georg lukács - introdução (para uma ontologia do ser social)

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(*) Tradução: Mário Duayer (UFF), da edição alemã Zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins, Primeira Parte, Einleitung. Darmstadt: Luchterhand, 1984. Versão preliminar. Favor não citar sem autorização do tradutor. ([email protected] ) PARA A ONTOLOGIA DO SER SOCIAL INTRODUÇÃO G. Lukács 1. Ninguém se ocupou tão extensamente quanto Marx com a ontologia do ser social. A correção desta afirmação aparentemente apodítica somente poderá ser apresentada pela análise pormenorizada deste escrito sobre o método dos clássicos do marxismo e sua concreta posição acerca das principais categorias do ser social. Neste ponto pode-se apenas antecipar um catálogo resumido das questões decisivas e sua situação atual à guisa de orientação. 2. Quando os mais importantes filósofos do passado e do presente chegam a tocar em problemas que de fato pertencem à ontologia do ser social, na maioria das vezes apresentam- se as seguintes alternativas: ou o ser social não se distingue do ser em geral, ou se trata de algo radicalmente diverso, algo que não tem mais o caráter de ser, como, por exemplo, no século XIX, o valor, a validade, etc. como o tosco contraste entre o mundo do ser material enquanto reino da necessidade e um puro reino espiritual da liberdade. Essa alternativa, no entanto, jamais pode ser mantida em tal exclusividade radical de maneira conseqüente; é necessário procurar e encontrar soluções de compromisso. Desde logo, porque a contraposição entre reino da necessidade e reino da liberdade – de maneira evidente – dificilmente pode coincidir com a distinção entre ser em geral e o ser social. O ser social possui muitas zonas que, em uma maneira evidente para todos, parecem sujeitas à necessidade, à legalidade, como a própria natureza. Os pensadores são livres para julgar negativamente, do alto de uma moral ou de uma metafísica, tal legalidade do mundo social, como sucedeu freqüentemente, por exemplo, nas observações histórico-políticas de Machiavel ou com a economia de Ricardo. Com isso, no entanto, não se remove do círculo de problemas da filosofia o fato de que de que a vida social tem, ao menos em parte, um caráter de ser cuja cognoscibilidade exibe muitas analogias com a apreensão cognitiva da natureza. As radicais bipartições do mundo segundo o modelo da “crítica da razão pura” e da “crítica da razão prática” revela-se sempre impraticável, posto que em última análise podem apenas contrastar entre si puro conhecimento da natureza e pura moral. 3. Resultam assim contínuos compromissos metodológicos que põem de lado o problema ontológico fundamental do caráter de ser da especificidade do ser social e enfrentam as dificuldades cognitivas dos setores singulares de modo puramente gnosiológico ou puramente metodológico, epistemológico. Assim, Rickert, ao identificar a ciência da natureza com o modo de observação generalizante, pode assegurar um lugar para a sociologia no quadro de seu dualismo metodológico. 1 Para um neokantiano do tipo de Rickert, um tal compromisso era conseqüente. Na medida em que sua gnosiologia excluía completamente o ser das coisas em si – incognoscível – da filosofia científica, na consideração do mundo fenomênico, cujo ser em sentido ontológico devia permanecer em suspenso, podia ser realizada qualquer disposição metodológica, qualquer manipulação dos objetos, desde que não envolvesse uma contradição lógico-formal. Aqui o neokantismo do final do século aproxima-se bastante do 1 Rickert, H. Die Grenzen der naturwissenschaftlichen Begriffsbildung, Tübingen, 1929, p. 257.

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  • (*) Traduo: Mrio Duayer (UFF), da edio alem Zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins, Primeira Parte, Einleitung. Darmstadt: Luchterhand, 1984. Verso preliminar. Favor no citar sem autorizao do tradutor. ([email protected])

    PARA A ONTOLOGIA DO SER SOCIAL INTRODUO

    G. Lukcs

    1. Ningum se ocupou to extensamente quanto Marx com a ontologia do ser social. A correo desta afirmao aparentemente apodtica somente poder ser apresentada pela anlise pormenorizada deste escrito sobre o mtodo dos clssicos do marxismo e sua concreta posio acerca das principais categorias do ser social. Neste ponto pode-se apenas antecipar um catlogo resumido das questes decisivas e sua situao atual guisa de orientao. 2. Quando os mais importantes filsofos do passado e do presente chegam a tocar em problemas que de fato pertencem ontologia do ser social, na maioria das vezes apresentam-se as seguintes alternativas: ou o ser social no se distingue do ser em geral, ou se trata de algo radicalmente diverso, algo que no tem mais o carter de ser, como, por exemplo, no sculo XIX, o valor, a validade, etc. como o tosco contraste entre o mundo do ser material enquanto reino da necessidade e um puro reino espiritual da liberdade. Essa alternativa, no entanto, jamais pode ser mantida em tal exclusividade radical de maneira conseqente; necessrio procurar e encontrar solues de compromisso. Desde logo, porque a contraposio entre reino da necessidade e reino da liberdade de maneira evidente dificilmente pode coincidir com a distino entre ser em geral e o ser social. O ser social possui muitas zonas que, em uma maneira evidente para todos, parecem sujeitas necessidade, legalidade, como a prpria natureza. Os pensadores so livres para julgar negativamente, do alto de uma moral ou de uma metafsica, tal legalidade do mundo social, como sucedeu freqentemente, por exemplo, nas observaes histrico-polticas de Machiavel ou com a economia de Ricardo. Com isso, no entanto, no se remove do crculo de problemas da filosofia o fato de que de que a vida social tem, ao menos em parte, um carter de ser cuja cognoscibilidade exibe muitas analogias com a apreenso cognitiva da natureza. As radicais biparties do mundo segundo o modelo da crtica da razo pura e da crtica da razo prtica revela-se sempre impraticvel, posto que em ltima anlise podem apenas contrastar entre si puro conhecimento da natureza e pura moral. 3. Resultam assim contnuos compromissos metodolgicos que pem de lado o problema ontolgico fundamental do carter de ser da especificidade do ser social e enfrentam as dificuldades cognitivas dos setores singulares de modo puramente gnosiolgico ou puramente metodolgico, epistemolgico. Assim, Rickert, ao identificar a cincia da natureza com o modo de observao generalizante, pode assegurar um lugar para a sociologia no quadro de seu dualismo metodolgico.1 Para um neokantiano do tipo de Rickert, um tal compromisso era conseqente. Na medida em que sua gnosiologia exclua completamente o ser das coisas em si incognoscvel da filosofia cientfica, na considerao do mundo fenomnico, cujo ser em sentido ontolgico devia permanecer em suspenso, podia ser realizada qualquer disposio metodolgica, qualquer manipulao dos objetos, desde que no envolvesse uma contradio lgico-formal. Aqui o neokantismo do final do sculo aproxima-se bastante do 1 Rickert, H. Die Grenzen der naturwissenschaftlichen Begriffsbildung, Tbingen, 1929, p. 257.

  • 2positivismo da poca de Mach, Avenarius, etc. As sutis diferenas entre ambos, que foram ento muito discutidas, so desprovidas de interesse para nossa colocao do problema, pois parecem irrelevantes diante de sua concordncia fundamental, a saber, que no existem questes ontolgicas para a filosofia cientfica. Em virtude disso, irrelevante para uma ontologia do ser social se as cincias sociais so tratadas, como se faz no Ocidente, como cincia da natureza, ou se para elas criada, como ocorre na Alemanha, uma rubrica metodolgica das cincias do esprito. 4. O problema adquire seu justo perfil j por Marx. Antes de tudo, ele v com clareza que h toda uma srie de determinaes categoriais sem as quais nenhum ser pode ter seu carter ontolgico concretamente apreendido. Por essa razo, o ser social pressupe uma ontologia geral. Porm, esta ontologia no deve ser de novo distorcida em gnosiologia. No se trata aqui de uma analogia ontolgica com a relao entre a gnosiologia geral e os mtodos especficos das cincias singulares. Trata-se, ao contrrio, do fato de que aquilo que conhecido numa ontologia geral nada mais do que os fundamentos ontolgicos gerais de todo ser. Se na realidade surgem formas de ser mais complexas, mais compostas (vida, sociedade), ento as categorias da ontologia geral devem nelas permanecer como momentos superados; o superar teve em Hegel, corretamente, tambm o significado de conservao. A ontologia geral ou, dito mais concretamente, a ontologia da natureza inorgnica enquanto fundamento de todo existente , por isso, geral, porque no pode haver qualquer existente que no seja de qualquer modo ontologicamente fundado na natureza inorgnica. Na vida aparecem novas categorias, mas estas podem operar com uma eficcia ontolgica somente sobre a base das categorias gerais, com elas interagindo. Da mesma forma, as novas categorias do ser social relacionam-se com as categorias da natureza orgnica e inorgnica. A interrogao marxiana sobre a essncia e a constituio do ser social s pode ser racionalmente posta sobre a base de uma fundamentao assim ordenada. A indagao acerca da especificidade do ser social contm a confirmao da unidade geral de todo ser e, simultaneamente, a evidncia de suas prprias determinabilidades especficas. 5. Entretanto, este apenas o primeiro e indispensvel pressuposto para a correta compreenso de nosso problema. O prximo passo, dado por Marx, para avizinhar-se da questo decisiva, consistiu em conferir uma posio central ao espelhamento dialtico da realidade objetiva. Na ausncia deste, resulta automaticamente uma permanente confuso entre a realidade objetiva e seu espelhamento subjetivo imediato considerado no plano ontolgico. (O fato de que o espelhamento, quando aproximadamente fiel, obtm uma objetividade cognitiva, em nada altera este problema ontolgico; tampouco o fato, a ser examinado em detalhe na segunda parte do livro, de que o espelhamento em determinadas circunstncias concretas, cuja espcie, limite, etc. dependem do respectivo ser social, pode contribuir de maneira ativa para provocar na sociedade novos fatos ontolgicos.) Num dos captulos finais da primeira parte do livro consideraremos extensamente as confuses que o ignorar desta estrutura necessariamente provocou em Nicolai Hartmann, ele prprio um pensador extremamente srio e insigne no campo ontolgico. 6. O segundo pressuposto essencial para a cognio da especificidade ontolgica do ser social consiste em entender o papel da prxis em sentido objetivo e subjetivo. J nesta questo Marx rompeu de modo mais decisivo com seus predecessores filosficos. A ltima Tese sobre Feuerbach: Os filsofos tm apenas interpretado o mundo de diversas maneiras; trata-se de

  • 3transform-lo,2 o expressa de uma maneira programtica. Entretanto, a inteira obra de Marx uma concreta explicitao e uma defesa universal dos fatos ontolgicos aqui aludidos. Objetivamente, de fato, o ser social a nica esfera da realidade na qual a prxis cumpre o papel de conditio sine qua non na manuteno e no movimento da objetividade, em sua reproduo e seu desenvolvimento. E em virtude desta funo original na estrutura e dinmica do ser social, a prxis tambm subjetiva, gnosiologicamente, o critrio decisivo de todo conhecimento correto. (Mais tarde consideraremos como esta concepo universal da prxis na filosofia moderna, no pragmatismo e no behaviorismo, tornada estreita e meramente imediata, desfigurada.) Aqui importa assinalar brevemente o contraste entre a ontologia marxiana e as precedentes, que, de vrias maneiras, elevavam a pura contemplao veculo de conhecimento da verdade e, simultaneamente, critrio ltimo do comportamento do ser humano correto na realidade social. Tal contraste do ponto de partida terico baseia-se em uma nova noo da realidade social, na refutao da antinomia metafsica entre liberdade e necessidade no agir humano. Ao domnio teortico uniforme da necessidade corresponde uma radical homogeneizao de todo ser no plano ontolgico; como ocorre em geral no quadro do materialismo mecanicista mas, decerto, no necessariamente s neste ltimo. (Basta recordar a doutrina da predestinao.) Com uma acentuao igualmente unilateral do princpio da liberdade deve resultar, por um lado, um rgido e irreconcilivel dualismo no plano ontolgico que lacera metafisicamente a unitariedade do ser social, como acontece com o mundo fenomnico e numnico em Kant, enquanto, por outro lado, na prxis social separa mecanicamente de todos os outros o mundo fundado sobre a moral. Marx assinala sobre tais questes o ponto mximo at ento alcanado por aqueles esforos que no se davam por satisfeitos com nenhuma das citadas metafsicas unilaterais pense-se em Aristteles e Hegel e que se orientavam para uma concepo do ser social dialeticamente unitria. 7. Tais tendncias e similares , apesar de suas grandes e durveis aquisies, estavam condenadas ao fracasso. Por um lado, porque, na totalidade e no mtodo de compreenso do mundo, no demarcavam ou o faziam de modo insatisfatrio a considerao lgico-gnosiolgica da considerao ontolgica e no entenderam ou no reconheceram ou no o fizeram de modo suficientemente claro a prioridade da segunda em relao primeira. Por outro lado, porque baseavam suas concepes ontolgicas sobre imagens de mundo condicionadas por sua poca, mas cientificamente falsas ou religiosas. Nas consideraes que se seguem deveremos analisar detalhadamente ambas as causas dos fracassos de pensadores geniais. Neste ponto podemos apenas antecipar algumas indicaes sobre este complexo problemtico, que contemporaneamente de carter histrico-social e sistemtico e, por isso, como logo veremos, penetra igualmente na problemtica da ontologia contempornea, determinando-a substancialmente. 8. No h at o presente uma histria da ontologia. Esta lacuna, porm, no uma carncia fortuita da histria da filosofia, mas est estreitamente vinculada ao carter obscuro e confuso da ontologia pr-marxista. Os fundamentos sociais do pensamento de qualquer poca, includos os problemas das formas de objetividade privilegiadas, os mtodos predominantes, etc. s foram investigados criticamente de maneira excepcional, em especial em tempos de crises agudas, durante os quais a tarefa principal parecia ser a refutao eficaz do adversrio, em geral o poder do pensamento do passado, insuficiente na nova realidade, mas no a descoberta das causas sociais de seu ser-precisamente-assim [Geradesosein]. 2 MEGA V, Berlin, 1932, p. 535.

  • 4(Descartes e Bacon em sua relao com a escolstica). A difuso da filosofia e da pesquisa cientfica trouxeram luz do dia uma massa enorme e imprevista de saber sem, entretanto, referir-se na maioria dos casos s questes, aqui emergentes, por ns afloradas. Temos conhecimento, por exemplo, da hiptese heliocntrica de Aristarco e que no teve qualquer influncia sobre a cincia e a filosofia, no obstante as causas sociais deste fato permaneceram sem discusso. No possvel tentar aqui, com poucas aluses, recuperar o que at hoje no se fez, de modo que indicaremos brevemente algumas questes de princpio deste crculo de problemas, limitando-nos ao nvel geral dos meros princpios. 9. Antes de tudo, vida cotidiana, cincia e religio (teologia includa) de uma poca formam um complexo interdependente, sem dvida freqentemente contraditrio, cuja unidade muitas vezes permanece inconsciente. A investigao do pensamento cotidiano uma das reas menos pesquisadas at o presente. H muitos trabalhos sobre a histria da cincia, da filosofia, da religio e da teologia, mas so extremamente raros os que se aprofundam em suas relaes recprocas. Em virtude disto, resulta claro que a ontologia descola do solo do pensamento cotidiano e nunca mais poder tornar-se eficaz caso no seja capaz por mais que seja to simplificada, vulgarizada e desfigurada de nele voltar a aterrar. A maneira como a cincia ascende a partir do pensamento e da prxis da cotidianidade, em primeiro lugar do trabalho, e sempre a este retorna, fecundando-o, tentaremos mostrar no captulo sobre o trabalho. O fato de que a origem de nossas representaes ontolgicas est na cotidianidade no significa que podem e devem ser aceitas acriticamente. Ao contrrio. Tais representaes so repletas no apenas de preconceitos ingnuos, mas com freqncia de idias manifestamente falsas que, se s vezes provm da cincia, nela penetram sobretudo a partir das religies, etc. etc. Entretanto, a crtica necessria no autoriza descurar deste fundamento cotidiano. O prosaico e terreno senso do cotidiano, alimentado pela prxis diria, pode de quando em quando constituir um saudvel contrapeso aos modos de ver estranhados da realidade das esferas superiores. Porm, do ponto de vista de uma ontologia do ser social, talvez o mais importante seja aquela ininterrupta interao que tem lugar entre teorias ontolgicas e prxis cotidiana. A tarefa social em geral no expressa, raramente formulvel, mas na maioria das vezes inequvoca em seu Sim ou No que daqui ascende s esferas superiores modifica com muita freqncia as noes sobre ontologia proclamadas pela filosofia ou pela religio, e no s sobre o ser social, mas igualmente sobre a imagem geral do mundo. Nicolai Hartmann, que descobriu talvez pela primeira vez o caminho desde a cotidianidade at a ontologia, passando pela cincia, e que, sobretudo, reconheceu que as questes gnosiolgicas tm uma dimenso totalmente diversa, desviada, transversal em relao quelas, no se d conta da dialtica extremamente complexa que tem aqui origem e concebe, acriticamente, o caminho para a ontologia de maneira em geral muito retilnea.3 Sobre estas questes retornaremos amide. 10. O problema que aqui emerge em forma ingnuo-originria, muitas vezes completamente inconsciente, consiste no modo com que as necessidades vitais da prxis humana, entendida no sentido mais amplo, esto em interao com vises tericas dos homens, sobretudo com as ontolgicas. Naturalmente, esta prxis determinada objetivamente, em ltima anlise pelo ser, pelo ser social e, com a mediao deste, pela a natureza. Entretanto, essa prxis postula por si s, necessariamente, uma imagem de mundo com a qual possa harmonizar-se e da qual resulta da totalidade das atividades vitais um contexto pleno de sentido. claro que a cincia e filosofia a ela vinculada so chamadas em primeiro lugar a oferecer uma resposta 3 Hartmann, N. Zur Grundlegung der Ontologie, Meisenheim am Glan, 1948, pp. 49.

  • 5adequada, objetivamente correta; enquanto parte e parte ativa, no funcional sem atividade da inteira realidade social, no poderiam ignorar estas exigncias provenientes da vida cotidiana; mesmo uma resposta negativa, uma refutao, representa, desde o ponto de vista do problema que tratamos, uma reao tarefa social. J a estrutura de classes antagnica da sociedade que dissolveu o comunismo primitivo torna inelutvel uma tal alternativa de Sim e No, uma vez que as classes em luta recproca devem requerer, por meio de uma imagem de mundo, direes opostas para a tarefa social e sua infra-estrutura. 11. Tudo isto tem ser sublinhado para poder-se compreender a base da enorme influncia da religio sobre os projetos ontolgicos nas vrias imagens de mundo. Sem dvida, alm da gnosiologia, da lgica, etc. as modernas filosofias e histrias da filosofia tratam igualmente, em uma rubrica especial, da filosofia da religio, e existe mesmo uma literatura monogrfica sobre determinadas relaes histricas entre religio e filosofia. Com isso, entretanto, nosso tema, mesmo quando reconhecido, ainda no foi abordado, a saber, que a filosofia, nas interaes reais produzidas pelo desenvolvimento social, com freqncia coloca seu aparato espiritual disposio da religio e, em outros casos, cuida da expresso terica adequada do contedo postulado pela tarefa social. Entretanto, este um momento secundrio, acessrio da influncia sobre as imagens humanas de mundo no curso da histria. Importam muito mais os problemas da vida cotidiana que emergem nas condies histricas dadas, nas situaes de classe existentes e nas correspondentes atitudes da humanidade diante de uma realidade social imediatamente dada para si includa a natureza por ela mediada , problemas para os quais os seres humanos por conta prpria e, sobretudo, no quadro de sua respectiva vida terrena, no esto em condies de responder satisfatoriamente. Das necessidades religiosas assim formadas resulta a fora das religies vivas para delinear uma ontologia que proporciona um quadro adequado para a satisfao de tais desejos: uma imagem de mundo na qual os desejos que transcendem a existncia cotidiana dos seres humanos, no atendidos na vida cotidiana, adquirem uma perspectiva de realizao num Alm apresentado com pretenso ontolgica. A ontologia religiosa surge tambm por uma via oposta a da ontologia cientfico-filosfica: esta investiga a realidade objetiva para descobrir o espao real para a prxis real (do trabalho tica); aquela se move desde as necessidades de um comportamento frente vida, das tentativas de conferir sentido prpria vida pelos seres humanos singulares da prxis cotidiana, e constri uma imagem de mundo que, quando efetiva, possa constituir uma garantia para a realizao de cada desejo que se faz perceptvel na necessidade religiosa. 12. A filosofia e a religio, por isso, percorrem caminhos contrapostos por princpio na construo da ontologia. No obstante, fazem apelo a necessidades tericas e prticas, razo, ao intelecto e vida sentimental dos mesmos seres humanos. Por essa razo, tem haver entre ambas, de acordo com a estrutura e a dinmica sociais, uma relao de aliana ou de concorrncia (at de franca inimizade) no hic et nunc histrico. A forma pela qual esta inter-relao se realiza depende, em primeiro lugar, dos problemas histrico-sociais da poca. Resulta evidente, portanto, que o nvel cognitivo da cincia, condicionado em ltima anlise pelo trabalho, e a compreenso da realidade pela filosofia, dentro um dado espao, cumprem funes motrizes relativamente autnomas. Porm, no se deve esquecer que, por exemplo, em culturas como a indiana, foi possvel um desdobramento relativamente elevado da matemtica sem que esta pudesse exercer qualquer influncia sobre os limites da concepo de mundo, traados exclusivamente pela teologia.4 4 Ruben, W. Einfhrung in die Indienskunde, Berlin, 1954, pp. 263-76.

  • 613. A Grcia antiga, onde no havia nenhum poder sacerdotal e nenhuma teologia dogmtico-obrigatria, pde tornar-se a terra onde a ontologia tem sua gnese. A nova filosofia dos pr-socrticos, em sua rpida gnese, descobriu uma aps a outra e uma ao lado da outra suas categorias mais importantes. O fato de que s pudessem se tratar de primeiras aproximaes, em geral expressas de modo semimstico, dos fatos autnticos, no diminui em nada a grandiosidade deste primeiro desenvolvimento. Se pde dirigir-se de maneira to monumentalmente retilnea aos objetos mais essenciais, isto se deveu ausncia de conflito com uma teologia. (Nem mesmo os recorrentes processos de asebeia, na maioria determinados por motivos francamente polticos, puderam deter este desenvolvimento). Como adversrios da ontologia fundada num plano puramente filosfico apresentavam-se apenas os mitos, em contnua mutao e continuamente reinterpretados. E, uma vez que a poesia tinha participao preponderante nesta mudana, verifica-se um fenmeno que jamais se repete, a saber, em tais filosofias os poetas so sempre combatidos como principais inimigos de uma imagem racional do mundo. 14. At Scrates este grandioso objetivismo, este monismo csmico manteve-se predominante na cultura grega. Somente a crise da polis e, junto com ela, a centralidade emprestada aos problemas morais, colocou de modo inequvoco o humano, o problema da prxis correta no centro da filosofia. Plato o primeiro filsofo que, para responder pergunta o que fazer na polis em dissoluo, desenvolveu uma ontologia como base de sua tentativa de soluo, cuja concepo de realidade, cuja imagem de mundo deve fornecer uma garantia de que os postulados morais aparentemente imprescindveis para a salvao da polis possam ser fixados como possveis e necessrios. Por tal via ingressa na vida europia o dualismo ontolgico que caracteriza a maioria das religies, sobretudo o cristianismo: de um lado, o mundo dos homens, do qual provm as necessidades religiosas e a nsia por sua realizabilidade, de outro lado, um mundo transcendente, cuja condio ontolgica chamada para fornecer perspectivas e garantias de tal realizabilidade. A nossa tarefa aqui no pode consistir em delinear, sequer guisa de esboo, o desenvolvimento histrico da filosofia grega. Importa assinalar que apesar de todas as diferenas e contraposies muito profundas no plano dos princpios esta estrutura dualista, esta funo da ontologia nela permaneceu at o fim. Com os esticos, com os neoplatnicos neste caso evolvendo de maneira muito mais decisiva em uma religiosidade filosoficamente formulada, com Plotino e ainda mais com Proclo. 15. Aristteles constitui, naturalmente, uma resposta contra Plato na maioria das questes filosficas fundamentais. No entanto, apesar do carter amplamente terreno de suas tica e esttica, de sua doutrina do Estado e da sociedade e da grande extenso de sua filosofia da natureza, a sua concepo do cosmo, com os motores imveis como questo-chave, movimenta-se ainda na linha de uma ontologia bimundana. (Werner Jger descreve com muita fora a tormentosa luta do grande pensador com tal questo, para ele insolvel no plano histrico-social.5) Esta tendncia auto-dissoluo da terrenalidade [Diesseitgkeit] refora-se com Aristteles em virtude do carter preponderantemente teleolgico de sua ontologia. O modelo do modo de ser teleolgico do trabalho, que teve influncia determinante sobre toda a fase inicial do pensamento Aristteles o primeiro pensador que apreende de modo aproximadamente correto em termos filosficos esta conexo no trabalho , a observao e a elucidao do finalismo na esfera da vida conduziram por si mesmas a conceber teleologicamente tambm a natureza inorgnica, vale dizer, a procurar uma 5 Jger, W. Aristoteles. Berlin, 1955, pp. 366.

  • 7substncia ou fora teleolgica originria por detrs da necessidade regular dos fenmenos singulares; resultando da tambm o problema do motor imvel. Quando, ao mesmo tempo, na vida humana, na existncia e desenvolvimento da sociedade sob tais bases surge uma espontnea exasperao do ponto de vista diretamente teleolgico, a interpretao teleolgica das conexes ontolgicas converte-se em um instrumento conceitual a afirmar tanto a unidade ltima do mundo, de acordo com a qual tudo deve estar submetido determinao de deus, quanto a especificidade da existncia dos seres humanos, que constitui um setor separado, especial, subordinado, mas de importncia central no interior deste reino a deus subordinado. 16. Somente a filosofia de Epicuro interrompe esta tendncia de desenvolvimento. Nele um materialismo crtico irrefrevel destri toda ontologia bimundana. Tambm Epicuro pe o sentido da vida humana, o problema da moral, no centro de sua filosofia. Mas esta se distingue de todas aquelas que lhe precederam porque nela o universo da natureza defronta-se com as aspiraes humanas enquanto uma autolegalidade no-teleolgica, completamente indiferente, e porque nela o homem pode e deve resolver suas questes vitais exclusivamente na terrenalidade de sua existncia fsica. S desse modo a morte, o como do morrer devm uma questo puramente moral, exclusivamente humana. Nenhuma constituio do cosmo pode fornecer uma indicao neste sentido, muito menos um impulso estimulado pela promessa de um prmio ou uma pena. No possvel, disse Epicuro, libertar-se do medo com respeito s mais importantes questes vitais quando no se est informado sobre a natureza do todo, mas se movimenta nas conjecturas de carter mstico. Portanto, sem conhecimento da natureza no possvel alcanar a pura sensao de prazer.6 E exatamente no mesmo sentido sobre a vida e a morte: O mal pretensamente mais horripilante, a morte, no tem para ns qualquer significado porque, enquanto estamos ainda presentes, a morte no est presente, e quando a morte comparece, ento no estamos presentes.7 Por causa desta concepo de mundo, Lucrcio enaltece Epicuro enquanto libertador dos homens do medo, conseqncia necessria da f em deus. Evidentemente a filosofia epicurista no podia exercer efeito geral e duradouro. Desde logo o ideal da sabedoria, ao qual orientava-se tambm esta tica, circunscrevia seu efeito a uma elite espiritual e moral, enquanto a moral estica, em muitos aspectos particulares a ela anloga, sustentada por uma ontologia muito mais compatvel com a necessidade de redeno da Antigidade tardia do que a ontologia radicalmente terrena de Epicuro. Desse modo, a imagem de mundo deste perodo, ainda ao tempo em que dominava a mstica do neoplatonismo, est sempre pronta a acolher igualmente elementos da filosofia de Aristteles e da stoa, decerto aps uma profunda reinterpretao na maioria dos casos, enquanto o epicurismo permanece completamente isolado e passa a ser continuamente difamado como hedonismo vulgar. Este sempre o destino de uma ontologia radicalmente terrena na poca em que domina uma necessidade religiosa apaixonada. 17. O nascimento do cristianismo se d neste ambiente da cultura antiga em dissoluo, no qual tambm para a filosofia a satisfao mgico-mstica da necessidade de redeno constitui o objetivo primrio, no qual surge uma enorme quantidade de seitas dedicadas ao atendimento imediato de tais desejos de salvao pessoal da alma. Este no o lugar seja para investigar a razo pela qual o cristianismo pode desenvolver-se triunfalmente como religio mundial desta luta entre seitas, seja para iluminar as mutaes internas que 6 Laertius, D. Leben und Meinungen berhmter Philosophen. Berlin, 1955, II, p. 289. 7 ibid., p. 281.

  • 8acompanharam passo a passo esta via e suas causas. Devemos indicar apenas um momento ontologicamente decisivo nesta exposio extremamente sucinta: a espera do Cristo ressuscitado e a concepo, intimamente vinculada a tal espera, do fim do mundo, como evento que se imagina prximo e a ser experimentado pessoalmente. Da necessidade religiosa da poca nasce assim uma ontologia religiosa caracterstica que rejeita com ousada radicalidade a imagem de mundo ento difundida muito embora ainda problemtica no plano cientfico , e afirma como nica realidade a objetivao da ansiedade religiosa resultante da desesperana quanto a um sentido terreno para a vida pessoal, no apenas entre os judeus submissos mas, sobretudo, entre os pobres. Com isso fica posto o desafio a todas as concepes existentes sobre o mundo e a posio em que nele ocupa o ser humano. O prprio Jesus combateu apenas os doutores da lei judaica; Paulo, que conduz o cristianismo para alm dos estreitos limites de uma seita judaica, considera no obstante a revelao por ele anunciada como um disparate para os gentios, mas que, precisamente como disparate na revelao do salvador, de sua reapario, de sua crucificao, de sua ressurreio, possui a garantia da nica autntica realidade, que justamente como disparate chamada a formar o fundamento de uma autntica ontologia religiosa. A reapario de Cristo para breve representa seu perfeito apogeu; o juzo final, o fim da realidade at hoje existente. 18. A parsia no aconteceu. No entanto, muito interessante para a estrutura interna da ontologia religiosa que o colapso da revelao mxima e centralssima no pde anular a f crist. (Mesmo na teologia posterior, Franz Overbeck um dos poucos que vislumbrou neste fato o fim do cristianismo.) Dela resultou apesar das perseguies sempre recrudescentes uma crescente adaptao ao imprio, incluindo sua cultura intelectual. Tertuliano um dos poucos dentre os quais o ousado desafio de Paulo de vez em quando ainda se faz presente; as mais importantes tentativas de retornar s origens fracassam como heresias (tambm com o prprio Tertuliano), com Orgenes, Clemente de Alexandria, etc. o neoplatonismo e o estoicismo so cada vez mais incorporados na imagem de mundo crist, at que finalmente, sob Constantino, o cristianismo devm parte orgnica, principal sustentao ideolgica do imprio romano.

    19. Certamente no se deve perder de vista que, no obstante todas suas transformaes fundamentais, a imagem de mundo originria da cristandade sempre manteve sua estrutura bimundana: uma concepo do mundo dos seres humanos, teleologicamente fundada, no qual se realiza seu destino, no qual seu comportamento define sua salvao ou sua danao, e um mundo compreensivo, teleologicamente ainda superior, csmico-transcendente, de deus, cujo ser constitui a garantia ontolgica ltima da indubitabilidade do poder de deus na realidade terrena; o cosmos , desse modo, o fundamento ontolgico e objeto visvel do poder de deus. Como quer que a teologia e a filosofia, ento a ela subordinada, tenham interpretado os traos principais e os detalhes de uma tal imagem de mundo e de Agostinho a Toms de Aquino havia uma massa de teorias divergentes , a religio e a Igreja puderam conservar intacta esta base ontolgica atravs de muitos sculos; apesar das muitas dificuldades dogmtico-ontolgicas causadas pelo colapso da parsia enquanto perspectiva real e, em ntima conexo com esta, pela adaptao da moral crist s facticidades sociais e polticas existentes a cada momento, em oposio ao radicalismo tico do prprio Jesus. Visto que para a vida dos seres humanos as exigncias do dia, da sociedade onde tm que operar, so antes de tudo decisivas, quando se prescinde das exigncias postas por uma perspectiva de futuro dada por inevitvel (tal como de incio era a parsia), ento os problemas concretos do imprio romano tardio, da sociedade feudal em suas diversas fases, tinham conferir contedo concreto finalidade qual tinha de estar orientada a construo da ontologia das esferas superiores. Tudo quanto na

  • 9revelao originria contradissesse tais exigncias e a superestrutura ontolgica correspondente devia, quando proferida com pretenso religiosa, conduzir heresia e, enquanto tal, era extirpada, isso quando fracassava a tentativa de adapt-las, com adequadas atenuaes, s necessidades dominantes, tal como ocorreu com o movimento de reforma de Francisco de Assis.

    20. Como conseqncia necessria deste desenvolvimento, a ontologia originria, que refutava radicalmente tanto a imagem de mundo normal-cotidiana quanto a cientfica, perde sempre mais sua relevncia atual, muito embora sem jamais ser explicitamente negada mas, ao contrrio, retida enquanto um fundo decorativo sagrado. Esta a razo pela qual repetem-se na Igreja as parsias substitutivas, como o Terceiro Reino de Joaquim das Flores, como em sentido preponderantemente terreno-poltico em Dante, etc. Porm, apesar de todas estas transformaes, permaneceram inabalados os princpios mais importantes da ontologia religiosa: o carter teleolgico do cosmo e do desenvolvimento social, a construo antropocntrica (e, por esta razo, necessariamente geocntrica) do cosmo que, governado pela onipotncia de deus exercida teleologicamente , faz da vida humana terrena o centro, prprio ao ser humano e protegido na transcendncia, do universo. Enquanto esta ontologia pudesse ser transformada em razo da mudana no ambiente social que concretiza a necessidade religiosa, enquanto ainda fosse possvel para a Igreja realizar esta adaptao recproca entre ontologia e moral socialmente clara e religiosamente garantida, no estava sob ameaa o seu poder espiritual. As descobertas cientficas do perodo do florescimento e da crise insipiente, juntamente com as vises filosficas que lhes acompanhavam, puderam ser integradas, com mais ou menos dificuldade, no sistema ontolgico dominante; no caso extremo, a doutrina da dupla verdade fornecia uma espcie de asilo intelectual para a cincia.

    21. Somente com as descobertas de Coprnico, Kepler e Galileu colocou-se para a ontologia uma situao fundamentalmente nova. Na verdade, o colapso do sistema geocntrico poderia ser condenado como heresia, com todas as conseqncias da decorrentes, mas a sua vigncia social, seus efeitos sobre a prxis social no podiam mais ser detidos por tais expedientes. Certamente no um acaso que a centralidade ontolgica de uma semelhante descoberta cientfica coincida, histrica e temporalmente, com a impossibilidade social de reprimi-la por tais meios. Em todo caso, a exploso do conflito no caso de Galileu indica aqui uma mudana no destino da ontologia religiosa. Enquanto em fases precedentes a teoria da dupla verdade fora concebida para proteger o desenvolvimento da cincia sombra da aparentemente inabalvel ontologia religiosa, agora a Igreja, a ideologia religiosa oficial recorria teoria da dupla verdade ao menos para salvar temporariamente o quanto de sua ontologia que no gostaria de ceder. Esta virada usualmente associada ao nome do Cardeal Bellarmino. (Na verdade tal linha foi tambm sustentada por outros). A questo repetidamente discutida na histria da cincia. Brecht, em seu drama sobre Galileu, faz o Cardeal Bellarmino expor de maneira cnica e clara a nova verso da dupla verdade: Vamos nos adequar aos tempos, Barberini. Quando novas cartas astronmicas, baseadas em novas hipteses, facilitam a navegao de nossos marinheiros, eles devem us-las. A ns desagradam apenas as teorias que falsificam a Escritura.8 Do ponto de vista da honestidade no desejo de conhecer a realidade, a dupla verdade sempre teve em si qualquer coisa de uma postura cnica. Tal carter se refora agora quando no se trata de obter um pouco de espao para um conhecimento antes reprimido ou condenado extino, mas sim de manter intacta, com a ajuda deste conhecimento no plano organizativo, a validade oficial de uma ontologia. 8 Brecht, B. Stcke VIII, Berlin, 1957, p. 94.

  • 10No entanto, este cinismo expressa a percepo instintivamente correta da nova situao por parte da Igreja: para a nova classe dominante em ascenso, para a burguesia, o desenvolvimento ilimitado das cincias, sobretudo das cincias naturais, era uma questo vital. Esta no teria jamais se conformado com uma resoluo da Igreja segundo a qual os novos conhecimentos no deveriam ser utilizados para melhor dominar as foras naturais. Por esta razo, a atitude diante da objetividade real, diante da questo de se as verdades das cincias naturais reproduzem efetivamente a realidade objetiva ou apenas rendem possvel sua manipulao prtica, domina a filosofia burguesa desde os dias de Bellarmino at hoje e determina sua posio em todos os problemas ontolgicos.

    22. Naturalmente, o compromisso bellarminiano no consegue jamais bloquear totalmente as repercusses que a ruptura com a posio especial da terra, csmica e ontologicamente, pode ter no plano das concepes de mundo. O fato de que na poca em que a Igreja exercia pleno domnio muitos cientistas e filsofos se vissem na contingncia de empregar uma linguagem esopiana sobre tais complexos em nada altera a linha histrico-universal. Esta linha consiste no irresistvel avano da ontologia fundada sobre as cincias da natureza. A filosofia de Pascal exibe de maneira mais clara possvel como tal linha influiu sobre os crentes cristos. O seu sentimento profundo da solido csmica do ser humano, a necessidade de poder obter todas as categorias de uma vida humana intimamente crist no mais de uma imagem de mundo vista desde a tica da salvao csmica mas, ao contrrio, meramente de uma nova lgica da autonomia humana, uma lgica do corao, como dizia Pascal, mostra o quanto profundamente a nova ontologia penetrou no pensamento. Na filosofia burguesa sucede uma polarizao crescente. De um lado, surgem correntes, de Hobes a Helvetius, de Spinosa a Diderot, que assumem a tarefa de acolher e aperfeioar a inteira herana da Renascena, de completar coerentemente a nova ontologia, sempre reforada pelas ulteriores conquistas da cincia. Por outro lado, surgem tambm, sob o impacto dos acontecimentos mundiais, pensadores importantes e influentes que pretendem conferir fundamentaes terico-gnosiolgicas ao cinismo poltico-eclesistico bellarminiano. Basta recordar, a este propsito, Berkeley e Kant a despeito todas as diferenas entre ambos quanto s questes de princpio. O elemento comum aos dois pensadores consiste, no essencial, em demonstrar gnosiologicamente que no possvel atribuir qualquer significado ontolgico ao nosso conhecimento do mundo material. Se, ento, estas tendncias gnosiolgicas chegam a devolver religio (Berkeley sob a influncia do compromisso de classe da Glorious Revolution) seu antigo direito de determinar a ontologia pois precisamente disto consiste a religio ou se, j sob a influncia do Iluminismo e da Revoluo Francesa, ambicionam meramente uma Religio no interior dos limites da razo pura, indiferente no que diz respeito ao nosso problema. Em ambos os casos, o funcionamento do conhecimento da natureza em cada cincia singular em sua objetividade prtico-imanente deixado gnosiologicamente intacto, ao lado de uma negao igualmente gnosiolgica de toda ontologizao de seus resultados, de todo reconhecimento da existncia dos objetos em si, independentes da conscincia cognoscente; e, por conseguinte, indiferente desde o ponto de vista do problema que aqui tratamos, se se refere a uma conscincia humana real ou de uma conscincia em geral.

    23. A filosofia do sculo XIX dominada por tais concepes. O breve impulso na direo de uma renovao do materialismo filosfico no mundo burgus sobretudo sob o efeito das descobertas revolucionrias de Darwin que, com respeito origem do ser humano aponta para uma nova ontologia, da mesma forma que a seu tempo o fizera o heliocentrismo revelou-se apenas um episdio, antes de tudo porque a filosofia burguesa no mais capaz de

  • 11criar a universalidade e o mpeto de um Hobbes ou Diderot. (O marxismo trataremos em um captulo especfico.) As correntes dominantes da filosofia burguesa mantiveram-se fiis ao compromisso bellarminiano, e o aprofundaram na direo de uma pura teoria do conhecimento, de orientao resolutamente antiontolgica; pense-se como os neokantianos expurgam cada vez mais energicamente a coisa-em-si kantiana da gnosiologia, pois nem mesmo uma realidade ontolgica por princpio incognoscvel deve ser reconhecida.

    24. No entanto, tambm na realidade religiosa a ser salva desvaneceu o contedo ontolgico. Foi com Schleiermacher que esta tendncia ganhou sua primeira, decisiva e mais influente forma por todo um sculo. No importa aqui que mais tarde ele vertesse muita gua no vinho termidoriano dos Discursos sobre a Religio; pois no se deve esquecer que o seu autor foi igualmente o autor de Cartas Confidenciais sobre a Lucinda de Friedrich Schlegels. Neste primeiro manifesto teolgico da nova corrente, a religio transforma-se em mero sentimento subjetivo, no sentimento da absoluta dependncia do ser humano das potncias csmicas tornadas annimas, subjetiva e arbitrariamente concebveis e configurveis. Schleiermacher nega apaixonadamente que as doutrinas de uma religio real possam contradizer a fsica ou a psicologia. O milagre no outra coisa seno a objetivao da admirao com relao a um fenmeno da vida; quanto mais religioso se , tanto mais milagre se v em toda parte. Tambm a revelao adquire uma forma puramente subjetiva que pode conter em si toda viso originria e nova do universo. Com isso, mesmo desde a perspectiva desta nova e purificada religiosidade, a multiplicidade das religies concebida como algo necessrio e inevitvel, uma vez que ningum pode impedir um ser humano de formar para si uma religio de acordo com sua natureza e seu entendimento.9 Este banimento radical de toda ontologia dogmtica obrigatria na esfera da religio representa objetiva e historicamente no apenas a supresso por princpio de toda possvel contradio entre religio e cincia ou filosofia, mas igualmente a supresso da religio enquanto formao objetivamente obrigatria.

    25. Hegel j tinha compreendido isso com clareza no incio de seu perodo de Jena, e provavelmente antes tomar conhecimento dos Discursos sobre a Religio, rejeitara-os ironicamente. Vislumbrou tal tendncia na aproximao recproca das religies, tendncia que em nossos dias transformou-se numa questo central do mundo religioso movimentos ecumnicos. Um partido quando se dissocia em si. Assim se d com o protestantismo, cujas diferenas devem agora desembocar em tentativas unionistas; uma prova de que no mais. Porque na dissociao a diferena interna constitui-se como realidade. Com o advento do protestantismo cessaram todos os cismas do catolicismo.10 No temos que investigar aqui como se deu este desenvolvimento no sculo XIX. Mas certo que a influncia do Schleiermacher tardio, mais moderado, mais teolgico, impera at Harnack e Troeltsch. Em compensao, na passagem do sculo seu radicalismo originrio entusiasticamente acolhido, em conexo com um renascimento geral das idias religiosas. Quando, por exemplo, Simmel escreve: A relao do filho piedoso com seus pais, do patriota entusiasmado com sua ptria ou, do mesmo modo, do cosmopolita com a humanidade; a relao do trabalhador com sua classe em luta para elevar-se ou do orgulhoso nobre feudal com sua classe; a relao do subordinado com seu dominador, sob cuja influncia se encontra, ou do verdadeiro soldado ao seu exrcito todas estas relaes com um contedo to variado poderiam possuir porm, considerando a forma de seu lado psquico, algo em

    9 Schleiermacher. ber die Religion, Obras Selecionadas IV, Leipzig, 1911, pp. 280-81, 355, 360. 10 Rosenkranz, K. G.W.F. Hegels Leben. Berlin, 1844, pp. 538-38.

  • 12comum que se deve qualificar de religioso,11 fica de todo evidente que se trata de uma continuao direta dos Discursos. A repercusso mais importante para o futuro para a concepo religiosa desprendida das tradies ontolgicas, a kierkegaardiana, pode ser aqui somente mencionada; o seu efeito internacional imediato antes escasso entre os contemporneos, da porque uma sua avaliao mais aprofundada tornou-se um problema importante somente para nosso sculo.

    26. Com respeito s filosofias profanas j sublinhamos a tendncia decisiva: o domnio exclusivo da teoria do conhecimento, o afastamento sempre mais decisivo e refinado de todos os problemas ontolgicos do mbito da filosofia. A j mencionada atitude dos neokantianos em relao questo da coisa em si coincide no final do sculo com um forte advento de um positivismo de novo gnero. Tratava-se de um movimento internacional. Embora o efeito do neokantismo seja tambm visvel fora da Alemanha, sua ubiqidade amplamente ultrapassada pelo positivismo. No que diz respeito ao nosso problema importante assinalar, sobretudo, que as diversas correntes desta tendncia (empiriocriticismo, pragmatismo, etc.) pem de lado sempre mais resolutamente o valor objetivo da verdade do conhecimento, ainda predominante no neokantismo, muito embora neste no se relacione realidade existente em si, e procuram substituir a verdade pelas posies de finalidade prtico-imediatas. A substituio do conhecimento da realidade por uma manipulao dos objetos indispensveis na prtica imediata ultrapassa neste ponto o neokantismo, embora seja certo que o pensamento de neokantianos singulares basta citar aqui Vaihinger move-se espontaneamente nesta direo. Igualmente evidentes so as convergncias gnosiolgicas entre Bergson, que tenta uma nova metafsica, e o pragmatismo, entre a gnosiologia de Nietzsche e o positivismo de seu tempo. Neste caso pode-se falar tranqilamente, sem levar em conta as vrias nuances que com freqncia do margem a violentas controvrsias, de uma tendncia geral da poca que, em ltima anlise, pretende a eliminao definitiva de todo critrio objetivo de verdade, procurando substitu-los pelos procedimentos que tornam possvel uma ilimitada manipulao, corretamente operativa, dos fatos praticamente importantes. Naturalmente, contra-tendncias esto sempre igualmente presentes, e j nos referimos h pouco a Nietzsche e Bergson, que reclamaram a pretenso de uma metafsica. No entanto, nestes casos torna-se claro como estreitas conexes vinculam posies aparentemente extremas da filosofia contempornea. Nietzsche e Bergson desejavam e pensavam poder fundar uma nova metafsica, poder apresentar em meio ao relativismo moderno os fatos ltimos da realidade e, com isso, o termo estranho a ambos, mas que fora subjetivamente intencionado a prpria coisa se encarrega de mostrar , poder chegar a uma nova ontologia. Tal ontologia, entretanto, permaneceu objetivamente encerrada no quadro do positivismo gnosiolgico e representa, objetivamente, nada mais do que um expressar pattico do extremo polarmente oposto, mas interno, do positivismo: a problemtica daquela subjetividade que, tornada abstrata e desterrada por intermdio da manipulao positivista, no est em condies de encontrar na prpria realidade um lugar para exprimir-se, muito embora esteja j em sua antiteticidade incindivelmente associada ao mundo manipulado.

    27. Com isso, descobre-se o vnculo do positivismo com o mundo religioso contemporneo: no positivismo a religiosidade moderna encontra a filosofia que pode conectar sua concepo de deus e do mundo com o pensamento mais moderno, mais cientfico. Tal solidariedade irrompe no somente quando Duhem julga cientificamente mais correto o ponto de vista de 11 Simmel, G. Die Religion. Frankfurt/Main, 1906, pp. 28-9.

  • 13Bellarmino do que o de Galileu, no apenas no convencionalismo radical de Poincar, no s porque do pragmatismo de James desenvolve-se uma teoria da religio moderna antiontolgica, no imposta a ningum , mas tambm quando uma parte dos marxistas russos se volta para o positivismo de Avenarius e Mach e, em seguida, um pensador to brilhante quanto Lunatscharski transforma-se em um buscador de deus.

    28. Com a crise mundial introduzida pela erupo da Guerra Mundial de 1914 todos esses problemas apresentam-se em um nvel superior; no so mais formas de expresso de antagonismos ideolgicos que, em geral, permanecem latentes, mas claras formas de expresso de uma situao mundial de crise geral e duradoura.