genero e os desafios
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Impulso, Piracicaba, 14(34): 107-127, 2003 107
Gênero e os Desafios Epistêmicos para a Teologia e outros SaberesGENDER AND EPISTEMIC CHALLENGES FOR THEOLOGY AND OTHER KNOWLEDGES
Resumo Em uma hermenêutica de gênero, o processo de leitura da realidade procura
privilegiar os movimentos e momentos de encontro e diálogo entre as experiências de
vida de quem procede à leitura e as das pessoas identificadas no processo analítico, em
suas sucessivas realidades cotidianas. A concepção das relações sociais de gênero apre-
senta-se como um novo paradigma, capaz de não simplesmente visibilizar mulheres
e/ou grupos oprimidos, mas de iluminar as descobertas sobre a estruturação das
opressões e dos jogos de poder que organizam discursos normativos e estabelecem
controles sociais. Mais que um encontro entre histórias de vida, esse jeito de ler a re-
alidade quer demarcar uma nova trajetória dos paradigmas de construção dos conhe-
cimentos e de decodificação dos discursos, sejam eles teológicos ou oriundos de ou-
tras áreas de saber.
Palavras-chave GÊNERO – COTIDIANO – COMPLEXIDADE – PODER – CÂNTICO
DOS CÂNTICOS.
Abstract In the gender hermeneutics, the process of reading reality attempts to pri-
vilege movements and moments of encounter and dialogue between life experiences
of the person who makes such reading and those of the people identified in the analy-
tical process, in their successive daily realities. The conception of social relations of
gender presents itself as a new paradigm, capable not only of making women or the
oppressed groups visible, but also of illuminating the discoveries concerning the
structure of oppression and of power games that organize normative discourses and
establish social controls. More than an encounter between life histories, this way of
reading defines a new path for paradigms that build knowledge and decode discour-
ses, whether theological or deriving from other fields of knowledge.
Keywords GENDER – DAILY-LIFE – COMPLEXITY – POWER – SONGS OF SONGS.
TÂNIA MARA VIEIRASAMPAIO
Universidade Metodista dePiracicaba (UNIMEP, Brasil)
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INTRODUÇÃO
presente reflexão visa identificar aportes das teorias de gê-
nero na perspectiva de instrumentais de análise tanto da
área de conhecimento da teologia e das ciências da reli-
gião quanto de seus desdobramentos para a interlocução
com outras áreas de conhecimento. O propósito é ins-
taurar a discussão sobre os paradigmas que orientam a
socialização do saber acumulado, a produção de conheci-
mentos novos e os parâmetros que definem a relevância
social das pesquisas e das intervenções em realização. Confrontar o pro-
cesso da indissociabilidade do ensino-pesquisa-extensão da universidade
à luz da categoria de gênero significa enfrentar alguns dos atuais questiona-
mentos acerca das relações sociais de poder que estruturam o cotidiano de
vida e de produção do conhecimento das pessoas.
A proposta analítica aqui pretendida depende de que a categoria gê-
nero seja compreendida como referencial de análise fundado nas concre-
tas relações sociais de gênero e que se estruturam na realidade relacional
dos seres humanos. Não se trata, portanto, de isolar a mulher como ca-
tegoria específica, mas de exigir que a relação mesma entre homens e mu-
lheres seja o foco da análise. O eixo fundamental é identificar as estru-
turas de poder e controle imbricadas nas relações e sua respectiva pro-
dução e reprodução do saber.1
GÊNERO: UMA CONSTRUÇÃO HISTÓRICO-CULTURALÉ importante considerar gênero como uma categoria tanto de aná-
lise quanto histórica. Não há sociedade que não elabore imagens vincu-
ladas ao masculino e ao feminino e em que essas construções não sejam
datadas e contextualizadas.2 As ações humanas não são apenas fruto de
decisões racionais, mas estruturam-se a partir do imaginário social, com
seus simbolismos que subsistem nas culturas. “São produções de sentido
que circulam na sociedade e permitem a regulação dos comportamentos,
de identificação, de distribuição de papéis sociais.”3 Esse complexo me-
canismo de construção de um saber com características de algo natural e
aparência de imutabilidade precisa ser desvelado por uma atitude cientí-
fica de suspeita e superação epistemológica.
O caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo
adverte para a compreensão de que a dimensão de sexo não se restringe
ao aspecto puramente biológico, mas transita nas construções sociais.
Esse dado nos permite não naturalizar processos de caráter histórico, in-
terpondo-se aqui a categoria gênero como algo distinto de sexo.4 A per-
cepção do sexo anatômico de uma criança, logo após o seu nascimento,
1 NUNES, 1995.2 GUEDES, 1995.3 TEVES, 2000, p. 190.4 SCOTT, 1991.
AAAA
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não necessariamente corresponderá ao seu gêne-
ro. As matrizes de gênero desenhadas nas cultu-
ras e nos processos históricos têm força de im-
primir aos corpos algo que transcende sua anato-
mia. Na visão de Heleieth Saffioti, Jo Ann Scott
avança ao dizer que o sexo é o que percebemos do
sexo anatômico de uma genitália de macho ou de
fêmea. A partir daí inicia-se o processo de
socialização desses corpos com as imagens do
masculino e do feminino disponíveis na cultura.
Por exemplo, vestir o corpo masculino de azul e
o corpo feminino de cor-de-rosa é um dos mui-
tos sinais desse processo de construção da iden-
tidade de gênero.5
Gênero apresenta-se como uma possibili-
dade teórica que enfrenta a pergunta pelas rela-
ções sociais de poder e, portanto, é capaz de ar-
ticular não só a confluência das relações de sexo,
mas também étnicas e de classe, que atravessam
as diferentes parcelas da humanidade. O referen-
cial teórico dessa reflexão demarca-se pela ênfase
no poder presente nas relações de gênero e nas
demais relações sociais entre as quais se nomeia
as étnicas e as de classe. Não se pretende homo-
geneizar o corpo acadêmico e sua cotidiana lida
com o saber construído e a ser construído, sob
pena de não se chegar ao nível analítico com sua
exigência de des-construção dos mecanismos que
produzem e reproduzem, de modo sutil, as hie-
rarquizações das diferenças.
O saber, em sua construção e transmissão
teórica, igualmente à realidade, tem por base re-
lações sociais de poder. As relações de gênero, em
ambas as situações, apresentam-se marcadas por
interesses e associações assimétricas que, muitas
vezes, subordinam as mulheres, bem como ou-
tros grupos sociais.
Segundo Jo Ann Scott, na medida em que
gênero constitui uma categoria de análise, é pos-
sível estabelecer analogias com a classe e a raça,
levando em consideração que as desigualdades de
poder organizam-se, no mínimo, segundo esses
três eixos – muito embora não se possa afirmar
uma paridade entre esses três termos e sua apli-
cabilidade analítica aos processos estruturais. Na
visão da autora, a articulação das categorias de
classe, de etnia/raça e de gênero assinala um duplo
compromisso, o da inclusão dos discursos das
pessoas que experimentam a opressão e o da re-
alização de uma análise do sentido e da natureza
dessas opressões.6
Mais do que articulados, classe-etnia-gênero
estão enovelados, segundo Heleieth Saffioti, por-
que, em sua análise, articulação se faz de coisas
distintas e separadas. E classe-etnia-gênero, assim
como exploração-dominação não são distintas e
separadas, mas constituem faces de uma mesma
moeda/realidade, a exemplo da produção-repro-
dução – duas facetas importantes da vida ou as-
pectos de um mesmo fenômeno. Conceber um
separado do outro é pensar no político (domina-
ção) desconectado do econômico (exploração),
quando, de fato, um nunca se desvincula do ou-
tro; ambos acontecem não apenas no espaço pú-
blico, mas também no privado. Analogamente se
pode dizer o mesmo do trinômio classe-etnia-gê-
nero.7
PRODUÇÃO DO SABER E EXERCÍCIO DE PODER
A identificação das questões de poder que
estão em jogo nos processos de construção do
saber, ou na estruturação da realidade, permite
avaliar a relevância de uma análise da produção
acadêmica pelo viés de gênero. Não se trata de
um aspecto de fácil compreensão e possibilidade
de detecção na realidade, uma vez que o poder
encontra-se como que pulverizado. Perceber o
poder como algo molecularmente presente nas vá-
rias esferas sociais, e em sua característica de dis-
persão, dificulta a localização dos mecanismos de
controle e, conseqüentemente, sua des-instala-
ção.8
Compreender o conceito de relações de gê-
nero como instrumento capaz de captar a trama
das relações sociais, bem como as transformações
5 SAFFIOTI, 2000.
6 SCOTT, 1991.7 SAFFIOTI, 2000.8 TEVES, 2000.
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historicamente sofridas por meio dos mais distin-
tos processos sociais, implica admitir que o pro-
cesso de dominação-exploração não presume o
total esmagamento da personagem que figura no
pólo de dominada-explorada. Esse dado é de fun-
damental importância quando desejamos superar
o debate com a sociedade patriarcal, como se suas
estruturas retirassem totalmente, ou absoluta-
mente, o poder das mulheres, das minorias étni-
cas etc. “Homem e mulher jogam, cada um com
seus poderes, o primeiro para preservar sua su-
premacia, a segunda para tornar menos incom-
pleta sua cidadania.”9 Certamente, o acesso ao
poder é desigual, imprimindo essa marca nas re-
lações sociais, sejam elas de gênero, de classe, se-
jam de etnia/raça.
A compreensão dos acontecimentos no
viés das relações sociais de poder converte-se em
uma chave de leitura que capta a multiplicidade
de relações que se entrecruzam e se entredeter-
minam. Admitir a perspectiva de que falar em re-
lações sociais é falar de relações de poder faz aflo-
rar a realidade da existência de grupos sociais em
confronto. O desafio que se instala é o de olhar
a questão de modo mais dialético, dinâmico, pois
a própria condição de subordinação está acompa-
nhada de movimentos de resistência e apropria-
ção desses espaços. Exaltar a participação da mu-
lher, do negro, do empobrecido (em qualquer
coisa), como justificativa de que não há discrimi-
nação, é obscurecer o conflito. Se, de um lado, as-
sumir a conflitividade da relação entre os grupos
sociais ajuda no reconhecimento dos grupos do-
minantes, de outro, a exaltação nega o conflito e
encobre que, entre os próprios grupos sociais,
não há homogeneidade. O protagonismo social/
real limitado para mulheres, negros, indígenas,
empobrecidos precisa ser olhado no interior das
relações sociais de dominação vividas por esses
grupos.
Os estudos mediados pela categoria de gê-
nero evidenciam os processos normativos de
construção do saber, visando a des-naturalização
de processos socialmente construídos e a análise
das relações sociais de poder. Esse procedimento
analítico considera o poder não como uma ins-
tância absoluta e estática, mas como um conjunto
de forças que se move entre/contra/sobre/com
os diversos sujeitos sociais. Portanto, trata-se da
análise das distintas parcelas de poder vividas pe-
los grupos sociais em uma determinada estrutura
social.
Nesse sentido, a concepção de poder de
Foucault tem sido apreciada, e utilizada em mui-
tas reflexões teóricas feministas, por sua perspec-
tiva de considerar que o poder apresenta-se como
constelações dispersas, em parcelas apropriadas
diferentemente pelos grupos sociais e em contra-
posição a uma visão de poder como bloco
homogêneo e único por parte das esferas domi-
nantes.10 “Enfim, precisamos substituir a noção
de que o poder social é unificado, coerente e cen-
tralizado por alguma coisa que esteja próxima do
conceito foucaultiano de poder, entendido como
constelações dispersas de relações desiguais cons-
tituídas pelo discurso nos ‘campos de força’.”11
O processo de visibilização das pessoas
apagadas da história é importante, mas insuficiente.
Seu protagonismo deve ser visto dentro dos limi-
tes das condições sociais. A contradição perpassa
toda a análise, não é absolutamente nítida e uní-
voca. Por exemplo, “as mulheres não sobrevivem
graças exclusivamente aos poderes reconhecida-
mente femininos, mas também mercê da luta que
travam com os homens pela ampliação-modifica-
ção da estrutura do campo de poder”.12
A categoria de gênero pressupõe o enfren-
tamento dos jogos de poder, inserindo a leitura
da realidade e dos processos de produção do sa-
ber em um novo horizonte, não apenas metodo-
lógico, mas epistemológico. Tal fato promove o
diálogo entre pessoas envolvidas em pesquisa/en-
sino/extensão que desejam construir suas ações
9 SAFFIOTI, Heleieth I.B. “Rearticulando gênero e classe social”. In:COSTA; BRUSCHINI, 1992, p. 184.
10 GUEDES, 1995; SAFFIOTI, Heleieth I.B. “Rearticulando gêneroe classe social”. In: COSTA; BRUSCHINI, 1992; e TEVES, 2000.11 SCOTT, 1991, p. 14.12 SAFFIOTI, Heleieth I.B. “Rearticulando gênero e classe social”. In:COSTA; BRUSCHINI, 1992, p. 184.
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cotidianas como resposta às exigências e urgên-
cias dos corpos para viver uma vida digna.
Essa nova maneira de compreender o mun-
do e o ser humano coopera para desvelar o poder
dos mecanismos de estruturação do conhecimen-
to e influir nos seus processos de transmissão,
bem como para mudar a estrutura hierárquica de
poder estabelecido. “Produção do saber e exercí-
cio do poder, longe de se constituírem em esferas
estanques e separadas, aparecem historicamente
indissociadas.”13 A correlação entre poder e saber
traz consigo a pergunta sobre o método de cons-
trução do conhecimento e seus pressupostos
básicos.
DEBATE EPISTEMOLÓGICO DECORRENTE DA ANÁLISE DE GÊNERO
Na visão de Ivone Gebara, as epistemolo-
gias tradicionais precisam ser desafiadas não ape-
nas pela agregação de aspectos novos, mas care-
cem de uma revisão de seu núcleo básico. Entre
outras coisas, tal visão implica uma nova antro-
pologia. Exige que os seres humanos tomem po-
sição ante a si mesmos, aos demais seres huma-
nos, aos seres vivos e ao ecossistema. Requer,
dessa maneira, perguntar sobre a percepção de
mundo que se tem a fim de superar dogmatismos
contra os quais propõe o movimento da vida. E
esse, como dinâmica instigadora do que parece
óbvio e definitivo.14 Nas palavras de outros auto-
res que instigam novas perspectivas epistemoló-
gicas, pode-se conferir a afirmação de que “a di-
nâmica da vida é essencialmente processual, e
suas metáforas-guias não podem ser emprestadas
da mecânica, porque precisam provir de proces-
sos vivos. Todos os sistemas vivos são sistemas
aprendentes e desejantes”.15
O processo acadêmico é um espaço impor-
tante, embora não o único, para desencadear no-
vas percepções da vida e dar vazão aos desejos ca-
pazes de construir outros mundos possíveis. No
cerne dessa discussão epistemológica, ganha for-
ça a reflexão analítica de Fritjof Capra sobre es-
tarmos diante de uma crise de percepção. A mu-
dança de percepção e de construção do pensa-
mento parece ao autor um dado irreversível. Em
questão está a necessidade de superar o paradig-
ma dominante, e quase universal, de percepção
do universo e do ser humano como um sistema
mecânico no qual a crença no progresso material
ilimitado anda par e passo com a crença em uma
sociedade em que a mulher é classificada em po-
sição inferior ao homem (o que seguiria uma lei
básica da natureza), bem como a própria natureza
se encontra em posição subalterna ao ser huma-
no.16
A esse modelo de percepção do mundo
apresenta-se a perspectiva de reconhecer a inter-
dependência fundamental de todos os fenôme-
nos e seres vivos do ecossistema. Sua proposta de
acercamento da realidade para a construção do
conhecimento apresenta-se nos seguintes ter-
mos: “do ponto de vista sistêmico as únicas
soluções viáveis são as soluções ‘sustentáveis’
(...). Uma sociedade sustentável é aquela que sa-
tisfaz suas necessidades sem diminuir as perspec-
tivas das gerações futuras”.17 A perspectiva da in-
terdependência introduz uma nova compreensão
do conhecimento e repercute nas posturas éticas.
Segundo Ivone Gebara, a concepção de interde-
pendência no conhecimento “é a experiência mais
básica de todos os seres, anterior à nossa cons-
ciência dela (...). Temos de abrir-nos para expe-
riências mais amplas do que aquelas a que nos ha-
bituamos secularmente. Temos de introduzir nos
processos educacionais a perspectiva de ‘comu-
nhão com’ e não a de conquista da Terra e do
Cosmo”.18
O desejado para esse momento de debate
epistemológico é que se inaugurem tempos e de-
sejos de aprender com a outra pessoa, de sonhar
novos sentidos para a existência, de afirmar a vida
na superação de relações de dominação-explora-
ção de um gênero sobre outro, de uma etnia so-
bre outra, de uma classe sobre outra, de seres hu-
13 NUNES, 1995, p. 10.14 GEBARA, 1997.15 ASSMANN; SUNG, 2000, p. 7.
16 CAPRA, 1996.17 Ibid., p. 24.18 GEBARA, 1997, p. 60-61.
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manos sobre o ecossistema. Urge superar o po-
der no sentido de dominação sobre os outros e
pensá-lo com base em uma mudança do paradig-
ma de hierarquia para o de redes de conexões e
interdependências. Nesse caso, a rede se compõe
da diversidade de fios interdependentes, sem que
as diferenças resultem em processos de desigual-
dades e inferiorização de uns em relação a outros,
como ocorre na concepção hierárquica de poder.
Esse é um convite a repensar e reinventar
nossas relações e referências de percepção do
mundo e do conhecimento. Um convite a des-
construções e construções que desafiam à
interlocução, e não ao dogmatismo. Nesse senti-
do, Ivone Gebara propõe revisitar as epistemolo-
gias de corte patriarcal, androcêntrico e antropo-
cêntrico, inclusive, para inaugurar a possibilidade
de uma episteme por ela denominada de ecofemi-
nista. Tal epistemologia distinta abre-se a pensar
na interdependência e realidade processual na
estruturação do conhecimento, superando pre-
tensas superioridades dos seres humanos.19
A urgente tarefa de enfrentar o debate
epistemológico na academia, tomando por base
uma perspectiva de gênero, foi aqui assumida por
meio de uma abordagem que contempla a discus-
são teórica de gênero e sua articulação com o co-
tidiano, incluindo o do diálogo entre os saberes.
Isso porque o cotidiano é político e se organiza
nos conhecimentos científicos tornados naturais,
vistos muitas vezes como óbvios e sobre os quais
não se reflete, apenas se vive. Nesse sentido, é
mister considerá-lo como elemento estruturador
do acontecer histórico e relacionado com a vida
do ser humano inteiro em seus múltiplos senti-
dos.20 Defronta-se com a necessidade de desna-
turalizar processos construídos historicamente.
A análise, nesse caso, ocupa-se em descre-
ver as relações cotidianas expressas nos movi-
mentos de mulheres e homens no interior da ca-
sa, nos locais de trabalho, nas festividades públi-
cas, nas práticas religiosas... Admite-se o cotidia-
no como espaço significativo das relações sociais
– por nele acontecerem as lutas e transformações
sociais –, não se limitando, portanto, a encará-lo
como mero lugar de repetição.
A opção metodológica de reconhecer a re-
levância dos aspectos do cotidiano para formular
as perguntas à realidade possibilita aproximar-se
dos desejos, anseios, sonhos, ausências e proces-
sos de resistência presentes na construção das ex-
periências de vida das pessoas e de suas comuni-
dades. Ademais, ajuda a clarear que as grandes
questões políticas, econômicas, sociais ou religio-
sas não são as únicas importantes. Na experiência
cotidiana, composta de inúmeros detalhes – cor-
rendo, por isso, o risco de parecer supérflua à
análise –, acontece, de fato, a construção das re-
lações sociais de poder.
A aproximação do cotidiano resulta da busca
de superação da dicotomia entre o concreto das re-
lações humanas e os raciocínios abstratos das for-
mulações dos saberes com base nas articulações
gênero-cotidiano. Isso se explica pelo fato de as re-
lações de poder entre os grupos sociais estarem
presentes na dinâmica movimentação dos corpos,
quando esses afirmam tanto a sua própria existên-
cia no mundo quanto as demais existências que
lhes animam.
A percepção orientadora dessa reflexão é a
de que a assimetria de poderes entre homens e
mulheres reforça processos de inferiorização e
exclusão e oprime todas as pessoas, mulheres e
homens. A superação da fixidez e da binariedade
das matrizes de gênero pode promover uma forte
revisão e desconstrução do caráter normativo das
construções histórico-sociais para os sexos, ques-
tionando, desse modo, as construções androcên-
tricas de controle dos corpos que tendem a natu-
ralizar o que é fruto de construção social e histó-
rica.
Posturas epistemológicas novas são poten-
cialmente possibilitadoras de abertura a sentidos
ainda não descobertos, muito provavelmente
porque a respeito deles nada se indagou ainda.
No horizonte dessa reflexão está a intenção de
romper com mecanismos de controle dos corpos
em suas relações cotidianas, expressas muitas ve-19 Ibid.20 HELLER, 1989.
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zes nos textos e nos sentidos oriundos deles para
a vida.
GÊNERO NO DEBATE ACADÊMICO E IMPLICAÇÕES METODOLÓGICAS
O eixo privilegiado de sentido das relações
sociais de gênero orientador desse ensaio apóia-
se na convicção de que as diversas ciências são sa-
beres construídos e permeados de questões de
poder, portanto, passíveis de serem desconstruí-
dos, reconstruídos e construídos em novas bases
e critérios.
O propósito de mapear as relações sociais
de gênero, na multiplicidade dos movimentos co-
tidianos presentes nos textos normativos das ciên-
cias (igualmente nas produções teológicas), em
consonância com essa perspectiva de abertura de-
les para o mundo de quem se ocupa de sua aná-
lise, já é uma tomada de posição teórico-metodo-
lógica. Essa, por sua vez, incide em uma atitude
de ruptura com as pretensões de neutralidade na
produção do conhecimento ou da hermenêutica.
O marco teórico em que se inscreve a con-
cepção de um sujeito identificado com a escolha
do objeto e do método de trabalho reafirma a
neutralidade como um mito.21 Traz também à
tona o questionamento de uma objetividade pura
para se associar aos estudos que afirmam ser a ob-
jetividade situada a única concebível. Além de da-
tada, sexuada e racificada, ela implica tanto elimi-
nar as dualidades sujeito-objeto, objetividade-
subjetividade, racionalidade-emotividade, públi-
co-privado, pessoal-político etc. quanto questio-
nar o caráter genérico, universal e atemporal das
hermenêuticas e dos conhecimentos.22
A leitura que ora se propõe para os textos
normativos dos saberes, entre eles, a teologia, não
está desprovida de pressuposições e influências
do contexto de quem procede à interpretação;
tampouco o estão as outras leituras com as quais
qualquer estudo estabelece diálogo e confrontos.
O exercício pautado pelo paradigma das relações
sociais de gênero no contexto das experiências
cotidianas promove não apenas a reflexão sobre o
objeto, mas põe em questão a pessoa que inves-
tiga (o sujeito), com suas múltiplas implicações.
Na arte de compreender um texto emerge, simul-
taneamente, a pluralidade de sentidos que lhe é
própria e a mediação para a auto-revelação de
quem empreende a leitura.23 Tal compreensão
não se restringe somente à projeção no texto, im-
plicando, também, expor-se a ele e reconhecer a
existência de textos que não acolhem essa auto-
exposição ou não permitem a revelação de quem
os lê.
Por essa razão, a aproximação pretendida
das produções de saber traz luz não apenas às
surpresas do próprio conhecimento, mas tam-
bém aos impasses de quem o interroga. Revela,
desse modo, a busca de conhecimento de quem
está no processo investigativo, bem como sua
produção de saber, sua subjetividade, sua parcia-
lidade e seletividade, seus traços culturais e histó-
ricos e sua pertença social. É importante retomar
as palavras de Paul Ricouer: “Aquilo de que final-
mente me aproprio é uma proposição de mundo.
Essa proposição não se encontra atrás do texto,
como uma espécie de intenção oculta, mas diante
dele, como aquilo que a obra desvenda, descobre,
revela. Por conseguinte, compreender é compreen-
der-se diante do texto”.24
Ao analisar a construção do conhecimento,
ainda que seja preciso admitir que todo saber car-
rega limites inerentes ao processo de fixação pelo
ato da escrita, não se pode sucumbir a um pro-
cesso de fixidade interpretativa, particularmente
àquela calcada em estereótipos que descaracteri-
zam determinados grupos sociais. É preciso en-
frentar a fixidade normativa com outra caracte-
rística inerente a um texto teórico: sua riqueza se-
mântica e abertura polissêmica.25 Esse caráter
acompanha a dinâmica e a pluralidade das expe-
riências humanas, sempre que conferem sentido à
sua existência.26 Desse modo, o caminho selecio-
nado é o de estabelecer perguntas novas durante
21 JAPIASSU, 1981.22 SAMPAIO, 1999.
23 RICOEUR, 1977.24 Ibid., p. 57-58.25 RICOEUR, 1977; NUNES, 1995.26 HELLER, 1989.
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o processo analítico para recriar horizontes no-
vos de compreensão.
Com base nesses pressupostos de contex-
tualização da objetividade da tarefa analítica, não
é estranho admitir a subjetividade como parte in-
tegrante do método, resguardando-a da falácia de
uma produção de conhecimento capaz de atingir
concepções totalizantes e absolutas. Segundo
Ivone Gebara,
a questão de gênero nos leva a uma crítica
do universalismo das ciências humanas
(...) as afirmações que diferentes ciências
humanas fizeram sobre vários assuntos,
freqüentemente foram apresentadas
como sendo do “humano”, quando na rea-
lidade elas se referem sobretudo à expe-
riência masculina, aliás muitas vezes limi-
tada ao mundo ocidental. A teoria univer-
sal é uma teoria masculina e centralizada
nos lugares de poder dominante e nas re-
lações sociais ligadas a poderes.27
A dinâmica objetividade-subjetividade rei-
tera a compreensão metodológica de que quem
produz o saber imprime aí seus condicionamen-
tos pessoais e compromissos diante da realidade;
por conseguinte, a escolha do objeto, do método
e das categorias trazem essa marca. Todavia, é
preciso considerar que admitir a subjetividade
não significa assumir uma relativização total de
métodos e resultados. Não se trata, tampouco, de
cada um dizer o que pensa a respeito, nem de le-
gitimar qualquer tipo de interpretação. A subje-
tividade é compreendida como integrante do mé-
todo e integrada ao arcabouço científico que pos-
sibilita a análise e a produção de saber.
A mediação de gênero, nesse sentido, pre-
tende contribuir para problematizar posturas
hermenêuticas que anunciam como verdades aca-
badas aquilo que é transitório. Esse procedimen-
to obscurece a memória da provisoriedade, da
fragilidade e da pluralidade, comuns às experiên-
cias humanas em suas relações e produções de sa-
ber. O instigante texto de Ilya Prigogine, desde o
seu título, explicita esse fato. O fim das certezas –
tempo, caos e as leis da natureza é, em si, um con-
vite interpelativo às ciências para rever sua pro-
clamação de verdades universais irreversíveis.
Nas palavras de seu autor, “assistimos ao surgi-
mento de uma ciência que não mais se limita a si-
tuações simplificadas, idealizadas, mas nos põe
diante da complexidade do mundo real, uma
ciência que permite que se viva a criatividade hu-
mana como a expressão singular de um traço fun-
damental comum a todos os níveis da nature-
za”.28 Interrogando os conceitos fundamentais
da física, Prigogine afirma contundentemente as
noções de instabilidade e caos e propõe uma nova
formulação das leis da natureza “que não mais se
assenta em certezas, como as leis deterministas,
mas avança sobre possibilidades”.29 Avançar sobre
possibilidades constitui um horizonte teórico que
perpassa essa reflexão e seus processos analíticos.
Tempo de possibilidades é o tempo anun-
ciado também à teologia, para que revisite seus
dogmas. Os saberes humanos, construídos em
códigos de linguagem disponíveis, comuns a vá-
rias ciências, também estão sob suspeita; não há
como afirmar senão provisórias e incertas certe-
zas a despeito de toda a objetividade metodoló-
gica. Nesse sentido, busca-se o acercamento às
produções do saber, procurando não apenas as
palavras no discurso, mas os movimentos dos
corpos que se vêem, se tocam, se ouvem e se per-
cebem como construtores de mundos e saberes.
Procura-se ler tais produções, indagando sobre as
linguagens implícitas e os silêncios contidos na
articulação das palavras. Quem sabe intuir e des-
tacar os gingados dos corpos em relações.
GÊNERO E COMPLEXIDADE: DIMENSÕES A SEREM ARTICULADAS
O diálogo de saberes que desafiam proces-
sos de desinstalação provocou uma curiosa pos-
sibilidade de articulação entre a dimensão de gê-
nero e a de complexidade. Isso porque ambas
anunciam possibilidades de inaugurar novas per-
cepções do mundo, das relações e da diversidade
27 GEBARA, 2000, p. 115.
28 PRIGOGINE, 1996, p. 14.29 Ibid., p. 31.
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de manifestações da vida. Trata-se da abertura
para uma percepção de interdependência e cone-
xidade das expressões plurais de vida do ecossis-
tema, nas quais se localiza a expressão de vida dos
seres humanos como uma parte, um fio, dessa
grande teia da vida. Não necessariamente o ser
mais importante, nem mesmo o centro da vida,
mas como outro distinto e fundamental. E entre
esses mesmos seres humanos, a universalidade é
um mito. As distinções de gênero/classe/etnia
têm sido historicamente transformadas em pro-
cessos de inferiorização e relações de poder de
subordinação, refletindo-se de modo semelhante
na análise da relação dos seres humanos, em es-
pecial no Ocidente, com o ecossistema.
Nas palavras do Chefe Seattle, líder indíge-
na norte-americano citado na obra de Campbell,
aproximadamente no ano 1852, encontramos um
desafio à ressignificação das relações dos seres
humanos com a natureza: “a terra não pertence
ao homem, o homem pertence à terra. Isto sabe-
mos: todas as coisas estão ligadas como o sangue
que une uma família. Há uma ligação em tudo. O
que acontecer à terra recairá sobre os filhos da
terra. O homem não tramou o tecido da vida; ele
é simplesmente um de seus fios. Tudo o que fizer
ao tecido, fará a si mesmo.”30 Destaque deve ser
dado a essas cosmovisões que aproximam hori-
zontes há tempos vivenciados por nações indíge-
nas e anunciadas atualmente no desafio dos físi-
cos como possibilidade de alcançar uma nova
percepção do mundo e de suas complexas redes
de sentido. Na expressão de Albert Einstein,
os seres humanos são uma parte do todo
que nós chamamos de Universo, uma pe-
quena região no tempo e no espaço. Eles
consideram a si mesmos, suas idéias e
seus sentimentos como separados e à par-
te de todo o resto. É como uma ilusão de
ótica em suas consciências. Essa ilusão é
uma espécie de prisão. Ela nos restringe às
nossas aspirações pessoais e limita nossa
vida afetiva a umas poucas pessoas muito
próximas de nós. Nossa tarefa seria livrar-
nos dessa prisão, tornando acessível nos-
so círculo de compaixão de forma a abra-
çar todas as criaturas vivas e toda a natu-
reza em sua beleza.31
A explicitação das contribuições advindas
das teorias da complexidade e de gênero é funda-
mental entre os caminhos epistêmicos de supera-
ção dos impasses. A primeira pensa o ecossistema
em sua dimensão interdependente e complexa,
no qual o ser humano inclui-se não como supe-
rior, mas como distinto, inaugurando uma nova
percepção que propõe relações de conexidade en-
tre seres vivos diferentes na perspectiva de redes.
A segunda enfatiza as relações sociais assimé-
tricas entre homens e mulheres e a demarcação
da não homogeneidade desses grupos sociais,
agregando-se a ela a constatação das assimetrias
étnicas e de classes sociais.32 Ambas as teorias
têm impulsionado revisões conceituais de muitas
ordens, superando a fragmentaridade de nossas
abordagens epistêmicas.
A teoria de gênero, partindo do questiona-
mento das desigualdades sociais baseadas nas di-
ferenças de ordem biológica, chegou a interrogar
milenares afirmações de inferioridade das mulhe-
res em relação aos homens, de negros em relação
a brancos, do ecossistema em relação a seres hu-
manos, pois tais concepções sustentavam-se na
visão de que, por natureza, inscritas no corpo de
cada um desses seres estava a sua condição de in-
ferioridade. Em decorrência dessa mudança, ins-
talou-se a urgência de uma revisão antropológica
que contemplasse as construções históricas e so-
ciais naturalizadas durante séculos, obscurecendo
os jogos de poder embutidos nessas descrições de
papéis e relações. Soma-se a esse avanço a de-
sinstalação do eixo econômico como exclusivo
para pensar as relações e o poder. Desse modo, as
pessoas puderam perceber-se como seres consti-
tuídos não apenas de necessidades, mas também
de desejos e paixões, com todas as implicações
para as relações humanas, sociais e ecossistêmicas
que isso possa significar.
30 CAMPBELL, 1990, p. 33-36.
31 Albert Einstein apud RUSSEL, 1991.32 SCOTT, 1991; COSTA, 1992; SAMPAIO, 1999.
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O corpo assumido como lugar ímpar da ex-
periência de estar vivo, do sentir-pensar como lu-
gar das relações, das circulações de poder que po-
dem oprimir ou libertar – pensado como um fio
da grande teia da vida – foi decisivo nessa novi-
dade epistêmica. Por conseguinte, tornou-se um
dado relevante para o resgate do trato humano
com o ecossistema. Cabe ressaltar que, em várias
discussões dos saberes, alguns avanços antropo-
lógicos foram alcançados, a exemplo da supera-
ção de concepções de mundo e relações de cará-
ter androcêntrico para afirmar uma perspectiva
antropocêntrica. No entanto, é preciso constatar
que, se tal mudança resolve a descentralização da
matriz cultural masculina como parâmetro para
apontar o humano, ela não altera a percepção de
centralidade do humano no entendimento do
ecossistema em suas relações.
A crise de percepção, que apresenta a inter-
dependência de tudo o que forma o ecossistema
e produz vida, restabelece a necessidade de pensar
os seres humanos como parte dessa grande teia
da vida. Nesse caso, há que se construir media-
ções hermenêuticas que, certamente, terão de ab-
dicar da concepção de centralidade. Seja ela divi-
na, humana, seja cósmica. Nem mais teocêntrica,
nem mais androcêntrica/antropocêntrica, nem
qualquercoisacêntrica!
No marco da provisoriedade, estamos pro-
pondo uma concepção que explode o centro para
dar lugar a uma noção de relações de mútuas in-
terdependências, sem desqualificar o ser humano,
mas ressignificando-o no perceber-se como parte
necessária e com necessidades de toda a comple-
xa e múltipla diversidade do que existe no ecos-
sistema. Historicamente, em nossa relação com a
natureza, estabelecemos processos de destruição
da terra, das águas e dos demais seres vivos. Po-
rém, a observação da dinâmica criativa da própria
natureza, de sua forma autocriativa, poderia con-
tribuir como alternativa ao jeito de elaborar a re-
flexão acadêmica que tem nos guiado. Refiro-me
ao jeito de ler teologicamente, por exemplo, o re-
lato da criação,33 que reforça uma visão mecani-
cista e instrumental do ecossistema para usufruto
dos seres humanos (de alguns seres humanos),
em detrimento da integridade dele. Infere-se,
nessa etapa da reflexão, a necessidade de sentir-
pensar o ecossistema em sua dimensão interde-
pendente e complexa, superando a fragmentari-
dade de nossas abordagens epistêmicas.
Em contraposição a essa hermenêutica da
narrativa bíblica sobre a criação, mencionada ante-
riormente, pode ser interessante a perspectiva de
Capra de que, do ponto de vista sistêmico, as úni-
cas soluções viáveis são as sustentáveis, equivalente
a dizer que é preciso buscar soluções que “satisfa-
çam as necessidades sem destruir as perspectivas
de vida das gerações futuras”.34 Se isso vale não só
para as ações que afetam o cotidiano em suas mi-
crorrelações, vale também para as formulações de
saber que estruturam pensamentos e valores. O
debate epistemológico, desse modo, está instado a
ser identificando em seus pressupostos fundantes.
Portanto, a elucidação de que o conhecimento es-
trutura-se numa determinada percepção do mun-
do, assim como a reflexão epistemológica tem a
função de ajudar a compreender a estrutura do co-
nhecimento, é deveras importante.
Ao falar em epistemologia, não se está tra-
tando de coisas teóricas demais ou abstratas e dis-
tantes dos problemas cotidianos. Isso porque
pensar sobre alegrias e tristezas da vida faz parte
do conhecimento humano e reporta-se a uma
percepção da realidade e de suas múltiplas rela-
ções. Tomando por base a experiência cotidiana é
que conhecemos as coisas e a nós mesmos. Co-
nhecer o próprio conhecimento permite influir
nos processos de construção e transmissão do
conhecimento, podendo alterar a estrutura hie-
rárquica de poder, como a exemplo da subordina-
ção vivida pelas mulheres e pela natureza para in-
troduzir novas formas de sentir-pensar.
GÊNERO E COMPLEXIDADE ARTICULADOS EM BREVE EXERCÍCIO TEOLÓGICO
Os impasses com a sustentabilidade da vida
são muito mais amplos e implicam uma rede in-
33 Gênesis 1.27-31. 34 CAPRA, 1996, p. 25.
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Impulso, Piracicaba, 14(34): 107-127, 2003 117
trincada de conexões que precisam ser observa-
das. Nesse sentido, o debate epistemológico rea-
lizado até aqui visa à articulação de paradigmas
que, ao interpelar as diversas áreas de saber, o fa-
zem também com a teologia. Sobretudo a iden-
tificação de alguns aspectos relativos à preocupa-
ção com a vida, em suas múltiplas manifestações
no ecossistema, torna-se o foco irradiador do di-
álogo. Os desdobramentos para as áreas de saber
preocupadas com a dignidade de vida das pessoas,
dos demais seres vivos e do ecossistema reforçam
a perspectiva de que, nessa complexa organiza-
ção, a fragmentaridade dos saberes precisa ser
pensada como elemento de aprofundamento do
estudo, e não como encastelamento das ciências.
O debate acerca dos referenciais teóricos e
das possíveis inspirações para construir uma per-
cepção da vida na qual a interdependência dos se-
res coopere no redimensionamento de cada um
nessa grande teia busca assumir a pergunta sobre
as relações de poder assimétricas, de várias or-
dens, para reinventá-las. Por esse motivo, a força
e a beleza do texto de Cântico dos Cânticos ou
Cantares35 pode abrir-se como mediação teológi-
ca tanto para revisitar a própria teologia e os seus
aprisionamentos desse texto quanto para o diálo-
go entre saberes distintos.
O texto de Cantares não será alvo de uma
reflexão exegético-hermenêutica, mas experi-
mentar-se-á um caminho de leitura da narrativa
bíblica em confronto com uma tradição teológica
predominante. O movimento presente na poesia
dos amantes expressa uma dinâmica de dizer o
Bem sobre a vida e se materializa na concretude
dos corpos. A mulher que lidera a maior parte do
discurso faz uma poesia assinalando a beleza de
seu próprio corpo e, depois, começa a desenhar
as belezas do corpo de seu amado com todas as
imagens e linguagens disponíveis na natureza.
[Eu estou morena, porém formosa] Sou
negra e formosa (...)
como as tendas de Quedar, como as cor-
tinas de Salomão.
Não olheis para o eu estar [morena] ne-
gra, [porque] o sol me queimou.
Os filhos de minha mãe se indignaram
contra mim me puseram por guarda de vi-
nhas; a vinha, porém, que me pertence
não a guardei.
Dize-me, ó amado de minha alma: onde
apascentas o teu rebanho,
onde o fazes repousar pelo meio-dia para
que não ande eu vagando junto ao reba-
nho de teus companheiros?36
Cantares, em sua abertura, por meio da
auto-apresentação positiva da mulher, a que nos
convida? Entre outras coisas, a nos olhar no es-
pelho! A dizer o Bem e o belo de nós mesmos.
Nos faz um convite estético! Com qual beleza
nos apresentamos para as relações? Quais as mar-
cas que estão à flor da pele em nosso corpo?
Quais cuidados de si têm sido postergados, tendo
em vista as obrigações impostas pelo trabalho
que beneficia os outros? A despeito das lidas, do
trabalho cotidiano, da relação com seus irmãos,
com os guardas da cidade, que estética de passa-
gem/êxodo/saída/alternativa soa da boca da mu-
lher – a amante e amada de Cantares? Lamentos
e desolações? Ou uma mirada no espelho para di-
zer o Bem, para bem-dizer seu corpo, sua vida, e
abrir-se, então, para dizer o Bem do outro?
O meu amado é para mim um saquitel de
mirra, posto entre os meus seios. Como um
racimo de flores de hena nas vinhas de En-
Gedi é para mim o meu amado.
Como és formoso, amado meu, como és
amável (...).
Qual a macieira entre as árvores do bosque,
tal é meu amado entre os jovens; desejo
muito a sua sombra e debaixo dela me as-
sento; e o seu fruto é doce ao meu paladar.
35 A narrativa bíblica brevemente analisada neste exercício teológico éintitulada Cantares de Salomão, nas traduções adotadas pelas tradiçõesprotestantes, e Cântico dos Cânticos, nas traduções adotadas pelas tra-dições católica romana e ortodoxa. Optamos pela primeira nomencla-tura e os textos citados tomam por base, particularmente, a traduçãorevista e atualizada de João Ferreira de Almeida.
36 Cantares 1.5-7. Os textos entre colchetes correspondem à traduçãoreferida anteriormente como a adotada nesta análise. Contudo, o des-taque à expressão negra e a supressão do adversativo porém correspon-dem a opções possíveis, e, em nosso ponto de vista, necessárias, queencontram respaldo nos aparatos críticos da versão da Bíblia Hebraica(1967, p. 1.336).
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O meu amado é semelhante ao gamo, ou ao
filho da gazela.37
A gratuidade e a fragilidade do cotidiano de
corpos que se amam sobressaem nesse poema de
encontros e desencontros. Há outras sabedorias
a aprender. Trata-se da dimensão de gratuidade
vivida nas relações amorosas como contraponto
ao tempo em que as liberdades para o corpo es-
tavam cerceadas. Cantares é um conjunto de po-
emas significativos, com uma força de vida que
não pode seguir como segredo, muito menos re-
duzir-se a alegorizações, como se fez ao longo da
história da interpretação. Quebrar o silêncio do
texto, diante das amarras teológicas, talvez cons-
titua movimento aprendente – do dizer o Bem so-
bre a vida por intermédio de uma postura inte-
gradora do ecossistema. Um convite eco-ético
parece depreender-se das palavras e imagens teci-
das nesse texto.
O corpo, a terra, a vida estão sob controle.
Códigos de pureza e impureza38 decretam
aproximações ou distanciamentos de Deus. Di-
zem do poder e do não poder dos corpos na re-
lação de uns com os outros e com tudo o que os
cerca. Nesse jogo de poder, o texto diz o Bem so-
bre a vida, suspendendo tais concepções norma-
tivas e aprisionadoras dos corpos. A poesia/pala-
vra apresenta-se como mediadora do encontro da
amada e do amado. Com imagens de seu cotidi-
ano de trabalho, de descanso e de conflitos, a vida
é descrita com simplicidade.
O discurso em Cantares é sexuado. A afir-
mação do corpo da mulher e do homem é uma
constante. Os corpos posicionam-se. Não por-
que querem ser provocativos, mas porque, nessa
época, o controle sobre a vida passava pelo corpo.
Esse é o lugar do poder. Em Cantares também
está explicito um outro olhar e sentir diante da
natureza. Descrevendo o saltitar das gazelas,
pode-se falar do amor e dizer as belezas do corpo.
Há proximidades de nossas questões sobre
a interdependência entre seres humanos e ecos-
sistema e o jeito harmonioso com que a poesia de
Cantares comunica a plena integração de plantas,
árvores, relva, animais, estações, frutos... e o cor-
po dos que amam. As imagens, as sensações, os
perfumes e outras formas comunicativas desse li-
vro podem dizer da vida muito mais do que al-
guns discursos são capazes de fazer.
O Contexto HistóricoEntre orações e profecias, o pequeno livro
está abrigado na Bíblia. A força revolucionária do
corpo, que sente/crê/faz acontecer o amor, tem
contornos novos de enfrentamento de conflitos.
Cantares é um texto, sem dúvida, subversivo!
Erótico! Está no meio do período de domínio
dos sacerdotes como senhores das leis, da religião
e da política. Sua redação final perpassa os proje-
tos de reconstrução nacional do pós-exílio, em
paralelo à dominação de grandes impérios (persa,
grego). Um tempo de controle sobre o corpo.
Suores, odores, aromas, líquidos, vontades... es-
tão sob controle dos rígidos códigos de pureza.
Não foram poucas as tentativas de explicar
a pertença de Cantares ao canon bíblico. Muitas
possibilidades e contendas envolveram tais expli-
cações. As variações cobriram uma gama enorme
de interpretações espiritualizantes, outras alegó-
ricas e místicas e muito pouco houve de interpre-
tações históricas.39 Silêncio, alegorizações e res-
trições litúrgicas fizeram com que um conjunto
significativo de elementos que proclamam o Bem
sobre a vida, e sua interdependência e mutualida-
de, ficassem qual segredo aos nossos olhos e ou-
vidos. A cumplicidade de amantes em suas lidas
cotidianas marcadas por intervalos de amor foi
obscurecida em sua centralidade.
Cantares é um texto que, em sua poesia,
toma as melhores imagens, sons, aromas, sabores
37 Cantares 1.13, 14, 16; 2.3, 9.38 Os códigos de pureza são encontrados em Levítico 11-15 e os códigosde santidade, em Levítico 17-26. Esses textos, em sua redação final, sãocontemporâneos a Cantares. Outros, como Esdras e Neemias, sãotambém importantes para compreender a força crítica de Cantares.Eles registram as formas reguladoras da vida e do cotidiano rumo àestruturação da nação no período pós-exílico, isto é, século IV a.C.,aproximadamente. Mais adiante, tais aspectos serão retomados e expli-citados.
39 Entre judeus do primeiro século, por exemplo, ele foi consideradotexto sagrado e usado liturgicamente na ocasião da Páscoa. Entrecristãos, foi reconhecido em seu alcance metafórico-religioso. Cf.MESTERS, 1993; SIQUEIRA, 1993; ANDIÑACH, 1998.
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Impulso, Piracicaba, 14(34): 107-127, 2003 119
e saberes para afirmar a dignidade do corpo (o
próprio e o do outro). Um contraponto muito
forte num período em que o corpo da mulher era
mal-dito pela impureza, mal-dito pela procedên-
cia étnica, mal-dito pelo Estado que o instrumen-
talizava na prostituição, mal-dito pelo empobre-
cimento – corpos de homens e mulheres malditos
pelo que entrava ou saía deles.
Esse corpo, em Cantares, aparece em sua
beleza auto-revelada – “sou negra e formosa” – e
na beleza pronunciada pelo amado que busca, na
natureza e no corpo da amada, maneiras de ex-
pressar uma relação nova e muito distinta entre
homens e mulheres.
(...) ó mais formosa entre as mulheres, sai
pelas pisadas dos rebanhos e apascenta os
teus cabritos junto às tendas dos pastores.
Formosas são as tuas faces entre os teus
enfeites, o teu pescoço com os colares.
Eis que és formosa, ó querida minha, eis
que és formosa: os teus olhos são como
os das pombas.
Qual o lírio entre os espinhos, tal é minha
querida entre as donzelas.40
Cantares anuncia, na poesia cotidiana do
encontro e do desencontro dos corpos da amada
e do amado, o jeito distinto de enfrentar confli-
tos. Nesse texto não há muitas orações de pedi-
do, nem discursos de denúncia; a dinâmica é ou-
tra. São discursos fortes de denúncias e anúncios,
aparentemente segredados pela linguagem poéti-
ca. O conflito do momento é pano de fundo que
dá maior contundência às palavras. Em Cantares,
o corpo proclama sua beleza, liberdade e pureza
contra todo um sistema dominado pelos sacerdo-
tes, que estão exigindo ofertas e sacrifícios para
devolver-lhe a condição de pureza e proximidade
de Deus.
Não se pode ler Cantares sem considerar
seus paralelos históricos, a exemplo dos códigos
de santidade de Levítico.
Qualquer homem que tiver fluxo seminal
do seu corpo será imundo por causa do
fluxo (...) toda a cama, em que se deitar o
que tiver fluxo (...) e tudo sobre que se as-
sentar será imundo (...) qualquer que lhe
tocar banhar-se-á em água e será impuro
até a tarde (...). Quando pois, o que tem
fluxo estiver limpo, contar-se-á sete dias
para sua purificação; lavará as suas vestes,
banhará o corpo em águas correntes e
será limpo. Ao oitavo dia tomará duas ro-
las ou dois pombinhos, e virá perante o
Senhor, à porta da tenda da congregação e
os dará ao sacerdote: este oferecerá um
pela expiação do pecado e outro para ho-
locausto: e assim o sacerdote fará por ele
expiação do seu fluxo perante o Senhor.41
Esse é um pequeno exemplo, pois Levítico
continua dizendo o mesmo ou carregando mais as
tintas, ao falar da emissão de sêmen pelo homem,
da relação sexual entre homem e mulher, da mu-
lher em seu fluxo de sangue, da mulher após o
parto (no qual é impura ainda por mais tempo se
tiver dado à luz meninas), do corpo doente, do
corpo que toca e ingere animais considerados im-
puros, do corpo marcado por necessidades espe-
ciais. Enfim, o controle sobre os corpos é feito
pela teologia, que vai crescendo e consolidando-
se em um eixo sacerdotal e sacrificial transcen-
dente ao espaço do religioso. Isso porque, ade-
mais de controlar o sagrado, controla a econo-
mia, a política e as relações sociais, criando uma
estreita dependência da benção de Deus às con-
dições de pureza ou de impureza que passam pelo
corpo.
Naquele tempo em que se legislava sobre o
corpo, buscando controlá-lo, a mulher, ao pro-
nunciar palavras cheias de cotidiano, parece fazer
vista grossa às regras de seu tempo. Faz que não
vê. Diz e sai em busca do que pronuncia. Cons-
trói as pontes entre as palavras e os corpos, pre-
para o leito do encontro. Diante da ousadia desses
poemas, que exaltam a beleza dos muitos corpos
humanos e do ecossistema, não é de surpreender
que Cantares estivesse vestido de interpretações
poderosas para domar o amor e direcioná-lo ao
40 Cantares, 1.8, 10, 15; 2.2. 41 Levítico 15.2-15.
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matrimônio e, na seqüência, às analogias religio-
sas.
Como és formoso, amado meu, como és
amável. O nosso leito é de viçosas folhas,
as traves da nossa casa são de cedro, e os
seus caibros de cipreste.
(...) Qual macieira entre as árvores do
bosque, tal é meu amado entre os jovens;
desejo muito a sua sombra, e debaixo dela
me assento: e o seu fruto é doce ao meu
paladar.
Leva-me à sala do banquete, e o seu es-
tandarte sobre mim é o amor.
Sustentai-me com passas, confortai-me
com maçãs, pois desfaleço de amor.
A sua mão esquerda esteja debaixo de mi-
nha cabeça, e a direita me abrace.
Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, pelas
gazelas e cervas do campo, que não acor-
deis, nem desperteis o amor, até que este
o queira.42
A organização do conjunto de poemas de
Cantares, muitos deles bem antigos, acontece
possivelmente no período pós-exílico, em torno
do IV século a.C. A conjuntura marcada pela pre-
sença da dominação imperial (dos persas e, de-
pois, dos gregos) está arquitetada em um projeto
de reconstrução nacional, articula-se pela elite
que vem do exílio43 e tem no grupo sacerdotal
sua força de expressão maior. Senhores do tem-
plo, da lei e da pureza ritual desencadeiam uma
profunda segregação dos estrangeiros, das mu-
lheres e dos empobrecidos.44
Os sacerdotes do segundo templo45 serão
responsáveis por desencadear um sistema políti-
co e econômico em consonância com os interes-
ses de uma elite nacional e dos impérios em exer-
cício, por meio de mecanismos religiosos legiti-
madores de suas ações. Sob uma teologia marca-
da pelos códigos de pureza e impureza ritual, que
controlavam o corpo em sua sexualidade, em sua
classe social, em sua etnia, em seu gênero ou em
suas doenças, fica evidente, num período que
ruma para uma organização escravista do traba-
lho, que o corpo é o lugar do poder (e conhece-
mos algo semelhante em nossas histórias de vida
e de continente). Por isso, a lógica sacrificial deve
contê-lo, culpabilizando-o, o que em muito se
aproxima do rito sacrificial propagado como ne-
cessário nas políticas econômicas de mercado,
que devoram cotidianamente muitos corpos em
seu altar.46 Suores, odores, aromas, líquidos, von-
tades... estão sob o controle dos rígidos códigos
de pureza. Sobre eles, todo o controle e a mal-
dição.
Uma teologia que dissesse o Bem-sobre-a-
vida ficava na dependência dos ritos de passagem
da impureza para a pureza. Um deslocamento
não possível a qualquer corpo: os sacerdotes es-
tavam nesse caminho. O sistema não era mera-
mente religioso, mas econômico. Ofertas e sacri-
fícios precisavam ser pagos para devolver ao cor-
po a sua condição de pureza e proximidade de
Deus (talvez, por isso, os poemas de Cantares se-
jam tão econômicos em sua menção a Deus).
É, portanto, contra esse controle do sagra-
do47 que a força gratuita do amor da amada e do
amado insurge-se, dizendo da beleza dos corpos
um do outro e de todos os líquidos que saem e
entram deles. Em Cantares, há curiosamente
muito pouca água, em contraposição às muitas
águas de Levítico. Extremamente positivas são as
falas sobre o corpo, poesia tecida das belezas mais
singelas e dinâmicas, que a natureza podia ofere-
cer aos lábios da amada e do amado para dizer um
do outro, um para o outro das curvas e contornos
do corpo que ardia de amor.
42 Cantares 1.16, 17; 2.3-7.43 Essa realidade está expressa nos textos bíblicos de Esdras e Nee-mias.44 Cf. Esdras, capítulos 7-10; Neemias, capítulos 5-13.45 Trata-se do Templo de Jerusalém, reconstruído nesse período doretorno do exílio, conforme narrativas nos textos de Esdras, capítulos3-6.
46 O sacrifício necessário, exigido pela atual economia de mercado,apresenta-se como oferenda a um sagrado antropofágico, que se ali-menta da morte e dos decretos de morte às vítimas, por esse mesmosistema culpabilizadas (tendo o fracasso como responsabilidade pes-soal, e não sistêmica) ou tornadas boi de piranha ou bodes expiatórios.Nesse rito de morte, vão para o altar do sacrifício as pessoas mais enfra-quecidas por esse discurso normativo sobre os corpos: a exemplo dosempobrecidos, dos negros, dos indígenas, das mulheres, das crianças,dos velhos, dos doentes de aids, dos soropositivos, das pessoas porta-doras de necessidades especiais, enfim, dos integrantes dos grupossociais na rota da descartabilidade e da exclusão social.47 Controle combatido por Jesus e que o levou à morte.
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Ritos sacrificiais, na lógica purificadora de
Levítico, implicam prisões aos corpos, anunciam
dívidas ao cotidiano do trabalho, retiram das mu-
lheres a maior parte dos dias de sua vida como
tempos e espaços de beleza.48 Tudo, ou quase tu-
do, na vida é impureza. É dívida. É escravidão. É
religião e economia e política. A despeito desse
jogo de poder, o texto de Cantares diz o Bem so-
bre a vida, suspendendo concepções normativas e
aprisionadoras dos corpos.
O meu amado fala e me diz: levanta-te,
querida minha, formosa minha, e vem.
Porque eis que passou o inverno, cessou a
chuva e se foi; aparecem as flores na terra,
chegou o tempo de cantarem as aves, e a
voz da rola ouve-se em nossa terra.
A figueira começou a dar seus figos, e as
vides em flor exalam o seu aroma; levan-
ta-te, querida minha, formosa minha e
vem.
Pomba minha, que andas pelas fendas dos
penhascos, no esconderijo das rochas es-
carpadas, mostra-me o teu rosto, faze-me
ouvir a tua voz, porque a tua voz é doce,
e o teu rosto amável.49
Nesse texto, os corpos de mulheres e ho-
mens estão, todo o tempo, descobrindo as bre-
chas do controle para viver e dizer o Bem e o
Amor sobre o próprio corpo e o do outro. E fa-
zem poesia em profunda sintonia com a natureza
e seu movimento; por meio da interdependência
com o ecossistema, os corpos da amada e do
amado se fortalecem para anunciar sua resistên-
cia.
A Poesia de Cantares e suas Luzes para Pensar Paradigmas Novos
Poesia de amor não é apenas para quando
não temos mais nada a fazer, nem mesmo quando
todas as lutas já estão resolvidas, nem quando as
articulações políticas já ocorreram. Não! Gratui-
dade e amorosidade nas relações cotidianas impli-
ca rever as assimetrias de poder estabelecidas nos
espaços públicos e privados da vida, nos lugares
de trabalho e nos de descanso, nas ações políticas
de pequenos e grandes impactos, enfim, na revi-
são das desigualdades das micro e das macrorre-
lações experenciadas no cotidiano.
Assumir o corpo como referencial não ape-
nas metodológico, mas também epistemológico
resulta, na leitura de Cantares, na instauração de
questionamentos sobre as leituras que escondem
o texto. Por outro lado, anuncia que o jeito de
criar versos para dizer o corpo de amantes em
plena sintonia com a natureza pode nos ajudar a
perceber uma proximidade da agressão (científi-
ca/política/econômica/religiosa) praticada contra
o ecossistema, em analogia àquela imposta ao
corpo empobrecido, particularmente o feminino.
A fala amorosa é aproximativa. É exercício
de muitos dizeres, compõe-se de palavras inexa-
tas, imprecisas. A fala amorosa faz uso de media-
ções, transfigurando tudo o que está à sua volta.
Sons, cheiros, sabores, texturas, cores tornam-se
mediações para falar do corpo do amado e da
amada, para anunciar a conexidade intrínseca en-
tre seres humanos e ecossistema, para se interpe-
netrarem, se dizerem com beleza e poesia o que
as palavras não conseguem captar dos sentidos.
“O discurso amoroso é produção de conheci-
mento a partir dos sentidos do corpo.”50 Olho
não tem garras, um umbigo não pode ser taça, lá-
bios não têm gosto de mel... No entanto, criam
imagens da relação, transcendendo as palavras,
transgredindo as regras.
Arrebatas-te o coração, com um só de
teus olhares (...).
Desvia de mim os teus olhos porque eles
me perturbam (...).
O teu umbigo é taça redonda, a que não
falta bebida; o teu ventre é monte de tri-
go, cercado de lírios.
Que belo é o teu amor (...) quanto me-
lhor é teu o amor do que o vinho (...) os
teus lábios destilam mel! Mel e leite se
acham debaixo da tua língua.51
48 Cf. Levítico, capítulos 11-15 e 17-26.49 Cantares 2.10-14.
50 PEREIRA, 1993, p. 55.51 Cantares 4.9; 6.5; 7.2; 4.10, 11.
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Essa descrição do corpo amante e amado
revela profunda harmonia/sintonia com o ritmo
e com os demais corpos existentes no cosmo. O
movimento da vida, das pessoas, dos animais e
das plantas conjugados pela dinâmica do ar, da
água, da terra e do fogo alternava dias e noites,
marcando a cadência do trabalho, do descanso,
do prazer, do dizer, do sentir, do fruir, do sofrer,
do dançar... Enfim, um movimento novo convi-
dativo para revisões das racionalidades estrutura-
doras dos saberes, entre os quais, o teológico.
A cadência própria do discurso, em Canta-
res, provoca perguntas exigentes para a identifica-
ção do método de entrada no texto, de tal manei-
ra que suas belezas se abram a quem lê. Entre elas
estão as seguintes interpelações: dá para não ins-
trumentalizar a leitura do texto bíblico, mas dei-
xá-lo acontecer como simples fruição?; dá para
imaginar a leitura do texto bíblico tal qual a poe-
sia – pura gratuidade que inunda a vida e descor-
tina horizontes, reacende esperanças, inaugura
energias e instaura redes de dignidade que tecem
cotidianos mais amplos, os quais a racionalidade
humana é incapaz de tocar plenamente?; dá para
ensaiar indagações pequenas, provisórias respos-
tas e uma grande dose de desejo de fazer aconte-
cer uma leitura nova, que nos surpreenda a todos
e a todas, com sua espiritualidade de vida?
Nesse sentido, motivado pelo próprio jeito
de Cantares, cabe observar a necessidade de ques-
tionar o método racional, sociológico, de con-
fronto permanente com as estruturas, como eixo
único de leitura bíblica. Muito embora se possa
reconhecer a sua expressiva contribuição para
uma leitura histórica e contextual, tal método foi
gradativamente mostrando os seus limites. Ou-
tras categorias de análise têm cooperado com a
ruptura da exclusividade da racionalidade econô-
mico-social. Entre os caminhos epistêmicos de
superação dos impasses, foi fundamental agregar,
como perguntas metodológicas e horizontes
epistêmicos, as contribuições das teorias de gêne-
ro e da complexidade, conforme explanadas em
item anterior neste ensaio.
O movimento do corpo em silêncio, sem
pressa em dar respostas, sem aflição por não sa-
ber a verdade, sem uma infinidade de certezas
está em melhor sintonia com a poesia de Canta-
res. Por isso, ao invés de palavras-respostas a pri-
ori sobre o texto bíblico, sugere-se como cami-
nho metodológico perguntas-escuta-contempla-
ção das imagens do texto de Cantares. Uma di-
nâmica desprovida das respostas e aberta aos
movimentos complexos, que marcam a existência
cotidiana das pessoas e da pluralidade de vidas do
ecossistema, é caminho transgressor necessário
para fruir a beleza desse texto.
O movimento das palavras e imagens, ora
simbólicas ora reais, indica uma dinâmica que
tece para frente e para trás, no texto de Cantares,
um emaranhado de poemas parecidos com o
amor: lugar de encontros e desencontros. Dos ei-
xos perceptíveis nessa teia da vida, desejo subli-
nhar o de viver a gratuidade de relações como si-
nal de reconstrução de nossa percepção do ecos-
sistema, e não como proposta de abandonar es-
peranças e lutas. Dessa forma, pode-se inaugurar,
na leitura bíblica, uma revisão das posturas que a
reduzem a um manual e a um conjunto de dog-
mas atemporais e universais ou, ainda, das que
reforçam leituras que não permitem à vida e ao
seu ritmo cotidiano ser vividos na gratuidade e
fragilidade que lhes são peculiares. Essa postura
interrogaria a teologia que vai se consolidando,
muitas vezes, na contramão dos clamores de vida
digna.
Uma nova percepção da terra, em conexi-
dade com seres humanos e demais seres vivos, à
semelhança das descrições dos corpos em busca
do amor, como em Cantares, pode nos devolver
o fôlego e animar nossos passos, no momento de
desafios cósmicos-globais que se nos apresentam
e exigem uma reorganização da vida e das rela-
ções todas.
Os problemas globais que atualmente afe-
tam a biosfera e a vida humana – ambos talvez ir-
reversíveis, na visão de Fritjof Capra – não po-
dem ser entendidos isoladamente. São sistêmi-
cos. Estão interligados e interdependentes. “O
momento presente com a escassez de recursos, a
degradação do meio ambiente, o colapso das co-
munidades locais e a violência étnica nos colocam
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Impulso, Piracicaba, 14(34): 107-127, 2003 123
diante de uma grande crise: uma crise de perce-
pção.”52 Essa crise precisa ser enfrentada com
base na mudança de percepção e do pensamento.
Assim, considerar a novidade da interdependên-
cia de tudo o que forma o ecossistema e produz
vida exige assumir, ainda que provisoriamente, a
perspectiva de suspender o eixo da centralidade,
seja qual ela for, como mecanismo de compreen-
são das alternativas para reconstruir as relações de
poder no cotidiano. A interdependência dos se-
res humanos e dos demais seres vivos do ecossis-
tema é perceptível no discurso amoroso da ama-
da e do amado, que, ao viver o cotidiano, inaugu-
ravam linguagens novas, movimentos de ampla
conexidade e respeito com os muitos seres vivos
e demais sinais do cosmo, em contraste com os
discursos normativos cerceadores do corpo.
Em Cantares, a fala do cotidiano invade o
sagrado, o público e o espaço dominado pelos
homens. As estruturas de poder de caráter andro-
cêntrico e hierárquico “sabem do amor e lhe de-
signam espaços permitidos, controlados de ex-
pressão (...) sabem da capacidade subversiva das
paixões que acordam os sentidos e a consciência
e, mais que tudo, inspira imagens, falas e mun-
dos”.53 Essa distinta dança dos movimentos que
se sucedem, afirmando a vida contra as formas de
morte e controle sobre o corpo, a propriedade e
o trabalho, no texto bíblico, desafia-nos a entrar
nesses poemas com novos olhares e indagações.
Cantares pode nos ajudar a aprofundar uma nova
percepção na direção da integração de seres hu-
manos e ecossistema e de seres humanos em re-
lações sociais afirmando o poder como redes de
construção da dignidade da teia da vida, como a
que se percebe na relva feita leito para o encontro
do amor.
O nosso leito é de viçosas folhas, as traves
da nossa casa são de cedro, e os seus cai-
bros de cipreste.
(...) Qual macieira entre as árvores do
bosque, tal é meu amado entre os jovens;
desejo muito a sua sombra, e debaixo dela
me assento: e o seu fruto é doce ao meu
paladar.54
Em Cantares, a mulher não é vítima, não é
tema, nem é privilégio seu o protagonismo. Con-
forme a nossa proposição, na introdução deste
ensaio, o referencial de gênero não pretende visi-
bilizar a mulher, mas as relações sociais de poder
nas quais ela está envolvida. Temos, nesse texto,
mulher e homem em diversas relações, constru-
indo caminhos alternativos, superando processos
de instrumentalização do corpo feminino. Assu-
mindo, enfim, o conhecimento do outro, por
meio da observação das belezas diferentes do
corpo de cada um. A mulher, em Cantares, tem
voz e fala. Ela escolhe imagens, palavras, cheiros
e sabores para anunciar o desejo do encontro,
para descrever o corpo masculino. E convida-o
ao encontro, vai buscá-lo entre os pastores, nas
horas do descanso do meio-dia. Também corre
riscos e o busca nas horas da noite, na cidade, e é
agredida pelos guardas. Nem todas as relações
entre homens e mulheres, em Cantares, são de
parceria. Algumas são de enfrentamento, de re-
sistência, como essa com os guardas e outras com
seus irmãos. Contudo, pode-se afirmar que gran-
de é a sua iniciativa. Ela participa plenamente do
amor, está doente de amor.
Eu dormia, mas meu coração velava; eis a
voz do meu amado, que está batendo.
Levantei-me para abrir ao meu amado (...)
mas já ele se retirara e tinha ido embora; a
minha alma se derreteu quando antes ele
me falou; busquei-o, e não o achei; cha-
mei-o, e não me respondeu.
Encontraram-me os guardas que ronda-
vam a cidade; espancaram-me, feriram-
me; tiraram-me o manto os guardas dos
muros.
Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, se en-
contrares o meu amado, que lhe direis?
Que desfaleço de amor.55
Ousadia, corpo para o amor em tempos de
corpo impuro nas relações. Contudo, reconhecer
52 CAPRA, 1996, p. 24.53 PEREIRA, 1993, p. 48.
54 Cantares 1.16, 17; 2.3.55 Cantares 5.2, 5-8.
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o protagonismo da mulher e a parceria de seu
amado não pode obscurecer a dominação-explo-
ração que sobrecarrega muito mais a vida das mu-
lheres do que a dos homens.56 A preservação do
texto de Cantares, com todas as controvérsias
por ele provocadas, é seguramente fruto de uma
memória de grupos sociais de mulheres e homens
que viveram a resistência ao poder de grupos do-
minantes que impunham outra lógica ao cotidia-
no. Os irmãos e os guardas da cidade aparecem
como sinais da presença desses grupos sociais,
que manejam o controle dos corpos. Os irmãos a
querem controlar, seja pelo trabalho que lhe im-
põem de cuidar da vinha deles, seja pelo dote que
querem definir, identificando quanto vale o seu
corpo. Já os guardas usam de violência quando ela
busca por seu amado nas horas da noite, nas cer-
canias da cidade.
Os filhos de minha mãe se indignaram
contra mim, me puseram por guarda de
vinhas; a vinha, porém, que me pertence
não a guardei.
Temos uma irmãzinha, que ainda não tem
seios; que faremos a esta nossa irmã, no
dia em que for pedida?
Se ela for um muro, edificaremos sobre
ele uma torre de prata; se for uma porta,
cercá-la-emos com tábuas de cedro.
Eu sou um muro, e os meus seios, como
as suas torres; sendo assim, fui tida por
digna da confiança do meu amado.
A vinha que me pertence está ao meu dis-
por.57
A palavra aqui pronunciada indica os jogos
de poder, evidencia o controle sobre o corpo da
mulher em vários âmbitos da sociedade. A poesia
anuncia o quão desprezível é comprar o amor,
descrever o preço do corpo da mulher por sua
força para o trabalho e sua sexualidade reprodu-
tiva. Na casa dos irmãos, o controle é manifesto.
O valor é calculado: seus seios e sua força, sua
muralha. A reação dela, que está no centro das
negociações, é encantadoramente rebelde. O que
tenho é meu, para meus amigos, para a paz. En-
costada no amado e de costas para os irmãos en-
contra-se a mulher de Cantares.
FESTA E TRANSGRESSÃO DA ORDEM COTIDIANA
Talvez seja o caso de afirmar que, diante de
tão contundentes opressões, não se pode viver de
Cantares todos os dias. Também é preciso não
confundir Cantares com sonho paradisíaco, em
que tudo dá certo. Encontros e desencontros,
possibilidades e impossibilidades, paixão e con-
trole, acolhida e violência contra o corpo são re-
alidades constantes. Simultâneas. Ao usar a ex-
pressão talvez não seja possível viver só de Canta-
res, imagino que há momentos em que a lingua-
gem comunicativa pode e tem de ser outra.
Talvez por isso mesmo o livro esteja entre profe-
cias e orações. Sabedoria! Há tempo oportuno
para todas as linguagens.
Não é preciso ler os textos bíblicos sempre
com uma finalidade antecipadamente justificada.
Uma leitura para mera fruição pode nos abrir
para belezas, como a de Cântico dos Cânticos. As-
sim, esse jeito de encontrar a vida, nas palavras
desse livro, pode nos ensinar a ler outros textos
bíblicos. Sem instrumentalizá-los para a luta ou
para qualquer outra coisa, é possível que consti-
tuam espaços de graça e tenham, por isso, graça.
Fruição. A novidade que talvez seja importante
insistir é manter sempre de Cantares o olhar para
o mundo, a percepção da realidade. Um perce-
pção desfrutada nas festas (dança da sulamita),
nas delícias do amor (a relva que acolhe o tempo
do descanso), no aconchego dos lugares que fa-
zem história popular de resistência (debaixo das
macieiras), na acolhida das casas ou dos lugares
da casa que não representam opressão (quarto da
mãe).58 A percepção que anuncia as redes de mu-
tualidade e interdependências entre os seres pro-
move a integridade da vida.
O olhar, a sensibilidade, a percepção de vi-
ver a vida sem abdicar do amor, do descanso, do56 Cf. as inúmeras situações descritas no texto de Levítico, capítulos12-15, que aprisionam muito mais dias da vida das mulheres do que dados homens.57 Cantares 8.8-10, 12. 58 Cantares 1.16, 17; 6.13-7.1; 8.5-7; 3.4, 5.
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Impulso, Piracicaba, 14(34): 107-127, 2003 125
dizer das belezas, da festa, ainda que se tenha de
resistir a diversas formas de opressão, pode ser
uma novidade que nos ajude nos dias de hoje.
Muitas lutas nos endurecem e nos fazem
perder a ternura, o brilho no olhar, não nos ale-
grar com a festa, não dedicar tempo para preparar
a boa comida para receber amigos e família, aban-
donar o cuidado de brincar com as crianças seus
jogos infantis, suas fantasias e faz-de-conta, adiar
o namoro com o marido e a mulher, esquecer de
oferecer flores, de escrever o cartão, de convidar
para o passeio, enfim, nos fazem esquecer de pre-
parar o lugar do amor... Acredito que o cotidiano
das relações de poder precisa ser regado por um
novo olhar e um novo sabor, que parecem estar
segredados nos poemas de Cantares.
Essa percepção, nada alienada, nada sub-
missa/sucumbida à ordem vigente, é, em Canta-
res, o convite mais impressionante e instigante
que consigo perceber para nos animar. Para acen-
der os olhos outra vez. Para colorir o cotidiano de
quem resiste, sem amargar com os conflitos, e
nutrir esperanças que se cultivam em porções
breves.
O livro não é de luta. Traz canto, festa, dan-
ça, sofrimento, perdas, laços de amor, tempos de
trabalho e de descanso. Lugares acolhedores dos
corpos, em contraste com as múltiplas prisões.
Não há discursos, o amor é vivido intensamente
e expresso em poemas. Não há propostas de in-
versão das posições assimétricas. Mas a vivência
do amor é, em si, um grande convite à liberdade
e à revisão das estruturas normativas que preten-
dem controlar o corpo. O tempo do amor cor-
responde ao tempo do cotidiano no qual tem tra-
balho, tem dificuldade, tem paixão, tem encon-
tros e desencontros.
A sabedoria de Cantares, sabedoria da vida
do povo. Sabedoria de minhas avós, de muitas
avós. Sabedoria que não é muita instrução, mas
muita percepção, sensibilidade e cuidado com o
corpo, o próprio e o do outro. Quero ler Canta-
res iluminada pela dança leve do corpo de mulhe-
res do povo que, em meio a tanta dureza, não dei-
xaram de amar. E amando, anunciaram o bem-be-
leza do corpo do outro e o trouxeram para perto,
para viver na contra-mão do que se esperava das
relações naquela época. No ato de trazer para
perto, o corpo alargou-se e os horizontes multi-
plicaram-se. O corpo que veio foi de volta para os
seus, para o trabalho, inundado de amor e de pos-
sibilidades, exalando a alternativa resistente con-
tra o comportamento esperado.
A gratuidade e a fragilidade do cotidiano de
corpos que se amam sobressaem nesse poema
como contraponto ao tempo em que as liberda-
des para o corpo estavam cerceadas. Essa dinâmi-
ca assemelha-se ao modo como muitas pessoas
empobrecidas lidam com o seu cotidiano em
nossa realidade. Ainda que vivam em um tempo
que proclama o Mal para as suas vidas, elas se-
guem vivendo seu desejo e sua estética de afirma-
ção da dignidade para seus corpos, fazendo seus
bailes, suas comidas, suas festas, criando traba-
lhos informais de sobrevivência – ressignificando
os discursos controladores do corpo e da vida.
Por isso, há muito para aprender da gratui-
dade das festas do povo, lugar em que a fartura
anuncia-se como o desejo futuro tornado presen-
te pela partilha e pela solidariedade, e não porque
as questões estruturais da sociedade estão já so-
lucionadas.
Tomo a festa como um ângulo possível,
entre outros. O privilégio concedido à
festa se deve ao fato de que, como forma
lúdica de sociação e como um fenômeno
gerador de imagens multiformes da vida
coletiva, portanto, como modo privilegia-
do de expressão dos sentimentos coleti-
vos, ela possibilita uma outra aproxima-
ção do ato mesmo de produção da vida,
da experiência humana em sociedade, ou
seja, do vínculo social.59
[A festa] é, no entanto, vivida, por aque-
les que dela participam, como explosão de
vida, como revigoramento e, portanto,
como uma espécie de renascimento, ple-
no de atualidade, de inovação, de ruptura.
Para quem participa dela, a festa não tem
idade, é sempre atual.60
59 PEREZ, 2002, p. 36.60 Ibid., p. 53.
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Os olhos, os ouvidos, a boca, as mãos são
locus de poesia apresentando percepções muito
profundas das opressões conjunturais refletidas
no corpo de cada pessoa. Por isso, nos desafiam
a visualizar revisões nas hermenêuticas bíblicas e
suas derivações teológicas marcadas por uma ra-
cionalidade ocidental-branca-masculina estrutu-
radora de subordinações diversas, como a da na-
tureza, das mulheres, dos negros e dos indígenas,
entre outras. Dizer o Bem sobre a vida como es-
tética de resistência ao controle da existência é o
eixo para propor esse diálogo interdisciplinar,
partindo de uma proposta de revisão teológica
circunscrita ao debate epistemológico e à aproxi-
mação do texto poético, que, historicamente, este-
ve sob controle, por sua força crítica, às teologias
aprisionadoras do corpo e da beleza cotidiana.
A novidade que talvez seja importante in-
sistir é manter sempre de Cantares o olhar para o
mundo, a percepção da realidade. Uma percepção
desfrutada nas festas, nas delícias do amor, no
aconchego dos lugares que fazem história popu-
lar de resistência. A percepção que anuncia as re-
des de mutualidade e interdependências entre os
seres para a integridade da vida. Portanto, uma
nova forma de poder: redes nas quais interdepen-
dem incontáveis fios de vida. Diante desse pano-
rama, parece essencial seguir o diálogo entre sa-
beres, acompanhados por Cantares e, por que
não, pela beleza poética de Fernando Pessoa:
De tudo, ficaram três coisas:
a certeza de que estamos sempre come-
çando...
a certeza de que é preciso continuar...
a certeza de que seremos interrompidos
antes de terminar...
Portanto devemos
fazer da interrupção um caminho novo...
da queda um passo de dança...
do medo, uma escada...
do sonho, uma ponte...
da procura... um encontro.
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Dados da autora
Doutora em ciências da religião pela UMESP.Professora no Mestrado em Educação Física,
Faculdade de Ciências da Saúde/ UNIMEP.Coordenadora regional para América Latina e
Caribe da Associação Ecumênica de Teólogos eTeólogas do Terceiro Mundo (EATWOT/ASETT).
Recebimento artigo: 1.o/abr./03
Consultoria: 16/abr./03 a 26/jun./03
Aprovado: 27/jun./03
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128 Impulso, Piracicaba, 14(34): 107-127, 2003
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