um estorvo para todos eles, mas algo era melhor que o caos. Descartou a

ideia que o obcecava, a crença de que as causas que até então tinha defendido Henry

Brougham eram corretas e justas: o fim da escravidão, a educação dos pobres... Mesmo

assim, aquele homem o punha furioso com sua ousada forma de pensar. Quem achava que

era aquele plebeu presunçoso? Enquanto a gente do Brougham criava ovelhas, a sua se

dedicava a defender a fronteira do norte do ataque dos escoceses.

Deixou o tema, indignado, e percorreu o vestíbulo em direção ao salão, onde achou

Belinda esperando-o junto à janela com forma de arco, tentando parecer corajosa. Quando

entrou, Bel lhe lançou um olhar de ansiedade, com seu delicado perfil desenhado à luz do

sol. Ao perceber seu medo, Hawk lhe dedicou um sorriso relaxado para tranqüilizá-la.

— Dentro de pouco Breckinridge partirá — assegurou. — Deu-lhe uma manha de

criança, mas acredito que o fiz entrar em razão.

A reação de Bel o surpreendeu. Pôs-se a correr para ele ligeira, agitando a musselina

amarela, rodeou-lhe a cintura e apertou a face contra seu peito. Fechou os olhos de forma

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apaixonada e o abraçou com todas as suas forças. Desconcertado, Hawk não soube bem o

que fazer.

Pousou as mãos timidamente nos ombros da jovem. Ela jogou para trás a cabeça e o

olhou fixamente. A lastimosa gratidão que expressavam seus olhos, próxima à adulação,

ruborizou-o. Embora a conhecesse há menos de vinte e quatro horas, deu-lhe a impressão de

que estava vendo a verdadeira Belinda que se ocultava sob a estrela fria e distante do mundo

das cortesãs, e de que ela não era a profissional curtida que fingia ser.

Movido por um estranho impulso, rodeou-a com os braços e lhe beijou o cabelo.

— Calma querida. Não se passa nada. Já não pode lhe fazer mal.

— Obrigada, Robert — disse ela entrecortadamente de forma apenas audível.

— Tolice, Belinda, não foi nada. — Franziu o cenho. E, lhe erguendo o queixo com

os dedos, esquadrinhou seus olhos. No meio do azul havia umas sombras profundas de um

tom violeta, como nuvens de fumaça que atravessassem um silencioso campo de batalha

ocultando cenas de destruição violenta e morte. Perguntou-se o que teria ocorrido ali,

enquanto detinha uma lágrima com a ponta de seu dedo e a enxugava. Bel tinha um olhar

comovedor, como se não pudesse falar.

— Vamos — murmurou ele com doçura-, levá-la-ei para casa.

Bel fungou, assentiu com a cabeça e se apertou contra Hawk enquanto ele a conduzia

lentamente através do salão para a escada.

— Robert, o que acontece com esses cães seus? Os cães me dão medo. Dá-me medo

qualquer um – disse com tristeza.

Ele a fez virar-se, tomando-a por seus finos ombros até que a teve de frente, e lhe

sorriu com ternura.

— Não acredito que lhe dê medo, Belinda. Ao contrário, acredito que tem bastante

coragem para ser tão formosa. Pelo que diz respeito a meus cães, prometo-lhe que a

obedecerão.

Bel afastou a vista, os olhos avermelhados.

— Devoção, né? — disse em uma voz tão baixa que apenas se podia ouvir.

— Como diz?

Sorriu-lhe fracamente.

— Nada.

E, assentindo levemente com a cabeça, como se desejasse acalmar-se, deixou-o ali e

subiu para recolher seus pertences.

Preocupado por aquela beleza jovem e reservada, Hawk se apoiou contra o corrimão

da escada e observou como subia os degraus. Um sentimento instintivo de amparo invadiu

todo seu ser. Tinha fracassado na hora de salvar Lucy, mas jurava por Deus que não deixaria

que Dolph tocasse um cabelo de Bel.

“É uma criatura estranha, frágil, ferida”, pensou, esquecendo momentaneamente sua

firme promessa de não envolver-se.

Sempre dava o melhor de si quando alguém o necessitava.

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SEIS

A noite encontrou Bel na labiríntica biblioteca revestida de carvalho de seu novo

protetor. Quanto mais tarde se fazia, mais nervosa ficava, perguntando-se se Hawkscliffe

manteria de verdade sua palavra ou se as regras do jogo mudariam agora que estava

virtualmente encerrada em sua fortaleza de opulência e decoro. Tratando de ocultar o temor

que a dominava, examinou as prateleiras em atitude ociosa enquanto o duque trabalhava em

sua escrivaninha à luz das velas.

Tinha percebido uma intensidade ardente nos olhos do duque depois de jantar,

enquanto a olhava através da lustrosa mesa de seis metros de comprimento, recostando-se

em sua cadeira, bebendo goles do Porto depois do esplêndido jantar. Ela desconfiava

daquele olhar.

A incerteza era angustiosa, e se viu agravada pelo fato de ter ouvido casualmente a

discussão entre ele e a senhora Laverty, a governanta, que se atreveu a lhe jogar um bom

sermão por ter metido uma mulher de má vida sob seu mesmo teto. As respostas tolerantes

do Robert lhe fizeram deduzir que a senhora Laverty estava há décadas com a família, se

não gerações. Só uma criada segura de sua importância na casa se atreveria a falar de forma

tão impertinente a seu patrão. Apesar de tudo, como antiga dama de classe que tinha sido,

versada no trato com os criados, Bel se sentiu horrorizada ao ouvir a diatribe da anciã.

— Isto era antes uma casa decente! Teria podido esperar um comportamento

semelhante do Alec ou Jack, mas de você, Robbie? O que diria seu pai?

— A senhorita Hamilton é amiga minha e está em perigo.

— Ou a manda a outra parte ou demito!

Bel não tinha querido ouvir o resto e se foi voando dali. As criadas a tinham olhado

ao passar, com uma mescla de fascinação e desprezo, e os lacaios, com uma curiosidade

lasciva. Depois de tudo, não era mais que uma espécie de criada especializada, e seu amo

não estava ali para repreendê-los por sua grosseria.

Surpreendeu-lhe que finalmente lhes servissem o jantar, tendo em conta quão

alvoroçado estava o serviço desde sua chegada. Felizmente, pelo menos ela tinha gostado

dos espantosos cães. Nesse momento estavam montando guarda, rondando pelas terras

verdes e cuidadas, vigiando no interior dos altos muros rematados com pregos de Knight

House.

Percorrendo com as pontas dos dedos uns velhos livros de história que teriam

extasiado seu pai, sentiu-se a salvo de Dolph, mas não de todo a salvo de Hawkscliffe. No

silêncio da biblioteca, podia sentir seu olhar fixado em seu corpo. Quando voltou a cabeça

encontrou-o olhando-a.

Levantou o queixo em sinal de indignação.

— Importa-lhe? — perguntou ela em um tom tranqüilo e arrogante de bravata.

Ao ver-se surpreendido, Hawk sorriu e tomou um gole de seu Porto, e a seguir

passou a língua por seus atraentes lábios.

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— Acredito que uma quantia como mil libras me dá direito a olhá-la. Estava

pensando que talvez encarregue um pintor que lhe faça um retrato. Parece-me que tem um

ar clássico que ficaria bem com uma fantasia. Posaria para Thomas Lawrence? Gostaria que

imortalizasse sua beleza? — Sorriu abertamente. — Nua, se for possível?

— Oh, gostaria disso, não é verdade?

— Bastante.

— Uma fantasia do que?

Hawk se deu um tapinha na boca com ar distraído, deixando que seu olhar

percorresse o corpo de Bel.

— De Afrodite, talvez. De Perséfone. — Estalou os dedos. — Como se chamava a

moça que Zeus seduziu em forma de chuva dourada?

— Danae — disse ela, rindo apesar de sua indignação, já que os dois formavam um

estranho casal: o santo e a madalena. — Vagabunda. Está me insultando outra vez?

— Só brincava disse ele com delicadeza. Seus olhos tinham recuperado aquele brilho

sedutor. Talvez fosse obra do Porto, mas a sala e mesmo o ar que se interpunha entre os dois

estavam carregados de tensão.

Bel afastou a vista, coibida, e começou a passear em direção ao grande piano que

estava junto à janela do canto.

— Toca piano?

— Já não. E você?

— Um pouco.

— Toque uma canção então, querida.

— A seu serviço, senhor — respondeu ela em tom sarcástico sentando-se no banco, e

quando viu a insígnia em letras douradas lançou uma exclamação afogada. — Um Graf —

exclamou maravilhada. O esplêndido e imponente piano parecia muito formoso para ser

tocado. — Oh, Robert, não me atrevo.

— Claro que sim — disse ele, sorrindo com indulgência enquanto a observava.

— O senhor Graf fazia os pianos do professor Beethoven — afirmou Bel com ar

reverente. — Minhas medíocres aptidões não lhe farão nenhuma justiça.

— Mas quero que toque para mim. Vamos.

— Observei que há pianos em quase todas as salas, Robert, mas não consigo entender

por que guarda uma obra de arte como esta na biblioteca.

— Considero que a música é algo pessoal, senhorita Hamilton. E agora, quer tocar

para mim ou não?

— Bom... Se você insiste. — Pousou os dedos suavemente sobre as teclas e começou

a provar, tocando escalas para esquentar as mãos, mas subitamente se deteve e o olhou. —

Está desafinado!

É — assentiu com a cabeça e tomou outro gole. — Sei.

— Oh, você é tão irritante que começa a me fascinar — exclamou Bel. — Como

pôde fazer algo assim? Tem um piano como este aqui, em sua biblioteca privada, onde só

você pode desfrutar dele, e deixa que se desafine. Lorde Eldon deveria considerá-lo delito.

Hawk sorriu.

— De todas as formas me nego a lhe dar o gosto, porque sei perfeitamente que até

que afine este pobre e régio piano, minha serenata soará como um par de gatos brigando.

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Nego-me totalmente a que minha interpretação, que já é suficientemente má, veja-se ainda

mais prejudicada.

— Bom você é uma cortesã, tem que estar muito preparada. Que mais sabe fazer?

— Nada pelo que tenha pagado. — E, apoiando o cotovelo na tampa do piano, Bel

pousou sua face em uma mão com um descarado sorriso.

— Malandrinha. — Hawk riu suavemente, mas ela continuou olhando com receio o

brilho de desejo que ardia em seus olhos.

Deu uma olhada à biblioteca, tentando achar uma distração.

— Tem algum retrato de lady Coldfell?

A expressão lânguida do duque se endureceu automaticamente, mas permaneceu

imóvel.

— Por quê?

— Quero saber a quem vamos vingar.

Hawk ocultou os olhos sob suas longas pestanas negras e colocou a mão em uma

gaveta da escrivaninha. Ela se levantou e se dirigiu para ele. Sem pronunciar palavra,

Hawkscliffe entregou um relicário de prata com fecho dourado, que continha um retrato em

miniatura.

Bel o abriu e contemplou a imagem de serena beleza, com o cabelo ruivo, os olhos

verdes e a pele de porcelana. Estudou o retrato, entristecida pela perda de uma mulher tão

jovem e cheia de vida.

— Deu-lhe isto lady Coldfell?

— Sim. — Recuperou rapidamente o retrato e voltou a fechá-lo. Evitou o olhar de

Bel e seu rosto forte e quadrado se manteve tenso. Durante um longo momento não disse

nada e se dedicou a tocar o relicário. — Em realidade é um autorretrato. Era uma artista

bastante dotada.

Bel se sentou em um lado da escrivaninha e o observou atentamente.

— Ela sabia que você estava apaixonado por ela?

— Não sei.

— Alguma vez o confessou?

— É claro que não.

— Que pena.

Hawk deu de ombros, com aspecto ligeiramente culpado por ter aceitado como

presente o retrato de uma mulher casada. Se Lucy era um ser tão casto e sagrado, por que

tinha dado seu retrato a um homem que não era nem seu marido nem um familiar?

Perguntava-se Bel. Era algo pouco decente. Tinha satisfeito a vaidade da jovem condessa o

fato de saber que Hawkscliffe estava apaixonado por ela? Tinha-lhe dado falsas esperanças,

procurando tentá-lo além dos limites de sua honra?

— O que o cativou nela? — perguntou Bel com delicadeza, olhando de perto seu

rosto tenso e bronzeado e seu marcado perfil.

Ele segurou o relicário fechado, evitando ainda seu olhar enquanto permanecia

pensativo.

— Sua simplicidade. Sua doçura. Oh, não sei. Foi só um sonho. Eu a queria em

minha imaginação. Costumo viver muito freqüentemente em minha imaginação, esse é meu

problema. De portas para fora... Não aconteceu nada. Nada absolutamente.

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— Arrepende-se disso?

— O que teria ganhado se tivesse tratado de consegui-la? Só teria conseguido que

nós dois nos desonrássemos, e teria feito mal a um amigo.

“Sempre joga seguindo as regras?”, queria lhe perguntar ela, mas viu que sua tática

defensiva tinha funcionado. A mente de Hawkscliffe estava livre de todo impulso amoroso

por ela, e se achava envolvido nas lembranças de lady Coldfell.

Aquele tema tinha inundado de tristeza seus comovedores olhos, e Bel sentiu tanto

remorso que estendeu a mão e lhe acariciou o sedoso cabelo para lhe oferecer consolo. As

pontas de seus cabelos se frisavam ao redor das bordas de seu lenço branco.

Hawk deixou que lhe acariciasse a cabeça, mas não a olhou.

Bel deixou escapar um suspiro de nostalgia.

— Amor cortês. Parece-me algo precioso, Robert, embora só seja um sonho.

— Um sonho é melhor que nada. — Deixou o relicário sobre a escrivaninha e ficou

olhando-o.

— Só me pergunto por que não preferiu sonhar com uma mulher que um dia pudesse

ser sua.

Ele curvou os lábios em um sorriso fraco e amargo, mas continuou sem olhá-la.

— Talvez não quisesse uma mulher que pudesse ser minha.

— Por que não?

— Porque não, disse secamente, lhe lançando um olhar brilhante de advertência.

Bel retirou a mão, julgando mais seguro parar enquanto era tempo. Ele baixou a vista

e voltou a encerrar-se em si mesmo; apesar de tudo, ela tinha conseguido vislumbrar o

homem necessitado que existia dentro do impecável duque. Ocultando um sorriso

carinhoso, quase terno, Bel desceu da escrivaninha.

— Nesse caso, desejo-lhe boa noite, excelência.

Ele ficou em pé automaticamente e fez uma reverência com uma precisão senhorial,

mantendo as mãos às costas, e depois recuperou sua postura rígida e erguida. Bel assentiu

com a cabeça e partiu.

— Pense no tipo de carruagem que gostaria de ter — ordenou Hawk em tom

imperioso enquanto ela se dirigia para a porta. — Amanhã vou levá-la ao Tattersall’s.

Bel se voltou para ele surpreendida. A luz do abajur que havia na escrivaninha piscou

sobre seu rosto bronzeado de duros traços e acariciou sua poderosa silhueta.

Ficou olhando-o por um instante.

Lenta, profundamente, compreendeu que ali estava segura sob seu amparo. Sabia.

Podia senti-lo. Embora tivesse flertado um pouco com ela, não tinha intenção de romper sua

promessa e insinuar-se de um modo forçado.

Ao assombro que lhe causou seu descobrimento seguiu-se uma onda de alívio... E

depois os remorsos. Aquele homem não supunha nenhum perigo para ela, e ela o tinha

manipulado, fazia com que ele evocasse dolorosas lembranças unicamente com a intenção

de mantê-lo à distância.

— Lamento ter mencionado lady Coldfell — conseguiu dizer, mas não se sentiu com

a coragem suficiente para admitir que tivesse sido um estratagema concebido de antemão.

Não queria que pensasse que era uma covarde além de uma prostituta.

— Oh, não se preocupe — disse ele em tom lento. — Eu lamento ter sido brusco com

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você.

Bel sentiu uma opressão no pescoço ao contemplar a simples amabilidade de Hawk,

que achava estar na obrigação de desculpar-se quando tinha sido ela quem lhe tinha feito

mal. Aquele homem era um presente de Deus. Merecia algo mais dela que aquilo, pensou

impetuosamente, prometendo converter-se no futuro em uma melhor cortesã para ele. Não

desempenharia a função principal das mulheres de sua classe, mas uma cortesã era muito

mais que uma companheira de cama, poderia lhe fazer a vida mais feliz e agradável de

outras formas. Aquela casa grande e ostentosa refletia sua solidão, ela podia ajudá-lo, sabia.

Ele era como ela, embora não o suspeitasse: os dois estavam apanhados dentro de si

mesmos.

— Ocorre algo? — perguntou Hawk.

Bel ergueu a vista e o brilho das lágrimas desapareceu de seus olhos, enquanto

forçava um de seus sorrisos falsos e maliciosos.

— Imagine: um homem que cumpre sua palavra. Grande novidade.

Ele baixou o queixo e lhe dedicou um sorriso triste.

— É muito jovem para ser tão cínica. Boa noite, senhorita Hamilton.

— Excelência. — Fez uma rápida reverência, uma amostra de respeito oferecida com

mais sinceridade do que ele percebeu, saiu da biblioteca e avançou pelo corredor em direção

à escada, emocionalmente transtornada.

Tinha memorizado o percurso até seus aposentos por medo de perder-se na mansão.

Knight House era um lugar deslumbrante desenhado para impressionar a todo aquele que

entrava. Todas as vistas ao longo dos corredores de mármore proclamavam a pompa e a

antigüidade da nobre linhagem de seu amo. Tudo se achava em um estado de rígida e

ordenada perfeição. Era um lugar inquietante, mais parecido a um grande mausoléu que a

um lar: como se Robert se sepultasse a si mesmo com lady Coldfell.

No alto da escada pegou um candelabro do abajur situado na parede e avançou pelo

longo e escuro vestíbulo até que chegou ao formoso aposento que lhe tinha sido atribuído.

Abriu a porta e entrou.

Sem fazer ruído, fechou a porta atrás dela, e seus pés se afundaram no macio tapete

flamenco. A luz do candelabro piscou sob o teto de intrincada moldura e as paredes brancas

decoradas com sedas. Deixou o candelabro sobre a penteadeira de madeira de satín e a

seguir se dirigiu ao quarto de vestir que se comunicava com o quarto, para vestir sua roupa

de noite. Tratava-se de um objeto fino e leve de seda pérola, e não de uma camisola de

algodão branca como a que ela tinha. Apagou com um sopro as velas de cera de abelha.

Depois de subir na enorme cama de colunas adornada com telas de damasco, ficou

acordada durante um momento prestando atenção aos novos aromas e sons. Nunca se tinha

agasalhado em um lugar tão esplêndido, e provavelmente não voltaria a fazê-lo, quando

aquilo acabasse. Knight House, o pessoal de serviço e seu amo ainda a intimidavam, mas,

agora que sabia que estava a salvo sob o amparo do duque de Hawkscliffe, a estranheza de

sua nova situação não lhe parecia tão ameaçadora como antes. Possivelmente tudo sairia

bem, pensou enquanto a tensão que pegava suas extremidades e seus ombros há algum

tempo cedia lentamente. Então, pela primeira vez em semanas, sumiu-se em um sonho sem

pesadelos escuros e violentos.

Hawk começou a descobrir muito cedo que o seu estilo de vida estava mudando com

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a senhorita Belinda Hamilton. Aquela jovem o mantinha em um estado perpétuo de

encantadora confusão. Na manhã seguinte ela se achava de um humor alegre, sentada junto

a ele à mesa na sala do café da manhã, pintado de azul claro. A parede situada a leste tinha

altas janelas com forma de arco pelas quais entrava a clara luz matutina que se mesclava

com as mechas loiras de Bel e iluminava o cetim rosado de sua pele.

Quando Walsh, o mordomo, apareceu com o café da manhã em um carrinho de

rodas, Bel se virou para observar com curiosidade e Hawk olhou por cima do Times e

lançou um olhar furtivo à jovem. O movimento de suas pestanas ou o simples ângulo de seu

nariz despertavam estranhas reações em seu interior.

— Oh, o que temos aqui? Tortinhas? Que ricas — exclamou Bel.

— Tortinhas com amoras, senhorita Hamilton — declarou o imponente homem,

claramente alterado pela presença da moça.

— Amoras? — Ela riu alegremente e dedicou ao Hawk um sorriso. — Preferiria que

as minhas não fossem de moral... Mas tenho certeza de que já deve ter imaginado.

Walsh começou a retirar o prato de Bel.

— Peço-lhe desculpas, senhorita, na cozinha lhe prepararão outra...

— Acredito que a senhorita Hamilton estava fazendo um trocadilho — disse Hawk

em voz alta, contendo um sorriso de diversão. Levantou sua taça de chá e lhe deu um gole, e

a seguir se entregou à contemplação da jovem, deixando o Times a um lado.

— Pode dizer a sua cozinheira que é uma magnífica tortinha. — Cravou um dos

pequenos frutos com o garfo e o levantou para que Hawk o examinasse. — Com certeza

gosta muito dos frutos da moral.

— Nem sempre — murmurou ele enquanto o mordomo lhe servia seu prato e tirava a

coberta.

Walsh perguntou se queriam algo mais, e depois fez uma reverência e se retirou.

— Hoje está muito animada — comentou Hawk, estendendo a mão para agarrar o

pão torrado.

— Dormi como um bebê. Tenho um quarto muito confortável, agradeço-lhe.

— De nada. Coma. Espera-nos um dia muito ocupado.

— Isso eu farei!

Por alguma razão o café da manhã que comia diariamente lhe pareceu um festim

nesse dia, talvez porque sua companheira exclamava com entusiasmo cada vez que comia

um bocado. O sabor das coisas surpreendeu-o. Hawk supôs que durante as últimas semanas

tinha perdido o interesse pela comida. Além das tortinhas douradas, batidas até adquirir a

consistência leve de uma pena, serviram-lhes um grosso e rosado bacon de suculento sabor,

uma esplêndida manteiga e geleia de framboesa sobre pão branco torrado ou rosquinhas

com um pingo de açafrão, e peras frescas em rodelas.

— Tem uma excelente cozinheira, Robert.

O duque assentiu e quando acabou de mastigar tomou um gole de chá.

— Graças a Deus, a cozinheira ao menos não partiu. Pode ser que vivamos uns dias

um pouco agitados no que se refere ao funcionamento da casa. Peço-lhe desculpas de

antemão por qualquer inconveniência. Parece que a senhora Laverty nos abandonou.

Belinda arregalou os olhos. Deixou o garfo no prato.

— Partiu?

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— Não exatamente. Foi à mansão Hawkscliffe. — Sacudiu a cabeça, irritado. — É

uma velha harpia temperamental, mas faz bem seu trabalho e, além disso, não posso

despedir alguém que está comigo desde que era um pirralho.

— Ah! — disse ela indignada, limpando com o guardanapo as comissuras dos lábios,

com elegante determinação. — Esqueça, manterei Knight House em ordem durante a

ausência da senhora Laverty.

— E como se propõe consegui-lo? O pessoal do serviço acredita que você é uma

espécie de bruxa encantadora que me tem enfeitiçado. Além disso, o que sabe uma cortesã

sobre o trabalho doméstico?

— Não se preocupe — declarou Bel em tom altivo. — Informe ao Walsh de que a

autoridade da senhora Laverty me foi transferida, e eu assumirei a responsabilidade a partir

de agora. É um trabalho insignificante para mim, e é o mínimo que posso fazer para... Né...

Compensá-lo – disse despreocupadamente.

Lançou-lhe um olhar indeciso, lamentando de todo coração havê-la dispensado de

deitar-se com ele, agora que aludia ao assunto, mas guardou seu arrependimento para si

mesmo.

— Parece bastante segura. De verdade sabe o que está fazendo? Detesto ver uma casa

desordenada.

Dedicou-lhe um sorriso bastante altivo e deu uma tímida dentada na tortinha.

Hawk estava muito intrigado por seus talentos ocultos para contrariá-la. Chamou

Walsh e lhe comunicou em um tom severo de advertência a substituição que se produziu na

supervisão das tarefas domésticas.

A senhorita Hamilton olhou à frente com serena altivez, sorvendo seu chá, enquanto

o mordomo ficava rígido com um silencioso horror ao ouvir a ordem. A seguir fez uma

reverência e partiu com o pouco invejável encargo de transmitir as notícias ao resto do

pessoal.

A cortesã permaneceu ali sentada com tranqüilidade, como se estivesse acostumada a

tratar com criados rebeldes diariamente. Podia comportar-se como uma verdadeira duquesa

quando lhe convinha. Talvez a pequena trapaceira tivesse um ás na manga, pensou Hawk,

observando-a de perto.

Depois do café da manhã Hawk a levou até sua carruagem negra de cidade, que

pareceu a Bel o cúmulo do luxo mais elegante. O cocheiro e os cavalariços iam todos

vestidos com uma sóbria libré azul marinho, com perucas empoadas e chapéus de três

pontas. Puxada por quatro cavalos castrados negros, a carruagem tinha o brasão dos

Hawkscliffe desenhado na porta e no interior, macios assentos de couro marfim.

Sua primeira parada foi o Banco da Inglaterra, no Threadneedle Street, onde Hawk

entrou com ela pelo braço, levando sua bengala com punho de marfim pendendo

distraidamente na outra mão. Imediatamente se viu rodeado de empregados serviçais que

começaram a arrastar-se ante ele. Fizeram-nos passar a um dos escritórios do subdiretor,

onde Hawk mandou abrir uma conta em nome de Bel em que depositou a soma inicial de

quinhentas libras, de acordo com o trato de ambos.

Bel assinou os documentos tão metodicamente que fez com que sorrisse para si

mesma, e logo olhou a folha de depósito como se temesse que os números fossem

desaparecer em meio a uma nuvem de fumaça. Finalmente colocou reverentemente sua

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pequena carteira de cheques em branco em sua bolsa.

Aquela moça tinha conhecido a pobreza, pensou Hawk, e um sentimento impetuoso e

ardente nasceu em seu interior. Teve que afastar-se dela por medo de acabar estreitando-a

com força entre seus braços. Devido àquele descobrimento no escritório do empregado do

banco, ele gastou uma soma absolutamente absurda nos cavalos e carruagem de Bel no

Tattersall’s, seu destino seguinte. Só queria artigos de primeira qualidade. Depois de

recordar os desdenhosos olhares que ela tinha enfrentado no dia anterior em Rotten Row,

estava decidido a lhe dar o melhor, pois estilo era a melhor censura à insolência. Era algo

que tinha aprendido com sua escandalosa mãe.

Enquanto percorriam os diversos corredores e quadras, Belinda agregou um séquito

formado por vários conhecidos de Hawk, já que o famoso e elegante parque de leilões era

um dos pontos de reunião favoritos dos homens, habitualmente livre da presença de esposas

e de um excessivo decoro.

Hawk não tinha certeza se o irritava ou divertia ser o protetor de uma preciosidade

tão cobiçada. Desalentou-o bastante descobrir que talvez desejasse que só prestasse atenção

a ele, mas ela era muito educada para fazer caso omisso da estranha coleção de tipos afáveis

que seguiam seu rastro: uns quantos latifundiários velhos e amáveis e vários soldados de

cavalaria retirados, um punhado de jovens aficionados aos cavalos e inclusive um jóquei de

baixa estatura que se uniu a eles, os quais faziam sagazes comentários a Belinda sobre os

melhores cavalos para sua carruagem.

Hawk a mantinha perto dele. Qualquer espectador teria pensado que era realmente

sua amante e que fazia com ele o que queria, mas o certo é que foi ela quem se queixou do

preço da parelha de cavalos negros de trote alto e do elegante vis-a-vis que o duque escolheu

para ela. Parecia uma versão em miniatura de sua carruagem que, conforme havia dito Bel, a

encantava.

— Robert, é muito, querido — protestou suavemente, levando-o a um lado.

— Não gosta?

— Gostar? É a coisa mais elegante que vi em minha vida, mas...

Ele fez um gesto rápido ao corretor e a carruagem era sua.

“Hawkscliffe, você está impressionando…”, repreendeu a si mesmo, sorrindo com o

olhar no chão e as mãos nos bolsos, enquanto ela acariciava seus novos cavalos com alegria

infantil.

Quando a acompanhou de volta à carruagem, Bel parecia aturdida. Em pleno trajeto

Hawk lhe lançou um olhar, satisfeito consigo mesmo, e a surpreendeu observando-o, depois

do qual arqueou uma sobrancelha em atitude interrogativa.

— Se o que pretende é que me sinta em dívida com você, está fazendo isso muito

bem.

— Tolices. Estou-me limitando a cumprir os termos de nosso acordo. Não confia em

mim?

— Pelo menos me deixará comprar-lhe algo... Um presente.

— Quer me dar um presente? — perguntou ele surpreso. Ela assentiu enfaticamente.

Era um impulso absurdo, embora encantador e algo nos olhos de Bel lhe disse que seria

melhor que não o recusasse. Não queria ferir seu orgulho.

— De acordo — disse com cautela, e a seguir aceitou que Bel lhe comprasse um

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pouco de seu rapé favorito no Fribourg & Treyer.

Não conseguia entender por que aquilo era tão terrivelmente importante para ela.

Felicitou-se intimamente quando conseguiu fazê-la rir desafiando-a a que provasse um

pingo. Além de tudo, até a rainha Carlota era uma grande aficionada ao rapé, e muitas

damas ilustres da sociedade o consideravam um hábito saudável tanto para os homens como

para as mulheres.

Entretiveram-se na famosa loja de tabaco, rindo-se de forma um tanto ruidosa,

enquanto lhe mostrava os elegantes movimentos de mão que impunha a moda. Ela tratou de

imitá-lo entre gargalhadas, seguindo suas instruções cuidadosamente. Depois de inalar uma

pequena quantidade que segurava entre as pontas dos dedos, começou a espirrar

violentamente com os olhos lacrimejantes.

— Vagabundo! Vagabundo! — exclamou ela com voz entrecortada. — Pua!

Hawk dirigiu um olhar afável de desculpa aos donos da loja e estendeu a Bel um

lenço de seda com suas iniciais gravadas. Ela seguiu espirrando até ficar quase sem sentido.

Quando estava totalmente recuperada saíram da loja com um humor de alegre

camaradagem. Hawk se sentiu como se tirasse de cima dez anos de dissimulada coibição.

Avançaram Pall Mall abaixo de braços dados, como dois audazes aliados que faziam

frente aos olhares de desaprovação. Ao dobrarem a esquina no Haymarket estiveram a ponto

de se chocar com um trio de jovens oficiais vestidos com jaquetas vermelhas. Os três se

desculparam e Hawk murmurou “Perdão” em tom irritado, quando de repente se deu conta

de que Bel estava olhando ao soldado do meio.

Seu rosto havia ficado pálido.

O atraente oficial, cheio de um jactancioso encanto militar, tinha o cabelo castanho

ondulado e revolto e rosto de perplexidade.

— Bel?

— Mick — disse ela fracamente.

O travesso rosto do jovem se iluminou.

— Bel! Aqui está minha garota! — Com um grito de alegria que ressoou por toda a

rua abarrotada, pegou a moça pela cintura e a fez virar em círculo. — Não posso acreditar

que seja você! Que demônios você está fazendo na cidade? Esta é a garota da qual lhes falei

— gritou a seus amigos.

— Me solte! — exclamou ela, tratando de soltar-se, e retrocedeu para Hawk quando

o jovem a deixou.

Hawk não disse uma palavra, limitou-se a tirar uma mão do bolso e sustentar Bel pela

cintura. Consciente da intensa onda de inveja que invadiu todo o seu ser, atravessou o

soldado com o olhar e inclinou a cabeça para a orelha de Bel.

— Peço a carruagem, querida? — murmurou a um volume suficientemente alto para

que o outro homem pudesse ouvi-lo.

Mick — assim era como ela o tinha chamado— olhou para Hawk desconcertado em

um ataque de ira. Abriu a boca como se fosse dizer ao duque que se afastasse dela, e voltou

a fechá-la quando Belinda ergueu a vista para olhá-lo com os olhos transbordantes de uma

silenciosa gratidão e disse:

— Sim, excelência, peça, por favor.

Hawk assentiu com a cabeça em atitude tranqüilizadora e se voltou para dar a ordem

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a seu lacaio. A carruagem os estava esperando mais abaixo. Olhou Bel com ar indeciso e

decidiu que talvez desejasse ter um momento de intimidade com seu amigo, se é que aquele

tipo era seu amigo. Não foi fácil percorrer os poucos passos até a carruagem, mas ao fim e

ao cabo precisaria ser um cavalheiro.

— Excelência? — ouviu Mick dizer furioso. — Quem demônios é esse?

Com as mãos nos bolsos, Hawk jogou uma olhada e reparou na súbita compreensão

que se refletiu no olhar do oficial. Seu rosto juvenil empalideceu enquanto percorria com o

olhar o bonito e luxuoso traje da moça.

— O que aconteceu, Bel? — perguntou nervoso.

Hawk viu como Belinda erguia o queixo e adquiria uma vez mais o aspecto de uma

estátua de mármore de Afrodite, formosa e distante.

— Onde esteve, Mick?

— Por aí... Bel, quem é ele?

— É o duque de Hawkscliffe, meu protetor. Bom dia, capitão Braden — disse

friamente.

Hawk se virou e voltou com passo irado para Bel acreditando que poderia haver

problemas, mas Mick se limitou a permanecer ali pasmado. Não parecia que haveria uma

discussão. Ao ouvir o nome de Hawk, os dois companheiros de Mick resolveram olhar a

vitrina de uma loja próxima e saíram dali.

A carruagem se deteve nesse preciso instante junto a eles, com o som tilintante dos

arreios. O cavalariço desceu da carruagem para lhes abrir a porta. Hawk estendeu a mão a

Bel para ajudá-la a entrar. Ela apoiou sua mão sobre a dele, mas não o olhou.

— Bel, espere... — Mick deu um passo atrás dela, mas Hawk se interpôs e lhe lançou

um sereno olhar de advertência, mantendo uma dura expressão.

Quando o jovem afastou-se, muito desconcertado para protestar, Hawk subiu na

carruagem, tomou assento junto a ela e em seguida seguiram o caminho.

Belinda olhou pela janela, sem fixar-se no mundo que passava ante seus olhos. Seu

rosto era uma máscara inexpressiva, e Hawk compreendeu que se achava encerrada em si

mesma, e que ele não podia chegar até ela. Sentia-se incômodo sentado ao seu lado sem

saber o que devia fazer.

Quando chegaram a Knight House, Bel saiu rapidamente, resmungou uma desculpa e

se foi voando para seu quarto. Ele observou com os ombros caídos como subia pesadamente

a escada em curva.

Perguntou-se se devia lhe dar intimidade até que se acalmasse.

Uma coisa era protegê-la dos olhares de seus entusiastas admiradores, mas duvidava

de envolver-se até o ponto de converter-se para ela em um ombro no qual chorar. Ele estava

francamente pouco acostumado às mostras de emoção, mas apesar disso não era

condenadamente desalmado para fingir que não ocorria nada. Talvez devesse ir ver como se

achava, simplesmente como uma amostra de cortesia. Não desejava ser brusco.

De certo modo, o ato de subir a escada e caminhar silenciosamente pelo corredor até

sua porta era um exercício de coragem. Ficou escutando e estremeceu ao ouvir o som de um

suave pranto. Enrugou o sobrecenho, debateu-se consigo mesmo e, finalmente, mesmo

sabendo que era uma má ideia, bateu na porta.

— Belinda?

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Esperou mas não houve resposta. Franziu o cenho preocupado, virou a maçaneta,

empurrou a porta uns centímetros e entrou.

Bel estava deitada encolhida na cama, com o longo cabelo loiro esparramado sobre

os ombros. Não lhe disse que entrasse, mas por outro lado tampouco lhe disse que partisse.

Vacilante, Robert decidiu que o cavalheirismo exigia que lhe oferecesse ajuda. Entrou no

quarto e fechou suavemente a porta. Aproximou-se e se sentou na beira da cama. Bel lhe

dava as costas. Tocou seu sedoso cabelo com ar inseguro.

— Pobrezinha — sussurrou. — Vamos, não pode ser tão grave.

O leve pranto continuou. Hawk lhe acariciou o ombro.

— Quer me dizer quem era aquele homem? — perguntou com o tom mais doce de

que foi capaz.

Bel permaneceu em silencio durante um longo momento.

— O garoto com quem ia me casar.

Hawk sentiu uma dor semelhante a um golpe físico ao ouvir sua tranquila resposta.

Fechou os olhos e sacudiu a cabeça enquanto ela começava a chorar de novo.

— Todo mundo rompe o coração em alguma ocasião, querida. Você é jovem. Irá

superar.

Recostou-se contra a cabeceira e lhe retirou o cabelo por detrás da orelha. Seus

soluços se aplacaram um pouco à medida que ele continuava lhe acariciando o cabelo com

um toque suave e doce.

— Voltará a amar quando aparecer a pessoa adequada.

— Não voltarei a amar a ninguém — disse ela em voz baixa e desconsolada, ainda de

costas para ele.

— Como pode sabê-lo? — murmurou Hawk, consciente de que seu juvenil voto de

tristeza era similar aos pensamentos que ele tinha guardado depois da morte de Lucy.

— Porque quando uma cortesã se apaixona está perdida.

Ela se virou e o olhou, as lágrimas se acumulavam em suas longas pestanas

castanhas. Hawk nunca a tinha visto tão formosa. Estremecido pela emoção, Robert custou

recuperar a fala.

— Belinda, tem um coração muito doce para atirá-lo pela amurada.

— Todo mundo me falha, Robert — sussurrou ela, olhando-o fixamente, uma menina

sem esperanças nem sonhos.

— Eu não lhe falharei — disse Hawk sem a menor vacilação, para grande assombro

seu.

Durante o silêncio que seguiu, lhe sustentou o olhar, perguntando-se se

inexplicavelmente tinha prometido mais do que estava disposto a dar.

Mas se deu conta de que de todas as maneiras aquela jovem e adorável cínica não

acreditava nele, embora o débil sorriso de seus lábios expressasse sua gratidão ante as boas

intenções do duque. Bel suspirou, fechou os olhos e apoiou a cabeça na coxa de Hawk.

— É um bom homem.

O duque estendeu a mão com delicadeza, afastou-lhe uma lágrima com o dedo, e com

voz estranhamente rouca disse:

— E você, senhorita Hamilton, é muito boa para esse soldado insensato.

Ele observou como Bel curvava os finos lábios em um vislumbre de sorriso, mas ela

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manteve os olhos fechados.

— Robert — sussurrou de forma apenas audível.

— Sim?

— Se lhe dissesse que há algo... Muito importante para mim — disse Bel titubeando-,

algo que tenho que fazer, ajudar-me-ia?

— Do que se trata?

Ela abriu os olhos. Havia neles sombras da cor da noite.

— Tenho que ir visitar meu pai na prisão de Fleet, mas me dá medo ir sozinha.

Acompanhar-me-á? Levar-me-á ali amanhã?

— Pois claro. Não há nenhum problema.

— Não? — perguntou ela, enquanto parecia conter a respiração.

— Podemos ir aonde quiser.

Hawk ouviu como Bel expulsava lentamente o ar com alívio. Pegou-lhe a mão e

entrelaçou os dedos com os seus. Permaneceram em silencio durante um instante, limitando-

se a estar juntos. Acariciou-lhe o cabelo com a outra mão e se maravilhou de sua suavidade.

— Robert — sussurrou ela, desta vez em um tom mais urgente.

Ele sorriu vagamente.

— Sim, Belinda?

Ela ficou muito quieta, com o cabelo esparso pelo colchão, e fechou os olhos.

— Acho... Que quero que me beije.

— De verdade?

— Com suavidade. — Bel abriu os olhos lentamente e contemplou ao Hawk.

Ele a olhou fixamente. Sem dizer uma palavra, inclinou-se para ela e roçou seus

lábios lhe dando um beijo suave e acariciante. Hawk apenas se moveu enquanto balançava a

cabeça dela entre suas mãos.

Bel deixou escapar um suspiro leve como a seda.

Ficaram assim durante um momento, uma eternidade, um ano, até que, por algum

motivo, ele se afastou para trás aturdido.

— Encontra-se melhor? — sussurrou Hawk bastante confuso.

— Sim — disse ela em voz baixa. Abriu completamente seus olhos sonhadores de

longas pestanas. — Obrigada, Robert.

Por um momento, Hawk foi incapaz de fazer outra coisa que olhá-la, inundar-se de

sua beleza, e depois sorriu ante a insensatez de tudo aquilo e lhe deu um tapinha carinhoso

no queixo.

— Sei como posso lhe levantar o ânimo. O que lhe parece se esta noite nós formos ao

Vauxhall?

Um pequeno e inocente sorriso cruzou o rosto de Bel. Soltou um risinho e se separou

dele rodando.

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SETE

Os jardins de Vauxhall não eram de todo desonrosos, mas dificilmente podiam ser

considerados refinados. Constituíam uma espécie de festival ostentoso que durava todo o

ano, e serviam para todos verem e serem vistos. Ali os ânimos se alvoroçavam, a moral era

fraca, e as cortesãs se convertiam em rainhas. O próprio ar parecia brilhar de excitação, e

Bel se sentiu verdadeiramente embriagada ao avançar com passo decidido pela entrada e

desfilar pelo grande passeio, pelo braço de um dos solteiros mais cobiçados da aristocracia,

apesar de ela ser sua amante somente.

Não podia deixar de lançar breves e intensos olhares de soslaio a Hawk, alto,

sofisticado e elegante com sua roupa de etiqueta branca e negra. Trazia o queixo erguido e

caminhava com um rebolado natural, conduzindo-a além das ruínas góticas artificiais e da

cascata.

Em todas as partes as pessoas se voltavam para olhá-los e sussurravam à sua

passagem. Quanto desejava que Hawkscliffe se sentisse orgulhoso de estar com ela! Sabia

que os dois faziam um belo casal — ela, uma loira resplandecente de pele pálida, e ele,

moreno e elegante. Mas o duque podia fazer com que qualquer mulher se sentisse formosa.

Embelezou-se com um estilo de sofisticada moderação que sabia que agradaria

Hawk. Seu vestido branco de musselina de gaze ondeava ao redor de suas pernas ao

caminhar, vaporoso como o ar. Seu fino lenço vermelho lhe cobria os ombros, fazendo jogo

com o ramo de diminutas rosas vermelhas que tinha posto em seu cabelo recolhido. Debaixo

do vestido, como se de uma brincadeira irreverente se tratasse, vestiu a marca pessoal de

toda cortesã: meias brancas de seda com um diamante vermelho nos tornozelos realçado

com fio dourado. Estava pensando maliciosamente em deixar que o duque as vislumbrasse

se apresentasse a ocasião. Por que não? Aquele detalhe podia acrescentar um pouco mais de

emoção à vida de Hawk.

Justo então ele tocou a mão que Bel levava sobre seu antebraço.

— Olhe.

Ela seguiu sua indicação. Diante deles se ouviu a explosão de um globo ao subir de

debaixo das árvores que ladeavam as longas avenidas. Podiam ouvir a música da orquestra

que chegava do pavilhão, enquanto as lanternas de papel iluminavam as principais

passagens.

Quando os dois se olharam, Bel lhe dedicou um deslumbrante sorriso; era como se o

resto do mundo não existisse, nem sequer Dolph. Então ele puxou-a suavemente e a

conduziu ao brilhante e ruidoso pavilhão principal. Dentro, Robert lhe deu uma palmada na

mão e começou a abrir passagem entre a multidão.

Uma das primeiras pessoas com quem se encontraram foi o lorde chanceler Eldon,

um velho robusto de Newcastle. A inteligência de Eldon e seu grande caráter lhe tinham

reportado o título de baronete e lhe tinham permitido subir a um dos cargos mais elevados

do país apesar de não proceder de ilustre berço. Era o simples filho de um agente do carvão.

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Depois de ter originado mais de um escândalo em seu dia e poderoso como era, quando

Eldon viu Bel não se preocupou com as damas da sociedade à quem ofendia.

Sabedora da postura desumana do lorde chanceler sobre a manutenção da pena de

morte por infrações menores, Bel não sentiu desejos de agradar lorde Eldon quando

Harriette os apresentou, mas lhe foi impossível resistir à surpreendente calidez com que

tratava as pessoas que gostava, e era certo que gostava muito dela.

Afastando-se das temerosas mulheres casadas da sociedade, lorde Eldon saudou Bel

com alvoroço, sem prestar atenção a Hawkscliffe. Ela agitou a mão afetuosamente enquanto

seu protetor e lorde Eldon se olhavam com receio.

— Milord — disse Robert inclinando a cabeça.

— Excelência — respondeu Eldon com um ligeiro desdém. — Mais vale que cuide

bem dela — advertiu-lhe.

— Oh, fá-lo-ei.

— E você, jovenzinha, me reserve uma dança.

Bel assentiu cortesmente, contendo um sorriso.

— Será um prazer, milord.

Ele não pôde resistir ao desejo de beliscá-la na face.

— Que preciosidade — disse com um risinho. — Anda, vão-se.

Os dois continuaram avançando no meio da multidão, e Robert se inclinou

ligeiramente para ela.

— Acho que fez um trato com o demônio.

Bel riu.

— Oh, não é o que pensa. Lorde Eldon está apaixonado por sua esposa. Na realidade

é algo curioso. Só somos amigos.

— De verdade? Pois durante os seis últimos meses tentei conseguir o apoio de seu

amigo para levar a cabo certo projeto de reforma, mas a esse tipo parece perfeito pendurar

ingleses por qualquer delito menor.

— Nesse caso teremos que dar um jantar, Robert. E ver se assim podemos persuadi-

lo.

Rindo baixo, Hawk deslizou um braço ao redor dela e a aproximou dele, enquanto

lhe beijava a têmpora.

— Pequena, sabia que se converteria em minha arma secreta no terreno político —

murmurou em tom brincalhão. — Disse-lhe que está deliciosa?

Bel lançou ao duque um ardiloso olhar e seus olhos brilharam.

— Você não está de todo mal. Terei que me assegurar de que ninguém o roube de

mim.

— Pode ser. Arrumou seu lenço Obaldeston com falsa vaidade. — Onde está

Brummell? Vamos ver o que opina de minha jaqueta.

Ela riu e advertiu que o duque estava percorrendo o salão com o olhar. Notou uma

ligeira rigidez no braço com lhe rodeava a cintura, mas Hawk seguiu empregando um tom

elegantemente divertido.

— Aí está nosso amigo mútuo.

Deu um salto o coração de Bel, embora ocultasse sua reação.

— Suponho que sabia que ia vir.

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— Suspeitava-o.

Bel abriu seu leque com um golpe seco.

— Bom, como quer que interprete sua farsa, Robert?

— Você o conhece melhor que eu. O que sugere?

— O que faria que Dolph se tornasse louco? — pensou ela em voz alta. A resposta

veio a sua cabeça imediatamente. — Terei que fingir que estou completamente apaixonada

por você.

— Fingir? — exclamou Hawk, aparentando sentir-se doído, embora lhe dançassem

os olhos. Lançou-lhe um olhar apagado.

— Acima de tudo, isso é o que Dolph mais gostaria de conseguir.

— Isto vai ser mais divertido do que pensava.

— Desfrute enquanto puder Hawkscliffe. Isto é uma simples brincadeira — disse Bel

entre dentes, lhe agarrando a mão. Puxou-o em direção ao grupo de camarotes situados em

um sítio pouco iluminado onde as cortesãs vadiavam, riam, bebiam e jantavam com seus

protetores, mostrando um aspecto magnífico com seus atrevidas ornamentos.

O alegre grupo estava encabeçado pelas Três Graças — Harriette, Fanny e Julia— e

os habituais cavalheiros de seu círculo: Argyll, Hertford, o coronel Parker, Brummell,

Alvanley, Leinster e seu apaixonado jovem primo, o marquês de Worcester, que estava

perdidamente apaixonado por Harriette.

Bel e Hawkscliffe foram recebidos com um sonoro entusiasmo. Sua relação era a

fofoca da cidade. Quando Harriette ordenou a outros que lhes fizessem lugar no camarote,

os dois deslizaram em seus assentos e pediram o jantar e vinho. Ao ver que Robert apoiava

seu braço no espaldar do assento de Bel em gesto protetor, ela riu para si mesma,

desfrutando secretamente daquela farsa.

Nesse preciso instante se ergueu um coro de saudações cordiais quando um homem a

quem Bel não tinha visto antes se uniu a eles. Nenhuma mulher poderia ter resistido em

olhar para aquele jovem de deslumbrante atração. Seu malicioso sorriso iluminou o pavilhão

quando entrou e abriu passagem entre o mar de mulheres que o adularam, fizeram

brincadeiras e lhe fizeram propostas, acariciando-o furtivamente entre a multidão quando

passava. Rondava os trinta e a todo mundo parecia um jovem arcanjo alegre e farrista que

tivesse caído na terra miserável em uma rajada de vento.

Tinha uma longa cabeleira de cabelo leonino preso para trás em um rabo, e ia vestido

de forma extravagante, com uma magnífica jaqueta de veludo azul e umas calças brancas

muito justas, que se grudavam a suas musculosas pernas. Saudável, bronzeado e de ombros

largos, aproximou pavoneando-se com o ar elegante de um bandoleiro romântico e galante.

Inclusive Harriette se ruborizou quando lhe beliscou a face como saudação.

— Oh, não, cá estamos — murmurou Robert ao vê-lo.

— Conhece-o?

Robert franziu o cenho e não lhe respondeu, e nesse momento o bonito trapaceiro o

olhou diretamente por cima das cabeças de todas as pessoas que havia à mesa, soltou uma

sonora gargalhada de satisfação e se dirigiu a ele.

— Ah! O que é isto? Grande desgraça! Caiu-se o céu? Congelou-se o inferno? É

possível que meu impoluto irmão esteja aqui, entre os pecadores? Sem dúvida me enganam

os olhos.

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— Oh, se cale, Alec.

Bel arqueou as sobrancelhas. Seu irmão? Não se pareciam em nada. Eram como o dia

e a noite: um moreno, de olhos escuros e sérios, o outro loiro, com os olhos azuis e

graciosos. Enquanto seguia rindo, Alec, pois assim o tinha chamado, aproximou-se com ar

fanfarrão e deu a Robert, cordialmente, uns tapinhas nas costas.

— Oh, olhem como caem os poderosos — manifestou dirigindo-se a todos os

presentes como um cômico nato.

Todos riram, embora Robert resmungasse, sem se mostrar absolutamente divertido.

Ainda não tinha acabado de mofar-se de seu irmão maior, quando o malandro se inclinou

para baixo e cruzou os braços contra o espaldar de Bel.

— Olá — disse alongando a palavra, enquanto a olhava zombeteiramente de perto,

com um interesse claramente masculino.

Bel arqueou uma sobrancelha e o olhou com desinteresse.

Ele deixou cair seu monóculo e se voltou para Robert com um amplo sorriso.

Então esta é a mocinha com quem estiveste esbanjando nossas rendas? —

Excelência, eu vejo uma indubitável melhora em seu gosto. Mademoiselle — disse com um

gesto cortês como reverência-, tiro o chapéu ante você. Tinha medo de que meu irmão fosse

um monge.

Ela reprimiu um sorriso. De modo que aquele janota dissoluto pretendia fazer passar

mal a seu protetor? Onde se dá aí se toma. Rodeou o pescoço de Robert com os braços e

sorriu de forma evasiva.

— Oh... Acredite-me, não é nenhum monge.

As douradas sobrancelhas do jovem se ergueram de repente quando ela beijou Robert

na face, aferrando-se a ele como se fosse o único homem no universo. Então o irmão

libertino explodiu em gargalhadas.

— Caramba! — disse o duque com rigidez, movendo-se em seu assento. Ela sorriu

afetuosamente, percebendo um ligeiro rubor em suas faces varonis. — Senhorita Hamilton,

permita que a apresente a meu irmão, lorde Alec Knight. Meu irmãozinho — resmungou

com certo sarcasmo.

— Que tal está? — disse ela distraidamente, sem incomodar-se em olhar lorde Alec,

que imediatamente lhe pareceu um autêntico presunçoso, acostumado a monopolizar a

atenção das mulheres frente ao resto dos homens.

Em seu lugar, dedicou-se a olhar exclusivamente a Robert, a beijá-lo languidamente

na face, pescoço e orelha enquanto ele e seu irmão conversavam. Meteu-se tanto no papel

que chegou um momento em que não sabia se sua aparente adoração era autêntica ou falsa.

Podia sentir como se acelerava o pulso de Robert na artéria quando lhe beijava o pescoço.

Bel fechou os olhos e sorriu sensualmente enquanto o beijava e lhe mordiscava o lóbulo

com suavidade. O que aconteceria se aquilo fosse real? Perguntou-se Bel. O que ocorreria se

ela fosse sua verdadeira amante?

Olhou Harriette — a sempre prática e confiável Harriette e compreendeu que só uma

estúpida deixaria passar uma oportunidade como aquela sem ao menos tentar aferrar-se a

um protetor como Hawkscliffe. Por que não ia fazê-lo ela? Davam-se bem. Ela podia lhe ser

útil, e sabe Deus que ele podia permitir-se seus serviços. Não tinha uma esposa que se

pudesse ver afetada por sua relação, e certamente Bel não tinha nenhuma ilusão voltar para

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o mercado público quando aquela farsa tivesse terminado. Deixar-se-ia ele ser persuadido?

Brincando com o lenço de Hawk, Bel esteve a ponto de sentar-se em seu regaço enquanto

considerava a possibilidade de conquistá-lo de verdade.

Lorde Alec riu entre dentes.

— Parece-me que preferem estar a sós. Senhorita Hamilton. — despediu-se dela com

uma inclinação de cabeça, lançou a seu irmão um sorriso risonho, e foi falar com outros.

— Está se excedendo um pouco, não acha? — murmurou Robert em voz baixa.

— Não se faça de orgulhoso comigo, Robert. Temos que ser convincentes —

murmurou ela, rindo nervosamente enquanto lhe acariciava o peito.

— É muito convincente, Belinda. Acredite-me.

— Quanto de convincente, Robert? — sussurrou ela.

Ele lançou-lhe um olhar ansioso.

— Diga-me isso você.

— Hum, isso soa a convite. — Em um arranque de estimulante ousadia, Bel deslizou

sua mão por debaixo da mesa e roçou com a palma a palpitante evidencia de sua reação ante

suas efusões.

Robert tomou ar quando ela o tocou, mas não fez nenhum movimento para detê-la.

Ela observou seu rosto e decidiu que gostava de ser quem levava as rédeas.

— Oh, Robert, sinto-me tão adulada. Desgraçadamente nosso acordo não me permite

ajudá-lo com esse grande... Problema que tem. — Retirou a mão com um sorriso matreiro.

— Será melhor que se comporte malandra desalmada — lhe advertiu em um sussurro

confuso.

— E o que acontecerá se não o fizer?

— Não sei, mas certamente me ocorrerá algo quando tiver a cabeça limpa. Onde se

dá aí se toma. — Lhe pousou a mão na perna, sob a mesa, e a deslizou para cima pela coxa

acariciando-a suavemente.

Um tremor incontrolável de excitação percorreu o corpo da jovem, mas ela optou por

mostrar-se desafiante.

— O que acha que está fazendo?

Dedicou-lhe um sorriso íntimo e cálido e ela se sentiu tão cativada que rodeou com

sua mão a face do duque e o atraiu para si para lhe dar um beijo lento e profundo. Bel não

sabia o que lhe passava. Parecia como se não se cansasse daquele homem. Era a dignidade

de sua pessoa, a confiança que lhe transmitia e que lhe permitia desdobrar as asas. “Se

Dolph está olhando — pensou, com os olhos fechados-, terá um ataque de apoplexia.” De

repente todo pensamento se desvaneceu enquanto se consumia em uma espiral de prazer,

encantada pelo toque rítmico e suave de seus deliciosos lábios.

— Procurem um quarto — gritou alguém, e só então se separaram, entre gargalhadas

e aplausos, ruborizados e ofegantes, evitando com acanhamento o olhar do outro. Robert

estendeu a mão com ar resoluto para agarrar seu copo e bebeu um longo gole de vinho

enquanto Bel, ficando cada vez mais vermelha, afastava o cabelo detrás da orelha e adotava

o sorriso mais frio de que foi capaz.

Pouco depois, lorde Eldon foi reclamar sua dança. Ela vacilou, sem saber se era

aconselhável separar-se de seu protetor quando Dolph podia estar em qualquer parte do

abarrotado pavilhão, mas Robert assentiu com a cabeça firmemente. Então ela compreendeu

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que Dolph não iria se expor a fazer ridículo diante de alguém como lorde Eldon.

— Estarei vigiando-a — murmurou Robert quando ela passou diante dele ao sair do

camarote.

— Sei. — Sorriu-lhe, acariciou-lhe uma face e se reuniu com o lorde chanceler.

Bel precisaria estar cega para não reparar nas incontáveis mulheres que a fulminaram

com o olhar quando o casal ocupou seu lugar para iniciar a pausada contradança. A censura

da boa sociedade fez que a invadisse uma onda de furiosa rebeldia.

Dolph considerava que lhe pertencia, do mesmo modo que certas mães da sociedade

pensavam que Hawkscliffe era de sua exclusiva propriedade e estava reservado para uma de

suas filhas. Bel tinha conhecido aquele tipo de mulheres durante sua etapa como professora

na academia da senhora Hall. Já então não gostara daquela atitude prepotente e presunçosa,

agora sentiu desejos de zombar de todas elas. Entretanto, desdobrou seu sorriso mais ousado

de cortesã e lançou um beijo a Robert enquanto esperava que começasse a soar a música.

Ele sorriu ironicamente sem lhe tirar olho. Ela era plenamente consciente de seu

olhar enquanto dançava. Movendo-se entre figuras com lorde Eldon, deu uma olhada ao

lugar onde estava Robert. Lorde Alec se colocou junto a ele. O irmão maior e o menor dos

Knight permaneciam sentados juntos na mesma pose, com seus musculosos braços cruzados

e as cabeças inclinadas enquanto dialogavam, olhando as pessoas que dançavam numa

atitude impassível e bastante maliciosa. Supôs que Alec estaria interrogando Robert sobre

sua aparente conquista.

Pouco depois terminou a contradança. Bel fez uma reverência em resposta à

inclinação de lorde Eldon. Quando o lorde chanceler lhe ofereceu o braço para acompanhá-

la de volta a sua mesa, Bel tomou ar e descobriu que, enquanto ela tinha estado dançando,

tinha estalado uma faísca no barril de pólvora que era a relação entre Robert e Dolph.

Deveria ter imaginado.

Pelo visto Dolph tinha tentado detê-la quando retornava da pista de baile, mas Robert

e Alec tinham intervindo para impedi-lo. Ao ver a dupla ameaça que se abatia sobre Dolph,

seus amigos, por sua vez, tinham aparecido para respaldá-lo. Nesse momento os dois grupos

de homens crispados se achavam junto à beira da pista de baile. Dolph estava dizendo algo a

Robert. A julgar pela feroz postura do duque e seu olhar tenso e furioso, a situação estava a

ponto de desembocar em um estalo de violência.

Murmurando uma desculpa para lorde Eldon, Bel saiu correndo e abriu passagem a

empurrões entre a multidão para retornar junto a seu protetor, rezando para chegar antes que

ocorresse algo terrível. Talvez ela pudesse fazer com que Dolph se acalmasse.

Argyll e o coronel Parker chegaram ao lugar no mesmo instante que ela.

Dolph a olhou com um ódio lascivo, mas por alguma razão permaneceu calado. Não

obstante, o amigo que estava junto a ele não foi tão precavido.

— Anda, observem, sim, é a nova prostituta Hawkscliffe.

— O que disse? — grunhiu Robert apertando os dentes. Alec deu um passo adiante.

O coronel Parker segurou Bel para que não fosse para junto de Robert. Quando se

voltou para olhar, com o cenho franzido, ao atraente oficial, as palavras fatais foram

pronunciadas:

— Todo mundo sabe que os irmãos Knight não são mais que um bando de bastardos

mestiços.

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A música se deteve. Todas as pessoas que tinham ouvido o insulto ficaram imóveis e

olharam para o janota bêbado, de rosto comprido que tinha falado desse modo.

Robert olhou para Dolph.

Dolph ergueu as mãos e soltou uma gargalhada insolente.

— Eu não fui.

Então Alec se moveu, lançando-se como um jovem leão em pleno ataque. Afastou

Dolph com um empurrão, pegou o janota pelas lapelas e o levantou do chão. Atirou-lhe um

murro em pleno rosto. O tipo caiu rodando para trás pelo assoalho como se tivesse sido

disparado por um canhão.

Armou-se um pandemônio.

— Fora! — bramou Argyll.

— Parker! Se ocupe da Belinda! — rugiu Robert, voltando-se para olhá-la entre a

multidão. — Vá com o coronel Parker! — ordenou, lançando-lhe um intenso olhar no meio

do alvoroço.

Ela tentou protestar, mas então ele já tinha ido para junto de seu irmão, embora

chegasse muito tarde para evitar que Alec levantasse do chão a sua vítima e o golpeasse de

novo.

— Bata-lhe fora, Alec! — gritou furioso.

Bel mal podia ouvi-lo em meio daquele caos.

— Venha, senhorita Hamilton. — O coronel Parker puxou-a a força e a pôs a salvo

junto a Harriette, Fanny e Julia, que contemplavam a cena assombradas.

— O que aconteceu querida? — exclamou Fanny, abraçando-a em atitude protetora.

— Um amigo de Dolph disse que sou a prostituta de Hawkscliffe e agora estão

brigando — replicou, enquanto o nutrido grupo de homens avançava lentamente em turba

para a saída.

— A prostituta Hawkscliffe? — perguntou Julia, visivelmente divertida.

Harriette olhou Bel, sem mostrar-se nem um pouco alterada pela briga.

— Querida, se isso for o que disse, fique certa que não se referia a você.

— O que? — exclamou ela, sentindo-se como uma novata histérica ante as

impassíveis Três Graças. — A quem iria se referir se não a mim?

— Nunca ouviu falar da prostituta Hawkscliffe?

— Não! Quem é essa?

Harriette inclinou a cabeça em direção a Robert e Alec.

— Sua mãe.

— Sua mãe — repetiu Bel espantada.

— Sim — assentiu Julia. — Georgiana Knight, a duquesa de Hawkscliffe. Viveu

para o amor. Em seus tempos teria feito com que nós parecêssemos monjas.

— O que? — gritou Bel.

— Dizem que foi uma beleza fabulosa, apaixonada e indomável. Teve relações com

todos os homens importantes de sua época.

— Desde poetas a boxeadores profissionais — interveio Fanny.

— Estou impressionada — disse Bel com voz entrecortada.

Os bagunceiros tinham saído pela porta, e o salão bulia com o rumor do bate-papo

espectador.

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— Não conhece a história da família Knight? — perguntou Harriette, pegando-a pelo

cotovelo e atraindo-a para si para lhe relatar a história, pois, se havia uma coisa que gostava

mais que um homem rico, era um bom escândalo.

— Não! Conte-me.

— O pai de Robert, o oitavo duque, era um cavalheiro e não se opôs a reconhecer os

filhos de sua mulher como seus, mas seu protetor é seu único filho verdadeiro. Os outros

quatro irmãos têm pais diferentes, e supostamente a filha também é de sangue verdadeiro: o

fruto da reconciliação entre os dois, pouco antes que o oitavo duque morresse.

— Oh, céus — soltou Bel, assombrada. Sabia que deveria estar acima das fofocas,

mas não havia maneira de que pudesse evitar. — Quem é o pai real de lorde Alec?

Harriette se inclinou para ela, com os olhos brilhantes de regozijo ante aquela

deliciosa intriga.

— Supostamente, Alec foi gerado por um ator shakespeariano muito conhecido que

esteve vinculado com o Drury Lane. Bel arregalou os olhos.

Harriette levou um dedo aos lábios.

— Eu não lhe disse isso.

— Meu Deus, que escândalo! — disse Bel, tentando assimilar tudo. — Eles sabem

que são meio irmãos?

— Pois claro que eles sabem querida. Mas lhes dá na mesma. Não achará irmãos de

sangue que sejam mais leais uns com os outros que esse pando de bonitos patifes.

— Robert não é um patife, é um homem exemplar — disse Bel suspirando.

— Absolutamente — respondeu Harriette soltando um grunhido. — Pode ter se

refinado, se destacar e ser mais correto que todos se quiser, mas no fundo, se lembre bem do

que lhe digo, continua sendo filho de Georgiana, e sua paixão corre por suas veias.

Ter que defender a honra de sua mãe não era nada novo para Hawk e seus irmãos.

Era algo que tinham feito desde meninos. Podiam brigar entre eles como cão e gato, mas

quando ficava em dúvida a honra da família, os cinco se uniriam contra o mundo se fosse

necessário.

O bulício geral prosseguia fora, sob as estrelas e lanternas de papel. Uns vinte ou

trinta homens se reuniram na grama situada entre o grande passeio e o passeio do sul para

contemplar a briga, quando não para unir-se à refrega. A maioria se limitava a aclamá-los

aos gritos e a fazer apostas, mas todo aquele que se topou alguma vez com os irmãos Knight

sabia que não devia apostar contra eles.

Com sua extravagante roupa desalinhada e o cabelo longo desprendido da faixa, Alec

continuava golpeando o néscio que tinha insultado a sua mãe, enquanto Hawk lhe cobria as

costas, tentando manter a situação sob controle com escasso êxito.

Felizmente, o sino de aviso soou por toda Vauxhall, indicando que tinha chegado o

momento de se separarem. Em um momento de distração, Hawk conseguiu afastar Alec

daquele tipo, que virtualmente se achava inconsciente.

Enquanto a multidão se dispersava e se afastava para contemplar o milagre da cascata

artificial, apareceu o gerente dos jardins de recreio e ordenou a Alec que partisse. A seguir o

beligerante homenzinho mandou todos os que tinham participado da briga que fizessem o

mesmo.

Hawk viu que seu irmão não parecia muito maltratado, excetuando o fio de sangue

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que lhe jorrava por uma comissura da boca. Alec tirou seu lenço como um dandi consumado

e se limpou com um imperioso aprumo cheio de elegância.

— Um bom trabalho — declarou em tom leve. — Acho que vou a alguma casa de

jogo clandestino depenar alguém.

— Eu fico, dá-me igual o que diz o miúdo do gerente. Belinda o estava passando

muito bem para levá-la à força. São só nove.

— Sua amiguinha não o deixará partir, excelência. Desfruta de seu novo brinquedo.

É condenadamente melhor que Lucy Coldfell.

— Cuidado com o que diz — grunhiu Hawk.

Alec lhe lançou um olhar insolente e partiu com vários de seus dissolutos amigos.

Justo então Hawk viu que Dolph se ia. Ainda não tinha acabado com o baronete.

Subornou facilmente o gerente para que o deixasse ficar e foi atrás de seu inimigo.

— Breckinridge!

Dolph se virou. Seus amigos também.

— Eu gostaria de falar com você, por favor. A sós.

Com um gesto, Dolph indicou a seus fiéis que se fossem e estes partiram, dois deles

carregando o aturdido instigador da briga. Aproximando-se dele com receio, Dolph ergueu

insolentemente seu queixo quadrado.

— O que quer?

— Disse-lhe que não se aproximasse dela.

Dolph apertou os dentes.

— Me mantive a mais de três metros de sua rameira, Hawkscliffe.

— Não me provoque Breckinridge. Não penso adverti-lo outra vez, me ponha à

prova. Está claro que tenho algo que você quer.

Dolph lançou um rápido olhar de desprezo ao longínquo pavilhão. Hawk seguiu seu

olhar e viu Belinda na entrada, iluminada pelas lanternas de papel. Para sua tranquilidade, a

jovem não se aproximou deles, mas permaneceu ali, olhando e esperando com ansiedade.

— É linda, não é verdade? — murmurou Hawk.

— Vi melhores.

Hawk riu em voz baixa da grosseira resposta.

— Dá-se a casualidade que você também tem algo que eu quero Breckinridge.

— Do que está falando? O que é o que tenho?

— Acredito que já sabe.

— Não tenho nem a mínima ideia do que quer dizer.

— Pode ser que esteja interessado em fazer um intercâmbio — disse Hawk, sem

conceder importância ao calafrio que sacudiu sua consciência enquanto fazia sua desumana

proposta, por muito que aquilo fosse só um estratagema.

— Que tipo de intercâmbio?

— Se me der o que necessito, terá Belinda.

Dolph olhou em direção ao pavilhão onde estava ela e a seguir olhou ao Hawk,

nervoso.

— Não sei o que pretende Hawkscliffe, mas Belinda já não me interessa. É um

produto usado.

— Pode ser que sim. Pode ser que não.

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As narinas do nariz de Dolph se alongaram.

— O que quer dizer?

— Pode ser que não tenha recorrido à senhorita Hamilton por prazer, Dolph. Talvez

tivesse outros motivos. Motivos que lhe correspondem pessoalmente.

— Maldito dissimulado, quer dizer que ainda não se deitaste com ela? — exclamou

Dolph.

— Um cavalheiro nunca conta essas coisas... Mas já sabe o que dizem os puristas.

Não se deve engolir os bocados mais doces na primeira ocasião, mas saboreá-los ao máximo

e deixá-los para o último. Entende-o, Dolph? Ainda resta uma pequena esperança. Se seguir

minhas instruções ao pé da letra, ainda pode ser tua. Se desperdiçar a oportunidade ou tentar

me enganar, asseguro-lhe que me deitarei com ela e desfrutarei ao máximo de suas

habilidades.

— O que quer?

— Informação.

— Sobre o que?

— Acredito que já sabe.

— Não sei! Quer falar claro? Deus, você é pior que a serpente de meu tio.

— Controla esse gênio, Dolph. Algum dia eu o pegarei.

— Me diga o que quer! Quero que Belinda volte comigo. O que quer em troca?

— Em primeiro lugar Belinda nunca foi tua, Dolph. Assim dificilmente lhe vou

devolver isso.

— Hawkscliffe!

— Bom, vejo que ainda não é o momento adequado. Não está disposto a confessar.

— A que? — gritou Dolph.

Hawk começou a caminhar de volta ao pavilhão com as mãos nos bolsos.

— Hawkscliffe!

— Outro dia, Breckinridge. Já me porei em contato com você.

Bel contemplou como Robert se aproximava dela resolutamente, com as mãos nos

bolsos, retornando vitorioso da briga. Bastou-lhe sacudir rapidamente seu muito elegante

fraque negro e puxar ligeiramente seu colete branco pérola e seu lenço para voltar a estar

impecável.

Sorriu-lhe com um tênue brilho possessivo em seus escuros olhos e lhe ofereceu o

braço, e juntos entraram no pavilhão.

Embora Dolph, que era o principal objetivo daquela farsa, partisse, por algum motivo

nenhum deles desejava pôr fim à mascarada. Bel pensou que os dois aparentavam muito

bem sentir uma atração mútua. Inclusive tirou o duque para pista de baile para dançar uma

valsa.

Vauxhall não era Almack’s, mas mesmo assim a valsa que dançaram juntos Foi

gloriosa. Bel tinha as faces rosadas e notava a cabeça zonza pelo torvelinho do baile,

enquanto Robert a deslizava pelo chão de parquet com uma elegância atlética natural.

Ela o olhou com adoração, enquanto dava voltas e voltas pelo chão entre seus braços

até que o mundo que a desaprovava se converteu em uma mancha de cor insignificante ao

seu redor, e não ficou ninguém mais que ele, seu sorriso, seus olhos.

À meia-noite saíram juntos pela mão e acharam um lugar agradável junto ao rio para

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contemplar os foguetes de Vauxhall. Parado detrás dela, Robert lhe rodeou a cintura com os

braços para que se mantivesse em calor apesar do ar fresco da noite, pois com o passar do

Tâmisa corria uma boa brisa. Ela apoiou a cabeça contra o peito do duque e contemplou as

explosões do céu contendo um suspiro. Olhou ao Hawk e viu como as cores brilhantes dos

foguetes iluminavam suas feições aquilinas em tons vermelhos, prateados e azuis. A luz das

estrelas parecia dançar em suas pestanas.

Inclusive na carruagem, a caminho de casa, não parecia que nenhum dos dois

estivesse disposto a pôr fim à farsa. Estavam tão bem assim... Devido ao avançado da hora,

Robert a estreitou entre seus fortes e quentes braços e deixou que dormitasse com a cabeça

apoiada em seu ombro. Nenhum dos dois rompeu o precioso silêncio, como se uma palavra

equivocada pudesse romper o recente vínculo que os unia, frágil como um fio dourado.

Quando chegaram a Knight House demoraram no alto da majestosa escada de

mármore, já que era a hora de dar a boa noite. Olharam-se com desejo e ambos afastaram a

vista.

De repente ela rompeu o tenso silêncio.

— Eu... Acredito que tudo foi bem — disse, com uma expressão séria.

Ele assentiu de forma forçada.

— Assim é.

— Robert...

Hawk lhe dirigiu um brilhante olhar de desejo como um relâmpago, mas não moveu

um músculo. Parecia que estivesse contendo a respiração.

— Sim?

O coração dela pulsava com força. O acanhamento fez que se contivesse.

— Eu... Passei estupendamente.

— Bem. Quero dizer que essa era a ideia. Eu também passei muito bem. — molhou

os lábios e baixou o olhar, mantendo-se tão rígido como a reluzente armadura do vestíbulo.

— Enfim... Boa noite.

— Boa noite, Robert.

Hawk se inclinou e Bel se virou e começou a afastar-se, mas de repente se deteve e se

virou de novo. Ele continuava ali, com as mãos nos bolsos, olhando-a com aspecto solitário,

melancólico e um tanto desamparado, e as maçãs do rosto acentuadas pela luz do

candelabro da parede.

— O que ocorre querida? — perguntou com suavidade.

— Continua querendo ir comigo amanhã ao cárcere? Recorda-o? Prometeu-me isso...

— Nunca esqueço minhas promessas, senhorita Hamilton. Que tenha doces sonhos.

Dedicou-lhe um sorriso vacilante e partiu a toda pressa para seu quarto antes que

pudesse cometer uma imprudência.

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OITO

Naquela manhã a simples e afável companhia dos sócios de seu clube aliviou Hawk

temporariamente de seu mal, que era desejar uma mulher a quem não queria querer.

Estava um tanto irritado depois de ter passado outra noite dando voltas na cama

devido ao desejo que sentia por ela. “Uma farsa atrás de outra” pensou, decidido a seguir se

fazendo de santo e afastar dele a tentação. Retornou, com ar enérgico e sério, a uma em

ponto, tal como tinha prometido, para acompanhá-la à prisão de Fleet. Não era assunto seu,

mas Hawk sentia a tentação de dizer claramente ao senhor Hamilton o que pensava de sua

estúpida loucura.

Belinda tinha ido pela manhã fazer compras e tinha adquirido uma grande variedade

de presentes para animar seu pai, entre os quais se achava um exemplar do Time desse dia.

Enquanto a carruagem de Hawk avançava Faringdon Street abaixo em direção à enorme

prisão, Bel abriu o periódico.

— Só... Quero comprovar uma coisa — murmurou enquanto examinava a página de

fofocas.

Com o passar do trajeto Hawk se deu conta de que ela estava tensa, sentada em frente

dele. Com seu vestido azul de talhe alto, sua jaqueta ligeira e suas luvas brancas estava tão

formosa como aquele dia primaveril. De repente ficou pálida, fechou rapidamente o

periódico e o jogou em um lado com uma careta.

— Más notícias? — perguntou ele.

— Falam de nós.

Hawk suspirou e sacudiu a cabeça. O que importava ao mundo a quem cortejava uma

pessoa? Acaso não existia a intimidade? Quando chegaram à prisão de Fleet, Bel deixou o

Time e desceu da carruagem. Passou o braço pela dobra do cotovelo de Hawk e se manteve

um tanto atrasada enquanto avançavam para a grande entrada com forma de arco.

Qualquer um que tivesse visto seu rosto lívido teria pensado que a conduziam a sua

execução. Percorreu com o olhar os imensos muros de pedra, enquanto retorcia os cordões

de sua bolsa com tanta força que esteve a ponto de rompê-los. À direita se erguiam os muros

fortificados do pátio do cárcere, com pregos no alto para evitar fugas. Ela os examinou com

inquietação.

— Vamos, Belinda, tenho certeza de não há nada a temer-disse ele em tom bastante

impaciente. Não tinha o menor desejo de que aquilo durasse mais que o necessário. Aquele

lugar era desagradável, e ele tinha que estar na Câmara dos Lordes às duas.

Bel o olhou. Atrás de Robert estava o lacaio, impávido, carregado com os presentes

de seu pai.

— Não temos por que entrar se não quiser — acrescentou Hawk em um tom mais

cortês. — Posso enviar a meu criado...

— Não, tenho que ver papai — conseguiu dizer ela. — Sou a única pessoa que tem

no mundo.

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Acariciou-lhe o queixo, consciente de que devia ser toda uma humilhação para ela

lhe mostrar a desgraça de sua família.

— Sua lealdade é encantadora. Só me pergunto se ele a merece.

— É meu pai. É claro que a merece. Robert, disse que faria isto comigo. Não me

abandone agora...

— Estou aqui — disse ele com ternura, desconcertado pelo semblante apavorado de

Bel. E de repente pensou que ela o estava submetendo a uma espécie de prova. Olhou-a

fixamente, perguntando-se o que se esperava dele. — Estarei ao seu lado, Belinda. Está

preparada?

— Sim... Sim. Devo-lhe uma, Robert. — Bel lhe dedicou um sorriso morno, no

melhor dos casos, enquanto subia o chapéu e se pegava novamente ao braço do duque. —

Recorde que ele não sabe... O meu…

— Sou consciente disso — replicou ele com secura. Deus, como se tinha metido

naquele assunto? Nunca tinha imaginado que se veria obrigado a conhecer o pai da cortesã

que tinha por amante. Certamente era uma má ideia, pensou enquanto a conduzia ao

interior. Cortesã ou não, era uma jovem de boa família e não devia expor-se a um lugar

como aquele. Mesmo assim, tinha que elogiar seu sentido da obrigação como filha.

Percebeu que Belinda tremia ligeiramente. Aproximava-se a ele enquanto

caminhavam juntos, e quando passaram ante o escritório do administrador se pegou a ele. A

porta estava entreaberta, e ela avançou a seu lado, com o rosto oculto pelo chapéu. Ao ouvir

um som rouco de gritos Hawk sentiu curiosidade e deu uma olhada.

Um tipo bruto cheio de cicatrizes — obviamente o administrador— estava

repreendendo a um de seus subordinados. Robert sacudiu a cabeça e pensou: “Grande

inferno”.

Um guarda os conduziu por vários corredores. Todos os lugares da prisão eram

estreitos, além de fedidos, caóticos e ruidosos, cheios de detentos que lhes imploravam e os

insultavam através das grades. Hawk apertou as mandíbulas com ar carrancudo e, rodeando

os ombros da Belinda com um braço, aproximou-a mais dele, desejando poder protegê-la

daquelas obscenidades.

Ao chegarem ao fundo do corredor acessaram a um pavilhão mais decente. Hawk tão

só relaxou um pouco sua postura defensiva quando os levaram por um lance de escadas até

o lugar onde os devedores mais educados tinham celas privadas.

Quando se detiveram ante a sólida porta de madeira de uma das celas privadas,

Belinda tirou o chapéu. Tinha o rosto de uma cor pálida doentia. Hawk franziu os lábios e

ficou atrás, sem saber se ela desejava que a seguisse até o interior ou se preferia que a

esperasse. Belinda olhou à frente. Ele viu como erguia o queixo e forçava um sorriso. Algo

se rasgou no interior de Hawk ao observar o modo como endireitava seus finos ombros.

O carcereiro abriu a porta, e o rosto da jovem se iluminou.

— Papai!

Bel abriu os braços e entrou correndo na cela com uma risada que soava

estranhamente frágil. Hawk se situou na entrada e viu como Bel se jogava nos braços de um

homem com óculos e cabelo branco.

— A bela Linda! Bem-vinda, querida! Tem melhor aspecto que da última vez que a

vi. Deve ser por que a comida francesa lhe assentou bem. Mas me diga, você gostou de

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Paris?

Sem o menor aviso nem motivo aparente, Bel rompeu a chorar. O ancião subiu os

óculos no nariz e a olhou com olhos de míope.

— Que tolice é esta, chorona?

Estava muito histérica para responder. Hawk decidiu que tinha chegado o momento

de fazer-se encarregado de certas questões. Pigarreou para fazer notar sua presença e entrou

na cela com passo resoluto, tirou o chapéu e indicou a seu lacaio com um gesto que passasse

com os presentes.

— O senhor Hamilton, suponho. — Estendeu a mão ao velho erudito. — Robert

Knight, a seu serviço.

O pai de Bel lhe estreitou a mão com indecisão, entreabrindo os olhos para olhá-lo.

— O senhor Knight, disse? Como vai? É amigo de Bel? E, se for assim, pode me

dizer por que está chorando minha mocinha?

Belinda rodeou o pescoço de seu pai.

— É que me alegro tanto de vê-lo, papai! Senti muito sua falta quando estive em... —

olhou ao Hawk em atitude suplicante-, Paris.

Hawk franziu o cenho e a olhou fixamente, e a seguir abandonou seu esforço por

entender aquilo.

— Sua filha lhe trouxe algumas quinquilharias para animá-lo, senhor Hamilton.

— Não é um senhor qualquer papai. É o duque de Hawkscliffe. É muito modesto.

Muito — sussurrou, fungando.

— Oh. — Alfred riu com regozijo de seu engano. — Rogo-lhe que me perdoe

excelência.

— Não tem importância. — Hawk era consciente de que estava comportando-se de

forma insensível e brusca, mas não podia evitar olhar com ódio ao velho estudioso ao ver a

expressão de desconsolo nos belos olhos de Bel. No que pensava aquele homem? Em

manuscritos iluminados antes que em sua preciosa filha?

— Sinto-o — disse ela, limpando o nariz. — Tem razão, estou agindo como uma

idiota. É que sentia sua falta, velho feiticeiro. — Limpando-as lágrimas rapidamente, foi

para a cama de armar onde o criado de Hawk tinha deixado os presentes. — Vê isto, papai?

Um novo travesseiro e uma manta, brandy e um pouco de rapé...

— Eu gosto do rapé, bela Linda? Vá, não o recordo! — riu como se sua cabeça oca

fora o mais divertido do mundo.

Hawk franziu o sobrecenho e se afastou.

— Não sei papai, mas se não o quer pode utilizá-lo para subornar aos guardas.

— Oh, claro! Mas que esperta é minha garota! Não haverá me trazido por acaso

nenhum... Livro, não é verdade? — perguntou, movendo-se nervosamente como um menino

na manhã do dia de Natal.

— Claro que sim.

Pai e filha procederam a elogiar os três livros que lhe tinha levado: tratados

extremamente aborrecidos de história clássica e medieval que fizeram que Hawk e seu

lacaio trocassem olhares de desconcerto.

Finalmente o ancião se voltou para ele.

— Excelência, por que não abrimos o brandy que trouxe Bel e lhe damos um trago,

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né?

Ante um comportamento tão afável e cortês, qualquer um teria pensado que se

achavam no estúdio de Hamilton e não em sua cela.

Hawk sorriu de maneira insossa.

— Não, senhor, mas lhe agradeço o oferecimento.

— E como... Conheceu minha filha, por certo? — perguntou com certa cautela.

Por fim aquele homem mostrava um vislumbre de senso comum.

Se tivesse sido sua filha quem tivesse aparecido vestida de ornamento com um

estranho a seu lado, teria sido a primeira pergunta que teria saído de seus lábios, talvez

depois de derrubar ao tipo com um murro. Hawk respirou fundo e se dispôs a responder,

mas a senhorita Hamilton não lhe deu a oportunidade.

— Sua excelência é a bondade personificada. Sua irmã pequena, lady Jacinda Knight,

é uma das estudantes que acompanhei a Paris.

— Ah — respondeu o homem, sorrindo alegremente ao Hawk. — Que amável.

Hawk franziu o cenho. Não recordava haver dito a Bel o nome de sua irmã.

— Bel, querida — continuou Alfred-, vai continuar dando aulas na academia da

senhora Hall o ano que vem?

Hawk ergueu a sobrancelha esquerda. “Dando aulas?”

Belinda evitou com cuidado seu olhar enquanto se movia com nervosismo pelo

aposento.

— Fá-lo-ei se for necessário, papai. Não me importa trabalhar, mas no ano que vem

com certeza voltamos para Kelmscot. Já tenho economizado quase todo o dinheiro.

— Oh! Perfeito, perfeito. Bem feito, filha! Não lhe parece uma garota esperta,

senhor... Digo excelência?

Hawk olhou a Belinda e lhe pareceu que a via pela primeira vez.

Lançou-lhe um olhar de advertência e de súplica, como se intuísse que Robert estava

seguindo mentalmente aquela absurda conversa e desentranhando aspectos que não lhe tinha

comentado.

— Levou você às garotas a Paris, excelência? — perguntou-lhe o pai de forma

hesitante.

— É claro que não, respondeu Belinda em nome de Hawk com um sorriso

recriminatório, e deu a seu pai um tapinha no braço. — Sua excelência é um homem muito

importante para levar a umas debutantes pelo continente.

Com uma risada nervosa que não soou absolutamente como a da estrela fria e

distante do mundo das cortesãs, Bel se afastou e começou a fazer a cama de armar de seu

pai com uns lençóis frescos, estendeu a nova colcha e afofou o caro travesseiro de penas de

ganso que lhe tinha comprado.

Hawk a observou com o coração quebrado. Teria sido fácil, muito fácil, ir ao

magistrado e conseguir que soltassem a seu pai do cárcere de devedores, mas sabia que não

o ia fazer.

A soma em questão era uma miséria para um homem rico como ele, mas aquele

cabeça de rabanete merecia o encarceramento como castigo pelo sofrimento de sua filha.

Além disso, se tirasse o Hamilton do cárcere, Belinda não poderia ficar mais tempo com ele

e, que demônios, ele a necessitava. Necessitava-a para resolver o mistério da morte de Lucy.

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Necessitava-a em sua casa, sentada em seu piano desafinado.

Quando retornou o carcereiro e disse que se acabou o tempo da visita, Belinda se

despediu de seu pai com um abraço e lhe prometeu que voltaria ao cabo de alguns dias.

Perguntou-lhe se necessitava algo, Hamilton disse que adoraria que lhe levasse mais papel e

tinta. Depois se voltou para o Hawk com um olhar ingênuo.

— Consola-me muito saber que minha filha tem um amigo fiel no largo mundo que

se estende atrás destas barras. Excelência, eu estou em dívida com você. — O homem

pronunciou aquelas simples palavras de agradecimento de uma forma tão desarmante que

Hawk assentiu com a cabeça e estreitou a mão que lhe oferecia.

Depois de separar-se de seu pai, Belinda lançou a Hawk um olhar de profunda

gratidão ao passar junto a ele a caminho da porta. Aquele olhar fez que tudo adquirisse

sentido. Suspirando irritado ante sua própria indulgência, o duque se voltou e saiu da cela

atrás dela. Seu lacaio, que agora tinha as mãos vazias, colocou-se ao final do trio e juntos

seguiram ao carcereiro pelo caminho que tinham percorrido antes.

Agora que conhecia o Hamilton, compreendia o motivo pelo qual Belinda tinha

tomado umas medidas tão drásticas para que pudesse estar na zona superior do cárcere, que

era mais limpa, quente e salubre. O ancião cavalheiro não teria sobrevivido nas lotadas e

violentas celas coletivas.

Apesar de tudo, não sabia o que ia dizer lhe a ela quando estivessem a sós. Uma

professora de uma academia para senhoritas? O único sentido que lhe via é que tivesse dado

aulas na academia da senhora Hall, esperando que seu jovem soldado voltasse da guerra

para casar-se com ela, e ao final tivesse renunciado a ambas as coisas e se decidisse por uma

carreira mais lucrativa para salvar seu pai e também a si mesma. Nesse preciso instante nem

sequer queria pensar na relação da jovem com Jacinda.

De repente ouviu sons de briga e gritos furiosos ao longe. Ao dobrar uma esquina

para continuar o seguinte corredor escuro e ressonante, toparam com uma cena brutal. O

administrador que Hawk tinha visto abaixo, um homem grande como um urso com um

enorme chaveiro que lhe pendia da cintura, tinha arrojado um detento jovem e desafiante

contra a parede. Aquele animal estava lhe dando uma severa surra com sua clava.

Hawk esticou a mão e deteve Belinda. Sabia que o administrador só estava fazendo

seu duro e perigoso trabalho, mas certamente não queria que ela o visse.

— Alto querida. — Rapidamente deu uma olhada ao lugar. — Há outra saída? —

perguntou, voltando-se para o guarda, mas o homem já tinha posto-se a correr para ajudar

seu superior.

Então Hawk observou Belinda.

Permanecia em um estado de intranquilidade, contemplando a violenta cena com o

rosto pálido e inexpressivo. Estava tão lívida e silenciosa no meio do escuro corredor como

um fantasma ou um anjo que revoasse por ali, com ar triste embora distante. Algumas

mechas loiras ondeavam com a corrente de ar procedente do final do corredor.

Hawk apertou os dentes, decidido a tirá-la imediatamente dali. Teria que achar outra

saída. Estendeu o braço e lhe pegou a mão.

— Venha querida — murmurou, mas ela não se moveu.

— Não penso fugir dele — disse Bel, e sua voz tinha a suavidade de uma pétala de

rosa ao lado dos gritos do detento.

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Pegou a mão dele como uma menina, e fazendo caso omisso de seu protesto, seguiu

avançando.

Na guerra de Bel não havia fogo de canhões nem disparos de bala. Os exércitos que

combatiam nesse momento se achavam em seu interior, lutando como se fossem rasgar lhe

o coração, mas ela se negou a fugir. Sabia que devia manter-se firme e não acovardar-se à

sombra de seu poderoso protetor, mas passar e olhar àquele monstro nos olhos, e lhe fazer

ver que já não lhe tinha medo. Talvez ele nem sequer o entendesse, mas ela saberia que o

tinha feito, e com isso bastava.

“Não vou correr. Não vou correr. Não vou correr”, pensou uma e outra vez a cada

passo, em que pese que o tinido das chaves do administrador penetrasse em sua consciência

como um cristal quebrado. Era o som que se filtrava em seus pesadelos.

Tinha medo — muito medo— e tremia, e o temor fazia que sentisse frio até nas

pontas dos dedos. Mas tinha conseguido ficar de novo em pé depois que ele a tinha

destruído, e agora tinha um aliado que a tinha presa pela mão.

— Belinda...

— Não se passa nada — se ouviu dizer ela ao longe, por cima do sangue que se

amontoava com força em seus ouvidos. O pobre Robert a seguiu sem entender nada.

Ou o desgraçado detento tinha deixado de bater-se ou o administrador percebeu que

eles se aproximavam lentamente. O caso é que aquele homem se endireitou movendo-se

pesadamente, enquanto segurava na mão a clava dura, brutal, manchada de sangue.

E então se virou e olhou para Bel diretamente.

Ela sentiu que o pânico lhe oprimia a garganta. Tudo se movia com enorme lentidão,

como na noite do beco. O tempo avançava devagar. Bel queria pôr-se a correr, fugir como

um cavalo que se dirige ao estábulo em plena tormenta. Mas se manteve firme apesar das

náuseas, estremecimentos e frio gelado. Tremia-lhe o corpo do ódio que albergava, e

apertava tanto as mandíbulas que estas lhe doíam.

Um leve e bestial sorriso apareceu nos lábios do administrador, e ela percebeu que

aquele homem esperava que se voltasse atrás ou que revelasse algum indício do que lhe

tinha feito. Mas não fez nenhuma das duas coisas. Tinha um nó no estômago, mas seu rosto

se manteve impassível. Conseguiu armar-se de coragem e afastar o temor com o que tinha

aprendido a viver. Robert lhe dizia que tinha muita coragem. Ela não esqueceria aquele

comentário.

Caminhou para diante.

Observou que aquilo surpreendia ao administrador, que dirigiu seu turvo olhar a

Robert sem deixar de piscar.

De repente Bel se perguntou se acabava de pôr em perigo a seu guardião, mas quando

olhou para Robert viu como lançava àquele homem um altivo olhar de aversão. Sorriu

fracamente com fria satisfação enquanto o administrador percebia que agora ela tinha um

amigo poderoso. Um protetor.

Procedia de uma linhagem de guerreiros e seu sobrenome era Knight, “cavalheiro”.

Quem melhor que ele?

O administrador a olhou de novo com receio compreendendo, segundo ela supôs, que

estavam em empatados: seu crime seria silenciado em troca da segurança do pai de Bel. Ele

ignorava que não tinha por que preocupar-se. A ideia de que Robert ou qualquer de seus

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admiradores descobrissem que tinha perdido a virgindade com aquele ogro fazia que a

embargasse uma terrível vergonha. Os vestidos elegantes e os ares altivos os tinham feito

acreditar que ela era uma peça cobiçada. Como os tinha enganado: ela, a fria cortesã, mais

suja e inferior que uma puta. Inclusive para o Robert não era mais que isca.

Sem trocar uma palavra, ela, seu protetor e o lacaio passaram junto ao detento

desabado, o administrador e o guarda.

Bel sabia que tinha ganhado aquele combate, mas o administrador puxou o último

golpe em forma de um risinho malicioso que a seguiu pelo corredor. Fez tilintar as chaves

com alegre despreocupação, e aquele som esteve a ponto de fazer com que Bel se

desmoronasse.

Soltou a mão do Robert e seguiu avançando mecanicamente até que ao fim se achou

a poucos passos da entrada do cárcere. Custando-lhe respirar, conseguiu sair pela porta.

Quando ergueu a vista, aturdida, o céu lhe dava voltas, e uns círculos negros brotaram em

meio de seu campo de visão. Sentiu que as mãos do Robert a seguravam. Pegou-se a seu

antebraço e se aferrou a ele, fazendo um esforço para não desmaiar. Ele deslizou seu braço

ao redor da cintura de Bel como apoio.

— Belinda, parece realmente doente. Encontra-se bem? — Seu tom refinado de

barítono parecia chegar a ela através de um grosso muro de vidro.

Uma onda de dor percorreu todo seu ser. Deus, como desejava que ele chegasse até

ela — que rompesse a caixa de cristal em que se encerrou— e a estreitasse contra ele, com

seu peito nu contra o dela, sem nada que ocultar. Mas isso não ocorreria nunca. Não haveria

amor. Não para ela.

— Estou... Bem — conseguiu dizer, afastando-se dele enquanto se recuperava

lentamente. — Obrigada.

Ouviu como Robert murmurava uma ordem ao lacaio para que fosse buscar a

carruagem. Ele passeou pela calçada enquanto Bel, em um silêncio glacial, esperava que

chegasse a carruagem.

— Belinda, eu não quero que volte para este inferno — disse, lhe lançando um feroz

olhar autoritário.

Ela abaixou lentamente a cabeça.

— Acredita que eu quero voltar?

— Então não volte.

Não tinha forças para discutir com ele nesse momento. É claro que tinha que voltar.

Seu pai estava ali. Por um momento esteve a ponto de perguntar a Robert diretamente se lhe

emprestava o dinheiro para soltá-lo, mas ultimamente seu orgulho se viu ferido várias vezes.

Não era uma menina que pedisse esmola, e a opinião que ele tinha dela já era bastante ruim

sem ter que acrescentar a mendicância à prostituição.

Robert se aproximou e se deteve escassos centímetros dela, com as mãos nos bolsos.

Ela se armou de toda sua coragem, ergueu o queixo e o olhou nos olhos com serenidade. Ele

a observou atentamente. Os olhos escuros e penetrantes de Hawk pareciam chegar

diretamente até o fundo de sua alma.

Bel não podia pronunciar palavra nem afastar a vista.

Ele sacudiu a cabeça com ar irritado enquanto a olhava, mas sua voz soou suave.

— Deveria ter deixado que a levasse por um caminho diferente. Não tinha por que

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ver tanta brutalidade, Belinda.

Ela esteve a ponto de pôr-se a rir a gargalhadas. O grande ingênuo. Se ele soubesse.

A bondade e a nobreza de Robert fizeram que as lágrimas aflorassem a seus olhos.

— Meu homem virtuoso — sussurrou.

— Por que me chama assim? Não tem graça. — Hawk franziu o cenho e se afastou

dela com um ar tão afetado e pomposo que Bel se atreveu a sorrir enquanto a elegante

carruagem se detinha ante eles.

Subiram à carruagem e Bel se sentou junto a ele e apoiou a cabeça em seu largo

ombro. Sabia que estava aborrecido com ela, mas, em lugar de protestar, moveu-se para que

ela estivesse mais cômoda e a rodeou com o braço. Bel fechou os olhos, esgotada depois de

sua íntima vitória. Robert cheirava deliciosamente e manteve seu braço em torno dela com

força e firmeza, enquanto seu ombro duro e musculoso fazia às vezes de travesseiro para sua

cabeça.

“Ajudou-me — pensou ela. — Não sabe, mas me deu a força necessária para

consegui-lo.”

— Na próxima vez deveria me escutar — resmungou Robert, tratando de parecer

zangado.

— Fá-lo-ei, querido. O que você diga — sussurrou ela com um vislumbre de sorriso,

dando graças a Deus por ter a aquele homem a seu lado. “Deixa que fique com você.”

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NOVE

O caprichoso clima inglês se tornou inesperadamente frio para aquela época do ano, e

essa noite às dez e meia desencadeou um temporal quando Hawk saía irado da Casa dos

Lordes, faminto, cansado e mal-humorado. Para cúmulo de tudo, doía-lhe terrivelmente a

cabeça depois de ter discutido durante a hora do jantar com Eldon e Sidmouth e seus

comparsas extremistas torie, e suas sanguinárias opiniões o tinham indignado tanto que lhe

tinham tirado a vontade de comer.

Durante todo o tempo pensamentos confusos sobre Belinda tinham rondando sua

cabeça, e lhe tinham inquietado e desconcertado, misturando-se com sua ansiosa libido até

criarem um grande embrulho em seu cérebro.

Ao voltar para casa por Westminster, olhou pela janela e viu como o vento e a chuva

sacudiam os plátanos enquanto sua cambaleante carruagem descia pelo passeio. As fracas

chamas de algumas lanternas de ferro forjado se apagaram, deixando buracos na iluminação

que eram tão escuros como sua mente confusa.

A história da Jacinda, Paris e a academia da senhora Hall... Era verdadeira ou falsa?

E podia permitir-se sequer preocupar-se com uma ou outra versão?

A ideia de que uma cortesã se dedicara no passado a formar o caráter de sua teimosa

irmã o horrorizava. Tinha que descobrir a verdade pelo bem de Jacinda, embora não tivesse

certeza de querer saber algo mais sobre a senhorita Hamilton do que já sabia.

Sabia Deus que tinha tentado manter uma distância prudente entre os dois para não

comprometer-se com ela, mas sentia que estava sendo irremediavelmente arrastado para sua

órbita como por efeito de um enorme ímã cósmico utilizado por mulheres como ela para

escravizarem homens ricos com títulos como ele. Maldita seja não era justo. Franzindo o

sobrecenho em direção à janela, enquanto a chuva forte era jogada contra o vidro, coçou as

têmporas palpitantes e repassou o que sabia sobre a senhorita Hamilton.

Havia preocupantes lacunas na informação de que dispunha. Por exemplo,

perguntava-se como exatamente ela se convertera em uma cortesã. Perguntá-lo seria mal

visto, de modo que supôs que nunca saberia, a menos que ela lhe desse essa informação, o

que parecia improvável. Diferente de todas as mulheres faladoras que conhecia, a senhorita

Hamilton era extremamente reservada com os aspectos relacionados à sua pessoa. Ela não

soltava nada e ele não fazia perguntas. Robert se perguntava indignado por que devia

interrogá-la sobre sua vida. Não havia nada entre eles à exceção de um acordo prático e

proveitoso para os dois.

Apesar de tudo, enquanto escutava o repicar da chuva sobre o teto da carruagem,

incomodava-o, não pela primeira vez, a ideia de lhe perguntar qual de seus conhecidos ou

companheiros do clube White’s tinha comprado sua inocência. Hertford? Ele era

suficientemente relaxado... Ou ela tinha entregado livremente para aquele soldado insensato

ante sua insossa promessa de matrimônio em uma data próxima? Meditou enquanto a

carruagem atravessava as portas de Knight House. “Não é teu assunto, Hawk. — Tanto faz a

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você, não se importe. Deixa-o estar”, disse-se.

Grunhindo de indignação e desejo contido, saiu fora e avançou chapinhando pelos

atoleiros que separavam sua carruagem da porta principal, de modo que quando chegou ao

iluminado vestíbulo da entrada, estava meio empapado. Mal tinha atravessado a porta

quando Belinda se dirigiu a ele pelo corredor, elegante e serena.

— Oh, olhe-se. Pobrezinho — disse.

“Deus, você está linda”, pensou ele, e se formou um nó na sua garganta. Estava

vestida com sóbria elegância, com um traje de seda marrom de Manila, levava uma

gargantilha de pérolas ao redor do pescoço e o cabelo dourado estava recolhido em um

coque. Deslizou para ele com os olhos escuros como safiras reluzindo sensualmente,

enquanto percorria o corpo do Robert com um olhar de avaliação e reparava em seu estado

de cansaço.

— Bem-vindo a casa, querido. — Tomou a pasta de pele de Hawk e estendeu ao

mordomo que acabava de fechar a porta. — Deixe-a no estúdio de sua excelência —

ordenou em tom sereno.

Walsh fez uma reverência.

— Sim, senhora — assentiu e obedeceu a seu mandato.

Hawk seguiu seu mordomo com o olhar, bastante surpreso ante o tom cortês que

tinha empregado com ela, e depois olhou Belinda com cautela, com a intuição de que trazia

algo entre mãos. Mas enquanto a observava lhe deu um salto o coração, e as perguntas que

lhe tinham ocorrido na carruagem se perderam.

Como podia a razão opor-se ao poder sensorial de sua presença: seu andar gracioso,

sua pele nacarada, seu perfume de gardênias, o brilho da luz do candelabro em seus lábios

úmidos? Que diabos, era a mulher mais misteriosa e sedutora que jamais tinha visto, e a

única coisa que podia fazer era reprimir a fascinação que sentia.

Bel lhe dedicou um sorriso tranquilizador, colocou-se detrás dele e amavelmente o

ajudou a tirar o casaco molhado.

— Deixe que o tire querido. Jantou?

— Morro de fome.

— Bem. Guardei-lhe o jantar quente. Venha. Virou-se e caminhou tranquilamente

pelo vestíbulo em direção à sala de jantar; seu vestido de seda emitia um fru-fru ao roçar

com suas longas pernas.

Bastante desconcertado pela cordialidade com que ela se ocupava das gestões e a

mudança que percebeu em toda a casa, Robert passou a mão pelo cabelo molhado e a

seguiu, muito faminto para pensar em excesso. Quando tomou assento à cabeceira da longa

mesa de mogno, a boca se enchia de água.

Belinda deu uma ordem a uma das donzelas, que fez uma reverência e saiu para

cumprir o encargo. Ela se moveu com ligeireza para o aparador, onde havia um balde de

gelo com uma garrafa de vinho branco, e lhe serviu uma taça, enquanto Hawk se perguntava

que diabo tinha ocorrido ali enquanto ele estava fora.

Que demônios ela tinha feito a seus criados? Nessa mesma manhã a consideravam

uma autêntica Jezabel; por que acatavam suas ordens tão obedientemente de noite?

Ao lhe aproximar a taça de vinho, Bel reparou em sua expressão confusa e deu um

sorriso irônico.

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— Convoquei uma pequena reunião com os criados que têm os postos mais

importantes enquanto você estava fora.

— E recorreu à bruxaria ou simplesmente os subornou, pode saber-se?

— Nenhuma das duas coisas. Simplesmente lhes recordei a honra de que gozam ao

servir em Knight House e que não lhes diz respeito julgar os atos de seu amo; e lhes disse...

Bom, esqueça-se do que lhes disse. Basta dizer que se deram conta de que não estou aqui

para flertar com... Sua Excelência — acrescentou com uma reverência formal. A seguir

deslizou para trás e se serviu de uma taça de vinho.

— Está-me advertindo também?

Sorrindo com doçura, Bel se dirigiu à mesa e se sentou tranquilamente na cadeira

situada à direita de Robert.

— Que tal a sessão?

— Desesperadora, grunhiu ele enquanto partia um pedaço de pão.

— O que aconteceu?

Belinda escutou em silêncio, com a face apoiada em uma mão, assentindo enquanto

ele relatava com certa impaciência sua discussão com Eldon e Sidmouth e se queixava de

sua maldita dor de cabeça. Entretanto, quando o mordomo trouxe o jantar, já tinha relaxado

e se aliviado de grande parte de sua frustração e estava preparado para jantar.

Quando a coberta prateada foi retirada de seu prato, descobriu uma de suas comidas

favoritas: chuletas de cordeiro a la braise com aspargos tenros melados com manteiga.

Belinda lhe serviu de vinho tinto para acompanhar a carne, e Robert se dedicou à comida.

Ela deu um gole de vinho enquanto contemplava a chama que ardia no alto da vela.

— Temos que fixar um dia para o jantar, Robert.

— Hum? — disse ele, devorando o cordeiro.

— Necessito que me dê uma lista de convidados. Quanto antes convidarmos esses

cavalheiros, melhor. Afinal, não vou estar aqui eternamente. — Dedicou-lhe um sorriso

velado e tomou um gole de vinho.

— De verdade espera fazer mudar de opinião esses velhos teimosos sobre os assuntos

de Estado, somente movendo suas bonitas pestanas?

— A você toca fazê-los mudar de opinião, Robert. Pelo menos eu posso fazer com

que o escutem. Terá que ser um jantar exclusivo para cavalheiros. Evidentemente, suas

esposas não virão enquanto eu seja a anfitriã. Pelo bem de sua reputação, não me ocorreria

convidar Harriette e suas amigas para que entretivessem os homens, ou sua casa ganharia

fama de bordel.

— De verdade é boa ideia?

— Confie em mim. Prepare-me uma lista de convidados. Eu me ocuparei do resto.

— Assusta-me — murmurou ele.

Bel riu entre dentes e lhe tocou o braço carinhosamente. Muito a contragosto, ele

sorriu.

De sobremesa havia bolo de framboesa e creme de amêndoa, para serem desfrutados

com um cálice de brandy. Ao final daquele magnífico jantar, era um homem novo. Esticou

os braços por cima da cabeça com satisfação e conteve um grande bocejo.

Belinda tomou sua mão afetuosamente.

— Venha, tenho uma surpresa para você.

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Ele a olhou intrigado.

— Que tipo de surpresa?

— Se o dissesse não seria uma surpresa, não acha Robert? Agora se comporte bem e

venha comigo.

Ele pegou seu brandy e se deixou levar pela mão à biblioteca.

Ali havia uma pequena luz crepitante que aplacava o insólito frio daquela noite.

Robert entrou sem pressa na habitação e olhou ao redor com curiosidade. “Outro presente?”,

perguntou-se. Seu humor tinha melhorado enormemente, mas a dor de cabeça persistia.

— Espero que não lhe incomode o fogo. Com este tempo tão deprimente, pensei

que...

— Está bem — resmungou ele.

— Sente-se em sua poltrona — sugeriu Bel, cruzando as mãos por detrás das costas.

Ele se deixou cair de boa vontade em sua grande poltrona de couro junto à chaminé e

permaneceu à espera.

— Jogue a cabeça para trás e feche os olhos. Robert obedeceu.

Ouviu como ela se movia pelo aposento e logo tudo ficou em silêncio. Um momento

depois brotaram do piano as primeiras notas, lentas e delicadas. Abriu os olhos e ficou

olhando-a fixamente enquanto tocava para ele. Era evidente que tinha afinado o Graf

enquanto ele estava fora.

Por um instante desejou estar zangado com ela por haver-se atrevido a intrometer-se

em sua vida, mas lhe foi impossível indignar-se ante a onda de felicidade que o inundou ao

reconhecer os primeiros compassos de “Voi Che Sapete”, a doce e formosa ária de

Cherubino nas Bodas de Fígaro.

“É uma peça que se toca nas academias para senhoritas”, pensou ele, sorrindo para si

mesmo enquanto observava como ela lia a partitura completamente absorta. Bel não cantou

para ele, mas Robert conhecia a letra:

“Vós que sabeis

o que é o amor, mulheres, digam-me

se eu o tenho no coração. O que eu sinto, dir-lhes-ei,

é para mim novo, compreendê-lo não sei.

Sinto um afeto

cheio de desejo, que ora é prazer, ora é martírio.

Me gelo, e depois sinto a alma inflamar, e em um momento me volto a gelar. Procuro

um bem fora de mim,

não sei quem o tem, não sei o que é. Suspiro e gemo sem querer, palpito e tremo sem

saber,

não encontro paz

nem de noite nem de dia,

e entretanto eu gosto de adoecer assim. Vocês que sabem o que é o amor, mulheres,

me digam

se eu o tenho no coração.”

Pousou o cotovelo no braço da poltrona e, apoiando o queixo em sua mão fechada,

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olhou sua anfitriã e desfrutou de sua interpretação, absolutamente extasiado, mais pela

bondade de suas intenções que por sua destreza.

Parecia-lhe um formoso presente. Fechou os olhos e jogou a cabeça para trás como

lhe tinha indicado e relaxou.

A vida era agradável.

A interpretação de Bel acabou, mas ele seguiu com os olhos fechados, enfim

completamente relaxado. A biblioteca era um vazio enorme, negro e reverberante, situado

detrás dele, que permanecia acomodado na grande poltrona de espaldar, junto ao fogo, com

o cálice de brandy em uma mão e o pé de cristal balançando-se entre seus dedos.

As chamas dançarinas projetavam uma luz alaranjada sobre seu rosto, imerso na

sombra. Tinha o colete desabotoado. Passou a mão pelo cabelo tentando aliviar a dor de

cabeça que o atormentava e o cabelo lhe tinha ficado ligeiramente revolto. As pálpebras lhe

pesavam muito para levantá-las quando ouviu um sedoso sussurro e percebeu a fragrância

da Belinda ao aproximar-se dele.

— Que tal a dor de cabeça? — perguntou ela, e sua voz suave e íntima soou no

enorme vazio do aposento.

— Continua fazendo das suas — murmurou Robert, sem mover-se nem abrir os

olhos. — A verdade é que toca bastante bem, senhorita Hamilton.

— Não tão bem como você, pelo que me disseram.

— Perdi a prática.

— Por que deixou de tocar?

— Não tenho tempo.

O duque ouviu que ela suspirava suavemente.

— Nossas almas necessitam de música Robert assim como nossos corpos necessitam

de contato.

Ele observou como ela tirava delicadamente de sua mão o cálice de brandy, mas não

reagiu. Bel lhe deu um tapinha nas pernas estiradas para que as separasse, situou-se entre

elas e se inclinou para lhe desatar o lenço. Ele abriu os olhos preguiçosamente e a olhou.

Ocorreu-lhe protestar.

— Pode-se saber o que está fazendo? — Perguntou em um tom de afável curiosidade.

— Fazendo com que se sinta mais confortável.

— Ah. — Fechou de novo os olhos, desfrutando da singular sensação de seus

delicados dedos ao afrouxar o meticuloso nó do lenço, e um instante depois Bel puxou-o e o

tirou deslizando-o.

Acariciou-lhe ligeiramente o pescoço e lhe desabotoou a parte de cima de sua camisa

branca engomada.

— Melhor? — murmurou enquanto lhe passava lentamente a mão pelo peito.

Ele emitiu um som a meio caminho entre um grunhido de assentimento e um gemido

de desejo. O coração lhe palpitava e mantinha os olhos fechados.

Pousando uma mão em seu ombro, Bel rodeou a poltrona despreocupadamente para

colocar-se atrás de Robert. Ele estava plenamente consciente de sua presença. Todo seu

corpo estremeceu quando ela deslizou os dedos por seu cabelo.

— Pode-se saber o que está fazendo agora, senhorita Hamilton? — perguntou com

rigidez.

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— Lhe aliviando a dor de cabeça, querido. Relaxe.

Confuso e ansioso, ele tratou de obedecer enquanto ela lhe acariciava o cabelo muito

suavemente.

Acaso ela não sabia como estava tentando-o?

— Onde dói? — murmurou ela. — Aqui?

— Sim — assentiu ele, enquanto ela pressionava com seus polegares em dois pontos

palpitantes situados na base do crânio. Seus polegares traçaram círculos com uma suave

insistência sobre os músculos duros do pescoço até que começaram a relaxar pouco a pouco.

Os instantes passaram.

— Belinda — disse ele com cautela, adotando um tom cortês por medo de que uma

palavra equivocada fizesse que ela deixasse de lhe proporcionar aquele glorioso prazer-,

essa historia sobre Paris e a academia de senhoritas em que dava aulas... Era certa?

As mãos dela interromperam a massagem.

— Robert, querido. — Falou com um doce tom de admoestação. — O que lhe faz

pensar que nosso acordo lhe dá direito a conhecer os detalhes de meu passado?

— No que diz respeito a minha irmã, seu passado é de minha incumbência.

— Bom, não se preocupe, não corrompi sua irmã. Lady Jacinda não corre nenhum

perigo. Embora, em minha opinião, ela é uma garota impetuosa e me aventuro a pensar que

isto se deve à falta de conselho materno.

— Tenho feito o melhor que pude — disse ele ficando na defensiva.

Ela riu docemente e lhe passou os dedos pelo cabelo.

— Estou segura de que o fez querido, em todos os aspectos. Mas você é um homem

— acrescentou em um eloquente sussurro.

— Está evitando minha pergunta.

— Muito bem, se tanto lhe interessa, durante um tempo dei aulas de francês, música,

história e comportamento na academia da senhora Hall. Foi meu último posto respeitável

antes de... Isto.

Hawk fechou os olhos e coçou uma sobrancelha, cheio de indignação. Uma coisa era

uma cortesã esfregando suas costas e outra bem distinta era que o estivesse fazendo uma

condenada professora de uma academia para senhoritas.

— Dolph arquitetou para que me despedissem — continuou Bel. — Durante um mês

veio para me ver todos os dias, e ao final convenceu a diretora de que ele era meu

verdadeiro amor... De que eu não era nem respeitável nem casta, e de que exercia uma má

influência sobre as garotas. A senhora Hall chegou à conclusão de que eu era uma ameaça

para as estudantes, que minha “conduta” poria em perigo o bem-estar moral das garotas, e

me despediu.

— E não lhe disse que Dolph mentia?

— Certamente, mas já sabe quão dura pode chegar a ser a senhora Hall, se tiver

tratado alguma vez com ela. Preocupava-lhe o prestígio da academia, mas eu não queria que

a reputação das garotas se visse manchada por nada antes que fizessem sua estreia em

sociedade — acrescentou. — Deixei o trabalho pelo bem delas sem me opor muito.

— E o que fez então?

— Fui ver Harriette e logo apareceu você.

— Ah — disse ele, percebendo uma nota sutil em sua voz que lhe advertiu que tinha

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pisado em terreno pantanoso.

— E agora, excelência, fará o favor de manter-se calado e desfrutar da massagem?

Ou quer que pare?

Ele inclinou a cabeça para trás e lhe sorriu arrependido.

— Não direi uma palavra.

Ela respondeu com um sorriso sereno e lhe acariciou a face, que estava áspera pela

barba incipiente daquele dia.

— Você é um cafajeste atraente, Hawkscliffe. Ao menos quando não tem o

sobrecenho franzido. Jogue a cabeça para trás.

Robert obedeceu. Bel lhe acariciou, massageou e esfregou o pescoço e as costas em

silêncio. Para surpresa sua, seu remédio surtiu efeito.

— Gosta?

— Mmm.

Pouco a pouco Hawk se deixou levar pelo prazer de suas carícias. A tensão começou

a diminuir lentamente.

— Sim, assim está melhor, meu amor — sussurrou ela, deslizando lentamente para

cima suas cálidas e firmes mãos, em ambos os lados do pescoço para acariciar a mandíbula

tensa.

Robert foi se relaxando, cativado por aquela sensação. Seu corpo estava em seu

poder, como se fosse argila em suas mãos. Atrás das pálpebras imaginou o que desejava lhe

fazer. Fille de joie. Garota de prazer. Enquanto isso, Bel lhe acariciava as têmporas com

cuidado, e logo as pontas de seus dedos pousaram levemente sobre sua fronte, pressionando

nas pequenas cavidades situadas sob a curva de suas sobrancelhas, apertando em certos

pontos que palpitavam fracamente.

Bel se deteve o tempo suficiente para que uma pontada de desilusão percorresse o

corpo de Robert e o fizesse pensar que já tinha acabado, mas estava equivocado. Depois de

lhe roçar suavemente os lados do rosto e pescoço com os dedos, desabotoou-lhe vários

botões da camisa. Deslizou as mãos por dentro, acariciando e explorando seu tórax nu.

Hawk ficou em tensão cheio de desejo, enquanto o coração lhe pulsava com força.

Não se atrevia a abrir os olhos por medo de que tudo fosse um sonho do qual não queria

despertar; notou como lhe desabotoava de todo a camisa, e suas mãos sedosas a abriram lhe

roçando a ambos os lados. O ar fresco lhe acariciou a pele, e o calor do fogo tingiu seu

ventre e lhe esquentou a virilha.

Robert sentiu seu suave rosto junto ao dele, balançando-se contra sua face ao mesmo

tempo em que suas mãos escorregavam por seu peito para o ventre. Uma força angustiosa e

ofegante se propagou por sua pele sob o suave toque dela. A expectativa percorreu todo seu

ser como o fogo, um desejo que não tinha experimentado com nenhuma outra amante no

passado. “Toque-me. Oh, Deus, por favor, me toque, me ajude.”

Respirou profundamente. Aferrou-se aos braços da poltrona, à espera do que ela ia

fazer. Sentiu que ela o beijava na orelha, lhe acariciando suavemente o lóbulo com a língua,

e caiu completamente sob seu feitiço. Quando ela abrangeu com a mão a protuberância de

suas calças negras e o acariciou, Hawk deixou escapar um leve gemido de profunda gratidão

e relaxou as coxas.

Talvez ela estivesse esperando que protestasse, mas lhe era impossível, estando como

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estava completamente a sua mercê.

A respiração de Robert se acelerou. Bel desabotoou-lhe as calças e deslizou sua mão

adentro, e então ele já estava preparado e palpitava.

— Oh, Robert — sussurrou Bel em sinal de aprovação, ao mesmo tempo em que

pegava seu membro suave e rígido e o acariciava de cima abaixo uma e outra vez.

Ele gemeu e abriu as coxas, com fome de algo mais. Ela o concedeu, liberou-o

totalmente das calças e o acariciou. A princípio com suavidade e logo com mais firmeza.

Hawk curvou as mãos sobre os braços da poltrona e se aferrou a eles até que os dedos se

puseram brancos.

Podia sentir o olhar dela fixo sobre seu rosto, como se estudasse sua reação à menor

carícia... Aprendendo os requisitos exatos do prazer como uma verdadeira profissional. Com

a ponta da língua percorreu a curva de sua orelha, fazendo que se tornasse louco.

Ele virou a cabeça, procurou seus lábios e a beijou com uma trêmula cobiça enquanto

ela não parava de acariciá-lo. De repente Bel interrompeu suas carícias. Deixou de beijá-lo e

ele abriu os olhos, confuso e ardente. Olhou-a com consternação, cheio de assombro sob o

cabelo revolto. Ela não podia deixá-lo assim. Não podia deixá-lo assim de forma alguma.

Tinha-lhe pago.

Entretanto, comprovou com alívio que ela não se ia, só estava se movendo para

colocar-se em frente a ele. Ele a olhou fixamente, necessitado, surpreso e ansioso,

consciente de que aquilo era o que tinha sonhado. Belinda lhe sustentou o olhar, com seu

formoso rosto sedutor e sereno e seus olhos azuis como uma orquídea escura, brilhantes de

desejo.

Apoiando as mãos nas longas coxas do Robert, ajoelhou-se entre suas pernas. Ele se

manteve a espera, com a respiração entrecortada, extasiado. Nunca tinha estado tão excitado

em sua vida. Como uma formosa devota pagã, Bel deslizou as mãos pelo amplo peito de

Hawk beijando-o, à medida que avançava. Removeu com os dedos o encaracolado pelo de

seu peito e lhe roçou os mamilos com a língua enquanto, mais abaixo, deslizava a mão e

acariciava seu pênis rígido.

Hawk não podia acreditar na sua sorte. Ele não o tinha pedido nem tinha pagado por

isso, ela não tinha por que fazê-lo... O que só podia significar que nesse preciso instante não

era dinheiro o que ela desejava, mas sim, desejava a ele.

Quando ela desceu com seus beijos para o ventre, seu assombro se desvaneceu ante a

onda de êxtase que invadiu seu ser. Bel riscou um círculo de forma suave e provocadora ao

redor de seu umbigo, e logo separou os lábios molhados e recebeu com lentidão e indecisão

o topo de sua imponente ereção em sua boca úmida. Ele apoiou a cabeça no espaldar da

poltrona com um gemido de deleite e tocou seu cabelo sedoso. Bel o chupou amorosamente,

esfregando-o vigorosamente em todo momento com suas mãos cálidas e firmes, e

acariciando-o com doçura por toda parte.

Soltando um profundo gemido, Robert deslizou as mãos pelo cabelo da Belinda,

inclinou a cabeça para diante e a olhou, enquanto lhe roçava a face com os dedos, cheio de

um terno e turbulento desejo. Não conseguia entender por que e como tinha renunciado a

aquilo durante tanto tempo.

Depois de vários minutos de absoluto êxtase, Bel olhou para cima com um malicioso

sorriso de mulher mundana, o ideal dos sonhos de todo escolar, deslizando a ponta da língua

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por seu membro. Seu olhar, sensual e cúmplice, cruzou com o de Robert. A seguir abaixou

de novo a cabeça, e deu voltas e voltas com a língua ao redor de sua glande,

extraordinariamente sensível.

Embora seus movimentos e seus olhos grandes e transbordantes de afeto ao levantar

a pestanas possuíssem certa candura ingênua, aquela pequena revelação de sua

inexperiência não diminuiu o prazer, mas sim o incrementou. Uma excessiva experiência

por sua parte talvez tivesse sido irritante. Ele a achava irresistível tal e como era.

Robert não soube quanto tempo passou até que ela se afastou e o olhou nos olhos de

forma erótica e sedutora; sustentou-lhe o olhar com um feroz desejo animal. Ansiava lhe

levantar a saia e deixar que se montasse sobre ele na poltrona. Mas ela tinha outros planos.

Permaneceu de joelhos junto aos quadris de Hawk, arranhando-o com as unhas. De repente

ele a pegou pela nuca e, puxando-a para cima, beijou-a apaixonadamente.

Ela gemeu de prazer sob seu ardente beijo. Deus, ele tinha querido beijá-la assim

desde o primeiro dia que a tinha visto em casa de Harriette. Queria que os dois se deixassem

levar, até que o último cristal de gelo que cobria a altiva fachada de Bel se derretesse, e

queria amá-la fogosamente até que conseguisse liberar o anjo que residia em seu interior.

Finalmente Belinda o deteve, empurrando-o contra o espaldar da poltrona. Ele a

puxou pela mão, entrelaçando seus dedos com os seus.

— Me deixe lhe fazer amor — sussurrou.

Ela sacudiu a cabeça e esboçou um sorriso leve, serena e misteriosa.

— Desfrute.

Hawk não teve forças para opor-se quando ela voltou a ajoelhar-se. Bel abriu sua

doce boca e introduziu seu membro até o fundo de tal forma que por pouco se afoga com

seu tamanho, e a seguir o extraiu e o chupou apaixonadamente com renovada e inequívoca

determinação. Ele fechou os olhos e se abandonou.

Robert estava tão necessitado que não demorou muito em culminar. Enquanto seus

gemidos de êxtase inundavam o aposento, a jovem e formosa cortesã se afastou e o levou ao

orgasmo com suas mãos sedosas e quentes, uma explosão liberadora que brotou a jorros

sobre seu ventre e seu peito.

— Oh, Deus, Belinda — exclamou ao fim com voz entrecortada, recostando-se na

poltrona, completamente esgotado.

Apenas se deu conta de que tinham passado uns instantes e que ela se pôs de pé, mas

então viu que Bel pegava o lenço de musselina e o desdobrava sobre seu ventre com um

sorriso sensual e cúmplice.

— Encontra-se melhor, Hawkscliffe?

Ele se pôs a rir fatigosamente enquanto ela bebia o resto de brandy. Bel retirou o

lenço empapado com ar indiferente e o lançou despreocupadamente ao fogo.

Hawk se limitou a contemplá-la com uma admiração cheia de assombro,

excessivamente satisfeito para mover um músculo.

“Grande mulher.”

Bel retornou junto a ele em silêncio e lhe abotoou de novo as calças, e depois se

recreou lhe acariciando distraidamente o peito e os ombros com a ponta dos dedos. Suas

pestanas ocultavam seu olhar.

— Vai dormir aqui? Trago-lhe uma manta?

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Ele a pegou pelo pulso com delicadeza e puxou-a para que se sentasse em seu regaço.

Deslizou o outro braço ao redor de sua cintura para que não pudesse escapar. Afastou-lhe

atrás da orelha o cabelo que tinha despenteado e reparou em seu olhar velado de incerteza.

— Por que o fez? — perguntou-lhe em voz baixa.

— Porque o necessitava. Não gostou? — disse ela, ficando imediatamente na

defensiva.

— Oh, claro que sim — declarou ele com um sorriso rouco. — Incomodou-a?

— Não diga tolices. Esteve pondo em dúvida meus dotes como cortesã desde a noite

em que nos conhecemos, e pensei que devia pô-lo em seu lugar — disse ela em tom

arrogante, com os braços em tensão.

Ele riu suavemente e lhe deu um beijo doce na face.

— Pois ganhou um adepto, senhorita Hamilton. Pode me pôr em meu lugar sempre

que quiser.

Ela abaixou as pálpebras, sorrindo. Permaneceram desse modo durante um longo

tempo: ela, rígida e receosa, e ele, lhe acariciando a face e a curva do pescoço com o nariz,

tratando de fazer com que se relaxasse. Tinha um toque quente e maravilhoso.

— Fiz isso bem, Robert? — perguntou Bel quase com acanhamento ao cabo de um

momento. — Pode me dizer a verdade.

Ele se pôs a rir ante o absurdo da pergunta, mas ficou imóvel quando ela

acrescentou:

— Porque eu... Nunca...

Hawk a olhou surpreso.

— Não gostou — disse ela, ficando rígida ao ver sua expressão.

— Sim, esteve magnífica, meu amor. Venha aqui — sussurrou ele, tomando seu rosto

entre suas mãos com ternura. Sossegou suas preocupações com um beijo suave que se

tornou cada vez mais profundo. Pouco a pouco Bel deixou que separasse seus lábios e

saboreasse sua língua. Que Deus o perdoasse, mas acreditava. Entretanto, por que tinha

decidido conceder aquele privilegio a ele?

Um tremor lhe percorreu o corpo quando a beijou. Nesse momento, enquanto

acariciava com sua boca os brandos e acetinados lábios de Bel, ela era todo seu mundo,

reteve o alento de sua cortesã nos pulmões, recebeu seu leve suspiro com a língua, e se

sumiu em uma obsessiva adoração, desfrutando daquela boca que o consumia.

Deu-lhe um beijo delicioso e profundo com o qual lhe expressava todas as coisas que

não podia dizer. Ela começou a abrandar-se entre seus braços, lhe devolvendo o beijo de

forma mais premente e deslizando os dedos entre seu cabelo. Robert sentiu que seu desejo

florescia como um casulo escuro de rosa que se abre para receber o calor pausado e fastuoso

do sol.

Baixou a mão pelo pescoço de Bel, ansioso por beijá-la naquele lugar, mas incapaz

de separar-se de seus suaves lábios. Deleitando-se em sua boca com tenra insistência,

acariciou seu cabelo claro e pensou: “meu Deus, o que me está fazendo, moça?”.

Uns minutos mais tarde ela pôs fim ao beijo e respirou fundo. Quando se afastou e

olhou fixamente para Robert, seus olhos de tom azul violáceo tinham uma expressão

vulnerável e angustiada.

Ele percorreu com os dedos a curva de sua face.

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— Dorme comigo. Deixe-me que lhe devolva o favor...

— Não. Boa noite, Robert, eu tenho que ir. — Retorceu-se entre seus braços, mas ele

a estreitou com mais força, sorrindo fatuamente ante sua morna resistência.

— Fique, amor. Dorme entre meus braços. — Rodeou seu rosto com as mãos e se

inclinou para beijá-la outra vez, mas ela escapou e saiu rapidamente da biblioteca no meio

do sussurro da seda.

Hawk franziu o sobrecenho quando a porta se fechou. Perguntava-se se devia ir atrás

dela, mas decidiu que não o faria. Fossem quais fossem seus motivos, Belinda não queria

que ele a tocasse nesse preciso instante, e Robert se negou a cometer um engano. Ela sabia

como manter um homem a distância melhor que qualquer das mulheres que tinha

conhecido. Como podia um cavalheiro escalar seus muros, assaltar sua cidadela, conquistar

a torre de marfim de seu coração? Pensou, sentindo-se só agora que ela tinha partido. Seu

olhar de preocupação começou a vagar pelo perímetro da biblioteca e pousou no piano

afinado, e caiu na conta de que Bel possuía outros sentidos que ele podia deleitar.

“Nossas almas necessitam música, assim como nossos corpos necessitam contato.”

Sorrindo com tristeza, Robert pensou: “Que cortesã tão sábia”.

Fazendo um grande esforço, levantou-se da poltrona. Ao dirigir-se para o piano

estralando os dedos, a camisa e o colete deixaram seu peito descoberto.

Sentindo uma pontada de nostalgia pela parte de si mesmo que tinha perdido, tocou

uma tecla com ar vacilante, e sentiu que aquela nota solitária ressoava no poço de sua alma.

Se Bel não estava disposta a aceitar suas carícias, oferecer-lhe-ia música.

As teclas de marfim tinham um tato suave como o cetim sob as pontas de seus dedos.

Ficou quieto com os olhos fechados e resgatou de sua memória a queridíssima peça, pois

ainda se lembrava de como dar rédea solta às suas emoções por meio das mãos.

Emocionada, reprimindo as lágrimas de confusão, Bel vestiu seu robe e se dirigiu

para seu toucador de madeira acetinada.

“Meu Deus, que beijo.”

Tremeu-lhe a mão ao verter água do vaso na bacia. Deixou o vaso a um lado e se

inclinou para salpicar o rosto antes de ir à cama. Esfregou-se com certa brutalidade,

enquanto por dentro se debatia com o cego desespero de quem luta contra um inimigo

invisível.

Não podia acreditar no que tinha feito. Tinha feito uma felação ao duque de

Hawkscliffe como uma autêntica e decidida prostituta, e ele estava tão... Atraente. Tão

atraente em seu abandono, tão atraente na culminação, com a bruma luminosa de satisfação

que apareceu depois em seus olhos escuros. Nem sequer estava segura de quais tinham sido

seus motivos, mas parecia como se houvesse sentido a necessidade de exibir seu poder

sobre ele, de lhe mostrar que, ao julgá-la como uma prostituta, não se tinha dado conta de

que ela sabia exatamente como derrubar sua fachada de superioridade moral.

Havia sentido a necessidade de lhe oferecer uma amostra do que podia chegar a fazer

por ele, de forma que talvez deixasse de vê-la como um chamariz e a contemplasse como

um ser humano, ou pelo menos como uma mulher digna de seu papel de autêntica amante. E

havia sentido a necessidade de lhe demonstrar que não estava tão por cima dela como

gostava de fazer ver. De modo que quase tinha seduzido a seu protetor. Por que devia ter

medo? Sua condição de amante consentida e seleta provavelmente tinha ficado consolidada.

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Ia ser rica. Tinha gostado muito dela, e possivelmente quereria que seguisse sendo sua

querida inclusive depois que tivesse acabado com Dolph. Mas ele não ia respeitá-la agora.

Não depois daquilo.

Nem sequer ela se respeitava a si mesma, e a essas alturas devia haver-se convertido

em uma verdadeira prostituta porque, por alguma razão, não se arrependia. O contato dele

sob suas mãos, sua força, seu ardor e sua suavidade aveludada. Seu sabor. Sua reação ante

os beijos dela, ante cada carícia...

Bel se tinha proposto conquistá-lo e com isso tão só tinha conseguido descobrir a

terrível solidão de seu próprio coração, refletida na vulnerável necessidade dele: o vazio que

aninhava em seu interior e que precisava urgentemente da força e da ternura de Robert. E ao

final todas as questões relacionadas com o poder tinham ficado esquecidas. Beijá-lo, servi-

lo, oferecer-lhe prazer eram coisas suficientemente prazenteiras para ela, e aquela era uma

situação certamente perigosa.

“Robert.” Belinda estremeceu, esfregando os olhos com força enquanto a água

escorria entre seus dedos e caía de novo no recipiente, tão difícil de reter como o amor.

Afastou-se da bacia e se dobrou em silêncio, levando a mão ao ventre e contendo um

enorme sentimento de aterradora solidão, quase tão intenso como uma dor física.

Ele não devia saber. Ele não devia notar. Uma cortesã não podia amar, ou do

contrário acabaria destroçada. Dirigiu-se à cama, deitou-se e cobriu os olhos com o

antebraço para reprimir as lágrimas.

Foi então quando se elevaram as primeiras notas do térreo, vacilantes, inquisitivas,

como o primeiro beijo que deram em casa de Harriette. Conteve a respiração e permaneceu

à escuta. O feitiço aumentou à medida que a música progredia, envolvendo-a. Bel escutava

com atenção, aferrando-se a cada nota como se sua vida dependesse disso.

Robert tocava como um professor. A sonata em questão era muito mais intrincada

que qualquer das peças que ela pudesse ter interpretado; delicada, triste e lenta até estalar

em uma magnificência e complexidade que só podiam corresponder a Beethoven. À medida

que passavam os segundos compreendeu que Robert estava lhe falando, só a ela, e uma

gargalhada incontida de alegria escapou de seus lábios enquanto prorrompia em lágrimas.

Pela primeira vez e daquela forma tão inesperada, separados por meia casa, a fria rainha das

cortesãs permitiu finalmente que um homem a tocasse.

P á g i n a |112

DEZ

Mais de quinze dias depois Bel se achava em frente ao espelho da loja que sua

costureira tinha em Bond Street. A enérgica mulher francesa estava comprovando como

ficava o último vestido que tinha criado para a Belle Hamilton, um esplêndido objeto de

seda de cor azul pálida com um decote em forma de coração que se afundava no vale

formado entre seus seios. Não havia nenhuma dúvida: tratava-se do vestido de uma cortesã.

Bel seguia com o olhar as mãos da costureira enquanto lhe alisava a longa e bela saia

à altura dos quadris e da cintura. Não podia evitar pensar que segundo as aparências estava

se convertendo no que fingia ser, e, apesar disso, tinha descoberto a joia mais valiosa que

jamais tinha visto.

Só podia pensar em Robert.

— O encantará, mademoiselle — murmurou a mulher, e seus olhos escuros brilharam

com orgulho ante sua criação.

— Oh, sim — assentiu Bel, admirando a destreza da mulher. Mal podia esperar para

ver o rosto de Robert quando vislumbrasse o atrevido decote.

— É para alguma ocasião especial?

— Para ir ao salão Argyll.

— Pensava que era para um jantar.

— Não, o rosa é para o jantar. Este é para o baile das cortesãs.

Algo tinha surgido entre eles desde o ocorrido naquela noite na biblioteca, algo que

tinha crescido como o broto tenro e verde de uma flor até então desconhecida. Bel tinha

esquecido o que era sentir-se a salvo, ser feliz.

Seguiram adiante com sua farsa: reuniões tumultuosas, concertos, serões, visita a

Vauxhall, o salão Picadilly, o teatro, a ópera, o parque. Robert já não falava de Dolph nem

de lady Coldfell. Bel evitava mencioná-los, consciente de que primeiro de agosto chegaria

muito em breve e, com ele, o fim do acordo que ela e Robert tinham assinado. Antes que

chegasse essa data, queria que a convidasse a ficar junto a ele definitivamente como sua

amante.

Era a solução perfeita no meio de um mundo terrivelmente imperfeito, talvez fosse a

única solução. Nunca poderia voltar a ser uma pessoa respeitável, e não lhe agradava a

perspectiva de ficar outra vez à venda quando seu plano tivesse concluído. Que

probabilidade tinha de achar um protetor no qual pudesse confiar a metade do que confiava

em seu duque afetado e cheio de obrigações morais? Além disso, atrevia-se a pensar que

estava aprendendo a fazer Robert feliz.

Inteirou-se de que certo dia, em plena sessão da Câmara dos Lordes, ele se tinha

posto a rir a gargalhadas sem nenhuma razão aparente. Depois, para diversão de seus

colegas, tinha votado a moção equivocada, e tinha tido que ficar em pé ante o banco do

grande chanceler e trocar seu voto negativo por um positivo.

Mick Braden tinha ido visita-la na última semana, mas Robert se negou a deixá-lo

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entrar; um incidente que, para sua surpresa, tinha-a feito sentir-se protegida antes que

aborrecida.

Não haviam voltado a gozar de um momento íntimo como o que tinham vivido na

biblioteca, mas tudo tinha mudado entre eles. Bel compreendeu de forma lenta, mas segura

que os dois estavam tirando suas máscaras, derrubando a fachada do outro e convertendo-se

em muito bons amigos.

Além disso, ela tinha agora umas setecentas e cinquenta libras das três mil que

necessitava para tirar seu pai da prisão de Fleet.

Deixou a um lado suas reflexões ao dar-se conta de que sua costureira parisiense lhe

tinha feito uma pergunta.

— Que tal está madame Julia? É tão bonita! Faz muito que não a vejo.

— Está outra vez grávida — murmurou Bel em tom confidencial.

A mulher ficou parada e ergueu a vista boquiaberta.

— Mon Dieu! Mas não tem já cinco filhos?

— Seis... Este é do coronel Napier.

A costureira falou entre dentes com um alfinete na boca e inclinou a cabeça.

— Tome cuidado, mademoiselle.

— Oh, terei, acredite — assegurou Bel. Harriette lhe tinha dado instruções exaustivas

sobre o emprego de uma pequena esponja atada a uma bobina de linho, sua única defesa

contra a gravidez junto ao uso inteligente do calendário.

Tratava-se de um método desenvolvido na Europa que garantia um pleno prazer por

ambas as partes. Na Inglaterra essa modalidade anticoncepcional era recomendada inclusive

pelos sábios parteiros às mulheres com uma saúde delicada e para as quais uma gravidez

podia ser perigosa. Também se podiam empregar camisinhas elaboradas com tripas de

cabra, mas Harriette dizia que nenhuma companheira com amor próprio se dignava utilizar

uma, o que era perfeito, pois a Bel a ideia era repugnante. Se nenhuma daquelas coisas

funcionava, havia certos remédios caseiros que lhe tinham ensinado a fabricar que podiam

pôr fim à gravidez, como o fungo, o aloe ou os preparados de chumbo.

— Eles six enfants! — murmurou a mulher francesa. — Je ne sais pas como mantém

a figura.

Quando a costureira terminou de colocar alfinetes em várias zonas, Bel voltou para o

provador, tirou o vestido cuidadosamente e vestiu seu elegante traje vespertino de

inspiração militar. Levava uma jaqueta curta de veludo azul escuro com mangas muito

justas, botões de latão e galões dourados por cima de um vestido de musselina branca.

Estendeu cuidadosamente um cheque para pagar o exorbitante vestido de baile,

encantada de que Robert tivesse posto duzentas e cinquenta libras mais em sua conta.

Graças a Deus, não era para lhe pagar pelo que lhe tinha feito, mas simplesmente porque a

atribuição para o vestuário constituía uma parte de seu trato.

Enquanto saía da loja e caminhava em direção ao seu elegante coche negro, pensou

com orgulho nas cem libras que tinha investido em um fundo. Era uma cifra que aumentaria

lentamente com um interesse de cinco por cento, mas ao menos já tinha começado a crescer.

Bel tampouco se esqueceu de agradecer a seu protetor comprando um presente, uma

pequena lembrança. Nesse dia, antes de ir à loja da costureira, tinha escolhido uma elegante

cigarreira de prata para ir à caça em que tinha feito o ourives gravar uma irônica dedicatória

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subindo de tom:

“Para Robert, com um beijo. Que sua excelência molhe seus lábios para futuras

partidas de vinte e um. De sua Belinda, felizmente conquistada. Junho de 1814”.

Aquela pequena lembrança faria boa companhia à caixa de delicioso brandy do

mercado negro francês que seu irmão corsário, lorde Jack, acabava de lhe enviar, pensou

Bel enquanto William, o jovem cavalariço, abria-lhe a porta da carruagem. Entregou-lhe os

pacotes com os diversos objetos que tinha comprado nas diferentes lojas e lhe pediu que o

pusesse no porta-malas.

Ao dar uma olhada por acaso à rua abarrotada, viu o Dolph Breckinridge sentado em

seu faetonte, fumando um charuto e olhando-a fixamente. Não a saudou levando a mão ao

chapéu nem lhe dedicou um de seus desconcertantes sorrisos. Limitou-se a continuar

olhando-a, sem fazer o menor movimento para aproximar-se. Com a sensação primária de

uma presa ao ser espreitada, Bel notou que um calafrio lhe descia pela coluna quando se deu

conta de que tinha estado sentado fora todo o tempo, observando-a e a sua costureira através

da janela da loja.

— Será melhor irmos para casa — disse William com inquietação ao reparar na

presença de Dolph, mas Bel sacudiu a cabeça e cobrou ímpeto. Não tinha fugido do prefeito

da prisão de Fleet, e certamente não ia fugir de Dolph Breckinridge. Negou-se a retornar a

toda pressa a Knight House. Ainda não tinha acabado com seus afazeres.

— Não, William. Me leve à casa de Harriette Wilson, por favor. — O último

depósito de Robert implicava que devia a Harriette outro cheque dos vinte por cento.

Esperava que sua mentora não estivesse com nenhum cliente nesse momento, pois desde há

muito tempo não dispunham de ocasiões para falar.

Dolph permaneceu sentado e contemplou como se afastava sem fazer nenhum

movimento para segui-la. Bel soltou um suspiro de alívio e olhou outra vez para diante,

bastante cansada pelas abundantes saídas até altas horas da noite. Necessitava uma pausa

daquele torvelinho social, mas nessa noite tinham planejado ir a uma festa depois do

concerto ao ar livre, em honra do herói prussiano que se achava de visita, o general Blücher.

Não deu importância a seu cansaço. A ideia de sair a qualquer parte com Robert a enchia de

uma feliz excitação.

Olhou pela janela enquanto os cavalos negros puxavam seu coche pelas lotadas ruas

da cidade. Dirigiu um olhar inexpressivo às pessoas que a observavam ao passar, seguindo

com os olhos a carruagem como se soubessem o que ela era. Provavelmente sabiam.

Deu uma olhada para trás com cautela e viu que Dolph a seguia em seu faetonte,

embora uma carruagem de aluguel e uma carreta se colocassem no meio. Nervosa, olhou de

novo para frente. Finalmente William deteve o coche com suavidade em frente à casa de

Harriette. Dolph parou sua carruagem mais abaixo, a escassa distância dela, e continuou

observando-a. William desceu do assento do condutor de um salto e foi para a porta para

anunciar sua chegada e comprovar se Harriette estava disponível. Ao ver que um dos dois

lacaios grandes e rudes respondia à porta, Bel se sentiu suficientemente segura para sair da

carruagem, embora Dolph não estivesse muito longe. Desceu do coche e se dirigiu à porta

dando grandes passadas justo quando Harriette saía para recebê-la.

Não indicou Dolph porque era incômodo ser o objeto da obsessão de um homem

instável. Em lugar disso, forçou um sorriso jovial quando Harriette apareceu no portal de

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sua casa. A pequena rainha das cortesãs ficou boquiaberta e abandonou seu habitual aspecto

divertido para lançar uma exclamação de inveja ao ver a carruagem e os cavalos de Bel.

— Não os tinha visto? — perguntou Bel com um sorriso, cruzando a calçada em

direção a ela. — Achava que já lhe tinha mostrado isso. Estou estupenda, não é?

— A grande cortesã! — gritou Harriette com uma risada cristalina, ao mesmo tempo

em que lhe dava um carinhoso abraço. — Você e sua carruagem têm um aspecto tão

magnífico que quase não posso suportar. Venha, entra e toma uma taça de chá.

Bel obedeceu de boa vontade quando Harriette puxou-a para dentro.

— Ah, minha pequena protegida, pôs a cidade de pernas para o ar — exclamou

Harriette pouco depois, quando se instalaram comodamente no sofá uma em frente da outra,

sustentando as xícaras de chá em seus pires sobre o regaço. Era a mesma sala em que Robert

lhe tinha feito sua atrevida proposta semanas antes. — Hawkscliffe, nada mais e nada

menos! Se tivesse sua idade a odiaria. Mas em realidade sinto um orgulho quase maternal

por seus êxitos: Hawkscliffe e Belle Hamilton! Não se fala de outra coisa. Assim, me conte

— disse Harriette, lhe lançando de soslaio um olhar perspicaz-, que tal se comporta seu

duque?

— Bem. Em geral acredito que está de mais bom humor do que quando fui com ele

pela primeira vez...

— Não, tonta, refiro a que tal se comporta na cama.

— Harrie! — Bel se pôs a rir e ficou vermelha, já que nem sequer Harriette conhecia

a verdadeira natureza de sua relação.

— Imagino que uma pessoa tão escrupulosa como ele deve ser ou um autêntico chato

ou alguém cheio de perversões. Assim qual é seu caso?

Pasmada, Bel abriu a boca para falar, mas nenhum som saiu dela.

— Oh, vamos, solta, Bel! Sabe que não direi a ninguém.

— Sim sei que o fará. Dirá ao Argyll e ao Hertford... E logo me inteirarei de que no

Parlamento se discutem as magistrais... Atuações de Hawk.

Harriette riu alegremente e se recostou contra o sofá.

— Bom, talvez seja realmente um homem virtuoso. — Suspirou e baixou o olhar

com ar contemplativo. — Ah, Bel, que ideal: é rico, poderoso, condenadamente bonito,

generoso e bom amante. Devo confessar que me preocupa.

— Por quê? Como vê, estou em uma situação perfeita.

— Muito perfeita. — Harriette sacudiu a cabeça. — Observei como o olha. Está bem

sentir atração por seu protetor, inclusive carinho, mas para seu próprio bem lhe rogo que

não esqueça a regra principal.

Ficaram olhando-se fixamente.

Naturalmente, Bel sabia de cor: “Não se apaixonará”. Baixou o olhar para seu chá.

— Claro que não, Harrie.

— Me olhe, Bel. Está zangada?

— É só que... Como se criou essa regra? — soltou. — Por que não podemos nos

apaixonar?

— Já sabe por que... Porque se perde a partida! Quem se declara primeiro perde. Já

sabe, Bel. Olhe o que aconteceu comigo.

— O que lhe passou? É a mulher mais desejada da Inglaterra...

P á g i n a |116

— Entreguei meu coração ao Ponsonby, que era tão bonito como traidor, e o quebrou

em mil pedaços ao voltar com sua mulher. E agora todos meus amantes me desgostam...

Mas tenho que seguir recebendo clientes porque esta é a única vida que conheço. E se paro a

pensar nisso, dou-me conta de que sou bastante desgraçada. — Harriette olhou para a

chaminé e lançou um suspiro melodramático. — Não quero que lhe aconteça o mesmo que

me ocorreu. Ponha-se bonita e se mostre alegre e cruel, Bel. Mas não se apaixone nunca.

— Mas, Harriette — aventurou Bel-, lorde Blessington se casou com Marguerite...

— Não, nem pensar — replicou Harriette zangada. — Por cada Marguerite há

centenas de nós que acabam sem um centavo, velhas e vivendo em bairros de má morte.

— Em bairros de má morte!

— Deus sabe que irei parar em um por culpa de meus credores.

— Tolices, Harrie. Sabe perfeitamente que poderia se casar com o Worcester

rapidamente.

— Pobre insensato — disse ela com pesar. — O quero muito para aceitar, porque sei

que essa união não conviria a meu pequeno marquês, nem a mim tampouco.

— Pode ser que seja mais jovem que você, mas todo mundo sabe que a quer.

— Que me quer? — Harriette pousou uma mão na face de Bel com expressão de

tristeza. —Basta de tolices românticas. Já me remói bastante a consciência por havê-la

metido neste maldito mundo. Não quero ver como se destrói. Não quero ver que comete os

mesmos enganos que cometi quando tinha quinze anos e acabava de começar. Por muito

esplêndido que seja Hawk, irá embora um belo dia. Quando Blessington se casou com

Marguerite não era um político em alta no Parlamento.

Bel não disse nada, e se limitou a contemplar o chão em sinal de rebeldia.

— Bel — disse Harriette-, acha que a sorte de Marguerite é tão maravilhosa agora

que é lady Blessington? Pois te equivoca se pensar assim. Nenhuma das mulheres da

sociedade a aceitará nunca e nem sequer lhe dirigirão a palavra, mesmo que ela se comporte

de forma irrepreensível. Se conseguisse que Hawkscliffe te propusesse matrimônio, armar-

se-ia tal escândalo que arruinaria sua carreira como homem de Estado. Se lhe arrebatasse

isso, se lhe permitisse (sobretudo a ele) escolher entre o prazer e o dever, arrepender-se-ia e

com o tempo acabaria desprezando-a, e então em que situação estaria?

— Sei que o que diz é certo, mas Hawkscliffe não é como outros. É bom e carinhoso,

e nobre de verdade...

— Não quero ouvir mais! — gritou Harriette exasperada, e saltou do sofá tampando-

os ouvidos com as mãos. — Vai destruir se. Tem que evitar se afeiçoar a ele. Tire-lhe tudo o

que possa, esteja preparada para deixá-lo assim que note o menor sinal de que começa a

aborrecer-se.

— Mas isso é tão desumano...

— É a realidade, querida. Estou lhe ensinando a sobreviver.

Ao ver Harrie tão angustiada se levantou e estendeu o braço para lhe pegar a mão.

— Não se zangue comigo, Harrie. Estou fazendo o melhor que posso. Sabe que

sempre ouvirei seus conselhos — mentiu, simplesmente para pôr fim à discussão.

Harriette não sabia tudo, pensou Bel rebelando-se. Talvez a regra principal fosse

acertada em circunstâncias normais, mas sua situação com Hawkscliffe era diferente.

Harriette se fez de ofendida até que Bel abriu sua bolsa e lhe estendeu um cheque no

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valor de cinquenta libras, vinte por cento do último depósito de Robert. O talão ajudou a

diminuir seu mau humor. Falaram de outros temas até que por fim Bel levantou e se

despediu dela. Quando retornou a seu coche, reparou que Dolph partira. William não

comentou que tivesse tido algum problema com o baronete.

Dirigiram-se para Knight House. Bel olhou várias vezes pela janela traseira e

esquadrinhou as ruas para assegurar-se de que Dolph não a estava vigiando de algum lugar

próximo. Satisfeita por fim de haver-se livrado dele, apoiou o queixo no punho e se dedicou

a olhar pela janela da carruagem, convencendo-se de que Harriette não entendia nada.

Robert não era como o conde, um dos galãs egocêntricos que pululavam ao redor das irmãs

Wilson.

De repente viu um par de rostos familiares no meio da agitação, na esquina de Regent

e Beak Street. Retrocedeu aos dias em que vendia laranja ao reconhecer o moleque de oito

anos de quem se tornara amiga, Tommy, que varria o cruzamento para que passasse um

cavalheiro com cartola, enquanto, para seu horror, seu irmão de nove anos, Andrew, situado

um passo por detrás dele, roubava do homem o conteúdo do bolso!

Bel puxou a corda do freio com todas suas forças. William deteve o coche quase de

forma imediata. Ela não esperou que lhe abrisse a porta, mas sim saltou da carruagem e se

dirigiu para a esquina. Uma vez ali pegou as orelhas dos dois meninos.

Começou a puxá-los sem a menor delicadeza em direção à carruagem.

— Ouça senhora, nos solte!

— Sou eu, bobos! Não me reconhecem?

— Senhorita Bel? — gritou Tommy, boquiaberto.

— Pode-se saber o que pretendem? Que os pendurem pelo pescoço? Entrem na

carruagem! Agora mesmo!

— Sim, senhora!

— Sim, senhorita Bel.

Pálidos e repentinamente castigados, subiram ao coche. Lançando-lhes um olhar de

ira enquanto o coração lhe palpitava de medo, Bel se perguntou se alguém tinha presenciado

o roubo de Andrew. Entrou na carruagem e se sentou em frente dos meninos.

O espantoso cheiro das imundas criaturas inundou a carruagem; estavam tão

desnutridos que os dois cabiam perfeitamente no assento individual situado frente a ela. Bel

cruzou os braços e os olhou com o sobrecenho franzido.

— Estou escandalizada e horrorizada pelo que têm feito meninos. Deem-me isso. —

Estendeu a mão.

Andrew se revolveu em seu assento e tirou um relógio de bolso de ouro.

— É um menino muito mau e travesso — lhe disse. — Tem ideia do que poderia

acontecer se alguém o tivesse visto roubar isto?

Os dois meninos trocaram olhares abatidos.

— Isso é — disse Bel em tom severo-, iria ao cárcere.

— Dão de comer no cárcere, senhorita Bel? — perguntou Andrew.

— Que impertinência — exclamou ela, ocultando com muita dificuldade a tristeza

que lhe causou aquela pergunta. Sentiu o impulso de abraçá-lo, mas tinha que repreendê-los,

já que o fato de lhes dar qualquer motivo para que seguissem aquele caminho de

delinquência seria fatal. Deus santo, não podia voltar a deixá-los na rua.

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Andrew abaixou a cabeça.

— Sentimos muito, senhorita Bel.

— Sei que sentem — disse ela seriamente. — A partir de agora não voltarão a

roubar, mas tampouco passarão fome. Tommy, Andrew, vou levá-los a um lugar onde

cuidarão de vocês como é devido.

— Que lugar? — perguntou Andrew, com um receio instantâneo.

— Um colégio.

As sobrancelhas do Tommy se arquearam.

— Um colégio?

Bel assentiu firmemente com a cabeça, cheia de determinação. Podia cancelar o

pedido do próximo vestido. Aqueles meninos teriam um teto sobre a cabeça, roupa limpa

com que cobrir-se e comida no estômago embora ela tivesse que tirar dinheiro de seus

recursos.

— Não quero ir a nenhum colégio — disse Andrew um instante depois, olhando-a

com o sobrecenho franzido.

— Não me importa — replicou Bel.

— Como é que já não vende laranjas? — soltou Tommy de supetão.

— Olhe que roupa mais fina leva, Tom.

— Dedica-se a fazer a rua — disse Andrew como qualquer sofrido irmão maior.

Desconcertada, Bel ficou olhando ao moço com a boca aberta e quis morrer de

vergonha. Fechou a boca de repente e afastou a vista, recordando-se que depois de ter

vivido no abrigo aqueles meninos tinham visto de tudo. Apesar disso, alegrava-se

sinceramente de que não lhe tivessem perguntado por que lhe parecia bem prostituir-se e,

entretanto considerasse que estava mal que eles roubassem. Não teria sabido o que

responder. O sentimento de culpa arrasou sua consciência por haver-se esquecido daqueles

pobres vagabundos durante mais de um mês, absorta em seus próprios problemas.

Indicou ao William que seguisse por Edgware Road até Paddington. Quando dava

aulas na academia da senhora Hall tinha ouvido falar de uma escola beneficente fundada

pela Sociedade Filantrópica. Com certeza podia convencer ao diretor que admitisse a

aqueles meninos abandonados.

Quando eles chegaram, Bel pegou os meninos pela mão para evitar que saíssem

correndo e os conduziu com determinação até o edifício baixo de tijolos.

Ela e os jovens alunos foram recebidos com inquietação pela secretária. Bel solicitou

ver o diretor. A secretária aceitou vigiar aos meninos, que se sentaram obedientemente na

sala de recepção enquanto ela era acompanhada até o escritório do diretor. Esperou

impacientemente alguns minutos e logo ergueu a vista com uma serenidade distante quando

apareceu um homenzinho de rosto enxuto, nariz aquilino e aspecto de intrometido.

— Sinto havê-la feito esperar, senhorita. Sou o senhor Webb. No que posso ajudá-la?

–pronunciou em um tom nasal cheio de pompa.

— Obrigado por me receber, senhor Webb. Vim porque eu gostaria de matricular a

dois meninos em sua escola.

As comissuras dos lábios do homem se curvaram para baixo.

— Temo que estejamos quase completos. Nasceram nesta paróquia?

Bel vacilou.

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— Trouxe seus registros de nascimento, senhorita...?

— Hamilton, Belinda Hamilton...

O homem arqueou a sobrancelha esquerda.

Bel amaldiçoou a si mesma no mesmo instante em que seu nome completo saiu de

seus lábios. Sabia que gozava de fama — ou má fama— na cidade, mas quem demônios ia

pensar que o diretor de uma escola beneficente tinha ouvido falar dela?

Ele levantou a cabeça e a observou como um passarinho de mau gênio.

— Que relação tem os meninos com você? — perguntou com suspeita.

— São meus amigos. Senhor Webb, estes meninos necessitam de proteção.

Estiveram vivendo na rua. Não têm nada que comer...

— Um momento –interrompeu-a . — Vivendo na rua? Não parece absolutamente

apropriado para nosso centro, senhorita Hamilton. Não posso permitir que eles venham para

corromper o resto dos meninos.

— Senhor! — exclamou Bel, desconcertada. — Não vão corromper a ninguém.

— Temos órfãos, mas todos procedem de lares decentes de pobres respeitáveis.

Tenho certeza de que esses marotos são muito desgraçados, mas se não me traz os registros

de nascimento não tenho a obrigação de acolhê-los.

— Talvez não me tenha explicado bem. — Bel forçou um sorriso irresistível. —

Estou lhe oferecendo dinheiro em troca da matrícula e manutenção. São uns meninos bons e

encantadores. Só precisam receber uma educação que lhes sirva para trabalhar algum dia, e

achar um lugar na sociedade.

— Senhorita Hamilton — a interrompeu ele de novo-, meninos como eles não são

bem recebidos aqui. Nem tampouco as mulheres como você.

Bel ficou boquiaberta.

— As mulheres como eu? Não pode condenar os meninos por minha culpa.

— Este é um centro cristão decente, senhorita Hamilton. Tenho certeza de que o

compreenderá.

— De verdade? Não me parece que seja muito cristão. Acaso não teve Jesus uma

amiga prostituta?

— Bom dia, senhora — respondeu ele friamente.

— Senhor Webb, está condenando a esses meninos à forca.

— São seus pais que tem a obrigação de lhes ensinar uma conduta virtuosa.

— Não têm pais. Eu sou a única pessoa adulta que conhecem.

— No asilo de pobres do Marylebone se ocuparão deles...

Bel reprimiu uma maldição.

— Não entregaria ao asilo nem um vira-lata. Pagar-lhe-ei mais...

— Não podemos aceitar seu dinheiro, senhorita Hamilton, tendo em conta como o

obteve.

— E o que sugere que eu faça com eles, senhor Webb? Porque não posso deixá-los

outra vez na rua.

— Talvez devesse cuidar deles você — apontou o homem, lançando rapidamente um

olhar dissimulado ao seu caro vestido e observando logo pela janela sua esplêndida

carruagem. — Parece que pode permitir-se.

Bel se levantou furiosa, tão envergonhada que foi incapaz de articular palavra. Virou-

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se fazendo virar a musselina de seu vestido e saiu do pequeno escritório com ar majestoso.

— Andrew, Tommy, vamos. — Apesar do quão humilhada se sentia, abandonou o

centro com a cabeça erguida levando os meninos pela mão. Notou como o diretor a seguia

com o olhar em atitude crítica. Colocou os meninos na carruagem e ordenou a William em

um tom glacial de cólera que os levasse a Knight House. Olhou pela janela com os braços

cruzados enquanto os dois moços, assustados por sua fúria contida, contemplavam seu rosto

com ansiedade.

— Não... Não nos quiseram senhorita Bel? — perguntou Tommy cautelosamente.

— Não é isso, Tommy. Simplesmente não tinham espaço para vocês — conseguiu

dizer ela em um tom mais sereno. — Não se preocupem tudo vai sair bem.

“Não sei o que vou fazer com vocês.” Hawk certamente teria um ataque de apoplexia

se os levasse a Knight House, mas que outra coisa podia fazer? Enquanto pensava nisso se

deu conta de que Robert não tinha por que saber que estavam ali. Cada garoto realizaria um

trabalho em troca da manutenção. Andrew podia ocupar-se dos cães, e Tommy podia servir

como ajudante de cozinha. Bel não via nenhuma outra opção viável.

Quando chegaram a Knight House pediu a William que a ajudasse e se encarregasse

dos meninos. Já que ele também tinha vivido uma infância pobre, o antigo limpador de

chaminés se mostrou alegre e encantado de ajudar. A cozinheira os tomou imediatamente

sob seu amparo. A gorda mulher com aspecto de avó parecia encantada de ter meninos a

quem mimar e dar de comer.

Bel deslocou o olhar do rosto sujo, pálido e com os olhos arregalados de um dos

meninos para a do outro, enquanto lhes explicava sua nova situação e lhes deixava bem

claro que se um deles roubava um mísero torrão de açúcar, ela se encarregaria de surrá-lo

pessoalmente. Era preferível receber uns açoites a acabar em Newgate ou com uma corda no

pescoço. Tinham maus hábitos a corrigir.

Havia suficiente espaço para eles nos quartos de serviço. Rapidamente lhes

prepararam duas camas de armar perto da lareira. Animados, os moços começaram a cativar

os serviçais desde o momento em que cruzaram a soleira da aborrecida mansão. Uma das

criadas, que era toda sorrisos, partiu a toda pressa em busca de roupa limpa para os

pequenos. Em uma casa onde se criaram cinco irmãos e incontáveis criados varões, havia

montões de baús no sótão com roupas de menino em desuso, algumas das quais ainda se

achavam em condições aceitáveis.

Enquanto isso o duque se achava reunido com alguém em seu escritório, conforme

disse Walsh. O mordomo contemplava aquelas arrumações franzindo o sobrecenho com

inquietação, evitando comentar o que diria sua excelência sobre o fato de sua anfitriã levar

meninos desencaminhados a sua casa. Enquanto isso, a cozinheira já esquentava um pouco

de guisado do dia anterior para aquele par de andrajosos. Quando os meninos,

desconcertados, mas contentes, colocaram por fim mão à comida, Bel dedicou à cozinheira

um sorriso de profundo agradecimento. A gorda e competente mulher lhe sorriu em

resposta, com os olhos azuis brilhantes.

Uma vez que se sentiu mais satisfeita no referente à segurança dos meninos, Bel

retornou a seus aposentos. Sabia que não devia permitir que aquilo a inquietasse, mas ainda

continuava furiosa pela descortesia do diretor. Cansada e um tanto imunda depois de ter

percorrido a cidade durante todo o dia, puxou o cordão do sino junto a porta e pediu à criada

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que respondeu a sua chamada que lhe preparasse um banho.

A única coisa que necessitava para estar pronta para a festa da noite era tomar um

banho e descansar. Entrou no quarto de vestir e lançou um olhar a sua crescente coleção de

vestidos, tratando de decidir qual vestir essa noite.

Ao cabo de meia hora se achava no céu, desfrutando de um banho quente perfumado

com leite de rosas, com as pernas cruzadas e os tornozelos apoiados no bordo da banheira.

O vapor denso se erguia da água formando espirais, umedecendo ao redor de seu rosto as

mechas de seu cabelo preso. Esfregou o rosto e o pescoço com um claro e apreciado

bálsamo de La Meca, e sentiu sua cútis revitalizada. Tomou um gole de vinho, suspirou e

deixou que suas preocupações se desvanecessem, apoiando a cabeça contra o bordo da

banheira. Não sabia quanto tempo tinha passado quando um golpe brusco na porta a tirou de

seu estado de profundo relaxamento.

— Belinda, sou eu, Hawkscliffe.

Ela abafou uma exclamação e abriu os olhos de repente. Mal teve tempo de sentar-se

na banheira, quando ele entrou sem mais.

— Queria lhe falar da festa desta noite...

Robert ficou parado. Ela o olhou fixamente, mal se atrevendo a respirar.

Então um sorriso malicioso e lascivo cruzou lentamente o rosto do duque.

— Ah, ah, ah. — Fechou a porta com uma cotovelada e passou o ferrolho, lhe

dedicando um sorriso sedutor. — Hawkscliffe, amigo, tens o dom da oportunidade...

Bel sorriu nervosamente e ficou ruborizada. Temia que tivesse ido lhe pedir que

expulsasse os moços de sua casa, mas no momento só parecia interessado em olhá-la. Ela se

inundou na banheira e acumulou montões de espuma com as quais cobria seu corpo do olhar

curioso do duque. Posto que se supunha que era uma cortesã do mundo, não queria que ele

reparasse em seu acanhamento, mas, para falar a verdade, nunca antes tinha estado nua em

um mesmo aposento com um homem.

— Queria... Algo, excelência?

— Até agora não, disse ele com um sorriso malicioso.

Bel o olhou franzindo o sobrecenho altivamente. Ele passeou pelo quarto, mostrando-

se muito satisfeito de si mesmo. “Deve ter estado trabalhando duro no escritório”, pensou

ela. Traz o colete desabotoado e a camisa branca arregaçada.

Aproximou-se da borda da banheira, inclinou-se e, lhe agarrando o queixo, roçou-lhe

os lábios em um beijo suave.

— Olá, formosa flor — murmurou. — Obrigado pela cigarreira nova. Guardá-la-ei

— deu-lhe um tapinha na ponta do nariz— sempre.

Ela se recostou e lhe sorriu, e uma sensação de alívio percorreu todo seu ser. Se

aquele era o motivo de sua visita, talvez ainda não soubesse da chegada dos meninos.

— Por que sempre me está dando presentes? — perguntou-lhe enquanto se sentava

na beira da cama de Bel, a vários centímetros de distância dela.

— Porque me faz feliz.

Ele a olhou e sacudiu a cabeça com ar desconcertado.

— Queria lhe dizer que tem que acrescentar outro convidado à lista do jantar desta

noite.

— Não será o regente, não? — sussurrou ela com temor, abrindo os olhos ao

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máximo. Esperava-a uma boa confusão na hora de decidir a ordem adequada dos assentos,

com a presença de homens pouco cultos que ocupavam postos importantes no governo,

mesclados com duques e algum visconde. Tinha medo de ferir o amor próprio de alguém o

colocando na mesa em função de uma ordem e uma categoria equivocada.

— Não, é lorde Coldfell — disse Robert.

— Ah. — Surpreendida, Bel depositou a taça de vinho na mesinha que havia próxima

à banheira.

— Sim, as circunstâncias são um pouco estranhas – ele admitiu — , mas Coldfell é

amigo da família há anos. Ele sabia que nunca me deixaria levar por meus sentimentos por

sua esposa. Foi lorde Coldfell quem me comunicou pela primeira vez suas suspeitas sobre

Dolph e me mostrou o caminho para segui-lo.

Bel assentiu com a cabeça de forma grave.

— E sabe a verdade sobre nossa farsa?

— Não, querida. É nosso pequeno segredo — murmurou ele com um sorriso sedutor,

e lhe respondeu de igual modo.

— Suponho que lorde Coldfell era a pessoa com a que estava falando em seu estúdio.

Observando as bolhas de sabão que flutuavam e brilhavam na água, Robert fez um

gesto de rechaço com a mão.

— Não, era o senhor Clive Griffon, que vinha me acossar outra vez.

— Quem é?

— Um sonhador idealista que esteve me pedindo que o introduzisse na Câmara dos

Comuns.

— Oh, de verdade?

— Um dos distritos que estão sob meu controle tem uma cadeira livre. Griffon quer

experimentar a sorte.

Bel arqueou uma sobrancelha.

— Refere a um “burgo de bolso”?

— Assim são chamados vulgarmente.

— Entendo. — Tranquilizada com aquele tema neutro, Bel cruzou as pernas em

sentido contrário e flexionou os pés com satisfação. — E quantos distritos como esse tem a

seu cargo, excelência?

Robert olhou seus pés, divertido.

— Um cavalheiro nunca fala dessas coisas.

— Tolices.

— Seis.

Bel o olhou com a boca aberta.

— Seis!

— São muitos, eu sei — disse ele envergonhado, apesar de ter os olhos brilhantes. —

Bom, Devonshire tem sete.

— Os duques sempre têm que monopolizar tudo? Não podem se limitar ao White’s e

a Câmara dos Lordes? Supõe-se que a Câmara dos Comuns é eleitoral.

Robert deu de ombros.

— Eu não tenho culpa. Herdei-os. — Com a vista cravada nas pernas dela, Hawk se

recostou e cruzou os braços. Bel descobriu que já não lhe incomodava seu exame pausado.

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— A verdade — continuou ele distraidamente— é que tentei que Alec se faça encarregado,

mas ele não o suportaria. Só lhe interessa o jogo e as mulheres.

— Seu irmão não parece precisamente um homem que goste da política — afirmou

ela.

— Mas o jovem Griffon... É muito entusiasta.

— Os fanáticos costumam sê-lo.

— Tem ideias audazes.

— Não será um radical?

— É um independente.

— Parece intrigado.

Ele deu de ombros.

— Reformar o código penal... Sim, posso entendê-lo. Mas reformar o Parlamento? —

disse, sacudindo a cabeça. — É algo que nunca se fará... Embora talvez devesse ser feito.

— Ainda farão de ti um whig, querido — disse Bel, contemplando, divertida, seu

cenho pensativo. — Por que não dá ao senhor Griffon uma oportunidade?

— Tem uns antecedentes adequados, reconheço-o. É filho de um juiz e conhece a lei.

Mas é jovem.

— Também Alec o é. E de fato, você também...

— Belinda — a interrompeu em um tom grave e íntimo.

— Sim? — disse ela, limpando o braço distraidamente.

— Nego-me a continuar falando de política um segundo mais quando tenho uma

mulher nua banhando-se diante de mim. Não há homem virtuoso o bastante para suportar.

Bel apoiou os cotovelos na borda da banheira e lhe sorriu maliciosamente.

— Está flertando comigo, Hawkscliffe?

— Tento-o.

— E pretende se sentar aí e me olhar como um bobo enquanto me banho?

— Posso?

— Preferiria que pelo menos fizesse algo útil. Venha e me esfregue as costas.

Robert ficou direito e arqueou as sobrancelhas.

— É isso um convite?

— Na realidade é uma ordem.

— Caramba. — Ele se levantou da cama e caminhou lentamente ao redor da

banheira, atrás dela.

O coração de Bel começou a pulsar com força quando o viu pela extremidade do

olho. —

— É... Uma... Brincalhona — murmurou ele.

— Quem diz que estou de brincadeira? Achava que o atraía.

— O mesmo digo senhorita Hamilton, e me deixe lhe dizer que é para mim uma

honra. — Retirou a poltrona turca que havia ao lado e se sentou.

Bel estremeceu quando ele introduziu a mão na água e procurou o sabão, lhe roçando

o flanco até que o apanhou. Ela se encurvou de costas para Robert.

Ele aproximou a boca à orelha de Bel.

— É uma malandra.

Acaso lhe dei permissão para falar? — replicou ela com um ronrono luxurioso. —

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Lave-me as costas, escravo. Agora.

Notou como ele sorria contra sua pele e a beijava no ombro.

— Que curioso — murmurou ele enquanto deslizava o sabão por suas costas. —

Pensava que você era meu brinquedo.

— Entendeu-o ao contrário, cabeça de rabanete.

— Basta de bate-papo, minha deusa, a menos que queira perder a seu escravo do

amor.

Ela sorriu e se inclinou para diante para que ele pudesse continuar lhe lavando as

costas. Suas mãos peritas e sensíveis começaram a deslizar-se lentamente por sua pele.

— Excelente trabalho, Robert — sussurrou Bel, enquanto lhe percorria a coluna com

os dedos.

— A seu serviço, senhora. — Acariciou-lhe os flancos, com as borbulhas de sabão

entre seus dedos, e lhe massageou os ombros durante um longo tempo. Bel podia sentir

como a tensão continuava sob seu toque. — Lavo os braços, senhorita Hamilton? —

sussurrou-lhe ao ouvido.

Ela pousou a cabeça no largo ombro de Robert. Sorriu com ar sonolento e se moveu

entre seus braços com um prazer lânguido.

— Diga “por favor”.

— Por favor — repetiu ele com voz rouca.

— Adiante.

Ele o fez. Agachado junto à banheira, ele permaneceu absorto em seu trabalho.

O cabelo negro brilhante de Robert se frisava pelo vapor. Enquanto lhe passava

lentamente o sabão no braço, ela estirou a mão por cima do ombro, afrouxou-lhe o lenço e o

deixou desatado ao redor do pescoço. Desabotoou-lhe um par de botões da camisa e tocou

seu peito reluzente com admiração. Elevou a mão e a posou na face do Robert, enquanto o

olhava com ardente desejo e o atraía para si para lhe dar um beijo.

Os firmes lábios de Robert se uniram aos seus com uma suave calidez, lhe separou os

lábios delicadamente com a língua e o beijou com avidez. Ele soltou um gemido abafado e

estirou a mão por debaixo do braço de Bel e a pousou sobre seu peito. Bel gemeu,

derretendo-se contra ele. A sensação daquelas mãos sobre sua pele era sublime. Robert lhe

acariciou o peito com uma ternura deliciosa, e a seguir moveu os dedos de forma lenta e

hábil ao redor de seu mamilo ensaboando-os, deixando-a aturdida.

O prazer a cativou de tal forma que deixou de beijá-lo e se limitou a fechar os olhos e

desfrutar, ao mesmo tempo em que seu corpo ficava sem forças, invadido por um crescente

ardor. Ele explorou seu corpo com as mãos, sem deixar de olhá-la. Enquanto se encurvava

para receber suas carícias, Bel não albergou nenhum temor, só sentia confiança e um gozo

exuberante, pois estava com ele, Robert, seu protetor.

Colocado de joelhos atrás dela, Hawk inundou os braços na água até os cotovelos e

molhou a camisa arregaçada enquanto moldava a silhueta de seus quadris e suas coxas com

suas grandes e suaves mãos.

-meu Deus, tem ideia de quão perfeita é? — sussurrou-lhe ao ouvido. — Sonhei que

a tocava, mas é ainda mais formosa do que imaginava, e sua pele... É como a seda mais

celestial.

— Oh, Robert, por favor — disse ela com um gemido entrecortado de desejo.

P á g i n a |125

Fechando os olhos atormentada, apoiou a cabeça no peito de Hawk.

— O que quer céu? Ensina-me.

Esquecida de todo recato, apanhou a mão de Robert sob a água e a deslizou entre

suas pernas, e o coração começou a lhe pulsar a toda velocidade ante sua própria lascívia.

— Hum, me figurava — sussurrou isso, enquanto a acariciava suavemente,

desencadeando uma explosão de sensações que percorreram os membros de Bel como um

arco íris de prazer. — Mas a senhorita deve tomar primeiro seu banho — murmurou.

Ela gemeu de impaciência, mas lhe deixou fazer o que ele queria. Robert avançou a

um ritmo pausado por seu braço até chegar a sua mão, e então inclinou a cabeça e a beijou.

Ela virou a mão e lhe ofereceu a palma. Robert a beijou e a seguir roçou seu pulso com os

lábios, olhando-a nos olhos com desejo.

— Posso lavar suas bonitas pernas, senhorita Hamilton?

— Se você... Tirar a camisa — replicou Bel atrevidamente com voz entrecortada.

Ele esboçou um sorriso.

— De acordo. — Lhe sustentando o olhar, tirou o colete e deslizou o lenço desatado

por seu pescoço.

Bel mordeu o lábio, observando como o linho branco roçava seu ventre plano e

deixava descoberto seu amplo e musculoso peito ao tirar a camisa pela cabeça.

Robert lançou a camisa atrás dele com um movimento que percorreu os músculos de

seu braço.

Bel não pôde resistir ao impulso de tocá-lo. Acariciou com a mão o vulto quente de

seu ombro, desfrutando de sua masculinidade, seu músculo de aço e sua pele de cetim.

Percorreu com os dedos o centro de seu peito ligeiramente coberto de pelo, e deslizou a

ponta de um dedo para o sulco central de seu ventre até chegar à cintura das calças. Curvou

o dedo e olhou maliciosamente Robert.

Ele a estava olhando fixamente, com seus escuros olhos empanados de um halo

turbulento.

Bel se recostou na banheira sorrindo, enquanto o coração lhe pulsava com força.

— Muito bem, Hawkscliffe.

Robert lhe sorriu abertamente e, estendendo a mão sob a água, acariciou-lhe a

panturrilha, ao mesmo tempo em que emitia um grunhido grave e entusiasta. Ela riu de

forma entrecortada, sentindo uns calafrios de desejo que lhe percorriam os membros ante o

toque. Estendeu-lhe o sabão e olhou como lhe esfregava a espuma pela panturrilha. Robert

lhe beijou a perna flexionada.

— Tem umas pernas realmente deliciosas, senhorita Hamilton.

Bel sorriu, apoiou a face na mão e o olhou fixamente. Ele desceu diligentemente por

sua perna esquerda, tomou seu pé e o massageou, esfregando e apertando com delicadeza.

Fez pressão em um ponto situado na ponte do pé que emitiu umas ondas de doloroso prazer

até a altura da panturrilha. Logo fez o mesmo na perna direita. Acariciou-lhe a planta dos

pés com as pontas dos dedos até que Bel deu uma risada tola e se retorceu ante aquela

sensação de cócegas.

Finalmente lhe enxaguou o pé direito com ternura, tirou-o da água e lhe deu um beijo

na parte superior.

Ela abriu muito os olhos.

P á g i n a |126

— Meu Deus, Robert.

Dedicou-lhe um sorriso preguiçoso e malicioso, e disse lentamente com voz suave e

calma:

— Acaso não é o que queria Belinda? Um homem que lhe beijasse os pés? Um

homem que adorasse o chão que pisa? Acaso não é o que estava pedindo, o que merecia?

Equivoco-me?

Ela não podia fazer outra coisa que olhá-lo encantada. Robert lhe lançou um olhar

ardente e lhe lambeu a parte interior do tornozelo, e a seguir inclinou a cabeça e cobriu

lentamente seus pés com beijos carinhosos. Extasiada, Bel contemplou o movimento

flexível dos músculos de seus ombros, seus braços e seu peito enquanto lhe acariciava as

pernas e as coxas em direção ascendente.

Seu peito se inchou de desejo quando ele ergueu a vista e a olhou ardentemente nos

olhos. Ao falar sua voz soou rouca.

— Ponha-se de pé, Belinda, por favor.

A ela não ocorreu desobedecer. Quando se levantou com as pernas um tanto

trêmulas, e a água escorregando por sua pele, um formigamento percorreu cada centímetro

de seu corpo.

Agachado junto à banheira, Robert olhou acima e contemplou seu corpo, rosado à luz

da lareira. Seus seios ressaltavam com plena excitação no meio do ar fresco. Tinha as

aureolas escuras e turgidas, e os mamilos rígidos por suas carícias.

Robert a olhava encantado.

— Não há dinheiro no mundo que possa permitir a um homem gozar de tanta beleza

— disse ele em voz baixa.

Bel pronunciou seu nome com um gemido e estendeu a mão em direção a seus

ombros em busca de apoio. Ele a segurou com delicadeza pelos quadris e lhe beijou o

ventre. Bel lhe acariciou o cabelo com os dedos, ligeiramente assombrada de não sentir

medo. Robert deslizou suas mãos para seu traseiro e seus lábios roçaram a parte superior de

seu pelo púbico, perfeitamente raspado, como correspondia a uma cortesã.

Ela sentiu como seu quente fôlego penetrava deliciosamente em seu centro mais

sensível e gemeu de desejo, totalmente úmida entre as coxas embora sua pele se estivesse

secando depois do banho. Fez um esforço por manter a prudência, consciente de que era

uma batalha perdida.

— Isto não é o que acordamos — disse fracamente.

— Sei. Deus santo, claro que sei. — Acariciou seu ventre com os lábios. — Quero

saboreá-la.

Sem aguardar obter sua permissão, Robert afundou a cabeça e lhe deu um atrevido

beijo no montículo. Bel gemeu. Tocou-a suavemente com o polegar e logo a acariciou

exercendo mais pressão, e justo quando ela pensava que não ia poder suportar tanto prazer,

Robert seguiu com a língua. Ela afogou uma exclamação, extasiada.

Seu beijo erótico se voltou cada vez mais profundo, percorrendo delicadamente sua

pequena e rígida protuberância com a língua. Ela deslizou os dedos entre seu denso cabelo

escuro em um violento arrebatamento de desejo e se serenou aferrando-se a seus grandes

ombros, escorregadios pelo vapor.

Harriette e Fanny lhe tinham falado daquilo, mas nunca... Nunca havia sentido algo

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que se parecesse com o gozo que lhe estava proporcionando.

Afinal Robert lhe ordenou que levantasse o pé direito e o apoiasse no bordo da

banheira. Moveu-se entre suas pernas separadas e deslizou a língua profundamente.

Acariciou-a primeiro com a mão aberta e introduziu um dedo em seu interior e gemeu

contra seu ventre.

— Deus santo, está tensa como uma virgem.

Ela esteve a ponto de pôr-se a rir ao ouvir suas palavras, mas de repente todo

pensamento se ergueu e desapareceu como um bando de pássaros inquietos quando lhe

lambeu com avidez o clitóris e introduziu dois dedos em sua cavidade até que seus gemidos

se converteram em gritos selvagens em um progressivo crescendo. Moveu-se com ele,

jogando para trás a cabeça, agarrando-se a seus ombros, notando a iminente tormenta que

abria passagem em seu interior. Uma intensa alegria a invadiu e sentiu uma ardência no

próprio couro cabeludo. Os estremecimentos de prazer a sacudiram, e a seguir a explosão de

gozo a atravessou como um relâmpago, cegando-a com aquela gloriosa sensação. Bel gritou

e ofegou em estado de delírio, e esteve a ponto de desabar-se sobre os ombros de Robert

quando ele absorveu sua chuva até que todas suas forças a abandonaram, deixando-a fraca e

trêmula.

Aferrou-se a ele.

— Oh, meu Deus, Robert.

Quando o clímax se dissipou, Robert ficou em pé, estreitou-a entre seus braços e a

levou para cama. Tirou a colcha e a colocou sob os lençóis. Bel o olhou alarmada, pensando

que nesse momento ia aproveitar-se dela, mas ele se limitou a estender a mão para agarrar a

manta e tampá-la.

Sentou-se na beira da cama e se inclinou para beijá-la suavemente. Depois fechou os

olhos e apoiou sua fronte contra a dela. Bel sentiu a luta que se estava acontecendo em seu

poderoso corpo para conter o ardente desejo.

— O que estamos fazendo? — perguntou ele em um confuso sussurro.

— Não sei. — Bel o rodeou com seus braços. Ele pronunciou seu nome em um

suspiro, quase um gemido de desejo, e se inclinou para lhe beijar o pescoço.

— Sabia que me passaria isto, verdade? Sabia que não poderia resistir, que a única

coisa que tinha que fazer era esperar.

Passou-lhe os dedos pelo cabelo e fechou os olhos, ardentemente extasiada.

— Isso é bom, Robert? Está contente?

— Tanto como assustado. — Levantou as pestanas e a olhou fixamente nos olhos. —

Estive só muito tempo, mas quando estou com você... Quando estou com você, Bel, a terra

canta e as estrelas dançam, e não me odeio por ser alguém aborrecido.

Surpreendida, ela segurou seu querido rosto entre as mãos, sorrindo com os olhos

brilhantes de lágrimas.

— Oh, Robert, você nunca poderia me aborrecer. Quantas vezes tenho que lhe dizer

isso?

Ele se afastou com um fraco e triste sorriso, e seus olhos reluziram como um pôr do

sol sob suas longas pestanas negras.

“Quero-o — queria lhe dizer Bel. — Mudou minha vida.” Mas não se atreveu a fazê-

lo.

P á g i n a |128

Depois de soltar um último suspiro de reticência, Robert se levantou e abandonou a

cama de Bel.

Ela se endireitou apoiando-se nos cotovelos e desfrutou do efeito da luz do fogo

sobre as musculosas costas de Hawk.

— Aonde vai, amor?

— Vestir-me para a festa do Blücher. Vai sentir falta de mim?

— Terrivelmente.

Dedicou-lhe um meio sorriso, jogou a camisa, o colete e o lenço ao ombro, e se

dirigiu tranquilamente à porta.

— Robert.

Ele se virou e lhe lançou um olhar interrogativo enquanto estendia a mão em direção

à maçaneta da porta, as sombras cada vez mais profundas e as chamas faiscantes perfilavam

seu rosto sedutor.

Bel moveu silenciosamente os lábios em sinal de agradecimento e lhe lançou um

beijo.

Robert lhe fez uma reverência sorrindo sarcasticamente.

— A seu serviço, senhorita Hamilton. O prazer foi meu.

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ONZE

Pouco depois Hawk esperava impacientemente enquanto Knowles, seu valete, dava

os últimos retoques em seu lenço. Esteve lutando com sua consciência durante todo o

momento, perguntando-se por que não pagar o resto da dívida de Alfred Hamilton e tirar o

velho louco do cárcere. Quanto mais se interessava por Belinda, mais queria ajudá-la de

todas as formas possíveis.

Por um lado sabia que se liquidassem as dívidas de seu pai ganharia a simpatia dela

indefinidamente, mas tal perspectiva supunha sérios riscos. Bel tinha assinado o acordo

prometendo prestar ajuda, mas como podia assegurar-se Robert de que não o abandonaria e

renunciaria ao plano de apanhar ao Dolph assim que tivesse suficiente dinheiro para libertar

seu pai? Era conveniente fazer um gesto que demonstrasse abertamente como se sentia

atraído por ela? Além disso, tinha medo de que, ao pagar as dívidas de seu pai, abrisse um

perigoso precedente e ela acabasse recorrendo a Hawkscliffe e seus milhões cada vez que se

visse em um apuro.

Em último lugar, e talvez o mais sério, se o velho Hamilton se inteirasse de qual era a

verdadeira profissão de sua filha, podia ser que entrasse em razão e desempenhasse o papel

do pai ultrajado, e a separasse de Hawk. Ao pensar nisso descartou violentamente a ideia de

tirar Alfred do cárcere. Ninguém ia afastá-la dele.

— Muito bem, excelência — disse seu valete, depois de dar o último retoque ao nó

de seda branca, e a seguir acrescentou com malícia: — Algo assim deveria chamar a atenção

dela.

Hawk o olhou arqueando uma sobrancelha.

Knowles ocultou sua diversão de forma educada e fez uma reverência.

— Que passe uma esplêndida noite, senhor.

— Obrigado, Knowles. Estou bastante elegante, não é verdade? — acrescentou com

um amplo sorriso, e abandonou seus aposentos com passo resoluto, descendo para esperar

Belinda. Enquanto descia pela curva brilhante que formava a escada, escutou um som muito

estranho, um som que conhecia perfeitamente, mas que não ouvia desde há décadas: a risada

de meninos. Na realidade tinha um tom peculiar de travessura. Que diabos seria?

Assim que divisou a entrada de mármore se deteve e entreabriu os olhos,

assegurando-se de que não o enganava a vista. Ali, sob o lustre, havia dois meninos

inspecionando a antiga armadura que Henrique VIII tinha dado a um antepassado dele.

Puxavam as joias e deslizavam os dedos imundos ao longo da lâmina afiada da brilhante

espada.

— Uau...

— Note, poderia matar alguém!

— Bem — disse Hawk.

Os dois meninos soltaram um grito, deram a volta de repente e chocaram-se entre

eles, enquanto Hawk descia o resto dos degraus com a cabeça no alto e as mãos às costas,

observando-os com desagrado. Pensou que o mais provável era que fossem amigos de um

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de seus criados.

— Por favor, cavalheiros, isso não se deve tocar. É muito antigo. O que estão

fazendo fora das dependências dos criados?

Eles não responderam e ficaram olhando-o sobressaltados. Quando ele se aproximou,

esbugalharam os olhos.

Robert se ergueu por cima deles com os braços cruzados, deu uma olhada na

armadura e franziu o sobrecenho.

— Deixaram manchas por toda parte. Agora terão que poli-la outra vez.

— Sentimos muito — disse o moço mais alto, repentinamente decidido a aparentar

valentia.

— Quem são seus pais?

Falaram entre eles em voz baixa sobre aquela pergunta, e Hawk se recordou dos

gêmeos, seus irmãos do meio, Lucien e Damien. Quando meninos tinham criado uma

linguagem própria, e na atualidade parecia que podiam penetrar um na mente do outro.

— Cavalheiros, fiz-lhes uma pergunta. — Hawk se inclinou lentamente até situar-se

à altura de seus olhos.

— Oh, qual era? — perguntou o mais alto, coçando a cabeça.

— Quem é sua mãe e onde está?

Os moços deram de ombros. Hawk franziu o sobrecenho. O mais alto pareceu

encorajar-se enquanto ficava reto.

— É sua? — Fez um gesto com a cabeça em direção à armadura.

— Sim.

— A usou alguma vez?

Surpreso, Hawk se pôs a rir.

— Não.

— Por quê?

— Não tive ocasião. Além disso, sou muito alto.

— Eu poderia tentar?

— Não, você é muito baixo. Como entraram em minha casa, meninos?

— A senhorita Bel nos trouxe — soltou de sopetão o menor.

— A senhorita Hamilton?

O moço mais alto lançou ao Robert um olhar perspicaz.

— Então você é o ricaço?

Hawk o olhou sem compreender.

— De onde conhece a senhorita Hamilton?

— Antes ela nos dava laranjas.

— O que?

— Laranjas — explicou o irmão maior. — Dava-nos laranjas quando as vendia em

uma cesta.

— Agora já ninguém nos dá laranjas — disse o irmão pequeno com ar melancólico.

Bel desceu pela escada curva de mármore, maravilhosamente vestida para ir à festa

do general Blücher, com um vestido pérola. Levava um vistoso turbante com penas na

cabeça, e balançava no pulso enluvado sua bolsa adornada com pequenas perolas,

cantarolando uma canção em voz baixa. Então, ao chegar à metade da escada, ouviu Robert

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falar com os meninos.

Ficou paralisada.

Pegou o corrimão com uma mão e levou a outra ao estômago, sentindo que lhe

formava um nó de espanto ao ouvir como Tommy revelava aquela parte humilhante de seu

passado, uma parte que não queria que seu protetor descobrisse nem em mil anos.

Robert se agachou ante os meninos, de costas a ela.

— Vendia laranjas? — repetiu, mostrando-se muito surpreso. Aos olhos de um

homem elegante, uma vendedora ambulante era cem vezes mais desprezível que uma

mulher mundana.

Bel esfregou os olhos, envergonhada e logo os abriu e contemplou ao insólito trio,

sentindo-se apanhada. Antes que pudesse escapar, Andrew a viu e seus olhos se iluminaram.

— Senhorita Bel!

Os dois meninos deixaram Robert e puseram-se a correr para ela, subindo a escada

pesadamente. Tommy a abraçou ao redor dos quadris e Andrew lhe pegou a mão e puxou-a

para que visse a armadura, enquanto tagarelavam emocionados.

Robert ficou de pé lentamente, cruzou os braços e a observou com uma expressão

indecifrável.

Ao ver aquele olhar, Bel esteve a ponto de deixar-se levar pelo desespero. Justo

quando tudo parecia ir bem a sua vida... Justo quando Robert por fim estava começando a

vê-la como uma pessoa digna dele... Por que tinha que descobrir agora que aquela

concubina supostamente elegante era uma antiga vendedora de laranjas? Maldição! Não era

justo!

Enquanto isso, os meninos não deixavam de puxá-la.

— Tommy, vais me atirar pela escada! Solte-me!

Olhou para baixo impacientemente com a intenção de se livrar do abraço do menino,

só para descobrir que tinha pousado seus dedos imundos no vestido pérola.

— Maldita seja! — gritou em um tom ensurdecedor por cima das risadas dos moços.

— Sabe o quanto me custou este vestido? Danificaste-o! Agora terei que subir outra vez e

me trocar; chegaremos tarde à festa e nem sequer tenho vontade de ir!

— Meninos — ordenou Robert bruscamente-, venham aqui. — Estalou os dedos e

indicou o degrau inferior.

Os dois escaparam dela e obedeceram olhando Robert fixamente. A seguir lançaram

um olhar a Bel com ansiedade.

— Foi um acidente, senhorita Bel...

— Sei, sei — disse ela com mais suavidade, sentindo o desaponto que seguiu

indevidamente a seu arrebatamento. — Não se preocupe Tommy. Não pretendia gritar. —

Desejou que a terra a engolisse.

Com o rubor ainda nas faces, obrigou-se a olhar para Robert, temendo ver o

desagrado altivo que certamente acharia em seu olhar. Mas quando se atreveu a olhá-lo, a

única coisa que achou foi uma expressão paciente.

— Não temos por que ir. Quer ficar em casa?

“Em casa — pensou ela com tristeza. — É o lugar onde estou?” Robert se ocupou de

tudo e enviou os meninos com a cozinheira para que os vigiasse. Os pequenos não se

atreveram a desobedecê-lo. Aproximou-se lentamente de Bel e examinou os pequenos

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rastros digitais que tinha no vestido.

— Com certeza meu valete consegue tirá-las com vinho branco. E, se não,

compraremos outro.

Empregou um tom suave que desarmou Bel. Ela cobriu o rosto com as mãos e se

sentou no degrau sobre o qual tinha estado de pé.

Robert se sentou com cuidado no degrau de baixo e lhe fez uma carícia no joelho.

— Por que não me contou isso?

— Como ia fazê-lo? Não queria que soubesse até que ponto tive que descer? Tenho

meu orgulho, Robert. Tentei de tudo antes de levar esta vida, me acredite...

— Não refiro sobre as laranjas, querida. Isso não me importa. Por que não me disse

que havia trazido esses meninos?

Sua pergunta a surpreendeu. Ergueu a cabeça e o olhou com indecisão.

— Far-me-ei a única responsável por eles, Robert. Juro-lhe que não causarão nenhum

problema. Eu mesma limparei a armadura...

— Cale-se. De onde procedem?

— Só Deus sabe. Encontrei-os quando vendia laranjas, antes de me decidir a visitar

Harriette para ver se me contratava. Tentei cuidar deles. Hoje, quando os vi, tentei

matriculá-los em uma escola da caridade, mas o diretor não os admitiu. Trabalharão para

ganhar o alojamento, Robert, prometo-lhe isso. Sou a única pessoa adulta que conhecem.

São bons meninos, talvez um pouco peraltas, mas não têm aonde ir. Sinto que meu dever é

cuidar deles...

— E agora mesmo o meu é cuidar de você — disse ele, tomando a mão dela

docemente entre as suas.

Bel ficou olhando-o.

— Não vai me dizer que os expulse?

— É claro que não. Por que está tão alterada, Belinda? — Sua voz soava grave e

sossegada. — Dá-me a impressão de que a preocupa algo mais. O que não me contou?

Ela o olhou com desejo.

— Não quero que meu passado se interponha entre nós, Robert.

— Senhorita Hamilton — a repreendeu ele suavemente-, por casualidade eu gosto de

laranjas.

— De verdade?

Acariciou-lhe a face.

— O que acontece, céu? Confia em mim.

“Não posso”, pensou Bel, e lhe partiu o coração.

— Acaso não lhe prometi que nunca lhe falharia? O primeiro dia que fui vê-la não

queria me falar de Dolph, mas a protegi dele. Não queria que soubesse nada de Mick

Braden, mas estive ao seu lado quando o viu. Não queria que me inteirasse de que seu pai

estava no cárcere nem de que dava aulas na academia da senhora Hall, mas será que lhe

falhei quando me confessou cada uma dessas coisas?

— Não, sussurrou ela.

— Assustei-a alguma vez? Traí-a? Tenho feito zangar-se?

— Não.

— Estou do seu lado, Belinda. Não podemos acabar com os segredos?

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Bel acreditou que se ele não deixasse de olhá-la com tanta doçura e de lhe fazer

perguntas com aquela suave determinação, acabar-se-ia desmoronando.

— Só quero ajudar.

— Sei. E já me ajudou Robert. Mais do que pensa.

Acariciou-lhe a perna, seguindo com o olhar o percurso de sua mão.

— Tomara que me deixasse saber por que há tanta tristeza em seus olhos. Eu tento

afastá-la — disse-, mas sempre parece voltar.

Bel abaixou a cabeça, tratando de manter a compostura com todas suas forças. Não

sabia o quanto poderia aguentar aquele gentil cavalheirismo sem vir abaixo.

— Suponho que vi muitas coisas tristes — conseguiu dizer com rigidez.

— Como quais?

— Bom... — Mal podia falar devido ao nó que tinha na garganta. Procurou

mentalmente uma desculpa. — Esses meninos, por exemplo. Há centenas como eles que

vivem na mais absoluta pobreza.

De repente o olhou: era Hawkscliffe, um dos homens mais poderosos do Parlamento,

com a força e os recursos necessários para mudar as coisas em questões nas quais os simples

mortais como ela não podiam fazer nada. Era muito mais fácil pensar naqueles problemas

que nos seus próprios.

— Sim? — apressou-a Robert, que permanecia à espera.

Sua mão repousava ligeiramente na dele, mas nesse momento rodeou seus dedos e

olhou seus olhos castanhos aveludados.

— Se não se importa faltar a festa do general Blücher, há um lugar ao qual eu

gostaria de ir... Algo que eu gostaria de lhe mostrar esta noite... Embora creia que lhe

custará assimilá-lo.

— Do que se trata?

— Uma face da vida que com certeza não viu nunca. Esses meninos...

— Belinda, estamos falando de ti.

— Sim... Sei. — Baixou o olhar. — E lhe agradeço que se preocupe por mim e que

me apoie como o faz. É um dos melhores amigos que tive Robert. Meus problemas não são

nada comparados com os seus. Por favor, não me vai agradar nisto?

Ele a examinou e logo assentiu com ar de desconcerto.

— Se for o que deseja.

Bel se inclinou para ele e o beijou lentamente na face.

— Obrigada. Será melhor que tiremos estes trajes elegantes e ponhamos roupa

diárias. No lugar ao qual vamos há gente da idade de Andrew que lhe cortaria o pescoço

pela corrente do relógio.

— O que? — exclamou ele.

— O encontrarei aqui dentro de dez minutos — disse Bel, e subiu a escada a toda

pressa antes que ele pudesse lhe fazer mais perguntas difíceis.

Pouco depois Hawk estava amaldiçoando mentalmente sua boa disposição para

seguir adiante com aquele assunto. Avançavam montados a cavalo pelo escuro labirinto das

ruelas cobertas de porcaria que integravam o bairro de má morte do St. Giles. Não era lugar

para uma dama nem para um homem civilizado. Montado escarranchado sobre seu alto e

nervoso garanhão, Hawk se movia a passo rápido junto ao dócil cavalo castrado cinza da

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Belinda, examinando a rua e os edifícios desmantelados com uma mão na culatra de sua

pistola. William fechava a marcha, montado em um dos cavalos dos criados.

O fedor, a umidade e o almíscar do rio estagnado invadiam as ruelas próximas.

Nenhuma luz iluminava a implacável escuridão. As lojas tinham letreiros quebrados e

pendurados que rangiam com a brisa morna e janelas cobertas com grades. Na superfície

das ruas medievais se podiam ver buracos suficientemente profundos para deixar aleijado

um cavalo.

— Espero que tudo isto tenha algum sentido — resmungou Robert.

Sob seu etéreo véu para montar, o rosto de Belinda mostrava de novo a cativante

máscara da serenidade. Montada elegantemente à amazona, ela deteve seu cavalo puxando

ligeiramente as rédeas.

— Aí — murmurou ela, apontando um grande armazém com sua mão enluvada.

Hawk observou o lugar.

— Parece deserto.

— Tomara o estivesse. — Bel esporeou seu cavalo para que ficasse de novo em

movimento.

Hawk sacudiu a cabeça ante a imprudência da jovem e apressou seu cavalo com os

tornozelos para manter-se ao lado dela.

Bel se deteve outra vez do outro lado da rua, em frente do arruinado armazém, e

desmontou.

— O que está fazendo, Belinda?

— Vou entrar aí.

— Oh, não, não vai...

— William, meu cavalo — virou-se para o cavalariço.

— Sim, senhora. — O moço desmontou de um salto com uma expressão carrancuda

e pegou as rédeas do cavalo de Bel.

— Belinda!

— Viemos para isto, Robert. Deixe-me entrar primeiro.

— Não pode estar falando sério.

— Eles me conhecem. Chamá-lo-ei dentro de um momento, quando tiverem

compreendido que não é nenhuma ameaça.

— Belinda Hamilton, não vai entrar aí dentro. Volta para seu cavalo — ordenou

Robert, mas ela não lhe fez caso e, tirando o chapéu de montar de aba dura, apressou-se em

direção ao outro lado da rua.

Hawk já tinha saltado de seu cavalo e a seguia, amaldiçoando entre dentes, quando de

repente observou um movimento na penumbra, perto da porta do armazém. Tirou a pistola,

mas ante seus olhos apareceram umas pequenas sombras que começaram a rodear Belinda.

Deteve-se e ficou olhando fixamente.

Crianças.

Compreendeu que aquilo era um abrigo. Sabia da existência desses sinistros e

terríveis lugares, é claro, mas não tinha visto nenhum com seus próprios olhos.

Belinda se inclinou e saudou as pequenas e irregulares sombras que se recortavam

contra o muro. Várias delas foram a abraçá-la. Robert viu como ela lançava mão de sua

bolsa e lhes dava dinheiro. Observou-a, comovido pela elegância e a compaixão que

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mostrava em meio daquele submundo de miséria brutal.

Robert se sentiu invadido por uma crescente onda de tristeza enquanto contemplava

os meninos magros, receosos e necessitados que a rodeavam; todos eles ladrões em floração

e prostitutas, futura carne de canhão das forcas de lorde Eldon. Devido ao sombrio daquele

pensamento, sua preocupação pela segurança da Belinda aumentou ainda mais. Certamente

um rufião espreitava em algum lugar próximo junto com seus comparsas, sem dúvida

vândalos adultos e perigosos que estariam beneficiando-se claramente da situação. Só Deus

sabia a classe de criminosos que rondavam por aquele bairro de malfeitores. Alegrava-se de

ter levado suas pistolas e de ter armado também William. Os três teriam sorte se eles não

acabassem a noite flutuando de barriga para baixo no Tâmisa.

Justo então, Belinda lhe fez gestos para que se aproximasse. Robert guardou a arma

no coldre, olhou por cima do ombro para assegurar-se de que William não tinha problemas

com seu fogoso cavalo e se aproximou, sentindo-se como um imponente Gulliver no país

dos liliputienses, enquanto os silenciosos e malcheirosos meninos se afastavam de seu

caminho.

Apareceu à porta do armazém ante a insistência de Belinda. Ao percorrer com o olhar

a massa de jovens que havia no interior, o horror se apoderou dele.

Quando levou Bel para fora, a comoção o tinha deixado sem palavras.

— Está bem? — perguntou ela enquanto retornavam para seus cavalos.

Robert assentiu.

— E você?

— Oh, já estou acostumada. — Ficou olhando por um instante um beco próximo que

se abria em meio da absoluta escuridão como um passadiço ao inferno, e se sacudiu com ar

ausente. — Tomara não me tivessem visto assim. Dou mal exemplo. — E se afastou depois

de pôr de novo seu chapéu de montar.

Ele a seguiu até o cavalo e a levantou enquanto William tentava acalmar o nervoso

garanhão. Em poucos minutos se achavam saindo do labirinto de St. Giles.

— Terá que se fazer algo por eles — disse Hawk em voz calma.

Belinda o olhou como se pudesse ver sua própria alma.

— Sabia que sentiria o mesmo que sinto eu. Há um pequeno número de organizações

beneficentes que oferecem ajuda a esses meninos, como a Sociedade Filantrópica e a

Sociedade de Ajuda aos Indigentes, mas, a julgar pelo que vi, é como tentar deter uma

inundação com a rolha de uma garrafa.

Robert salvou o espaço que os separava e estirando o braço, lhe pegou a mão.

Lançou-lhe um olhar de preocupação sob seu véu.

— Nunca me pareceu mais formosa que neste preciso instante — sussurrou ele. —

Farei tudo o que estiver em minha mão para ajudá-los, Belinda.

— Sabia que podia contar com você. — Apertou a mão de Hawk e logo a soltou para

segurar seu cavalo.

Quando chegaram a Knight House, Belinda lhe deu um beijo na face e foi para cama

murmurando que estava esgotada.

Entristecido pela perversidade do mundo, Hawk entrou em sua biblioteca, roçou o

piano ao passar a caminho de sua escrivaninha e se sentou para lançar por escrito seus

pensamentos e perguntas com vistas a uma futura investigação sobre os abrigos, o crime

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juvenil e a enfermidade oculta que infectava Londres a um tiro de pedra de Carlton House,

Buckingham Palace e todas as grandes casas da aristocracia como a sua.

Uma e outra vez ele se surpreendeu com o olhar perdido, enquanto sua mente voltava

para Belinda. Nunca teria pensado que diria aquilo, mas estava começando a compreender

que sua decisão de converter-se em cortesã não era devida à avareza mercenária e vaidade,

como ele tinha dado como certo na primeira vez que a viu. Embora a culpa não tivesse sido

dela, mas sim da incompetência de seu pai e das artimanhas de Dolph, a formal senhorita

Hamilton se viu degradada ao nível de uma vendedora ambulante. Que humilhação devia

haver sentido, pensou ele, morto de vergonha ao recordar as indiretas que lhe tinha lançado

em relação a suas diversas ocupações.

Ele não tinha compreendido que sua decisão tinha sido uma questão de

sobrevivência. Nessa noite Robert tinha vislumbrado o significado daquela palavra. E em

nenhum momento ela tinha perdido sua capacidade para interessar-se e preocupar-se com

outros.

Deixou sua pena e apoiou a cabeça entre as mãos, sentindo-se como um condenado

hipócrita. Enquanto ele se dedicava a olhá-la por cima do ombro, tachando-a de prostituta, o

coração de Bel transbordava amor para outros e conservava uma virtude serena, luminosa e

nunca reconhecida.

“Por Deus, deixa de tolices”, ordenou-lhe de repente a voz de sua consciência, de um

modo que recordava grandemente o tom frio e entrecortado que tinha empregado seu pai em

seus últimos dias de vida. De fato, quase podia vislumbrar o fantasma do oitavo duque

olhando-o com o sobrecenho franzido. “Isto é absurdo — parecia dizer. — Você, um

Hawkscliffe, está se expondo ao ridículo com uma mundana. Deixa de idealizar essa mulher

e de te atormentar. Recupera o controle antes que se converta em um completo idiota,

porque isso é exatamente o que acontecerá se seguir adiante com isto.” A visão tingida de

culpa de seu pai se desvaneceu ao ouvir a badalada do relógio de seu avô, deixando Hawk a

sós com o temor aos sentimentos que Belinda despertava nele.

Não havia resolvido nada. A luta entre seu coração e sua cabeça se reatou com

renovada intensidade. Inclusive agora ansiava reunir-se com ela. Ficou olhando, absorto, a

chama que brotava da vela.

“Não posso usá-la como isca — pensou. — Mas tenho que fazê-lo.” E soube que o

faria. Franziu os lábios em uma careta de amargura. Depois de tudo, sua única opção

consistia em ajoelhar-se aos pés da estrela das cortesãs e lhe confessar que se converteu em

seu escravo.

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DOZE

A carruagem do correio parava diariamente na suave e ondulada campina do condado

do Leicester, à altura do pitoresco mercado de Melton Mowbray. Um moço robusto a cargo

de uma importante responsabilidade saudava o tranquilo condutor da carruagem do correio

todos os dias e recolhia os envios do governo que tinham sido franqueados para seu patrão,

junto com o exemplar do jornal London Time.

O moço empreendia então o trajeto de uma hora de duração pela verde e agradável

campina, agradecendo os caminhos sombreados, pois o sol brilhante esquentava com força.

Ao final, o telhado de ardósia de quatro águas da majestosa casa senhoril se erguia por cima

da encosta que tinha ante ele. Ao chegar ao alto da encosta o moço se deteve para recuperar

o fôlego.

A brisa encrespava seu cabelo despenteado enquanto contemplava a casa senhoril de

tijolo vermelho, abrigada por colinas onduladas, com seu lago brilhante sob o céu azul de

verão. Entretanto, não se deteve muito já que o conde de Coldfell estaria esperando o Time.

Pendurando no ombro a carteira de couro com a correspondência e o periódico,

entreabriu os olhos para proteger-se da luz do sol. Podia ver ao longe os pedreiros e

carpinteiros em cima dos andaimes, arrumando a ala leste da casa que se incendiara antes

que a pobre e bonita condessa ruiva se afogasse.

“Pobre senhor”, pensou o moço, enquanto divisava como sua senhoria saía coxeando

apoiado em sua bengala para inspecionar os progressos dos trabalhadores.

O moço realizou o resto do trajeto até seu destino andando a trote curto, levando sua

preciosa carga. Quando se aproximou dele, o amável conde ancião lhe revolveu os cabelos

com um sorriso e pegou o jornal.

Coldfell se meteu em seu estúdio com o exemplar do dia do Time sob o braço,

fechou a porta atrás dele e apoiou sua bengala contra a parede. Com a boca contraída de

ansiedade, pôs o monóculo e examinou o jornal em busca de alguma noticia sobre a morte

de Dolph. Depois de vários minutos de busca conscienciosa, os olhos de Coldfell se

entreabriram.

Nada.

Ficou em pé com o cenho franzido e o monóculo lhe caiu do olho.

— Maldição, Hawkscliffe, o que está esperando?

Robert tinha prometido que vingaria a morte de Lucy e que destruiria Dolph, mas

desde que Coldfell partiu para a campina o duque não tinha feito mais que passear por

Londres pelo braço de sua jovem e deslumbrante acompanhante. Podia entender

perfeitamente que Hawkscliffe fosse um homem viril e que talvez necessitasse o consolo de

uma mulher depois da morte de Lucy. Entretanto, não lhe agradava a ideia. Estava claro que

o duque necessitava que lhe recordassem de sua missão.

Coldfell pensava retornar à cidade ao cabo de uns dias para ir ao serão tory que a

anfitriã de Hawkscliffe ia celebrar em nome de seu protetor. Então veria por si mesmo que

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demônios havia entre aquela cortesã e o homem destinado a ser seu genro.

À medida que avançava o verão, Dolph Breckinridge se viu inundado por um

abatimento e uma tristeza absolutos, cuja existência desconhecia até então.

Só tinha vontade de sentar-se no mirante do clube e contemplar com amargura o

desfile da Vitória, que parecia zombar de sua derrota. “Já não quererá ser minha esposa”.

Bebeu de um gole seu copo de cerveja e partiu, e tentou evitar a inquietação que

aninhava em seu peito conduzindo um momento. Reduziu a velocidade para olhar

lascivamente pela janela da loja onde tinha visto Belinda provar seus bonitos vestidos.

“Odeio-a. Quero-a. Necessito-a.” Maldita seja, a que classe de intercâmbio se referia

Hawkscliffe naquela noite no Vauxhall?

Lançou a bituca de seu charuto à rua e fez estalar novamente as rédeas de seu

faetonte com um sorriso desdenhoso. Avançou a toda velocidade pelas ruas de Londres

como se quisesse deixar para trás sua obsessão. Por que não podia esquecê-la? Não entendia

por que ela o atormentava desse modo e fazia com que se zangasse tanto. Ou era o destino,

ou muito temia que houvesse algo que não funcionava bem em sua cabeça.

Foi a todos os lugares onde costumava encontrá-la vendendo laranjas e ao piso

sombrio de uma das habitações de aluguel onde se alojara.

Abandonou os arredores da cidade e se dirigiu para o norte em direção a Islington,

até que chegou ao sombreado caminho ladeado de árvores que conduzia à Academia para

Jovens Damas da senhora Hall, o lugar onde tinha trabalhado Belinda, já que tinha dado

com uma forma de vingar-se de Hawkscliffe, se finalmente se atrevesse.

A academia se erguia na vizinhança de um pequeno e pitoresco povoado, embora

afastada e distante como uma solteira enriquecida à hora do chá. Depois de ter ido ver Bel

todos os dias durante um mês, Dolph conhecia o horário diário da escola, assim como a

distribuição dos jardins.

A imponente academia de tijolo estava separada do grupo de lojas e do pub por uma

extensão de campo verde, uns antigos campos comunais nos quais se plantaram flores e

tinham acabado convertidos em um parque. No meio da grama havia um lago perfeitamente

cuidado com um bando de gansos, alguns patos e um esplêndido cisne que contemplava

vaidosamente seu reflexo. As estudantes gostavam de dar de comer às aves aquáticas.

Dolph deteve seu faetonte ao lado do caminho, saltou da carruagem e deixou o

veículo aos cuidados de seu temeroso cavalariço. Olhou seu relógio de bolso enquanto

cruzava a rua despreocupadamente em direção à padaria. Ali comprou uma barra de pão e a

seguir saiu de novo ao exterior, sob o sol luminoso, caminhando para o lago para dar de

comer aos patos com o ar de homem que não se metia onde não o chamavam.

Ao inclinar-se para lançar miolos às aves ouviu, bem a tempo, o som do sino da

academia a suas costas. Um tênue sorriso apareceu em seus lábios. Nesse dia ia atrair a sua

presa o suficiente para que se aproximasse para falar com ele. Intuía-o.

Ouviu como as alunas riam entre dentes e conversavam enquanto saíam em fila da

exclusiva academia, de duas em duas, para desfrutar de seu passeio diário. Olhou

lentamente por cima do ombro em direção às moças.

Caminhando com elegante decoro e vestidas de branco virginal, as estudantes

avançavam pelo caminho que conduzia aos campos comunais onde costumavam entreter-se.

Havia umas trinta no total. Dolph as percorreu com seus olhos peritos, mas seu olhar se

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pousou em uma jovem beleza que permanecia separada do grupo como o cisne entre os

patos.

Lady Jacinda Knight: a querida irmã pequena de Hawkscliffe.

Ela constituía o meio perfeito para mostrar a Hawkscliffe que não se brincava com

Dolph Breckinridge.

Enquanto as outras garotas tinham chapéus ou levavam o cabelo recolhido em tranças

ou encaracolado, Jacinda tinha uma cabeleira de cabelo anelado cor de mel que flutuava

como uma nuvem ao redor de seu rosto com faces de maçã. Era uma jovem travessa,

atrevida e precoce, com as maçãs do rosto altas e brilhantes olhos castanhos de uma sensual

forma de amêndoa. Ria mais frequentemente e de forma mais sonora que qualquer das

demais garotas, estava sempre em movimento, e parecia dançar quando andava. Tinha ao

menos dezesseis anos, dezessete quando muito, e seu corpo possuía uma elegância graciosa

digna de uma ninfa que se adequava perfeitamente a sua conduta animada e travessa.

Era o que Dolph necessitava.

E, enquanto aguardava a que se aproximasse com a perita paciência de um caçador,

sentiu algo mais que o despertar do desejo. A excitação palpitava em seu interior. A brisa

levou até ele uns risinhos nervosos, e percebeu a emoção da moça ao descobrir que seu

admirador havia retornado. Mas como iriam falar um com o outro?

Ele esperava aproveitar-se de sua ingenuidade juvenil, mas sabia que ela tinha sido

proibida de dirigir-se a um homem sem que antes lhe tivesse sido apresentado formalmente.

Ele tampouco podia lhe dirigir a palavra sem infringir as normas do decoro.

Lady Jacinda se aproximou pelo atalho com sua companheira, uma garota insossa

com o cabelo castanho preso em um coque e que parecia resignada ao celibato. Jacinda

levava uma sombrinha cheia de babados e andava com a delicadeza de uma potranca

vaidosa em uma praça de armas ante a proximidade de um garanhão, enquanto sua anódina

amiga lia um livro em voz alta.

Em vista dos sedutores e coquetes olhares que a jovem lhe lançava, Dolph considerou

que ela estava mais que ansiosa por ser seduzida. Podia imaginar perfeitamente o muito que

devia atormentar aos moços de sua idade, mas certamente não tinha recebido antes

semelhantes olhares por parte de um homem, um homem que sabia como satisfazer os

florescentes desejos que sem dúvida invadiam seu corpo adolescente. Tudo apontava que a

jovem tinha uma natureza luxuriosa. Além de tudo, era a única filha da prostituta

Hawkscliffe original.

Quando Jacinda lhe lançou outro olhar furtivo, ele molhou os lábios e lhe sorriu.

Ela agitou os cachos e afastou a vista ao mesmo tempo em que se ruborizava. Sua

amiga com aspecto de solteirona seguiu seu olhar e imediatamente franziu o sobrecenho,

com o rosto gasto e reprobatorio de uma preceptora. Falaram em voz baixa. Dolph sorriu

para si mesmo. Ocorreu-lhe que quando conseguisse estar a sós com ela, Jacinda talvez

gostasse de dar uma olhada em suas cicatrizes. As mulheres adoravam.

Partiu uns pedaços de pão e os atirou aos patos, sentindo os olhares das moças

pousados sobre ele. De repente, em um abrir e fechar de olhos, lady Jacinda demonstrou que

tinha herdado o dom de sua mãe para o flerte. Já fosse devido ao engenho feminino ou à

intervenção de uma fêmea ainda mais coquete que ela, a mãe natureza, a ligeira sombrinha

de seda da Jacinda escorregou de sua mão enluvada, foi arrastada por uma rajada de ar igual

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a um cometa, e aterrissou no meio do lago.

Dolph deu a volta justo quando ela punha-se a correr em direção à borda do lago, em

meio dos ruidosos patos. Jacinda patinou e se deteve junto a ele.

— Oh, não! — gritou a jovem, levando-as mãos às faces como Sarah Siddons no

cenário do Covent Garden.

Dolph esteve a ponto de cair a seus pés, rendido ante aquele gesto.

— Senhorita — disse com uma humilde reverencia, contendo a risada-, me permita.

— Senhor, eu não posso abusar de sua amabilidade...

Mas Dolph tirou a jaqueta com um sorriso galante e começou a meter-se na água para

recuperar o caro objeto. Com o corpo submerso na água fria até as coxas, estendeu a mão e

pegou a sombrinha, ocultando sua irritação por ter estragado umas botas que lhe haviam

custado setenta guinéos. Vingar-se de Hawkscliffe valeria a pena, disse-se. Retornou à

margem, onde sua pequena presa o esperava radiante e ruborizada, enquanto o vento agitava

seus cachos dourados.

— Receio que ficou imprestável — disse, saindo do lodo e lhe estendendo a

sombrinha.

Uma cascata de risadas entrecortadas brotou dos lábios dela.

— Obrigada, senhor...

— Sir Dolph Breckinridge, a seu serviço, mademoiselle.

— Olá, eu sou Jacinda — sussurrou, dando uma olhada por cima do ombro.

Sua amiga permanecia afastada com o sobrecenho franzido. Uma professora com

avental avançava para elas.

— É linda — sussurrou ele. — Posso lhe escrever?

Jacinda arregalou os olhos, radiante de emoção.

— Acredito que não é o correto!

— Tampouco o é as senhoritas atirarem suas sombrinhas aos lagos— zombou Dolph

sutilmente. — Tanto lhe agrada a correção?

— Jacinda — avisou sua companheira-, a senhorita Alverston está vindo!

— Entretenha-a, Lizzie — replicou ela por cima do ombro. — Gosta de passear de

carruagem? Deve dar uma volta comigo.

— Sir Dolph! — exclamou ela, mostrando-se escandalizada e incrivelmente ofegante

ao mesmo tempo.

— Ensiná-la-ei a conduzir meu faetonte. Não gostaria? Ensinarei tudo — sussurrou,

olhando seus lábios rosados.

— Lady Jacinda! Deixa de incomodar a esse cavalheiro agora mesmo! — chiou a

monitora ao chegar junto a elas.

— Caiu-lhe a sombrinha, senhorita Alverston — tentou explicar a companheira com

aspecto de solteirona.

Jacinda não prestou atenção a nenhuma das duas e ficou olhando Dolph, encantada

ante as sedutoras palavras que tinha pronunciado, com seus grandes e aveludados olhos

castanhos muito abertos.

A mulher se aproximou e a pegou pelo pulso.

— Bom dia, senhor, isto é uma propriedade privada. Terá que ler o jornal em outra

parte.

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— Oh, não sabia, sinto muito — disse ele com suavidade, olhando à mulher com

desprezo.

— Obrigada por recuperar minha sombrinha — afirmou Jacinda enquanto a

professora a puxava pelo pulso, e a seguir a jovem beleza voltou e começou a mover-se para

não ficar atrás.

Entretanto, sua prudente companheira, a que ela tinha chamado Lizzie, deteve-se e

olhou Dolph com os braços na cintura.

— Lembro-me de você — lhe advertiu Lizzie. — É o homem cruel que fez com que

despedissem nossa professora favorita. Será melhor que não volte por aqui!

— E o que vai fazer você para evitá-lo?

— Denunciarei!

— Meu Deus, eu terei que suportar o sermão da diretora.

— Não é a ela a quem contarei... Grosseiro. O direi aos irmãos de lady Jacinda... Aos

cinco! E o farão em picadinho!

— Lizzie — gritou alguém.

— Já vou!

— Mais vale que tenha a boca fechada — resmungou Dolph.

— E mais vale que você não se aproxime de minha melhor amiga — disse ela em

tom mal-humorado, e deu meia volta, voltando correndo à escola.

Dolph zombou dela enquanto via como partia, consciente de que seus planos

provavelmente iriam ser frustrados.

Por muito doce que aquela vingança pudesse vir a ser, perseguir Jacinda Knight era

um ato suicida. Hawkscliffe só já era um inimigo suficientemente importante, não queria

nem pensar o que seria ficar mal com o bandido do Jack ou com Damien, o herói de guerra

que certamente retornaria logo.

Cuspiu sobre a grama de cor esmeralda e voltou para faetonte com passo irado.

Talvez não fosse imparcial, pensou Hawk, mas enquanto a música da orquestra

vibrava através do salão Argyle na noite do baile das cortesãs, decidiu com considerável

orgulho que sua anfitriã era de longe a mulher mais formosa do lugar. Um deslumbrante

vestido azul claro cobria suas esbeltas curvas e deixava à vista uma porção tão generosa de

decote que fazia que ao Robert lhe fizesse a boca água. Teria gostado de vê-la sem nada à

exceção daquela gargantilha de diamantes e lápis lázulis que brilhava em seu pescoço.

Havia tornado a gastar uma dinheirama com ela e a tinha surpreendido com aquele

presente antes da festa. Quando Hawk se deu conta de que estava consumindo-se

rapidamente naquela loucura e de que nem sequer lhe importava, deixou escapar um suspiro

de arrependimento. Só de vê-la lhe levantaram os ânimos.

Bel estava conversando com três das Quatro Estupendas, animando a festa para

diversão de Robert, e deslumbrando a todo o que se cruzava com ela. Parecia que tinha um

fulgor dourado ao seu redor que fazia que todo mundo se dirigisse para ela e partisse

sorrindo... Sobretudo se essas pessoas eram homens, pensou Hawk, que começava a

impacientar-se com o círculo social de Bel. Queria que voltasse para seu lado, que era onde

ela devia estar. Que Deus o perdoasse, mas estava louco por ela.

Agitou seu brandy com o sobrecenho franzido e deixou a copita no bar, perguntando-

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se se acabaria tão obcecado com aquela mulher como Dolph. Com o olhar cravado nela,

avançou resolutamente entre a multidão respondendo mecanicamente às saudações de seus

conhecidos. Não fez o menor caso da vistosa festa que tinha lugar ao seu redor; toda a sua

atenção estava centrada nela. Histórias picantes, gargalhadas roucas, saltos, beijos e

carinhos descarados aconteciam por toda parte. As cortesãs davam permissão aos homens

para que se comportassem mal.

Belinda viu que ele se aproximava e seus olhos resplandeceram de tal forma que seu

brilho obscureceu o brilho das joias. Um sorriso cativante apareceu em seus lábios. Robert

estava hipnotizado.

Sustentou-lhe o olhar enquanto ele atravessava o grupo de homens que a rodeavam.

O coração de Hawk se acendeu assim que a tocou. Puxou-a pela mão olhando-a com

encantamento e a conduziu para a pista de dança, alheio aos protestos dos jovens que tinham

estado lhe pedindo uma dança. Persuadiu-a com um olhar leve e íntimo e a introduziu no

minueto. Nenhum dos dois alterou seu olhar desafiante durante a dança. Hawk esteve

pendente de todos os movimentos de Bel, aspirando a fragrância de seu perfume cada vez

que ela passava junto a ele seguindo os passos da dança. Ela desceu o queixo e lhe lançou

um olhar cativante por cima do ombro ao passar a seu lado. Robert estendeu o braço e a

deteve lhe pondo uma mão na cintura. Belinda o olhou em atitude dúbia.

Deixaram de dançar, embora o minueto continuasse. Olharam-se um ao outro a

escassos centímetros de distância, imóveis, sem nem sequer beijar-se, como as figurinhas de

porcelana de um casal de amantes. Robert podia ouvir o pulsar do sangue em seus ouvidos.

E então, sob os alegres sons da orquestra, ouviu outra melodia no interior de seu coração,

livre, selvagem e doce como o canto de um rouxinol.

Belinda o olhou fixamente com os lábios ligeiramente entreabertos e os olhos

brilhantes de assombro, como se ela também o ouvisse.

Então ele soube. Agarrou-lhe a mão, tremendo por dentro com um temor reverencial.

Era inútil. O impossível tinha acontecido. Estava apaixonado por ela.

Bel não sabia o que estava acontecendo. Seu protetor a olhava fixamente como se

tivesse sido alcançado por um cometa chamejante. Estava a ponto de lhe perguntar se estava

bem, quando Harriette se aproximou deles e enlaçou alegremente seu braço no de Bel.

— Excelência, eu sinto muito, mas tenho que levar isso um momento. A trarei em um

instante. Bel se for amável, há alguém que quer vê-la...

— Não, disse Robert com voz áspera, agarrando Bel com força pelo pulso.

Harriette e Bel se viraram surpreendidas. Ele pareceu perceber então a descortesia de

sua conduta.

Harriette se pôs a rir e o golpeou suavemente no braço com o leque.

— Comporte-se bem, Hawkscliffe. Bel está aqui para entreter ao pessoal, já sabe.

Robert soltou a mão de Bel e a olhou de forma implorante.

— Ela pode fazer o que lhe pareça correto, disso tenho certeza.

Bel franziu o sobrecenho.

— Encontra-se bem?

— Estou perfeitamente — sussurrou ele.

— Apresse-se, menina. É urgente. — Harriette começou a puxá-la.

Bel a seguiu com passo ligeiro, mas olhou por cima do ombro em direção a Robert

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enquanto Harriette puxava-a. Ele seguia olhando-a, com seus olhos escuros brilhando

intensamente.

— Vamos, depressa! Não imagina quem quer vê-la. Morro de inveja.

— Quem é?

— O czar Alexandre.

Bel ficou boquiaberta, parou e soltou sua mão.

— Está de brincadeira.

— Não olhe agora, está na tribuna com seu séquito. Viu-te entre as pessoas — disse

Harriette chiando de alegria.

Bel ergueu a vista em direção à tribuna e percebeu movimento, mas a gente situada

ante o corrimão estava dispersando-se.

— O que... O que quer?

— O que você acha, querida? Chamaste-lhe a atenção. Espero que seja serviçal.

— Não!

— Não? — Harriette a levou a um lado, virou-se para ela e colocou os braços na

cintura de forma agressiva. — Como não?

— Vim com o Hawkscliffe.

— Mas o que lhe passa?

— Nada...

— Bel, insensata, quantas vezes lhe adverti sobre isso?

— Não sei do que me está falando.

— Está apaixonada por ele.

— Não, não o estou — replicou Bel, embora pudesse sentir como lhe acendiam as

faces.

— Sim, está. Perdeu o jogo.

— Não!

— De verdade? Vá, me alegro de ouvi-lo, porque agora mesmo o czar de todas a

Rússia está esperando para levá-la para cama. Vamos. Não quero que o ofenda e me ponha

em evidência. — Harriette a pegou pelo pulso e começou a puxá-la em direção à escada,

mas Bel firmou os pés no chão e se negou a ceder o mínimo.

— Não!

— Não pode dizer que não, é uma cortesã — exclamou Harriette.

— Eu escolho meus amantes. Não o quero.

— Não seja estúpida! É o czar! Não é alguém repugnante. É muito bonito. Não o

viu?

— Sim, vi-o, mas não vou deixar Robert só toda a noite.

— Mandarei alguém para que o entretenha...

— Nem lhe ocorra — lhe advertiu ela.

— Belinda Hamilton, não pode rechaçar ao czar da Rússia. Faz isso pela Inglaterra.

— Por favor! Se for um cavalheiro como todo mundo diz, entenderá.

— Não posso acreditar. Está desperdiçando uma oportunidade única na vida! Se o

tratar bem, quem sabe até onde pode chegar. É um imperador, Bel. Não seja estúpida!

— Se tanto a impressiona leve ele à cama, Harrie! — soltou-se, virou e se afastou a

grandes passos sobre suas pernas trêmulas.

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— Puta ingrata e arrogante! Como se atreve a me pôr neste compromisso depois de

tudo o que tenho feito por você?

— Paguei-lhe vinte por cento em troca de tudo o que tem feito por mim, Harrie,

assim me desculpe se me negar a me arrastar.

— E o que supõe que vou dizer ao czar?

— Lhe diga que me sinto adulada, mas que devo lealdade ao Hawkscliffe. Parto para

casa.

— Knight House não é sua casa, estúpida. Vai ter que aprendê-lo a base de estrondos.

Ali não é mais que uma criada.

Bel se apressou entre a multidão enquanto a advertência de Harriette ressoava ainda

em seus ouvidos. Estava desesperada por ver o Robert. Rezou para que não estivesse

zangado por ter permitido que Harriette a levasse a força. O que significava o olhar que lhe

tinha lançado? Abriu passagem entre as pessoas e de repente se achou cara a cara com ele.

Seus olhos escuros brilhavam de raiva e de dor. Bel se aproximou dele e lhe tocou o

peito em uma silenciosa súplica. Pegou-lhe o queixo, inclinou-lhe bruscamente a cabeça

para trás e procurou seus olhos.

— O que acontece? Mudou de opinião? — disse com um grunhido.

Sem deixar de tremer, Bel lhe rodeou o pescoço com os braços, atraiu-o para ela e o

beijou em plena boca. Ele a abraçou pela cintura e a beijou com um ardente e luxurioso

desenfreio no meio do salão de baile, reclamando-a com uma paixão quase violenta.

Permaneceram alheios aos gritos roucos e os assobios da gente que os rodeava.

Ninguém reparou em seu furioso desespero, e todos tomaram aquilo como brincadeira, mas

quando Bel deslizou os dedos entre o cabelo de Robert sentia um desejo agônico, enquanto

abria cada vez mais a boca para receber um beijo aceso e avassalador.

Podia intuir sua verdadeira intenção: Ensinar-lhe uma lição, ensinar-lhe que pertencia

a ele por inteiro. Ela só queria render-se.

Desejou com atrevimento que o czar e seu séquito e Harriette estivessem olhando.

Deixou de beijá-lo, mas segurou o rosto de Robert entre suas trêmulas mãos e apertou seu

antebraço contra o dele.

— Me leve para casa — disse Bel em voz baixa.

Não foi preciso que o repetisse. Robert a conduziu para o exterior do salão Argyle,

em direção a sua carruagem.

Ela mal reparou na rapidez com que o cocheiro e os cavalariços se colocaram em

seus postos. Quando Robert e ela estiveram dentro, desceram as persianas e se fundiram em

um abraço enquanto a carruagem os levava suavemente pela cidade escura em direção ao

Green Park.

Ele se recostou contra o assento de couro marfim. Apalparam-se e acariciaram um ao

outro, saboreando-se e tocando-se, manuseando-se e agasalhando-se, e não deixaram de

beijar-se durante todo o tempo como se não se cansassem disso. Quando Robert se

endireitou e sentou Bel escarranchada sobre ele com suas mãos ardentes e trêmulas, a

carruagem se inundou do som de seus arquejos e do rangido dos assentos de couro.

— Levei toda a noite desejando fazer isto. Dê-me esses deliciosos... — Abriu a parte

dianteira de sua blusa rasgando-a, deixou os seios de Bel descobertos e afundou sua cabeça

entre eles. — Mmm. Deus, eu poderia devorá-la — gemeu, enquanto sua boca quente e

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úmida apanhava um mamilo.

Bel ofegou e a seguir soltou uma gargalhada grave e entrecortada de prazer.

Enquanto lhe chupava o peito, desceu-lhe o decote rasgado do vestido acariciando-a

por toda parte.

Ela inclinou a cabeça para trás e deslizou os dedos pelo cabelo negro azeviche do

Robert, enquanto ele se movia para degustar seu outro peito. Sob a saia, as mãos de Hawk

subiram por suas coxas, separadas em um lascivo convite sobre seu regaço.

— Mmm, não leva anáguas — disse ele ofegando.

Bel fechou os olhos e sorriu embriagada, quando Robert deslizou os dedos entre suas

pernas. Acariciou-a sem deixar de beijá-la no pescoço, até que ela pensou que ia

enlouquecer de desejo. Mas quando a levou ao limite da paixão se deteve. Bel abriu os olhos

lentamente quando ele a levantou e a pousou sobre o assento da frente. Olhando-a fixamente

com um meio sorriso escuro e malicioso, Robert a empurrou suavemente contra o couro

luxuoso e ficou de joelhos.

— Robert...

— Desfrute — sussurrou. — Eu sei que vou desfrutar.

E, com um suave gemido, Bel fechou os olhos e se entregou a aquele sensual

presente, enroscando os dedos em seu sedoso cabelo.

Em pouco tempo tinha os pés apoiados contra o assento de frente e o vestido

recolhido ao redor dos quadris, segurando as correias de couro, enquanto Robert a tomava

com os dedos e a devorava com a língua. Bel ergueu os quadris e começou a mover-se com

ele. Todas as suas inibições se evaporaram com o calor úmido daquela noite de verão.

Robert aumentou o ritmo adaptando-o ao desejo dela e a ergueu a novas cotas de êxtase

sensual.

De repente se deteve agitado, e levou a mão às calças, enquanto seu queixo barbeado

reluzia na escuridão iluminada pela lua.

— Tenho que a fazer minha. Agora.

Bel sentiu imediatamente que um calafrio de pânico percorria todo seu ser. Aquilo

não. Não estava preparada. Pousou sua mão no peito do Robert com a intenção de refreá-lo.

Estremeceu-se ao rechaçá-lo, mas rezou para que não se zangasse.

— Querido, na carruagem não. Não na nossa primeira vez, por favor.

Ele jogou atrás a cabeça e deixou escapar um gemido de frustração, angustiado.

— Oh, meu céu — sussurrou Bel, rodeando-o com as pernas enquanto deslizava uma

mão por seu corpo e acariciava a dura protuberância que se marcava em suas calças justas.

— Posso excelência? — perguntou com um olhar coquete. Ao ouvir o grunhido

grave e lúbrico de desejo do duque, empurrou-o contra o assento e se fez encarregada da

situação.

Quando a carruagem se deteve em frente de Knight House, Robert e ela saíram

tratando de recuperar um mínimo de dignidade.

No momento em que o lacaio abriu a porta da carruagem, um aroma de sexo emanou

de seu interior. Deram-se prazer um ao outro de forma apaixonada, e o clímax de Robert

tinha sido explosivo.

Ruborizada e contendo uma risada nervosa, Bel não pôde olhar aos criados no

caminho para a casa. Tinha certeza de que os cavalariços e até os cavalos sabiam o que

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tinham estado fazendo durante o trajeto.

Com os sapatos em uma mão e a bolsa na outra, conseguiu entrar na casa com a

cabeça erguida, perfeitamente consciente de que se achava em um estado de desalinho

absoluto, com um rasgão no meio do decote e as faces coradas. Entretanto, experimentava

uma sensação maravilhosa por todo o corpo, e morria de vontade de ir dormir.

Robert se achava em um estado um tanto pior. Com o lenço solto e a camisa aberta à

altura do peito, tinha um aspecto desalinhado e satisfeito, um tanto selvagem e bastante

tosco. Permaneceu em silêncio enquanto subia junto dela a escada em curva. Os degraus de

mármore tinham um toque frio sob os pés de Bel metidos em meias.

Ao chegarem acima se detiveram e se olharam um ao outro com ar indeciso.

Bel lhe dedicou um sorriso e respondeu com um risinho de arrependimento,

passando-a mão pelo cabelo despenteado. Baixou a vista e por um instante houve um

silêncio carregado de avidez e vacilação.

— Nunca tinha ido a um baile das cortesãs — disse ele.

— Eu tampouco.

Outra pausa embaraçosa.

Lançou-lhe um olhar inquisitivo.

— Passei muito bem.

O sorriso de Bel se fez maior.

— Disso se tratava. — Deu um passo para ele e ficou nas pontas dos pés para lhe dar

um delicado beijo na face. — Boa noite, Robert.

Quando Bel ia se retirar, ele procurou seus olhos e lhe dirigiu um olhar ardente.

— Quando, Belinda? — sussurrou.

Alisou-lhe a lapela de cetim negro do fraque com uma carícia.

— Logo. — Subitamente desconcertada, Bel forçou um sorriso de despreocupação,

virou-se e jogou o lenço por cima do ombro, enquanto se dirigia para seu quarto com passo

resoluto, como se não lhe preocupasse nada absolutamente.

— Boa noite, senhorita Hamilton — respondeu ele, e permaneceu ali com as mãos

nos bolsos, observando como ela se afastava.

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TREZE

O conde de Coldfell estava sentado bebendo Porto no salão de Hawkscliffe com o

resto dos dirigentes do partido Tory. A noite longamente esperada do jantar da senhorita

Hamilton tinha chegado por fim. Coldfell tinha um sorriso tenso em seu rosto sulcado de

rugas, mas por dentro se sentia como um palhaço profundamente aborrecido. Suas

marionetes não estavam dançando absolutamente ao som que ele marcava, mas logo o

fariam. Certamente que sim.

Essa noite tinha vindo simplesmente para observar a relação existente entre o Robert

e sua concubina. Custava-lhe acreditar que tivesse julgado erroneamente o caráter de

Hawkscliffe. O jovem e fogoso duque já deveria ter matado Dolph então, mas ali estava

comodamente instalado junto a sua beleza loira, descaradamente indiferente à comoção que

tinha causado na sociedade e ao escândalo que rodeava seu nome.

No que dizia respeito à sua promessa de vingar-se de Dolph, parecia ter esquecido

completamente aquele assunto. A única conclusão que ocorria a Coldfell era que a culpa era

daquela feiticeira loira, aquela belle dame sans merci, que se tinha servido de artimanhas

para dissuadir o duque de cumprir seu juramento de vingar a morte de Lucy. Hawkscliffe

estava claramente a sua mercê.

Tendo em conta que ele era um homem que sempre havia sentido uma fraqueza pela

beleza, Coldfell não podia reprovar a formosa Bel Hamilton pela vida que levava. O que

não aprovava era a forma como fizera com o comando do Knight House, de seus criados, e

inclusive até certo ponto do próprio duque. Comportava-se como uma duquesa e não como

sua amante, e Coldfell não gostava daquilo, decidido como estava em ver sua filha como a

nona duquesa de Hawksclíffe.

Robert e Juliet seriam muito bom casal.

Coldfell sabia que possuía defeitos, mas se tinha uma virtude era sua condição de pai

extraordinariamente protetor e ciumento com a filha. Antes de deixar este mundo queria ver

sua filha bem casada com um marido considerado que cuidasse dela. E a quem a não ser

Hawkscliffe podia confiar sua doce, incapacitada e frágil filha? Quem mais teria a cortesia

de casar-se com aquela inocente criatura enclausurada, sabendo que não era tola, mas que a

febre amarela a tinha privado da audição quando era menina?

Diferentemente da cortesã experimentada com quem o duque compartilhava sua

cama, Julia era completamente inocente no que dizia respeito aos costumes do mundo. Ela

não podia desfrutar de uma temporada social normal. O destino lhe tinha arrebatado a

oportunidade de fazer sua solene estreia, o que constituía direito de jovem de alto berço.

Não podia dançar nem ouvir música. Juliet era impossibilitada de manter conversas com

gente que não conhecia, embora no caso de seu pai e de sua ama pudesse ler os lábios

suficientemente bem. Era tímida como um cervo, e igualmente adorável.

Com suas maneiras de cavalheiro, Hawkscliffe seria incapaz de negar-se, sobretudo

depois que tivesse visto os olhos azuis cheios de assombro de Juliet e seus cachos de

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chocolate. Coldfell contava com isso. O primeiro filho que tivessem — seu primeiro neto—

herdaria o título de conde, e então poderia ir à tumba sabendo que sua filha e suas posses

estavam em boas mãos.

“Deixa que Hawkscliffe tenha a sua cortesã — pensou. — Assim Juliet terá menos

obrigações matrimoniais.”

Justo então se abriram as portas de duas folhas que conectavam o salão e a sala de

jantar, e apareceu o imponente mordomo com luvas brancas fazendo uma reverência.

— O jantar está servido — anunciou em tom solene.

— Wellington, quer fazer as honras? — propôs Hawkscliffe, apresentando sua

anfitriã ao Duque de ferro com um elegante gesto.

Alto, imperturbável e com um porte severamente erguido, o grande general de rosto

pétreo esteve a ponto de sorrir enquanto assentia e oferecia o braço a Bel.

— Senhorita Hamilton, é para mim uma honra. Ela aceitou com garbo sua

companhia.

“Vá, a cortesã é igualmente conquistadora como o general”, pensou Coldfell

cinicamente, enquanto observava como entravam na sala de jantar.

Tinha que admitir que ela era de uma beleza arrebatadora. Nenhum homem, por mais

velho que fosse, teria sido imune a seus encantos. Seu sorriso sereno e reservado os cativou

a todos. Eldon parecia haver ficado especialmente encantado por ela. O lorde chanceler se

colocou ao seu lado no sofá, e certamente teria tentado convencê-la para que se sentasse em

seu esquálido regaço se Hawkscliffe não tivesse estado diante... E talvez ela tivesse aceitado

em troca de dinheiro.

A Belle Hamilton tinha um estilo e um porte suave e elegante. Seu corpo celestial

estava coberto por um vestido apertado de musselina de uma pálida cor rosa pérola. Se a

ruiva Lucy, com sua paixão e sua ânsia de viver, era o fogo, Bel Hamilton era o gelo,

deslumbrante e com múltiplas facetas, desprendendo luz como um diamante perfeito,

pensou Coldfell, embora imaginasse perfeitamente que ela se derretia por Hawkscliffe.

Situado ao final do grupo, o jovem e atraente duque dedicou aos outros presentes um

sorriso reservado e cordial e estendeu a mão em direção à sala de jantar.

— Cavalheiros, depois de vocês.

Coldfell assentiu afavelmente com a cabeça ao passar junto a seu anfitrião apoiando-

se em sua bengala, e se dirigiu para a mesa para ocupar seu lugar. Soprou para si mesmo

quando observou que a mesa estava excelentemente disposta. A cortesã era uma perita

anfitriã. O mínimo detalhe tinha sido levado em conta. As velas de cera de abelha refletiam

o brilho extremo em cada centímetro do mogno esculpido e reluziam na baixela de prata

rococó e no magnífico centro de mesa. Pequenos e delicados lava-mãos com água de flor de

laranjeira os esperavam sobre a toalha de linho branco, enquanto os lacaios com peruca e

libré aguardavam preparados nos cantos da sala.

Quando Hawkscliffe se sentou à cabeceira da mesa, lançou um olhar aos pés de sua

anfitriã e esboçou um sorriso íntimo. Coldfell viu como trocavam um olhar de mútuo

entendimento. Formavam um casal tão compenetrado que era como observar uma dança

graciosa e brilhante.

Coldfell olhou furtivamente de um e outro.

Tinha que reconhecer que aquela mulher convinha a Hawkscliffe. Parecia muito mais

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relaxado e tranquilo do que Coldfell o tinha visto no passado, seus olhos castanhos já não

tinham um aspecto atormentado. Sua anfitriã sabia como dirigi-lo, como tinha feito no salão

ao interromper sutilmente a conversa com um comentário encantador quando Sidmouth

começou a fazer com que o duque se irritasse.

A senhorita Hamilton, por sua parte, pôs-se visivelmente nervosa quando os

convidados começaram a chegar, mas Coldfell tinha visto como Robert conseguira acalmá-

la tão só acariciando-a suavemente no cotovelo, uma carícia que revelava um mundo de

afeto e confiança. Enquanto presenciava como trocavam olhares de forma silenciosa e

apenas perceptível, compreendeu tudo.

“Estão apaixonados.”

O brilho dos olhos escuros de Robert e o rubor das faces rosadas da Belinda os

traíam. Coldfell franziu os lábios e percebeu que a magia que emanava deles estava surtindo

um efeito contagioso nos magnatas tories. Toda a festa estava se desenvolvendo em um

ambiente tão alegre que fazia parecer que a senhorita Hamilton tinha jogado uma droga no

vinho espumante.

Quando o elaborado primeiro prato foi levado ao salão — esplêndidas bandejas de

ganso e truta assada, carne de veado e suculenta vitela com incontáveis pratos adicionais

como guisado de couve e cotufas-, Coldfell baixou a vista. Estendeu o guardanapo branco

sobre seu regaço e molhou os dedos com a água perfumada.

“Muito bem — se disse laconicamente. — Vai ter que tomar medidas drásticas.”

Tudo parecia estar desenvolvendo-se sem contratempos, mas Bel estava muito

nervosa e temia dar mais pedaços do que os necessários do peru assado do segundo prato ou

partir em excesso a lagosta assada do terceiro. Sua missão no salão tinha consistido em

ocupar-se dos magnatas tories, mas agora que tinham se deslocado à sala de jantar, se sentia

mais interessada pelos escritores. Depois de tudo, deveria acomodar poetas a sua mesa. Só

os whigs falavam de política nos jantares.

Bel tratou de conseguir que Walter Scott lhes desse alguma indicação da obra em que

estava trabalhando, mas ele não se dignou a falar de suas deliciosas histórias de cavalaria,

mas sim do Abbotsford, a magnífica casa com arquitetura medieval que estava há muito

tempo construindo na fronteira da Inglaterra e Escócia. Esteve divagando sobre os aspectos

práticos da construção de uma mansão: vigas, acréscimos, alicerces e torreões, e a Bel ele

pareceu como uma grande gaita de fole escocesa, cheio como estava de ar quente, embora

agradável.

Sorrindo cortesmente, tomou nota mental de que os novelistas eram criaturas

prolixas, e a seguir se voltou esperançosamente para Robert Southey. Com certeza o

aprazível poeta laureado tinha algo estimulante a dizer. Entretanto, ele mostrou ser o

espírito do conservadorismo, um romântico reformado a quem não interessava falar de sua

musa quando o vinho fluía, mas sim de Byron, aquele escritor pervertido e pagão a quem

desprezava acima de todas as coisas.

Bel cruzou um olhar com seu protetor do outro lado da mesa e ambos tiveram que

conter-se para não rirem da diatribe do invejoso escritor. Já tinham falado o suficiente de

poesia. Robert perguntou com delicadeza ao senhor Southey por sua excelente “Vida de

Nelson”, e logo entabularam uma discussão à qual se uniu inclusive o taciturno Wellington,

que propôs um brinde, e todos acabaram bebendo por Nelson.

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— Lorde Castlereagh — disse Bel, dirigindo-se ao elegante e atraente ministro dos

Assuntos Exteriores de origem irlandesa-, Hawkscliffe comentou que apresentou uma

moção no Parlamento para que se erija um monumento em honra de lorde Nelson.

— Quem o merece mais que nosso almirante caído? — replicou Castlereagh,

moderando a angustiosa melancolia que ela tinha percebido em seus olhos. Tinha fama de

homem desventurado, muito brilhante para sua própria conveniência. — Eu gostaria que

Nelson estivesse aqui para ver como nosso velho amigo Vellesley acabava por fim com

Napoleão por ele... Oh, me perdoe, excelência — disse em tom de brincadeira dirigindo-se

ao general, que acabava de ser nomeado fazia apenas um mês, duque do Wellington.

Bel sorriu ao ouvir a risada rouca de Wellington, enquanto outros diziam:

— Isso, isso.

— Em que tipo de monumento se está pensando?

— Nossos arquitetos propuseram construir uma grande coluna com uma estátua de

Nelson no alto.

— Seria algo imponente — disse ela com um cálido sorriso. — Desse modo o

imortalizaria no mármore como tem feito Southey com a prosa.

— Foram suas ações que o fizeram imortal, senhorita Hamilton. Eu simplesmente me

fiz de cronista — disse humildemente o senhor Southey. Diga-nos, o que está lendo agora

mesmo nossa formosa anfitriã?

— É muito amável em perguntar. O certo é que recentemente descobri uma novela

incrivelmente assombrosa. Passo muito tempo nas livrarias — acrescentou, pensando

também nas numerosas vezes que ia em busca dos apreciados tomos de seu pai. —

Encontrei essa novela anônima no Hatchard’s. Foi publicada no ano passado. Li a primeira

frase e não pude soltá-la.

— Anônima, é? Não será um desses livros franceses picantes? — brincou Eldon.

— Não, senhor – Bel o repreendeu, enquanto os homens riam.

— Como se titula?

— Orgulho e Preconceito.

— Hum, soa político.

Bel riu entre dentes.

Então se deu conta de que Robert a estava olhando fixamente com um estranho e

terno sorriso e ficou vermelha, depois do que decidiu mudar o tema. Afastou a vista com as

faces acesas.

— Alguém quer mais vinho?

Quando serviram as sobremesas — bolo de damasco, torta de limão, creme de

baunilha e um original doce de bolacha embebida em vinho elaborado com bolachas

amassadas e enfeitado com flores de verdade-, Bel percebeu que o conde de Coldfell a

estava olhando novamente.

O pálido ancião tinha uns olhos azuis frios e esvaídos e maçãs do rosto que

recordavam os cabos de facas.

Ela afastou a vista, e a embargou um profundo sentimento de compaixão pela

formosa ruiva que aparecia no retrato em miniatura de Robert. Lady Coldfell não tinha

podido desfrutar de seu matrimônio. Tendo um homem bonito e viril como Hawkscliffe

apaixonado por ela, como tinha podido resistir?

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Mas então Bel recordou que tinha sido Robert quem resistiu. A condessa não tinha

por que haver se negado a flertar um pouco.

Finalmente Bel decidiu retirar-se e deixou os homens bebendo seu Porto e falando de

seus assuntos. Todos ficaram em pé e fizeram uma reverência quando ela se inclinou

ligeiramente e lhes agradeceu por sua presença. Eles lhe agradeceram por sua vez pelo

maravilhoso festim. Da cabeceira da mesa, Robert lhe fez uma reverência como um tributo,

e em seus olhos escuros brilhou uma promessa.

Assim que saiu da sala de jantar, se apoiou contra a porta fechada e deixou escapar

um longo suspiro. Cruzou um olhar silencioso de vitória com o senhor Walsh, que estava

esperando no vestíbulo com as mãos enluvadas às costas. Um sorriso apareceu em seu rosto

solene e a seguir Bel se apressou para a cozinha para felicitar ao chef, de formação francesa,

a seu confeiteiro e a seus ajudantes, a quem tinha contratado especialmente para a ocasião.

As cozinhas se achavam em um estado de caos controlado, enquanto a cozinheira

organizava limpeza. Uma montanha interminável de panelas de cobre e frigideiras de ferro

fundido e utensílios de prata e aço que esperavam para serem lavados. Ao ver o enorme

esforço que tinham feito para conseguir que aquele jantar fosse um êxito, permitiu a todo o

pessoal da cozinha que tomasse o dia seguinte livre.

Tão logo fez a generosa oferta, se deu conta de que não tinha autoridade para isso, ela

não era exatamente a senhora da casa. Muito tarde. Os criados tomaram a palavra como se

de um juramento se tratasse, e se alegraram e começaram a fazer planos imediatamente para

irem ao Hyde Park a perambular pelos postos do festival da Vitória e ver as extravagâncias

que se estavam preparando para as festividades mais importantes, que deviam começar em

um de agosto segundo as ordens do regente. Havia templos orientais, botes e pontes. A um

tiro de pedra, no Green Park, estava sendo erguido o Templo da Concórdia, um monumento

tremendamente ostentoso de trinta metros de altura, com o propósito de que se acendessem

ali os foguetes.

Não teve coragem para retirar sua oferta. Estavam todos tão emocionados... Sem

dúvida se tinha excedido, mas Robert era um amo compreensivo com sua gente. Depois do

trabalho tão duro que tinham realizado, Bel confiava em que não se importasse.

Descobriu Tommy e Andrew jogando tranquilamente sob a mesa de trabalho situada

no centro. Como já era quase era meia-noite, decidiu levá-los para cama. Acompanhou-os a

lavar o rosto e escovar os dentes; a nenhum dos dois o entusiasmava muito a novidade da

higiene. Depois puseram suas longas camisolas de algodão e deitaram em suas camas de

armar. Bel leu para eles um livro de contos da biblioteca enquanto esperava que Robert

terminasse com os lordes do partido Tory. Os cuidados com os meninos aliviaram a

excitação que lhe causava a ideia de acessar às petições de Robert.

Essa noite ela estava totalmente preparada para entregar-se a ele.

Depois de soprar a vela abandonou as dependências do serviço situadas no terceiro

piso em silêncio e desceu a escada com um ligeiro tremor de espera nas extremidades; os

homens estavam no vestíbulo dando boa noite uns aos outros.

Coldfell foi o último a ir. Robert o acompanhou até a porta.

— Vê-lo-ei amanhã ao meio dia.

— Muito bem, esperarei. Obrigado outra vez pelo jantar, Robert. Uma criatura

encantadora a senhorita Hamilton. Seu sorriso se fez maior.

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— Boa noite, James.

Coldfell se dirigiu para sua carruagem ajudado por seu lacaio.

Robert lhe disse adeus com a mão e, uma vez que a carruagem desapareceu, fechou a

porta de forma silenciosa. Virou apoiado contra a porta, e a divisou ali, na metade da

escada, observando-o. Dirigiu-lhe um sorriso reluzente e ladino, se afastou da porta, e

começou a caminhar em direção à escada.

— Aí está. Minha arma secreta — disse. — Minha feiticeira. Castlereagh e

Wellington ganharam, Eldon e Liverpool aceitaram revisar meus informes, e Sidmouth

disse que, se esses dois apoiavam minhas ideias, ele não ia impedir isso.

Bel gritou de alegria, recolheu a longa saia e se precipitou escada abaixo para ele. Ele

a pegou quando chegou embaixo e jogou suas mãos ao pescoço. Robert a fez virar em

círculo rindo-se a gargalhadas, lhe rodeando a cintura com as mãos.

— Esteve maravilhosa! Senhorita Hamilton, formamos uma equipe incomparável —

murmurou. — O que lhe parece se conquistarmos o mundo? Experimentamos isso?

— Me ocorrem outras coisas melhores para experimentar com você, senhor — disse

ela com um sorriso brincalhão. — Passei toda a noite desejando lhe pôr as mãos em cima.

— Como desejar, senhorita Hamilton. — Começou a atravessar o vestíbulo levando-

a nos braços. — Tem-me impressionado.

— Disse isso. A sala de jantar, Robert? — perguntou de forma maliciosa quando ele

virou à esquerda em direção à citada sala. — É realmente muito relaxado.

— Mal provou um bocado. Eu me fixo nessas coisas — disse em tom de reprimenda.

— Alguém tem que cuidar de você. Tenho uma surpresa especial guardada.

— O que é?

— Torta de cereja... Com creme por cima. — Sentou-a sobre a mesa, onde só ficava

o centro de mesa de prata, a torta de cereja e a pequena terrina com o creme, e, mais à

frente, um pequeno montão de terrinas de prata que não tinham sido usadas e esperavam que

Walsh recolhesse. A mesa era uma enorme superfície coberta com linho branco, e nas

paredes havia grandes espelhos nos quais eles se refletiam, por fim sós, encantados um com

o outro.

— Robert, não vai querer que coma com as mãos? Alcance-me um os talheres.

— Que pouca imaginação tem, senhorita Hamilton — murmurou molhando o dedo

no creme. A seguir o ofereceu a ela com um sorriso sensual.

Ela riu com malícia e aceitou ansiosamente, chupando seu dedo até deixá-lo limpo.

Robert permaneceu de pé frente a ela. Bel separou as pernas para deixar que ele se

aproximasse mais. Ele tomou o rosto dela entre as mãos com delicadeza e a beijou com uma

intensidade lenta e embriagadora. Enquanto se aferrava a ele, cada vez mais debilitada pelo

desejo, Bel se deu conta de que nunca se havia sentido tão perto de Robert, ainda sob a

euforia de sua vitória em comum.

Suspirou com deleite quando ele começou a descer, beijando-lhe o queixo e o

pescoço. Suas mãos percorriam as costas acima e abaixo lhe fazendo suaves carícias e

quando, de repente, notou um pequeno puxão e o olhou de esguelha, compreendeu que

acabava de lhe desabotoar o vestido.

— Pode-se saber o que está fazendo, senhor? — perguntou em tom de falsa altivez.

— Estou tomando minha sobremesa — sussurrou ele, lhe baixando a blusa até a

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cintura, de forma que ficou sentada na beira da mesa da sala de jantar com um seio

descoberto e a gargantilha de diamantes ao redor do pescoço.

Ela se apoiou com as mãos por detrás do corpo e ficou olhando-o fixamente, à

espera. Ele olhou a terrina de creme. Bel pôs-se a rir, embargada de desejo quando ele lhe

lubrificou os seios de nata e começou a lamber-lhe A risada se foi apagando à medida que a

sensação cálida e sugestiva de sua boca faminta a mergulhava em ondas de desejo cada vez

mais profundas.

Bel rodeou os largos ombros de Robert com as mãos e deslizou os dedos por seu

cabelo, moreno e sedoso. Ele a recostou sobre a mesa, lhe acariciando os seios com uma

mão e lhe sustentando a cabeça com a outra.

Com o cabelo revolto por suas carícias, Robert a olhou sorrindo de forma arrogante,

com creme ao redor de sua boca úmida e lasciva.

— Tem uma boca linda — sussurrou ela, enquanto se endireitava e lhe limpava os

lábios com a língua. As mãos lhe tremiam ao despi-lo.

Pouco depois Robert estava nu até a cintura. Bel ofegou suavemente ao experimentar

a maravilhosa sensação de ter seu peito musculoso e aveludado contra sua pele nua, uma

sensação tremendamente íntima e cálida. Percorreu com as mãos os fortes ombros de Robert

e logo as deslizou para seus enormes braços, extasiada pelas formas de seu corpo.

Ele roçou a testa de Bel com os lábios e desceu por sua face até seu pescoço.

— Vai me deixar fazer amor com você esta noite?

— Pode ser que sim — disse ela fracamente, com os olhos fechados, embargada por

uma sensação de ansiedade.

— Vá, tem que fazer melhor.

— Pode ser que sim — repetiu ele com tom de mofa.

— Pode provar se quiser.

— Isso soa... — beijou-a e lhe soltou o cabelo— claramente como um desafio,

senhorita Hamilton.

Ela percorreu com os dedos os músculos de seu ventre plano.

— Mmm.

— Parece-me que acaba de jogar a luva. Agora terei que seduzi-la.

Bel riu e se deitou estendendo as pernas sobre a mesa.

— Faça-o da melhor maneira que souber.

— Isso eu farei. — As mãos de Robert deslizaram por seus quadris, seguindo suas

curvas. — Deus você é linda.

— Oh, Hawk, me toque — disse ela com a respiração agitada.

Quando a mão dele subiu sob sua saia, o corpo de Bel se umedeceu ansioso por

receber suas carícias. Ela cedeu e separou coxas ante a suave pressão que ele exercia. A

seguir os quentes dedos do Robert se introduziram cuidadosamente em sua cavidade

molhada, enquanto o polegar se movia suavemente em círculos sobre seu montículo. Bel

gemeu totalmente rendida. Ele beijou seus seios com um pausado deleite.

Com seus escuros olhos turvados e velados pelas pálpebras, Robert viu como ela caía

sob seu feitiço. Masturbou-a até que se retorceu e arranhou a mesa com as unhas. Então se

levantou e a olhou fixamente enquanto desabotoava suas calças negras. Ela aguardou

trêmula, cheia de expectativa. Ele dirigiu sua tremenda ereção para a entrada inundada de

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Bel.

E, com um sorriso ardente e malicioso, dedicou-se a divertir-se com ela e a provocá-

la. Esfregou-se contra seu sexo úmido até fazê-la suplicar e só então ele decidiu introduzir

seu membro alguns centímetros, tentando-a.

— É malvado — disse ela ofegando.

— Sim — sussurrou Robert. — Sim, mas deixemos que seja nosso pequeno segredo.

Necessita-me agora, querida? Necessita-me dentro de você?

— Oh, sim, Hawk, por favor — gemeu ela, agitando-se debaixo ele.

Robert a pegou pelas mãos, entrelaçando seus dedos com os de Bel e escutou seus

gemidos de assombro enquanto a penetrava centímetro a centímetro até o fundo.

Bel mal ousava respirar. Ele deslizou seus dedos por seu cabelo, sussurrando de

forma incoerente sua gratidão e seu prazer, mas a mente de Bel estava centrada na estranha

sensação que experimentava seu corpo, enquanto se estirava para recebê-lo. Não sabia por

que não lhe doía. Era algo delicioso, mas o sentia tão grande dentro dela que não sabia se a

partiria em dois se fizesse um movimento em falso.

— Ah, Belinda — disse Robert com um suave gemido-, estive-te esperando tanto

tempo, meu anjo, ma belle. — Começou a montá-la a um ritmo muito suave. Ela se deixou

arrastar pelo puro instinto, entregando-se a seu amante e satisfazendo em todo momento seu

desejo.

Entretanto, no mais profundo de sua mente, era consciente dos sussurros longínquos

que lhe ditava seu mais secreto temor. Negou-se a escutá-los e se aferrou a ele com mais

força.

Ele deslizou as mãos por debaixo do traseiro de Bel e começou a espremer sua carne

vigorosamente. Robert se achava em um estado febril e tremia. Sua pele brilhava com uma

fina capa de suor à luz das velas, e parecia decidido a devorá-la.

“Está sendo um pouco brusco, não acha?”, sussurravam a Bel seus demônios.

Ela os reprimiu em silencio com todas suas forças. “É tão grande e tão forte que se

lhe dissesse que parasse poderia fazer ouvidos surdos.”

Tocou-lhe o cabelo suavemente tentando apaziguar seu ardor, mas voltou atrás ao

pensar que podia delatar-se. Robert achava que estava fazendo amor com uma cortesã

experimentada e do mundo. Se conseguisse interpretar esse papel até que ele chegasse ao

clímax, tudo iria bem. O prazer fugiu quando ela começou a debater-se com seus

pensamentos. Tentou deixar a mente em branco. Fechou os olhos com força e se esforçou

por aguentar, deixando que ele desfrutasse de seu corpo, mas imediatamente sua sorte ficou

decidida por ela.

Quando Robert lhe segurou as mãos sobre a cabeça enquanto lhe acariciava a boca

com a língua ao ritmo compassado que marcava seu membro grande e rígido investindo nela

como um aríete, a mesa se sacudiu e o montão de talheres começou a emitir um som

metálico suave e rítmico.

Um eco procedente de seu pesadelo.

Bel arregalou os olhos. Aquele som. Era como o tinido das chaves. Sentiu as mãos

sujeitas sobre a cabeça, e a dura mesa nas costas como se fosse o muro de pedra.

E tudo voltou a acontecer.

Gritou com um terror irracional e evitou o beijo de Robert afastando o rosto, e

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imediatamente tratou de endireitar-se, o que, obviamente, foi impossível. Ele pesava muito,

e isso fazia que Bel sentisse mais pânico. Deu-lhe um empurrão nos ombros e o golpeou ao

mesmo tempo em que lhe dizia, choramingando, que parasse.

— O que? — ouviu Robert dizer entre arquejos. — O que lhe passa Bel?

— Afaste-se de mim! — gritou ela.

Ele obedeceu imediatamente e o temor apareceu em seus olhos.

— O que ocorre? Está bem? Fiz-lhe mal?

Ela já se achava a caminho da porta, subindo o vestido sem deixar de chorar.

— Bel! Espere!

Ela não se deteve.

Robert a alcançou em um abrir e fechar de olhos e lhe deteve o passo.

— Que demônios se passa? — perguntou-lhe, enquanto subia as calças.

— Afaste-se de meu caminho.

— Que me afaste? — gritou ele. — Mas nós... Estávamos...

— Já terminamos. Boa noite, excelência — disse ela entre os dentes.

— Quem terminou? — Atônito Robert passou a mão pelo cabelo com ar de

desconcerto. — O que é isto? Algum tipo de jogo?

— Sim, é um jogo. E agora se afaste de meu caminho, Robert. Digo-o a sério. —

Todo seu corpo tremia.

— Nem pensar. — Pôs a mão na porta. — Mas o que me está fazendo?

Ela engoliu em seco e seguiu com o olhar os músculos firmes de seu braço e seus

ombros musculosos, e a seguir retrocedeu um passo.

— Um jogo? — Sua voz soava inquietantemente suave, ameaçadora. — Agora que

por fim sentia algo por você, acha que pode brincar comigo?

— Posso fazer o que me dê vontade — disse ela friamente, sentindo que morria por

dentro, mas sem poder voltar atrás, embora o tivesse desejado. — Meu corpo não te

pertence.

— Oh, já vejo — murmurou Robert. — Quer me tirar mais dinheiro, não é? Trata-se

disso, rameira avarenta.

Bel soltou um grito entrecortado e lhe deu uma bofetada com todas suas forças.

Ele levou a mão à face e a olhou com olhos ardentes de cólera.

Tremendo, Bel lhe devolveu o olhar, surpreendida e horrorizada por lhe haver

golpeado, apesar de o dano já estar feito. Era uma causa perdida.

— Nunca pagarei pelo que não deveria ser vendido — replicou ele. — Não estou tão

desesperado.

E depois de dizer essas palavras partiu e fechou a porta no nariz de Bel.

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QUATORZE

A cálida e radiante manhã do dia seguinte não conseguiu aliviar a ira, a dor e a

incredulidade de Hawk. Deveria estar levantando-se da cama de sua amante, mas mal eram

sete horas e já estava vestido da cabeça aos pés com uma jaqueta de montar, calças de couro

e botas altas impecavelmente lustradas.

Com o cabelo perfeitamente penteado e o lenço mais rígido que nunca, desceu a

escada movendo-se com uma fria e mecânica precisão. Solicitou que selassem seu cavalo e

foi dar um passeio pelo Green Park, a galope curto.

“Está bem empregado, Hawkscliffe — lhe disse seu bom senso. — Adverti-lhe isso,

mas se empenhou em que fosse sua, não é? Estúpido. Olhe só se apaixonar por uma

mundana.” Chegou ao extremo do parque muito rápido e seu desgosto não tinha diminuído

um ápice. Olhou com um altivo desdém os tristes adornos do festival da Vitória, que

sombreavam os espaços tranquilos do parque, e esporeou seu garanhão por Hyde Park até

Serpentine Road. O sol da manhã resplandecia na água a sua esquerda, enquanto cavalgava

pesadamente sobre seu cavalo pelo caminho.

Acaso não sabia perfeitamente que ela estava obcecada com o dinheiro? Estava

constantemente estudando os tratados financeiros, os gráficos das ações e os informes do

Change. Ele tinha sido tão idiota que tinha considerado aquilo uma atraente qualidade que

revelava sua aguda inteligência. Havia se sentido tão estupidamente orgulhoso da

inteligência de Bel que não tinha reparado nas consequências de sua avareza.

Não podia acreditar que o tivesse esbofeteado, embora talvez tivesse todo o direito a

fazê-lo. Não deveria ter chegado ao extremo de chamá-la de “rameira”, mas tinha chegado

tão longe quanto podia chegar dentro daquele precioso corpo e tinha sido rechaçado e

afastado momentos antes de alcançar o orgasmo, como se e ela repugnasse fazer o amor

com ele. Nunca havia se sentido tão utilizado e repudiado pensou com amargura, com os

pés nos estribos, cavalgando devagar na garupa de seu cavalo enquanto entrava em Inner

Ring Road em meio de uma nuvem de pó.

Ele tinha sido bom com ela em todo momento. Não pagaria para fazer o amor com a

Belinda Hamilton ou com qualquer outra mulher nem em um milhão de anos. Maldita seja,

achava que ambos estavam acima daquilo.

Talvez seu aborrecimento tivesse sido benéfico. Bel era uma cortesã. Se ele fosse

precavido, sentir-se-ia aliviado frente à oportunidade de distanciar-se dela antes de

envolver-se muito. Certo, aquilo era doloroso, mas no longo prazo seria mais seguro deixar

que ela saísse de sua vida. Certamente na noite anterior ela tinha deixado bem claro que não

compartilhava os sentimentos do Robert.

Ao dar-se conta de que seu cavalo estava ficando sem fôlego, reduziu a marcha até

avançar a trote.

A visão do caminho de cascalho que ladeava Long Water, por onde tinha caminhado

com ela certo dia, fez com que se sentisse abatido. Se ela não o queria, lhe parecia perfeito.

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Sentia que havia coisas que ela não lhe tinha contado sobre seu passado, mas como ia ajudá-

la se ela se negava a confiar nele? Por ele, podia guardar todos seus segredos.

Uma coisa estava clara: tinha chegado o momento de enfrentar Dolph Breckinridge e

pôr um fim rapidamente naquele assunto de uma maldita vez. Quanto antes saísse Dona

Presunçosa de sua casa e de sua vida, melhor.

Por algum motivo a ideia o deixou com um humor de cão.

Retornou a Knight House a meio galope, sem reparar no tráfego. Deu a seu fiel

cavalo uma sonora palmada no pescoço reluzente e se dirigiu resolutamente para a porta,

enquanto tirava as luvas de montar. Notou que lhe reclamava o estômago, mas quando

entrou na sala do café da manhã na hora de sempre não achou nem rastro da omelete

habitual, nem torradas, nem suco, nem sequer uma taça de chá. O pessoal do serviço tinha

desaparecido.

Surpreso, procurou algum criado e se dirigiu às cozinhas, mas não achou o menor

sinal de vida. Finalmente empurrou a porta traseira e viu os dois marotos que tinha levado

Belinda brincando com os cães na zona lajeada dos fornecimentos.

Os cães saltaram para ele, mas Robert os afastou, irritado ante a alegria com que

saltavam e abanavam a cauda.

Os dois meninos se levantaram de repente quando ele entrou e ficaram firmes como

soldados de madeira.

— Onde estão todos? — perguntou ele.

Os moços se olharam entre eles e depois ergueram a vista para ele.

— Estou esperando.

— Foram dar um passeio de barco — soltou o menor.

Hawk piscou desconcertado.

— Como diz?

Os irmãos começaram a debater entre eles em voz baixa.

— Onde está a cozinheira? — inquiriu Hawk. — Onde está meu café da manhã?

— A cozinheira e seus ajudantes foram dar um passeio de navio, senhor.

— Mas... Como é possível?

— A senhorita Bel lhes deu o dia livre.

— Ah, fez isso? Ah! — exclamou, soltando uma gargalhada de indignação.

Um dos cães começou a ganir e se agachou aos pés de Robert. O menino pequeno se

escondeu atrás de seu irmão.

Hawk emitiu um grunhido, virou-se e partiu para dentro... Se à senhorita Bel parecia

adequado conceder a seus criados o dia livre, então teria que levantar seu adorável traseiro

da cama e lhe preparar ela mesma o café da manhã. Não fez o menor caso aos meninos, que

se dedicaram a segui-lo furtivamente e a espiá-lo. Subiu a escada sonoramente e avançou

dando fortes passadas pelo vestíbulo, e uma vez ali, bateu na porta do quarto de Bel.

— Levante preguiçosa — disse entre dentes. — Senhorita Hamilton, peço-lhe que

abra esta porta! Não finja que não está me ouvindo — disse sarcasticamente junto à fresta

da porta.

— Não está aí, senhor.

Voltou-se e viu os dois meninos a uns metros de distância. O menor estava chupando

o polegar. Hawk o olhou franzindo o sobrecenho.

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— Não é um pouco grande para isso? Onde está a senhorita Hamilton?

— Partiu.

— Como partiu? — O pânico se apoderou dele. Girou a maçaneta e abriu a porta.

Entrou no quarto e comprovou que o menino estava certo. Revistou o quarto de vestir e

olhou pela janela, como se ela pudesse estar escondida entre as cortinas. Voltou-se para

eles.

— Aonde foi?

-À igreja.

— Faz bem! — afirmou indignado, mas a onda de alívio que o percorreu fez que lhe

fraquejassem as pernas. Examinou os meninos enrugando o sobrecenho. — Preparou-lhes o

café da manhã?

Os pequenos sacudiram a cabeça.

Hawk franziu os lábios. Devia achar-se bastante mal para ter se esquecido daqueles

marotos. Suspirou aborrecido e se aproximou dos meninos com o propósito de fazer-se

encarregado da situação.

— Bom, pois vamos a isso. Solucionaremos isto como homens. Não pode ser tão

difícil.

O duque de Hawkscliffe se dirigiu com ar resoluto à cozinha, tirou a jaqueta e

arregaçou a camisa, e passou a cozinhar meia dúzia de ovos enquanto seus pequenos

cúmplices o olhavam com inquietação.

— A cozinheira põe primeiro a manteiga na frigideira — disse Tommy, depois de

observar judiciosamente durante um longo momento as cinzas chamuscadas do que deviam

ser suas omeletes.

Hawk puxou a espátula.

— Me diga como se faz.

— Esqueci.

— Dá-se aos cães.

Andrew enrugou o nariz.

— Não vão comer.

Ao final Hawk descobriu as sobras do jantar da noite anterior na fria adega. Ele e os

meninos se deram um banquete com as fatias de peru assado frio acompanhado de uma

porção quebradiça de torta de limão.

Ele devia apresentar-se em pouco tempo na vila de Coldfell em South Kensington, de

modo que deixou os moços aos cuidados de William com a certeza de que Bel estaria em

casa a tempo para lhes preparar a comida. Menos mal que ele comeria no White’s, já que

não queria vê-la. O que podiam dizer-se? Antes de partir para casa de Coldfell foi à

biblioteca. Afastando de sua cabeça as lembranças de sua amante, dirigiu-se a sua

escrivaninha e escreveu uma nota direta dirigida a Dolph Breckinridge:

“Já estou preparado para fazer nosso intercâmbio. Amanhã às onze da noite na

taverna White Swan, em New Row com Bedford Street. Venha só. H”.

Endereçou o bilhete a Dolph e retornou para junto dos meninos com ar sério, e partiu

para ir ao prometido encontro com o conde de Coldfell. Supunha que Coldfell estava

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esperando certas explicações de sua parte. Não o entusiasmava a ideia, mas ao menos agora

podia assegurar ao conde que estava a ponto de concluir aquela empreitada.

Justo quando cruzava as portas de ferro forjado de Knight House, encontrou-se com

nada mais e nada menos que Clive Griffon, o jovem idealista de irritante alegria, que vinha

para aborrecê-lo de novo. Griffon tinha vinte e um anos e possuía um atrativo juvenil, com

suas faces suaves e coradas e seus cachos dourados como guineus.

— Bom dia, excelência! Precisamente vinha vê-lo.

— Que coincidência — resmungou Hawk. Aquele moço sempre parecia

entusiasmado com a vida.

— Faz um tempo maravilhoso, não é? — comentou o jovem em tom radiante,

enquanto fazia voltear seu puro sangue branco de longas patas para cavalgar ao lado de

Hawk.

— Choverá logo.

Griffon pôs-se a rir e decidiu acompanhá-lo até a vila de Coldfell, em meio da

elegância refinada e meio rural do South Kensington. As extensões verdes e sombreadas se

converteram em lugares de moda possuidores de uma serena solenidade para aqueles a

quem desagradava o ruído e as multidões, ou que consideravam as casas encostadas muito

opressivas. Ali havia modestas mansões, situadas discretamente em meio das árvores, cada

uma delas rodeada de vários hectares de campos, e todas localizadas perto do Parlamento.

Griffon tagarelou durante todo o trajeto por Brompton Road. Nesse dia Hawk

escutou os entusiastas comentários do moço idealista unicamente porque era melhor do que

pensar em Belinda.

— O que pensa do tema das mulheres, Griffon? — soltou, interrompendo a diatribe

do jovem contra as leis referentes aos cereais.

— As mulheres? — exclamou o moço enquanto cruzavam Gloucester.

— Sim, as mulheres, senhor Griffon. As fêmeas. O condenado sexo fraco.

— Me perdoe excelência, mas não consigo entender o que têm a ver as mulheres em

tudo isto. Não estávamos falando sobre as arcas da nação?

— Já chego lá! Isso é só o que preocupa as mulheres: encher os bolsos.

— Assim é — disse Griffon um tanto vacilante, lhe lançando um estranho olhar.

A atitude de Hawk com respeito ao moço se suavizou a partir desse momento: todos

os homens que tinham sido maltratados precisavam unir-se neste mundo de mulheres

formosas e matreiras.

— Escute Griffon — disse seriamente quando passavam frente à nova mansão de

George Canning.

— Vou lhe dar uma oportunidade para que exponha seu caso perante lorde Coldfell.

Se ele gostar do que você tem a lhe dizer, a cadeira é sua. Está bem?

— Excelência! — disse o moço assombrado, com os olhos arregalados. Sim, senhor!

— E a seguir começou a lhe agradecer efusivamente a oportunidade de expor suas opiniões

ante o poderoso conde.

— Ora — disse Hawk com um grunhido, e logo indicou com a cabeça em direção ao

cavalo do Griffon. — Grande puro sangue está montando.

Griffon sorriu abertamente e deu ao cavalo uma carinhosa palmada no pescoço.

— É descendente de Eclipse, não me importa dizer-lhe. Quer ver do que é capaz?

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— A verdade é que não.

Griffon riu e fez que o cavalo se erguesse sobre as patas traseiras. O animal sacudiu a

cabeça, e qualquer um diria que se tratava de um Pegaso sem asas, ansioso por alçar voo.

Hawk sorriu a seu pesar quando o garanhão branco pousou de novo sobre as quatro patas, e

então o moço saiu como um raio sobre o cavalo, como se estivessem no hipódromo. “Ah, a

juventude”, pensou Hawk ironicamente, e se dirigiu a seu cavalo estalando a língua e os

seguiu a meio galope.

Pouco depois entravam pelas altas portas da propriedade onde Lucy tinha vivido e

encontrado a morte, e divisaram a mansão, que se erguia orgulhosa sob o largo céu azul.

Avançaram pelo caminho de acesso, longo e reto, que corria entre campos cultivados. Hawk

lançou um olhar de aprovação ao seu redor. Não havia nenhuma fibra de erva fora de seu

lugar. Era algo inegável: o conde de Coldfell e ele estavam cortados pelo mesmo patrão.

Compartilhavam os mesmos valores e, desgraçadamente, tinham amado à mesma mulher.

A imagem de um rosto de mulher cruzou a mente de Hawk; não era o de uma dama

ruiva de olhos verdes, mas o de uma loira com os olhos da cor doce e suave das campainhas.

Quando chegaram a casa apearam de seus cavalos. Hawk se voltou para seu jovem

companheiro.

— Espere onde lhe disserem. Não se afaste muito nem dê problemas.

— Sim, excelência! — disse Griffon com um amplo sorriso de entusiasmo.

Hawk lhe fez um sinal com a cabeça e ambos desfilaram para a entrada enquanto o

mordomo lhes abria a porta. O conde os recebeu no luminoso salão do qual se via o jardim e

o lago onde Lucy se afogara. Em cima do suporte da chaminé havia um retrato grande dela.

Hawk o contemplou e sentiu que o embargava a dor.

Nesse dia sentia que sua perda era dupla. Belinda não tinha deixado este mundo

como Lucy, mas ele a tinha perdido de igual forma, e provavelmente se tratava de um caso

pior já que durante um breve período de tempo havia sentido que Belinda era dele como

Lucy não o tinha sido nunca. Não tinha sido consciente de que enquanto ele se apaixonava

ela estava ganhando a vida.

Sem dúvida ela esperava que ele se rendesse e que lhe propusesse que ficasse junto a

ele como sua amante, mas ele nunca faria isso. Nenhuma mulher o poria em ridículo. Era a

única lição que tinha aprendido vendo como seu pai se acovardava pouco a pouco ante cada

nova aventura amorosa de sua mãe.

— Que amável foi em vir, excelência — disse Coldfell, caminhando para ele

arrastando suas sapatilhas de andar em casa, com seu robe de seda escuro aberto sobre seu

impecável colete marrom e suas calças.

— Milord — disse Hawk a modo de saudação, forçando um tenso sorriso.

Estreitaram-se as mãos e Hawk se sentou em frente do conde.

Coldfell cruzou as pernas e apoiou as mãos entrelaçadas sobre o joelho.

— Robert, eu conheci seu pai e o conheço você desde que era um menino. Convidei-

o a vir hoje para lhe fazer uma simples pergunta: que faz mantendo essa mulher em sua

casa?

Hawk suspirou e reclinou a cabeça contra a poltrona.

— Parece-me saudável que tenha uma amante em sua idade. De fato, felicito-o por

seu bom gosto, mas...

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— Sei.

— Sabe? Sabe que está se armando todo um escândalo? Sua reputação corre perigo.

Hawk levantou a cabeça e olhou de forma lenta ao conde.

— Não é o que parece. Basta dizer que Dolph está obcecado pela senhorita Hamilton,

e penso aproveitar o poder que ela tem sobre ele. Tudo é uma farsa.

— Pois me pareceu condenadamente real — disse Coldfell em tom mal-humorado.

— Tome cuidado com essa mulher, Robert. Já sabe o que é.

Hawk não fez o menor comentário a respeito.

— Esteja tranquilo, tudo terá acabado dentro de muito pouco tempo, milord. Dentro

de um dia ou dois espero enfrentar seu sobrinho tal e como lhe prometi.

— Bem — disse o conde em um tom mais grave. — Quero estar presente quando

chegar o momento. Avisar-me-á?

Hawk assentiu com a cabeça.

Coldfell se recostou com expressão satisfeita.

— Bom, e agora, se me permite abusar de sua paciência, acho que faria muito bem a

minha Juliet vê-lo. Não se relaciona com ninguém e recebe muito poucas visitas — disse,

levantando-se com rigidez de seu assento.

Hawk adotou uma expressão afável e cordial que unicamente respondia a sua

arraigada educação.

— Asseguro-lhe que não é nenhum abuso. — Resignou-se a tentar ser cortês apesar

de sua recém-descoberta aversão às mulheres.

— Bom menino — disse Coldfell com um sorriso radiante.

O ancião o conduziu pelos extensos jardins. Obviamente, Coldfell estava tramando

emparelhá-los novamente, mas Hawk se achava muito abatido para sequer protestar. Lady

Juliet procedia de uma extraordinária linhagem, era muito dócil, confiante e amável para

que um homem temesse algum escândalo, e não podia transmitir sua surdez a seus filhos

posto que fosse produto da febre amarela e não um defeito congênito. Hawk já conhecia a

moça e tinha tido ocasião de comprovar que era uma garota suficientemente encantadora

para despertar sua compaixão. Podia entender perfeitamente a preocupação de Coldfell em

buscar para sua frágil filhinha um marido confiante que a honrasse e protegesse.

Entretanto, nesse dia se surpreendeu desejando em vão que Alfred Hamilton tivesse

um ápice do espírito paternal e superprotetor do conde.

Hawk segurava seu chapéu na mão enquanto contemplava a seu redor os jardins

iluminados pelo sol, perfeitamente distribuídos, com seus lagos artificiais, suas fontes e seus

arbustos. Ficou em tensão ao divisar o lago verde e plácido onde Lucy se afogara e afastou a

vista com firmeza.

— Trouxe alguém para que o conheça: um jovem prometedor que ambiciona uma

cadeira na Câmara dos Comuns. Esperava que me desse sua opinião sobre ele.

— Entrevistá-lo-ei com muito gosto em nome do partido — concedeu o conde, que

avançava primeiro apoiando-se em sua bengala a cada passo.

— Obrigado, senhor. — Hawk considerou prudente não mencionar que Griffon não

era um seguidor do partido, mas um acérrimo independente.

— Como se chama?

— Clive Griffon.

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— Dos Griffon do condado do Derby? Uma família com muitas terras.

— Sim, senhor.

— É o herdeiro?

— Pois sim, o certo é que sim. Tem excelentes perspectivas.

— Hum.

Chegaram ao limite de um arvoredo de pequenas cerejeiras, onde Hawk conseguiu

espionar através da persiana verde formada pelas folhas uma imagem de uma inocência

doce e virginal.

Ajoelhada ante um original pombal, lady Juliet estava acariciando uma pomba branca

que pousara em seu dedo. Tinha dezessete anos e era uma criatura deliciosamente

encantadora, com abundantes cachos castanhos, suas faces rosadas e sua pele leitosa. Ela

permanecia alheia a sua presença, arrulhando suas pombas.

Hawk sorriu de soslaio a Coldfell, com a emoção a flor da pele apesar de seu humor.

— Acho que não deveríamos incomodá-la. Parece meditar com seus mascotes.

O conde sorriu com um fervoroso orgulho paternal.

— Tolices, ela ficará muito contente ao vê-lo. Tem que chegar a conhecê-la melhor.

A pobrezinha está muito sozinha. Contei tudo sobre você.

Hawk olhou Coldfell de esguelha, perguntando-se o que podia lhe haver dito: “Olhe,

Juliet, este é o simpático senhor que queria deitar-se com sua madrasta”.

— Recorde: fale devagar para que possa lhe ler os lábios. — E, apoiando-se em sua

bengala, Coldfell entrou no arvoredo.

Hawk começou a segui-lo, mas antes que chegassem se ouviram gargalhadas juvenis.

— Que demônios...? — exclamou Coldfell, que se deteve e ficou olhando em direção

ao círculo formado pelas árvores.

Quando Hawk olhou ficou desolado, embora arqueasse uma sobrancelha

ironicamente. Parecia que lady Juliet já tinha encontrado um companheiro, além de suas

pombas. As cerejeiras os tinham impedido de ver Clive Griffon, que fazia o pinheiro, com a

cabeça apoiada no chão, e agitava as pernas para entreter a jovem.

— Uau! — gritou ao cair sobre a relva, mas deu uma cambalhota e apareceu de

repente ante ela como um palhaço, obsequiando à donzela com um dente de leão. — Pede

um desejo — lhe disse Griffon, dirigindo-se a ela com tanta naturalidade que parecia que

tivesse estado ali fora com ela na última meia hora.

Ela o olhou como se estivesse perdidamente apaixonada por ele e soprou a bola

branca e sedosa. A penugem saiu voando formando redemoinhos, Juliet ainda tinha os

lábios franzidos para soprar quando Griffon se inclinou ousadamente para beijá-la, mas

ficou imóvel quando o conde de Coldfell soltou um grito. A Hawk lhe caiu a alma aos pés.

— Já está bem, cavalheiro! — rugiu o pai, dirigindo-se ao jovem casal sobre sua

bengala. — Afaste-se de minha filha agora mesmo!

O encontro não foi bem.

Em pouco tempo Hawk e um impávido Clive Griffon abandonavam o jardim e se

encaminhavam para seus cavalos. — Estou apaixonado por ela.

— Não se faça de imbecil mais do que já o fez. Como lhe ocorreu beijá-la, Griffon?

Diante de seu pai!

— Não pude evitar, fiz o que me ditou o coração! Além disso, ela gostou.

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— Como sabe? Como pôde falar com ela?

— Falou-me com os olhos. Tenho um primo que é surdo. Quando se acostuma não

supõe nenhum problema. É tão formosa! — Griffon aferrou seu chapéu contra seu peito e se

dirigiu para seu cavalo sem deixar de olhar para a casa.

Hawk olhou naquela direção bem a tempo de ver como uma abatida Juliet lançava

um beijo a Griffon de uma das janelas superiores. Griffon recebeu o beijo com uma

exclamação de alegria e pôs-se a rir sonoramente. Hawk franziu o cenho, movido mais pela

preocupação que pelo ciúme com respeito a sua possível futura esposa. No momento a ideia

de permanecer solteiro o resto de seus dias o agradava o bastante. Arrumou seu chapéu de

castor lhe dando uns tapinhas e subiu à sela de um salto.

— Tenho que me casar com ela, Hawkscliffe. É a mulher de minha vida.

— Você é a criatura mais absurda que conheci — murmurou Robert enquanto

retornavam trotando pelo caminho para Knightsbridge.

— Alguém terá que casar-se com ela, não? Não me importa que seja surda. É

maravilhosa...

Ficou elogiando-a todo o tempo até que Hawk não pôde suportar mais.

— Griffon, decidi lhe conceder a cadeira — disse, interrompendo-o bruscamente.

O jovem ficou boquiaberto.

— Como diz?

— A senhorita Hamilton acredita que devo lhe dar uma oportunidade. E agora se cale

antes que me faça mudar de opinião.

Dolph Breckinridge voltou de seu clube a sua residência de solteiro em Curzon

Street, onde estava esperando-o uma nota. Ao ver o selo ducal de Hawkscliffe a abriu

rasgando o envelope e leu a premente citação com expressão de desprezo.

Tinha chegado a hora.

Apesar de tudo, não estava disposto a dançar ao som de Hawkscliffe. Agarrou papel e

pena e rabiscou rapidamente sua resposta:

“O White Swan não me parece adequado. Ali me conhecem, e este assunto só

concerne a nós dois e a ela. Dirija-se ao Hampstead Heath. Siga por Chalk Farm Road em

direção a Haverstock Hill. A uns dois quilômetros depois do cruzamento com a Adelaide,

verá a sua direita uma casinha afastada do caminho com o teto de palha. Vê-lo-ei ali

amanhã. Nove da noite me parece uma hora aceitável, tendo em conta a distância

acrescentada. Traz a senhorita Hamilton. D. B.”

Nessa noite, deslumbrante com suas joias e rodeada de pretendentes, Bel se achava

sentada em seu camarote do Royal Theater, de duzentas e cinquenta libras a temporada,

olhando ao cenário em um estado de tristeza absoluta.

Agora que tinha estragado sua relação com Hawkscliffe e tinha quebrado a regra

principal de toda cortesã, supunha que teria que começar a procurar um novo protetor.

Harriette lhe tinha aconselhado que estivesse sempre atenta com vistas a apanhar seu

próximo amante rico. Talvez tivesse chegado o momento de seguir o conselho de sua

mentora.

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Não podia acreditar que tivesse esbofeteado Hawkscliffe. De verdade ele achava que

ela só queria seu dinheiro? O desespero se apoderou dela ao compreender que a única forma

de reparar o dano que tinha infligido ao vínculo que os unia era lhe dizer a verdade.

Tinha desfrutado de sobra de seu encontro sexual, participando com uma fogosidade

que agora lhe causava rubor, mas como podia lhe explicar os temores profundamente

arraigados que tinham sido desencadeados pelo simples som do faqueiro? Para emendar

teria que lhe falar do administrador, e não poderia suportar que ele conhecesse sua desonra.

Robert tinha visto aquele homem horrível com seus próprios olhos. O que aconteceria se

pensasse que o tinha tentado de algum jeito? O que ocorreria se achasse que tudo tinha sido

um estratagema para ganhar o favor do administrador, com a esperança de que seu pai

tivesse privilégios especiais no cárcere? Não poderia suportar que, depois que lhe confiasse

sua dor, ele a fizesse envergonhar-se ainda mais por ter interpretado mal o acontecido.

Antes de tudo, ele a via como uma prostituta, uma mulher que utilizava seu corpo

para conseguir o que queria. E isso é o que era. Mas naquela época ainda não era assim.

Ele não entenderia nunca.

Lançou um olhar furtivo aos rostos dos homens que a rodeavam no escuro camarote

do teatro, e se deu conta de que não sabia como ia conseguir o mínimo progresso com eles

quando era incapaz de permitir que o homem a quem adorava lhe fizesse o amor. Era uma

mulher assexuada, impotente... Frígida.

Quando retornou a Knight House depois da ópera, desceu de sua carruagem com a

ajuda de William e cobrou ânimos enquanto se dirigia para a entrada. Perguntava-se o que

pensaria Hawkscliffe de que tivesse saído sozinha de noite, ou se pelo menos teria reparado

em sua ausência.

Recolheu a saia com uma mão lançando um profundo suspiro e começou a subir a

imponente escada, resignada a meter-se na cama sem havê-lo visto em todo o dia. Aferrou-

se ao liso corrimão e sua bolsa começou a balançar-se em seu antebraço. Tinha subido meio

lance da escada quando ouviu o eco das pegadas lentas e sonoras de Robert no chão de

mármore do piso inferior, e então sua voz profunda e refinada de barítono chegou até ela.

— Um momento, por favor, senhorita Hamilton.

Ela tomou fôlego e se voltou para ele. Hawk estava no vestíbulo, alto e cortês,

vestido de negro e de frente à porta. Permanecia erguido com uma rígida altivez, com suas

elegantes mãos às costas.

— Sim? — disse ela com a respiração um tanto entrecortada.

Robert estudou a porta.

— Amanhã às nove da noite nos reuniremos com o Dolph Breckinridge. Dar-lhe-ei

as instruções referentes a seu papel.

— Muito bem — disse ela fracamente, desanimada ante seu tom sereno.

— Depois será livre para fazer o que lhe agradar.

Bel assimilou aquelas palavras e uma pequena parte de si mesma morreu ao ouvi-las.

Por que se surpreendia ao ouvir que queria livrar-se dela o mais rápido possível?

Contemplou a figura distante e absorta de Hawk enquanto a suntuosa sala de teto alto se

estremecia e seu coração se rompia de novo. Queria gritar, mas em lugar disso conseguiu

dizer com voz tensa:

— Entendo.

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— Boa noite... Senhorita Hamilton. — Robert olhou o chão de mármore enquanto a

tênue luz da vela reluzia em seu cabelo moreno encaracolado.

Ela foi incapaz de responder, formou-lhe um nó na garganta. Sentia que se estava

desmoronando mas, como já não ficasse nada por fazer nem dizer, armou-se de sangue-frio,

ergueu a cabeça obcecadamente e se encaminhou para seus aposentos com uma atitude de

rígida e inexpressiva serenidade.

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QUINZE

A noite seguinte chegou muito rápido.

Enquanto ela e Robert trotavam sobre seus cavalos para o norte por Chalk Farm Road

em direção a Hampstead Heath, Bel não tinha outro desejo senão fazer voltar seu cavalo

cinza e pôr-se a correr para Londres, consciente de que Dolph, seu odiado e lascivo inimigo,

estava-a esperando ansioso por fazê-la sua, mas não falharia ao Hawk. Interpretar seu papel,

e ajudá-lo a vingar a sua amada lady Coldfell, era a única esperança que tinha de redimir-se

ante ele.

Embora, por outro lado, talvez a desprezasse o suficiente para deixar que Dolph

ficasse com ela.

Passaram pela Adelaide Road e seguiram para Haverstock Hill. Robert olhava

constantemente à direita com a esperança de divisar a casinha afastada do caminho.

Finalmente reduziu o passo, indicando a ela que fizesse o mesmo. Tinham chegado

ao lugar.

A lua cheia se mantinha suspensa a baixa altura sobre a casinha de pedra, banhando

de prata as folhas do grande olmo que se arqueava sobre o teto de palha. As janelas estavam

às escuras, e o portal permanecia imerso na sombra. O puro sangue de Dolph pastava junto à

casinha, mas ergueu a cabeça e aguçou o ouvido quando eles se aproximaram do muro de

pedra.

Bel olhou Robert com nervosismo. Seu rosto aquilino não refletia a menor emoção,

tão distante como sempre, mas seus olhos escuros brilharam com o fulgor da fria traição. Ia

vestido todo de negro e levava duas pistolas e uma espada presas à sua estreita cintura.

Distinguiu-se um sinal de movimento na escuridão e apareceu Dolph.

— Pontual como sempre, Hawkscliffe. Vejo que trouxe meu prêmio.

Bel engoliu em seco.

— Esta noite será sua, Dolph, desde que colaborar.

— Está ela de acordo? Não quero truques.

— Sim, estou de acordo — conseguiu dizer ela em tom vacilante.

— Entremos. — Robert saltou de seu cavalo e desceu Bel de sua sela. O breve

momento de contato no qual ela sentiu seus braços ao redor da cintura resultou doloroso.

Bel queria abraçá-lo e lhe rogar que não a deixasse entrar ali, mas não disse nada. Hawk a

posou no chão.

Ela alisou a roupa de montar e se ergueu, e a seguir os dois entraram juntos pela

porteira e se dirigiram para a casinha solitária.

O jardim da parte dianteira estava descuidado, e um matagal de rosas que subiam

pela grade curvada inundava a noite de verão de uma enjoativa doçura.

Dolph retrocedeu quando Robert se aproximou. O duque, alto e irradiando

autoridade, cruzou resolutamente a soleira. Bel o seguia dois passos atrás.

Dolph a olhou lascivamente como um sátiro.

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— Como me põe — sussurrou quando Belinda se aproximou da entrada.

Ela engoliu a saliva e vacilou por um instante, mas sabia qual era seu papel. Obrigou-

se de algum jeito a tocar Dolph. Roçando-o ao passar, acariciou-lhe o ventre plano com a

mão e lhe lançou um olhar lânguido ao mesmo tempo em que entrava.

— Venha.

Sentiu sobre ela o olhar penetrante de Robert ao passar junto a ele em direção à

pequena sala contigua. Bel se voltou na escuridão e esperou enquanto Dolph a seguia com

cautela.

Robert permaneceu no outro aposento, segundo o previsto.

Bel olhou fixamente Dolph enquanto tirava lentamente sua jaqueta de montar justa.

Quando Dolph se aproximou dela com expressão receosa, pareceu que fosse abrasar a

camisa de linho da Belinda com o olhar.

— Mudou.

— Sim.

— Está pronta para ficar comigo?

— Sim, Dolph.

Ele a olhou como se quisesse devorá-la, mas seus olhos revelavam uma ardente

suspeita.

— Por que agora?

— Porque compreendi que é o único para quem importo de verdade — disse ela em

voz baixa. De um ponto de vista um tanto retorcido, era certo.

— Bel — sussurrou ele com ar aflito. — Pensava que nunca se daria conta. —

Deteve-se a escassos centímetros dela e a olhou fixamente, robusto e imponente. Ela podia

sentir como sua respiração se tornava cada vez mais profunda. Apesar de estar morta de

medo, ocultou seu temor e se manteve firme, reprimindo o protesto que foi a seus lábios

quando Dolph pousou uma mão sobre seu peito.

Sem fazer o menor esforço para agir com delicadeza, ele aguardou sua reação como

se quisesse que se sobressaltasse. Bel se limitou a olhá-lo de forma inexpressiva e

desafiante. Sorrindo fracamente, Dolph apertou mais forte... E logo mais forte.

“Entre e o provoque tinha ordenado Robert previamente. E tinha acrescentado entre

dentes: Não deve lhe custar muito.”

Conseguiu que Dolph lhe apertasse com menos força erguendo as mãos e deslizando

os braços ao redor de seu pescoço.

Ele piscou com um ardente e repentino desejo. Imediatamente lhe rodeou a cintura

com os braços e a atraiu para si. Então soltou um pequeno gemido e afundou seu rosto na

curva de seu pescoço.

— Bel — sussurrou. — OH, Bel, foi tão má. Eu teria feito algo por você, mas tinha

que afastar-se de mim, e agora... — De repente lhe apertou a cintura com tanta força que a

obrigou a expulsar o ar dos pulmões. Com a outra mão a pegou pelo cabelo e puxou sua

cabeça para trás.

Bel o olhou, paralisada pelo medo.

— Agora que é minha vou assegurar— Me de que não volte a escapar de mim —

sussurrou.

Quando a levantou do chão e deu alguns passos com ela nas costas, Bel sentiu que

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lhe faltava o fôlego. A seguinte coisa de que teve consciência foi do golpe que deu com as

costas contra a parede e de como Dolph a asfixiava com beijos rápidos, úmidos e selvagens,

sem deixá-la respirar e muito menos protestar. Com o rosto decomposto de terror, empurrou

em vão Dolph nos ombros.

Mordeu seus lábios ao mesmo tempo em que empregava seu próprio corpo para

castigá-la, apertando seus quadris entre as coxas de Bel. Começou a lhe desabotoar

bruscamente o traje de montar com uma destreza que ela não tinha previsto.

“Meu Deus — pensou, com uma clareza cristalina. — Vai-me violar.”

Seus pés não tocavam o chão, mas o mais terrível era saber que o homem a quem

amava estava no aposento ao lado. Permitindo que aquilo ocorresse.

“Isto está muito tranquilo”, pensou Hawk, passeando com inquietação pela cozinha.

Sabia que tinha que dar tempo suficiente a Bel para que Dolph passasse a um estado

maleável, mas o silêncio do quarto contiguo se assentou como um nó na boca de seu

estômago até que não pôde aguentar mais.

Com o coração palpitando, entrou na sala e viu como Dolph a tinha presa contra a

parede. Uma fúria que nunca havia sentido antes brotou do mais fundo de seu ser ante

aquela visão... E ante o insuportável sentimento de culpa.

Soltando uma maldição, avançou resolutamente e pegou Dolph pelo braço com

rudeza.

— Basta já.

— Afaste-se daqui — rugiu Dolph.

Hawk não pôde suportar olhar a Belinda, consciente do terror que veria em seus

olhos. Conseguiu reprimir sua ira fazendo um esforço supremo de vontade.

— Vamos ao ponto, de acordo?

— Disse-lhe que se vá de uma vez! — bradou Dolph, voltando-se para ele e soltando

Belinda. — Já estou farto de você, Hawkscliffe. Que diabo quer?

Hawk tirou sua pistola e a colocou sob o queixo de Dolph. Dolph ficou imóvel,

Hawk o olhou fixamente. Belinda se soltou chorando e fugiu do aposento. Hawk conteve o

impulso de ir a sua ajuda.

— Dir-lhe-ei o que quero Dolph. De acordo? Deixemos de jogos. — Apertou a

pistola mais forte contra o pescoço de Dolph. — Quero saber por que matou Lucy, filho da

puta.

Hawk ficou olhando-o em um estado de visível comoção.

— Lucy? Acha que eu matei Lucy?

— Só tenho que apertar o gatilho. Sugiro que comece a contar a verdade.

— Está louco? Lucy se afogou. Todo mundo sabe! — Olhou nervosamente a arma.

— Baixa a pistola, Hawkscliffe. O que lhe passa?

— Você a afogou. Confessa-o.

— Eu não tive nada que ver com sua morte...

— Admite-o. Comporte-se como um homem por uma vez em sua vida. Matou-a por

medo de que tivesse um filho e perdesse a herança.

Dolph soltou uma gargalhada de mofa e incredulidade.

— E de quem acha que seria o filho se tivesse dado a luz? Deus, por que ia matá-la?

Era minha amante.

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Hawk sentiu que a terra se desabava sob seus pés. Durante um longo momento foi

incapaz de recuperar a fala, e quando o conseguiu soltou um grunhido.

— O que disse?

— Já me ouviu. Fomos companheiros de cama, e me acredite: tinha tão pouca

vontade de ter pirralhos como eu.

A fúria se apoderou dele. Hawk rodeou a culatra da pistola com força e deu um

murro brutal em Dolph no olho. O baronete soltou uma maldição, tropeçou contra uma

bonita banqueta situada atrás dele, e caiu derrubado contra o chão.

Hawk apontou para ele segurando a pistola com ambas as mãos.

— Diga a verdade agora mesmo, Dolph, ou lhe voarei os miolos, juro por Deus.

— Se acalme Hawkscliffe! Santo Deus! Estou lhe tentando dizer isso.

— Ela não era sua amante. Não o era. Ela era... Pura. — Estava tremendo devido à

fúria e a uma estranha e terrível certeza que tinha começado a assentar-se em seu coração

como um metal fundido ao esfriar-se e endurecer-se.

— Pura? Lucy? Está brincando.

— Não estou de brincadeira — sussurrou Robert. — Você a violou, como teria feito

com Bel se tivesse dado a você a oportunidade.

— És um corno. Olhe amigo, foi ela quem me seduziu.

— Ela nunca teria feito isso. Era... Uma mulher virtuosa.

— Se pensas isso é porque não a conhecia... Claro que Lucy tampouco queria que

conhecesse a pessoa real, porque então o poderoso Hawkscliffe teria deixado de querê-la.

Estava brincando com você, excelência, deitando-se com a metade dos jovens de Londres

enquanto planejava converter-se em sua duquesa. E lhe direi outra coisa, grande inocente

duque de Hawkscliffe — afirmou com um sorriso malicioso-, dir-lhe-ei quão pura era a

doce Lucy: costumava despir-se diante da janela de seu dormitório só para atormentar os

cavalariços.

— Vou matá-lo — sussurrou Hawk enquanto o suor deslizava por seu rosto. — Está

mentindo. Ela não era sua amante, e sei com certeza porque durante meses esteve

apaixonado por Bel.

— Amor? — zombou Dolph. — Desde quando a gente tem que estar apaixonado

para aceitar o convite de uma mulher para sua cama? Santo Deus, você é um hipócrita.

Robert assimilou aquelas palavras horrorizado.

— Era a mulher de seu tio.

Dolph deu de ombros.

— Sim, bom, talvez fosse algo um pouco perverso, mas foi ideia de Lucy. Eu me

limitei a agradá-la.

— Isso é mentira, filho da puta! — rugiu Robert, levantando o cano da pistola. Ia

matar Breckinridge a sangue frio. Seu dedo soltou o gatilho quando uma voz suave e firme

chegou até ele.

— Robert, não o faça.

Bel tinha fugido, mas retornou uma vez que conseguiu acalmar-se. Tinha

permanecido no quarto do lado o suficiente para ouvir a maior parte da conversa. Agora

estava ali para presenciar como vinha abaixo o sonho de amor cortês do Robert. O rosto do

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duque, iluminado pela luz da lua e com uma expressão feroz, parecia o de um selvagem com

pinturas de guerra. Empunhava a arma de forma tensa, mirando o coração de Dolph.

Bel avançou outro passo em direção a ele.

— Não vou permitir que o faça, Robert.

— Acaso se importa com ele?

— Você é quem me importa, e ele não é assim.

— É um mentiroso.

— É um homem desarmado. Robert, por favor, poderia ser enforcado. Não vale a

pena. Além disso, poderia estar dizendo a verdade.

— Estou dizendo a verdade — murmurou Dolph, endireitando-se lentamente.

— Demonstra-o — grunhiu Robert.

— Esta casa era dela. Deixou-me isso — disse Dolph. — Aqui é onde nos

encontrávamos. Acredito que aqui também se via com outros homens, mas sempre insistiu

em manter uma discrição absoluta para que meu tio não o descobrisse.

Bel olhou para Robert. Tinha os lábios pálidos e os olhos brilhantes. Parecia achar-se

em estado de choque. Ela se virou para Dolph.

— Demonstre que algo do que disse é verdade e acreditaremos em você.

— Não sei... Olhem nessa escrivaninha daí. — Dolph indicou com a cabeça em

direção à esquerda, sem afastar o olhar da pistola de Robert. — Talvez encontrem alguma

coisa pessoal dela que lhes convença.

— Veja — ordenou Robert à Bel.

Bel achou um pequeno abajur de azeite em cima da escrivaninha e apalpou ao seu

redor na escuridão em busca de iscas, e finalmente conseguiu acendê-lo. Quando a pequena

chama brotou, levantou a tampa inclinada da escrivaninha, olhou dentro e revolveu seu

conteúdo.

— Tenho que procurar cartas ou algo parecido? Oh, há um caderno com desenhos.

— Traga-o.

Bel obedeceu e pegou o caderno com esboços em lápis-carvão. O aproximou de

Robert e o abriu pela primeira folha.

— Cisnes. Muito bem desenhados — disse ela com secura, e virou a folha. —

Narcisos. Um retrato de uma garota.

Robert deu uma olhada, com os lábios lívidos e um olhar de angústia.

— É a filha de Coldfell.

Bel começou a virar a folha, mas ao vislumbrar o esboço seguinte se deteve

impressionada. “Meu Deus.”

— Robert — disse com cautela-, acha que são desenhos de lady Coldfell?

— Reconheceria seu estilo em qualquer parte. Mas isso não significa que usasse este

lugar para ter encontros.

— Pois então será melhor que olhe isto. — Com uma careta de desagrado, Bel

passou a folha e mostrou um desenho de Dolph Breckinridge deitado na cama nu e imerso

em um sono profundo.

Robert lhe deu uma olhada e soltou uma maldição.

— Tome — grunhiu, colocando a pistola nas mãos de Bel. — Se ele mover um

músculo aperte o gatilho.

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Bel pegou a pistola consternada enquanto Robert se afastava com o desenho para

logo apoiar-se no braço do sofá e aproximar a lanterna.

Dolph começou a levantar-se.

— Não me provoque selvagem — advertiu ela, apontando-lhe bem entre os olhos.

Ele zombou dela.

— Não seria capaz de disparar em mim, Bel. Sou a única pessoa que se importa de

verdade, recorda?

— Cale-se!

— Breckinridge — grunhiu Robert em sinal de advertência.

Dolph voltou a deitar-se no chão como um cão zangado ante a reprimenda de seu

amo. Então Robert virou a folha.

Bel contemplou a angústia crescente de seu rosto à medida que virava uma folha após

outra, que mostravam uns desenhos em branco e preto magnificamente realizados, não só de

Dolph, mas sim de toda uma série de jovens da sociedade cuidadosamente selecionados,

todos eles nus.

— Meu Deus — disse ele com voz apagada.

Bel lançou-lhe um olhar e viu como os olhos escuros e turbulentos do Robert se

enchiam de tristeza e assombro ao topar com um desenho de seu rosto.

Nesse momento Bel sentiu sua dor como própria.

Virou as folhas, olhando desenhos de si mesmo em uma dúzia de poses distintas.

Independentemente se Lucy tinha jogado ou não com seu coração, aquela mulher tinha

estado claramente apaixonada por ele. A nostalgia se fazia patente em cada suave traço. A

condessa devia tê-lo estudado atentamente, embora de forma furtiva, para desenhá-lo tão

perfeitamente de memória. Tinha conseguido captar sua inquietação e a paixão que

encerrava sua rigidez, e sua integridade e orgulho de nobre.

Robert levantou seu olhar devastado para Bel, sem saber o que dizer.

— Parece-me que estava tentando conquistá-lo, e você nem sequer se deu conta —

disse ela em voz baixa.

— Claro que estava conquistando-o — murmurou Dolph. — É exatamente o que eu

disse.

— Mas se era Hawkscliffe a quem queria, por que seduziu a você? — perguntou Bel

a Dolph.

— O que você acha? — replicou ele. — Meu tio não lhe servia de nada. Ela

precisava sentir um homem entre suas pernas, não como você, frígida...

— Antes de me insultar recorde que estou te apontando com uma pistola — avisou-

lhe, e nesse mesmo instante percebeu um sinal de culpa em seus olhos. Examinou-o

atentamente. Pode ser que ele não tivesse matado lady Coldfell, graças a Deus, mas Bel

começava a ter a sensação de que definitivamente estava ocultando algo.

Robert se levantou do braço do sofá.

— Breckinridge, pode ir. Peço-lhe perdão por tudo isto. Obviamente estava

equivocado.

Bel olhou a um homem e logo ao outro em atitude de tímido protesto.

— Bom — disse Dolph com um grunhido. Ficou em pé cautelosamente e limpou seu

vistoso traje-, pode ser que sinta a tentação de desafiá-lo a duelo por isso, Hawkscliffe; mas,

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por sorte para você, eu também posso me fazer de santo. Perdoo-lhe — disse com um

grunhido sarcástico.

— Robert, eu acredito que ele está ocultando algo. Conheço este tipo...

— Ele não matou Lucy — disse ele, interrompendo-a bruscamente com um olhar de

irritação. — O resto me importa um nada.

— Uma sábia resposta, excelência. Agora já tem o que queria, assim, se já acabamos

com esta farsa, Belinda e eu nos vamos.

— Não! — gritou ela, ameaçando Dolph com a pistola.

— Um trato é um trato, coração — disse ele com um sorriso lascivo.

— Robert!

Hawkscliffe retornou junto a Bel e pegou a pistola com cuidado.

— Sai fora e monte seu cavalo — lhe disse em voz baixa.

— Não penso ir com ele! — gritou Belinda horrorizada.

— Sim que o fará — disse Dolph.

— Não, não irá com você.

Dolph entreabriu os olhos. Avançou para o Robert sem preocupar-se com a pistola.

— Ela vai vir comigo. Esse era o objetivo de tudo isto. Deu-me sua palavra:

informação em troca da garota.

— Menti — disse Hawk.

Dolph o olhou sem compreender.

— Mentiu?

— Sim.

Não posso acreditar. Conto-te a verdade e é assim que me pagas? Enganando-me?

Robert permaneceu imóvel, lhe sustentando o olhar.

Bel retrocedeu, mas não se atreveu a abandonar a habitação, tinha a intuição de que

se avizinhava algo terrível. Dolph olhou para Robert indignado.

— Você... Hawkscliffe, o puritano? Não é mais que um maldito mentiroso! Farsante!

Bel esticou o braço para agarrar a mão de seu protetor, consciente do que estava a

ponto de acontecer. Só havia um desenlace possível quando um homem chamava a outro

mentiroso. A honra tinha seu preço.

— Venha comigo, por favor, não vale a pena — lhe sussurrou ela.

— É homem morto — disse Dolph.

— Por favor, Robert, vamos... — Dolph era um famoso atirador e tinha uma pontaria

de primeira.

— Sim, vá, Hawkscliffe — replicou o baronete com desprezo. — Vá a sua mansão,

maldito hipócrita, e leve sua puta com você. Meu padrinho o visitará em breve. Então

arrumaremos isto como homens.

— Não! — gritou Bel, mas Robert ergueu o queixo sem pigarrear. Dolph passou

raivosamente entre os dois e fechou de um golpe a porta principal ao partir.

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DEZESSEIS

Retornaram a Knight House em um silêncio lúgubre: Robert estava meditabundo e

taciturno, enquanto Bel lutava contra o pânico, sabedora de que ao amanhecer aquele caipira

insuportável e lascivo ia disparar contra o homem a quem amava. Agarrando as rédeas do

cavalo, olhava ansiosamente a Robert, que cavalgava junto a ela. A luz da lua desenhava

seus largos ombros e perfilava seu rosto aquilino, mas seu olhar distante e escuro

permanecia fixo no poeirento caminho que se estendia ante eles. Depois de uma hora de

trajeto para o sul através do campo iluminado pela lua, avançaram em Regent Street abaixo

e viraram por Piccadilly.

A multidão aumentava à medida que se aproximavam do Green Park, quando de

repente uma série de fortes estampidos e explosões retumbou pelas ruas e assustaram a seus

cavalos. Robert conseguiu dominar sua montaria e a seguir estendeu o braço, pegou as

bridas do cavalo de Bel e conseguiu tranquiliza-lo. Uma vez que os animais se acalmaram,

Bel e Robert, cada um em seu sombrio mundo, olharam para cima e viram os foguetes que

explodiram no céu negro sobre o Green Park, na abertura do festival da Vitória do regente.

O dia primeiro de agosto tinha chegado, a data limite de seu acordo.

Os foguetes se erguiam a toda velocidade e se abriam como flores praticamente em

cima do telhado de Knight House.

Bel sentiu um estremecimento de nostalgia.

Olhou Robert e viu como o fulgor vermelho iluminava seu forte rosto. Nenhum dos

dois disse uma palavra. Bel conteve a emoção, recordando a noite incrivelmente romântica

em que tinham contemplado juntos os fogos de artifício de Vauxhall. Robert fez um gesto a

seu cavalo estalando a língua e evitou o olhar de Bel.

Entraram pelas portas de Knight House, onde os cavalariços recolheram seus cavalos.

Bel desceu do animal, tirou o chapéu de montar e limpou o suor da testa, observando como

Robert se dirigia com cansaço à porta principal. A luz dourada das lanternas que

flanqueavam a entrada projetava um halo avermelhado sobre seu encaracolado cabelo

moreno.

À Bel partiu a alma ao ver como desaparecia no interior. Depois de toda a honra e a

galanteria que ele tinha demonstrado, tinha ficado patente que sua dama ideal era uma

impostora.

Não obstante, em meio daquela compaixão havia um sentimento de culpa, pois sabia

que, a sua maneira, ela era igualmente impostora como lady Coldfell. Como podia deixar

que ele pensasse que o tinha rechaçado como parte de um estratagema para lhe tirar mais

dinheiro? Entretanto, diferentemente de lady Coldfell, ela ainda tinha uma oportunidade de

confessar— tudo, se tão só se atrevesse. Essa podia ser sua última oportunidade de fazer as

pazes.

Olhou a casa suntuosa e ricamente decorada, meio esperando que sua impecável

fachada se desmoronasse como tinha ocorrido com tudo essa noite.

Um calafrio de medo lhe percorreu novamente o corpo, mas se endireitou consciente

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do que devia fazer. Por muito humilhante que aquilo resultasse, ele era seu protetor e ela lhe

devia a verdade.

Uma vez na biblioteca, Hawk deu umas incumbências a dois de seus criados: a um

mandou localizar seu irmão Alec para que atuasse como padrinho, e ao outro enviou à vila

de Coldfell para avisar que o duelo longamente esperado teria lugar ao amanhecer.

Quando partiram, sentou-se atrás de sua escrivaninha e esfregou os olhos lentamente

com a palma das mãos. Ficou assim, sentindo-se derrotado e completamente só.

Não podia acreditar em quão equivocado tinha estado. Santo Deus, Lucy o tinha

enganado. Ele se tinha envolvido naquela história acreditando ser o honrado vingador e

tinha acabado parecendo um estúpido caipira.

Não podia culpar ao Dolph Breckinridge por havê-lo desafiado a um duelo. Qualquer

homem que tivesse sido acusado de um crime tão atroz teria feito o mesmo. Hawk sabia

perfeitamente que tinha agido mau e, portanto, considerava que sua única opção honrosa

consistia em disparar ao ar.

— Robert...

Ele a olhou ao ouvir sua suave chamada. Belinda permanecia na porta entre as

sombras, com o rosto tenso e pálido. Sua beleza o impactou como um golpe imprevisto no

peito. Agarrou uma pena de ganso e fingiu que a estava examinando.

— Deseja algo, senhorita Hamilton? Receio ter um pouco de pressa. Devo pôr em

ordem vários assuntos, já que parece que tenho muitas probabilidades de deixar este mundo

com mais rapidez do que a esperada.

Ela estremeceu e abaixou a cabeça ao ouvir suas palavras. Ele a fixou.

— Não diz nada, né? Deixe-me adivinhar: veio me dizer “bem que o disse”. E com

razão o fez. Você sabia desde o começo que Dolph não matou Lucy, mas eu me neguei a

escutá-la. Assumo-o, inclino-me ante sua grande sabedoria, e continuarei sendo até o final o

boneco de pano do Lucy... E seu.

— Deus, você sabe como me machucar — sussurrou ela, olhando-o com uma

expressão de angústia. — Não me compare com ela. Pelo menos eu não oculto que sou uma

prostituta.

Robert lançou a pena sobre a escrivaninha e se acariciou os lábios com a mão.

— Tenho algo a lhe dizer — declarou ela em voz baixa, armando-se de coragem.

“Sem dúvida”, pensou ele, preparando-se para receber um sermão se aquilo

continuasse assim.

Belinda fechou a porta. Robert a seguiu com o olhar empanado enquanto ela entrava

com cautela na biblioteca onde tinham compartilhado tantas intimidades. Acaso sua

demonstração de amor tinha sido uma ilusão, como todo o resto? Ele já não sabia o que era

real, e estava francamente cansado de tentar averiguar.

Bel se dirigiu até o piano e pousou a mão sobre a tampa reluzente enquanto olhava a

lareira vazia.

— Queria lhe dizer que durante os últimos dois meses... Tentei alegrar um pouco a

sua vida. Fazer que se sentisse mais confortável e lhe dar... Prazer.

Ele reprimiu o impulso de lhe confessar quão bem o tinha feito.

Tinha acabado com ela e não havia mais que dizer. Depois de tudo, ia morrer por ela

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devido a sua negativa de entrega-la a Dolph. Bastava isso? Sentia um desejo traiçoeiro de

estreitá-la entre seus braços, e de consolá-la e encontrar consolo.

Robert permaneceu sentado atrás de sua escrivaninha, em silêncio, esperando ouvir o

que ela tinha a dizer e observando o complexo desdobramento de emoções que se refletiam

em suas bem proporcionadas feições.

— Robert, ontem à noite não o rechacei por avareza — disse em voz baixa A verdade

é... Oh, Robert, por favor.

— O que? — perguntou ele em tom prosaico.

A graciosa postura de Bel se tornou rígida, e sua mão, pequena e delicada, esticou-se

sobre o piano. Fechou os olhos, mas manteve o rosto ligeiramente afastado dele.

— Já sei que despreza às cortesãs. Por favor, trata de me compreender. Você é meu

primeiro... Protetor. Se o rechacei foi por... Deteve-se, debatendo-se consigo mesma. Ele

permaneceu à espera, imóvel, mas adotou um tom insosso de superioridade.

— Sim?

— Não sei fazer amor — disse Bel com um fiozinho de voz. Robert a olhou

fixamente.

— Perdoa minha falta de delicadeza, Belinda, mas sejamos razoáveis. O amor é seu

ofício. Não é que fosse virgem quando a penetrei.

— Não. — Sua voz se converteu em um rogo angustiante. — Há algo que tenho que

lhe dizer... Algo que não contei a ninguém. Algo que me aconteceu. — Ergueu a cabeça e

finalmente o olhou nos olhos com uma tormentosa intensidade. — Robert não me decidi a

ser cortesã porque um bom dia me cansasse de ser pobre. Eu era uma mulher decente.

Quando Dolph fez com que me despedissem da academia, mantive-me à tona vendendo

laranjas de dia e remendando camisas de noite, como os meninos lhe disseram. Não parava

de trabalhar, mas conservava minha dignidade. Um dia de inverno

vi Tommy e Andy, e estavam com os pés descalços e cheios de sangue. — As

palavras começaram a brotar cada vez mais rápido, e um terrível pressentimento começou a

tomar forma no peito de Robert. — Assim utilizei o dinheiro destinado a pagar a cela de

meu pai na prisão para lhes comprar botas — continuou, e imediatamente se desvaneceu

toda serenidade. — Então fui explicar ao administrador que não tinha dinheiro e lhe pedi

que me concedesse um prazo de quinze dias. Ele me disse que pensaria nisso. Estava

chovendo.

— Sente-se, Bel — sussurrou ele, enquanto se levantava e rodeava lentamente a

escrivaninha, sem tirar os olhos dela. O rosto de Bel tinha adquirido uma palidez mortiça.

— Não, disse ela veementemente, com um brilho febril em seus olhos de orquídea.

— Escute-me. — Afastou-se dele quando se aproximou, mas continuou falando. — O

administrador sabia que estava chovendo, de modo que disse a seu cocheiro que me levasse

a casa. Eu pensei simplesmente que estava sendo amável, mas... O que queria era descobrir

onde vivia. Perguntou-me se tinha irmãos ou um marido que me ajudasse, e fui tão idiota

que lhe disse que não.

— Não, meu anjo, por favor... — rogou-lhe Robert de forma apenas audível, com

lágrimas nos olhos, começando a vislumbrar algo que não queria enfrentar.

— Sim. Ele voltou essa mesma noite, Robert, e me forçou. Eu era virgem. Oh, meu

Deus, por que me fez aquilo? — lamentou-se Bel, enquanto ele dava duas rápidas passadas

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e a estreitava entre seus braços.

Ela se agarrou a ele, a ponto de afogar-se de amargura.

— Por quê? — gritou. — Eu nunca fiz mal a ninguém. Robert, por que teve que me

fazer isso?

Mas, ele unicamente podia sussurrar “meu Deus, querida, não, não, não”. Enquanto a

abraçava, ia balançando-a em seus braços, sentindo como o horror e a ira se apoderavam

dele. A cabeça lhe dava voltas como se lhe tivessem golpeado com uma maça. “Matá-lo-ei.”

— Por esse motivo me fiz cortesã, mas Lucy acabou sendo uma farsante, e Dolph o

chamou farsante, e eu também sou uma farsante — disse soluçando. — Não sei como...

Ontem à noite pensei que poderia fazê-lo porque o quero muito... Mas o ruído dos talheres...

Sei que parece estúpido, mas soava como as horríveis chaves que ele levava.

Hawk se lembrou do grande chaveiro que aquele bárbaro filho da puta tinha

pendurado no cinturão.

— Foi como voltar a vivê-lo — disse Bel gemendo, apoiando-se nele como se já não

ficassem forças. — Nunca lhe diria não por dinheiro. Robert me ajude. É algo tão doloroso.

— Estou aqui — conseguiu dizer ele. Tremiam as pernas de Bel, de modo que a

ajudou a sentar-se no sofá. Abraçou-a com força, sentindo a ardência de suas lágrimas de

raiva atrás dos olhos fechados.

Oh, Deus, se só o tivesse sabido, não a teria feito entrar naquele quarto escuro com

Dolph. O administrador da prisão de Fleet. Santo Deus. Aquela besta com uma cicatriz no

rosto fazia com que Dolph parecesse um menino de peito. Mas ele não sabia, já que tinha

procurado não envolver-se muito. Enganara-se com Lucy e com Dolph, mas com a Belinda

enganou a si mesmo de forma cega e obstinada. Tinha reparado em sua inocência desde o

primeiro momento, mas não tinha acreditado em sua autenticidade, à vista do que parecia

ser.

— Sinto muito — sussurrou Robert uma e outra vez, beijando-a no rosto manchado

de lágrimas. Suas desculpas não serviam muito, mas não podia fazer nada para evitar que

brotassem de seus lábios. Ela estremecia em seus braços sem soltá-lo em nenhum momento.

— Não posso perdê-lo, Robert. Renuncia ao duelo. Os homens não se batem em

duelo por cortesãs.

Ele tomou o rosto de Bel entre suas mãos e a olhou apaixonadamente nos olhos, com

lágrimas nos seus.

— Para mim é mais importante que isso. Vou lhe demonstrar.

— Arriscando a vida? Não quero perdê-lo! — Beijou-o de forma febril sem deixar de

derramar lágrimas. — Fica comigo. Ame-me, Robert. Faça-me sentir completa outra vez.

Ele fechou os olhos e apoiou a fronte contra a de Bel, reprimindo o caos escuro que

sua fúria ameaçava desatar.

— Fá-lo-ei, meu amor— disse ele em tom moderado-, mas não esta noite. Não assim.

— Esta pode ser nossa última noite se seguir adiante com o duelo!-disse ela

raivosamente, rechaçando seu abraço. — Não o faça Robert.

Olhando seu rosto angustiado e embaciado de lágrimas, Hawk lhe cobriu uma face

com a mão e sustentou seu olhar com uma intensa ternura.

— Tenha fé em mim. Ainda não sou digno de você, mas, depois de haver enfrentado

os homens que lhe fizeram mal, talvez seja merecedor desse presente. — Acariciou-lhe o

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rosto com tristeza. — Oh, meu céu, quem poderia feri-la?

Seus olhos se encheram de lágrimas e voltou a estreitá-la entre seus braços, lhe

acariciando o cabelo e as costas como se assim pudesse aliviar sua dor. Ao cabo de um

momento, suas carícias conseguiram acalmá-la e sossegar sua respiração entrecortada.

— Tomara me tivesse contado isso antes de deixar que ele a tocasse.

— Como lhe podia dizer isso quando a única coisa que desejei desde que o conheci é

que me respeitasse.Nenhuma recriminação poderia ter feito castigar mais ao Robert do que

aquela humilde confissão. Agachou a cabeça e fechou os olhos, condenando-se por sua

arrogância três vezes maldita. Quanta vez lhe tinha esfregado pelo nariz sua desaprovação?

O que o tinha feito pensar que tinha direito a julgá-la? Sussurrando outra desculpa,

acariciou-a debaixo do queixo e a abraçou contra seu peito como se fosse feita da mais fina

porcelana. Permaneceram assim até que ele sentiu que os tremores de Bel davam passagem

a respiração lenta e pausada.

— Quer um pouco de vinho para se acalmar? — perguntou-lhe com suavidade.

Ela assentiu com a cabeça.

Robert lhe deu um beijo na testa, afastou-a e ficou em pé. Cruzou a sala em direção

ao móvel do bar e lhe serviu uma taça de vinho. Lançou a Bel um olhar perspicaz por cima

do ombro, consciente de que se ela soubesse o que pretendia fazer essa noite tentaria detê-

lo.

Dolph não era o único que ia ser castigado antes que amanhecesse. A ira lhe fervia

nas veias, ardente e selvagem. Estendeu a mão dentro do móvel do bar e tirou a cigarreira de

prata que ela lhe tinha presenteado semanas antes, em circunstâncias mais felizes. Encheria-

a do brandy francês que lhe tinha enviado seu irmão Jack, pois essa noite o esperava uma

tarefa desgraçada e ia necessitar algum estímulo.

Verteu no vinho uma gota do láudano que guardava no móvel do bar para as noites

em que não conseguia conciliar o sono. Isso a calmaria e a ajudaria a descansar.

Tampou a elegante cigarreira e a guardou em seu colete para mais tarde.

Quando lhe entregou a taça de vinho, Bel lhe agradeceu em um murmúrio. Depois

deixou entrar na biblioteca seu cão favorito, Hyperion, para que a custodiasse e lhe fizesse

companhia. O cão Terranova de dourada pelagem se plantou no tapete situado junto ao sofá

no qual repousava Bel, manchada de lágrimas e esgotada. Hawk se inclinou e lhe deu um

beijo suave em sua fria e úmida testa.

Ela entrelaçou seus dedos com os dele.

— Não me deixe Robert.

— Estou aqui. — Hawk se sentou na beira do sofá.

Permaneceu longo tempo a seu lado enquanto ela bebia o vinho a goles. Acariciou-

lhe o cabelo e a puxou pela mão. Sustentou-lhe a taça enquanto Bel afrouxava a gola escura

da camisa branca de montar, e a seguir a devolveu.

— Obrigado.

Robert sorriu e sentiu que lhe partia o coração ante a espontânea cortesia da Belinda.

— Foi muito valente esta noite — sussurrou, enquanto lhe acariciava o cabelo. — Se

o tivesse sabido, não a teria feito passar por isso por nada do mundo.

— Sei. — Um trêmulo sorriso apareceu em seus lábios.

— Todo o plano de utiliza-la como isca para atrair Dolph... Foi um grande engano de

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minha parte. Por que me deixou seguir com ele?

— Tinha que manter minha palavra — disse ela. — Queria lhe demonstrar que sou

valente.

— Faz isso constantemente, Belinda. Tem muita coragem, querida.

Ela sorriu encantada ao ouvir suas palavras e se reclinou entre as almofadas do sofá.

Robert olhou em direção ao piano.

— Quer que lhe toque uma canção de ninar?

— Não, fica ao meu lado — rogou ela de forma ansiosa, esticou o braço para lhe

agarrar a mão.

— Estou aqui, estou aqui. Pobre anjinho, durante todo este tempo esteve carregando

esse peso sobre as costas, sozinha. — Continuou acariciando-a com ternura, roçando com os

dedos os finos cabelos que lhe caíam sobre as têmporas, mas a ideia de que aquele bruto

tivesse abusado daquela criatura refinada e inocente fazia que lhe fervesse o sangue. Teve

que lançar mão de todo o seu autocontrole para permanecer sentado tranquilamente e

acalmá-la durante outro quarto de hora.

Pensou em como era fácil subornar os carcereiros da prisão e recordou o modo como

o administrador tinha repreendido a um de seus subordinados. Dentro dos muros da prisão

com certeza havia alguém que podia lhe dizer o que precisava saber em troca de dinheiro.

Ansioso para pôr-se em marcha, Hawk olhou o relógio da cornija da lareira.

— Quero que agora descanse querida. Tente dormir — disse baixo. — Voltarei

dentro de um momento.

— Por que vai? Fica — murmurou Bel, fechando os olhos. O láudano começava a

surtir efeito.

— Agora descansa meu anjo. — inclinou-se e lhe deu um beijo suave, em um

sussurro na fronte. — Sou seu protetor e não deixarei que ninguém volte a lhe fazer mal

nunca mais.

— Mmm — disse ela, deixando-se arrastar pelo torpor.

Robert se levantou sem fazer ruído, fez os últimos preparativos e saiu da biblioteca,

armou-se com duas pistolas Manton que guardou sob uma jaqueta negra. Tirou o anel com o

brasão da família no caso de... Era melhor que ninguém o identificasse.

Desceu com ligeireza pela escada, saiu para o pátio coberto de cascalho que havia na

parte traseira de Knight House e o atravessou em direção ao abrigo das carruagens.

Ao final da fileira de reluzentes carruagens — o coche de Belinda, sua própria

carruagem, a carruagem de viagem e o caleche, achava-se uma velha carruagem negra que

ele tinha destinado, fazia anos, a seus criados. Era perfeita para o fim que se propusera essa

noite, sólido, mas comum. Fez com que William arriasse os quatro cavalos de tiro, subiu ao

assento do condutor e tomou as rédeas.

William interpretou com preocupação sua expressão sombria e lhe perguntou se

precisava que ele o acompanhasse, mas Hawk não queria que ninguém mais se visse

envolvido na vingança que se tinha proposto levar a cabo. Enfiou seu chapéu até os olhos e

adentrou nas concorridas ruas, onde a multidão que tinha ido ver os foguetes começava a

dispersar-se.

Devia fazer bem o papel, já que uns jovens bêbados que procediam do festival o

tomaram por condutor de uma carruagem de aluguel e lhe fizeram gestos, mas ao ver que

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não se detinha o insultaram e agitaram os punhos em alto. Seu primeiro destino era

Faringdon Street e a prisão de Fleet. Desceu da carruagem de um salto, chamou um moço

que havia no exterior do cárcere para que lhe segurasse os cavalos, e lhe prometeu em tom

brusco que voltaria ao cabo de quinze minutos.

Hawk solicitou ver Alfred Hamilton e foi admitido no recinto. Examinou o vestíbulo

à medida que o atravessava atrás do guarda.

Observou que o escritório do administrador estava fechado.

— O administrador está livre esta noite? — perguntou cautelosamente em tom de

brincadeira.

— Só trabalha de dia.

— Ah — disse Hawk assentindo com a cabeça, enquanto tratava de avaliar ao

guarda. — Deve ser um alívio. É um tipo duro.

— Vai me contar isso. É um maldito negreiro — grunhiu o jovem guarda.

Quando chegaram à porta da cela do velho Hamilton, o carcereiro se voltou para ele

com ar de expectativa, aguardando sua gratificação em troca de virar a chave.

Hawk lhe pôs dez soberanos de ouro na mão, provavelmente mais do que o homem

ganhava em um mês.

— Sabe onde posso encontrá-lo? — perguntou em voz calma.

— Ao administrador?

— Esperava poder falar com ele.

O guarda olhou as moedas que segurava na mão. Fechou o punho em torno delas e

engoliu em seco com nervosismo.

— Com certeza está na taverna The Cock Pit.

— E onde é isso? — perguntou Hawk com delicadeza.

— No Pudding Lane, a um tiro de pedra do Billingsgate.

— Tem certeza?

O guarda lançou um olhar furtivo por cima do ombro.

— Tenho certeza. Apenas nos paga e ele vai ali apostar nas brigas de galos. Além

disso, no local servem álcool fora de horas para atender pescadores. O administrador gosta

de beber, cedo ou tarde.

Hawk assentiu com a cabeça, satisfeito.

— Seria conveniente que não ficasse ciente de minha visita, não lhe parece?

— Poder-se-ia negociar.

— Menino preparado. — Hawk sorriu, deu-lhe outras cinco moedas de ouro e entrou

na cela de Alfred para lhe contar a dura verdade. Robert o fez sem compaixão, o lamento de

angústia do ancião ainda ressoava nos ouvidos de Hawk quando abandonou a prisão com

um nó na boca do estômago. Qualquer desejo que ele tivesse podido sentir de liberar Alfred

Hamilton do cárcere se desvaneceu ao inteirar-se das consequências que tinha tido para a

Belinda a irresponsabilidade daquele homem. Pelo que a ele dizia respeito, o velho podia

apodrecer ali dentro.

Pagou ao moço a moeda que lhe tinha prometido e subiu de novo à carruagem, e a

seguir atravessou o centro da cidade para o leste em direção a Lower Thames Street. A

névoa tinha caído sobre o rio. Quando o ar se inundou do fedor de peixe do mercado

ribeirinho do Billingsgate, soube que se achava perto.

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A gigantesca e ameaçadora Torre de Londres aparecia ao longe, coberta pela névoa.

Hawk virou à esquerda por uma rua lateral chamada Pudding Lane e achou

rapidamente a taverna onde, a julgar pelo ruído, havia muito movimento. Estacionou a

carruagem na sombra de um beco que havia rua abaixo e mergulhou no abarrotado local,

grudando-se à parede enquanto procurava o administrador entre a estridente multidão. Hawk

o divisou entre o grupo de homens que vociferavam aos jogadores profissionais, que

estavam muito ocupados anotando suas apostas.

Hawk voltou para exterior e retornou a sua carruagem. Subiu ao assento do condutor,

recostou-se, cruzou os braços e esperou em um silêncio ameaçador e implacável. De vez em

quando dava um gole na cigarreira de prata. O brandy o manteve quente enquanto esteve

garoando.

Cada vez que se abria a porta da taverna, derramando um quente fulgor sobre os

paralelepípedos úmidos, |Robert ficava alerta, mas o administrador não aparecia. Quando

passou a primeira hora desceu da carruagem e passeou pelo beco para estirar as pernas.

Havia algo que brilhava entre um montão de escombros amontoados junto ao muro de um

dos edifícios. Aproximou-se, inclinou-se e o recolheu: uma parte de um tubo de chumbo.

Sopesou-o entre as mãos com um vislumbre de sorriso e voltou para outro lugar a esperar,

aguardando seu momento. Passou outra hora. Consultou seu relógio de bolso. Duas e

quinze. Só faltavam duas horas para seu duelo com Dolph Breckinridge; no verão

amanhecia às quatro.

A garoa se transformou em uma chuva mais intensa. Olhou irritado ao céu por

debaixo da aba empapada de seu chapéu, e de repente se abriu a porta da taverna e saiu o

administrador da prisão de Fleet dando tropeções.

Hawk ficou tenso. O coração começou a lhe pulsar de forma rápida. Ergueu-se

lentamente no assento do condutor enquanto um trovão rugia ao longe.

O administrador ia com dois homens e se despediram ao chegarem na esquina; os

outros dois se afastaram fazendo esses em direção ao rio enquanto o administrador girava e

começava a subir penosamente a rua. Hawk aguardava na escuridão como um predador.

Deslizou do assento sem fazer ruído. Quando o prefeito se aproximou cambaleando,

Hawk saiu das sombras e caminhou para o homem. O administrador o viu e olhou a

carruagem entreabrindo os olhos.

— Chofer! Me leve ao Cheapside — balbuciou com rudeza.

Hawk se surpreendeu ao ouvir a ordem e esboçou um sorriso.

— Agora mesmo.

Momentos mais tarde o administrador se achava no chão da carruagem com a boca

amordaçada e o joelho de Hawk em suas costas. O administrador tinha uma força brutal,

lutaram na carruagem como duas bestas selvagens despedaçando-se em pleno combate, mas

ao final ao homem não ficou alternativa. Hawk estava muito furioso para sequer sentir os

golpes que lhe dava o administrador. Uma vez que conseguiu reduzi-lo, atou-lhe os pulsos

por detrás das costas e retornou aos cavalos.

Enquanto fustigava os cavalos através das sujas e estreitas ruelas, o coração lhe

pulsava com uma fúria primária. Depois de passar a Torre de Londres correndo

desenfreadamente e chegar à zona do cais de Shadwell, Robert deteve a carruagem entre

dois armazéns abandonados.

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A chuva continuava tamborilando de forma ininterrupta, não havia uma alma ao

redor.

Desceu do assento do condutor e foi abrir a porta da carruagem. Puxou o enorme e

corpulento bêbado, amarrado e amordaçado, até atirá-lo no beco. Agarrou o pedaço de tubo

e se aproximou dele lentamente. A imparcialidade era algo que não lhe preocupava o

mínimo naquela briga. Acaso tinha preocupado a aquele homem quando tinha submetido

uma garota inocente? O administrador viu a maça de metal e olhou horrorizado ao Robert.

— Reconhece-me?

O homem sacudiu a cabeça.

Hawk se sentou de cócoras diante dele.

— Só te direi duas palavras: Belinda Hamilton.

Enquanto balbuciava apavorado sob a mordaça, o administrador tentou ficar em pé.

Hawk lhe deu um pontapé no peito e o lançou outra vez contra os úmidos paralelepípedos.

Como se pudesse contemplar-se desde algum lugar situado fora de seu corpo, Hawk viu a si

mesmo levantando o tubo de chumbo, e o golpeando.

Outra vez.

O impacto do metal ao golpear contra o osso ressoou na alma de Hawk.

Belinda.

A chuva caía, o sangue se derramava.

Cascatas de chuva se vertiam dos beirais.

Nada na vida o tinha preparado para a brutalidade que emergiu dele quando

descarregou sua vingança sobre o homem que tinha violado a sua amada. Na escuridão, com

o cabelo empapado pela chuva grudando-se ao rosto e um grunhido nos lábios, converteu-se

em algo, ou alguém que não conhecia, e era uma sensação terrível e gloriosa. Hawk se

dirigia a ele entre golpe e golpe, virando a seu redor como um predador que brinca com sua

presa. O administrador choramingava de joelhos. Hawk lhe deu um pontapé nas costelas e

no rosto, praguejando, mas de repente deteve sua arma brutal, consciente de que se não

parasse nesse momento ia matar aquele homem.

Tremendo, puxou a um lado o tubo e permaneceu de pé com o peito palpitante, o

cabelo moreno grudado ao rosto e a camisa aderida ao corpo. Impressionado por sua própria

crueldade, caminhou para a beira do cais enquanto o administrador se retorcia no chão sem

deixar de gemer.

Olhou para o rio plácido e escuro. No último ponto de controle havia um pesado

navio carregado de detentos com rumo à colônia penitenciária da Austrália. Os olhos de

Hawk brilharam de satisfação ante a oportunidade de fazer justiça poética subornando os

tripulantes do navio para que subissem o administrador a bordo e o jogassem entre os

sentenciados. Sem dúvida alguns detentos do casco do navio se lembrariam dele e lhe

pagariam com a mesma brutalidade que ele tinha empregado no cárcere de Fleet.

Ao pé da escada do cais havia um pequeno bote de pesca balançando-se. Voltou a

olhar ao navio dos detentos. O que o nome do duque de Hawkscliffe não podia conseguir

entre aqueles ratos de rio, o obteria facilmente o nome de lorde Jack Knight, seu irmão

corsário. Se todo o resto falhasse, podia desfazer-se do administrador atirando-o por cima

do bote e deixando que o Tâmisa o tragasse.

Retornou junto ao administrador, arrastou-o pelo mole e o desceu até o bote de

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remos, e a seguir desenrolou a corda que amarrava a embarcação ao poste. Começou a

mover-se, remando com força contra a corrente.

Quando retornou à borda, a chuva tinha limpado o sangue dos paralelepípedos.

Sentindo-se ainda embriagado pelo instinto selvagem que lhe corria pelas veias,

Hawk jogou a cabeça para trás, fechou os olhos e deixou que a chuva lhe caísse pelo rosto.

— Cavalheiros, têm dois minutos — disse o padrinho de Dolph olhando seu relógio

de bolso.

Bel observou como Robert se consultava com lorde Alec a pouca distância dela.

Estavam em um arvoredo afastado, em meio da neblina cinzenta anterior ao amanhecer,

para bater-se em duelo.

Dolph passeava nervosamente junto a sua carruagem. O médico e cirurgiões que

lorde Alec tinha conseguido esperavam impacientemente apoiados em sua carruagem. O

conde de Coldfell também tinha acudido. Permanecia sentado em sua luxuosa carruagem

negra, contemplando tudo com um olhar perspicaz enquanto seus ossudos dedos

tamborilavam sobre o punho de sua bengala. Alec se separou de Robert assentindo com a

cabeça e se dirigiu para o padrinho de Dolph para assegurar-se de que as balas do rival

tinham a mesma carga de pólvora.

Bel observou alterada que Robert se aproximava dela. Não podia suportar nem um

minuto daquela terrível experiência, mas não teria renunciado a estar ali por nada do mundo.

Ao menos ser uma impura conhecida tinha suas vantagens, uma dama não poderia ter

assistido a um duelo. O fato de que os padrinhos tivessem convencionado que os duelistas

deviam disparar ao mesmo tempo também era um pequeno consolo. Não sabia se teria

podido suportar ver Robert ali de pé, oferecendo-se como alvo a Dolph enquanto esperava

sua vez para disparar.

Não se sentia com a coragem suficiente para lhe perguntar aonde tinha ido enquanto

ela dormia, embora no fundo soubesse. Quando voltou tinha a roupa salpicada de sangue.

Enquanto se dirigia a ela com passo tranquilo, tirou de seu colete a cigarreira que Bel lhe

tinha dado e bebeu um gole. Ofereceu a ela com um sorriso zombador com o qual, a sua

vez, pretendia arrancar de Bel outro sorriso, mas ela sacudiu a cabeça. Robert guardou a

cigarreira em seu colete, pegou-a pela mão e a conduziu para um grande carvalho.

Contemplou Belinda segurando as mãos dela entre as suas, e os dois ficaram

olhando-se fixamente.

— Robert — disse ela, fazendo um esforço de vontade para evitar pôr-se a chorar e

lhe rogar que não o fizesse. Sabia que na realidade ele não tinha opção.

Ele tomou as mãos de Bel, levou-as aos lábios e beijou-as.

— Não chore linda. Dê-me um beijo de boa sorte.

Bel lhe rodeou o pescoço com os braços, puxou-o e o beijou com todas suas forças, e

quando Alec se aproximou para lhe dizer que tinha chegado a hora, tentou retê-lo aferrando-

se a ele. Notou como suas lágrimas se transbordavam e lhe caíam ardentemente pelas faces,

enquanto o beijava, saboreando o brandy de sua língua, memorizando a sensação sedosa de

seu cabelo de ébano e a textura áspera de suas faces sem barbear. Ele deixou de beijá-la,

segurou seu rosto entre suas mãos e a olhou fixamente, com os olhos escuros

resplandecentes.

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— É minha dama e vou lutar por sua honra. — E, soltando-a com uma ligeira

brutalidade, separou-se dela.

Contendo as lágrimas, Bel olhou como se afastava enquanto lhe tremia todo o corpo.

Ele devia saber que aquela palavra — “dama”— significava todo um mundo para ela. O céu

estava começando a clarear pelo leste, e Vênus brilhava com um fulgor branco azulado por

cima das árvores.

Robert se dirigiu para o centro do arvoredo, onde Dolph o estava esperando. Lorde

Alec se aproximou de Bel, entrelaçou seu braço com o dela e a acompanhou até sua

carruagem. Ela era incapaz de entender como o arcanjo loiro podia parecer tão tranquilo em

um momento como aquele.

— Rob vai fazer isso muito bem, senhorita Hamilton, asseguro. Não tem a menor

intenção de despedir-se sabendo que Jack herdaria seu título.

Empunhando suas pistolas, Dolph e Robert se colocaram um de costas ao outro no

centro do arvoredo enquanto a borda avermelhada do sol começava a aparecer entre as

árvores escuras.

Bel teve vontade de vomitar quando soaram os primeiros gorjeios de um pássaro que

cantava no bosque. Uma vez mais, começou a rezar mentalmente.

Lorde Coldfell, que tinha sido eleito para fazer as honras soltando o lenço branco que

assinalava o começo do duelo, avançou coxeando apoiando-se em sua bengala. Situou-se na

borda do arvoredo esperando com o lenço em sua ossuda mão.

O padrinho de Dolph fez outro sinal e os dois homens começaram a percorrer a

distância estabelecida, doze passos cada um. Dolph e Robert se viraram. Os dois se

colocaram de perfil para oferecer ao adversário o alvo mais difícil. Ergueram as pistolas

como cruéis reflexos de si mesmos.

Então o conde soltou o lenço branco de seda. Bel olhou fixamente, angustiada, com o

pulso lhe golpeando nos ouvidos. Foi como se o quadrado de seda branca demorasse uma

eternidade em cair balançando-se suavemente sobre a grama coberta de orvalho.

No instante em que tocou o chão se abriu fogo. Bel ficou olhando horrorizada,

tampando a boca com a mão. Parecia que não podia mover-se, enquanto os doutores

passavam correndo ao seu lado e a empurravam em pleno frenesi.

“Está ferido.”

O caos instalou-se no campo de honra. As maldições de Dolph alagaram o ar junto

com os gritos dos cirurgiões. Os dois homens estavam no chão. De repente Bel ficou em

movimento e correu para ele com a respiração entrecortada.

— Robert! — gritou.

— Belinda! — Estava consciente, procurando-a entre o círculo de doutores que se

formou a seu redor.

Ela se precipitou entre o grupo e se ajoelhou junto a Robert no mesmo instante em

que o cirurgião lhe tirava a jaqueta para inspecionar a ferida. Tudo era confuso, Bel não

parava de lhe perguntar se estava bem e ele não deixava de lhe dizer que se achava

perfeitamente, Dolph se queixava e a chamava, mas ela não o ouvia, e de repente o cirurgião

exclamou: — Olhe!

O cirurgião tirou a cigarreira de Robert de seu colete. Estava grotescamente

deformada, mas tinha detido a bala. Bel e Robert a observaram com receio.

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Então ele olhou Belinda com incredulidade.

— Sabia que o disparo não tinha parecido normal...

— Uma cigarreira destroçada e um botão do colete arrancado, excelência — disse o

cirurgião com um sorriso de assombro. — Alguém vela por você.

— Me deixe ver! — Bel não ficou satisfeita até que descobriu o peito do Robert e viu

com seus próprios olhos que o dano mais sério que tinha sofrido era uma costela machucada

devida ao impacto da cigarreira ao interceptar a bala. Ficou olhando-o totalmente

emocionada, e a seguir lhe estendeu os braços no pescoço e o ajudou a deitar-se de novo

sobre a grama úmida soltando um grito de alívio.

Ele puxou-a e a fez colocar-se em cima dele, rodeou-lhe a cintura com os braços e a

beijou enquanto a luz do sol nascente começava a inundar o arvoredo. Alheios à presença

dos cirurgiões e de outras pessoas, prescindiram de todo decoro e se beijaram com um feliz

desenfreio, mas quando Bel sentiu que o membro do Robert se agitava debaixo dela deixou

de beijá-lo e soltou um risinho.

— Grande homem virtuoso parece — sussurrou, deslizando os dedos pelo cabelo de

Hawk. — Duelos, cortesãs e brandy do mercado negro. O que diriam as damas do

Almack’s?

— Ao diabo com elas, querida. Vamos para casa.

Os dois se levantaram ajudando-se mutuamente. Robert apoiou um braço nas costas

de Bel e começaram a caminhar em direção à carruagem. Bel pegou sorridente a sua cintura

sem deixar de olhá-lo.

Lorde Alec lhes cortou o passo.

— Com essa sorte deveria se dedicar ao jogo.

— Como está Breckinridge?

Alec olhou em direção ao outro extremo do arvoredo.

— Na verdade, está morrendo.

Bel se deteve.

— Morrendo? — Então se deu conta de que Dolph a estava chamando em um tom de

voz muito lastimoso para ser passado por cima. Ficou calada, vacilando, e olhou em sua

direção. Dolph jazia no chão sobre um atoleiro de sangue, enquanto um amigo o segurava

firmemente. Seu rosto tinha uma palidez mortal.

— Robert, por favor, me desculpe um momento — disse ela.

— Belinda, não...

— Tenho que fazê-lo — murmurou Bel, enquanto se afastava dele e se dirigia para o

lugar onde jazia Dolph.

Os olhos de Dolph se encheram de lágrimas quando a viu, mas tinha a boca seca e

lívida. Molhou os lábios fracamente.

— Bel...

Os cirurgiões lhe tinham aberto o colete e a camisa para deixar descoberta a ferida do

peito. A cicatriz que lhe tinha feito o urso com as garras estava coberta de sangue. Bel

sentiu um ligeiro enjoo ao ver aquilo.

— Não quero morrer sem saber que me perdoou — disse ele em voz áspera. — Sinto

ter metido seu pai no cárcere. Fi-lo por que... Já sabe por que. Toma. — Estendeu-lhe algo

com sua mão ensanguentada. Bel apoiou um joelho no chão e aceitou o objeto: seu colar

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com o dente do urso que lhe tinha feito a cicatriz. — Quero-a, a minha maneira.

— Sei Dolph. — Pousou sua mão na fronte dele. — Tente relaxar. Pegou-lhe a outra

mão.

— Não estou assustado — grunhiu, estremecendo-se ao mesmo tempo em que

tratava de parecer desdenhoso.

— Tio! Onde está meu tio?

— Há algo que queira me dizer?

Bel ergueu a vista e viu lorde Coldfell dando um passo adiante com sua bengala.

Parecia absolutamente impassível ante o iminente falecimento de seu herdeiro. Bel cruzou

um olhar de receio com Robert, que se tinha unido ao pequeno círculo formado ao redor do

moribundo.

Dolph apertou com força a mão de Bel como se pretendesse recuperar a firmeza.

— Eu fui o responsável pelo incêndio de Seven Oaks. Fui eu.

— Sim, Dolph, já sei — disse o conde com uma sóbria satisfação.

De repente Dolph começou a resfolegar e a afogar-se.

Seu padrinho gritou e olhou com pânico ao doutor. O cirurgião chefe se aproximou

de Dolph, mas já não havia nada que fazer. Bel olhou fixamente a seu torturador enquanto a

faísca de vida que reluzia em seus olhos se desvanecia e deixava de lhe apertar a mão.

Foi-se.

Ela ficou olhando-o fixamente, imóvel, pois nunca tinha contemplado a morte tão de

perto. Robert abriu passagem entre o grupo, chegou até ela e a ajudou a ficar de pé. Rodeou-

lhe a cintura com um braço e a segurou enquanto a conduzia entre a multidão. Bel se cobriu

apoiando a cabeça sobre o peito de Hawk.

— Hawkscliffe!

Os dois se viraram e viram que lorde Coldfell os seguia. Bel notou que a postura de

Robert se tornava mais rígida.

— Bem feito, Robert — disse o ancião em um tom grave e cordial quando os

alcançou. Seus pálidos olhos azuis brilhavam. — Hoje fez justiça, Robert. Seu pai estaria

orgulhoso. Não o esquecerei. Posso fazer muitas coisas por você.

Hawk sacudiu a cabeça de modo fatigado.

— Não é preciso.

Bel o pegou com mais força pela cintura, assombrada ante a satisfação do conde pela

morte de seu herdeiro.

— Milord, se nos desculpar, sua excelência precisa descansar. Vamos querido —

murmurou.

Robert se despediu do conde fazendo um gesto com a cabeça e cobriu os ombros de

Bel com um braço. Retornaram juntos à carruagem, mas, quando ela lançou um olhar

furtivo por cima do ombro, viu que lorde Coldfell continuava onde o tinham deixado,

observando-a com um olhar incisivo e calculista de desagrado.

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DEZESSETE

Aproximadamente uma hora depois, Hawk se achava deitado estreitando entre seus

braços uma Belinda leve de roupa enquanto ambos tratavam de descansar depois da terrível

experiência daquela noite. O sol matutino invadia o quarto e dançava sobre a pele cálida e

sedosa de Bel, enquanto ele a acariciava e refletia a respeito dos sucessos ocorridos durante

as últimas doze horas.

Ela tinha o braço direito esticado sobre o peito nu de Robert, e permanecia com a

cabeça aproximada a seu pescoço. A fragrância de seu cabelo subia até as janelas de seu

nariz e de vez em quando ele a beijava na cabeça, aspirando seu perfume, saboreando sua

delicadeza.

Tinha o corpo rendido, mas seu coração se achava emocionalmente esgotado depois

das cotas extremas de raiva, angústia, culpa e amor que tinha experimentado ao longo das

últimas doze horas: a confissão de Bel, as inquietantes consequências da violência brutal

que tinha descarregado sobre o administrador, o sabor ácido de sua própria mortalidade

depois do combate com Dolph. Entretanto, a vingança que tinha levado a cabo não podia

apagar o que Bel tinha sofrido, e tudo isso lhe deixava uma sensação de tristeza e vazio que

só a maravilha de tê-la entre seus braços conseguia aplacar.

O temor que se apoderava dele ante a ideia de que ela pudesse sofrer mais no futuro

fazia com que tivesse vontade de protegê-la envolvendo-a com seu abraço. O acordo entre

ambos tinha chegado a seu fim, mas ele não podia suportar a ideia de que ela o

abandonasse. Não poderia deixar que ela retomasse o estilo de vida das cortesãs, com todos

os perigos que supunha, mas quem era ele para lhe dizer o que devia fazer? Ela era, como

sempre, livre e independente.

— Robert — disse ela, interrompendo seus intrincados pensamentos.

— Mmm.

— Estive pensando. — Bel se endireitou e se apoiou sobre um cotovelo, apoiando o

queixo na outra mão. Ele a olhou em silêncio, com um deleite cheio de desconcerto. —

Ainda não consigo compreender o que aconteceu a lady Coldfell. Foi sua morte um

acidente, como disse o juiz de instrução?

Robert deu de ombros.

— Isso é tudo o que consegui averiguar.

Ela franziu o sobrecenho, perplexa.

— Continuo sem entender por que seduziu Dolph se era a você quem ela queria.

— Depois de havê-la julgado de forma totalmente equivocada, nem sequer me atrevo

a adivinhar quais foram seus motivos — disse ele suspirando enquanto brincava com uma

mecha do cabelo loiro de Bel.

— Pois eu tenho uma hipótese, embora saiba que não vá gostar. — Ao contemplar

seu olhar inquisitivo, Bel continuou-: Dolph disse que lady Coldfell aspirava a converter-se

em sua mulher.

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— Sim.

— Mas e o que tem lorde Coldfell? É um homem velho, mas além de sua claudicação

parece ter boa saúde.

Ele arqueou as sobrancelhas com cepticismo.

— Sei que parece desatinado — prosseguiu-, mas suponho que lady Coldfell tivesse

desejado realmente livrar-se de seu marido ancião do modo mais rápido e oportuno possível,

de forma que pudesse lhe jogar a luva e casar-se com você antes que se fixasse em outra

mulher. Ao mesmo tempo, tinha ao seu dispor Dolph: um perito caçador ansioso por receber

sua herança. Sinto-o, mas não acredito que lady Coldfell quisesse ao Dolph simplesmente

pelo prazer que lhe dava. As mulheres não são assim. Quando seduzimos um homem o

fazemos com um objetivo.

— Está sugerindo... Que conspiraram para matar lorde Coldfell?

— Pensa nisso por um momento. Com o conde devidamente enterrado, Lucy teria

sido livre para casar-se com o homem a quem queria de verdade, quer dizer, com você,

enquanto que Dolph teria herdado o título e a fortuna de seu tio. Não mencionou Dolph

pouco antes de morrer algo sobre um incêndio em Seven Oaks? Talvez Lucy o instigasse a

fazê-lo.

Robert sacudiu a cabeça, pasmado ante a desumana teoria que ela estava expondo.

— Se tivesse conhecido Lucy saberia que o que está sugerindo é completamente

impossível. Ela não era uma assassina...

— Sim, pelo que você sabe, era virtuosa e recatada — replicou ela. — Com o devido

respeito, querido, não acredito que conhecesse lady Coldfell absolutamente.

Ao ouvir aquelas palavras, Robert permaneceu calado por um instante.

— Pode ser que Lucy levasse uma vida secreta de conquistas e aventuras, mas me é

impossível acreditar que se expor sequer a possibilidade do assassinato. E, pelo que diz

respeito a Coldfell, não tenho a menor intenção de lhe contar a aventura de Lucy com

Dolph. Há segredos que é melhor levar-se a tumba.

— E se já sabe? A isso me refiro Robert. Coldfell é o que começou tudo isto indo lhe

pedir ajuda, tal e como me disse. Francamente, não confio nesse velho intrigante.

— Belinda, Coldfell já era amigo de minha família antes que eu aprendesse a

caminhar. Conheceu meu pai. Não me mentiria.

Suspirando de desespero, Bel esticou a mão e acariciou suavemente o cabelo do

Robert.

— Querido, é tão honrado que lhe é impossível acreditar que as pessoas que lhe

importam sejam capazes de cometer maldades. É muito generoso na hora de confiar nas

pessoas. Já viu quão feliz estava hoje o conde quando Dolph morreu? Não te pareceu algo

pouco natural?

— O que era pouco natural é que Dolph se deitasse com sua tia, embora só fosse sua

tia por obra do matrimônio. O comportamento que hoje mostrou Coldfell é perfeitamente

coerente com o fato de que acreditasse que Dolph tinha assassinado Lucy. Você é a única

cujos julgamentos estão deslocados, senhorita Hamilton... Seu problema é que não confia

em ninguém. — Descartou aquele tema fazendo um gesto com a mão. — Não quero voltar a

falar disto, sobretudo tendo em conta que não conseguimos nos pôr de acordo. Acabou-se.

Lucy e Dolph estão mortos. Nenhum dos dois vai voltar conosco, assim deixemos tudo isso

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para trás e nos centremos em você e em mim.

— Oh, Robert — disse ela com um suspiro, lhe dedicando um sorriso de

desaprovação.

— Isso está melhor. Perdoa mas hoje tive uma pequena topada com a morte, e depois

de algo assim uma pessoa tende a ver as coisas com certa perspectiva. — aproximou-se

dela, pegou-lhe o rosto e a beijou nos lábios. — Fica comigo — sussurrou, acariciando seu

cabelo da cor da luz do sol. — Quero levá-la a minha casa em Cumberland. Quero lhe

mostrar os lagos, as montanhas, as colinas e os lugares que adoro. São quase tão formosos

como você. Sairemos à primeira hora da manhã.

Ela o olhou fixamente com inquietação e logo afastou a vista.

— Oh, Robert.

— O que ocorre, flor? — perguntou com o sorriso mais doce possível.

— Estou confusa.

— Sobre o que?

— Sobre você.

— Por quê? Não há motivos para estar confusa. — Acariciou-lhe o queixo olhando-a

nos olhos. — Fica comigo. Eu cuidarei de você o resto de sua vida.

— Do que está falando? — Bel ficou muito quieta, olhando-o fixamente com

insondáveis sombras violáceas no mais profundo de seus olhos.

Hawk se deu conta imediatamente de que acabava de cometer um engano espantoso.

Santo Deus, ela pensava que estava lhe propondo matrimônio. Ficou pálido e a olhou sem

saber o que dizer.

Robert viu que ela interpretava seu olhar silencioso e necessitado e tirava suas

próprias conclusões. Bel abriu a boca como se fosse falar, mas descartou o que ia dizer e se

limitou a lhe dedicar meio sorriso irônico.

Ele conteve um gemido de arrependimento e desceu por seu corpo para beijar a pele

pálida e sedosa situada entre seus seios.

— Oh, meu anjo, a última coisa que quero é magoá-la — disse ele com desconsolo,

apoiando sua cabeça no peito de Bel e rodeando sua cintura para evitar sua explosão de ira,

algo que conforme esperava se produziria em questão de segundos.

— Sei — sussurrou ela, pousando as mãos nos ombros de Hawk.

— Se fosse possível...

— Sei.

— Há certas coisas que não posso fazer.

— Sei Hawk, não tem importância — replicou ela, e começou a ruborizar-se com

irritação enquanto se levantava. — Não se fala mais do assunto. Pelo amor de Deus, nunca

supus que se casaria comigo, e se pensa que é o que estive procurando, irei agora mesmo,

não voltará a ver-me...

— Fique! — Robert a apertou contra ele, com o coração palpitando com força ante a

ameaça de perdê-la. — Não penso isso. Não vá. Bel... Fique.

Bel se recostou cautelosamente na cama, lhe sustentando o olhar em sinal de

advertência.

Hawk sentiu encolher o coração ao contemplar a vulnerabilidade que se escondia

atrás do brilho azul daqueles olhos. “Deus me libere de te ofender — pensou ele— “. “Há

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tanto orgulho, tanto fogo sob o gelo de seu olhar.”

— Verdadeiramente nunca conheci ninguém como você, senhorita Hamilton — disse

em voz baixa.

— Não, com certeza que não, ela concordou, e a seguir sacudiu a cabeça. — De

qualquer modo eu não sirvo para o matrimônio, nem sequer com um duque. Eu controlo

minha vida... Tomo minhas próprias decisões, e não renunciaria a minha independência por

sua coroa ducal nem que me pedisse isso de joelhos.

Dedicou-lhe um sorriso, castigado. Pareceu-lhe um discurso muito valente, e o

embargou um profundo amor por ela. Acariciou-lhe o cabelo.

— Ficará?

Sustentou-lhe o olhar, e seu tom e sua expressão se suavizou.

— Tenho certeza de que não é tão simples.

— Sim que o é. — Robert pousou sua mão no quadril de Bel, agarrando-a com

delicadeza através de sua camisola de cetim. — Ao diabo com as normas das cortesãs, Bel.

Acaso não mereço uma oportunidade? — A pressão que exercia sobre seu quadril se

converteu em uma carícia. — Nunca a abandonarei. Nunca a maltratarei. Acredito que já

sabe. Encaremos. Descubramos o que nos proporciona o futuro.

— E o que espera descobrir, Robert?

— Como posso saber? Nunca provei algo assim antes.

As lágrimas brilharam por um instante sob as longas e elegantes pestanas de Bel,

antes que voltasse a piscar e olhasse Robert com uma ameaça de sorriso reticente.

Endireitou-se, abraçou as pernas flexionadas e suspirou.

— O que está pedindo é que nos exponhamos a sofrer muito quando chegar o

momento de partir.

— Partir? Não diga que vai partir, meu anjo. Ficará para sempre. — Robert sorriu um

tanto surpreso por suas próprias palavras.

— Como sua amante.

— Como meu amor — replicou ele com empenho.

— Não sei o que fazer. Quero-o tanto e... — passou a mão pelo cabelo, abaixou a

cabeça e apoiou a testa em um joelho. — Quando penso como estive perto hoje de perdê-

lo... Bom, é como se nos tivessem concedido uma segunda oportunidade, não é assim? Sabe

que quero estar com você, é só que...

— O que? — perguntou ele, olhando-a pacientemente enquanto ela se debatia

consigo mesma.

— Não é profissional.

— É pelo dinheiro? Se quiser que liquide as dívidas de seu pai, fá-lo-ei...

— Não! Não tem nada que ver com o dinheiro. — Bel lhe lançou um olhar de

consternação. — E, quanto a papai, talvez mereça sofrer um pouco pelo que aconteceu.

Talvez assim aprenda. Ele se meteu nesse embrulho, deixe que ele seja quem saia. É o que

diria minha mãe.

Hawk lhe tocou o ombro para lhe oferecer consolo e depois acariciou a suave e

sinuosa linha de suas costas.

— Bel, eu acho que deveria saber que contei tudo a seu pai.

Ela pareceu sopesar a notícia por um momento, sem virar-se para ele, abraçando as

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pernas em atitude protetora.

— Como recebeu?

— Tão bem como se poderia esperar.

Bel afundou outra vez a cabeça contra seu joelho como se desejasse esconder-se do

mundo.

Estará bem, querida — a tranquilizou ele.

— Tenho a impressão de que fez algo terrível ao administrador — disse ela, com a

voz amortecida pela postura. — Tanto faz para mim o que lhe tenha feito, mas o que

passaria se as autoridades viessem a detê-lo?

— Não virão — respondeu ele com suavidade. — Já não há motivos para lhe ter

medo, nem sequer para voltar a pensar nele. Agora esta a salvo... E eu a quero.

Belinda levantou a cabeça e se voltou para ele, com os olhos muito abertos ante

aquelas palavras e os lábios suaves e trêmulos.

— Eu também o quero, Robert — disse ela em voz muito calma. — Não deveria,

mas o quero.

Um amplo sorriso cruzou lentamente o rosto do Robert. Fazendo caso omisso do

sobrecenho franzido de Bel, estreitou-a entre braços e voltou a deitá-la sobre o colchão.

— Como que não deveria me querer? Claro que deve me querer, cabeça de rabanete.

“Não deveria querê-lo” — grunhiu Robert em voz baixa e estridente. — Que

desconsiderada. Por que não deveria me querer?

— Porque nunca será meu de verdade.

Ele a olhou com o cenho sem ser intimidante.

— Até agora pensava que era uma mulher inteligente. — Bel pôs-se a rir. Ele a

olhou, percorrendo com os dedos a curva de sua face. — Fica comigo. Sou seu, e, se por

acaso não se tinha dado conta, já o sou há tempo.

— Anteontem de noite me ia expulsar. Isso é o que eu não gosto de tudo, não tenho

segurança.

— Ah, já entendo — sussurrou ele, olhando-a aos olhos. — Segurança.

— Sim. No momento em que comece a se aborrecer de mim pode me jogar na rua.

— O que a faria se sentir suficientemente segura para não ter medo de que a jogue na

rua? — Possivelmente isto. — Esticou o braço por cima da mesinha de noite e pegou a

cigarreira amolgada, que ele tinha deixado ali antes de despir-se. Estendeu a ela. — Aqui

tem a prova, amor.

Ela a pegou e a olhou atentamente, estudando-a por um lado e por outro. Robert

contemplou seu perfil e viu como seus olhos se enchiam de lágrimas.

— Poderia ter morrido por mim — sussurrou Bel.

— Sim, e voltaria a fazê-lo para protegê-la se fosse necessário. Com muito prazer.

Ela se voltou para ele sem pronunciar palavra, jogou os braços ao pescoço e o

abraçou com força. Ele deslizou as mãos por seus quadris e ouviu como ela sorvia, e sentiu

que suas lágrimas caíam sobre seu ombro nu.

— Não tenho direito de duvidar de você. É um homem tão firme e tem tanta

paciência comigo... Não merece todo este receio. Sinto muito, Robert, não quero parecer

ingrata. Suponho que não estou acostumada a isto, mas acredito... Que a partir de agora vou

confiar em você.

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— Essa sim é uma boa notícia para começar o dia — sussurrou ele, detendo uma

lágrima que tinha brotado e começava a precipitar-se pela face de Bel. A lágrima brilhou na

ponta de seu dedo como uma joia à luz da manhã. “O gelo está derretendo”, pensou. Levou

o dedo à boca e provou o sabor salgado da lágrima enquanto Bel adotava uma expressão

melancólica e sossegada, e então se inclinou para ela e a beijou.

Ela separou os lábios com um suave gemido de desejo. Ele saboreou sua boca lhe

dando um beijo terno com o qual lhe ofereceu silenciosamente tudo o que levava dentro, um

beijo que iluminou de forma radiante os limites mais longínquos e escuros do universo,

como se seu mútuo amor tivesse dado a luz uma nova estrela.

Bel se recostou em atitude complacente. Ele se colocou em cima dela. Belinda lhe

rodeou os quadris com as pernas. Robert fechou os olhos com força, aturdido pelo desejo,

mas deixou de beijá-la quando sentiu que começavam a invadi-lo as chamas da tentação

com o ardente contato de seus corpos.

Agora que conhecia as cicatrizes invisíveis que ela guardava no mais profundo de seu

ser, sabia que devia tratá-la com a mais deliciosa doçura de que fosse capaz um amante.

Ainda não era o momento oportuno, mas logo o seria.

Ocorreu-lhe uma magnífica ideia. Inclinou a cabeça para beijá-la no pescoço e sorriu

ante sua brilhante inspiração.

— Descansa, senhorita Hamilton. Esta noite lhe reserva algo maravilhoso.

— O que pode ser mais maravilhoso que isto? — murmurou ela, lhe dando um olhar

deslumbrante e sonhador. Ele enroscou uma mecha do cabelo dourado de Bel ao redor de

seu dedo e o beijou.

— Já o verá. — E a seguir lhe beijou as pálpebras e lhe sussurrou que dormisse.

Mais tarde Robert esteve ocupado em sua escrivaninha da biblioteca notificando aos

presidentes de seus vários comitês parlamentares de sua partida para sua casa de campo.

Redigiu instruções para os cavalheiros que se ocupavam de seus negócios e ocupou-se de

outros detalhes enquanto Bel preparava a casa para a estadia no campo. Ela percorria com

passo enérgico um aposento atrás de outro no primeiro piso, ajudando às criadas a cobrir os

móveis com tecidos marrons para o período de ausência do amo, quando, ao cruzar o

vestíbulo, encontrou-se com o porteiro, que ia entregar a Walsh uma carta dirigida a sua

excelência que acabava de chegar por meio de um mensageiro especial. O mordomo era o

encarregado de fazer as honras e oferecer ao duque em uma bandeja de prata, mas Bel saltou

as formalidades, sorriu ao porteiro e se apressou a entregar a missiva ao próprio Robert. Era

uma desculpa como qualquer outra para vê-lo. Quando olhou a carta franziu o sobrecenho

ao ler que procedia de Islington e viu que no remetente figurava a direção da academia da

senhora Hall.

Vacilou por um instante junto à porta da biblioteca. O que podia significar? Alguma

nova crítica contra seu caráter? Mas lady Jacinda continuava estudando ali. Talvez não

tivesse nada a ver com ela. Temendo de repente que algo partisse mal ou que Jacinda tivesse

caído doente, entrou na biblioteca dando grandes passadas, atravessou em direção à

escrivaninha de Robert e agitou a carta diante dele enquanto se inclinava para beijá-lo na

testa.

— Pode ser que lhe interesse atender isto por um momento. Acaba de trazê-la um

mensageiro.

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— Deus, o que se passa agora? — Agarrou a carta e rasgou o selo.

Bel retrocedeu e esperou as notícias ansiosamente. O severo rosto do Robert se

sombreou à medida que lia, e depois espremeu a carta com a mão.

— O que acontece? — perguntou ela rapidamente.

— Avisam-me de que minha irmã foi expulsa temporalmente da escola por falar com

um estranho em público. Um homem que respondia pelo nome de Dolph Breckinridge. —

Atirou o papel amassado amaldiçoando em voz baixa.

Bel levou a mão à boca, surpreendida.

— Como pôde atrever-se... ?

— Sem dúvida pensava me atacar por meio dela. Graças a Deus, Lizzie Carlisle

andava perto para fazer a minha irmã entrar em razão.

— Fez-lhe mal...?

— Não, graças a Deus. Lizzie chamou imediatamente a professora. Pelo visto,

Breckinridge tinha estado tentando convencer a minha irmã para que fosse até sua

carruagem.

Por um instante Bel permaneceu em silêncio, sentindo-se enojada e abalada. Se

Dolph tivesse feito algo àquela garota inocente por culpa dela... Era uma ideia muito

terrível.

— Receio que minha irmã e sua dama de companhia vão ter que vir conosco —

disse, apoiando os punhos na escrivaninha. — Espero que não se importe, embora lhe

assegure que não me importo. Fazer-te de acompanhante não é precisamente o que tinha em

mente.

— Claro que não me importo, Robert, mas o que será da reputação das garotas?

Talvez eu não deva ir. — Conteve a respiração e se preparou para fazer frente a semelhante

decepção.

— Não diga tolices. Você é o motivo pelo qual quero ir. Coçou o queixo quadrado

em atitude pensativa. — Se não houver nenhum inconveniente, podemos fazê-la passar por

sua preceptora. Ninguém a conhece no norte.

— Outra farsa? — Bel suspirou com ar cansado. — Jacinda saberá que há algo

estranho. É muito esperta para que tentemos lhe ocultar a verdade.

— Então terá que agir como uma adulta. É muito amadurecida, a sua maneira.

— Lizzie se escandalizará. Por certo, não sabia que conhecia a senhorita Carlisle.

Que garota tão tímida e humilde.

— Está sob minha tutela.

— De verdade? — exclamou Bel. — Meu Deus, Robert, há alguém Londres que não

esteja sob seu cuidado?

— A senhorita Carlisle é a filha de meu antigo administrador de imóveis. O homem

morreu faz uma década. Lizzie era sua única filha e não tinha parente a quem recorrer. É a

companheira da Jacinda desde que eram crianças... Para não falar da consciência dessa

pequena rebelde. Graças a Deus que ela estava ali quando Dolph tentou apresentar-se.

Bel sacudiu a cabeça, agarrando as mãos por detrás das costas.

— Sinto-me responsável. Quando penso no que poderia ter acontecido, no que

poderia lhe haver feito...

— Belinda, interrompeu ele com delicadeza. — Não. Assim não se consegue nada, e

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você não fez nenhum mal. Tire isso da cabeça. Anda, vá. Tenho muito trabalho que fazer

antes que chegue a hora de sua surpresa.

Bel lhe sorriu timidamente, sentindo que lhe disparava o coração. Dedicou-lhe um

risinho irônico e pegou sua pena para escrever a resposta à senhora Hall.

Partiram de Knight House às oito da tarde em ponto.

Robert tinha recomendado a Bel que se vestisse de forma especialmente elegante,

mas não lhe tinha dado a menor indicação de aonde a levava. Uma vez dentro da carruagem,

ele desceu as persianas de lona para evitar que ela pudesse averiguar seu destino.

A expectativa de Bel aumentou quando notou que a carruagem se detinha e ouviu os

lacaios descerem de um salto da carruagem para lhes abrir as portas.

— Feche os olhos, querida. Sua surpresa está muito perto.

— Não suporto ter que fechá-los, bonito que está.

— Os galanteios não lhe servirão de nada — replicou ele.

Ela obedeceu rindo, mas a imagem espantosa de Robert ficou gravada na cabeça.

Estava vestido com a roupa mais deliciosa que Bel já havia visto, prescindindo por uma vez

do negro lúgubre em favor de um fraque de seda escuro cor ameixa, primorosamente

bordado na parte dianteira. Tinha uma gola que lhe fixava à perfeição as pontas da radiante

camisa branca contra a mandíbula. Seu lenço branco de seda era de uma elaborada

perfeição, e seu colete de cetim, sóbrio e terrivelmente elegante, estava salpicado de

pequenos estampados de um tom dourado apagado. Suas calças pardas marcavam cada linha

de suas fortes coxas, enquanto suas impecáveis meias brancas acentuavam suas panturrilhas

perfeitamente musculosas. Era a beleza viril personificada, da cabeça aos sapatos rasos de

verniz com seu laço pequeno e liso. Apesar de todo o cuidado que Robert tinha posto em

seu traje essa noite, por alguma razão Bel unicamente desejava começar a despir aquele

homem delicioso na primeira oportunidade.

— Não posso suportar — exclamou ela, lhe apertando a mão enquanto mantinha os

olhos fechados com força. — Onde estamos?

— Já o verá — disse ele em tom brincalhão. — Não olhe.

Ela ouviu o ruído da porta da carruagem ao abrir-se e o som metálico que fez o lacaio

ao puxar o degrau. Robert tomou a mão enluvada de Bel, saiu primeiro e a guiou até o

degrau da carruagem.

— Cheira a cavalos — afirmou ela, enrugando o nariz.

— Muito bem — disse ele. — Já pode olhar.

Bel levantou as pálpebras lentamente. Robert permaneceu a seu lado, sorrindo-lhe e

segurando-a pela mão enquanto os lacaios esperavam com atenção.

Bel ergueu a vista em direção ao majestoso edifício liso e claro que tinha diante. Ao

reconhecê-lo ficou boquiaberta.

— Almack’s — disse em voz baixa.

Robert sorriu abertamente.

O salão de celebrações do Almack’s! Seu sonho de juventude feito realidade! Não

obstante, fechou a boca de repente e se voltou para ele, aterrada.

— Não posso entrar! Vaiarão-me!

— Quem? — perguntou ele suavemente com um sorriso malicioso. Temos o local

para nós.

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Bel ficou olhando-o surpreendida.

— Alugou Almack”s para mim?

— Mmm.

— Todo o recinto?

— Incluída a orquestra.

— Oh, Hawkscliffe! — Jogou-se do degrau da carruagem aos braços de Robert.

Hawk a beijou rindo enquanto um rubor varonil lhe tingia as faces, e a deixou no

chão.

— Ninguém tinha tido uma cortesia assim comigo! Mas é um esbanjamento

tremendo...

— Você vale isso. — Robert fez um gesto em direção às portas de duas folhas, com

os olhos demonstrando uma enorme ternura que se correspondia com a careta irônica e

mundana de sua boca. — Vá dar uma olhada.

Soltando uma gargalhada de surpresa e alegria, Bel pôs-se a correr diante dele e

desapareceu no interior. Hawk a seguiu rindo entre dentes.

— Oh, Robert, é... Almack’s — disse ela assombrada em voz baixa quando ele a

alcançou, apesar de não ter transposto ainda o vestíbulo. Ficou contemplando de forma

reverencial a suntuosa e imponente escada que conduzia ao salão de celebrações.

Ardia em desejos de subir à parte de acima, mas se sentia como uma intrusa em um

terreno sagrado. Quase podia ouvir o comitê de damas vaiando em sinal de desaprovação.

Quando Robert avançou e se aproximou dela, Bel se voltou para ele com ansiedade.

— Este não é meu lugar.

Ele não disse nada, limitou-se a sorrir a modo de recriminação e lhe ofereceu o braço.

Armando-se de coragem, ela pousou a mão lentamente no braço de Robert e a seguir subiu

em sua companhia a famosa escada onde, durante as doze noites das quartas-feiras da

temporada, só eram admitidas as pessoas com a reputação mais irrepreensível e o mais

delicioso refinamento.

Belinda notou que ele a observava carinhosamente enquanto ela contemplava,

maravilhada, os detalhes mais insignificantes. Mas a sóbria elegância do Almack’s não era

comparável ao opulento esplendor de Knight House. A escada desembocava em um amplo

vestíbulo, a cada lado havia salas que, conforme lhe disse Robert, eram usadas para jantares

e banquetes, e justo em frente se achava o lugar sagrado: o salão de baile.

Virtualmente sem fôlego devido ao assombro, Bel entrou e contemplou tudo o que

havia ao seu redor. O salão de baile tinha uns trinta metros de comprimento e a metade de

largura, e possuía um teto branco liso que se erguia nove metros por cima deles. Um friso de

cor creme coberto de um intenso dourado rodeava a estadia; as paredes de baixo estavam

pintadas de tênue verde e havia enormes janelas em forma de arco distribuídas de forma

regular. As molduras e as gravuras, tanto os medalhões como as grinaldas, eram de cor

branca. Havia bancos em cada parede, e em um extremo, um elevado palco de música com

uma grade dourada. Bel arregalou os olhos e se deu conta de que os músicos estavam de pé

esperando pacientemente, que ela entrasse.

Bel os saudou com a cabeça de forma vacilante.

— Boa noite.

— Boa noite, senhorita — disse o diretor inclinando-se com ar cordial. — Deseja a

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jovem dama ouvir alguma peça em particular?

— O... O que costumam tocar, obrigado. — Virou-se para Robert cheia de assombro,

enquanto os membros da orquestra se sentavam com seus instrumentos.

Ele sorriu ao mesmo tempo em que o encantador divertimento interpretado pelos

músicos invadia o salão de baile.

Bel caminhou pelo centro da pista e pôs-se a rir a gargalhadas, dando voltas para um

lado e outro, tentando assimilar tudo aquilo. Havia deslumbrantes espelhos e lustres

resplandecentes, e duas figuras de deuses clássicos de tamanho natural que seguravam

candelabros.

— Não posso acreditar que tenha feito isto por mim. Robert, esse é o presente mais

maravilhoso que me deram!

— Lembrava-me da tristeza com que me falou deste velho lugar no dia que

passeamos pelo Hyde Park. Além disso, quero que esta noite seja perfeita para você — disse

ele em tom grave e íntimo. A seguir lhe pegou a mão e a beijou. — Concede-me esta dança,

senhorita Hamilton?

Ela deixou escapar uma corrente de ingênuas gargalhadas.

— Oh, senhor, deixe que pergunte a minha dama de companhia!

Ele riu de sua atitude e a conduziu para o centro do enorme e ressonante salão, e

ordenou à orquestra que tocasse uma valsa. Os dois se viraram e se colocaram rosto a rosto.

Robert lhe fez uma reverência, lhe correspondeu com uma leve e correta inclinação,

enquanto ambos tratavam de conter a risada.

Bel pousou sua mão sobre a mão esquerda de Hawk, lhe colocou a mão direita na

cintura e a música começou a soar. Dançaram até que ela esqueceu de que pudesse haver

motivos no mundo para não rir. Beberam uma garrafa do mais delicioso champanha e

voltaram a dançar, dando voltas ao redor do chão desigual enquanto os ponteiros do relógio

davam duas horas, três, até que em meio de um giro Robert a pegou contra seu peito,

acariciou-lhe o queixo e aproximou lentamente seus lábios aos dela.

Bel fechou os olhos e jogou os braços ao pescoço. Recebeu sua língua dentro da boca

a modo de cálido e apaixonado convite, enquanto deslizava seus dedos enluvados pelo

cabelo de Hawk.

Ela sentia a cabeça muito leve e o sangue muito quente, e apenas se deu conta de que

minutos antes tinham retornado a Knight House. Beijavam-se sem descanso enquanto

avançavam aos tropeções pelo vestíbulo em direção a seu quarto, detendo-se

constantemente para desfrutar de cada carícia. Ela tinha tirado as luvas. Ele tinha o lenço

desamarrado.

Robert mediu em busca da maçaneta sem deixar de beijá-la, abriu a porta do

dormitório e a arrastou para dentro. Ela entrou no quarto, fazendo um giro, beijando-o em

todo momento com uma febril urgência.

Um trecho iluminado pela lua conduzia à cama de colunas com dossel, mas Robert e

Bel permaneceram junto à porta. Ela o atraiu para si, agarrando-o pelas lapelas de sua

jaqueta de veludo.

Ele separou as pernas e Belinda se colocou entre elas, pois seus beijos a faziam agir

com uma audaz impaciência.

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— Tem sabor de champanha — disse ela entre risinhos, e logo procurou sua língua

com a sua em outro beijo apaixonado. Tirou-lhe o lenço do pescoço e começou a lhe

desabotoar os botões do colete.

Ele introduziu um dedo sob seu vestido à altura do ombro e percorreu seu decote,

roçando o decote que descia pelo peito.

Bel ofegou, sentindo como seu mamilo se endurecia imediatamente.

Robert lhe acariciou o pescoço com a leveza de uma pena, rodeou-lhe o queixo e lhe

tocou os lábios. Ela fechou os olhos e, levando o dedo de Hawk à boca, beijou-o e chupou

com fruição. Ele a observou na escuridão enquanto sua respiração se tornava cada vez mais

profunda.

Agarrou-a pelo quadril com a outra mão e puxou-a contra seu corpo, forte e trêmulo.

Ela sentiu seu membro palpitante contra a barriga e compreendeu que ele estava tratando de

controlar-se. Bel desfrutou enormemente de sua obediência, sua solicitude quase passiva,

enquanto Robert deixava que lhe fizesse o que ela desejasse. Mostrando um maior

atrevimento, Bel o acariciou através das calças. Ele gemeu e recostou a cabeça contra a

porta.

A mão de Bel subiu pela protuberância e pelo ventre plano até chegar ao tórax, e

então deslizou os dedos pela nuca de Hawk e o olhou fixamente. Ele a contemplou com uma

expressão de êxtase tormentoso.

— Venha e me ensine a desfrutar como me prometeu — sussurrou, porque estou

pronta para aprender.

Ele dedicou-lhe um sorriso tão sedutor que fez com que Bel estremecesse da cabeça

aos pés. Robert se dirigiu tranquilamente à cama levando-a pela mão. Sentou-a na beira e

aguardou reclinando-se com as mãos apoiadas. Ele se inclinou e lhe deu um beijo que a

deixou sem fôlego, lhe acariciando suavemente os seios através do vestido, e logo os beijou.

Retirou-se com uma delicada reverência para acender as velas. Ela sorriu ante aquele

detalhe, sentindo-se mimada ao ver que acendia todas as velas do quarto para afugentar as

trevas. O dormitório se iluminou com uma luz alaranjada e cálida procedente do candelabro

que havia no suporte da lareira, da vela da penteadeira e da que havia sobre a mesinha de

noite, e logo Robert retornou junto a ela, sorrindo com ternura enquanto o fulgor tênue e

íntimo das chamas perfilava os traços de seu rosto com sombras misteriosas.

Tirou a jaqueta desabotoada diante de Bel e a lançou atrás dele. O olhar de admiração

de Bel abrangeu seus largos ombros e sua firme cintura. Os botões dourados do colete

cintilavam à luz das velas enquanto desabotoava os últimos que ficavam abotoados, e a

seguir lançou a roupa.

Sua camisa branca de fino linho tinha um pequeno babado na parte dianteira. Bel o

afastou depois de endireitar-se na cama, para deixar descoberto seu peito musculoso, e

beijou o V que se formava em sua pele bronzeada. Tremeu de expectativa quando Robert

puxou a camisa e a tirou pela cabeça.

Seus olhos coincidiram. Ele a olhou docemente, com o cabelo revolto e os lábios

úmidos, inflamados pelos beijos.

Ela acariciou e beijou sua fina e aveludada pele, explorando seu forte peito e seu

ventre esculpido. Robert permaneceu de pé com olhos fechados, desfrutando languidamente

de suas carícias.

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Bel pousou as mãos em seus largos ombros e se deu o gosto de percorrer seus braços

em uma pausada carícia, gozando de cada uma das curvas elegantes e duras como rochas de

seus bíceps e seus fortes antebraços.

— É... Um magnífico espécime, Hawkscliffe.

Ele riu docemente, levantou as pálpebras e a pegou pelas mãos quando as carícias

chegaram a seus pulsos. Entrelaçou seus dedos com os dela, inclinou-se e lhe deu um beijo.

Permaneceram assim junto à cama durante um tempo interminável, agarrados pelas

mãos e beijando-se.

— Quero vê-la — sussurrou ele finalmente.

Bel se ruborizou, embora estivesse ansiosa por continuar, apesar de seu acanhamento.

Virou-se e soltou o cabelo, desabotoou o vestido pelas costas e desatou o leve espartilho.

O coração de Bel se acelerou quando deixou cair delicadamente o vestido pelos

ombros. O toque da suave musselina ao deslizar-se por sua pele era incrivelmente sensual.

A seguir Robert roçou ligeiramente seu corpo com as mãos. Bel estremeceu de desejo

quando ele se sentou na cama atrás dela, pegou-a pelos quadris e o beijou na zona lombar

uma e outra vez através das anáguas quase transparentes.

Quando não ficou mais rastro de seu vestido que uma massa de seda branca no chão,

ele se ajoelhou e colocou as mãos sob suas anáguas. Suas mãos quentes e seguras subiram

por suas panturrilhas em direção às ligas e passou a lhe tirar as meias.

Robert as desceu até os pés e ela as tirou. Ele ficou em pé outra vez, enquanto seu

esplêndido tórax se inchava de desejo. Seus olhos se tornaram mais escuros sob as pálpebras

e brilhavam como estrelas na meia-noite.

Tocou-lhe o peito suavemente.

— Um momento — sussurrou Bel. — Não queremos que se converta em papai por

acidente. Dispunha-se a aproximar-se do biombo de estilo chinês para fazer uso da esponjita

redonda atada a um fio, tal e como lhe tinham ensinado, mas Robert a deteve puxando-a

suavemente pela cintura. Olhou-a fixamente nos olhos.

— Acaso seria algo tão mau? — perguntou.

Deu um salto seu coração.

— N... Não.

— Está preparada, Belinda?

— Sim estou... Preparada. — Bel conteve a respiração com nervosismo e foi

conduzida pela mão dele até cama, onde terminaram de despir-se. Robert se meteu sob os

lençóis e ela permaneceu sentada junto a ele por um instante, com ar indeciso e o coração

palpitante.

Bel o observou enquanto Robert lhe tocava o ventre de forma terna e quase reverente,

e aspirou quando lhe pousou uma mão no peito.

Ele se endireitou com um movimento elegante e lhe beijou o seio. Bel fechou os

olhos. Robert abriu a boca e o chupou... E então começou tudo.

Percorreram seus corpos com as mãos, acariciando-se, apalpando-se, massageando-

se. Ele a arrastou sob os lençóis, e Bel descobriu o poderoso efeito afrodisíaco do corpo nu

de Robert contra sua pele. Ele a excitou até extremos quase insuportáveis enquanto seus

corpos se entrelaçavam.

Por um breve instante Bel sentiu que a sombra do medo se abatia sobre seu coração,

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mas tudo passou assim que abriu os olhos e olhou a Robert. Não houve um só momento em

que ele não agisse de forma deliciosamente considerada, paciente e amável.

— Quero-a, Belinda — sussurrou, beijando-a no pescoço.

Extasiada, Bel sussurrou sua promessa de amor a modo de resposta, rodeando com as

pernas os quadris de Robert. “Sim, agora”, pensou, aferrando-se a ele com força enquanto

Hawk dirigia seu membro para seu sexo, embora ainda não estivesse disposto a satisfazer

seu desejo. Ergueu-se em cima dela apoiando-se com as mãos e olhou seu rosto enquanto se

divertia deixando-a louca com a ponta de seu membro movendo-se com investidas breves e

provocadoras.

Bel ergueu os quadris gemendo, desejosa de receber mais, mas ele sorriu

maliciosamente e tirou seu pênis. Desceu por seu corpo, inclinou a cabeça e a deleitou com

sua língua durante um momento, molhando e estimulando seu clitóris e chupando-o

enquanto ela se movia com ele no mais íntimo dos ritos. Uma vez mais a levou até o limite

do prazer, mas quando seus gritos ameaçavam preceder o clímax, introduziu a ponta de seu

membro dentro de sua cavidade, úmida e ardente. Penetrou-a um pouco mais do que na vez

anterior, mas ela ansiava muito mais. Alternou aquelas tormentosas práticas várias vezes até

que ela alcançou um estado de êxtase ou agonia, ou ambas as coisas ao mesmo tempo.

— Por favor, por favor — se ouviu dizer Bel, rogando sem deixar de ofegar.

— Tem certeza de que é o que deseja? — sussurrou ele. — Preciso saber que tem

certeza, Belinda.

— Oh, Deus, sim — disse ela gemendo, arqueando-se freneticamente para sentir o

corpo do Robert contra o seu, seu duro peito roçando seus seios. — Quero senti-lo dentro de

mim. Muito dentro de mim, Hawk, por favor.

Beijou-lhe a fronte e atendeu a seu rogo introduzindo-se pouco a pouco dentro dela.

— Ohhh — murmurou Bel aflita, fechando os olhos e sentindo como ele a penetrava

com extremo cuidado. Ela o rodeou com os braços e se aferrou a ele, notando o leve suor

que cobria o peito de Robert quando se apoiou nos cotovelos e a abraçou, sem mover-se

dentro dela.

Permaneceram completamente quietos, sentindo e desfrutando da gloriosa união que

tanto tinham desejado.

Ele a beijou nos lábios e seguiu amando-a até que alcançaram um ritmo quase

frenético. Então se deteve ofegando intensamente.

— Um momento — sussurrou ele, lhe lançando um olhar luxurioso, com os lábios

inchados pelos beijos apaixonados. Girou até que Bel ficou em cima dele e ao falar sua voz

soou como um grunhido sedutor. — Tome querida.

Bel obedeceu colocando-se lentamente escarranchada sobre ele.

— Oh, meu amor — disse ela em voz calma, gozando da postura. Ele a penetrava

agora até o fundo, e quando Bel começou a montá-lo a segurou suavemente pelos brancos

quadris com suas mãos fortes e bronzeadas.

— É tão formosa — disse Robert com voz entrecortada, contemplando-a com seus

olhos escuros e brilhantes.

Quando ele tocou com a ponta do polegar o centro palpitante de Bel, ela estremeceu e

jogou a cabeça atrás, acelerando o ritmo. Momentos depois ele se endireitou contraindo os

músculos do ventre e alcançou seus seios bamboleantes com a boca. A sensação do ventre

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liso de Robert ao roçar contra seu montículo desarmou completamente Bel.

O prazer a envolveu por toda parte: dentro dela, ao seu redor... As mãos de Robert,

seu membro rígido, sua boca. Bel se entregou ao demolidor clímax, alheia aos gritos

sonoros e agônicos que escapavam de seus lábios. Só era consciente do modo em que ele

envolvia seu corpo com seu selvagem êxtase amoroso.

Quando o furor apaixonado de Bel começou a ceder, Robert deixou escapar um grito

grave e entrecortado que se viu amortecido contra o pescoço de Bel. Seu peito se inchou

quando a deitou de barriga para cima e a possuiu. Investiu-a uma e outra vez, estremeceu-se

e então seus músculos tensos começaram a relaxar. Ela sentiu como seu coração pulsava

com força contra seu corpo.

— Quero-a — disse Robert. Parecia abalado.

Ela puxou-o com delicadeza, Robert apoiou a cabeça em seu peito, ainda dentro dela.

Sentindo-se pesado e exausto, deu a Bel um doce beijo no peito e recuperou pouco a pouco

o fôlego.

— Eu também o quero, Robert — sussurrou ela, beijando-o na testa. — Eu também o

quero.

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DEZOITO

A viagem de dois dias de duração pela Great North Road os tinha levado através dos

suaves campos verdes de lavoura dos condados, onde Bel viu pitorescas chatas que

transportavam sua carga pelos canais e a fumaça branca que saía dos fornos das olarias em

plena atividade. Com a proximidade da colheita, os campos transbordavam de cevada e

trigo.

O tempo se mantinha favorável, com brisas agradáveis e céus de um azul intenso por

cima de suas cabeças, a estrada que percorriam era excelente, de modo que as intermináveis

horas de viagem na robusta carruagem de Robert foram bastante tranquilas.

Quando passaram a ponte e entraram na antiga cidade dos York, onde passariam a

segunda noite de sua viagem, a luz dos últimos dias do verão ainda dançava sobre o rio

Ouse com brilhos que se assemelhavam a lantejoulas douradas. Recolheram Jacinda e

Elizabeth e foram dar um passeio pela Rua Shambles para estirar as pernas, e se detiveram

na enorme e silenciosa catedral medieval para dar uma volta por seu interior. Bel admirou a

imponente janela do leste que representava a Criação. A deliciosa vidraça parecia estender-

se para o céu, com suntuosos detalhes extraídos da imaginação de artesãos que estavam

mortos há séculos.

Pegou Robert pela mão e juntos contemplaram a grande janela do oeste, através da

qual resplandeciam os últimos raios de sol com um esplêndido colorido. Abandonaram a

catedral com pesar já que Jacinda estava se queixando e as duas jovens se achavam

cansadas, famintas e mal-humoradas. Retiraram-se para a cálida hospitalidade da estalagem

situada do outro lado da Praça de High Petergate.

Robert tinha encarregado que levassem aos aposentos uma comida copiosa composta

de fumegantes bolos de carne com purê de batatas e pudim dos York. Bel achou uma

inexplicável satisfação em observar como Robert comia e acompanhava o jantar com uma

boa e fria cerveja negra da taverna. Parecia que quanto mais se afastavam de Londres, mais

cheio de energia se sentia.

Depois de um bom jantar campestre, Jacinda deu um abraço aos dois e lhes desejou

boa noite, enquanto Lizzie fez uma tímida reverência. As garotas se retiraram a seu quarto e

Robert se recostou em sua cadeira, olhando Bel com um brilho nos olhos cujo significado

conhecia bem.

Deixou a vela acesa sobre a mesa e ao cabo de pouco tempo a tinha convencido para

ir para cama. Bel se deitou no colchão e rodeou Robert com os braços, sorrindo ao pensar na

rapidez com que estava vencendo seus temores. Então ele prosseguiu com sua educação.

À manhã se achavam frescos e preparados para dirigirem-se para o oeste

atravessando os vales do condado dos York e deixando para trás os tristes vales inóspitos.

Ao acabar o dia chegaram ao condado de Westmorland.

— Praticamente estamos na Escócia — declarou Bel, e sua excelência e sua irmã se

sentiram ofendidos. Ela riu de sua indignação quando lhe asseguraram que ainda não tinha

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visto a paisagem mais formosa do mundo. Inclusive o famoso pintor Constable o tinha

afirmado, gabou-se Jacinda.

No terceiro dia dedicaram-se a serpentear através de colinas e colinas rochosas e

entre resplandecentes lagos sulcados por brisas. Bel podia perceber a magia no ar, as colinas

adquiriram um tom esmeralda tão verde que sentiu que lhe partia o coração. As extensas e

onduladas cúpulas apareciam ao seu redor por toda parte. O ar era cada vez mais escasso à

medida que aumentava a elevação. Talvez aquela fosse a forma mais simples de explicar a

presença da musa dos poetas naquelas paragens açoitadas pelo vento, pensou Bel, mas ali

por onde olhasse, a recebia a beleza; da imponente majestade do Saddleback às ovelhas que

dormitavam felizes junto à água azul dos vales.

Quando se deteve para admirar o lago de Grasmere, lançou uma olhada ao duro perfil

de Robert recortado contra o sol, com o cabelo revolto pelo vento. As colinas onduladas,

marrons e verdes, salpicadas pelas nuvens, estendiam-se ante seus olhos, e Bel

compreendeu que aquele era seu mundo, seu verdadeiro elemento, e não a afetada opulência

do Parlamento e Knight House, nem as lotadas ruas de Londres sob o atento olhar da

sociedade; mas sim aquela extensa paisagem, com seus céus melancólicos e suas rústicas

comodidades.

E quando ao por do sol, divisaram a mansão Hawkscliffe, deslumbrante na distância,

ele parecia o digno senhor do castelo que contemplavam, erguendo-se por cima de um

pequeno lago que reluzia como um espelho. Durante um longo momento todos ficaram

quietos olhando-o.

A mansão Hawkscliffe possuía tal ar de eterna permanência que fez com que Bel se

lembrasse da frase que Robert lhe tinha sussurrado na manhã do duelo: “Fica para sempre”.

Pela primeira vez desde que ele a tinha pronunciado, Bel entendeu o que tinha querido dizer

com ela. Compreendeu que as palavras “para sempre” não eram um capricho vão para um

homem que residia em um castelo com séculos de história. Por um instante sua segurança se

cambaleou. Apesar da aparência romântica do acordo que os unia, tratava-se de algo

temporal. Ou não era assim?

A única resposta a sua pergunta foi o som de um falcão que voava em círculos por

cima deles.

Robert o olhou, entreabrindo os olhos para protegê-los do sol.

As flores selvagens balançavam nos campos ao redor, e o caminho poeirento que

tinham adiante traçava uma curva em torno do lago.

— Não me havia dito que vivia em um autêntico... Castelo — disse Bel seguindo

com o olhar a extensa muralha azul cinzenta que defendia o alto topo da colina, a uns

oitocentos metros de distância.

Robert a olhou de esguelha, sorrindo fracamente.

A mansão Hawkscliffe tinha ameias e elevadas torres circulares nos muros,

distribuídas a intervalos regulares, e um alto torreão quadrado, e Bel não pôde evitar

imaginar arqueiros disparando longas flechas dali e cavalheiros saindo à carga sobre seus

cavalos de batalha.

Era um cenário idílico, como um sonho.

O falcão emitiu de novo um grito com ar triunfante.

Bel ergueu a vista para a ave majestosa, cobrindo os olhos com a mão.

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— É lindo.

— São criados aqui. Se você gosta de falcoaria, mostrar-lhe-ei as jaulas. Vamos. Faz

séculos que não estou em minha casa.

Bel o seguiu até a carruagem, desconcertada. Em Londres lhe tinha parecido o

homem ideal, cheio de riqueza e influência, possuidor de refinada intensidade cosmopolita;

um homem cuja sutileza e diplomacia inatas facilitavam o lucro de seus elevados ideais.

Entretanto, ali, no lar de seus antepassados, não podia evitar vê-lo como uma espécie de

senhor guerreiro duro e forte e em plena maturidade. O castelo tinha dragão e tudo,

conforme descobriu Bel ao topar-se de novo com a arpía da senhora Laverty, mas desta vez

não estava disposta a permitir que aquela mulher a intimidasse.

A mansão Hawkscliffe era por dentro um labirinto de corredores, curvas e espaços

nos quais ela imaginava perfeitamente como Robert e seus irmãos tinham desfrutado

quando pequenos brincando de esconderijos. Enquanto Jacinda lhe falava com excitação dos

fantasmas que moravam no castelo, Robert a levou a dar uma volta por aquele lugar

enigmático e estranho.

Os elementos dourados e banais do gosto rococó de sua mãe cobriam os motivos de

estilo jacobino, mais antigos, escuros e robustos, e tudo isso se achava encerrado em uma

carapaça medieval. Jacinda mal podia conter seu entusiasmo enquanto corria de um lado

para outro, tocando em tudo e reconhecendo os objetos familiares que achava em cada

aposento. Havia um salão veneziano, uma sala da China, um salão de baile e uma sala de

bilhar, e todos eles levavam a estampagem do estilo de inspiração francesa da duquesa

Georgiana.

A seção mais recente do castelo, espaçosa e redecorada com gosto, conduzia a uma

sala de jantar escura muito mais antiga com uma longa mesa cinza. O grande vestíbulo e as

salas com tapeçarias eram as estadias mais vetustas. Bel quase podia imaginar os

antepassados de Robert tramando seus planos de batalha contra os clãs da fronteira

escocesa. Ela deixava voar sua imaginação enquanto olhava tudo o que a rodeava. Tomara

seu pai tivesse podido ver aquele lugar.

Unido à parte dos fundos do castelo se achava um jardim de inverno com um laranjal.

Além das vidraças havia terraços com arbustos podados, e no centro, um pequeno jardim.

Bel percebeu que as dezenas de hectares com amplas extensões de grama e bosques em

encostas que se achavam além dos jardins pertenciam a Robert, assim como o lago profundo

de cor anil situado à sombra das ladeiras.

Saíram ao pátio coberto de cascalho, onde Robert lhe indicou a capela, a residência

dos criados, o escritório da propriedade e o abrigo das carruagens, e os enormes estábulos e

cavalariças localizados mais longe, na parte traseira.

Jacinda e Lizzie partiram correndo a visitar seus cavalos favoritos enquanto Bel e

Robert retornavam ao interior.

— Tem um lar maravilhoso, Robert. De verdade, maravilhoso. Parece um lugar

tirado das novelas de Walter Scott — disse ela, agitando a cabeça com assombro.

— Dou-lhe minhas mais calorosas boas-vindas — respondeu ele suavemente,

levando-a mão de Bel aos lábios.

Ante a pergunta de um lacaio, Robert ordenou que as coisas dela fossem depositadas

no quarto contiguo ao seu. Formulou aquela impudica ordem sem alterar-se. Ela o olhou de

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esguelha, surpreendida, mas contente com a atitude aberta com que encarava sua relação.

Parecia que por fim estavam de acordo: ela tinha renunciado à segurança da regra principal

das cortesãs, e ele por fim parecia havê-la aceitado de forma sincera em sua vida.

Nessa noite Robert a levou para a luxuosa cama onde ele mesmo tinha sido

concebido e a possuiu com um vigor que correspondia à força que aquela terra lhe

outorgava.

Nos dias seguintes Bel descobriu que, até tendo estado ausente durante meses, Robert

era um dos pilares da vida local, pois era requerido quase diariamente por pessoas que

percorriam quilômetros para lhe pedir conselho ou ajuda. Ele sempre achava tempo para

eles.

Ela se manteve ocupada cuidando das jovens damas. Embora só fosse a amante de

Robert, elas sentiam admiração por Bel. O afeto e a necessidade que lhe demonstravam a

ajudou a curar-se quase tanto como o amor de Robert. A cada tarde ensolarada iam rondar

pelo campo com seus chapéus de aba longa, em busca de paisagens para desenhar.

Jacinda e Lizzie já eram praticamente adultas e nenhuma das duas tinha conhecido a

mãe. Bel se sentia comovida pela ansiosa necessidade de sentirem-se queridas e sua boa

disposição para aceitar seus conselhos. Nos dias seguintes, entre chás e bolachas, logo se

inteirou de que Jacinda se assustava com a ideia de fazer sua estreia em sociedade,

consciente de que as patrocinadoras do Almack’s e as pessoas de sua classe a olhariam com

olhos de lince, procurando em sua conduta algum sinal do caráter escandaloso de sua mãe.

Lizzie, por sua parte, confessou-lhe que sua condição de pupila sem dinheiro tinha

sido durante muito tempo um grande suplício para seu orgulho. Preocupava-lhe o que seria

dela quando Jacinda fizesse sua entrada na sociedade e se casasse. Além disso, estava

loucamente apaixonada por lorde Alec.

Na segunda-feira de sua segunda semana no campo, Jacinda prometeu a Bel uma

mágica surpresa.

— Hoje vou levá-la para ver o lugar mais espetacular de todos. Reservamo-lo para o

final, não é, Lizzie?

As duas garotas se olharam a uma à outra e soltaram um risinho.

— Vá, do que se trata? — perguntou Bel, enquanto colocava a cesta da comida e os

cadernos de desenho nos braços do sofrido lacaio.

— É o castelo de Pendragon — anunciou Jacinda em tom reverente. Há muitos anos

foi o castelo do Uther Pendragon... O pai de rei Artur!

— Que fantasiosa é, Jacinda.

— É verdade! É um lugar horripilante. Algumas pessoas dizem que Merlin, o

feiticeiro está encerrado no grande disco que vigia as ruínas.

— Tolices.

— Está dizendo a verdade, senhorita Hamilton, a sério — confirmou Lizzie,

assentindo solenemente com a cabeça ao mesmo tempo em que abria muito os olhos.

— Meus irmãos costumavam brincar ali de pequenos, como cavalheiros da Mesa

Redonda — disse Jacinda sorrindo abertamente, e a seguir se afastou do sol.

Partiram a pé e se acharam com vários aldeãos pelo caminho: um trio de meninos

pastores que estavam cuidando do rebanho, um ancião camponês que conduzia sua carroça

com frangos em direção ao mercado e dois homens curtidos de aspecto competente que

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Jacinda apresentou como o guarda-florestal e o administrador da propriedade. Disseram-

lhes que se dirigiam de volta à residência para comer.

Bel ficou olhando divertida como Jacinda lhes perguntava pelos campos e bosques

dos arredores com toda a seriedade da dama legítima da mansão. Eles atenderam suas

petições com os olhos brilhantes, mas Bel percebeu o interesse varonil que demonstravam

por ela, a “preceptora”, e fugiu sem mal pronunciar uma palavra.

O bronzeado administrador da propriedade assegurou que não podia agradecer o

suficiente ao duque pela prosperidade que tinha dado aos vizinhos com sua mentalidade

previsora aplicada às melhoras técnicas agrícolas. O corpulento guarda-florestal, com voz

suave, confessou que tinha recebido instruções para fazer vista grossa à prática da caça

furtiva nas terras de sua excelência, o que contribuía para a reputação que Robert tinha de

proprietário benévolo.

Finalmente se separaram; o lacaio caminhando penosamente atrás delas, carregado

com as provisões. Quando se achavam perto do Wild Boar Fell, divisaram uma manada de

pôneis selvagens bebendo no rio Éden. Detiveram-se e observaram aos pôneis com deleite,

até que a manada decidiu que o grupo não era confiável e fugiu em correria por cima da

colina. Entre exclamações de alegria pelo encontro inesperado com os pôneis, retomaram

seu caminho em direção às ameaçadoras e escarpadas ruínas do castelo de Pendragon.

Bel contemplou fascinada a armação de pedra da antiga fortaleza. O castelo de

Pendragon, um fragmento vivo de um mito antigo, mantinha-se de pé em um lado, por cima

de cujo deteriorado pináculo se sobressaía uma grande árvore, enquanto que a outra metade

da muralha desabara.

Aproximou-se e explorou o lugar enquanto Jacinda ordenava ao lacaio que

preparasse o lanche. Bel podia imaginar o bando de malandros brincando de cavalheiros da

Távola Redonda do rei Artur. Ouviu às suas costas o som de pegadas nas rochas e virou

para descobrir Lizzie abrindo passagem com dificuldade entre pedras cobertas de musgo.

— Estava pensando que nunca ouvi falar dos outros irmãos de lady Jacinda — disse

Bel à garota. — Só conheço Hawkscliffe e lorde Alec.

— Bom, o segundo a nascer foi lorde Jack, mas não se fala dele na boa sociedade. —

Lançou um olhar furtivo por cima do ombro. — Receio que é a ovelha negra.

— De verdade se dedica ao câmbio negro? — sussurrou Bel.

— Eu acredito que seja capaz disso, embora tenha bom coração, senhorita Hamilton.

— Por que lorde Jack se fez contrabandista?

Nenhuma das duas viu Jacinda aproximar-se saltando de rocha em rocha, mas pelo

visto ela as tinha ouvido.

— Porque queria rebelar-se contra papai por ter sido cruel com ele — declarou. —

Meu pai não era seu pai. Só Robert e eu temos o seu sangue. Robert é o herdeiro, Jack

supunha que tinha que ser o suplente, e eu a menina bonita.

Bel ficou boquiaberta, e Jacinda soltou uma sonora gargalhada.

— Não tem nada. Não me importa falar com você de minha família, minha querida

senhorita Hamilton. Agora é também você uma a mais. — Deu um abraço em Bel quando

chegou ao seu lado, e logo riu e se balançou sobre uma rocha. — Todo mundo sabe que

minha mãe tinha montões de amantes e eu farei o mesmo quando for maior — disse em tom

desafiante.

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— Jacinda!

Ela deu de ombros com ar indiferente, sem fazer o menor caso ao olhar horrorizado

de Bel.

— O único de meus irmãos que gostava de papai era Robert.

Bel pensou por um momento em exortar à moça, mas chegou à conclusão de que ela

só a estava pondo a prova para ver sua reação.

— Não é estranho que um homem concentre toda sua atenção em seu herdeiro e se

esqueça do resto dos filhos.

— Papai morreu pouco antes que eu nascesse assim não sei quais eram seus motivos,

mas reconhecerá que não se comportou muito bem, digamos assim. A única coisa que sei é

que um dia Jack se fartou, abandonou Oxford e se fez ao mar. Depois de Jack vêm os

gêmeos, Damien e Lucien.

— São incrivelmente bonitos — sussurrou Lizzie.

— Damien é coronel de infantaria e um herói de guerra, não me importa dizê-lo –

afirmou Jacinda orgulhosa. — Uma vez apanhou uma águia francesa quando estava em

combate. Os oficiais de seu regimento lhe fizeram uma reprodução e agora está pendurada

em Knight House.

— Ah, sim, já a vi — disse Bel perplexa. — E Lucien?

— Supõe-se que não temos que saber onde está — começou Lizzie. Mas a guerra já

acabou. Não acredito que aconteça nada se o dissermos! — Jacinda olhou a Bel sorrindo

com malícia. — Lucien está em Paris. É um espião!

— Observador — a corrigiu Lizzie, mas Jacinda soltou um grunhido ao ouvir o

termo.

— Um espião, de verdade? — perguntou Bel assombrada.

— Sim, mas não pode contar isso a ninguém. Supõe-se que devemos acreditar que

está fazendo uma escavação arqueológica no Egito para a Royal Society.

— E por que se supõe que devem acreditar isso?

— Como forma de explicar suas ausências da Inglaterra e do corpo do exército.

Pobre Lucien, eu acredito que na realidade teria preferido ser arqueólogo, mas o dever o

chamou. A princípio experimentou a sorte no exército com o Damien (encarregaram-no que

desenhasse armas e que trabalhasse com os engenheiros militares), mas se sentia totalmente

deprimido. Odiava receber ordens.

— Lorde Lucien é um cientista, senhorita Hamilton — declarou Lizzie em tom

cúmplice. — Todo mundo diz que é um gênio.

— Se você o diz, Lizzie. O caso é que quando ele fala não consigo me inteirar de

uma palavra do que diz. — Tenho fome — se queixou Jacinda.

— Então celebremos nosso banquete — disse Bel com uma risada radiante, fascinada

ainda pelo exótico repertório dos irmãos Knight, embora inquieta ante as atrevidas palavras

da Jacinda sobre sua intenção de ter amantes quando fosse maior. Embora a jovem só o

houvesse dito em uma tentativa adolescente de escandalizá-la, não augurava nada bom.

Quando se sentaram para comer o lanche composto de presunto em fatias, queijo e fruta,

Bel percorreu com o olhar as feições resmungonas de Jacinda, que eram dignas de um

duende.

— Me fale de sua mãe, Jacinda. Recorda-a?

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— Um pouco. Era muito bonita e esperta e não tinha medo de nada— disse a moça,

afastando o olhar com ar pensativo em direção ao rio rumoroso. — Todos a invejavam, por

isso a gente a odiava... Porque tinha uma alma muito grande para a caixinha onde o mundo a

colocava.

Lizzie olhou a Bel com inquietação.

— Robert se envergonha de nossa mãe, mas só porque papai o pôs contra ela de

propósito.

Bel franziu o sobrecenho.

— É isso certo?

— Isso diz Alec — assegurou Jacinda, com um olhar insolitamente sombrio em seus

grandes olhos. — Robert nem sequer me deixa lhe perguntar por mamãe, até sendo o irmão

maior e o que melhor a conheceu. Não é justo. As pessoas falam de seus amantes e seus

salões e seus escândalos, mas alguma vez ouviu falar de como morreu, senhorita Hamilton?

Bel sacudiu a cabeça, sem saber se seria capaz de suportar. Havia algo

tremendamente sinistro no formoso e viçoso rosto da garota.

— Nossa mãe começou a relacionar-se com os emigrantes franceses durante o

período do terror. Recebeu uma carta em que sua amiga íntima, a viscondessa do Turenne,

com quem tinha estudado em Sorbonne, lhe pedia ajuda. Aquela dama pedia à mamãe que

levasse seus filhos e os tirasse da França... Seu marido, o visconde, tinha sido assassinado

por uma turba. Arriscando a vida, mamãe partiu diretamente a Paris e a partir de então se

comprometeu a ajudar os filhos dos aristocratas para escapar para a Inglaterra. Durante os

anos seguintes fez diversas viagens à França, pondo a salvo mais filhos de nobres. Embora

os jacobinos por fim tinham abandonado a guilhotina, os emigrantes continuavam sendo

considerados traidores da França e ajudá-los a escapar era ilegal. Mamãe foi presa no

outono de 1799, durante os últimos meses do Diretório. Foi acusada de ser uma agente

monarquista e uma espiã inglesa, e depois foi levada ante o pelotão de fuzilamento e

executada.

Bel a olhou fixamente.

— É verdade — murmurou Lizzie, assentindo gravemente com a cabeça.

Bel não parecia capaz de assimilar isso. Durante uns instantes ninguém pronunciou

uma palavra. Aquela era a mulher da qual Robert se envergonhava?

Jacinda — disse por fim Bel com delicadeza-, sua mãe foi uma autêntica leoa. Nunca

tinha ouvido falar de alguém tão valente. Sei que quer ser como ela, mas espero, para o seu

bem, que trate de seguir a risca as normas do decoro, pelo menos até que esteja casada. A

verdade, querida, é que é muito doloroso que todo mundo a critique. Acredito que ela

desejaria que eu lhe advertisse disso. Não quero ver como lhe fazem mal, e também espero

que recorde que se porventura se meter em uma confusão com algum jovem, é possível que

um de seus irmãos tenha que bater-se em duelo para defender sua honra. Querida, ver

alguém a quem se quer por sua vida em jogo por um estúpido engano que cometeu... É algo

muito duro. Asseguro-lhe isso.

Bel percebeu que suas palavras tinham impregnado fundo. Jacinda a olhava

fixamente com os olhos muito abertos e assentia com a cabeça. Depois de deixar de lado tão

desagradável tema, terminaram a comida e ficaram sentadas um momento desenhando as

ruínas do castelo, com a árvore que aparecia por cima e o rio serpenteante. Quando

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recolheram as coisas e empreenderam o caminho de volta à mansão Hawkscliffe, Bel se

sentia adormecida devido ao relaxamento. Com os olhos fechados se deixava arrulhar pelo

gorjeio dos tordos do campo, quando de repente ouviu um ruído de cascos de cavalo a suas

costas. As garotas e ela se voltaram, enquanto o lacaio se afastava do caminho de um landau

descoberto puxado por ruços.

— Oh, Senhor — exclamou Jacinda entre dentes. — É lady Borrowdale e as meninas

de mamãe.

— Jacinda! — repreendeu-a Lizzie, reprimindo um sorriso.

— Quem é?

— A marquesa de Borrowdale, nossa vizinha mais insuportável. Empenhou-se em

caçar dois de meus irmãos para casá-los com suas horríveis filhas. Pobre Robert, ele carrega

com a pior parte.

Ao ouvir aquilo Bel ficou rígida, enquanto o cocheiro vestido com libré puxava os

cavalos. Imediatamente a robusta mulher com chapéu de penas apareceu por cima da

carruagem e gritou com voz ensurdecedora:

— Lady Jacinda! Olá! Olá!

Jacinda soltou um suspiro. Lizzie a seguiu em direção à carruagem para saudar suas

vizinhas.

— Precisamente vínhamos vê-la, querida! Está linda! Já quase parece uma mulher!

— Obrigada, milady — disse Jacinda em tom sofrido.

— Senhorita Carlisle — disse a marquesa a contra gosto ao reconhecer Lizzie.

— Lady Borrowdale. Lady Meredith, lady Anne, que alegria vê-las — respondeu

Lizzie obedientemente, fazendo uma pequena reverência.

Com um enérgico ar presunçoso, lady Borrowdale se voltou para Jacinda e começou

a trocar brincadeiras com suas filhas.

Bel fez uma careta para si mesma. Podia distinguir a vinte metros uma mãe da

sociedade que exercia sua função de casamenteira. Aquele era indubitavelmente o aspecto

mais desagradável de sua vida como uma estranha. Provavelmente cada filha casadoura da

nobreza do norte ambicionava converter-se na mulher de Robert, e ela não podia fazer nada

para evitá-lo.

Ele tinha mantido sua chegada em segredo e se limitara a ocupar-se de seus assuntos,

mas obviamente se propagara a notícia de que um dos solteiros mais desejados da Inglaterra

estava de volta em casa. Bel tinha a desalentadora sensação de que aquele trio não era mais

que o princípio. Felizmente, era impossível que alguma daquelas garotas de rosto pálido

ameaçasse lhe arrebatar o lugar que ocupava no coração de Robert. Aquelas moças, com

suas expressões tensas e desagradáveis, não mostravam a menor faísca de inteligência,

simpatia ou astúcia que compensasse sua ausência de beleza.

Ficaram sentadas no landau em frente de sua despótica mãe, intratáveis , olhando

Jacinda como se a desprezassem por sua beleza, seu ímpeto e seu ardor. Uma tinha o queixo

débil e os olhos apagados, a outra possuía um nariz arrebitado e tinha todo o aspecto de uma

jovem bruxa.

— E quem é esta? — inquiriu a mulher com voz cantante, olhando atentamente a Bel

com receio.

Ao ser mencionada, Bel se aproximou cautelosamente, perguntando-se com que

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réplica maliciosa teria respondido Harriette Wilson à marquesa do Borrowdale.

— Lady Borrowdale, me permita lhe apresentar a preceptora, a senhorita Hamilton

— disse Jacinda.

Bel inclinou a cabeça.

— Lady Borrowdale.

— Preceptora? — Lady Borrowdale a examinou de cima abaixo, da aba de seu

chapéu até a ponta de suas botas de couro de pelica. — Hum, pensava que iam a uma

academia em Londres, querida — disse, virando-se para Jacinda.

Pelo visto só as pessoas com título eram dignas de dirigir-se a lady Borrowdale.

— Fui expulsa — anunciou Jacinda, sorrindo orgulhosamente.

— Não foi expulsa exatamente, milady — a corrigiu Bel em tom de recriminação,

vendo que lady Borrowdale abria os olhos de repente. Bel procurou sorrir à moça. Que

travessa é. — voltou-se para a marquesa com um ar encantador fazendo ver que controlava

a situação. — Evidentemente, a garota está brincando, milady. Sua excelência simplesmente

considerou que viria bem a lady Jacinda um pouco do ar do campo, depois de passar tantos

meses na cidade.

— Ah, que bom que o duque de Hawkscliffe a consulte sobre a saúde de sua irmã,

senhorita... Em, como era?

— Hamilton — disse Bel com serenidade, assombrada pela nota insinuante de suas

palavras.

— Isso, desculpe. Surpreende-me que sua excelência não haja trazido outra senhora

de companhia.

— A senhorita Hamilton é uma preceptora altamente qualificada — replicou Jacinda

com determinação, franzindo suas sobrancelhas douradas, e se aproximou de Bel.

— Com certeza que sim, mas parece que acabasse de sair da escola. A preceptora de

minha sobrinha está procurando um novo posto agora que sua discípula se casou, sabe? É a

Suíça, muito eficiente. Seria perfeita para você. Assegurar-me-ei de comentar o tema com

sua excelência quando formos a sua casa. Além de tudo, o que sabem os solteiros sobre os

bons costumes?

Lady Borrowdale cravou de novo seus olhos em Bel lhe lançando um olhar de breve

e deslumbrante malícia.

Bel se limitou a olhá-la. Acaso achava aquela presunçosa criatura que o duque ia se

engraçar com a preceptora de sua irmã? Obviamente, tudo era uma farsa, mas quem achava

que era aquela mulher para duvidar do duque de Hawkscliffe?

— Lady Borrowdale — disse ela, incapaz de refrear a língua, — asseguro-lhe que a

impecável reputação de sua excelência se fundamenta em um aplicado cumprimento dos

bons costumes e um extraordinário conceito da honra.

Tinha defendido seu patrão como uma leal criada.

Entretanto, comprovou então que, apesar de ter tentado tranquilizar lady Borrowdale

no que dizia respeito a sua presença na mansão Hawkscliffe, tinha obtido o efeito contrário.

Os olhos da mulher lançaram faíscas ante o que considerou um desafio a sua autoridade,

mas Bel se manteve firme.

— Que extraordinária rabugice! – disse ela. — Este vai ser seu modelo de

comportamento, Jacinda? Uma senhorita de Londres com os ares altivos da cidade? Não

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pode ser, digo-lhe isso eu. Não pode ser!

— Negar-se a arrastar-me perante milady não é precisamente ser arrogante —

respondeu Bel, surpreendida de como era fácil descer as fumaças às mulheres presunçosas.

Era tão simples como pôr em seu lugar os cavalheiros muito carinhosos.

Lady Borrowdale ficou com a boca aberta.

— Não vou permitir que uma simples preceptora se dirija a mim desse modo!

Desculpe-se, jovem.

— Por que, senhora? Simplesmente estou lhe recordando a magnífica reputação de

sua excelência.

— Não necessito que me recorde isso, senhorita! Recordar-me isso? Você é uma

descarada. Sua excelência se inteirará disto.

Ante aquela ameaça Bel fez exatamente o contrário do que deveria ter feito.

Sabia de sobra, mas depois de aguentar durante tantos meses os odiosos olhares de

mulheres como aquela detestável marquesa não pôde evitá-lo. Respondeu ao olhar feroz de

lady Borrowdale com um meio sorriso de diversão sereno e cúmplice, como se quisesse

dizer: “conte-lhe o que quiser, ele não vai desfazer-se de mim”.

Era o sorriso de uma cortesã.

Lady Borrowdale a olhou fixamente, ruborizada e cheia de desconcerto.

— Milady – interveio Jacinda com cautela-, talvez agora não seja o melhor momento

para fazer visitas.

— Viemos ver as ruínas e estamos um pouco cansadas — comentou Lizzie com

ansiedade.

— Quererá vir amanhã à hora do chá?

— Ah! — disse lady Borrowdale, deslocando com desconfiança o olhar de Jacinda à

Lizzie e dela à Bel. — Amanhã estarei ocupada. Sua excelência estará em casa na quarta-

feira à tarde?

— É difícil saber. Ultimamente meu irmão está muito ocupado...

— Diga-lhe que quero falar com ele — ordenou a Jacinda.

Inclusive a despreocupada Jacinda se mostrou intimidada.

— Sim, senhora.

— Cocheiro! — disparou lady Borrowdale. Lançou a Bel um último olhar penetrante

enquanto o cocheiro e o ajudante se ocupavam de fazer virar a carruagem.

Elas permaneceram junto ao caminho observando como a marquesa e suas filhas se

afastavam em seu landau. Jacinda se voltou e olhou Bel com os olhos cintilantes de risinho.

— Grande cara fez! Achei que ia cair da carruagem!

— Foi minha culpa — começou Bel, mas as duas garotas começaram a rir a

gargalhadas, e inclusive o lacaio soltou um risinho.

— Merece isso! Faz anos que merece isso! — gritou Lizzie, enxugando uma lágrima.

— Querida senhorita

Hamilton, por favor, ensinar-me-á a me defender assim?

Robert sorriu ao ouvir a história do acontecido com lady Borrowdale e assegurou a

Bel que ele se encarregaria de limar as asperezas, mas ela estava certa: a marquesa e suas

filhas só eram as primeiras de outras muitas, e nem todas eram tão feias como aquelas filhas

de mamãe.

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Jovens inocentes de toda a região, formosas e recatadas, iam com o pretexto de

visitar Jacinda e, enquanto isso, colocavam o nariz como gatinhas curiosas em cada sala

pela qual passavam, tratando de vislumbrar a Robert. Ele tinha abandonado o primeiro piso

com o fim de evitá-las.

Nessa noite Bel ficou acordada vendo como ele dormia com seu perfil recortado

contra a luz da lua, e se surpreendeu pensando que Robert teria que casar-se algum dia. O

que ia fazer ela então? Ficar? Partir?

Não tinha nem ideia. Era um tema do que não tinham falado, não tinham nenhum

motivo pelo qual falar disso, pois a escolha de Robert em matéria de noivas não tinha nada

que ver com ela. Para os homens de sua classe o matrimônio se apoiava no poder e

propriedades, tão simples como isso. Bel não se oporia a que ele cumprisse com aquela

obrigação, sabia que um amante de tão ilustre berço não poderia lhe oferecer seu sobrenome

e ela não o tinha esperado em nenhum momento.

Mesmo assim, era doloroso.

Consolou-se pensando que, apesar de que nunca poderia levar seu sobrenome, tinha o

que importava de verdade: sua paixão, seu ardor, seu coração.

A princípio, a única coisa que desejava era ser livre e independente e possuir uma

fortuna para alcançar certa estabilidade, e agora a tinha. Ia a caminho de consegui-la. Havia

lhe devolvido tantas coisas que ela tinha perdido quando a escuridão e a infâmia tinham

estado a ponto de engoli-la, que lhe era inconcebível romper sua promessa inicial e atar-se

com um homem casado. Cada ápice de sua integridade tão duramente conseguida

significava muito para ela para perdê-la de novo. Quando Robert se casasse ela teria que

procurar um novo protetor para poder viver consigo mesma.

Descartou aquela arrepiante ideia recordando-se que ele não tinha demonstrado

interesse por nenhuma das jovens damas que tinham ido com a esperança de lhe jogar a

luva. Ainda não havia motivos pelos quais deixar-se levar pelo pânico. Se Robert tinha

planos de matrimônio, talvez os reservasse para dentro de uns anos. Uma onda de desejo lhe

percorreu o corpo, e ficou olhando-o na escuridão.

Aproximou-se de seu corpo quente e forte, relaxado pelo sono, e o despertou

percorrendo com uma carícia possessiva seu peito e seu ventre perfeitamente plano, uma

carícia destinada a seduzi-lo. Tinha a pele tão quente e tão suave... Era um homem tão

atraente... Beijou-lhe a face e o peito. Precisava fazê-lo saber nesse preciso instante que lhe

pertencia.

Beijou-lhe o pescoço e o acariciou suavemente até que começou a mover-se. Ao

despertar soltou um gemido e se abandonou à vontade de Bel enquanto ela devolvia seu

membro à vida. Colocou-se em cima dele e o beijou. Sujeitando-o, possuindo-o, introduziu-

se seu membro rígido e fez amor com uma devoção tempestuosa.

— Oh, Deus, é minha fantasia — disse ele em voz baixa, enquanto ela empregava

todos os truques que conhecia para intensificar seu prazer, excitando-o até que ele a afastou

de cima e a colocou de barriga para baixo. O profundo fôlego de Robert alagou o mundo de

Bel quando sentiu seu duro peito contra as costas. Ele deslizou um braço ao redor da cintura

e a segurou enquanto a penetrava por detrás.

Ela se encurvava de prazer, desfrutando do domínio de Robert. Esqueceu-se de seus

temores com o gozo primitivo de sua cópula. Ele a afundou no êxtase com cada investida

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mais forte e profunda e Bel se embriagou com seus gemidos. O resto foi uma mistura vaga

de desejo, prazer e paixão, enquanto os dois se esforçavam por saciar-se mutuamente. Logo,

quando alcançaram juntos o orgasmo, Bel sentiu que as lágrimas brotavam atrás de seus

olhos fechados, lágrimas de liberação que a deixaram vazia e imersa no desespero.

Tudo era inútil. Tinha-o entre seus braços... Tinha-o na palma da mão, e ele sabia,

mas nunca chegaria a possui-lo de verdade como ele possuía a ela.

“Quando se ama um homem se está em seu poder”, pensou, meditando com tristeza

sobre a regra das cortesãs que tinha rejeitado tão confiantemente. “Quando uma cortesã se

apaixona está perdida.”

Estava completamente a mercê de seu homem, e sabia. Era questão de tempo para

que acabasse pagando o preço de sua loucura.

Robert lhe percorreu as costas com longas e suaves carícias. Ela ficou escutando os

batimentos de seu coração com a cabeça apoiada em seu peito, e lhe beijou a fronte.

— Quero-a — sussurrou Robert.

“Espero que sim”, pensou ela, com o olhar perdido na escuridão.

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DEZENOVE

Talvez a renovada ânsia de viver de Hawk se devesse ao duelo e ao seu encontro com

a morte. Sentia-se vivo e cheio de energia, estava feliz e apaixonado, e sabia que era amado

pela única mulher que o fazia sentir-se completo. A única coisa que empanava sua

satisfação e seu peculiar novo sentido de domínio era a constante sensação de culpa em

saber que aquela situação era injusta para Belinda, ao que se somava agora a carta que

acabava de receber de lorde Coldfell, de quem parecia depender seu destino.

A missiva se achava discretamente dobrada sobre a escrivaninha, diante dele.

Enquanto considerava a oferta e sopesava os riscos, permaneceu sentado com as pernas

cruzadas à altura dos calcanhares sobre a escrivaninha, afiando cuidadosamente sua pena de

ave com um canivete.

Meses atrás tinha ouvido Bel falar da sua curiosa regra segundo a qual não podia

manter relações com homens casados. Com a mesma certeza com que sabia que estava

obrigado a casar-se de acordo com sua posição e gerar herdeiros, sabia que quando chegasse

o momento faria o que fosse necessário para conseguir que ela ficasse com ele. Não pensava

em deixar que ela voltasse a levar aquela vida de cortesã. Fazia isso pelo bem dela.

A única coisa que faltava por fazer antes de responder a carta de Coldfell era

assegurar-se de que o amor de Belinda por ele era tal que lhe fosse impossível despedir-se

quando chegasse a hora dele se casar. Possivelmente fosse cruel de sua parte despojá-la do

que considerava seu instinto moral de sobrevivente, mas sabia perfeitamente que ela o

necessitava, maldita seja, e não ia deixar que ela partisse. Se o queria de verdade, entenderia

a necessidade do matrimônio com sua habitual elegância cheia de dignidade.

“O que posso fazer para conseguir?”, pensou soltando um suspiro. A única resposta

que lhe tinha ocorrido para aliviar a inquietação de sua consciência tinha consistido em

trabalhar diligentemente de acordo com a promessa que lhe tinha feito de procurar mitigar a

grave situação dos meninos desamparados do abrigo.

Dias antes tinha escrito às associações beneficentes mais importantes de Londres e as

tinha sondado em busca de informação, estatísticas, as condições de suas instalações, etc.

Quando ordenasse suas conclusões e retornasse à cidade, pretendia sentar-se no clube com

lorde Sidmouth, o ministro do Interior, e conseguir sua promessa de colaboração.

Por um instante sua mente retrocedeu até o momento em que ela o tinha despertado

em meio da noite e tinha feito amor com ele deliciosamente. Desfrutou da lembrança de sua

doce exigência, sobretudo sabendo o longe que tinha chegado uma vez superado seu temor a

ser tocada. Que homem não sonhava em ser desejado por uma beleza tão sensual? Nunca

sabia o que ela ia fazer a seguir. Não era de estranhar que a achasse tão excitante. Que Deus

o ajudasse, apaixonara-se loucamente por ela.

O som de passos no corredor o arrancou de seu nebuloso devaneio, e a seguir se

ouviu uma batida na porta de seu estúdio.

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— Sim?

A porta se abriu e apareceu uma das últimas visitas da Jacinda: uma insípida jovem

com o rosto rodeado por cachos castanhos acobreados.

— Oh, excelência, sinto muito incomodá-lo! Seu criado me disse que acharia lady

Jacinda aqui.

— Ah, não, sou eu quem sente — disse ele ficando em pé educadamente com ar

enfastiado.

A moça demorava em ir-se, avançando pouco a pouco, segurando a maçaneta da

porta.

— Que feliz acaso. Encontra-se bem, espero. — Sacudiu seus cachos.

— Isto... Sim, obrigado. — “Criatura descarada”, pensou, irritado ao reconhecer a

filha do barão de Penrith. “Um acaso, e como...”.

— Sabe que acabo de participar de minha primeira temporada? — disse com um

trejeito afetado.

— Parabéns. Tenho certeza de que é uma celebridade.

Ela enroscou um cacho em um dedo enquanto se aproximava dele. Hawk olhou ao

seu redor em busca de escapatória, mas não viu nenhuma forma de fugir.

— Estava convencida de que acharia a sua excelência no Almack”s ou em algum

outro lugar, mas não o via por nenhuma parte.

Robert ficou quieto olhando-a fixamente, perguntando-se se aquela moça teria

ouvido os rumores da cidade — algo mais que rumores— sobre ele e sua famosa amante.

Com certeza suas responsáveis não tinham permitido que aquela senhorita ouvisse

semelhantes falatórios. Mas, Deus santo, o que aconteceria ela os houvesse visto juntos em

algum lugar? O que aconteceria se reconhecesse Bel?

— Não gosta da sociedade, excelência? — perguntou a garota sorrindo com afetação,

enquanto se aproximava cada vez mais.

— Bom, foi uma época de muita agitação para o governo — disse, obsequiando-a

com seu sorriso mais lisonjeiro. — Entre as sessões e o fim da guerra...

— Ah — disse ela, e então começou a tagarelar sobre a sociedade como se fosse uma

patrocinadora do Almack”s em potencial.

Hawk tinha todo o corpo tenso.

Não só temia o que podia ocorrer se ela pousava seus olhos sobre Bel, mas também

estava consciente de que devia sair daquele aposento. Sentia como os batimentos de seu

coração soavam compassados com o tictac do grande relógio da etiqueta: que assinalava o

momento em que a reputação de uma jovem senhorita começava a perigar ao visitar a sós

um cavalheiro em um aposento, apesar de não ter sido convidada. Tudo aquilo era uma

ardilosa mutreta feminina.

As normas eram as normas, e no passado dúzias de intrigantes ambiciosas junto com

seus pais tinham tentado lhe jogar o laço empregando aqueles meios. Mas tinham

fracassado, e o mesmo ocorreria a ela. O matrimônio já era algo suficientemente ruim sem

que alguém o enganasse para levá-lo a altar.

— O campo parece terrivelmente aborrecido depois de se ter estado na cidade, não

acha? E também solitário — disse a filha do barão soltando um suspiro e aproximando-se

cada vez mais.

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— Bom, com certeza uma jovem e encantadora dama como você tem uma infinidade

de amigos. Como Jacinda — disse intencionalmente. — Me permita que vá procurá-la...

— Oh, não se incomode, por favor, excelência...

— Não é nenhum incomodo – ele interrompeu-a ele com um tenso sorriso. —

Sozinho... Irei procurá-la e lhe direi que venha.

Enquanto abandonava o aposento a toda pressa, ouviu como a moça esperneava de

frustração.

Ao escutar à baronesa e outras mulheres falando no salão, viu-se obrigado a mover-se

às escondidas como um ladrão em sua própria casa para que não o abordassem. As mães

sempre estavam a par de tudo, sabia por experiência. Subiu a escada de dois em dois e

chegou ao piso de cima, amaldiçoando para si mesmo a sua irmã, que organizava aqueles

encontros e logo se esquecia deles.

Procurou as garotas no piso superior e ao não achá-las por nenhuma parte se

perguntou se teriam saído. Se tivessem empreendido uma de suas excursões diárias pelas

colinas, Bel lhe teria dito.

Ao ver a criada da Jacinda, lhe perguntou se tinha visto sua irmã. A mulher ficou

pálida, assentiu com a cabeça e lhe revelou seu paradeiro:

— Foram ao antigo toucador da duquesa, excelência — disse, encolhendo-se ao fazer

uma reverência.

O sobrecenho do Robert se franziu ao mesmo tempo em que seu rosto se escurecia.

— Como?

— Elas estão no quarto da duquesa, senhor.

Hawk se virou com expressão carrancuda e percorreu o vestíbulo com passo irado.

Não podia acreditar que sua irmã tivesse desafiado de forma direta aquele antigo tabu.

Subiu a escada com rigidez até o quarto piso. Apertou os dentes ao ouvir o som de

gargalhadas juvenis procedente de um quarto situado no fundo do corredor, e quando abriu

a porta de repente uma ira feroz apareceu em seus olhos.

Jacinda se achava sentada em frente à penteadeira dourada de sua mãe, com um

aspecto absolutamente ridículo debaixo da alta peruca branca, com joias que levava sua

mãe. Estava aplicando na face uma pequena esponja com cola e colocando outra das moscas

de seda de sua mãe.

— O que está fazendo? — grunhiu ele em tom ameaçador. Ninguém moveu um

músculo.

Jacinda saltou da banqueta, ficou em pé e deu a volta, tirando rapidamente a alta

peruca.

— Nada.

Lizzie Carlisle se tirou a echarpe de penas que pôs ao redor do pescoço e foi para

junto de Jacinda com aspecto assustado.

— Sabe que não pode entrar aqui — disse com voz grave, pronunciando claramente

cada palavra.

— A senhorita... Hamilton nos deu permissão — balbuciou Jacinda.

— Robert, o que se passa?

Hawk deu uma olhada ao ouvir a voz de Bel.

Ela estava lendo aninhada na poltrona da janela. Imediatamente fechou o livro,

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levantou-se e se dirigiu para ele com o cenho franzido.

— Não há nada de errado em estar aqui.

Obviamente ela não podia saber que tinha posto o dedo na chaga.

— Ninguém pode entrar neste quarto, como muito bem sabem elas.

— Por quê?

— Porque o digo eu. Jacinda: tire imediatamente essas horríveis moscas e vá para

baixo correndo. A baronesa de Penrith e sua filha estiveram esperando-a um quarto de hora.

— Por que é tão mau? — gritou ela. — É como papai. Ela também era minha mãe!

— Olhe-se, parece uma mulher qualquer. Tire essas coisas do rosto! — rugiu ele.

— Robert! — Bel deu um passo em frente. — Não grite com ela. Não é mais que

uma menina brincando de fantasiar-se.

— Não se meta nisto. Jacinda...

— Já vou! — Tirou a última mosca de seda da face e passou correndo diante deles,

com ar espantado e ferido. Lizzie a seguiu em silêncio a toda pressa. Robert também lançou

a sua pupila um severo olhar de recriminação.

— O que lhe passa? — perguntou Bel quando as garotas partiram.

Ele fechou a porta de um golpe e se voltou para ela.

— Achava que podia deixá-las ao seu cuidado!

— O que quer dizer com isso?

— Estou a dezesseis anos tentando converter essa criatura rebelde em uma dama.

Não tem nenhum direito de trazê-la aqui!

— Robert, a garota tem direito de conhecer sua mãe... E você também.

— Se não fosse por um acidente, a mulher que nos trouxe ao mundo não seria nossa

mãe. A senhora Laverty foi para mim a mãe que nunca chegou a ser a prostituta

Hawkscliffe.

— Isso é o que você acredita. Ela o tentou. Seu pai não deixou.

— Você não sabe nada sobre meus pais.

— Nem você tampouco. — Estendeu-lhe o livro que tinha estado segurando e o

ofereceu. Era um velho volume encadernado com uma fita azul que se podia utilizar para

atá-lo. Lançou-lhe um olhar compassivo. — Pegue-o, Robert. É o diário de sua mãe.

Ele observou o livro e depois olhou para ela, assombrado e receoso.

— Esteve lendo seu diário? Como pôde?

— Tenho certeza de que ela entenderia, sobretudo se eu conseguir fazê-lo ver o

muito que ela o queria. Querido, estou começando a compreender por que é tão zangado

com ela.

— Zangado? Quem diz que estou zangado? Não estou zangado. Por que deveria

estar? — bradou. — Tenho que passar toda vida desculpando-a por ter sido uma puta. Por

que ia estar zangado com ela?

— Robert, seja justo com ela. Com certeza agora se dá conta de que seu pai denegriu

a imagem dela antes que fosse suficientemente grande para saber...

— Meu pai foi um bom pai! Ensinou-me a distinguir o bem do mal... Você não o

entende. — Fez um esforço para controlar suas emoções e sossegar seu tom brusco e

ensurdecedor, pois não queria que Bel soubesse quão irritado o deixava aquele assunto. Eu

era a única pessoa que meu pai tinha — conseguiu dizer. — Pode ser que bebesse muito,

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sim, mas teve a dignidade de ficar com ela em lugar de arrastar nosso sobrenome pelo

escândalo do divórcio depois que ela deu a luz a Jack. E como o agradeceu ela? Deitando-se

com um marquês de Gales e tendo os gêmeos. Agora me alegro de que meus irmãos estejam

no mundo, mas não lhe parece estranho que continuasse tendo filhos quando nunca os quis?

— É isso o que você pensa? Que não os queria? Ela o suspeitava. Robert, pesquise

nessas páginas... — De novo tentou lhe dar o diário, mas ele o rechaçou e se dirigiu à porta

com passo irado, como se fosse voar se não saísse dali.

— Isto é absurdo. Vou embora. — Estendeu a mão em direção da maçaneta da porta,

mas a voz de Bel o deteve. — “Hawkscliffe pressionou Morley hoje para desempenhar

outra vez o papel de pai...” — Bel fez uma pausa.

Robert se deteve, lhe dando as costas. Conde de Morley tinha sido seu título de

cortesia até o momento de herdar o título de duque. Não precisava virar-se e olhar sua

amante para compreender que tinha aberto o diário de sua mãe e lhe estava lendo uma

passagem.

— “Pobre filho meu”. Sente-se tão culpado por ser só ele a receber o amor de seu pai

que tenta, por sua vez, ser um pai para seus irmãos pequenos. É muito para um menino de

treze anos. É muito sério e formal, quase nunca sorri... E nunca diante de mim. Poderia

perdoar ao Hawkscliffe sua frieza, a insensível e enfastiada indiferença com que me trata,

mas como vou perdoar que tenha arrebatado de meu filho a infância despreocupada que

deveria ter lhe oferecido antes de ter que enfrentar um mundo de responsabilidades muito

maiores que as dos homens comuns?”

Hawk fechou os olhos, aflito.

— “Tenho certeza de que nosso Morley está à altura de seu destino, mas às vezes,

quando vejo esse homenzinho formal e valente tenho vontade de agarrá-lo nos braços e lhe

dizer: Você não tem culpa de que seu pai não queira seus irmãos; eu a tenho”.

— É suficiente — sussurrou ele.

Parecia como se em seu peito ardesse uma fogueira em que se agitavam emoções que

ameaçavam rasgá-lo. Suas omoplatas pareciam pregos de aço depois de tantos anos

erguidas, sempre obrigado a dar o exemplo e a comportar-se de forma irrepreensível. A ser

perfeito. Aquela era a obrigação que lhe tinha imposto seu pai. Ele não se conformava com

menos. “Não cometa nenhum engano. Não se faça de idiota”.

Engoliu em seco. Não se sentia com coragem suficiente para virar-se, mas havia um

espelho na parede ao lado e nele podia ver que Belinda o estava olhando, cheia de

compaixão e de afeto.

Afastou a vista dela rapidamente e seu olhar vagou pelo lotado e meio esquecido

quarto enquanto lutava consigo mesmo. Viu o almofadão de veludo onde o gato favorito de

sua mãe costumava deitar-se e aquilo desencadeou nele uma onda de recordações que o pôs

a chorar.

Abaixou a cabeça. Bel se aproximou dele e lhe acariciou as costas.

— Converse comigo — disse ela com doçura.

— Eu... — Respirou tremendo. — Eu tinha me proibido querê-la. Era só um menino,

e precisava dela... Mas meu pai via as demonstrações de amor por ela como uma traição. Eu

era a única pessoa ele tinha, dizia-me isso cada vez que se embebedava. Ela podia deitar-se

com outros... Podia ter seus filhos bastardos, dizia, mas eu era seu filho. Não era justo para

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meus irmãos... Não era justo para mim... E eu sabia que tampouco era justo para ela.

Bel sussurrou seu nome e o rodeou com os braços. Ele a pegou com força ao sentir

que os muros de ira, muros de pedra, desabavam-se silenciosamente em seu interior.

— Quando aquele pelotão de fuzilamento francês a matou, Oh, Deus, Bel, senti

desejos de... Incendiar a terra. Durante tantos anos me comportei com ela como um bastardo

insensível, como ele queria que fizesse. Não percebe? Eu a conduzi a isso. Está morta por

minha culpa.

— Robert...

— Se não a tivesse julgado com tanta dureza, olhando-a por cima do ombro como se

eu não tivesse defeitos, ela não haveria se sentido obrigada a redimir-se com atos insensatos

de heroísmo. Se só lhe houvesse dito o que queria lhe dizer, agora mesmo estaria viva!

— O que queria lhe dizer, Robert?

— Que a queria, Bel. Por favor, me diga que ela sabia.

— Sabia — sussurrou Bel, abraçando-o com força. — Não se envergonhe dela nunca

mais, Robert. Ela deu-lhe o melhor de si mesma: seu coração cheio de amor.

Ao ouvir aquelas palavras transbordantes de doçura, Hawk perdeu totalmente a

serenidade. O sentimento de perda era muito profundo e se achava intrincadamente

enraizado em seu interior.

— Oh, Bel, a única pessoa de quem me envergonho é de mim mesmo.

Robert se sentou, apoiou a cabeça nas mãos e lutou por reprimir as lágrimas.

Finalmente perdeu a batalha e, soltando uma abrupta maldição, deixou que a tristeza se

apoderasse dele. Bel o abraçou, pousou a cabeça de Robert em seu peito e o consolou como

a mãe que não tinha chegado a conhecer.

Os dias passaram.

O desaparecimento dos antigos muros de Robert tinha aumentado sua capacidade

para amar plenamente, como se seu coração tivesse estado cheio além dos limites do que

durante tanto tempo tinha sido sua defesa. Entretanto, sua devoção pela Belinda tinha

começado a atormentá-lo, consciente do risco que corria, do que devia fazer, da escolha

suicida que tinha que realizar: sua honra ou seu coração. Sabia que não poderia lhe ocultar

suas rasgadas emoções durante muito mais tempo.

Nesse momento ele se achava nas ameias do torreão, examinando suas terras e

campos repletos no primeiro dia da colheita, fazendo todo o possível por deixar de lado o

sentimento de culpa. Conseguiu afastá-lo de si uma vez mais e subitamente reparou em uma

figura que avançava a cavalo pelo caminho. Entreabriu os olhos contra o sol elevado da

tarde.

Olhou fixamente, convencido de que a vista lhe falhava, mas à medida que a figura

solitária se aproximava sobre um cavalo branco e robusto que se movia com lentidão,

conseguiu distinguir o livro que o homem tinha metido sob o braço, o reflexo de seus óculos

de sol, e percebeu que era Alfred Hamilton, que cavalgava para a mansão Hawkscliffe do

mesmo modo que Dom Quixote arremetia contra os moinhos.

— Caramba! — murmurou em meio da brisa.

Entrou dando grandes passadas e ordenou a seus criados que saíssem para recebê-lo,

enquanto encarregava outros que lhe preparassem um quarto. Bel tinha saído com as garotas

P á g i n a |218

para ver os colhedores, mas não achava que elas ficassem muito tempo fora com o calor que

fazia. Quanto a ele, saiu ao pátio e ficou esperando para dar as boas-vindas pessoalmente ao

ancião quando ele chegasse.

Apesar de ainda desaprovar severamente a atitude de Alfred Hamilton, sua educação

e lealdade para com Belinda lhe ditavam que ao menos devia receber seu pai cortesmente.

Não obstante, para surpresa de Hawk, quando Hamilton chegou ao pátio desceu do

cavalo com rigidez, subiu os óculos no nariz, recusou o lanche que lhe ofereceu e olhou

Hawk com o sobrecenho franzido.

— Senhor Hamilton, dou-lhe as boas-vindas a minha casa... — começou Robert.

— Eu gostaria de falar com sua excelência, se for amável — o interrompeu o ancião

em tom severo.

Surpreso, Hawk indicou o castelo.

Enquanto fazia passar o velho Hamilton, teve a impressão de que ia receber uma

reprimenda. Assim que entraram em seu estúdio, Hawk se sentou e começou a sentir-se

como um escolar de Eton a quem pilharam cometendo uma travessura muito grave. O

cavalheiro erudito levou as mãos às costas e o olhou fixamente. O lacaio se retirou e fechou

as portas.

— Me permita que vá direto ao assunto — disse Alfred. — Vim lhe pedir, senhor,

que se comporte como é devido com minha filha ou que a deixe imediatamente.

Hawk notou a boca seca.

— Como diz?

— Que se case com Belinda. A última vez que nos vimos me disse uma verdade

muito difícil de aceitar. Vim lhe devolver o favor. Você se faz chamar homem de honra;

faça, pois, o que é honrado.

Hawk assimilou o que acabava de ouvir, pesando cuidadosamente as palavras antes

de atrever-se a falar.

— Com o devido respeito, senhor, Belinda é muito feliz sendo minha amante. Sente-

se protegida e querida. Não o faz por dinheiro. Eu me asseguro de que seja feliz a cada dia...

Cada hora. Nós dois somos felizes.

— Sem dúvida você é feliz, mas não minha filha. Belinda é uma dama distinta.

Nunca poderia ser feliz sendo a amante de um homem. Necessita mais que isso na vida.

Hawk se levantou de seu assento e olhou ao Hamilton por cima do ombro com

senhorial indignação.

— Estimado senhor, protegi a sua filha e fui imensamente generoso com ela,

enquanto você a deixou na miséria para que se defendesse por si mesma. Assim abstenha-se

de me dar aulas me dizendo o que Belinda necessita.

— Não vai continuar prostituindo minha filha!

— Francamente, senhor, Belinda se prostituía ela mesma e já o fazia antes de me

conhecer. Não me olhe como se eu a tivesse levado pelo mau caminho, fui eu quem a

resgatou desse mundo.

— Em troca de dinheiro, excelência. Em troca de dinheiro.

Hawk desceu o olhar ao chão com o coração palpitando de raiva e culpa.

— Receio que é impossível. Sentimo-nos bem como estamos.

— E que tipo de vida espera Belinda quando já não o fizer sentir tão “bem”, estúpido

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arrogante? Quando se tiver cansado de brincar com ela...? Quando ficar grávida de você? –

perguntou Hamilton com voz áspera. — Sei como as desgastam os homens como você,

senhor. Pagar-lhe-á para que o deixe só assim que fique envolvido por outra beleza. Minha

filha não é nenhuma puta. Por Deus, você sabe melhor que ninguém! Era uma garota

inocente quando foi atacada. Fez o que fez para sobreviver!

— Não estou brincando com ela — disse Robert com serenidade, olhando fixamente

a porta. — Por casualidade quero a sua filha.

— Sim, jovem, estou convencido disso. — Seu olhar se fez penetrante. — Arriscou

sua vida para acabar com os inimigos dela. Mas como vai limitar-se a isso? Tem que dar o

último passo, Hawkscliffe. Tem que casar-se com ela. Acredito que no fundo sabe tão bem

como eu.

— Não é tão simples.

-por quê?

— Pela minha condição.

— Oh, claro, sua condição: o homem irrepreensível, o modelo de virtude masculina.

Senhor duque, tem que conseguir chegar ao mais alto da sociedade, não é assim? E o que

vale a vida de uma jovem a não ser um coração a pisotear em meio de seu caminho?

— Não me importa o que ocorra, tenho intenção de cuidar dela.

— Até que se converta em um inconveniente. Até que se case com alguma moça

mimada da sociedade que o proíba de continuar vendo Belinda. Você quer mais a sua

reputação do que a ela. Sinceramente, excelência, depois de tudo o que ouvi sobre sua

pessoa, esperava mais de você. Assim como eu... Assim como o jovem Mick Braden...

Falhou com Belinda.

— Não lhe falhei — disse Robert em um tom que soava falso, como se o tivessem

golpeado com força no estômago. Ainda acreditava ouvir as palavras de Bel ressoando em

seus ouvidos: “Todo mundo me falhou, Robert”.

“Eu não lhe falharei”, tinha-lhe prometido ele.

— Tenho uma ampla esfera de influência, e há inumeráveis responsabilidades que

dependem de mim — disse acaloradamente, lamentando que aquele insensato tivesse

conseguido que se pusesse na defensiva. Suas próprias desculpas lhe soavam mesquinhas.

— Tenho que me casar pelo bem de minha família. Pelo amor de Deus, não posso me casar

com minha amante. O escândalo sacudiria todo o partido. Isso não se pode fazer!

— É este o duque virtuoso, o homem de princípios... Que se dobra ante os ditados do

livro de etiqueta em lugar de agir sinceramente?

— Rogo-lhe que não me insulte sob meu próprio teto, senhor.

— Não desejo insultá-lo. Nem tampouco tenho o poder suficiente para obrigá-lo a

fazer o correto. A única coisa que posso fazer é dizer o que aprendi sentado em minha cela

todas as noites desde que você me visitou e me abriu os olhos à crua e odiosa verdade: que

não podemos escolher qual parte da realidade desejamos ver e qual parte preferimos passar

por cima. Temos que estar dispostos a contemplar tudo de forma global, tanto o bom como

o mau. Eu não era consciente do que estava passando por cima e de que a pessoa a quem

mais quero no mundo estava sofrendo uma ferida que nunca poderei reparar. — Seus olhos

se encheram de lágrimas de impotência. — Tenho que viver comigo mesmo, com esse

monstruoso engano. Se pudesse levaria Belinda daqui hoje mesmo para evitar que lhe faça

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mal, mas já não tenho direito a interferir em sua vida. Sei. Sei que ela não o deixaria mesmo

que eu o suplicasse. Está apaixonada por você. Desde o dia que o levou ao cárcere soube

que estava apaixonada por você. Se lhe fizer mal depois de tudo o que ela passou, juro-lhe

sobre a tumba de minha esposa...

— Preferiria perder a vida antes que lhe tocar um cabelo.

— Espero de verdade que pense no que está dizendo. — Alfred o olhou fixamente,

apertando o livro com força.

Hawk observou que não era um manuscrito iluminado, mas uma Bíblia maltratada.

— Excelência, não sou um homem importante — disse o ancião erudito. — Em

geral, sou um idiota. Só posso pedir para que demonstre sua tão alardeada honra e lhe

advertir que, se deixar escapar o amor verdadeiro para proteger sua fama mundana, um dia

despertará e se dará conta de que não é melhor que eu: um maldito idiota cego.

Quando Bel voltou, encontrou Robert com um humor estranho; parecia distraído e

um tanto distante quando ela e Jacinda lhe contaram que tinham atraído os pôneis selvagens

das colinas com maçãs. Jacinda e Lizzie partiram em seguida para lavar-se para o jantar, e

então Robert contou a Bel que seu pai tinha estado na mansão Hawkscliffe.

— O que? — Ela o olhou assombrada, alegre e um tanto agitada. Não via seu pai

desde que ele soubera que era uma cortesã. — Como conseguiu sair do cárcere? Está aqui?

— Não sei, não entramos em detalhes. Preferiu ficar na estalagem da aldeia. Voltará

para jantar conosco.

— Oh, não. — O coração deu um salto de Bel. — Isso só pode significar que não o

aceita.

— Sim, é a impressão que me deu.

— Disse-lhe algo?

Ele sacudiu a cabeça e afastou os olhos.

— Belinda...

Ela se dispunha a partir para arrumar-se para o jantar, mas retornou ao ouvir que ele a

chamava em voz baixa.

Robert a olhou com uma expressão triste no rosto.

— Sabe que a quero?

Bel sorriu e lhe acariciou o ombro.

— Sim, e eu a você. Acontece algo?

Ele colocou sua mão sobre as dela, que permaneciam apoiadas no ombro de Robert, e

se voltou para lhe roubar um beijo distraído.

— Só quero que seja feliz — sussurrou.

— Sou mais feliz aqui com você do que o fui em toda minha vida.

Ele a abraçou e ela apoiou a cabeça em seu peito, esquecendo-se momentaneamente

da inquietação que lhe causava voltar a ver seu pai. Finalmente Robert lhe deu um beijo na

testa e deixou que se fosse.

Felizmente seu pai tinha chegado antes do jantar, de maneira que poderiam ter uma

conversa íntima. No jardim havia uma grande árvore com um banco situado ao redor do

tronco. Sentaram-se à sombra enquanto os raios de luz se estendiam através do campo de

jogo de bocha.

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Bel esperava receber a repreensão de sua vida, mas em lugar disso seu pai lhe pediu

desculpas pela agressão que tinha sofrido com tal ar de angústia e arrependimento que lhe

deu vontade de chorar. Custou-lhe convencer seu pai de que o amor de Robert a tinha

ajudado muito a recuperar-se.

— Mas não é seu marido, querida — protestou ele cautelosamente, segurando-a pela

mão.

— Eu sei, mas eu... Confio nele, papai. Quero-o. Se se casasse comigo, sua carreira

política e sua reputação (para não falar da Jacinda) seriam prejudicadas, e ele pode fazer

muitas coisas boas pelo mundo. O que é mais importante: minha conveniência ou as

milhares de pessoas cujas vidas poderiam melhorar com o trabalho de Robert? Sei que deve

soar muito estranho, mas, para ser sincera, que importa que não tenhamos um papel onde se

diga que somos marido e mulher? Eu sei, no fundo de meu coração que ele me quer.

Seu pai enrugou a testa, franziu os lábios e sacudiu a cabeça com um semblante tão

tristonho que o alegre semblante que Bel se esforçava por manter esteve a ponto de

desmoronar-se, e pouco faltou para que lhe soltasse a verdade: que o que mais desejava no

mundo era ser a esposa de Robert.

Que alternativas tinha? Era uma cortesã, era sua amante. Aquele era seu papel e devia

aceitá-lo. A última coisa que quereria Robert era que sua mulher repetisse o escândalo da

prostituta Hawkscliffe... Embora, pelo que Bel sabia agora sobre Georgiana, ela teria

aguentado as calúnias com orgulho.

— Como conseguiu sair do cárcere? — perguntou Bel, ansiosa por mudar de assunto.

Ele lançou-lhe um olhar sombrio.

— Pedi alguns favores que meus colegas da universidade me deviam.

Ela não tinha coragem para lhe perguntar por que não tinha feito aquilo a princípio, e

embora refreasse a língua, seu pai pareceu ler seu pensamento com seu olhar de tristeza.

— Não lhes pedi ajuda logo porque me preocupava minha reputação, como ao duque

— admitiu com remorso. — Nunca me perdoarei isso.

Bel suspirou e lhe deu um tapinha afetuoso no ombro.

— Pois espero que o faça, porque eu o perdoo. Além disso, essa é uma das vantagens

de viver desonrado: eu, por minha parte, já não tenho que me preocupar nunca mais por

minha reputação.

Ele a olhou franzindo o sobrecenho ante o fato, mas Bel sorriu para lhe confirmar que

se achava bem.

Pouco depois o jantar foi servido.

Bel percebeu a tensão existente entre Robert e seu pai, embora os dois fossem muito

educados para comportarem-se com rudeza. Por sorte, o contínuo falatório de Jacinda

encheu os silêncios incômodos e conseguiu que todo mundo se divertisse. Quando por fim

Lizzie conseguiu intervir na conversa, Alfred percebeu que havia outro rato de biblioteca

sentado à mesa e desfrutou muito fazendo a tímida moça falar.

Jacinda ficou desconcertada por um momento ao deixar de ser o centro da atenção,

mas então chegou à conclusão de que queria muito a sua amiga para dar importância e

comeu o jantar alegremente enquanto escutava a conversa sobre livros.

Bel observou Robert pela extremidade do olho e percebeu que ele a estava olhando

de forma estranha. Lançou-lhe um olhar interrogativo, mas ele estendeu a mão por cima da

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mesa e lhe pegou a sua, contemplando-a enquanto os outros discutiam sobre As viagens de

Gulliver.

Nessa noite, antes que seu pai partisse e as garotas fossem para cama, ele a levou ao

alto do torreão e a seduziu sob as estrelas, lhe arrancando lágrimas do mais profundo de seu

coração com seus sussurros de eterna devoção.

Robert a tratava com tal doçura, e com uma ternura tão deliciosa que parecia que se

soubesse que no dia seguinte lhe ia romper o coração em mil pedaços.

Bel se achava no corredor situado fora do estúdio de Robert, escutando com um

repentino pressentimento, Ele a tinha chamado por alguma razão, mas, a julgar pelo que

estava ouvindo, não a esperava ainda.

— Sei que têm muito carinho pela senhorita Hamilton, garotas, mas na cidade as

coisas são muito mais complicadas que aqui. Só saudando-a no parque com a cabeça se

arriscam a pôr em perigo sua reputação.

— Quer acabar com ela, Robert? — gritou Jacinda.

— Não se trata de “acabar” com ela. Ela o entende. Não é o que eu quero,

simplesmente as coisas são assim.

— Mas ferirá seus sentimentos...

— E nós a queremos!

— É claro que sim. Todos nós a queremos. Garotas, eu só me preocupo com seu

futuro.

— Vai separar-se dela, Robert? — Bel ouviu Jacinda dizer.

— Claro que não. Os homens têm um código diferente, como bem sabem.

Depois daquele breve instante de escuta furtiva, Bel considerou que era um bom

momento para entrar. Todos ficaram em silêncio e se viraram com um aspecto um tanto

culpado ao terem sido pegos falando dela, mas Bel lhes sorriu em atitude compreensiva.

— Ele tem razão, Jacinda, Lizzie. Não ferirão meus sentimentos absolutamente.

Podemos nos fazer um sinal. Como era? Se me virem, abram suas sombrinhas ou seus

leques, e eu o interpretarei como um “olá” muito alegre e lhes responderei da mesma forma.

— Oh, senhorita Hamilton! — gritaram, e lhe deram um abraço. — Sentimos tanto!

— Não sejam bobas, vocês não têm culpa. No fundo continuo sendo uma professora,

assim, se não se comportarem o melhor possível em lugares públicos, me zangarei muito.

Robert lhe dedicou um sorriso de gratidão enquanto ela abraçava alegremente as

garotas.

— Tudo irá bem. Andem, saiam e comecem a preparar sua bagagem, porque

conforme parece voltamos para Londres. — Voltou-se para ele com ar interrogativo.

Hawk se despediu delas fazendo um gesto com a cabeça.

— Se às damas não se importam, eu gostaria de falar com a senhorita Hamilton a sós.

Depois que Lizzie e Jacinda saíram, Bel cruzou os braços e se voltou para ele com

curiosidade.

— O que acontece?

Os escuros olhos de Robert emitiram um brilho triunfal quando se dirigiu para Bel

com ar resoluto e a pegou pelos braços com certa veemência.

— Não vai acreditar. Sente-se.

— Voltamos para Londres?

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— Sim... Mas não ficaremos muito tempo.

Ela o olhou perplexa.

— Aonde vamos? Quer dizer, vou com você a algum lugar?

— É claro — respondeu ele em tom de mofa. — Eu não vou a nenhuma parte sem

minha arma secreta política, minha adorável, faiscante e muito bela amante!

— Bem? Qual é a notícia? Parece o gato que comeu o canário.

— Bel, eu fui eleito para ir ao Congresso de Viena com a delegação inglesa de

Castlereagh.

Ela tampou a boca com as mãos.

Robert ergueu os punhos em sinal de vitória.

— Não é incrível? Passeou nervoso, cheio de emoção. –Percebe que esse congresso

vai ser o encontro internacional mais importante da época desde Carlos Magno?

— Oh, Robert, sairá nos livros de história, como muitos de seus antepassados!

Ele sorriu abertamente e se ruborizou um pouco.

— O regente ainda tem que aprovar minha nomeação, mas graças a Coldfell conto

com a recomendação do primeiro-ministro. É claro, Wellington também participará.

— Espera um momento... O que disse de lorde Coldfell?

Ele se voltou para Bel com as mãos nos bolsos. Ela percebeu o piscar de uma vaga

inquietação em seus escuros olhos.

— Foi ele quem mencionou meu nome ante o comitê.

— Robert! — Bel o olhou atônita.

— O que? — perguntou ele, sentindo-se um tanto culpado.

— Se foi ideia de Coldfell tem que haver armadilha.

— Bom, sim, há uma — murmurou Robert, coçando nuca enquanto ria com

desconforto. Olhou-a com uma emoção suplicante refletida nos olhos, e a seguir desceu o

queixo até que quase lhe tocou o peito. — Deus, não sei como lhe dizer isso.

Ela ficou pálida.

— Não te terá pedido que arriscasse outra vez a vida...

— Não, nada disso. — Hawk engoliu em seco. — Quero que saiba que não significa

nada. É só... — Vacilou.

— O que?

Ele respirou profundamente, cobrando ânimo de forma visível.

— Quer que me case com sua filha, Juliet. E eu lhe disse que sim.

Hawk mal sentia coragem para sustentar o olhar de surpresa da Belinda. Os olhos

dela se haviam tornado frágeis e seu rosto mudou. Afundou-se no sofá mais próximo com o

olhar perdido.

Ele deu um passo para ela.

— Por favor... Não o interprete mal. Você é a mulher a quem quero. Cedo ou tarde

teria que me casar.

Os olhos de Bel pareciam enormes e se tornaram muito escuros, e quando falou sua

voz soou como um leve sussurro.

— A garota surda?

— Sim. Coldfell não tem mais herdeiros. Sua filha deve dar a luz um filho antes que

ele morra ou seu título voltará a pertencer à Coroa. — Agachou-se ante ela. — Coldfell

P á g i n a |224

simplesmente quer que alguém proteja a garota. Belinda...

Por um momento Bel ficou sem fala, levantou-se e passou junto a ele, e partiu o

coração de Hawk ao ouvir o frufrú da seda de sua saia.

— É da idade da Jacinda.

— Não importa. Minha relação com lady Juliet será pouco mais que fraternal. Você é

a mulher a quem quero, a quem necessito. A que me inspira. É minha alma gêmea. Sei que

compreende minha posição, Bel. Por favor, me diga algo.

— Acho que não vou poder suportar — sussurrou ela.

— Não quero feri-la, Bel. Sabe que tenho que aproveitar esta oportunidade.

— Um filho, Robert? O que quer que lhe diga? Não o vai trazer a cegonha. Como

vou compartilhá-lo com outra mulher? — gritou.

— Não pode ter ciúmes dela.

— Por que essa velha raposa não o deixa em paz? E se for uma armadilha?

— Não é uma armadilha. Acabo de receber uma carta de lorde Liverpool onde que

confirma minha nomeação.

— Confirma-o? Então já sabia... Desde quando? E não me disse nada? Desde

quando, Robert? — inquiriu Bel, zangada.

— Há alguns dias — conseguiu dizer ele.

Bel lhe lançou um olhar de ódio e se dirigiu à escrivaninha com passo irado, remexeu

furiosa entre seu conteúdo até que achou o comunicado do primeiro-ministro. Robert

observou como lhe tremiam as mãos e abaixou a cabeça.

— “Castlereagh está a ponto de cair em outra depressão — leu ela em voz alta. —

Necessitamos alguém formal e sereno que esteja disponível...”

De repente pareceu perder o interesse, jogou a carta na escrivaninha e foi olhar pela

janela, com os braços cruzados com força contra o peito.

— Sabia que aconteceria isto — disse. — Estava esperando.

Ele deu um passo em direção à esbelta e crispada silhueta de Bel, e então mudou de

opinião.

— Tem que se casar com ela para não perder a nomeação? — perguntou ela em um

tom cuidadosamente neutro, ainda de costas para ele.

Uma onda de dor invadiu Robert enquanto a olhava magoada e, quando se decidiu a

falar, as palavras brotaram profusamente.

— Parece-me que nós dois sabemos que se trata de algo mais que a nomeação,

querida. Mesmo que estivesse disposto a deixar passar esta oportunidade, o problema não

desapareceria. Em algum momento terei que me casar, conforme o exige minha posição. Por

que não fazer também algo bom pelo país se me oferecem a oportunidade?

Fez-se um longo e profundo silêncio.

— É uma oportunidade única na vida, Robert — disse Bel finalmente. — Talvez seja

seu destino. Parabéns. Tenho certeza de que servirá a seu país com seu talento habitual. —

Virou-se, e suas refinadas feições eram uma máscara de serenidade. — Além disso, a única

coisa que fica por dizer é adeus.

— Não, disse ele, dando um passo vacilante para ela.

— Então o que? — A fachada de Bel se veio abaixo por culpa da ira. — O que

estamos fazendo agora mesmo? Escondendo-nos da sociedade e do comitê de damas? Meu

P á g i n a |225

deus — exclamou, rindo angustiada, estou apaixonada por um homem que se envergonha de

mim!

— Isso não é verdade...

— Sim, é. Envergonha-se de mim como se envergonhava de sua mãe. Para você sou

uma puta, e isso é o que sempre serei.

— Isso é mentira — bradou ele em um tom tão colérico que Bel se sobressaltou. —

Disse-lhe mil vezes que a quero.

— Sim, e por isso sua decisão me parece tão estranha. — Olhou-o de forma

penetrante por um segundo, e depois o afastou com um gesto desdenhoso e se dispôs a

atravessar o cômodo em direção à porta. — Adeus, Hawkscliffe. Volto para Londres.

Ele a pegou pelo braço quando passou a seu lado.

— Não — disse.

Bel lançou um olhar à mão do Robert que a segurava pelo cotovelo e logo subiu até

seus olhos e o olhou com uma ira febril.

— Não... Me… Toque.

— Não vai a Londres.

— Não é meu amo nem meu senhor. — Conseguiu soltar-se fazendo um grande

esforço. — Passarei por Knight House quando você não estiver para recolher minhas coisas.

Depois de tudo, eu as ganhei.

— Aonde irá? A que se dedicará? — perguntou ele asperamente, erguendo-se por

cima dela com a intenção de intimidá-la, como se a assustando fosse conseguir que o

obedecesse. — Sem mim não tem para onde ir.

Ela continuou olhando-o com ódio em atitude desafiante, lançando faíscas azuis

pelos olhos.

— Harriette me acolherá. Procurarei um novo protetor...

— Por cima de meu cadáver.

Dedicou-lhe um gélido sorriso.

— Você se perturba com a ideia de que eu esteja nos braços de outro? Como se

sente?

— Não irá para a casa de Harriette — disse ele apertando os dentes— Me deixe se

quiser, mas a proíbo que volte para a... A prostituição. Darei-lhe todo o dinheiro que

necessitar.

— Não quero seu dinheiro — respondeu ela quase gritando, empurrando-o para trás,

embora Robert não retrocedesse um passo. — Como se atreve? Não aprende?

Deu meia volta para a porta, mas ele a pegou outra vez. Bel se virou e o golpeou no

peito com uma ira inútil; ele a segurou pelos ombros lhe dizendo adulações enquanto tratava

de acalmá-la desesperadamente.

— Me escute! — gritou Robert finalmente, lhe sacudindo os ombros.

— Me deixe!

— Preciso de você — implorou ele com voz grave e trêmula. — Não vá. É a única

pessoa que me compreende. É minha melhor amiga, Bel...

— Como pode me tratar assim então? — sussurrou ela, com lágrimas nos olhos.

Deixou de lutar de repente e afastou a vista, levando o dorso da mão à boca para reprimir

um pequeno soluço.

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— Oh, Deus — disse ele em voz baixa, incapaz de acreditar que ela lhe estivesse

deslizando entre os dedos. Em pleno momento de fúria e terror, conseguiu que suas mãos

soltassem os suaves ombros de Bel, embora tudo estivesse escapando do seu controle.

Agora que tinha começado a perdê-la não parecia que pudesse evitá-lo. Quando estendeu a

mão para lhe acariciar o cabelo, ela a afastou bruscamente. — Vamos, Bel. Basta já.

— Deixe-me ir. Entendo-o, não pode se casar comigo, tampouco lhe estou pedindo

isso. Mas em troca não deve me pedir nunca mais que me desonre. Por favor, Robert, se me

quer, deixe-me ir. Pode ser que eu seja só uma cortesã, mas tenho meus princípios. Tenho

que pôr ponto final ou me causarei muito dano. Por fim consegui me recuperar graças a

você, ao seu amor. Prefiro perder o que há entre nós que convertê-lo em algo sórdido. Não

quero voltar a me sentir envergonhada. Sinto muito.

— Achava que me queria.

— Se vai se casar com ela, faça isso honestamente. Faça tudo o que puder para

querê-la, se for convertê-la em sua esposa.

— Eu quero você — disse ele zangado.

— Pois vou deixá-lo — sussurrou ela antes de passar junto a ele com ar enérgico.

Ele a pegou pelos pulsos e a deteve de novo.

— Não!

— Tenha piedade, Robert! Antes que seja muito tarde... Antes que seja impossível

dizer adeus... Deixe-me partir com uma parte de meu orgulho intacta. Por favor, por favor...

— Belinda, quero-a...

Robert esticou a mão para tocá-la, mas ela se soltou e saiu correndo do estúdio,

contendo um soluço.

— Belinda!

Hawk saiu do estúdio dando grandes passadas e viu como Bel partia correndo pelo

corredor.

— Belinda!

Ela não olhou para trás e se precipitou escada acima. Robert podia ouvir seus soluços

por cima do frufrú de sua saia de seda.

Começou a segui-la, mas de repente o penoso rogo de Bel para que a deixasse partir

com dignidade se afundou em seu coração, como um anzol que atirasse dele até fazê-lo

sangrar. Deteve-se, cegado pela confusão, perda e incredulidade. Gritou seu nome uma vez

mais, mas ao ver que ela não aparecia, deu um murro contra uma porta de madeira que se

rachou com um ruído surdo de lascas. Apoiou-se contra o marco da porta, passou as mãos

pelo cabelo e esfregou os olhos com força.

Todo seu ser lutava pedindo para ir atrás dela... Para fazer com que ficasse mesmo

que tivesse que encerrá-la em seu quarto até que obedecesse. Mas se o fato de ser sua

amante podia danificar a frágil opinião que ela possuía de si mesma, Robert não tinha outra

opção que deixá-la partir.

P á g i n a |227

VINTE

Harriette a recebeu de braços abertos. Tiveram um reencontro lacrimoso no qual Bel

relatou entre soluços a história às Três Graças, as quais se esforçaram por consolá-la.

E assim Belle Hamilton voltou para arena. O negócio estava em pleno auge na casa

de Harriette. Bel permitiu que dois tipos de homens a cortejassem: os que eram muito

velhos para ela e os que eram muito jovens para serem tomados a sério. E então, na quinta

noite depois de sua volta à cidade, foi ao King’s Theater, em Haymarket, e o encontrou ali.

Ela estava recebendo seus pretendentes no camarote da ópera que ele lhe tinha

pagado, rodeada como sempre de homens famintos de sexo dos quais ela se aproveitava

alegremente graças a sua inteligência, afiada ultimamente como o fio de uma navalha,

quando uma estranha e aguda sensação se apoderou dela. Tudo pareceu mover-se

lentamente e o som se converteu em um ruído vago ao fundo. Agitando o leque, olhou

através da grande abóbada de cor do teatro e o viu.

Estava sentado com o cotovelo apoiado no braço da poltrona e os dedos curvados

sobre a boca. Não parecia que tivesse o mínimo interesse no espetáculo que se desenvolvia

no cenário. Tinha um olhar intenso e feroz, e a observava.

Bel ficou imediatamente sem ar nos pulmões. Deu-lhe um salto o coração e deixou

de abanar— se. Seu corpo entrou imediatamente em calor e a seguir sentiu frio e começou a

tremer.

Tirou-lhe os olhos de cima e começou a abanar-se freneticamente de forma

inopinada. Não ouviu uma palavra do que lhe diziam.

Durante aproximadamente um minuto e meio, tratou de permanecer sentada

tranquilamente a fingir que não acontecia nada. De repente se levantou e pediu desculpas,

ao mesmo tempo em que abria passagem para sair do camarote. Os homens se ofereceram a

acompanhá-la enquanto ela percorria o corredor com ar desventurado.

— Me deixem sozinha! — gritou aos que a seguiam, puxando com tanta força a

pluma que levava no cabelo que lhe saltaram as lágrimas.

Uma vez no vestíbulo, enviou um dos empregados a procurar seu coche e fugiu dali

assim que seu competente novo cocheiro deu a volta. Foi para casa e chorou até dormir, mas

na manhã seguinte já sabia o que tinha que fazer.

Harriette e as demais continuavam na cama depois de haverem se deitado tarde. Bel

recolheu a maioria de seus elegantes vestidos sob a branca e serena luz da manhã, carregou-

os em sua carruagem e os levou a loja de penhor, onde obteve por eles uma fortuna de quase

quinhentas libras.

Depois indicou ao cocheiro que a levasse ao Tattersall’s, onde o despediu depois de

lhe dar seu pagamento, e vendeu o elegante coche negro e os cavalos puro-sangue na casa

de leilões por outra enorme soma: dois mil guinéos. Entretanto, não se sentiu com coragem

suficiente para desprender-se da gargantilha de diamantes e lápis lázulis que Robert lhe

tinha dado na noite do baile das cortesãs.

P á g i n a |228

Depois de alugar uma carruagem se dirigiu ao banco e depositou em sua conta os

cheques da casa de penhor, junto com os lucros obtidos com a venda da carruagem. Ao

assinar o depósito, olhou surpreendida os números anotados.

O total subia a trinta e cinco mil libras. Destinou três mil aos recursos, fez uns

cálculos e de repente descobriu que se achava de posse de uma renda decente. A juros de

cinco por cento, as trinta e cinco mil libras lhe produziriam umas cento e cinquenta libras ao

ano.

Recostou-se e ficou olhando assombrada a quantidade. Só precisava levar uma vida

tranquila, modesta e simples — o tipo de vida que desejava a princípio— e não teria que

voltar a depender de ninguém. Nem de seus ricos admiradores, nem de Harriette, nem

sequer de seu pai. Era uma miséria comparada com as cifras às quais se acostumara, mas

havia um abismo entre aquilo e vender laranjas. Com aquela renda não teria que pedir

explicações a ninguém. Não poderia permitir-se ter mais criados que uma garçonete, mas,

pela primeira vez em sua vida, de repente era... Livre e independente.

Ergueu a vista assombrada para a elegante cúpula do banco e fechou os olhos,

bendizendo para si mesma o amigo que tinha tornado possível aquela pequena fortuna.

“Oh, Robert, como sinto falta de você”, pensou, e a tristeza encobriu aquele

momento de esperança. Não obstante, recolheu sua bolsa e partiu do banco, pois ainda tinha

coisas que fazer.

Nesse mesmo dia, mais tarde, separou-se das irmãs Wilson e se alojou em uma

tranquila pensão de Bloomsbury, não muito longe da casa de meninos enjeitados. Em várias

das residências exclusivas para mulheres nas quais teria gostado de hospedar-se, tinham se

recusado a recebê-la porque não aceitavam pessoas como ela, mas tinha fugido da rudeza de

suas proprietárias sentindo-se estranhamente em paz consigo mesma.

Durante os dias seguintes lavrou outra vez uma nova vida a partir das cinzas da

anterior. Passava as noites lendo para escapar de seu coração quebrado, durante o dia se

dedicava ao serviço de voluntariado da casa de meninos enjeitados e da Sociedade de Ajuda

aos Indigentes, tratando de esquecer suas próprias carências atendendo as necessidades dos

meninos da rua.

Frequentemente se perguntava como estariam Tommy e Andrew em Knight House.

Embora as pessoas vinculadas às organizações beneficentes lhe permitissem oferecer

ajuda, mantinham uma distância prudente de Bel. Nenhuma delas parecia interessada em

fazer-se amiga dela. Se havia algo que ela lamentava era que já não ocupava nenhum lugar

dentro da sociedade. Não era nem respeitável nem popular; no passado tinha sido uma coisa

ou a outra. Sendo cortesã havia se sentido solicitada a todo o momento, agora estava

completamente sozinha, acossada pelos pensamentos sobre Robert. Seu antigo protetor não

se afastava nunca de seu coração.

Alegrava-se de que seu pai ficara em Londres para levar a cabo seu trabalho de

investigação, pois durante esses dias era sua única companhia. Ele não podia evitar mostrar

sua satisfação ante a renúncia de Bel a seguir levando uma vida de cortesã. Os olhos se

enchiam de lágrimas de orgulho cada vez que a visitava, o que ocorria com frequência, já

que muitas noites jantavam juntos.

Mantinha seu camarote no Royal Haymarket por seu pai. Uma vez na semana o

levava a ver uma peça. Além de tudo, sua assinatura daquele camarote de primeira classe já

P á g i n a |229

estava paga e expirava ao final da temporada. “Desfruta-o enquanto possa”, disse-se. Os

dois riam ao pensar que, por muito que ele desaprovasse tudo aquilo, não tinha podido

resistir a desfrutar das poltronas que constituíam uma gratificação pela anterior ocupação de

sua filha.

Então, aproximadamente uma semana depois, outro amigo reapareceu. Uma noite no

início de setembro Bel retornava a casa passeando, com as costas doloridas depois de ter

trabalhado todo o dia com os meninos, quando achou Mick Braden esperando-a sentado nos

degraus da pensão, como costumava fazer quando eram mais jovens.

Ele ficou de pé enquanto ela atravessava a porta, e quando Bel se aproximou pôde

ver a angústia que se destacava em seu atraente rosto juvenil. Os dois permaneceram

olhando um ao outro durante um longo tempo.

— Olá, Mick — disse ela por fim.

— Seu pai me disse que estava aqui.

— Quer entrar?

— Por favor — disse ele com voz rouca.

Quando chegaram à pequena sala de estar, ele a pegou lentamente em seus braços e a

abraçou como se parecesse do mais frágil cristal.

— Sinto muito. Seu pai me contou tudo. — Soltou-a e lhe pegou as mãos. — Sinto-

me responsável, Bel. Quero fazer as pazes com você. Case-se comigo.

Ela fechou os olhos e se afastou, lançando um suspiro, e logo voltou a olhá-lo.

— Não o quero, Mick.

— Sei. Não tem importância. Mas o matrimônio seria o mais adequado, Bel. Você e

eu fomos feitos um para o outro. Seus sentimentos pelo Hawkscliffe desaparecerão com o

tempo, mas eu seguirei estando aí porque faço parte de você. Conhecemo-nos sempre, não é

assim? Você me importa, e tenho uma obrigação com você. Não sou um homem que evita

suas responsabilidades.

— É a responsabilidade a que te move? Você tampouco sente amor por mim?

Afastou-lhe o cabelo dos olhos com delicadeza.

— Como define o amor? Você me importa, sinto-me responsável por você. Até a

acho bonita de vez em quando

-brincou. — Você e eu... Simplesmente tem sentido. Chama-o como quiser, a única

coisa que sei é que não pode viver sozinha para sempre. Você não. Tem que ser esposa e

mãe. Faz parte de seu caráter, e é o que sempre quis.

Ela estremeceu e abaixou a cabeça.

— Eu posso lhe dar essa vida — disse ele. — Devo-lhe isso. Não me importa seu

passado. Sei quais foram as circunstâncias, e nunca a julgarei por isso. Podemos sair de

Londres e começar de novo. Sei que lhe falhei uma vez, mas se me concede esta

oportunidade não lhe voltarei a falhar nunca.

Bel fechou os olhos com ansiedade. “As palavras corretas, mas o homem

equivocado.” Abriu os olhos e o olhou de novo.

— Oh, Mick, não sei. Mudaram muitas coisas. Já não sou a garota que conheceu.

— Sim, no fundo continua sendo. Mesmo que tivesse mudado... — Sorriu e lhe deu

uma palmada carinhosa sob o queixo. — Continuo adorando-a como quando tinha nove

anos.

P á g i n a |230

Sorriu-lhe afetuosamente.

— Quando tinha nove anos me atirou um verme.

— Uma prova de minha devoção.

Devoção...

A palavra fez que se sentisse insegura. Forçou um sorriso ante a ameaça das

lágrimas.

— Preciso pensar.

— Leve o tempo que quiser. Pode contar comigo para o que necessitar. Boa noite,

Bel. — inclinou-se e lhe beijou as mãos, e a seguir a soltou suavemente e partiu.

Tinham se passado duas semanas desde que a tinha visto na ópera. Três desde que ela

tinha abandonado a mansão e saído repentinamente de sua vida. Hawk tinha passado os dias

anteriores muito confuso e desolado.

Depois de acompanhar sua irmã e sua companheira de volta à cidade, seu tempo se

viu preenchido por uma ronda interminável de reuniões e comitês. Assistia a todas as

entrevistas, e aprovava as moções com sua habitual reserva distante e cordial.

— Hawkscliffe voltou — diziam todos, e com isso aludiam a algo mais que sua volta

do campo.

Os homens do clube brindavam por sua saúde enquanto sua estrela continuava

ascendendo. As patrocinadoras do Almack’s o receberam de volta ao rebanho. A decepção

que tinha suscitado suas faladas núpcias se estendeu entre a metade das mulheres da

sociedade. As mulheres suspiravam a sua passagem. Parecia que a galante escolha da pobre,

doce e adorável lady Juliet Breckinridge tinha cativado a alma de suas admiradoras. Ao

resolver fazer a beleza deficiente como sua esposa, tinha selado sua fama de cavalheiro com

reluzente armadura.

Sentia-se como vivendo uma tragédia. Sentia-se como se fosse um impostor e sua

alma estivesse morrendo.

Cada vez que via Coldfell tinha a estranha, sinistra e irritante sensação de que, sem

dar-se conta, tinha vendido a alma ao diabo.

Passava os lentos e vazios dias fingindo com todas suas forças que Belinda Hamilton

não existia, embora fosse difícil levando sem em conta que pensava vê-la em Knight House

em qualquer lugar que olhasse. Não havia forma de escapar de sua lembrança, presente em

cada aposento. Levava-a no sangue, sob sua pele, perseguindo-o como um fantasma

desumano. Ainda tinha na roupa o aroma dela, seu sabor ainda permanecia em sua língua e,

às vezes, quando tentava dormir, quase podia sentir suas carícias. Era tão doloroso que

queria morrer. Esquecer.

Esqueceria-a.

Cada dia, quando entrava no White’s com ar resolvido, preparava-se para o golpe,

consciente de que um dia, quando menos esperasse, os rumores sobre o novo protetor de Bel

chegariam até ele. Mas, felizmente, seus companheiros do clube procuravam não falar dela

em sua presença.

Todos exceto um. Lorde Alec voltou de uma casa de campo onde esteve passando

uma temporada em meio de sua habitual vida relaxada. Seus olhos azuis lançavam faíscas.

Entrou no White’s e encaminhou-se diretamente ao lugar onde Hawk se achava estudando

P á g i n a |231

um manual de alemão para a viagem à Áustria, enquanto articulava silenciosamente as

complicadas palavras.

Alec pousou as mãos sobre a mesa e o olhou com o cenho franzido.

— Você é um idiota, sabe? Um idiota e estúpido pretensioso.

Com o queixo inclinado sobre o livro, Hawk lhe lançou um olhar enviesado e

sombrio de advertência.

— Matou por ela, teria morrido por ela. Eu vi como estavam juntos. É a mulher da

sua vida, Hawk, e a deixou escapar. Por quê?

Robert não respondeu.

— Eu lhe direi por que, imbecil. Uma palavra: medo. Vá procurá-la.

— Não.

— Por quê? — gritou Alec.

— Ela me deixou. O que supõe que tenho que fazer?

— O que for preciso! Qualquer coisa é melhor que ficar sentado como um hipócrita!

Quer que eu fale com ela por você?

— Não! Por Deus, Alec, abaixe a voz. — Deu uma olhada aos companheiros de

clube que estavam ao redor. — Como pode ver, estou tentando trabalhar, assim quer me

deixar só de uma vez?

— Só é exatamente como vai ficar excelência... E isso é exatamente o que merece.

Sabe de uma coisa? Ela está melhor sem você, porque você, meu amigo, é igualmente

insensível como seu pai. –Alec afastou da mesa e se foi com passo irado.

Quando ele já tinha partido, Hawk ficou contemplando a página de frases em alemão

com o olhar vazio. Enquanto permanecia ali sentado esfregando a boca lentamente com

inquietação, sentiu que começava a entrar em um estado de ansiedade indescritível. O pulso

lhe retumbava nos ouvidos. Viu a si mesmo fechando o livro que tinha em frente. Tomou

uma folha de papel de linho e molhou sua pena de ave no tinteiro que havia a sua direita.

Deteve-se com a mão trêmula, procurando as palavras certas em sua cabeça agitada.

Escreveu:

“NOTIFICAÇÃO DE CARTA BRANCA

Pela presente, garanto com minha assinatura, plena autoridade fiduciária à titular

deste certificado, senhorita Belinda Hamilton. Todas as dívidas contraídas por ela deverão

ser remetidas a Knight House, St. James Square.

Assinado em 12 de setembro de 1814.

HAWKSCLIFFE”

Verteu uma gota de cera sob seu nome e estampou o selo ducal do seu anel. Quando

a cera se endureceu, dobrou a nota e a guardou no colete. Então, invadido por uma estranha

sensação de cautelosa indiferença, levantou-se de seu assento com um moderado controle. A

seguir só teve consciência de estar em sua carruagem, conduzindo a toda velocidade pelas

ruas do centro de Londres, fustigando seus cavalos em direção à casa de Harriette Wilson.

Saltou da carruagem em frente da residência das cortesãs e bateu na porta. Quando

respondeu o lacaio de vil aparência, Robert ficou surpreso ao ouvir o criado dizer que a

senhorita Hamilton já não vivia ali.

P á g i n a |232

Harriette desceu e, depois de escutar os abundantes rogos de Hawk, deu-lhe com

frieza o novo endereço de Belinda.

Mesmo que as piores cicatrizes internas que tinha sofrido estivessem desaparecendo,

Bel ainda ficava nervosa quando tinha que percorrer as ruas da cidade depois do anoitecer.

Essa noite tinha saído da casa de auxílio infantil mais tarde que o habitual. Começou a andar

com a intenção de parar uma carruagem de aluguel, mas não passava nenhuma. Felizmente,

pouco depois do anoitecer dobrava a esquina que havia além de Russell Square, caminhando

rapidamente em direção à pensão.

Ao olhar a rua que se estendia ante ela, parou em seco. Estacionado em frente havia

uma carruagem negra impecável e brilhante que ela conhecia a perfeição. O coração lhe deu

um salto. De repente sentiu a cabeça leve.

De algum modo se obrigou a seguir adiante. Percebeu uma baforada de rapé no ar

quente da noite, ouviu sua voz profunda e refinada de barítono dando ordens a William no

assento do cocheiro e o coração lhe deu outro salto.

“Voltou por mim! Vai fazer a coisa certa...!”

Recolheu a saia de seu simples vestido de algodão, apertou o passo por medo de que

partisse ao não encontrá-la em casa, e pôs-se a correr.

— Robert!

Imediatamente ele deu a volta ao redor da carruagem e lhe fechou o passo, enquanto

a luz das estrelas reluzia em seu cabelo escuro. Tinha o rosto escurecido e os olhos

luminosos, tão escuros e misteriosos que quase eram tão negros como o carvão. Parecia

mais alto do que ela recordava, maior e vestido mais elegantemente, mais majestoso.

Mais intimidante ainda do que na noite em que o tinha conhecido.

Bel reduziu o passo e se aproximou dele temerosa, diminuída uma vez mais ante sua

altiva grandeza. Ela notava os largos ombros carregados de tensão.

— Estive esperando-a — disse Robert, em tom seco e imperioso, como se se tratasse

de uma recriminação.

“Eu estou há muito tempo esperando-o”, pensou ela, com o coração acelerado. Não

podia acreditar que houvesse voltado. Tinha mudado de opinião? Mal se atrevia a alimentar

esperanças.

— Estive fora.

— Posso roubar um minuto de seu tempo?

— Claro.

Ele assentiu laconicamente.

— Obrigado.

— Por aqui.

William lhe dedicou um sorriso encorajador quando os dois passaram ao seu lado.

Bel conduziu Hawkscliffe pela porta e escada até seu alojamento. Uma vez no salão,

acendeu a lanterna da mesa e iluminou sua modesta mas acolhedora morada.

Quando a luz aumentou, se voltou para Robert e observou seu rosto gasto e tenso.

Sua boca era uma linha firme e áspera, e havia sombras sob seus olhos escuros e

turbulentos. Baixou o olhar, angustiada pela mudança que tinha experimentado e pela fugaz

lembrança do toque de sua pele nua contra a dela.

O último dia que ela tinha passado na mansão Hawkscliffe, Robert estava cheio de

P á g i n a |233

vitalidade e entusiasmo. Agora se mostrava mais frio que nunca, afastando-se com uma

atitude pensativa e distante, e com as mãos enluvadas às costas.

— Espero que esteja bem.

— Estou bem. E você?

— Melhor impossível — grunhiu ele.

— Como estão Jacinda e Lizzie?

— Voltaram para a academia.

— Como me encontrou?

— Por meio da senhorita Wilson. Por quê? Está se escondendo?

— Não. O que quer?

Ele afastou a vista.

— Estou aqui porque não tive em conta que ia necessitar... — Vacilou. — Meu novo

cargo requer um grande trabalho político e de entretenimento que minha futura esposa não

pode levar a cabo devido a sua deficiência. Necessito uma anfitriã. — Virou-se e a olhou

intensamente. — Venha comigo a Viena.

A decepção explodiu no plexo solar de Bel como os foguetes de Vauxhall. Então não

tinha mudado os planos. Lady Juliet continuava sendo sua futura esposa.

— Não vou a nenhuma parte com você — conseguiu dizer ela.

Robert apertou os dentes e afastou seu olhar de frustração, bastante furioso. A cautela

altiva e receosa contrastava com o desespero de seus olhos.

— Não penso em me pôr em ridículo por você, Belinda Hamilton. Vamos, nós dois

ainda temos tempo de retroceder e pensar nisso. Talvez tenha perdido as estribeiras no

campo quando me abandonou. Estou disposto a esquecer, mas, por Deus, não vou arrastar-

me por você. Volta comigo e vivamos como antes, sem nos fazer perguntas. Estou disposto

a lhe dar isto, se é que serve para adular sua vaidade. — Meteu a mão no bolso de seu colete

e tirou uma folha de pergaminho dobrado.

Estendeu-a, franzindo o sobrecenho mas, quando ela dirigiu um olhar a suas feições

aquilinas, teria jurado que viu temor no mais profundo de seus olhos.

— O que é?

— Abre-o.

— Outra vez dando ordens. Muito bem — murmurou Bel altivamente, e depois de

desdobrar a folha de papel começou a lê-la.

Hawk a observou com o coração na mão enquanto ela lia. Aterrava-lhe sua reação.

Era a única coisa que podia fazer para refrear-se e não lhe pedir de joelhos que voltasse com

ele. Percorreu avidamente com o olhar cada um dos adoráveis e familiares planos e curvas

de seu rosto, enquanto ela lia a missiva uma e outra vez.

“Necessito-a – pensou ele. — Morro sem você.”

Bel respirou fundo, o que, na opinião de Robert, só podia ser um mau sinal. O brilho

azul de seus olhos o deslumbrou quando ergueu a vista e encontrou-se com seu olhar

absorto.

— A carta branca?

Ele assentiu com temor, pois tinha percebido uma nota severa em sua voz que não

conseguia entender.

“Era o que queria desde o começo. Significa que confio em você tanto como em mim

P á g i n a |234

mesmo”, queria dizer, mas por algum motivo lhe era impossível.

— Não lhe disse Harriette que já não sou uma cortesã?

Subitamente alarmado, Robert franziu o sobrecenho. Recordou que Harriette tinha

mencionado algo, mas lhe tinha entrado por um ouvido e saído pelo outro em seu tremendo

afã por recuperar Belinda.

— Não lhe disse isso?

— Sim, mas... Estou lhe pedindo isso, Belinda. Não Worcester ou Leinster ou Deus

sabe quem. Tenho certeza de que voltará comigo. Eu... A deixo feliz.

— Olhe a seu redor, Robert — exclamou ela furiosa, assinalando com um gesto a

humilde habitação. — Parece-lhe isto o toucador de uma mulher qualquer? Acaso estou

vestida com ornamentos? Não. Não o vê? Ao final fiz o que você disse. Agora só sou uma

mulher normal que leva uma vida privada e independente, e a da qual casualmente gosta.

Você tem à filha do conde e seu glorioso sobrenome para se consolar, eu tenho meu

trabalho com os meninos. Já não me necessita e, como pode ver, eu tampouco necessito de

você.

— Eu, sim, eu preciso de você — disse ele desconsolado.

Bel segurava o papel com uma mão ligeiramente trêmula.

— E esta é sua forma de demonstrá-lo? Oferecendo-se para me comprar? De quem

foi a ideia? De lorde Coldfell?

Ele engoliu em seco.

— Toma-o, Belinda. Tudo o que consegui não significa nada sem você.

— Não penso em voltar a ser a puta de ninguém, Robert. Nem sequer a sua —

replicou ela, e depois de pronunciar essas palavras rasgou a carta branca em pedaços e os

lançou no rosto.

Hawk a olhou fixamente, bastante impressionado, enquanto os pedaços de papel

caíam revoando no chão, como confete ao redor de suas polidas botas.

Belinda ergueu o queixo e se dirigiu à porta de seu apartamento. Abriu-a para que ele

partisse e esperou que saísse, mas ele não podia deixar de olhá-la enquanto lentamente caía

na conta de que estava falando sério.

Observou-a surpreso, sentindo-se como se a estivesse vendo pela primeira vez,

desprovida dos chamativos adornos de sua anterior ocupação, privada da gélida fachada que

já não necessitava. “Assim era ela até que Dolph Breckinridge a escolheu como presa”,

pensou cheio de assombro.

— Por favor, vá, excelência. — Permaneceu ali, orgulhosa e forte, recuperada de

suas feridas graças ao amor de Robert e resplandecente como um anjo em seu arrebatamento

de ira, com o cabelo dourado brilhando sob a luz do lampião.

“Bravo, senhorita Hamilton”, quis dizer ele, mas se limitou a olhá-la e pensou:

“Amarei a esta mulher enquanto viver”.

Caminhou aturdido para a porta.

— Por certo — disse ela, sacudindo a cabeça de forma altiva-, me deseja sorte: caso-

me com Mick Braden dentro de duas semanas.

P á g i n a |235

VINTE E UM

Casar-se com Mick Braden?

Na manhã seguinte Robert continuava abalado devido ao anúncio de Bel. O nó que

lhe tinha formado na boca do estômago não tinha desaparecido. Incapaz de comer, mandou

o café da manhã de volta à cozinha. Nesse momento se achava percorrendo o opulento

vestíbulo, com os nervos a flor da pele e os olhos vermelhos por causa de outra noite de

insônia. Impetuoso e crispado, saiu a toda pressa à luz do sol, em um estado que não era

precisamente impecável, e se esquivou de seus cães, que ladravam e meneavam a cauda.

Chegava tarde à reunião no clube com o ministro do Interior. White’s estava ao virar

a esquina, St. James Street abaixo, de modo que sempre ia caminhando até ali. E isso fez

nesse dia, procurando em sua carteira de couro documentos sobre os abrigos e

amaldiçoando entre dentes ao ter que correr atrás de uma de suas páginas de notas que

levara o vento.

“Mick Braden”, pensou amargamente, enquanto subia a escada do número 37 dando

grandes passadas e saudando com ar ausente o porteiro que lhe abriu a porta.

Mick Braden não era digno nem de atar os cordões das sandálias nos tornozelos de

Bel! A ideia de que aquele soldado jovem e grosseiro estivesse perto de seus tornozelos o

punha ainda de pior humor. Maldita seja, lhe pertencia. Conhecia cada centímetro de sua

pele e de seu corpo como a palma de sua mão.

“Que deus te ajude — se disse. — Está mais obcecado do que o estava Dolph

Breckinridge.”

Correu pelo clube até que distinguiu a calva brilhante do ministro do Interior, que

sobressaía por cima de uma luxuosa poltrona de couro, e se juntou a ele.

— Milord, peço-lhe desculpas pelo atraso.

O poderoso ex-primeiro ministro apareceu por cima do Times que estava lendo e

lançou a Hawk um olhar de desaprovação.

— Hum — respondeu, baixando o jornal. – Está acontecendo algo, Hawkscliffe?

Parece de mau humor.

— Isto... Não, senhor. — Forçou um ligeiro sorriso. — Estive um pouco ocupado

preparando a viagem a Viena e todo o resto, isso é tudo. — Hawk limpou a garganta e se

sentou.

— Claro. Parabéns por sua nomeação. Tenho certeza de que atuará com sua habitual

destreza. Permita-me também que o felicite por suas núpcias, excelência.

— Obrigado — murmurou ele, mas a lembrança de sua iminente condenação o

abateu de tal forma que perdeu o fio de seus pensamentos enquanto tirava as notas.

O visconde de Sidmouth deu uma olhada a seu relógio de bolso.

— Do que queria me falar, Hawkscliffe?

— Claro isto... Vejamos, inteirei-me de um assunto que considero que pode ser de

seu interesse como ministro do Interior, milord.

P á g i n a |236

Sidmouth entrelaçou as mãos e o olhou com atenção.

Robert começou a lhe explicar as duras condições em que se achavam os meninos do

Abrigo, a terrível espiral de pobreza e crime que levava aqueles cafajestes de cabeça à forca,

mas em pouco tempo se deu conta de que era inútil.

Lorde Sidmouth o escutava educadamente, com os cotovelos apoiados nos macios

braços de couro da poltrona, mas seu alongado rosto mostrava uma expressão muito pouco

receptiva.

Não somente lhe tinha arruinado a apresentação. Estava claro que Sidmouth, que se

encarregava de acompanhar os assuntos relacionados com o mal-estar social em toda a

Inglaterra, não queria ouvir aquilo. Hawk fez tudo o que pôde, mas Sidmouth sacudiu a

cabeça e ficou a falar de seus limitados recursos, que deviam ser destinados a impedir a

constante ameaça de insurreição.

O governo completo mantinha em segredo seu temor de que se produzisse uma

explosão de violência nas ruas como a que tinha tido lugar na França, entre os ludistas1 que

se dedicavam a danificar as máquinas e o regente que não fazia mais que indignar a

população com seus abundantes gastos; e agora com os numerosos veteranos que voltavam

para casa sem que houvesse trabalho para eles. Por desgraça, como não, as energias do

governo não podiam se desviar para assuntos corriqueiros, etcétera. Além disso, conforme

disse Sidmouth, se se tornassem brandos com aqueles trombadinhas, incitá-los-ia a que

cometessem ainda mais crimes, com a esperança de levarem só um puxão de orelhas.

Ao final Hawk partiu do White’s completamente derrotado, com a negativa de lorde

Sidmouth ressoando em seus ouvidos. Estava totalmente decepcionado com seu partido e o

governo.

Retornou caminhando a Knight House com os ombros caídos, desconcertado e

abatido. Já não sabia o que pensar de seus colegas, com sua legislação repressiva e sua

aversão aos camponeses e pobres. Tinha certeza que Henry Brougham, dos whigs, estava

lutando pela educação dos meninos pobres, mas a arrogância de Hawk o tinha impedido de

unir esforços com aquele homem. Aborrecido consigo mesmo, decidiu enviar a Brougham a

informação recolhida com tanto esmero. Talvez servisse de algo à causa. Ao diabo com a

glória pessoal de converter-se em salvador.

“Ainda farão de ti um whig”, havia-lhe dito Belinda em uma ocasião.

“Talvez, querida. Talvez”, pensou enquanto caminhava lentamente pela abarrotada

rua e virava em St. James Square. Entrou arrastando-se em sua casa, entregou a maleta de

couro e a jaqueta a Walsh, sem reparar no cenho solícito do mordomo, e a seguir subiu a

escada e chegou ao dormitório que Belinda tinha ocupado. Com a alma quebrada, deitou-se

na cama em que lhe tinha ensinado os mistérios do amor. Um sentimento de desespero

percorreu todo seu ser.

Tampou os olhos com o travesseiro e tentou dormir. Por muito grave que fosse a

depressão que sofria Castlereagh pensou, não podia ser pior do que perder o amor de sua

vida.

Apesar do sombrio que tinha sido aquele dia, o acontecimento social que enfrentava 1 Movimento operário surgido na Inglaterra no século XIX como resultado da Revolução Industrial, cujos ativistas

costumavam quebrar as máquinas das fábricas por considerá-las a causa do desemprego. (N. da E.)

P á g i n a |237

nesse momento lhe confirmou que a noite ia ser ainda pior. Se fosse outra classe de homem,

teria se embebedado, mas em lugar disso se arrumou e decidiu seguir as formalidades:

vestir-se com sua roupa a rigor, subir na sua carruagem e partir para King Street.

Estava previsto que nessa noite fizesse sua primeira aparição pública com sua futura

esposa. Lady Juliet, o conde de Coldfell e muitos outros membros da sociedade esperavam

Robert — o novo favorito, o noivo— no Almack’s. Quando a carruagem se deteve e

William lhe abriu a porta rapidamente, não sabia como ia conseguir obrigar-se a entrar ali.

Hawk saiu à rua e observou com rancor o elegante edifício.

Tudo aquilo era um engano.

Entretanto entrou. Carregando todo o peso do mundo sobre seus ombros, subiu a

imponente escada e contemplou imagens de Bel por toda parte; seu rosto adorável estava

tingido de rubor pelo amor e emoção. Queria morrer, mas adotou um sorriso oco de cordial

reserva e entrou na sala de baile.

No salão de celebrações se amontoava a elite da sociedade: nobres acompanhados de

suas orgulhosas esposas e filhas debutantes, veneráveis anciões e libertinos maliciosos em

estudadas poses de aborrecimento. Hawk custava a acreditar que em certa época tivesse

chegado a se encaixar tão bem ali. Detestava a toda a gente que via e, acima de todos, ao

homem que se dirigia para ele.

Coldfell caminhava agilmente apoiando-se em sua bengala, mostrando sua filha ante

o mundo com ar resplandecente. Juliet parecia uma boneca de tamanho real, com seus

grandes olhos azuis de porcelana e sua pele de louça acariciada por seus escuros cachos.

Estava realmente linda com seu simples vestido rosa, mas parecia aterrada. Hawk se deu

conta de que a estava olhando com o sobrecenho franzido e deixou de fazê-lo.

— Robert, cá estamos todos — o saudou Coldfell.

Ele apertou os dentes em uma tensa careta sorridente.

— Milord. — inclinou-se ante o conde e logo se voltou para a garota e fez uma

reverência formal. — Lady Juliet.

Ela olhou para os seus lábios, inclinando-se cautelosamente.

Depois de uns minutos de conciso bate-papo com seu pai, enquanto o olhar de Juliet

saltava de um a outro com ansiedade, Coldfell pousou com delicadeza a mão de Juliet no

braço de Hawk.

— Por que não vão se conhecendo, jovens? — disse afavelmente.

Hawk fez um esforço por não franzir de novo o cenho quando Coldfell se afastou

coxeando para misturar-se com seus amigos. Reprimiu um grunhido gutural e olhou de

esguelha para Juliet.

Ocorreu-lhe perguntar se queria dançar, mas obviamente era impossível. Pensou em

lhe oferecer ponche, mas não se atrevia a deixá-la só estando tão assustada.

Em lugar disso divisou um banco vazio junto à parede, convenientemente afastado.

Conduziu-a para ali e se sentaram. Olharam-se um ao outro sem hostilidade, embora sem o

menor sinal de afinidade. Ele não sabia como comunicar-se com ela ou se ela dispunha dos

meios para entendê-lo. Juliet lhe dedicou um sorriso triste, e ele o devolveu. Durante os dez

minutos seguintes permaneceram ali sentados em seus respectivos mundos. As pessoas lhes

lançavam olhares e sussurravam, e indubitavelmente consideravam que era um casal

adorável.

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Aonde Hawk olhava topava com imagens da Belinda na noite espetacular, mágica e

inesquecível em que a tinha levado ali para liberta-la de seus sentimentos de vergonha e

exclusão. Um sorriso meditativo apareceu em seus lábios ao lembrar-se de como estava alta

com o champanha, dando voltas travessamente pela sinuosa pista de baile e zombando das

patrocinadoras.

Como a tinha menosprezado e subestimado. Tinha sido terrivelmente arrogante,

impondo suas decisões e opiniões como se fossem a lei divina escrita em tábuas de pedra.

Estava cego, mas agora podia ver com clareza o que tinha perdido. Ela o tinha posto em seu

lugar. Evidentemente, tentar atraí-la de novo lhe oferecendo benefícios materiais tinha sido

a opção mais inadequada. Seu julgamento incorreto devia ter feito com que ela se lançasse

mais gostosamente ainda aos braços do soldado irresponsável. Mas quando recordou o

momento em que lhe lançou a carta branca no rosto, sentiu desejos de aplaudir aquela

esplêndida criatura.

Não, já não poderia ser a amante de nenhum homem, pensou. Tinha recuperado seu

orgulho por completo e agora sabia que merecia muito mais que isso. Curou-se, e ele

agradecia por isso.

De repente sentiu que Juliet se achava tensa junto a ele. Imerso em um estado de

absoluta depressão, deu-se conta de que não estava fazendo o menor caso de sua noiva.

Voltou-se para ela e a encontrou olhando ao outro lado do salão de baile. Seguiu seu olhar e

descobriu o objeto de sua ansiosa expressão: Clive Griffon, o parlamentar, acabava de

entrar.

“Demônios” pensou Hawk quando Griffon os divisou e começou a caminhar para

eles em linha reta, abrindo passagem com empurrões entre os bailarinos com um ar

desaforadamente trágico. Seu rosto juvenil estava corado pela ira e, a julgar por seu aspecto,

por uma dose de álcool superior à que estava acostumado.

A expressão de Hawk se tornou fria e distante. Tentou aparentar que não o tinha visto

enquanto Juliet se movia no banco como se a tivessem pilhado em falta. Griffon se

aproximou deles e ficou frente a Juliet, tremendo de uma emoção romântica e tormentosa.

Julia cravou os olhos nele com tristeza e depois lançou um olhar nervoso ao Hawk.

— É idiota — disse Griffon a ela, pronunciando com clareza cada palavra enquanto

ela lia os lábios dele. — Ele quer outra mulher, e você me quer, e eu a adoro. Juliet, como

pôde me trair?

Juliet choramingou e estendeu o braço para agarrar a mão de Griffon, mas ele a

afastou com amargura.

— Fique tranquila: seus segredos estão a salvo comigo.

— Segredos? — Hawk franziu o cenho e se virou para Juliet. Outra mulher com

segredos era a última coisa que necessitava.

— E quanto a você, senhor, embora me custe minha cadeira, dir-lhe-ei na cara que

lady Juliet vai se casar com você só porque seu pai a obriga. Pergunte a ela se não acreditar

em mim! — gritou, enquanto o senhor Willis e seus ajudantes chegavam ao lugar para tirá-

lo dali.

— Que segredos? — perguntou Hawk.

Os homens seguraram Griffon pelos braços ao mesmo tempo em que Coldfell se

aproximava coxeando rapidamente entre a multidão.

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— Tirem-no daqui!

— Vamos, fora! — gritou o senhor Willis enquanto Griffon lutava.

— Juliet, quero-a! — gritou ele quando os ajudantes começaram a empurrá-lo e a

levá-lo meio a rastros.

— Como se atreve a atacar a minha filha? — bradou Coldfell.

— Como se atreve você a obrigá-la a um matrimônio que não deseja? — rugiu

Griffon em resposta.

Todo mundo ficou quieto. Hawk esbugalhou os olhos. Nunca tinha visto ninguém

que atrevesse a dirigir-se ao conde de Coldfell dessa forma. Pelo visto, o conde tampouco.

Seu rosto enrugado ficou de um vermelho envelhecido. Golpeou Griffon com a ponta

da bengala.

— Exijo que este canalha seja expulso! Avisei-o uma dúzia de vezes que não se

aproximasse de minha filha...

Hawk ficou em pé e foi restabelecer a ordem. Quando chegou aonde estavam os dois

homens, Coldfell desceu a voz, lançando faíscas pelos olhos, a escassos centímetros do

rosto do Griffon.

— Encarregar-me-ei de que não chegue ao poder-lhe disse baixo.

— Você, senhor, é o último homem no mundo que deveria me ameaçar — grunhiu o

jovem em voz calma ao conde. — A menos, é claro, que queira que toda esta gente se

inteire de como morreu verdadeiramente sua esposa.

Hawk e Coldfell eram as duas únicas pessoas suficientemente próximas para ouvir

aquelas palavras pronunciadas em voz baixa. Hawk olhou fixamente a Griffon, abalado.

Griffon sacudiu sua jaqueta enrugada e a pôs corretamente.

— Felizmente para você, lorde Coldfell, não sou um homem que se rebaixe a fazer

chantagem.

Coldfell ficou pálido quando Hawk pegou Griffon pelo ombro.

— Venha comigo — ordenou, fazendo virar-se o moço para a saída. — Eu me ocupo

— disse com firmeza ao senhor Willis e seus ajudantes.

— Hawkscliffe! — protestou lorde Coldfell fracamente.

Hawk não lhe fez caso e conduziu Griffon para fora.

As pessoas se afastavam de seu caminho, sussurrando horrorizados quando passavam

a seu lado.

— Você sabia que eu a queria, Hawkscliffe! Como puderam me trair? Os dois...

— Quer fazer o favor de se calar até que estejamos fora? — murmurou Hawk

raivosamente, com o coração palpitante.

Tirou Griffon pela porta, virou à esquerda e se meteu no túnel de entrada que

conduzia ao estábulo de cavalos de aluguel situado ao lado.

— Me diga o que sabe sobre a morte de lady Coldfell... Ou estava blefando?

— Não estava mentindo! — Griffon deu um puxão e esfregou a fronte, com aspecto

juvenil e atormentado. — Prometi a Juliet que não contaria a ninguém... Mas se você vai

converter-se em seu marido, talvez lhe convenha sabê-lo, no caso de precisar protegê-la.

— Protegê-la do que?

— Da verdade. Hawkscliffe, você jura que o manterá em segredo?

Hawk se limitou a lhe lançar um olhar de advertência.

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Griffon sacudiu a cabeça com desalento.

— A morte de lady Coldfell não foi um acidente. Juliet se achava ali. Esteve

terrivelmente assustada desde que a mulher morreu. Estivemos nos escrevendo em segredo

desde que nos conhecemos, no dia que fui com você à casa de Coldfell. Suponho que ganhei

sua confiança. O caso é que me abriu seu coração em suas cartas. Tem muito medo que

alguém descubra tudo. Jura que não utilizará esta informação contra ela?

— Sim, maldição, fale! Dou-lhe minha palavra.

Griffon olhou ansiosamente por cima do ombro.

— Quando se produziu o incêndio no imóvel que o conde tem no condado do

Leicester, Juliet suspeitou que seu primo, sir Dolph Breckinridge, o herdeiro de Coldfell, o

tinha provocado. Imaginava-se que Dolph estava em Londres, mas ela cheirou sua

penetrante colônia no corredor antes que a fumaça apagasse seu rastro. Despertou seu pai e

ambos fugiram do fogo, e depois explicou a lorde Coldfell que suspeitava que Dolph tinha

estado na casa.

— Continua — disse Robert, recordando que antes de morrer Dolph tinha confessado

sua autoria no incêndio.

— Enquanto isso Coldfell se inteirou da aventura amorosa de sua mulher com o

Dolph – prosseguiu Griffon. — Sua suspeita sobre a autoria de Dolph lhe fez temer que sua

mulher estivesse implicada de algum modo. Aproximadamente uma semana depois do

incêndio, todos eles retornaram da casa senhoril à mansão de Coldfell em South

Kensington. Se até este ponto a história era simplesmente sórdida, a partir daqui se tornou

tenebrosa. Segundo Juliet, Coldfell levou Lucy ao salão e se enfrentou com ela. A princípio

Lucy tentou negar tudo, mas Coldfell seguiu acossando-a até que por fim, quando lhe

perguntou sem mais rodeios se ela e Dolph tinham tentado matá-lo, disse-lhe que sim e

pegou o atiçador da chaminé, tentando golpeá-lo com ele.

— Não falava a sério.

— Oh, é claro que sim. Juliet me disse que Lucy o seguiu pelo salão com o atiçador

como uma louca até que lhe bateu na perna ruim. O velho caiu ao chão e Lucy poderia tê-lo

matado com um golpe, mas Juliet apareceu por detrás e de repente lhe atirou um vaso.

— Matou-a Juliet?

— Não, Juliet não a matou, só a deixou inconsciente — disse Gritfon

apressadamente. — Coldfell ordenou a Juliet que o ajudasse a arrastar Lucy até o jardim.

Nenhum dos dois é muito forte, mas ambos a lançaram ao lago. Como ainda estava

inconsciente, afogou-se. Foi em defesa própria, Hawkscliffe. Pessoalmente considero que

lorde Coldfell é um intrigante e que sua atitude é imperdoável, mas Lucy e Dolph não

teriam parado até que o conde estivesse morto. E, o que é pior, Lucy planejava encerrar

Juliet em um asilo quando seu pai tivesse morrido.

Hawk ficou olhando-o surpreso, virtualmente incapaz de assimilar tudo aquilo. O

coração pulsava a uma velocidade exagerada. Sentiu que algo se liberava em seu interior:

uma força, uma justiça, um atrevimento que nunca tinha experimentado. E soube

imediatamente o que ia fazer.

Agarrou ao Griffon pelos ombros.

— Me escute. Deve se casar com Juliet.

Ele arregalou os olhos.

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— Que?

— Você a quer. O lugar dela é com você.

— Excelência!

— Não me contrarie. Os dois o desejam.

— Mas seu pai me proibiu de me aproximar dela! Não penso em utilizar esta

informação para chantageá-lo. Prometi isso à Juliet...

— Não terá que fazê-lo. Venha comigo. — Soltou-o, virou-se e se dirigiu

resolutamente à fachada do edifício, onde mandou que lhe levassem sua carruagem.

Griffon se apressou para não ficar atrás.

— Não entendo.

— Espere.

Hawk aguardou em um estado de vibrante euforia que William lhe levasse a

carruagem. A seguir s voltou para Griffon.

— Vou voltar a entrar. Quando retornar trarei Juliet comigo. Tem que levá-la a daqui

e se casar com ela antes que seu pai possa enviar alguém em sua busca. Uma vez que se

tenham casado, ele já não poderá fazer nada.

Griffon deixou escapar uma muda exclamação de assombro.

— É o que deseja, não é verdade?

— Sim! Com todo meu coração! Mas... Não sairá bem. E Coldfell o demandará por

descumprimento de compromisso de casamento! Você detesta os escândalos...!

— Não se preocupe por isso. Venha e fique debaixo da janela da sobreloja. Tirá-la-ei

por ali.

— Excelência, se nos ajudar a escapar, lorde Coldfell certamente conseguirá que lhe

retirem a nomeação para o Congresso de Viena! Sua palavra é sagrada para o primeiro-

ministro!

— Não importa. Você se coloque em seu lugar e esteja preparado.

Griffon assentiu com ansiedade e entrou nas sombras que rodeavam a lateral do

edifício, enquanto Hawk subia correndo a escada e retornava ao interior, respirando

profundamente. O coração lhe pulsava freneticamente de emoção ante sua louca temeridade.

“A verdade os fará livres”, pensou. Pela primeira vez em sua vida ia sacudir a tirania

de sua classe.

Ao entrar Coldfell o recebeu cheio de desculpas.

— Excelência, lamento humildemente a cena provocada por esse jovem canalha. É

certamente imperdoável. Esteve assediando minha casa desde que pôs seus olhos em minha

filha.

— Ah, então suponho que esse jovem Romeo esteve assediando as casas de ambos,

não é assim, Juliet?

Juliet o olhou fixamente, com os olhos muito abertos, aterrada ante a ideia de que

Robert tivesse feito algo horrível a seu verdadeiro amor. Hawk tomou a mão de Juliet e se

voltou para Coldfell simulando um olhar de régio desgosto.

— Se não se incomoda, eu gostaria de falar um momento em privado com sua filha

para esclarecer esta situação extremamente embaraçosa — disse no tom mais afetado e

dissimulado de que foi capaz.

— É claro — disse Coldfell. Deu um empurrão a sua filha no braço em atitude de

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severa recriminação e lhe indicou que fosse com o Hawk.

Robert lhe ofereceu o braço com frieza, interpretando o papel de noivo ultrajado. Até

seu pai parecia considerar que estava capacitado para dar uma reprimenda em Juliet.

Quando ela colocou sua mão no braço de Hawk e começou a caminhar lentamente ao seu

lado, parecia assustada e aflita.

— Não é preciso que fiquem olhando com a boca aberta, amigos — declarou Hawk,

ainda com semblante altivo e poderoso, embora sentisse que uma enorme gargalhada lutava

secretamente por sair de seu interior. Que surpresa iriam ter todos quando ao final trocasse

de posições! Por Deus, ainda por cima ia passar para o lado dos whigs! Que delicioso ia ser

o escândalo! Quase podia saborear o ar da liberdade enquanto subia para ele. — Por aqui,

Juliet.

Puxou sua mão em direção à modesta entrada e a pequena escada que conduzia à

sobreloja. Assim que estiveram fora do alcance da vista de todos, puxou-a com mais

firmeza, apressando-a. Virou-se e pronunciou a palavra:

— Venha!

Ela franziu o cenho em atitude interrogativa, mas ele sacudiu a cabeça e a conduziu

para a porta em forma de arco que dava ao pátio do King’s Place, na parte dos fundos do

Almack’s. Abriu-a e indicou abaixo. Juliet apareceu obedientemente e seu rosto se iluminou

de alegria ao ver Griffon embaixo esperando-a. Saudou-o com a mão.

Hawk fez que se virasse agarrando-a pelos ombros para que lhe visse o rosto e

pudesse lhe entender bem. Pronunciou cada palavra da forma mais clara possível. Ela ficou

olhando fixamente seus lábios, à espera. Desta vez estavam decididos a comunicar-se.

— Juliet.

Ela assentiu com a cabeça ansiosamente.

— Quer... A... Griffon?

Um olhar sonhador apareceu em seu rosto, e seu coração juvenil cintilou em seus

olhos. De repente fez uma careta de sincera desculpa, mas Hawk sorriu.

— Não tem importância. Quer se casar com ele?

Os olhos de Juliet se abriram de todo. Uma vez mais assentiu entrecortadamente.

— Suba aqui. Ajudá-la-ei a escapar.

Ela esbugalhou os olhos. Vacilou... Olhou de novo abaixo a seu amado... E assentiu

com entusiasmo.

Robert assobiou a Griffon e depois ajudou Juliet a sair pela janela. Abaixou-a pouco

a pouco agarrada pelas mãos até os ofegantes braços do jovem, e depois saltou atrás dela

soltando-se da cornija. Aterrissou agilmente sobre os paralelepípedos que havia debaixo e,

virando-se para o jovem e resplandecente casal, fez-lhes gestos com impaciência. Correram

para a parte dianteira e Hawk os apressou para que entrassem em sua carruagem. Griffon se

voltou para ele e lhe estreitou a mão.

— Lamento meu arrebatamento de antes, excelência. Não sei o que dizer.

— Não há nada que dizer. Confio em seu bom julgamento... E confio em que se

encontre em situação de manter uma esposa.

— Não lhe faltará nada.

— Bem. Vou confiar-lhes também minha carruagem, assim não lhe façam nenhum

arranhão. Partam. William leve-os a Gretna Green! — ordenou. — E faça com que os

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cavalos corram tão rápido quanto puderem! Coldfell não demorará em lhes seguir a pista.

— Sim, senhor!

— Que demônios! — disse Griffon de repente. — E o que acontece com meu cavalo?

Lembra-se dele, um branco e grande? Está amarrado no curral do Rose and Crown!

— Eu me ocuparei do cavalo. Pergunta em minha casa quando voltar...

— Não, fique com ele como amostra de agradecimento pelo que fez esta noite por

nós.

Hawk recusou com um gesto a generosa oferta.

— Parte!Não terá uma segunda oportunidade, Griffon. Coldfell não voltará a deixar

que se aproxime dela. O filho que Juliet dê a luz será conde e terá quatro cadeiras na

Câmara dos Comuns, e você será seu pai.

— Excelência — sussurrou Griffon comovido, abraçando Juliet contra ele-, não sei

como lhe agradecer.

— Vivam uma vida longa e feliz juntos, e se mantenha fiel a seus ideais quando fizer

uso de seu novo poder. Com isso bastará. — Fechou a porta da carruagem, e William

fustigou os cavalos para que se movessem.

— Hawkscliffe! — gritou Griffon rua abaixo, aparecendo na janela enquanto a

carruagem se afastava. — Tem o coração de um poeta!

Hawk lhe disse adeus com a mão, rogando para ter também a eloquência de um

poeta, e se apressou para o curral. Montou o garanhão branco pérola de Griffon e saiu à

carga para conquistar o coração de sua dama.

— Um cavalo! Um cavalo! Meu reino por um cavalo!

Bel e seu pai se achavam encantados no camarote do teatro, enquanto o assombroso

Edmund Kean, que interpretava Ricardo III, percorria a toda velocidade o cenário que

reproduzia o campo de batalha, gritando as frases mais famosas da história no clímax do

quinto ato. Embora Bel conhecesse bem a obra, tanto ela como seu pai contemplaram

atônitos como o rei Ricardo combatia com seu rival, o conde de Richmond, e era derrotado.

Kean brindou uma cena de morte impossível de igualar no mundo cristão. Houve um

momento de silêncio catártico em que o público, aflito pela pena do poeta, só pôde olhar ao

malvado rei morto em um estado de total comoção. O teatro se achava no mais absoluto

silêncio. E então, antes que Richmond pudesse pronunciar seu discurso triunfal, as portas

centrais situadas na parte dos fundos do teatro se abriram de repente com um rangido.

Bel experimentou um ligeiro aborrecimento ante aquela interrupção sem deixar de

olhar o cenário, ainda cativada. Subitamente um murmúrio procedente da zona traseira

percorreu o público. Os sussurros e as surdas exclamações se propagaram como um

zumbido, e a seguir se ouviram gritos.

“Que mal educados”, pensou Bel, voltando-se indignada, e ficou boquiaberta ao ver

que um enorme cavalo branco montado por um imponente cavaleiro de cabelo escuro subia

pelo teatro e descia pelo corredor central.

Bel ficou olhando com incredulidade. O duque de Hawkscliffe esporeava o cavalo

em direção à parte dianteira do teatro, alheio aos gritos de assombro que inundavam o

ambiente.

— O que está fazendo? — disse em voz baixa Bel surpreendida, agarrando-se ao

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braço de seu pai.

— Não tenho nem ideia — murmurou este.

O cavalo relinchava nervosamente e sacudia a cabeça, agitando no ar sua branca

crina. O público estava alvoroçado. O diretor de cena e seus ajudantes saíram correndo para

tentar detê-lo, mas Robert fez o cavalo dar voltas em uma grácil pirueta, varrendo o cenário

com o longo penacho de sua cauda, e depois fez com que o animal empinasse.

— Atrás! — gritou Hawk com uma ensurdecedora voz de mando. — Vim por um

assunto extremamente urgente. Logo seguirão com seu espetáculo!

— Deixem-no em paz! — gritou alguém do público.

— Esse é Hawkscliffe?

— Não pode ser — comentava as pessoas.

Edmund Kean disse algo ao diretor de cena, que por sua vez levou as mãos à cabeça

e pediu a seus ajudantes que se retirassem antes que o cavalo desse um coice em alguém.

Com um diabólico sorriso, Robert conduziu o cavalo para um lugar estratégico

situado justo debaixo do camarote de Bel. Tirou uma esplêndida rosa vermelha com um

empolado movimento e a levantou oferecendo-a. O galante gesto despertou vivas, assobios

e aplausos. Inclusive do senhor Kean que riu.

Robert dedicou a Bel um sorriso travesso que fez dar um salto ao coração de Bel,

cheia de uma alegria louca e incrédula.

Com o coração lhe pulsando a toda velocidade, Bel estendeu o braço por cima do

corrimão e aceitou a rosa, envergonhada por ter monopolizado a atenção do público, já que

todo mundo sabia quem ela era: “a madalena”, tal como a chamavam agora os jornais, a

prostituta penitente.

— Saia daí, milady — disse ele docemente.

— Ficou completamente louco?

— Estava muito louco para deixá-la partir. Me aceite outra vez. Não se arrependerá,

juro – disse Robert. — Case-se comigo, querida.

— Robert!

Todo o público se inclinou para eles para não perder uma palavra, enquanto ele se

voltava para o pai de Bel.

— Senhor, quero a sua filha mais que tudo neste mundo— anunciou Robert bem alto,

e sua sonora voz de barítono ressoou por todo o teatro. — Concede-me sua mão?

— Sim, excelência — disse Alfred com um risinho afetuoso.

— Papai! — protestou Bel.

Sua vergonha provocou um murmúrio de risadas, as pessoas esperneavam no chão e

prorrompiam em vivas.

— Robert, está ficando ridículo!

— Sim, querida, disso se trata. Se formos armar um escândalo, que seja um bem

grande.

— Oh, é desesperador...! — disse ela, tão irritada que ficou sem palavras.

Fazendo com que o cavalo se aproximasse, Hawk lhe ofereceu a mão com um sorriso

doce e sedutor.

— Venha comigo. Esquece suas dúvidas, sabe que a quero. É nossa oportunidade.

— Diga que sim! — gritou alguém sentado em uma das filas próximas. — Diga que

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sim!

Houve outros que se uniram a ele.

— Não seja tola, moça! Ele a quer! Chiou uma gorda mulher cockney do fosso.

— Vamos! — começaram a gritar todos, animando Robert.

— Acredito que isto não é assunto de ninguém! — exclamou Bel.

Lançou-lhe um olhar sedutor.

— Aprovou-se a moção. Vamos, Bel. Que sentido tem tudo se não estivermos

juntos?

As lágrimas brotaram dos olhos dela. Os escuros olhos de Robert brilhavam com a

promessa de futuro que lhe oferecia. Esperou fielmente, com as mãos estendidas,

enfrentando uma recusa pública. Deus sabia que era o que merecia depois de tudo o que

tinha feito Bel passar.

Ela olhou ansiosamente ao público vociferante e depois a seu pai.

— Papai, o que devo fazer?

Sorriu-lhe com os olhos empanados de lágrimas.

— Querida, está claro que tem que obedecer a seu coração.

— E Mick?

— Ele só deseja sua felicidade, como eu. Entenderá.

— Oh, papai! — Abraçou com força seu pai. Ele riu entre dentes com ternura e a

soltou.

Então o som aumentou em um crescendo, todo o público começou a lançar vivas

enquanto Bel saltava o corrimão em um gesto de ousadia, fazendo uma escandalosa

exibição de seus tornozelos que certamente teria feito rir à descarada Georgiana

Hawkscliffe. Tomou a mão de Robert e ele segurou enquanto a descia cuidadosamente

sobre o cavalo, atrás dele.

Robert fez que lhe rodeasse a cintura com os braços.

— Me abrace — sussurrou— e não me solte nunca mais.

— Quero-o! — disse Bel com um soluço de felicidade, e ouviu o rumor da risada

profunda e terna de Robert.

— Mais lhe vale amor, porque desta vez nosso acordo é permanente.

Virou-se e lhe deu um beijo doce e pausado que continha a promessa aveludada da

noite que se avizinhava. Quando deixou de beijá-la e lhe sustentou o olhar por um momento

com seus olhos brilhantes de amor, as lágrimas se transbordaram sob as pálpebras de Bel.

— Senti sua falta — sussurrou Robert, e se virou para diante sorrindo de forma ainda

mais malandra. — Agarre-se forte.

Ela se abraçou a sua magra cintura.

E a seguir ele golpeou os flancos do cavalo com os calcanhares, e saíram galopando

do teatro e cavalgaram para as estrelas.

NOTICIA APARECIDA NA PÁGINA

DE SOCIEDADE DO THE LONDON TIMES,

EM 23 DE SETEMBRO DE 1814

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Depois de uma cerimônia nupcial privada celebrada na semana anterior na capela da

casa senhoril de suas excelências no Cumberland, o duque e a duquesa de Hawkscliffe

embarcaram para Viena para desfrutar de sua lua de mel em meio aos festejos do grande

congresso.

Lady Jacinda Knight e sua companheira, a senhorita Carlisle, acompanharam suas

excelências em sua viagem continental.

À felicidade da família contribui também a notícia de que o coronel lorde Damien

Knight, o condecorado herói de guerra, receberá um título de nobreza quando retornar para

casa da Península Ibérica. Aguardamos ansiosos a oportunidade de poder lhe expressar

nosso agradecimento e parabéns a sua senhoria, cuja chegada se espera para antes do final

do mês.

Enquanto isso, recebemos um informe segundo o qual, em outra parte da cidade, o

duque de L e o marquês de W tiveram umas palavras seguindo com sua antiga rivalidade

pelos favores da célebre Harriette Wilson...

Fim