geografia cultural

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GEOGRAFIA CULTURAL – UNIDADE 1 Prof. Fábio Coltro UNIDADE I - NOVAS GEOGRAFI AS CULTURAIS Caros alunos, as ciências geográficas vêm avançando e ramificando-se em diversas formas. Nosso intuito é proporcionar-lhes uma pequena visualização das correntes contemporâneas dentro da Geografia cultural. Para tanto, se faz necessário recuperar alguns aspectos que antecedem essa contemporaneidade. Devemos retomar alguns conceitos previamente antes de partirmos para a questão da contemporaneidade na geografia cultural, tal retorno abordará os conceitos de geografia cultural e cultura, bem como a sua transformação ao longo dos anos na academia e, assim, chegando as teorias e abordagens contemporâneas. Comecemos então, com o conceito de geografia. A Geografia é uma ciência que tem, na atualidade, o espaço geográfico como um dos seus objetos principais. Podemos entender o espaço geográfico como um espaço produzido pela atividade humana, ou seja, um espaço humanizado e conhecido pela consciência humana nessa cotidianidade (GABRIEL, 2011). Desta forma, temos, além da ideia de que a geografia é a ciência das relações humanas com o meio ambiente, temos também um componente social e cultural, na construção dos significados do cotidiano, e dos significados do espaço. É nesse ponto que iremos abordar as transformações contemporâneas da geografia cultural. Como afirma Duncan et al (2014), nas últimas duas décadas a geografia cultural passou por uma significativa mudança, teórica, metodológica e epistemológica. Assim, novos aspectos foram incorporados a geografia cultural, acompanhando mudanças nas outras ciências sociais e humanas.

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Texto acadêmico didático sobre geografia Cultural

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Page 1: Geografia Cultural

GEOGRAFIA CULTURAL – UNIDADE 1

Prof. Fábio Coltro

UNIDADE I - NOVAS GEOGRAFIAS CULTURAIS

Caros alunos, as ciências geográficas vêm avançando e ramificando-se em diversas formas. Nosso intuito é proporcionar-lhes uma pequena visualização das correntes contemporâneas dentro da Geografia cultural. Para tanto, se faz necessário recuperar alguns aspectos que antecedem essa contemporaneidade.

Devemos retomar alguns conceitos previamente antes de partirmos para a questão da contemporaneidade na geografia cultural, tal retorno abordará os conceitos de geografia cultural e cultura, bem como a sua transformação ao longo dos anos na academia e, assim, chegando as teorias e abordagens contemporâneas.

Comecemos então, com o conceito de geografia.

A Geografia é uma ciência que tem, na atualidade, o espaço geográfico como um dos seus objetos principais. Podemos entender o espaço geográfico como um espaço produzido pela atividade humana, ou seja, um espaço humanizado e conhecido pela consciência humana nessa cotidianidade (GABRIEL, 2011).

Desta forma, temos, além da ideia de que a geografia é a ciência das relações humanas com o meio ambiente, temos também um componente social e cultural, na construção dos significados do cotidiano, e dos significados do espaço.

É nesse ponto que iremos abordar as transformações contemporâneas da geografia cultural.

Como afirma Duncan et al (2014), nas últimas duas décadas a geografia cultural passou por uma significativa mudança, teórica, metodológica e epistemológica. Assim, novos aspectos foram incorporados a geografia cultural, acompanhando mudanças nas outras ciências sociais e humanas.

Um desses aspectos foi a incorporação de novas interpretações e teorias sociais oriundas, principalmente dos países anglo-saxão. Temos ainda a abordagens de novos temas dentro da geografia cultural que amplia seu alcance e, conforme afirma Edgard Morin (2001), tende a responder com maior complexidade os aspectos de nossa sociedade, cada vez mais complexa e heterodoxa.

Retomando alguns conceitos básicos, temos ainda a Nabozny (2014, p. 75) que afirma:

Na discussão da história do pensamento geográfico, alguns autores têm buscado trazer elementos arqueológicos na discussão cultural da Geografia, ou seja, evidenciando que, de

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algum modo, a discussão referente à cultura sempre esteve presente na Geografia em sua ―demarcação humana seguindo certa cronologia, cuja chave da expressão (Geografia Cultural) se faria presente inicialmente em Friedrich Ratzel (1844-1904). Posteriormente, são retratadas a denominada Escola da Paisagem Alemã, a influência desses estudos nos trabalhos desenvolvidos por Carl Ortwin Sauer, na chamada Escola de Berkeley (EUA), assim como são destacados os trabalhos dos gêneros devida lablacheanos nos quais haveria uma forte presença dos aspectos culturais. Essa leitura é recorrente e original em Claval (2007a – primeira edição francesa é de 1995), Bonnemaiso (2000) e Almeida (2008) e, visivelmente ancorada na leitura de Paul Claval, nos textos de Ferraz (2007), Bloomfield (2007) e Zanatta (2008).

Assim, Silva (2015) afirma que a geografia era vista principalmente de um ângulo econômico e histórico, como demonstra Ratzel em sua obra “A Geografia Cultural dos Estados Unidos da América do Norte com ênfase especialmente voltada para as suas condições econômicas” (CLAVAL, 2001, p.20). Entretanto, o Ratzel já discutia nesta obra os encontros culturais na sociedade, se referindo às migrações globais e as consequentes transformações e dominações no espaço. Assim, Ratzel chamou atenção específica à questão dos imigrantes chineses nos Estados Unidos (CLAVAL, 2001, p.20). Sendo este um primeiro marco para a Geografia Cultural.

Portanto, continua Silva (2015), a Geografia Cultural da época girava geralmente em torno de uma cultura material, portanto, se referia apenas às transformações que os moradores (residentes e migrantes) causavam no espaço. No entanto, com a evolução da própria ciência geográfica que acompanhou as novas relações sociais no espaço na fase da industrialização e das migrações internacionais, numa sociedade moderna, a Geografia Cultural também passou por transformações.

Tais transformações acompanharam as mudanças ocorridas na sociedade do século XX e, consequentemente as vindas da concepção de cultura. Posto que, uma vez que a sociedade mudava, a forma como os estudiosos entendiam o que era cultura também ia sendo alterado.

A partir das mudanças ocorridas, principalmente nas ciências humanas nas décadas de 1970 a 1990, temos a entrada de algumas novas

VÍDEO

https://www.youtube.com/watch?v=hcT_fo2uBnI

Caro alunos, veja esta video sobre as diferenças entra a geografia cultural no Brasil e na Alemanha e discuta sobre a realidade cultural de sua região

PARA REFLETIR: COMO AS MUDANÇAS SÓCIO-CULTURAIS MODIFICAM O ESPAÇO? QUAL A SUA RELAÇÃO?

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abordagens sobre as relações sociais e culturais, com especial atenção para as obras de Michel Foucault; Deleuze e Guattari; Bruno Latour; Donna Haraway; e na geografia cultural as propostas de Jonathan Murdoch (2008); Nigel Trhift (2001) e Hayden Lorymer (2009) entre outros.

É dentro desta perspectiva que vamos nos debruçar a tentar acompanhar o pensamento geográfico e suas implicações na concepção e intepretação da cultura, do espaço e de suas relações.

Uma das questões que contribuem para essas modificações é a noção de agente. A “agência” das transformações sociais forma, até então, exclusividade da humanidade, legando a um segundo plano todos os outros aspectos relacionados a agencia.

Autores como Deleuze e Guattari (1989) começam a discutir as correlações entre humanos e a agência, colocando o humano não mais no centro de toda a transformação e questão social e cultural, mas como mais um elemento que ser relaciona e interage, criando novas interpretações e significados do espaço.

Essa questão é posteriormente retomada e aprofunda por Donna Haraway (2001) ao atentar que os aspectos não-humanos, tem (em nossa relação cotidiana) grande influência na construção, interpretação e significação do mundo e do espaço vivido.

Antes de partirmos para outros aspectos destas novas interpretações da geografia cultural contemporânea, devemos ainda abordar alguns pontos das mudanças sociais e culturais ocorridas nas décadas de 1960 e 1970.

Os movimentos sociais dessas décadas forma fundamentais, tanto do ponto-de-vista político quanto acadêmico.

A revisão do centramento humanista nas ciências, suscitou ampla discussão sobre o papel das ciências e do aspecto antropocêntrico das teorias científicas.

Tal revisão amplia a possibilidade das novas interpretações. Nesta abordagem, juntamente com Haraway, o antropólogo francês Bruno Latour (1989), nos questiona sobre as certezas modernas. Ou seja, ao questionar a modernidade, Latour (1989) questiona as certezas que caracterizaram as ciências até então.

Esta visão tem grande impacto nas ciências geográficas, em especial no tocante a cultura, abrindo caminho para uma nova e ampla interpretação da cultura e de suas possibilidades cotidianas.

Kelton Gabriel (2011), traz uma das mais inovadoras pesquisas nesse aspecto para o Brasil.

Ao abordar uma “geografia do cotidiano”, Gabriel (2011) aponta novos caminhos para a geografia brasileira pautada, em grande parte, em uma análise crítica de origem marxista.

Veremos nos próximos itens alguns desses aspectos aqui abordados e suas consequências.

VÍDEO

https://www.youtube.com/watch?v=Lho_2OjFITk

Caro aluno, reflita sobre a questão cultural contida neste vídeo.

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PÓS-MODERNIDADE E PÓS ESTRUTURALISMO

A abordagem contemporânea pós-estruturalista, segundo Salvi (2000), afirmando que geógrafos como Harvey, Peet, Thrift, Gregory e Walford, Macmillan, Kobayashi e Mackenzie, Clocke, Philo e Sadler, Johnston, Suodart, Ley, Dear, Santos, Silva, dentre muitos outros, são exemplos de pesquisadores que vêm constantemente reavaliando a disciplina em suas abordagens teóricas, buscando novas propostas de "remodelar", "refazer", "abordar", "mudar".

Afirma Roberto Correa Lobato (2009) que a corrente pós-estruturalista se caracteriza por uma variedade de caminhos a serem seguidos, em sua crítica ao estruturalismo e ao positivismo. O traço comum a esta corrente é a recusa a aceitar uma única interpretação a respeito da sociedade e seu espaço. A influência de Geertz, Foucault e Said é considerável para essa corrente. O estudo de Duncan (1990) sobre a política de interpretação da paisagem na capital do reino de Kandy, Sri Lanka, no primeiro quartel do século XIX, constitui-se em notável exemplo, assim como os estudos focalizando as controvérsias a respeito das formas simbólicas espaciais.

Mas antes de avançarmos com esse debate, devemos pensar o que é a pós-modernidade.

Salvi (2002), nos auxilia, dizendo a questão pós-moderna gira em torno de alguns eixos de discussão, onde muitas vezes cada um deles segue caminhos próprios tornando-se um ramo de debate específico. É dessa diversidade que surge a dificuldade de ordenar, estabelecer parâmetros e compreender conceitos e problemas relacionados com essa temática.

Além disso, Salvi (2002) apresenta um esquema que resumido das características da pós-moderno:

a) A tecnologia eletrônica de massa e individual invadiu o cotidiano saturando-o com informações, diversões e serviços. Dado a esse fato e diante da alta tecnologia de informação lida-se, hoje, mais com signos do que com objetos propriamente ditos. b) O pós-moderno se expressa na sociedade de consumo

personalizado (fase do capitalismo tardio), onde frequentemente tenta-se provocar a "sedução" do sujeito, com o intuito de arrebanhá-lo para uma "moral hedonista", de valores calcados no prazer de usar bens e serviços. c) Nos anos 60-70, o movimento pós-moderno migrou da

arquitetura para a pintura e a escultura, depois para o romance, sobressaindo o estilo satírico, pasticheiro e sem esperança. Os pós-modernistas querem, num primeiro momento, rir levianamente de tudo. d) Já metamorfoseado, a partir do final dos anos 70, o pós-

modernismo passou a assumir estilos de vida e migrou

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também para a área da filosofia. Nesses dois âmbitos vicejam ideias tidas como sinistras: o "niilismo", o nada, o vazio, a ausência de valores e de sentido para a vida. Houve uma entrega ao presente e a necessidade de viver o momento e o prazer do momento, acompanhados da entrega ao consumo e ao individualismo. e) A partir do final dos anos 80, o pós-modernismo alastra-se

por quase todas as áreas científicas em especial por aquelas que lidam com comunicação e marketing. f) Tecnociência, consumo personalizado, arte e filosofia em

torno de um homem emergente ou decadente são os onde o pós-moderno pôde ser surpreendido. g) O pós-modernismo é típico das sociedades pós-

industriais. h) O pós-modernismo está associado à decadência

das grandes ideias, valores e instituições ocidentais Deus, Ser, Razão, Sentido, Verdade, Totalidade, Ciência, Sujeito, Consciência, Produção, Estado, Revolução, Família.

Salvi (2002, p 103) ainda atenta para a distinção entre pós-moderno e pós-modernidade:

A pós-modernidade pode adquirir alguns significados: a) nada pode ser conhecido com certeza, pois os fundamentos da epistemologia revelaram-se sem credibilidade; b) a história é destituída de teleologia, sendo que nenhuma versão de progresso pode ser seriamente defendida; c) o surgimento de uma nova "agenda" social e política adveio de preocupações ecológicas e dos novos movimentes sociais

em geral.

Geografia ingressa no debate pós-moderno no final da década de 80. A contribuição que teve maior abrangência foi a obra David Harvey (1992). Entretanto, Michael Dear (1988) teve o mérito de estender o debate pós-moderno no nível da reflexão epistemológica na ciência geográfica. Averiguaremos aspectos dessas duas diferentes proposições, pretendendo demonstrar a produção norte-americana e comentar o engajamento da Geografia Humana no debate pós-moderno.

LINK:

Moderninadade vs Pós-modernidade

Para discutir melhor a questão da modernidade versus a pós-modernidade aconselhamos visitar o site: http://www.angelfire.com/sk/holgonsi/harvey1.html

Page 6: Geografia Cultural

Parte da mudança a que assistimos reside no fato de que muitas dicotomias estão ultrapassadas. Modernismo e vanguarda se relacionam à modernização social e industrial. Acreditava-se que a modernização devia ser trilhada. A visão heroica da modernidade e da arte como forças de mudança social estão fora de sintonia com as sensibilidades presentes. Visto dessa forma, o pós-modernismo não representa apenas outra crise no contínuo ciclo de altos e baixos, exaustão e renovação, bom e mau, feminino e masculino, verdade e mentira, etc., que tem caracterizado a trajetória da modernidade. Ele representa um novo tipo de crise dessa cultura. Somente nos anos 70 ficaram nítidos os limites históricos do modernismo, da modernidade e da modernização. Começamos a explorar as contradições e contingências, as tensões e resistências internas da modernidade. Nesse sentido, o pós-modernismo está longe de tornar o modernismo obsoleto,

apropriando-se inclusive de muitas de suas estratégias e técnicas estéticas, inserindo-as e fazendo-as trabalhar "em outras constelações". O pós-modernismo só rejeita o modernismo na sua tendência de codificar-se num dogma estreito.

VIDEO

https://www.youtube.com/watch?v=cjoyEiDy0mM

Caros alunos, aproveitem essa oportunidade de assistir um dos maiores geógrafos contemporâneos, David Harvey.

Page 7: Geografia Cultural

INCLUSÃO E EXCLUSÃO DOS ANIMAIS A PERSPECTIVA DE CHRIS PHILO

Um dos artigos mais importantes nessa “nova geografia cultural

animal” é a de Chris Philo (1995), em que expõe sua percepção sobre a questão animal na

geografia. No artigo intitulado “Animals, geography, and the city: notes on inclusion and

exclusion”, Philo (1995), apresenta sua teoria de exclusão dos animais como fato relevante

para a geografia e para o repensar das relações humano-animais.

Philo (1995) afirma:

“Precisamente como diferentes comunidades humanas pensam, sentem, e falam (ou 'discursam') sobre os animais nas suas proximidades vai, obviamente, moldar suas práticas sócio espaciais com relação a esses seres nas práticas cotidianas, com importante consequências para estender às diferentes espécies animais presentes que serão incluídas ou excluídas dos lugares comuns da atividade humana. ” (PHILO, 1995 p. 656)

Portanto, Philo (1995) busca compreender essa relação socio-

espacial que inclui ou exclui determinado ser das relações, criando fronteiras, territórios e

outros espaços de exclusão.

Uma das questões levantadas por Philo (1995) nesse sentido é a

questão de intencionalidade, ou da agência. Visto como uma das maiores objeções a essa

tese, a intencionalidade da ação ou agência é, para Philo (1995) e outros autores desta

“nova geografia cultural animal”, fundamental. Atentando para o risco de ser antropomórfico,

Philo (1995), argumenta que diferente de comportaram-se exatamente como humanos, num

sentido político de intencionalidade, os animais, ainda assim, “vão” se comportar de forma

contrária da expectativa humana sobre seu comportamento. Esclarecendo, Philo (1995),

prefere o termo “transgredir” ou invés de “resistir”, adotando esse último como carregado de

intencionalidade política. Concordando com essa ideia, Peter Singer (2013) argumenta que

diferente dos humanos, os animais não têm desejo (da mesma forma que os humanos têm),

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mas têm preferências e estas são similares a dos humanos, devendo, portanto, serem

igualmente consideradas.

Voltando a Philo (1995), a questão da resistência x transgressão é

um dos pontos centrais da sua ideia, pois se consideramos que os animais transgridam o

espaço socialmente construído, eles são, portanto, agentes de modificações sócio-

espaciais.

Nesse sentido Tim Cresswell afirma haver uma significativa diferença

entre resistir e transgredir:

“Resistência parece implicar intenção – ação proposital direcionada contra alguma entidade com a intenção de mudança ou diminuir seus efeitos … Transgressão, em distinção a resistência, não o faz baseando-se na intenção dos atores, mas sim sob os resultados – sobre o 'ser' de determinada ação. Transgressão é julgado por aqueles que reagem, enquanto resistência assenta-se sobre as intenções do (s) ator (es). ” (CRESSWELL, 1992 p. 53-54)

Para Philo (1995), a ideia de Cresswell (1992), envolve um “cruzar a

linha” que significa, metaforicamente cruzar as fronteiras sociais (normas, convenções e

expectativas) e, mais concretamente, leva ao que se chama fenômeno “fora-do-lugar”

(substância, ações, e acontecimentos que não são esperados).

Parece, para Philo (1995), que, nesses termos, muitos animais

(domésticos ou selvagens1) são ocasionalmente transgressores da ordem sócio-espacial

que foi criada e policiada sobre eles pelos seres humanos, se tornando assunto de “fora-de-

lugar” no processo, e, nesse sentido, os animais são frequentemente expurgados dos

lugares – ou ficam for a do “papel” que eles supostamente deviam agir em determinados

lugares – que são atribuídos para eles pelos seres humanos.

1 Gostaríamos de fazer apenas um esclarecimento. Aqui estamos usando como sinônimos os termos selvagens e silvestres por não haver no vocabulário anglo-saxão um termo que os distingue.

PARA SABER MAIS

Acesse o blog:

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Aqui, Philo (1995), atribuí aos animais o papel de “outro grupo

marginal”, que se comportam de forma distinta da “desejada” pela humanidade e, portanto,

devem ser excluídos do espaço social. No caso de Philo (1995) e pesquisa assenta-se

sobre a Inglaterra vitoriana e seu padrão de comportamento moral rigoroso e a associação

de comportamentos inadequados, tanto animais quanto humanos, que devem ser banidos

do convívio diário da “aristocracia” ou dos “cidadãos de bem”.

A partir desta premissa, Philo (1995), começa a discussão da visão

dos animais na geografia acadêmica até então. Retomando as discussões de Wolch & Emel

(1995), Philo (1995), entre outros, retoma-se a ideia das 3 ondas da geografia cultural

animal.

Na sua construção da 3ª onda da geografia cultural animal, Philo

(1995), atenta para as práticas cotidianas e a observação da mudança do tratamento dado

aos animais e o questionamento levantado, principalmente os anos 1970s, por filósofos

como Peter Singer (1973) e Tom Regan (1984) e por movimentos em defesa dos animais.

Desta forma, Philo (1995), retoma sua tese de considerar os animais

como grupo marginalizado, muitas vezes associados (principalmente por uma questão de

construção social de uma moralidade vitoriana) com a impureza e a degradação (inclusive

social), retomando a perspectiva antropológica de Mary Douglas (1991), que relaciona a

pureza e sujeira (nesse caso a degradação) em dualismos como bem e mal, sagrado e

profano, puro e poluído.

A partir dessa base teórica, Philo (1995), avança para seu estudo

das mudanças urbanas ocorridas em Londres e em Chicago no Séc. IXX, apresentando

primeiramente a mudança ocorrida com o comportamento pela moral vitoriana.

Assim Philo afirma:

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“A sexualidade indomável dos animais livremente expressada nas 'vias públicas' era considerado degradante, e supostamente perturbador não somente para as mentes vulneráveis de mulheres e crianças, mas também como um ato estimulante para práticas sexuais impróprias por parte de pessoas impressionáveis que viviam e trabalhavam em Smtihfield. […] concluindo que os rebanhos animais deviam ser mantidos 'à distância' dos espaços normais que 'redefiniam a cidade' para o bem da 'moral pública'”. (PHILO, 1995 p. 670)

Em essência Philo (1995) aponta que esses espaços eram

solucionados com a exclusão dos animais da cidade (o que era cada vez mais identificados

como espaço de pessoas ao invés de bestas) e mantendo-os isolados no campo. Essa

associação com a “bestialidade” animal, também incluía o comportamento indesejado de

pessoas de classes diferentes, tornando-os, também, grupos marginais a serem excluídos

ou evitados pelas “pessoas de bem”.

Philo (1995) passa então a relatar as mudanças ocorridas no meio

urbano em Londres no séc. IXX, a partir de relatos da época. Para Kittle (apud PHILO,

1995), a maioria das pessoas que moravam na vizinhança de matadouros, a presença de

grande número de animais (vacas, ovelhas e porcos) confinados em pequenos espaços era,

em si, uma “ofensa para os sentidos”, mesmo antes do abate, o cheiro e o som dos animais

eram considerados ofensivos. O impacto sensorial era, de fato, crucial para Kittle e as

afirmativas anti-animalistas mencionavam os “gritos” e “gemidos” de medo dos animais.

(PHILO, 1995)

Assim, essa influência “brutalizante” sobre os trabalhadores dos

abatedouros e moradores das vizinhanças abatia o padrão moral tanto das pessoas quanto

dos locais em que esses “fenômenos” se tornaram centrais no cotidiano. (PHILO, 1995)

Com isso: “Matadouros, indivíduos imorais, e usos imorais da terra

eram assim vistos como companhia quase inevitáveis na cidade, e os mercados em si,

vistos como ligados a esta degradada unidade sócio-espacial. ” (PHILO, 1995 p. 675)

Page 11: Geografia Cultural

Philo (1995) ainda sugere que essa “nova regulamentação” da moral

vitoriana, seria, ao modo foucaultiano, uma biopolítica, usando um aparato legal, social e

cultural para excluir e associar essas degradações com os grupos marginalizados, no caso,

animais e pessoas de classe baixa.

Concluindo, Philo, afirma que:

“O propósito deste artigo tem sido considerar a possibilidade de reviver a geografia cultural animal […] que contraria o 'chauvinismo humano' de muitos trabalhos geográficos da relação humano-animal, […] com uma abordagem de 'coisas viventes' e simbolizado pela efetiva exclusão dos animais da miríade de assuntos abordados nas práticas da subdisciplina de geografia humana.” (PHILO, 1995 p. 677)

Pode-se pensar em um continuum entre inclusão e exclusão, com

animais como cães e gatos tendendo a ser incluídos (como “animais de companhia” ou pet,

prontamente aceitos nos espaços cotidianos vividos da humanidade) e com animais somo

leões e ursos tendendo para o outro extremo (como selvagens e perigosos, sendo mantidos

a distância dos espaços vividos cotidianamente). (PHILO, 1995)

No entanto, questionamos essa hipótese, afirmando que mesmo

esses animais, no caso do Brasil, devem ficar “fora” das relações humanas, dependendo de

sua “origem”/”raça”.

O discurso, também no caso brasileiro, de higienização

(organizacional e moral) gradativamente codificou os animais como impuros, poluentes,

VIDEO

https://www.youtube.com/watch?v=kCMtEpsi2g4

Caros alunos, essa palestra na UFPR de 2001 é muito interessante para discutirmos a questão da exclusão

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sujos e como incômodos ocupantes dos espaços da cidade onde os humanos,

supostamente, devem viver e trabalhar. (PHILO, 1995)

Philo concluí:

“Meu pensamento final é da possibilidade de abrir-se estudos sobre o entendimento do processo sócio-espacial de exclusão em que os animais são frequentemente sujeitos, quando são perseguidos nas ruas e confinados nos campos, depende precisamente de alcançarmos a (re)inclusão deles na pesquisa e teoria de geografia humana contemporânea” (PHILO, 1995 p. 678)

CONCLUÍNDO

Para discutir: Prezado aluno, não se esqueça de postar as dúvidas, reflexões, respostas e conclusões no fórum de discussão. Pois dessa

maneira enriquecemos a nossa formação e nos ajudamos no processo de aprendizagem.

Bons estudos!!!

Como vimos, a questão da geografia cultural contemporânea é complexa e permeada de conceitos de outras ciências.

No entanto, cabe aos professores aproximar esse conhecimento complexo das comunidades em que atua.

Acreditando que a cultural possa ser a mola impulsionadora das relações espaciais, podemos, através de inúmeras interpretações e intervenções, gerar questionamento e reflexão nos discentes.

Trazendo a academia mais próxima das populações, a geografia cultural contemporânea (principalmente com suas vertentes pós-estruturalistas) permite-nos alcançar um conhecimento das relações espaciais que antes não era possível.

Utilizem essas ferramentas para aprofundarem nos conhecimentos especializados da cultura e atuar no discente para fortalecer seu caráter crítico, observador e reflexivo.

Page 13: Geografia Cultural

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