gilroy_negro para futuro (entre campos parte3)

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· . Centro de Documentação e Informação Polis Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais G392 Gilroy, Paul .Entre nações, cultura e o fascínio da raça. f Paul Gilroy. 1'radur,:ão de CeJia Mana Mannho de Azevedo et al.- São Paulo: Annablume 2007 416p.;16x23cm ' . Tradução de "Between camps: natio/ls, cuttures and lhe alíure 01 race" London and NewYork: Routledge, 2004 ' ISBN 978-85-7419_736_4 1. Relações Raciais. 2. Raça. 3. Racismo. 4.Identidade Negra. 5. Cultura Política. 6. Fascismo. 7. Identidade Cultural. 8. DIreitos Humanos. l.Tttulo. II. Azevedo, Célia M,-,', Marinho. ' CDU 323.12 COD 301.451 ENTRE CAMPOS NAÇÓES, CULTURAS E O FASCíNIO DA RAÇA Coordenação editorial Joaquim Antonio Pereira Diagramação Rai Lopes Capa Carlos Clémcn CONSELHO EDITORIAL Eduardo Penuda Caâizal Norval Baitello Júnior Maria Odila Leite da Silva Dias Celia Maria Marinho de Azevedo Gustavo Bernardo Krause Maria de Lourdes Sekeff Cecilia de Almeida Salles Pedro Jacobi Lucrécia D' Alessio Ferrara J' edição: agosto de 2007 © Paul Gilroy ANNABLUME editora. comunicação Rua Padre Carvalho, 275 . Pinheiros 05427-100. São Paulo. SP. Brasil 1'e1. e Fax. (Oll) 3812-6764 - Televendas 3031-9727 www.annablume.com.br AGRADECIMENTOS ESTE PROJETO foi concluído graças ao benefício de uma bolsa de estudo [SOC/253 (279)] que me foi facultada pela Nuffield Social Science Foundation. Gostaria de agradecer a este organismo pelo apoio que me permitiu ficar por um ano sem lecionar. Inúmeras pessoas nos mais diversos lugares abriram mão de seu precioso tempo para me auxiliar em diferentes aspectos deste trabalho. Elas sabem quem são e foi uma honra contar com sua generosidade e amizade. Seus nomes estão indicados de um modo arbitrário abaixo, mas todas elas deveriam constar de mais de uma categoria. Nenhuma delas é responsável por meus erros e falhas. É preciso que eu agradeça em especial pela amizade, pelos diálogos estimulantes e pelas críticas profundas a este projeto a Hedda Ekerwald, Vikki Bell, Angela McRobbie, Les Back, Horni Bhabha, Stuart Hall, Greta Slobin, Mark Slobin, Flemming Rogilds, S. M. Islam, Gloria Watkinse VronWare.Foi importante receber o,incentivo e apoio de Chris Connery, Jim Clifford, bell hooks, Mandy Rose, Brenda Kelly, Jon Savage, Michael Denning, Patrick Wright, Hazel Carby, Isaac Julien, Beryl Gilroy, Arme-Marie Fortier e lain Chambers. David Okuefuna, Everlyn Nicodemus, Kristian Romare, Dr. Tricia Bohn, Monique Guillory, Mandy Rose outra vez, Joe Sim, Patrick Hagopian, Graham Lock/Taylor, Ben Karpf Juergen Heinrichs, Stephanie Sears e Robert A. Hill ajudaram-me com itens específicos de informação, livros, fitas, vídeos, artigos, etc. Preciso também agradecer a Roman Horak pelo seu auxílio em encontrar o túmulo de Jean Améry em Viena; Jaqueline Nassy Brown pelo material referente a Josef Nassy; Nina Rosenblum e Bill Miles pela informação sobre o destino lamentável de seu importante filme Liberators; Benita Ludmer pelos recortes da imprensa francesa sobre o pogrom de outubro de 1961 e o julgamento de Papon: e Larry Grossberg pelo envio de material sobre os campos POW para soldados alemães na Carolina do Norte. Val Wilmer, Laura Yow, Jayna Brown, Amanda Sebesteyen e Nikolas Rose por terem todos eles me passado materiais de suas

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Page 1: GILROY_Negro Para Futuro (Entre Campos Parte3)

· . Centro de Documentação e InformaçãoPolis Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais

G392 Gilroy, Paul

.Entre セ。ューッウZ nações, cultura e o fascínio da raça. f Paul Gilroy. 1'radur,:ão de CeJiaMana Mannho de Azevedo et al.- São Paulo: Annablume 2007

416p.;16x23cm ' .

Tradução de "Between camps: natio/ls, cuttures and lhe alíure 01 race" London andNewYork: Routledge, 2004 '

ISBN 978-85-7419_736_4

1. Relações Raciais. 2. Raça. 3. Racismo. 4.Identidade Negra. 5. Cultura Política.6. Fascismo. 7. Identidade Cultural. 8. DIreitos Humanos. l.Tttulo. II. Azevedo, Célia M,-,',Marinho. '

CDU 323.12COD 301.451

ENTRE CAMPOSNAÇÓES, CULTURAS E O FASCíNIO DA RAÇA

Coordenação editorial

Joaquim Antonio Pereira

Diagramação

Rai Lopes

Capa

Carlos Clémcn

CONSELHO EDITORIALEduardo Penuda Caâizal

Norval Baitello JúniorMaria Odila Leite da Silva Dias

Celia Maria Marinho de AzevedoGustavo Bernardo KrauseMaria de Lourdes SekeffCecilia de Almeida Salles

Pedro JacobiLucrécia D' Alessio Ferrara

J' edição: agosto de 2007

© Paul Gilroy

ANNABLUME editora. comunicaçãoRua Padre Carvalho, 275 . Pinheiros05427-100. São Paulo. SP. Brasil

1'e1. e Fax. (Oll) 3812-6764 - Televendas 3031-9727www.annablume.com.br

AGRADECIMENTOS

ESTE PROJETO foi concluído graças ao benefício de uma bolsa de estudo[SOC/253 (279)] que me foi facultada pela Nuffield Social Science Foundation.Gostaria de agradecer a este organismo pelo apoio que me permitiu ficar por umano sem lecionar.

Inúmeras pessoas nos mais diversos lugares abriram mão de seu preciosotempo para me auxiliar em diferentes aspectos deste trabalho. Elas sabem quemsão e foi uma honra contar com sua generosidade e amizade. Seus nomes estãoindicados de um modo arbitrário abaixo, mas todas elas deveriam constar de maisde uma categoria. Nenhuma delas é responsável por meus erros e falhas.

É preciso que eu agradeça em especial pela amizade, pelos diálogosestimulantes e pelas críticas profundas a este projeto a Hedda Ekerwald, VikkiBell, Angela McRobbie, Les Back, Horni Bhabha, Stuart Hall, Greta Slobin, MarkSlobin, Flemming Rogilds, S. M. Islam, GloriaWatkinse VronWare.Foi importantereceber o, incentivo e apoio de Chris Connery, Jim Clifford, bell hooks, MandyRose, Brenda Kelly, Jon Savage, Michael Denning, Patrick Wright, Hazel Carby,Isaac Julien, Beryl Gilroy, Arme-Marie Fortier e lain Chambers.

David Okuefuna, Everlyn Nicodemus, Kristian Romare, Dr. Tricia Bohn,Monique Guillory, Mandy Rose outra vez, Joe Sim, Patrick Hagopian, GrahamLock/Taylor, Ben Karpf Juergen Heinrichs, Stephanie Sears e Robert A. Hillajudaram-me com itens específicos de informação, livros, fitas, vídeos, artigos,etc. Preciso também agradecer a Roman Horak pelo seu auxílio em encontrar otúmulo de Jean Améry em Viena; Jaqueline Nassy Brown pelo material referentea Josef Nassy; Nina Rosenblum e Bill Miles pela informação sobre o destinolamentável de seu importante filme Liberators; Benita Ludmer pelos recortes daimprensa francesa sobre o pogrom de outubro de 1961 e o julgamento de Papon:e Larry Grossberg pelo envio de material sobre os campos POW para soldadosalemães na Carolina do Norte. Val Wilmer, Laura Yow, Jayna Brown, AmandaSebesteyen e Nikolas Rose por terem todos eles me passado materiais de suas

Page 2: GILROY_Negro Para Futuro (Entre Campos Parte3)

IIIO NEGRO PARA O FUTURO

A humanidade está à espera de alguma outracoisa que não seja a imitação cega do passado. Sequisermos dar um passo adiante, se quisermos virar uma

nova página e realmente chegar a um novo homem,devemos começar por tirar o gênero humano da longa edesoladora noite de violência. Será que o novo homem

que o mundo necessita não é o homem não-violento?

MARTIN LUTHER KING, JR.

Page 3: GILROY_Negro Para Futuro (Entre Campos Parte3)

7"TUDO SOBRE OS BENJAMINS":

NEGRITUDE MULTlCULTURAL - EMPRESARIAL,

COMERCIAL E OPOSICIONÍSTICA

Oh, meu corpo, faça de mim sempre um homem que interrogue!

FRANTZFANON

Se você usasse calça jeans tamanho 34, você a compraria no tamanho 40simplesmente porque não queremos nossos jeans ajustados aos nossos traseiros.Elas não foram desenhadas para as pessoas negras. As pessoas negras têm umacerta constituição física - os homens negros e as mulheres negras. Essas outrasempresas desenham com a mente fixa naquele freguês com cara de secundarista deescola de elite, que não são as pessoas negras. É aqui que chego ao meu ponto. Aspessoas vêem as pessoas negras como lançadores de tendências, elas observam oque estamos fazendo e querem fazer o mesmo, pensando que será a próxima grandeonda. Elas tentam nos tirar coisas o tempo todo. A gfriaque inventamos acaba emcamisetas. Nós não estamos fazendo nenhuma camiseta.

KARLKANI

o PERÍODO em que a raciología genômica articulou a nanopolítica também

envolveu conflitos amargos com relação ao status cívico e comercial das diferençasculturais. O multiculturalismo foi atacado pelos advogados da homogeneidade

absoluta, mas conjurado contra eles pelos seus oponentes: os apóstolos de umadiversidade igualmente absoluta. As ações de ambos os grupos deixaram de lado e

sem respostas as especulações deterministas da sociobiologia ressurgente. As forçasradicais anteriores foram confundidas pelo cálculo centrado na particularidade que

projeta a identidade cultural não como uma relação, mas sim como um mero produtoda similaridade ou da diferença. Como vimos no capítulo anterior, para tornar ascoisas ainda piores, os absolutistas de amhos os lados da linha de cor desenvolveramum conjunto de concepções compartilhadas sobre o que é a cultura e a natureza deseu vínculo com as "raças".

Page 4: GILROY_Negro Para Futuro (Entre Campos Parte3)

I ENTRE CAMPOS •• Nações, CuLturas e o Fascínio da Raça I

o multiculturalismo tem relações igualmente incômodas com os vocabulários

concorrentes do pluralismo liberal c da especulação pós-marxiana. Ambos lutaram

por fazer uso dele em suas distintas tentativas de reviver a prática da política e

adaptá-la às novas circunstâncias. O multiculturalismo encontrou expressão em

um manual para empresários, publicado pela Cable Network News (CNN) e foi

injuriado pelos conservadores como uma nova forma de racismo. I É possível que

não tenha sido politizado de forma adequada, mas com a dissolução da mercadologia

de massa ele certamente se tornou uma consideração comercial dominante. A sua

vida empresarial tem sido estimulada pelo fato de que na era da mercadologia com

alvos precisos, o apelo dos rostos e estilos negros não precisa mais ficar restrito

aos consumidores negros. Estas mudanças profundas estimularam pedidos de

Informação exótica e autenticamente interna que foram atendidos com entusiasmo

por um novo contingente de agentes culturais: uma vanguarda hip dos negócios da

diferença.Em dezembro de 1996 Spikc Lee, que tem sido a figura de proa de uma boa

parte desse movimento, anunciou uma colaboração comercial sem precedentes

com o gigante da publicidade da Avenida Madison, a DDB Needham, uma unidade

do Grupo Omnicom que detém marcas de consumo prestigiosas como McDonald's

e Budweiser. A sua associação próxima com a firma levou rapidamente à formação

de uma nova agência de publicidade chamada Spike/DDB, com Lee como acionista

majoritário com 51 por cento das ações no papel combinado de "presidente e

diretor de criação". Este novo casamento empresarial foi histórico em si mesmo e

não apenas pelo fato de a DDB ter reconhecido a posição mesma de Spike como

uma marca da cultura popular, referindo-se a ele como um "ícone" na declaração

que apresentou formalmente o novo empreendimento comercial. A nova companhia

lançou um imprimátur empresarial respeitável com base na percepção de que agora

o "consumidor urbano" americano (vocês sabem a quem eles se referem) estabelece

os padrões planetários para a comercialização e o uso de alguns produtos altamente

lucrativos. Isto mostra que a indústria cultural está preparada para fazer investimentos

substanciais na negritude desde que ela permita uma "leitura" ou tradução

costumeira e amigável, doméstica e comcrcializável do vernáculo obstinado que já

não pode mais ser chamado de contra-cultura.

1. Slavoj Zizek, "Multiculturalism _ A New Racism?" New Lefl Review 225 (setembro-outubro,1997).

I 288 I

I PAUL GILROY I

De acordo com o International Herald Tribune, após seis meses de

funcionamento, a nova companhia havia "acumulado uma robusta lista de clientes

com futuras estimadas em $35 milhões." Lee, que havia dirigido os comerciais da

Levis, AT&T, Snapple e Nike bem antes deste empreendimento, insistiu em dizer

que a sua agência não visa especificamente os afro-americanos, mas que está

lançando os produtos de seus clientes para um público maior de consumidores

mais jovens, firmadores de tendências, voltados para os esportes e para a moda

que compõem o "mercado urbano". As necessidades do afro-americano, ou mesmo

das culturas políticas atlânticas negras, só podem parecer provincianas quando

contrastadas com estas reluzentes possibilidades pós-tradicionais. Os proprietários

da Budweiser; o conglomerado de indústrias de cerveja Anheuser-Busch, retribuíram

os favores de Lee com o patrocínio de um circuito promocional e a pré-estréia de

Gel on the Bus em 1996, o filme de longa metragem de Lee sobre a Marcha deUm Milhão de Homens.

Diversos interesses políticos tentaram em vão reivindicar para si o prêmio

exclusivo do multiculturalismo, mas esse conceito sobrecarregado e básico não se

refere a qualquer posição filosófica ou política prontamente identificável. Seu

significado ainda está sendo determinado em um processo de largo alcance,

conflituoso e, nos dias de hoje, em aberto. Esses conflitos abarcaram questões de

integridade e de valor cultural, mas foram além delas, liberando uma energia política

que pode nos levar diretamente ao coração do pensamento contemporâneo sobrea democracia cosmopolita.

O tempo destas hostilidades tem sido ditado pelas controvérsias sobre a

idéia de nacionalidade, a mutação do caráter dos Estados-nação e as formas de

similaridade que eles podem reivindicar do conjunto de seus cidadãos hetcrcculmrais.

Por seu turno, esses conflitos produziram uma ansiedade com relação às dificuldades

envolvidas em se manter a pureza cultural e biológica em resposta aos efeitos

corrosivos da diferenciação, manifestada sobretudo na presença de povos pós-

coloniais - sempre fora de lugar - no centro de antigas redes imperiais. Subjacente

a todos esses medos há ainda mais uma questão: se os encontros inescapãveis

com a diferença poderiam ser compreendidos como tendo qualquer espécie devalor positivo.

2. Stuart Elliot, "Spike Lee Tries for Main Street", lntemotionai Herald Tnbune, 10 de julho de1997.

I 289 I

Page 5: GILROY_Negro Para Futuro (Entre Campos Parte3)

ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça

Outros elementos da grande agenda política e ética à qual os discursos do

multiculturalismo proporcionam um índex oportuno têm sido também revelados

pela intensidade absoluta das discussões que giram em torno do legado racional,moral e estético da civilização ocidental. Isto tem sido simbolizado pela condição

desesperadora do sistema educacional onde o multiculturalismo adquiriu um forte

dialeto institucional, além da função desenvolvimentista exercida pelas instituiçõespúblicas imperiais como o museu em suas atribuições de coletar, racionalizar, por àmostra e reproduzir tanto a cultura como a civilização. 3 O multiculturalismo tem se

desenvolvido bem distintamente nessas diversas áreas de política social e política

num sentido mais amplo. Ele apareceu em modos de insurgência pública e

transgressão privada e ainda está sendo arrolado de várias maneiras: no tratamentodos medos em relação ao cânone do pensamento ocidental; na avaliação da

autoridade contemporânea em matéria de empenho científico e valor estético; no

esclarecimento da crise das humanidades nas quais o cruzamento de fronteiras

intelectuais e o questionamento onde tenham sido traçadas linhas limítrofes (entre

culturas e disciplinas acadêmicas) sugeriram roteiros promissores em direção a

novas formas de conhecimento. Mais fundamental ainda, em um tempo de

planetarização e desenvolvimento tecnológico acelerado, quando a política e o

significado de locação, presença e proximidade estão sendo ativamente recompostos

e repensados, o multiculturalismo tem se desenvolvido para interrogar o significadoda nacionalidade como um princípio de coesão social e para criticar tentativas

irrefletidas de manter a Europa como o grande desdobramento do inocente e

privilegiado centro da história. Por fim, o mulriculturalismo também poderia ser

entendido como um sinal que marca o fim da hegemonia da Europa no mundo das

idéias. Ela não mais usufrui um monopólio especial de acesso às modernidades

científicas, éticas e estéticas.

A imprecisão obstinada do multiculturalismo apenas acentuou a capacidadedo conceito tanto para nomear as formas especiais de risco que fazem perigar a

nação nos dias de hoje, como para auxiliar na definição de alternativas emergentes

e utópicas em relação à coerência da cultura desbranqucada com os esmaecidos

limites do Estado-nação. Desligado de suas associações com a diferença

intransponível e absoluta e reconfigurado com uma percepção mais abrangente do

3. James Clifford, Routes: Traveiand Translation ín the Late Twenticth Cemury (Harvard UniversityPress, 1997).

290

PAUL GILROY 1

poder desigualmente desenvolvido de relações subnacionais (locais) esupranacionais, o rnulticulturalismo pode forçar os nacionalismos, bem como as

explicações biosociais de raça e etnicidade, a ocupar posturas mais defensivas. A

legitimidade destas posturas, a escala com que elas entendem a solidariedade e aexclusão da agência humana por elas têm sido questionadas como um todo em

nome da consciência cosmopolita, constituída onde o vínculo histórico entre culturas

e nações foi rompido. A própria recorrência do termo "multiculturalismo" em tantos

cenários discrepantes estabelece vínculos entre eles e sugere que eles possam

estar apresentando os vários sintomas de uma transformação social comum.

Com O acréscimo daquele fatídico prefixo "multi", camadas sucessivas de

conflito foram tecidas ao redor do conceito central de cultura. Este conceito emergiudesse casulo como um significante dominante: tão poderoso atualmente como o de

justiça, direito, liberdade e razão devem ter sido já há muito tempo. Assim, há mais

em matéria de multiculturalismo do que o seu papel como um sinal especial para

demonstrar e articular as múltiplas pressões internas e externas que atuam sobre o

Estado-nação. Pretendo abordá-lo aqui não como um objetivo claramente delineado,

ou como uma condição reificada com a qual se pode finalmente comprometer, mas

sim como um princípio ético e mesmo estético que se guiou pelas distintasexperiências históricas da modernidade já observadas por nós e ratificadas pela

promessa específica e o dinamismo sincrético da vida metropolitana contemporânea.

Talvez possamos considerar o que significaria admitir, ao invés de evitar, as

implicações políticas do multiculturalismo. Essa acomodação em matéria de política

não precisa acarretar a traição da criatividade e da autonomia artística.

Embora seja algo raro admitir abertamente, para muitos de nós na Europa

estes argumentos tão expressivos sobre a cultura e a diferença, assim como a

relação da nacionalidade com o poder e a história, reavivam as desfalecidas imagens

posteriores do passado colonial e imperial. O significado residual desses contornos

na retina do imaginário nacional é assinalado por respostas sombrias em demasia àpresença supostamente disruptiva dos povos pós-coloniais no cerne conflituoso da

vida social metropolitana. Para os críticos e outras almas corajosas, preparadas

para navegar nas águas mais revoltas da política cultural contemporânea, aquela

história imperial um tanto esquecida, ainda está presente e forte, embora permaneça

latente e invisível em grande parte, tal qual um grande rochedo debaixo da superfíciedo mar. Os vestígios da modernidade imperial - a sua memória social contestada -

podem ser apreendidos somente de forma intermitente, mas podem ainda produzir

um material volátil, mesmo se nos dias de hoje são ainda as diferenças culturais,

291

Page 6: GILROY_Negro Para Futuro (Entre Campos Parte3)

I ENTRE CAMPOS •• Naçoes, lULturas e o rescmtc da Raça I

em vez da franca inferioridade biológica desses povos (pós) coloniais, que criamalarme e definem a ameaça representada por eles à monocultura insegura.

Reinventado tanto quanto nostalgicamente rememorado, o passado imperial

filtrado toma-se investido de um novo poder de alivio." Ele proporciona conforto

contra o choque da perda do Império e a percepção do seu declínio nacional.Através da Europa, memórias de grandeza imperial são um elemento potente e

negligenciado no apelo ressurgente dos neo-fascismos confiantes uma vez mais

em si mesmos, assim como nas estratégias populistas e nacionalistas delineadas

por governos preocupados em flanquear seus apelos eleitorais. Elas também sãopoderosamente atuantes nas definições antropológicas de humanidade do século

XIX que ainda proporcionam o solo sobre o qual julgamentos de verdade, beleza e

bondade são feitos em termos rotineiros.' Os efeitos duradouros deste legado

constituem questões urgentes para os críticos. A situação complicada de Salman

Rushdie demonstra amplamente que foi a arte e a cultura, e não a ciência e a

razão, que melhor supriram o racismo imbuído de uma orientação cultural,

confirmando a visão deste último sobre a existência de modos de vida absolutamente

incompatíveis. Precisamos nos indagar se a produção e a recepção de arte poderiamagora oferecer alguma contribuição de valor para lima compreensão provocativa

pós-antropológica tanto de cultura como de humanidade. As formas vernaculares

de prática artística já romperam com os pontos de vista estáveis que têm permitido

afirmações sobre estas importantes questões. O mundo imagético da multicultura

empresarial parece firmado a fazer algo semelhante.

ESTÁ NA M1STURA: CULTURA, PÕS-ANTROPOLOGlA

Pensadores pós-modernistas confessos chegam o mais perto possível doprojeto modernista quando eles questionam a figura do Homem, identificando o

papel deste último como um tropo integral das modernas ideologias de inumanidade

que apareceram durante os períodos coloniais e imperiais. Esta imagem de Homem

tem sido denunciada por alguns deles como uma transposição da duplicidade que

vinculou a racionalidade ao terror. A relação problemática entre modernidade e

barbarismo, progresso e catástrofe que foi elaborada no período nazista tomou-se

4. Renato RosaldO,Culture and Truth (Beacon Press, 1989).5. Annie E. Coombes, Reínveruing Africa: Museurns, Material Culture, and Popular tmaginatíon

(Yale University Press, 1994).

I 292 I

I PAUL GILROY I

paradigmática. Nos dias de hoje seria inapropriado e mesmo impossível anunciarum veredicto final sobre o seu significado. Nos lugares em que aquela relação é

sistematicamente relembrada, a busca pela finalidade benéfica de antro novocomeço é algo imoral, havendo muitas questões políticas e éticas importantes em

jogo sobre como se deveria comemorar aquele período de irracionalismo autoritário

e autoritarismo racional. Quero sugerir dois pontos: que as declarações sobre a

singularidade daquela catástrofe não deveriam ser prescritivas, e que reconhecerseu carãter específico não deveria significar que a expulsamos da história, e portanto

que teríamos cortado seus laços significativos com os modos de governo e disciplina

social que são considerados normais e compreensíveis em termos habituais, isso

quando não são vistos precisamente como benignos. As especulações rigorosas

de Adorno sobre as formas de criação artística que poderiam ser adequadas após

Auschwitz constituem ainda uma fonte preciosa para reflexões ulteriores.

Preocupações similares podem ser expressas numa chave distinta atualmente, nãoapenas quando lembramos aqueles horrores de modo a expor a imoralidade em

procurar situá-los exclusivamente atrás de nós, mas também quando observamos

a vitalidade constante dos fascismos que buscam subordinar o princípio nacional a

serviço da etnicidade absoluta e suas crenças ocultas.Nos dias de hoje, os conflitos políticos racializados permanecem

profundamente conectados com as mentalidades que produziram os fascismos e

as lógicas morais e económicas que os sancionaram. As carreiras reluzentes de

Jean-Marie Le Pen e Bruno Mégret são apenas os lembretes mais óbvios de queesta é mais do que uma doença britânica. Em muitos países, as respostas hostis à

diferenciação cultural, lingüística e religiosa, assim como o entusiasmo fascista

pela pureza, encontram-se dormentes no interior da mais benigna retórica patriótica

e do glamour da identidade nacional promovida por ela. Estas dificuldades emergem

das condições atuais, sendo que a natureza e o significado de quaisquer laços com

os horrores passados são enganosos. Quero sugerir que alguns formidáveis desafios

morais e políticos encontram-se nas respostas das sociedades européias ao racismo

contemporâneo e ao anti-sentitismo e que as disputas sobre o valor cultural e a

integridade étnica das culturas nacionais lhes são centrais. Estes problemas sãocolocados pela fortaleza do multinacionalismo oficial da Europa e pelas suas atitudes

indiferentes e intolerantes com relação à presença de refugiados, pessoas em busca

de asilo e outros "imigrantes", muitos dos quais, afinal, não são imigrantes em

absoluto, mas sim colonos-cidadãos que usufruíram de relações longas e íntimas

com a história e a cultura de suas pátrias inóspitas.

I 293

Page 7: GILROY_Negro Para Futuro (Entre Campos Parte3)

ENTRE CAMPOS :: Nações, Culturas e o Fascínio da Raça

Um relato bastante complexo dos encontros sucessivos da Europa com povosmaus, ignorantes e primitivos não produz nem uma sequência de episódios discretos

em algumas narrativas totalizantes da desrazão e nem uma prova conclusiva de

que os valores liberais, democráticos e humanos heróicos triunfarão sempre, demodo inevitável, sobre as forças "escuras". A avaliação do status de diferença na

Europa e para a Europa gera importantes discussões com relação àquilo que a

ordem supranacional vai se tomar. Tentativas presentes para recriar a cristandade

em oposição direta ao fundamentalismo islâmico anti-mcdemo também colocaram

a cultura numa posição privilegiada. Os corpos das mulheres suprem o palco noqual se representam os seus dramas." A avaliação da arte e da cultura constituiu

uma importante oportunidade em que o significado da heterogeneidade cultural

mesma, e não de culturas diferentes, tem sido ensaiado e trabalhado intensamente.

Algumas das questões mais apropriadas identificadas até agora nessas

conversações são as seguintes: podemos avançar em relação à idéia de que acultura existe exclusivamente em unidades nacionais localizadas e étnicas -

separadas mas iguais em termos de valor estético e humano? Que significado

conferimos às histórias de imperialismo e supremacia branca que estão tão

extensivamente enredadas com o desenvolvimento da estética moderna, seus

depósitos, coleções e museus e com as concepções antropológicas que direcionaram

a sua consolidação? Caso pudéssemos rejeitar os diagnósticos simplistas desta

situação, proporcionados pelo absolutismo étnico, como poderíamos começar a

moldar uma crítica cultural transversal ou de cruzamento? Qual é o papel da

expressiva criatividade cultural em mediar ou mesmo transcender as diferençasracializadas ou codificadas etnicamente? Que reconhecimento damos às formas

da prática cultural não-nacional e cruzada que já estão avançando espontaneamente

em termos de formas populares-culturais Oll desconceituadas, muitas das quais

têm suprido com fontes importantes o movimento social transnacional contra oracismo?

Já nos deparamos com o modo como essas questões foram tratadas nomomento em que ainda se desenrolavam as batalhas militares para liberar a África

do domínio colonial. Frantz Fanon as reformulou numa voz distinta, porém,

reconhecível. Importa repetir aqui suas palavras notórias:

6. Vron Ware, "Moments of Dangcf", History and Theory 31 (1992), pp. 115-[37.

294

PAUL GILROY

É uma questão do terceiro mundo começar uma nova história do Homem, umahistória que levará em consideração as teses por vezes prodigiosas aplicadas pelaEuropa, mas que também não se esquecerá dos crimes da Europa, sendo o maishorrível aquele que se cometeu 110 coração do homem, consistindo dodespedaçamento patológico de suas funções e da desintegração de sua unidade...Pela Europa, por nós mesmos e pela humanidade, camaradas, precisamos inventarnovosconceitos c pôr em ação um novo homem."

Deixando de lado por um momento a importante questão de se o

multiculturalismo poderia ser um desses novos e valiosos conceitos, devemos

reconhecer o fato de que Panon compreendia essa obrigação por meio de umcódigo binário quase tão pernicioso quanto o dualismo maniqueísta que ele procura

suplantar. Lembremos que a sua perspectiva liberacionista rígida em demasia era

um produto orgânico das guerras contra o nazismo e o colonialismo. Ela se

esparramava da vida social militarizada para a cidade colonial. Aqui ele observou

que as zonas de moradia respectivas do colonizador e do colonizado eram

mutuamente opostas, mas que a sua oposição não poderia ser reconciliada "a

serviço de uma unidade superior".8 Para ele, a ordem política e as regras espaciaisdistintas que configuravam a segregação colonial seriam elaboradas no sistema de

Apartheid. Elas alocavam as pessoas em dois grandes campos - mundos próximos,

porém não-sincronizados - que se encontravam muito raramente. Fanon nos conta

que o contato entre eles era mediado tão-somente pela brutalidade funcional da

polícia e dos militares que usufruíam de uma relação essencialmente permissiva

com o governo colonial, graças à flexibilidade da lei colonial.

Hoje, ao menos na Europa, há uma menor justificativa para este rígidodiagnóstico dualístico. Os bárbaros de outrora estão dentro dos portões e porventura

não vivem num gueto ou enclave formalmente segregado. As fronteiras da diferença

cultural não podem mais ser estabelecidas de modo congruente com as fronteiras

nacionais. As cidades não pertencem exclusivamente aos colonizadores e seus

próximos. Pode-se identificar áreas isoladas em que elementos da vida social colonial

persistem e medram, mas esses mundos urbanos tiram a sua vitalidade e muito do

seu apelo de variedades de cruzamento cultural - misturando-se e movendo-se - o

que exige a proximidade, quando não a presença, do Outro. Mais do que isso, as

7, Frantz Fanou. Wretched of Earth (Grove Prcss, 1963), pp. 254-255.8. Ibid., p. 30.

295

Page 8: GILROY_Negro Para Futuro (Entre Campos Parte3)

ENTRE CAMPOS .. Nações, CuLturas e o Fascinio da Raça

culturas dos nativos, não apenas o seu trabalho, podem agora ser compradas e

vendidas como mercadorias. As suas realizações exóticas são veneradas e exibidas(embora nem sempre como arte autêntica) e os frutos da alteridade alcançaram

um valor imediato, mesmo quando a companhia das pessoas que os colheram nãoé em si mesma desejada. Vimos que elementos selecionados da sua cultura

penetraram intensamente nas vidas do grupo dominante por meio das indústrias

culturais, as quais conseguem grandes lucros com essas atividades.

Assim como no tempo de Fanon, o conflito eventual entre esses grupos não

é algo que possa ser resolvido de um modo prematuro, claro ou dialético. É certoque esse conflito não deveria ser deslocado para um nível superior ou esconjurado

por meio do apelo a uma unidade mais elevada. Entretanto, as culturas expressivas

que se formaram nesses espaços urbanos poliglotas - culturas vemacularestransnacionais e translacionais - fornecem e celebram uma variedade de

interconexões que não só reconhecem a interdependência mas, no seu melhor

estilo insubordinado e carnavalesco, têm sido percebidas como projetando uma

imediação, uma solidariedade rebelde e uma frágil humanidade universal, forte o

bastante para de súbito tomar a raça e a etnicidade sem significado.Esta mensagem valiosa foi acenada muito tempo atrás por Rock contra o

Racismo e pelo movimento social mestiço que criou os seus sucessores em vários

pafses.? Mais de vinte anos após aquele movimento ter surgido pela primeira vez,

ele ainda se move, mas de forma mais tranqüila e de acordo com padrões

descentrados menos formais. Seus efeitos ainda são transmitidos em clubes de

estilo underground e em festas rave, na emissão de rádios piratas, e em esferas

publicas alternativas que envolvem estas iniciativas. As partes mais visíveis dessa

contra-cultura ainda têm suas bases na juventude e são de natureza positivamentemetropolitana, mas o movimento como um todo não pode ser reduzido àqueles

atributos. Uma incompatibilidade profunda com os estados de ânimo difundidos da

nostalgia colonial e imperial é mais importante para definir as formas de traição

simbólica promovida por aquela, bem como as possibilidades cosmopolitas e

democráticas engendradas por essas formas. Um novo estilo de dissidência tem

se reproduzido, sendo que nele formas discrepantes combinam entre si, entram em

conflito e se transformam em padrões promíscuos e caóticos, os quais requerem

9. Ver meu livro "Ain't No Black in the Union Jack": The Cultural Politics of Roce and Nation(Hutchínson, 1987), capítulo 4.

296

PAUL GILROY

que a política de influência, de adaptação e de assimilação seja repensada. Quem,afinal de contas, está agora sendo assimilado a quê? As implicações desta complexa

amálgama cultural estão reprimidas, e seja lá qual for o seu significado político,

elas têm sido negadas habitualmente pelos porta-vozes de todas as tendênciasnesta transação jovial. Este ainda emergente modo de vida com e através da

diferença é domesticado, truncado e amansado nas iniciativas multiculturais de

companhias como Benneton, Coke, Swatch, e McDonald's. Graças ao agenciamento

da Spike DDB e seus pares, o glamour da diferença vende bem.Compreender os eminentes sucessos do comércio multi cultural privatizado

requer uma genealogia revisada daquilo que costumava ser chamado de "culturas

jovens"," em termos ideais, uma genealogia que possa ligar a análise destes

fenômenos políticos contemporâneos com questões mais antigas como a ansiedadea respeito da influência degenerativa da musica negra sobre a juventude da Europa

nos anos de 1930 e l 940. Uma compreensão distinta do lugar da "raça" na Europa

está à espera de ser construída com base em materiais estimulantes como a'> ricas

especulações de Richard Wright sobre os choques subseqüentes ao fascismo. Ele

associou o crescimento do interesse na cultura negra com o clima moral e político

imediato:

Na medida em que milhões de brancos da Europa foram aterrorizados e golpeadospelo nazismo, foi naquela medida que eles receberam a música do Negro e a suaexpressãoliterária. Aqui ocorriauma tendênciaque a Américabranca não previraoucompreendera. Assim, o Negro se tornou em grande medida para a Europa, o únicoe isolado aspectohumanode um continentediferente,brutalmenteindustrializado.'!

o principal problema que enfrentamos ao tentar entender esses

desenvolvimentos e outros mais recentes é a falta de meios para descrever emtermos adequados, quando não teorizar, a intermistura, a fusão e o sincretismo sem

sugerir a existência de purezas anteriores "não-contaminadas". Estas seriam as

condições estáveis e consagradas que supostamente precedem o processo de

mistura e para onde, como se presume, seria possível um dia retomar. Não importa

10. Roger Hewirt, "Us and Them in lhe Late Space Age", Young, vol. 3, no. 2 (maio 1995), pp.23-34

11. Richard Wtight, "TheAmerican Problem - Its Negro Phase". in D. Ray e R. M. Pamsworth,orgs., Richard Wright: Impressione and Perspectives (Ann Arbor Paperbacks, 1971 I, p. J2.

297

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I ENTRE CAMPOS .. Nações, CuLturas e o Fascínio da Raça I

se o processo de mistura for apresentado como fatal ou redentor, devemos estarpreparados para desistir da ilusão de que uma pureza cultural e étnica tenha algum

dia existido, ou mesmo proporcionado um fundamento para a sociedade civil. Aausência de uma linguagem conceituai e crítica é salientada e complicada pela

acusação absurda de que as tentativas de empregar o conceito de hibridismo se

inviabilizariam totalmente devido aos resíduos ativos da articulação daquele termocom os vocabulários técnicos da ciência racial do século XIX.

A densidade das formas mistas e sempre impuras do presente demanda

novas analogias orgânicas e tecnológicas. A sua poética já está viva e à vontade.

Noções de mistura têm sido celebradas, não devendo nada ao mundo da biologia,

mas tudo ao trabalho habilidoso das mãos negras sobre os pratos giratórios das

vitrolas, liberados do papel de aparatos reprodutivos passivos e tornados produtivos

por meio do ato de duplicar, o que impulsionou uma nova criatividade e introduziu

um sentido de tempo musical infinito. A problemática das origens apareceu em umponto importante na estória das tipologias raciais e culturais modernistas. Embora

se torne irrelevante saber onde as peles mortas e velhas da particularidade étnica

e racial têm sido largadas, nunca é demais repetir que a desconstrução das "raças"

não é a mesma coisa que acabar com os racismos.

Não é tanto o fato que as origens múltiplas dessas formas densas e compostas

sejam desconhecidas, mas sim que a obrigação de descobri-las, que um dia foi tão

urgente, apareça agora como sem sentido e desconectada da sua legitimação e deseus prazeres. Sabemos de fato onde o híp-hop, reggae, soul e house tiveram

origem e podemos identificar as fontes históricas, tecnológicas e culturais que os

constituíram, porém esta informação não contribui para situá-los e nem para estimar

as suas conseqüências contemporâneas. A obsessão modernista com as origens

pode ser abandonada à medida que as culturas itinerantes se propagam através de

meios imprevistos e continuam por rotas desconhecidas em direçâo a destinos não

antecipados. A viagem em si mesma contribui para um sentido de multiplicidade,

cujo exemplo mais pertinente advém de padrões utópicos - tecnicamente sem lugar

definido - de uso cultural, constituídos em tomo da música popular. A própriadisseminação cultural caótica em circuitos cada vez mais elaborados usufrui de

uma relação complicada com as tecnologias que conquistaram a distância,

comprimiram o tempo e pediram novas formas de identificação entre os criadores

das formas culturais, dos humores, dos estilos e os vários grupos de usuários que

podem viver longe do lugar em que um objeto ou evento foi de início concebido.Esta arte é despachada em formas provisórias e não terminadas que antecipam

298 I

I PAUL GILROV 1

acréscimos ulteriores e fluem numa economia comunicativa, cuja norma reguladora

é a reciclagem criativa ao invés do abandono imoral.Com a sua força bíblica algo diluída, a idéia de diãspora pode ser útil outra

vez neste ponto. Ela complementa o equilíbrio antifônico da esfera pública escondida,

formada às voltas com a feitura e uso da música negra. A diáspora abre caminho

para uma concepção complexa de similitude e para versões de solidariedade quenão precisam reprimir as diferenças no interior de um grupo disperso de modo a

maximizar as diferenças entre uma comunidade "essencial" e as outras. O

desconforto da diáspora em relação às noções de cultura descuidadamente

superintegradas, bem como seu sentido algo fissurado de particularidade, pode

também se tomar ajustado às melhores disposições do pós-modernismo politizado.

A identidade concebida em termos diaspóricos resiste à reificação em formas

petrificadas mesmo nos casos em que elas são indubitavelmente autênticas. Astensões em tomo da origem e da essência que a diáspora permite visualizar nos

levam a perceber que a identidade não deveria ser fossilizada por meio da

manutenção do espírito sagrado do absolutismo étnico. Também a identidade torna-

se um substantivo do processo. A sua abertura proporciona uma alternativa oportuna

à solidariedade automática, fundada em noções antiquadas de "raça" e idéias

controvertidas de pertencimento nacional."

A história destas culturas políticas subalternas e de seus vínculos enredados

com a ascensão e globalização gradual das indústrias culturais também cabe aqui.O multi culturalismo empresarial observado acima simulou as celebrações da

diferença das culturas subalternas e estabeleceu uma versão domesticada dos

padrões de desagregação cultural delas, fazendo-as funcionar como parte de suas

operações de marketing. Estas culturas vernáculas têm uma relação ambivalente

com O mundo empresarial e articulam com frequência uma hostilidade aberta em

relação a ele. A menção a estas culturas e sua simulação não reproduz o seu vasto

investimento ético em matéria de interação face a face, corpo a corpo, de tempo

real. O privilégio distintivo conferido ao processo de atuação e seus rituais já foi

colocado sob pressão pelas habilidades instrumentais em processo de perda deespecialização. A tecnologia digital materializou uma diferente noção de autoria,

promovendo um sentido de cultura que não pode ser confinado aos códigos legais

e habituais que a supõem como propriedade individual.

[2. Percebo fortes afinidades aqui com o argumento esboçado por Rosi Braídoui em "Sexual Differenceas a Nomadic Polirical Projecr", em Nomadic Subjects (Columbia University Press, [994).

299 I

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I ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça I

Este afrouxamento das declarações de propriedade também deu licença

aos publicitários e criadores de ícones para apropriar-se do vigor das contra-culturas

racializadas e espoliá-las. A solidariedade da proximidade dá lugar à intersubje-

tividade sem face de tecnologias comunicativas como a Internet. A comercialização

de esportes e de mercadorias esportivas, assim como as formas de heroísmo que

essas operações demandam, tornou-se uma contrapartida vitalista à prática

sedentária de postar-se vidrado numa tela. Estas são as condições arriscadas em

que os investimentos na diversidade emergem como um novo veículo para valores

alternativos, supostamente não maculados pelo capitalismo, pela tecncciência e

pelo comércio.

Algumas das mais antigas aventuras amorosas da Europa com nobres e

primitivos selvagens estão sendo reanimados. Aquilo que é eufemisticamente

chamado de "world music" preenche este momento com uma trilha sonora

adequada. Podemos observar a fome de formas culturais que permanecem fora

da imoralidade e da corrupção do mundo superdescnvolvido, mas que aprisionam o

Outro primitivo em uma fantasia de inocência que pode apenas ser catastrófico

para todos os lados envolvidos nisso. Este perigo se forma quando os interesses

dos consumidores românticos começam a convergir com aqueles de pessoas de

dentro das comunidades de minoria que querem impor outra definição de etnicidade

invariante (e portanto autêntica) por força de suas próprias razões disciplinares

dúbias. Particularidades lingüfsticas, tradicionais e locais podem estar todas em

perigo devido aos efeitos niveladores do multiculturalísmo empresarial, mas em

resposta àquela ameaça não precisamos escolher entre fetichizar e, portanto,

capitular diante da sua diferença imutável, ou decidir pelo seu simples esvaziamento

ou apagamento. Há um grande perigo quando o absolutismo é endossado cegamente

pelas instituições culturais, as quais recuam num sentido ossificado de diferença

étnica como meio de racionalizar suas próprias práticas e juízos numa paródia de

pluralismo que incorpora a segregação em termos perversos.

Em nosso tempo, Fanou, cujo trabalho permite tantas reflexões preciosas,

torna-sepouco útil precisamente porque seu pensamento permanece ligado à lógica

dualístíca que devemos abjurar ao indagarmos em que a análise de cultura e de

desenvolvimento da política cultural (e política social) poderia contribuir para o

novo humanismo concitado por ele trinta anos atrás. Esta não é agora, ou melhor,

não é apenas, uma questão do Terceiro Mundo iniciar um novo humanismo menos

triunfalista, o que pode ser a sua própria oferenda específica para a civilização,

mas uma questão de se construir com base nas narrativas e poéticas da intermistura

I 300 I

I PAUL GILROY I

cultural já atuantes nas culturas populares pós-coloniais da Europa, pennitindo-se

visualizar como essas posições polares já se tornaram redundantes.

Minha sugestão é que, ao considerar o status da diferença, trabalhemos

para adotar uma postura mais orientada para o futuro e que façamos o máximo de

nossa oportunidade histórica para repensar toda a questão de como se atribui valor

às formas culturais e diferenças étnicas. Ao fazê-lo, podemos incentivar as

contingências não imaginadas de valor racializado. Isto deveria ser feito não para

dizermos com uma afetada pseudotolerância que tudo é de alguma forma tão bom

quanto tudo mais, mas para que possamos falar com confiança de algum lugar em

particular e desenvolver não apenas as nossas habilidades de tradução, mas também

a difícil linguagem do juízo comparativo (não homologizante). Este programa tem

como premissa a idéia de que quaisquer descobertas que possamos fazer poderiam

transformar a nossa compreensão das culturas a partir das quais nós mesmos

imaginamos falar, assim como as culturas que nos esforçamos - sempre de forma

imperfeita - em julgar.

o NEGRO É APENAS BIOLÓGICO

As divisões de classe no interior das comunidades negras têm sido realçadas

pela emergência da cultura de consumo pós-moderna. Contudo, em vez de aceitar

a lógica econômica e social desta mudança histórica, o absolutismo étnico tem

concordado com os nacionalismos nostálgicos, afirmando que a "raça" continua a

ser o modo de divisão principal em todas as circunstâncias contemporâneas, que a

cultura negra está ainda intacta em essência, e que um padrão identificável de

experiências e atributos corporais podem servir para vincular os negros

independentemente da sua riqueza ou saúde, seu gênero, religião, situação, ou

hábitos políticos e ideológicos.Estas proposições duvidosas são inteiramente compatíveis com a ênfase

cultural desenvolvida pela multicultura empresarial e pelo marketing étnico em

mira, o qual requer que marcas globais se comuniquem simultaneamente com

consumidores em muitas e diferentes línguas. Elas têm sido severamente testadas

pelas mudanças recentes na cultura tradicional, centrada na representação e na

cultura expressiva do Atlântico negro, onde - ao contrário das expectativas dos

nacionalistas tanto de tendência biológica como cultural - as respostas específicas

de classe e gênero à perda do vínculo essencial têm sido sempre evidentes. Essa

cultura vernacuJar pode ser usada para se examinar a batalha entre as opiniões em

I 301

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ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça

moda, e por vezes fascistas, que consideram o corpo como um sinal de diferença

absoluta e uma outra perspectiva em que o corpo emerge atestando umaconfirmação irônica da similaridade essencial do ser humano. Até o dia em que a

cor da pele não tenha maior significado do que a cor dos olhos, haverá guerra. As

hostilidades estão sendo conduzidas em ambos os lados da linha de cor.Devemos seguir Fanon também aqui. Há mais a dizer sobre o corpo, os

padrões de solidariedade e identificação estabelecidos pelo mundo do corpo, e os

processos de anatomia política, epidermização e nanopolítica que lá ocorrem. Épreciso lembrar, para começar, que o corpo negro raramente fala para si mesmo.

Alguns sempre verão uma cicatriz na carne torturada. Outros preferem perceberos contornos mais agradáveis de uma árvore chokeberry. Beloved [Querida] de

Toni Morrison, de onde se tira essa imagem impressionante, parece-me sugerir

que mesmo se é por demais difícil esquecer as memórias incorporadas, a decisão

de deixar de lado as reivindicações da carne e de romper com o seu pacto especial

com o trauma passado, não precisa ser sempre ilegítima ou destituída de ética. Em

segundo lugar, deveríamos questionar os modos como o corpo emergiu como uma

âncora nas correntes tempestuosas da política de identidade. No capítulo 5, vimos

que o corpo tomou-se o meio através do qual, tanto a liberdade individual, quanto a

solidariedade racial, são constrangidas à própria vida. Esses corpos negros já nãoexistem para serem fiscalizados pelas almas que sobreviveriam a eles, como se

imaginava anteriormente. Não há almas aqui; elas têm sido banidas pela afirmação

fatal da vitalidade carnal e corpórea, celebrada por Tupac, Biggie, e companhia. O

entusiasmo com que isso foi assumido remete-nos à observação perturbadora de

Fanon a respeito da importância das fantasias em tomo da potência e atividade

corporal no cenário colonial maniqueísta e imóvel - o mundo das estátuas dasupremacia branca:

A primeira coisa que o nativo aprende é ficar DO seu lugar e não ultrapassar certoslimites. É por isso que seus sonhos são sempre de façanha muscular; seus sonhossão de ação e de agressão. Sonho que estou saltando, nadando, correndo,escalando;sonho que caí na risada, que cruzei um rio em uma braçada,ou que souseguidopor um montede automóveisque nuncame alcançam...o nativo nuncapárade realizar sua liberdade das nove da manhã até seis ela noíte."

13. Fanon, The Wretched ofthe Earth, p. 40.

302

PAUL GIlROY

Spike DDB e outros negociantes empresariais da cultura negra enriquecerampor ter assegurado que esses não são mais apenas os sonhos dos nativos. Esquemas

corporais semelhantes têm sido demandados, projetados e mediados por novos

veículos tecnológicos e por indústrias culturais que ultrapassam substancialmenteo poder do rádio, o qual chamou a atenção de Fanon como um meio de dirigir

sensibilidades revolucionárias para a esfera pública oposicionista da Argélia anti-

colonial. Os sucessores do homem nativo saltitante de Fanon são visíveis em todo

lugar no mundo imagético da multi cultura empresarial. A sua excepcional destreza

física empresta as suas qualidades mágicas à venda de mercadorias comocosméticos, sapatos esporti vos e roupas, sendo que todos eles promovem formas

complexas de mímica, intimidade, e talvez mesmo de solidariedade através da

linha de cor. Você vai acreditar que um homem pode voar.

Não sabemos se Fanon havia se deparado com a Olympiad de Leni

Riefenstahl, mas a sua pesquisa clínica e suas andanças metropolitanas o levaram

a observar a significância de Joc Louis e lesse Owens'" (que foi também, porsinal, um dos primeiros atletas a aparecer em anúncios da Coca-Cola). O

pressentimento inicial de Panon em relação ao que seria uma grande mudança

histórica continua instrutivo, e é ainda mais impressionante por ter se dado tanto

tempo antes da industrialização e da mercadorização da saúde e da boa forma

corporal, nas quais os negros têm sido tão proeminentes:

Há uma expressão que tem se tornado singularmenteerotizada ao longo do tempo:o atleta negro. Há algo nessa simples idéia, como me confidenciou uma jovemmulher, que faz com que o coração bata mais rápido."

As imagens da vitalidade negra forneceram as flores mais vistosas para asgrinaldas da pós-modernidade, sendo que os bionacíonalistas, que consideram que

o corpo permite uma confirmação tardia da hierarquia racial, têm sido especialmenteávidos em reivindicá-lo. Seus apelos apareceram em várias formas enquanto

afirmações em defesa da diferença racial substantiva e mesmo da superioridade

negra. Seja qual for o pretexto, eles sempre atuam em conjunção com os

determinismos genéticos e biológicos que são agora proclamados, não apenas pelos

14. Frantz Panou, Black Skin. White MOIks, tradução de Charles Lam (Markrnan, Phuo Press. 1986[19521, p. 166.

15. Ibid., p. 158.

303

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I ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça I

ideólogos do Bel! Curve IA Curva do Sino] com a sua ciência biosocíal mecanicista,

mas também pelas versões igualmente perniciosas nascidas do âmbito de idéias

das próprias comunidades negras. Não compartilho da postura de John Hobermanem matéria de abertura positi va à idéia de diferenças raciais biomédicas, mas é

muito valiosa a sua detalhada enumeração crítica dos danos causados aos interesses

políticos negros nos Estados Unidos pela romantização racializada das proezas

esportivas." Os debates de senso comum sobre o significado do sucesso atlético

negro mobilizaram tanto novas teorias científicas, como mitos já gastos pelo tempo.Reciclaram-se e retrabalharam-se aspectos da raciologia científica e do primitivismo

em moldes que trouxeram atrativos para as culturas de compensação com as

quais muitos negros respondem à sua pobreza e miséria.

Como um exemplo interessante desta tendência popular, temos as

apresentações da melanina pigmentar como uma medida dermal e nanopolítico dafisicalidade superior negra, apresentações essas pseudocienrfficas, da Nova Era e

ocultistas." Partindo-se da sua publicação por editoras independentes e distribuiçãoatravés de redes subterrâneas, esta reversão em matéria de relatos ITÚStiCOS e pré-

Boas sobre a diferença racial usufruiu de um considerável renascimento durante

os anos 1990. Uma versão cautelosa e ainda nominalmente científica desses

argumentos foi apresentada por um professor da Howard University, T. Owens

Moore, em A Ciência da Melanina: dissipando os mitos." Sua abordagempessimista num estilo Nova Era relaciona esses temas explosivos a uma discussão

anódina dos suplementos vitamínicos e minerais recomendados pelos "nutricionistas

africano-centristas" e comercializados como PROMELANIN 2000 pela empresa

Khem Sei Nutrition. O sabor moral e político do projeto melaninista emerge do

trabalho de autodidatas como Carol Bames que é um exemplo típico de quem nãose restringe a nenhum protocolo acadêmico:

16. John Hoberman, Darwin'sAthletes; How Sport Has Damaged BlackAmerica and Preserved lheMyth ofRace (Houghton Mlfflin, 1997).Este livro controvertido foi debatido em um simpósioespecial a seu respeitona Iruemational Reviewfor lhe Sociology ofSport, vor. 33,no. I (março1998).

17. Bernard R. Ortiz de Monrellano, "Melanin, Afrocentricity, and Pseudoscience", Yearbook ufPhysical Anthropology 36 (199:1), pp. 33-58.

18. T. Owens Moore, lhe Sctence 01 Melanin: Dispelling lhe Myths (Beckham Hnuse Publishers,Inc., 1995).

I 304 I

I PAUL GILROY I

oque faz a CULTURA NEGRA? Por que os HUMANOS NEGROS se expressam deum modo singular e distinto de qualquer outra espécie humana não-NEGRA? Porque nós ... DANÇAMOS - CANTAMOS - nos VESTIMOS - ANDAMOS/CORREMOS - COZINHAMOS - RIMOS/CHORAMOS - JOGAMOS FlJTEBOUBASQUETEBOL - PENSAMOS - TRABALHAMOS ETC ...diferentemente de outrasraças? Se você comparar as CULTURAS NEGRAS em todo o mundo, você ficaráfeliz em perceber que os HUMANOS NEGROS não são diferentes! De um extremoao outro do globo, você descobrirá que os humanos negros são EXPRESSIVOS _COLORIDOS - CRIATIVOS -lNDUSlRIOSOS - GENEROSOS - IMPUDENIES...talqual o seu vizinho do outro lado da ma ou da cidade. Todas as "Indústrias" criadase prcjetadas pelo HUMANO NEGRO (e pela cultura dele) serão "RICAS" em essênciae profundidade! Mesmo quando o HUMANO NEGRO é pobre, os recursos com queele trabalha podem ser limitados, mas o produto que ele produz será bem preparadoe EXPRESSIVO.IA força condutora deste traço do HUMANO NEGRO é a MELANINA química!"

Durante muito tempo fiquei cismado com estas frases curiosas, que nasimagens de vizinhança e comunidade parecem articular um anseio por uma escala

perdida de socialidade na medida mesmo em que transmitem um gosto pela alquimia

vã da hipersimilaridade e invariabilidade absoluta. O trabalho está bem presente

nesta utopia segregada em que a biologia expulsou toda a diferença. Esta é uma

utopia que acrescenta veracidade ao mais antigo dos estereótipos racistas ereenergiza um surrado vitorianismo. Os tropas do "humanismo" de Barnes

impressionam também. Não é de surpreender que a proeza masculina das quadras

esportivas e outras representações populares da excelência nos esportes

proporcione a esse autor uma figura chave: elas criam o clima em que a superioridade

negra aparece como plausível. Finalmente, podemos saber porque os homens

brancos não podem saltar. Mas isto não é a transcendência da raça - jogada água

abaixo pela força do vínculo fraternal - como era no filme com aquele título. É em

parte uma reconciliação com padrões mais antigos para reificar a raça por meiodos ícones da fisicalidade negra. Renuncia-se a técnicas mais modernas de

organização da relação entre corpo e alma na alegre redução do corpo negro à sua

superioridade natural, física, bioquimicamente programada. Esses seres raciais

"expressivos, coloridos, criativos, industriosos, generosos, impudentes" não são

nada além dos seus corpos. "O negro é apenas biológico", disse Fanon. Não se

19. Carol Bames,Melanin: The Chemical Key to Black Greatness, vol. 1, Stack GreatnessSéries (C.B. Publishers, 1988),p. 53.

I 305 I

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ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça

trata de uma identidade negra sendo acorrentada ao corpo, pois isso apresentaria

a possibilidade de separação - de romper as cadeias.E, no entanto, mesmo entre os "melaninistas" mais ardentes, as tecnologias

do ser racializado aparecem inevitavelmente. Mesmo sob esta lei férrea da biologia

racial, as pessoas precisam ser induzidas a assumir a identidade aprovada. Elasprecisam ser ensinadas a recobrar e a relembrar a potência da melanina em seus

órgãos, sendo treinadas de modo que possam atentar uma vez mais para os modos

como os seus corpos - concebidos em termos nanopolíticos e divididos aqui nas

unidades de suas células - dirigem-se a elas e a cada uma delas através do cantodas sereias da memória racial coletiva (nunca individual). Como um artigo da revista

afrocentrista britânica The Alann alertou seus leitores:

A velocidade com que se perde a ligação com a poderosa influência da Melaninasobreo ser espiritual está diretamenterelacionadacom o volumede socialização e"educação" européias recebidas...as avenidas para os nossos centros de Melaninaficamparcialmente bloqueadas pelanossaadcção das dietasocidentais,da poluiçãoambiental e dos modosde pensamento. Comoa Melaninaagc como umaantena ouum aparelho receptor de alta precisão, ela irá ressoar com harmonia qualquerocorrênciaem nossomeio ambiente. Portanto,se você se cercarde forçasnegativas(na suafamília, localde trabalho,vidasocial,ou a comidaruim quevocêconsome),estas vão alterar psicológica e neurologicamente aquilo que age para preservar asua Melanina."

o artigo de onde se tirou a citação acima discute o papel da melanina natransmissão de mensagens a partir de fontes profundas, especialmente as de

frequências de baixo profundo. De maneira semelhante, Owens Moore propôs

este estranho programa antiquado de pesquisa cultural melaninista:

Hoje o tambor é usado em todas as formas de música negra. A música rap, emespeci.al, é um fenômenoafricanoque merece serpesquisado. Fazer músicaa partirde batidas não é uma tarefa fácil e requer um funcionamento avançadodo cérebro.Mover-se ritmicamente, ficar dentro do compasso, pensar, criar e lembrar-se daspalavrasé uma habilidade alcançadapor muito poucos fora da comunidade negra.As estruturas subcorticais do cérebro nos gânglios basais que são responsáveispelo movimento e pela intercomunicação entre os dois hemisférios devem operar

20. G Peart, "More Than the Colour of My Skin", Scíence Pocus, The Alann, 9 (novembro J994),p.25.

306

PAUL GILROY I

num nível superiordo cérebro, funcionando de modoa produzirumaforma musicalcomo o rapo Estudos com base no cletroencefalograma poderiam ser feitos paramedir a atividade cerebral dos rappers hábeis versus os inábeis."

Tendo em mente estas tristes propostas, podemos novamente abordar o

circuito elétrico planetário da cultura vemacular negra através da apropriada figura

de R. Kel1y. Esse crooner com sua cabeça raspada também precisa ser lembrado

por ter construído sua carreira na intersecção das culturas jovens emergentes,

baseadas em esportes e computação, e aquelas ainda baseadas em música e dançaem termos residuais. Nesse cruzamento, Kelly celebrou a eloqüência do corpo

negro com a sua canção "Your Body's Calling" [O Seu Corpo Está Chamando]. A

sua afirmação característica dos poderes comunicativos do corpo singular deveria

servir como lembrete de que a carne preta EXPRESSIVA pode ser dada a falar

em diversas línguas. A profecia Resta de Bob Marley de que vai haver guerra até

que a cor da pele não tenha maior significado do que a cor dos olhos também saltaà mente mais uma vez aqui, e não apenas porque o seu reconhecido humanismo

anti-colonial continua a fazer novos adeptos entre pessoas de todas as partes do

globo. Podemos nos perguntar se O idioma declinante da escatologia jamaicana

apoiada por Bob era até certo ponto menos física em termos dinâmicos do que a

cultura privatizada do esporte-utilidade, cujo melhor porta-voz é R. Kelly. Ao

contrário do corpo íntegro preferido pelas bizarras mulheres desonradas e pelos

saudáveis homens atletas que parecem do mesmo modo ter servido de inspiraçãoa KeUy, a frase poderosa de Bob põe o corpo contra si mesmo ao perseguir o

projeto de extirpar a supremacia branca de sua racionalidade. Para ele, o corpo

negro não era nem salutar, nem íntegro. Ele não poderia falar com uma voz. Olhos

e pele, componentes do corpo com potencial comunicativo equivalente na era

anterior às tatuagens obrigatórias, transmitiam mensagens opostas sobre as verdades

materiais da raça e da sua significação social. Como se percebeu, esse controvertido

processo de significação era a questão principal.O impulso biopolítico para apresentar o corpo como um símbolo de

solidariedade é comum a uma extensão bem maior de pensamento político negro

do que estes exemplos ardilosos sugerem. Ele vincula o ocultismo absoluto daqueles

que acreditam na melanina como a garantia da superioridade negra aos escritos de

teor biológico menos óbvio de autores mais respeitáveis em termos acadêmicos,

21. Moore, The Science ofMelanin, p. 124.

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que poderiam mesmo se opor a algumas das posições políticas adotadas no pontode confluência da ciência racial do século XVIII e do nacionalismo milenaristaamericocentrista. O corpo e sua semiose vieram para abrigar uma batalha majestosana qual esses interesses distintos lutam pelo prazer de anexar os poderescomunicativos especiais do soma aos seus concorrentes regimes de representação.

Há ainda uma outra moda mais mística de teorias de particularidade racialcentrada na idéia de atributos comuns codificados na carne preta. Somosfreqüentemente concitados a descobrir esses códigos assumindo o que uma modadifundida a partir da revista lmage (imbuindo o homem de cor de poder) descreveucomo "a jornada interior" em uma série de fotos que apresentam uma seleção devestimentas masculinas refinadas modeladas em um ambiente africano simulado.Algumas páginas depois, o significado total dessa implosão tornou-se explícito numaimagem que havia sido reproduzida também na capa da revista (ver ilustração 1).

A poesia e a fotografia de Michael Gunn deixaram claras as dimensões destaconstrução de poder interior. Era patriótico, religioso, másculo, e exclusivamentevoltado para o passado. Permite, entretanto, percepções reais da condição culturalda América negra no período que vai da agressão policial a Rodney King à Marchade um Milhão de Homens da Nação do Islã. As palavras de Gunn ressoam muitoforte num desses períodos da cultura política afro-americano quando a integridadeda "raça" como um todo era então definida em termos exclusivos como aintegridade de seus conterrâneos homens. O seu status inferior era identificadocomo o resultado do modo de masculinidade específico da raça que havia sidoprejudicado pelas operações da supremacia branca ao longo da escravidão e desdeentão. Uma vez mais, a masculinidade negra tornou-se o foco das atividadesreformadoras e compensatórias que se fundavam sobre a capacidade da raça deagir em busca de seus interesses mais abrangentes e próprios dela. Isto envolviaum projeto político que era entendido em linhas nacionalistas e que, portanto,dependia ainda mais crucialmente do poder revolucionário da nação minoritáriapara reproduzir a si mesma em formas viris apropriadas. A masculinidade eratanto o catalisador necessário quanto o resultado premiado daquele processoreprodutivo.

I 308 I

I PAUL GILROY I

A representação vigorosa de Michael Gunn sobre as formas desofrimento dos afro-americanos foi capa de Image.

A virilidade dos afro-americanos tinha de ser renovada e emendada paraque o seu destino político progredisse.

Uma esmerada literatura de auto-ajuda, auto-análise e auto-estima cresceuem torno da idéia de que na medida em que a masculinidade expie suas faltas eassim se redima, ela pode transformar a condição sofrida daqueles que passarampor procedimentos de castração simbólica que lhes negam acesso aos benefíciospessoais e políticos de uma autêntica condição masculina. Na ausência destaintervenção, muito tempo depois que a escravidão e a segregação tivessem sidodesmanteladas, os homens negros estariam fadados a continuar como meros garotosnum mundo dominado e manipulado pela fratriarquia de homens de verdade cujostatus superior é transmitido por sua brancura em comum. Presa em meio àstrágicas sombras lançadas por heróis mortos e maiores que a vida, extraídos estesmais provavelmente dos mundos do esporte e do entretenimento do que da arenada política oficial, a crise da vida negra foi apreendida de modo plausível epersistente, mas erroneamente, como uma crise de masculinidade negra. De umlado havia as figuras desgraçadas de homens, porém peculiarmente heróicas, como

I 309

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ENTRE CAMPOS :: Nações, Culturas e o Fascinio da Raça

O. J. Simpson, Tupac Shakur, e O prefeito Marion Barry, enquanto de outro ademanda bem intencionada por modelos de papéis positivos era então acenada.

Apelos em defesa da educação segregada por género e da reinstitucicnalização da

família centrada na figura do pai podiam ser ouvidos em meio a um novo discurso

fraternal sobre as patologias múltiplas da vida social matrifocal. Pode-se apreendera imagem de Gunn através destas linhas:

Meu país ti teuIstoé o que me fizeram400 anos.Sou o homem que você trouxe para cá à força.Sou o homem que cultivou os seus campos.Sou o homemque lutou em guerrasnão criadas por mim.Sou o homem que limpou banheiros que nem poderia usar.Observe que eu não profano a bandeiraEu a levanto, tentando me agarrar à idéia do "Sonho Americano"Mas as marcasde meu corpo são a prova de minha existência aquí."

No mesmo período, uma versão mais sofisticada de alguns destes temassurgiu em meio à outra polida polémica neonacionalisra, como uma contribuição da

respeitada poeta e acadêmica Elizabeth Alexander ao catálogo de uma exposição

intitulada "Homem Negro: Representações da Masculinidade na Arte

Contemporânea Americana", realizada inicialmente no Museu Whitney de New

YorkY Numa extraordinária convergência com as preocupações melaninistas,

ela elegeu como tema central da sua polêmica contra os "discursos anti-

essencialistas, pós-identidade", a idéia de que os negros americanos compartilham

uma memória social comum e corporificada. Ao comentar os casos de Rodney

King, Emmett Till e Frederick Douglass, nos termos da abordagem estabelecidapela eminente crítica literária Hortense Spillers, Alexander identificou um "texto

carregado na carne", composto de memórias "ancestrais" de terror. A potência

simbólica tradicional do mero sangue era então reconhecida como insuficiente. De

22. Image, vol. 1, no. 3 (Janeiro 1995). A imagem recebeu a legenda de "O Preço do Sonho", sendoposta à venda no formato de um cartaz pelo fotógrafo e poeta Michael Gunn, 1231 1 ChandlcrBlvd., Suíte 31, North Hollywood, CA 91607.

23. Elizabeth Alexander, '''Can You Be Black and Look as This?': Reading lhe Rodney King vídeo",in Black Male Representations oj Mascuíínity in Contemporary American An, org. ThelmaGolden (Whitney Museum, 1994). Reproduzido também em Public Cultura, vol. 7, no. 4(1994).

310

PAUL GILROY I

certo modo. este "texto" escondido dotava a carne preta de habilidades cognitivas

especiais. Ele fixava os limites da coletividade racial como um todo, permitindo

com que Alexander, que se declarava abertamente contrária a enveredar pelas"reduções biológicas da 'raça' e pelos freios artificiosos da 'cultura', passasse a

"falar sobre o 'meu povo'". Naquele momento, as pessoas constituíam um sujeito

político e histórico inteiramente indiferenciado que poderia ser despertado de seu

estado rotineiro de anestesia ao assistir o vídeo de 81 segundos de George Holliday

com cenas do espancamento de Rodney King. A reação das pessoas não era o

resultado de uma justa ira moral, política, ou cívica diante dessa injustiça já tão

familiar, mas resultava em vez disso da memória racial compartilhada.

Alexander não teve a oportunidade de discutir o corpo do falecido Eazy E,

mas este nos permite mais uma exposição controvertida do cenário sombrio deste

escuro continente. Assim como ocorreu com as mais recentes lamentações

desencadeadas pela perda daquelas figuras imortais, Biggie e Tupac, o incómodotrabalho de rememorar Eric Wright, o criador do gangsta rap, oferece um dado

adicional interessante à procissão de heróis respeitáveis, apresentada por Alexander.

Não sei quantas vezes Eric assistiu àquele vídeo histórico, mas a melanina e a

memória de raça em suas células gangsta não Oimpediram de apoiar as declarações

do policial Theodore 1. Briseno - um dos agressores de Rodney King. Ao contrário

dos melaninistas, Alexander não explora a questão de como essa memória comum

pode ser esquecida, ou que mecanismos sociais relacionam-se com a sua repressão

ou apagamento.

Após folhear a edição de junho de 1995 de The Source que homenageou a

vida de Eazy e suas contribuições à cultura negra vernacular, deparei-me com odifícil problema de como diferenciar o trabalho de memória organizado em torno

de sua vida e morte e os processos sociais e culturais examinados por Alexander.

Será que a "tradição de contar estórias", motivo nítido de orgulho para ela, não

poderia ser aperfeiçoada elemodo a incluir a complexa narrativa de Eazy a respeito

do individualismo, da indiferença e da autodestruição, bem como a controvérsia

resultante sobre os significados contemporâneos e futuros da negritude que eramnela sinalizados? A narrativa da vida de Eazy e as formas de antífona que esta

expressava com urgência não seriam mais significativas do que ter em seu centro

o corpo injuriado do homem de trinta e um anos de idade? A observação de Frank

Williams, de que "não havia nenhuma dessa merda politicamente correta com o N.

W. A., e nem mensagens claras sobre essa coisa de dotar o negro de poder,dominando o hlp-hop naqueles tempos. Era só beber, pegar mulheres e descarregar

311

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I ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça I

seu revólver em alguns trouxas"> nos dá alguns indícios sobre os problemas de seenfiar Eazy/Eric num panteão como o de Alexander. Num outro eco da perspectiva

melaninista, ela apresentou o corpo negro em si mesmo. É todo um depósito designificado, um condutor de memória racial que se recusa a ser diferenciado por

classe ou gênero, riqueza, ou saúde. O corpo era a verdade final, especial, derradeira,

absoluta da identidade negra, designada por Alexander de "linha de baixo". Todas

essas problemáticas divisões intraraciais evidenciadas desde a morte de Eazy porAIDS até a sua celebridade - questões incômodas como pobreza, política e poder

_ poderiam ser esconjuradas com um só golpe. A política racial tornou-se uma

questão de intertextualidadc quando a fita de vídeo de Rodncy King intersectou-se

com a fita de memória carregada naquelas células pretas." Gênero, privilégio,

hierarquia, riqueza e saúde; nenhum deles importava mais. O corpo cuidará de

tudo quando a solidariedade é disparada para a ação perante a visão daquela carne

triturada do homem negro.A carne que foi destruída pela doença é menos atrativa, porém é mais sinistra

em seu impacto do que a carne marcada pela violência. Apesar de toda a sua

óbvia cumplicidade com a alcovitagem empresarial da cultura negra, pelo menos

The Source fez com que o trabalho social de comemoração se tornasse complexoe difícil. Embora a masculinidade e o fraternalismo, que eram parte integrante das

vendas que cruzavam as linhas de cor, impedissem em grande parte as suas

pretensões radicais, a revista usou a morte de Eazy para abrir uma discussão

sobre em que moldes precisos ele deveria ser pranteado e lembrado e que formas

de solidariedade poderiam emergir daquela atividade social. As linhas seguintes

são algumas das respostas a essas questões oferecidas por luminares da nação

hip-hop:

Guru: Eazy E deveria ser lembradocomo umempreendedor.Method Man: Sinto que é mim que ele tenha partido desse jeito, mas pode ser bomse conseguir passar a mensagem para todos nós de que esta doença pode nosatingir. Há um montão de irmãos por aí brincando de roleta russa com seus pintos.Masta Ace: Comprei seu primeirodisco alguns meses atrás. Quando o セウ」オエッ agora,certas linhas têm todo um novo significado. Quando o ouço dizer, "E sobre foder

24. Frank Williams, "Eazy E: The Life, the Legacy", The Source (junho 1995), p. 56.25. Uma visão alternativa sobre o significado de Rodney King foi apresentado por Willie D em Fuck

Rodney King (Priority Recorda, 1992). Eric Lotr fez uma defesa vigorosa do disco em "Comelwesr in rhe Hour of Cimos in Race Matters", Social Text, 40 (1994), pp. 39-50.

I 312

I I'AUL lilLKUY

com esta puta, ou aquela puta..." significa algo totalmente diferente agora...Achoque você verá uma tendência de montes de rappers começando a se casar.46

Penso: o que o Dr. Fanon teria feito dessas estranhas posturas? Ao observá-

las através da moldura colonial, ele teria detectado nesse confortável cenáriounanimista, defendido por críticos como Alexander, uma fantasia de grupos mais

privilegiados, de uma elite culpada e de algum modo aparentada com aquela que se

produziu em palcos coloniais na forma de uma pequena burguesia nativa? Será

que ele porventura teria percebido que a unidade racializada tão desejada era

apenas perceptível e plausível vista à distância? Como um praticante da medicina,

é provável que ele fosse sensível à mudança de escala que se evidencia na

substituição da significação epidérmica da diferença pelas qualidades da

diferenciação projetadas pela nanopolítica sobre as próprias células.A epígrafe de Alexander foi tirada do trabalho de Saul Schanberg, um

pesquisador de medicina da Duke University que fora citado na revista Natural

Health, Esta citação transmite com perfeição o impulso nivelador de Alexander

ao afirmar que "a memória reside em lugar algum e em cada célula". Infelizmente,

seu conteúdo não foi esclarecido no trabalho de Alexander. Pode-se presumir que

Schanberg tenha querido dizer que a memória era compartilhada por cada célulaem um único corpo, ao passo que em seu ensaio, Alexander sugere que cada

célula na política do corpo negro usufrui da mesma faculdade de recordação. Estaordenada homologia entre células e sujeitos raciais se rompe quando observamos

que as células não são intercambiáveis, mesmo em um só corpo, e também que as

diferenças entre as células tiradas de pessoas diferentes, mesmo aquelas com

fenótipos semelhantes, podem ser significativas, especialmente na era da AIDS.

Será possível que estas pequenas, mas decisivas diferenças apontem para uma

concepção distinta do significado dos fenótipos em relação aos genótipos, e além

disso para a redundância das tipologias raciais do século XVIII?

CLASSE E CULPA, O QUlRO G TI'JAANO

Ao me deparar com essas tentativas de resolver as crises em torno da

condição de similaridade e solidariedade raciais através de apelos ao poder do

corpo, acabei adotando uma atitude mais benevolente em relação à irreverência

26. tt« Source, 69 (junho 1995), p. 56.

I 313

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I:.NJKI:. lamエGuセ naçoes, LULturas e o t ascrmc da Raça I'AUL lilLRUY

subversiva da cultura negra vemacular. Eazy E, Snoop, Willie D, Biggie, Lil'Kim e

seus pares insubordinados ado taram uma postura deliberadamente vulgar edesordenada que resistia à disciplina e pressionava todo o tempo no sentido das

zonas de fronteira onde aquelas teimosas divisões de região, classe, sexo e gênero

reafirmam-se e recusam-se a ser traduzidas para registres invariáveis, epidérmicos,celulares ou nanopolíticos. As garotas e os garotos da vizinhança não serão

arregimentados pelo programa de reparação racial e ascensão social que tem sido

proposto por pessoas negras em melhor posição, integrantes da burguesia. Em

contraste com o essencialismo transcendente das células hipersimilares e das

memórias raciais intercambiáveis, a consciência gangsta celebrada por aqueles

jovens é territorial em extremo. A forma de solidariedade defendida por eles éespecializada, isto, é claro, caso se reconheça solidariedade neste caso. Esses

jovens situam-se nas fronteiras vivenciadas de sua comunidade e são fiéis a elas.

Este programa assume um mínimo absoluto em matéria de unidade racial a priori.

Ele possibilita a nossa compreensão sobre o que a solidariedade acrescenta em um

mundo cão. M C Eiht, ao lado de quem Snoop e Eazy E parecem delicados emansos, expressou-se deste modo:

Os filhos da puta estão fazendo sucesso agora, agora mesmo. Todo mundo nestemundo de filhos da puta tem a mentalidade de quem não dá a mínima para o que osoutros dizem. O Nigga [neguinho] vai ganhar o seu dinheiro, ele vai viver do jeitoque quiser. Quando chegar esse dia, se um neguinho precisar morrer, esse é o dia.Para a comunidade - sempre me parece que todas as vezes que um neguinhochegaa um certo nível ele precisa voltar para a comunidade e precisa fundar centroscomunitários etc. É por isso que ele diz, "Está bem, amo a comunidade c vou fazeralgumacoisa pelo lugar de onde vim". Eu não estou morto, filho da puta. É isso queeu sou. Quando estava nesta vizinhança filha da puta, eu me dava bem com osneguinhos. Neguinho não pôs nenhum dinheiro no meu bolso, os neguinhos nãome davamdrogas.Os neguinhos nãofaziammerdanenhumapor mima nãoserdizer,"ele é gente nossa". Portante, para a minha comunidade vou fazer a música quemeus neguinhosgostam, mas não vou me instalar aqui e construir um centro infantilpara mim aquie construiraquele outro lá, porque isto é uma besteirade merda. Estounesta merda por mim... Não sou nenhum político filho da puta. Não estou falandosobre essa merda de parar a violência. Não estou falando sobre o movimento negroporque aquela merda não vai continuar na vizinhança. Nenhum filho da puta vaichegar com tortas de sonhos e se postar na minha esquina."

27. "Gansta Rap Summit: 'Reality Check"', Thc Source, 57 (junho 1994), p. 72.

314

Neste ponto o individualismo do indivíduo pobre, em seu estilo centrado no

gueto, parece ter derrotado o bioessencialismc conveniente da elite. Você escolhe

ser um gangsta e você pode desistir desta filiação a qualquer momento. Eithrevela com clareza as conseqüências desta mudança de orientação quando

ridiculariza as vozes negras que se levantaram contra o gangsta rap, expressando-

se nestes termos: "Eles com as suas bundas de cor empinadas - nem chamo eles

de negros, para mim eles não são neguinhos"."Outras divisões igualmente profundas têm sido reveladas em amargos

conflitos intra-raciais que emergem do discurso vernacular sobre o sexo. O corpo

também está presente aqui. Mas, uma vez mais, ele não se apresenta por inteiro,

como um veículo orgânico para alguma memória racial em comum. Assim como o

cão e a cadela cujos vínculos niilistas Biggie celebrou com grande ênfase, o gangsta

se move por instinto - uma forma de memória não suscetível à regulamentação.

Você talvez se lembre que Snoop lamenta o fato de que ele não pode evitar correr

atrás do gato. A natureza não é a amiga, a guia, ou a aliada que parece ser nodiscurso dos pseudocientistas. É uma maldição, outra sentença suspensa em termos

indefinidos. Assim como foi na canção de Marley, o corpo é fragmentado, dividido

em zonas. As áreas distintas precisam ser trabalhadas de modos diferentes. Indo

bem além da inocente distinção entre olhos e pele feita por Bob, o gangsta aprecia

partes específicas do corpo. As zonas selecionadas são afirmadas e celebradas

porque o espaço sobre o qual o poder pode se exercitar está sempre a encolher e

porque elas estão mais próximas das disfarçadas dimensões animais de vitalidade

do que do corpo purificado, automático, favorecido pelos melaninistas e mercadores

da memória.Aqui nos vemos obrigados a considerar o modo como O Atlântico negro

respondeu aos apelos que o Bíackstreet e outros enalteceram como um "bootlcall" [convite para o prazer sexual]. A reavaliação do bootilbutt/batty [prazer

sexual, bunda, insano] é outro elemento do mesmo esforço desesperado em centrar

a particularidade negra no corpo. Mas não é apenas uma reafirmação do tradicional

hedonismo articulado em atos prévios e rudes de resgate do corpo negro dos mundos

tumultuados do trabalho e do labor, ou a sua celebração como um locus deresistência, prazer e desejo. Trata-se de algo mais potente que reordena a hierarquia

28. Ibid., p. 70.

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I tNfKt ャ a m i G u セ .. Naçoes, curturas e o Fascínio da Raça I

das zonas e órgãos do corpo em um padrão que se move decisivamente para alémdas antigas oscilações entre sexo e violência, consideradas por James Baldwincomo recheios alternados para a concha da expressão cultural negra. bell hooks eCarolyn Cooper observaram que o culto vernacular da bunda revaloriza os corpos

abjetos das mulheres negras em diferentes locais; porém, o saber tradicional sobrea bunda tem ainda outro significado. O aspecto autoritário dos movimentos

nacionalistas que discutimos anteriormente requer o nosso reconhecimento dassuas tentativas óbvias de lidar e conter as possibilidades disruptivas que emanamdo desejo homoerótico, introjetado ou não. A penetração anal que é ao mesmotempo afirmada e rejeitada em injunções do hip-hop, como aquela de "agarrar os

seus tornozelos, benzinho'' não tem um único significado fixo ou eterno. Ela adquireum sortimento de acentos distintos em cenários discursivas específicos. Foram,

afinal de contas, os fundamentalistas que transformaram o desvio da heterosse-xualidade compulsória em uma traição da autenticidade racial. DJ Shabba Ranks,cujas declarações na área de moralidade sexual foram além da homofobia parachegar a uma dimensão mais complicada de ambivalência, mostra como os tabus

que regulam a prática sexual acabaram por determinar os limites da coletividaderacial: "Não me importo com o que eles querem falar a meu respeito, desde queninguém possa dizer que ando chupando uma xoxota ou fodendo um maluco". 29 Areferência à cicatriz/árvore chokeberry pode ser feita mais uma vez aqui parasalientar a mutabilidade e multiacentuação do corpo negro.

Neste vernáculo, a negritude não tem sido escrita no interior ou mesmosobre o corpo, pois o corpo não é estável, ou ainda duradouro demais para permitiraquele ato de inscrição. O que conta não é o que o corpo é ali carrega dentro de si,mas em vez disso o que o corpo faz em sua relação imediata com outros corpos.Uma dualidade mente-corpo não está sendo reinstalada de forma camuflada atravésde apelos à memória, a qual pode ser presidida por uma elite "colonial" culpada eprivilegiada. A negritude emerge como mais comportamental; ousaria eu dizer

cultural? Ela pode ser anunciada por hábitos sexuais indicativos e outros gestoscorporais. Em algumas circunstâncias, a negritude pode mesmo ser adquirida emsimples processos económicos. A identidade como similitude e solidariedade nãoestá de fato sendo essencializada aqui. Pode-se adquirir produtos que emprestam

uma uniformidade elcqüente ao corpo mudo em bases temporárias e casuais. Não

29. Rob Kenner, "'Tap Rankin'", Vibe (outubro 1994), p. 76.

I 316 I

I I'AUL blLKUY I

se trata afinal de contas de uma jornada interior, mas de um passeio até o shoppingcenter, realizado de preferência com a ostentação apropriada do transporte

particular.O estilo e a moda oferecem algo no mesmo formato da solidariedade

mecânica conferida pelo uniforme do homem burguês, o que alcança uma mágica

racial diferente em termos da Nação do Islã. Em ambos os casos, não se considerao corpo sem roupas como suficiente para conferir autenticidade ou identidade. Asvestimentas, artigos, coisas e mercadorias oferecem o bilhete único de ingressopara as solidariedades estilosas, as quais são poderosas a ponto de fomentar asformas inéditas da nacionalidade encontradas em coletividades como NaçãoGangsta, Nação Hip Hop, e, é claro, a Nação do Islã. Não se trata de niilismo, pois

há uma axiologia aqui - a axiologia do mercado. É o bastante, portanto, para adiferença cultural. Carl Williams, desenhista de roupas afro-americanas, que vendeseus desenhos com a grife Karl Kani, a qual foi tatuada na parte superior de seubraço, nos diz que "a aparência é tudo", e ele deve ser um bom conhecedor disso.Suas roupas e acessórios respondem sim ao seu nome."

No interior das comunidades negras, velhas certezas sobre os limites fixos

da identidade racial perderam seu poder de convencimento, ou mesmo de imprimirsentido às divisões extremas produzidas pela desindustrialização. Procura-se umasegurança ontológica, capaz de responder ao sentido já bastante reduzido de valorda vida negra, DOSpoderes naturalizantes do corpo: vestido ou desnudo, fragmentadoou íntegro. Os velhos temas compensatórios que respondiam à condição de ausênciade poder entre os negros - sexo e gênero - têm sido transformados com a ascensãoda nanopolítica centrada no corpo. O estranho programa dejogo e recreação sexual,celebrado por artistas como Usher e R. Kelly, surge como uma alternativa para asolidariedade mecânica de "raça", seja ele articulado por meio da austeridade danação e seus substitutos, ou pela fantasia de hipersimilaridade masculina projetada

através da cultura de excelência esportiva negra e do heroísmo aqui cultivadopelos homens e mulheres de marketing.

O sexo é mais desordenado e instável do que as imagens convencionais davitalidade negra que se tomaram cúmplices do cerne da supremacia branca. Ocaso já mencionado de Shabba revela com precisão como o sexo tem de ser treinado,domesticado, entretido, e tecnologizado em canais apropriados com vistas ao

30. Scott Poulson-Bryant, "Karl Kani - Dcsign of lhe Times", Vibe (outubro 1994), pp, 59-63.

1317

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estabelecimento da família e, por conseguinte, da nação. O corpo emerge numduplo papel de ator e objeto controvertido. Ele tem sido reivindicado por vários

regimes de representação e de desejo que criam formas distintas de identificaçãoe introduzem possibilidades políticas diferentes e abrangentes que não estão tão

bem arrumadas a ponto de serem mutuamente exclusivas. A moda se esparrama

no culto do esporte, enveredando pelos sonhos da superioridade negra programada

em termos químicos. Os artigos de vestimenta são traficados entre o público, omundo dos cruzamentos e suas veladas contrapartidas negras. Os discursos que

codificam, materializam e fazem trocadilhos com a carne preta trazem a promessa

de poder, mas podem logo reverter para um simples tipo racista, especialmente

quando a fisicalidade excessiva bane as capacidades cognitivas, e a sexualidade

libertina e também excessiva supostamente nos define por fora da sintaxe oficial

de gênero. Estes perigos não se restringem ao efeito que possam ter sobre os

espectadores brancos, mas podem também ser sentidos quando os negros começam

a viver, não com esses riscos, mas através deles e das formas duvidosas de seganhar poder oferecidas por eles.

Precisamos acompanhar as sinalizações do multiculturalismo empresarial e

fazer com que a interface entre o esporte, a música, o vídeo e a venda da cultura

negra se tome acessível a públicos cada vez maiores, muito distanciados dos locais

em que aquelas culturas foram de início engendradas. São freqüentemente, embora

nem sempre, públicos cujo entusiasmo pelos frutos da alteridade e pelo glamour

da diferença, sobretudo quando isso é oferecido numa forma de gênero apropriada,

pode não ter correspondência em nenhum sentimento equivalente de arrebatamentopelas pessoas que produziram de início essa cultura. A mesma obsessão com a

atividade masculina, o poder e a vitalidade que aparece como uma resolução

imaginária da crise de solidariedade negra, no momento em que a comunidade

política se reduz à dimensão de uma quadra de basquete, também se encontra bem

no centro de comercialização de culturas negras, estilos e criatividade voltada em

termos simultâneos para uma audiência "cruzada" e para outra interna. Revistas

como Vibe e The Source, em alguns casos contando com proeminentescomentaristas negros, têm estado na linha de frente desta operação de cruzamento.

Uma olhada nas páginas da Vibe na Internet deixará claro que estas não são

questões provincianas. A negritude imaginária está sendo projetada para fora, sem

rosto definido, como uma forma para se orquestrar um mercado global de verdade

em matéria de produtos de lazer e como a peça central de uma nova versãoempresarial e sem rodeios da cultura jovem, centrada na visualidade, fcones e

318

PAUL GILROY

imagens, e não mais na música e seus rituais antiquados. Buscar refúgio nas certezas

da incorporação essencial negra não permite lidar com as conseqüências

cataclfsmicas desta mudança. A multicultura empresarial está remodelando o corponegro. Temos testemunhado uma série de lutas em tomo do significado daquele

corpo, que emerge de modo intermitente como um significante de prestígio,

autonomia, transgressão e poder numa economia supranacional de símbolos, a

qual não se reduz à lógica antiquada do poder de supremacia branca.Ao se defrontar com aquela luta, com a desindustrialização e com a

proliferação das divisões intracomunais baseadas na riqueza e no dinheiro, na

sexualidade e no gênero, a elite negra pode achar oportuno cair de novo nas narrativas

excepcionais e nas identidades essenciais. Ela pode mesmo reconstruí-las com

base numa variedade de linguagens políticas: melanina, memória, nacionalidade

autoritária e afrocentrismo, ou alguma combinação entre todas elas. Compreendo

essas respostas, mas eu me pergunto até que ponto elas não têm a ver com um

grupo privilegiado que mistifica o seu próprio distanciamento crescente das vidas

da maioria das pessoas negras, e cujas prioridades, hábitos e gostos não podemmais ser considerados como indicadores, que se auto-legitimam, da integridade

racial. O corpo tem sido usado para restaurar aquela integridade em declínio de

maneiras que ab-rogam a responsabilidade histórica dos intelectuais (não

acadêmicos) em fazer com que ele comunique as verdades preciosas, frágeis e

contingentes da socialidade negra. Diante dos biopoderes renascidos, será possível

articular uma compreensão alternativa, pós-antropológica de cultura que tenha

qualquer coisa parecida com aquele mesmo poder de explicação?

PARA LEMBRAR

As teorias sobre cultura estão implicadas no mundo dividido que elas se

esforçam em explicar. Há muitas zonas bem fortificadas em demasia em deferência

às reivindicações autoritárias que as origens podem fazer, onde a pureza é estimada

e a mistura e a mutabilidade provocam medo e falta de confiança. Mas também há

momentos preciosos em que a preocupação com os mecanismos de transmissão

cultural e tradução deve se tornar uma prioridade, e em que a anti-disciplinapromfscua associada com uma dinâmica cultural complexa reescreve as regras da

crítica e de avaliação em códigos novos e empaticamente pós-antropológicos. Estes

períodos levam a atenção para longe da questão das origens e em direção aos

vetares da cultura viajante moderna. Eles fazem aparecer o problema da rotina e

319

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I tN I Kt lAMI"V:) naçoes, vurruras e o rasctnto (la «aça I I PAUL GILROY I

da translocação irreverente da cultura. Isto é incompatível com os desejos arcanosde colecionadores de borboletas que preferem suas culturas íntegras e gostam que

as diferenças entre elas permaneçam absolutas. Embora o seu apetite ocasional

pela liberação nacional e outros esquemas de conservação étnica por vezes sirvamde disfarce, eles são conservadores no sentido mais preciso e técnico do termo."

A sua influência crescente decerto não oferece proteção contra o poder ressurgente

do pensamento raciológico, poder este que tem contado com a sua cumplicidade

freqüente e encoberta. É por essa única razão que seus argumentos precisam ser

respondidos de um modo afirmativo cosmopolita que não faz nenhuma concessãoà primordialização ou à reificação da cultura.

É claro, os perigos da globalização desencadearam algumas versões potentes

de absolutismo nacional e étnico." Elas têm se tomado bem mais desesperadas e

voláteis devido ao poder destrutivo de processos que nivelam as variações culturais

e lingüísticas, tornando-as formações mais brandas e homogêneas, e nas quais os

elementos do consumismo podem se implantar. A fantasia da particularidade

blindada trazida por essas versões se expande a partir de seus pontos de partida nomundo superdesenvolvido, Esta fantasia vincula a racíologia racional não apenas àxenofobia e ao nativismo, mas também às novas hostilidades e ansiedadescondicionadas pelas formas de risco que se formaram em tempos mais recentes.

Precisamos reconhecer o encanto especial lançado pelo glamour da pureza e

identificar as variedades de medo e ódio que têm se dirigido nem tanto ao estranho

e ao diferente, mas, com uma nova intensidade, àqueles cuja diferença ou estranheza

conseguem sempre evitar sua captura pelas categorias sociais e políticas disponíveise capazes de dar um sentido a isso.

As tribunas antropológicas desses conservadorismos complacentes e

etnocêntricos apresentam-se bem equipadas com álibis culturalistas em favor da

recusa de preocupações políticas. Quero falar contra elas a partir de uma posiçãoonde ainda é mais difícil tolerar o velho jogo da autenticidade cultural, sendo os

componentes profanos que compõem a pessoa irremediavelmente diversos. Não

há pureza por aqui; há sim uma enorme desconfiança em relação ao ansioso desejo

de pureza, visto como pouco mais do que uma fonte dúbia da legitimidade políticamais mesquinha.

31. Pnina Werbner e Tariq Modood, orgs., Debating Cultural Hyhridity (Zcd Books, 1997).32. Médecins sans Frontíêres, World ín Crisís: The Politics ofSurvival ar the End ofthe 20th Century

(Rout1edge, 1997).

I 320 I

Há quase trinta anos, tenho sido tomado por uma obsessão apaixonada emouvir música, grande parte dela produzida em regiões do planeta bem longe do

canto em que habito. As fontes longínquas da música não foram parte do prazer

que ela me proporcionou. Viessem elas para Londres de Cali ou Califórnia,Trenchtown ou Malaco, Mississippi, esses sons tinham de viajar. O seu tráfico

interno constituiu uma intricada rede circulatória que se sobrepunha, sem ser

dominada, aos sistemas distributivos do comércio apressado e indiferente que se

faz às claras. Em resposta à acusação de consumismo trivial, eu diria que se

aquela teia meio escondida fosse lembrada e reconstruída, ela poderia muito bem

complicar o nosso senso histórico do capitalismo de Guerra Fria com suas indústrias

culturais, e a dissidência que estas últimas formam e disseminam de um modo

involuntário. Minha experiência com estes objetos é parte da minha vivência atravésda mercadorizaçâo final de uma extraordinária criatividade cultural nascida das

populações escravas do Novo Mundo. Vi quando suas imaginações oposicionfsticas

foram inicialmente colonizadas, e depois subjugadas pelos valores niveladores do

mercado que foi uma vez estimulado pejo comércio de seres humanos vivos, embora

não o seja mais. Quaisquer contra-valores tardios são vistos hoje como um auxiliar

pseudotransgressor do negócio oficial de vendas de artigos os mais diversos: sapatos,

roupas, perfume, bebidas adocicadas. Num certo sentido, as culturas vemaculares

negras de fins do século XX foram uma espécie de matraca da morte de umcontra-poder dissidente que se enraizara na modernidade marginal da escravidão

racial não fazia tanto tempo, e da qual ele havia se retirado com notável rapidez.

Como por encanto, os discos de plástico enfiados em invólucros coloridos - "os

discos LP" - proporcionaram vetores improváveis e inesperados para uma

incansável sensibilidade viajante. Eles se tornaram parte do engendramento da

cultura externa à nação, e a sua história suscita reflexões sobre o papel das

tecnologias comunicativas para aumentar e mediar formas de solidariedade social

e política para além das comunidades imaginadas, concretizadas por meio das

aruações quase mágicas da impressão e da cartografia.É conveniente lembrar aquele mundo de sons agora que ele quase já não

existe mais - despachado pelas forças de uma desenfreada íconizaçâo. O legado

auricular dos escravos para o futuro também se fez notar pela sua interessante

relação dissonante com os processos de sua própria mercadorização. Esta relação

pode ser definida por meio de um padrão de conflito que revela muito sobre a

incapacidade do capitalismo para reconfigurar o mundo instantaneamente de acordocom o ritmo de seus próprios apetites insaciáveis. Mesmo nas formas fixas e

321

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I ENTRE campuセ .. Naçoes, curtures e o rasctntc da Raça I

congeladas demandadas pela industrialização da cultura, a música dissidente etranscendente foi produzida e despachada de um modo radicalmente inacabado. Asua abertura antecipou o envolvimento de audiências remotas. Estas últimas eramhábeis em fazer um acréscimo a mais, porém essencial em termos criativos ao usosocial, preferivelmente ao consumo privatizado da cultura que poderia ser objetivadoapenas em parte. Dois aspectos antagônicos da vida social desses objetos

específicos tornaram-se entrelaçados. A vida cultural do som gravado não se reduziaàs simples relações econômicas nas quais ela se emaranhava. De fato, toda umatradição formou-se em torno da idéia de que esta música tinha um valor quetranscendia o dinheiro, para além dos lucros trazidos por ela para aqueles que avendiam sem atentar para os seus atributos éticos, pensando, por engano, que elesa detinham por inteiro.

À medida que este período histórico aproxima-se de seu final, e quandomesmo os seus melhores aspectos residuais acabam na armadilha da cultura dasimulação e da iconização que causa um impacto corrosivo sobre a memória, otempo e o lugar, tenho plena consciência de ter sido moldado por um movimentotranslocal e transcultural, construído numa escala planetária "pós-Bandung'' quese revelou pelo movimento dessas mercadorias sobrecarregadas. Chamo-as de

"sobrecarregadas" para enfatizar o suplemento histórico que elas carregam a mais,seja em termos de seu uso, seja em termos de seus valores de troca. Para os filhosdos colonos pós-coloniais, uma cultura negra utópica que havia viajado do oestepara o leste, e do sul para o norte sustentava as verdades de uma história demigração que estava emocional e politicamente bem à mão, mas nem sempre eramencionada. Será que talvez, assim como a escravidão, ela encerrasse um traumaque resistia a ser colocado na fala e na escrita? Essa cultura criou necessariamenteuma nova mídia comunicativa, empregou novos vetares, e entranhou novoshospedeiros.

Alertado para a relação específica que esta subcultura havia estabelecido

entre a arte e o artcfato, acumulei pilhas de discos de vinil e mergulhei nas cenasefêmeras e desconceituadas que os cercavam. Eu poderia e provavelmente deveriater parado no momento em que o papelão impresso e ilustrado que embrulhava amúsica tomou-se quase tão interessante para mim quanto os sons inscritos na

superfície sulcada do plástico enfiado dentro da sua capa sedutora. Em vez disso,fui adiante, ávido por compreender a arquitetura completa da formação não-nacional,cultural e política na qual se inseriam esses produtos em sua integridade, recusandoo seu status oficial de artigos vendáveis e transitórios. O padrão comunicativo,

I 322

I PAUL GILROY I

mais velho e sobrecarregado de ética, consolidado por eles, nasceu dos espaçospúblicos encobertos do protestantismo negro, adaptando-se dali em diante emtermos sistemáticos. Esse padrão tem sido gradualmente subjugado por novasmercadorias, tecnologias e desejos. Está agora sendo substituído por uma culturade simulação que transforma o valor da negritude nos negócios globalizados da

informação, do entretenimento e da telecomunicação. A substituição do analógicopelo digital é um símbolo e sintoma apropriado desses desenvolvimentos. A negritudevista como abjeta está a ceder lugar firmemente à negritude como vitalidade,juventude eterna, e dinamismo imortal. Atualmente, o corpo ideal do atleta oumodelo masculino negro fornece uma assinatura-chave onipresente para este

estranho tema. Uma fisicalidade negra exemplar, muda e heróica, foi arregimentadacom vistas a construir uma versão militarizada e nacionalizada da cultura popular

planetária na qual o mundo do esporte conta mais do que a relação flexível e

subjacente improvisada em torno da gestalt da canção e da dança.O movimento negro rransnacional, ao qual eu pertencia, era coreografado

tendo como cortina de fundo a violência liberatória anti-colonial da política deGuerra Fria. A solidariedade com aquelas lutas importantes oferecia umtreinamento obstinado para as sensibilidades pós-modernas emergentes. Essemovimento descobriu uma ponte entre o mundo superdesenvolvido e as colônias.Ele anunciava as reivindicações políticas resultantes através da linguagem dosdireitos e da justiça. Mesmo quando nos reassegurávamos que estávamos a lidarcom os direitos humanos em vez de civis, a tensão em tomo desse débito paracom a modernidade era claramente evidente. Os direitos civis derivavam dosEstados soberanos e do governo engenhoso, ao passo que os direitos humanosbuscavam sua legitimação junto a outras fontes que eram em geral mais deordem moral e espirituaL Eram os direitos pelos quais a arte populista e híbridade Bob Marley e Peter Tosh nos assegurava que valia a pena lutar. As novastecnologias do ser livre negro pegaram os ventos pós-coloniais e foram assopradaspara lá e para cá, encontrando lugares de descanso inesperados, porém férteis,distanciados dos territórios onde antes existiam fazendas monocultoras. Elascriaram e comunicaram uma ecologia de pertencimento de teor anti-nacional e

transnacional. Alimentaram um antí-capitalismo vernacular e, mais importanteainda, nutriram um corpo de idéias críticas distintivas com respeito ao lugar da"raça" em relação ao objetivo da democracia e aos desenvolvimentos da história

da qual a África e os africanos foram excluídos pela lei não sentimental, lei estaexpressada de forma tão memorável por Hegel no momento em que a geografia

I 323

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I ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça I

se tomou o anfiteatro natural para que o drama da História fosse representado:

"neste ponto deixamos a África para não mencioná-la mais't."Estas observações têm o propósito de salientar que as teorias da intercultura

e da multicuitura que estão agora à disposição não contribuem para que alcancemos

metade das estórias que precisamos levar em consideração. Talvez não venha aser motivo de controvérsia, sugerir que a globalização precisa de uma periodização

mais longa e mais cuidadosa do que aquela feita até o momento. Contudo, ela

também precisa tornar-se parte de um ajuste de contas com a modernidade numa

escala planetária em vez de numa escala provinciana, centrada na Europa. Esta

última tarefa requer a especificação das modernidades imperiais e coloniais, assim

como modernidades da conquista e da fazenda escravista. A questão da viagem écom freqüência deixada para as margens do povoamento, o qual proporciona a

premissa da vida cultural. Toma-se também atributo das pessoas marginais:

migrantes e refugiados. Na verdade, a idéia de que a cultura pode viajar encontrou

uma audiência receptiva em tempos recentes, em particular na classe internacional

dos países superdesenvolvidos. Esta destcrritorialização tem rendido reflexões,

mas como sempre fica a sugestão de que elas têm sido compradas a preços ínfimos,

e realizadas com facilidade excessiva. A cultura perde as suas qualidades adesivas

e a romantização do deslocamento é um perigo persistente. Isso pode se combinar

de um modo desastroso com um esquecimento intencional a respeito da força

constitutiva e brutal do poder imperial e colonial. A menos que sejamos cuidadosos,

nossas reformas do duradouro esquema hegeliano acabarão por amoldar a culturaàs fendas das fortificadas agregações dos Estados-nação ordenados em campos,

que forneceram previamente os seus repositórios originais.

Há mais a fazer para que abandonemos as ilusões que se seguem a uma

compreensão sedentária de como se faz a cultura." Não precisamos nos satisfazer

com um posto de descanso à beira da estrada, acenado pela idéia de culturas

plurais. Uma teoria de culturas relacionais e de cultura como relação representa

um lugar de descanso bem melhor. Essa possibilidade tem sido impedida nos tempos

presentes pelas invocações banais de hibridismo, nas quais tudo se toma igual econtinuamente intermisturado, combinado numa impossível consistência invariável.

33. G W. F. Hegel, The Philosopky ofHistory, tradução de J. Sibree (Dovcr Publications, 1956), p.99.

34. Clifford, Routes.

I 324 I

I PAUL GILROY I

Em oposição àquele sentido inútil de processo cultural, devemos reconhecer eenfrentar os argumentos eloqüentes que têm sido feitos sobre a impossibilidade de

se escapar do etnocentrismo, e sobre a necessidade de se ficar constrangido à

cultura. Esses argumentos asseveram uma cisão nítida e lógica entre as ligações

étnicas específicas, que são vistas como inevitáveis e desejáveis, e as forças viciosasque se formam sob as bandeiras da "raça". Se esses dois fenômenos essencialmente

distintos estão vinculados, há quem nos diga que isto se dá por puro acaso. Uma

longa linhagem de reconhecida autoridade que nos vem desde Levi Strauss éreivindicada para sustentar esses argumentos que escondem em geral a sua própria

orientação política atrás de uma sofisticação enganosa que caracteriza o verdadeiro

especialista em matéria de diferença." O desejo por um cosmopolitismo arraigadoopõe-se a uma rejeição trivial e tão-somente política do racismo. Declara-se aqui

que o mesmo motivo está na origem das objeções de princípio às investidas do pós-

modernismo e dos estudos culturais banais.

Em conclusão, quero tratar do pessimismo de Richard Rorty, cuja posição

influente reduziu nossas opções a uma escolha tensa entre privilegiar o grupo ao

qual pertencemos ou pretender uma "tolerância impossível" em relação às práticas

repugnantes de outros a quem não precisamos justificar nossas crenças." Não

seria preciso dizer que não é obrigatório pertencer a um desses grupos singularese abrangentes que sempre pode reivindicar uma fidelidade especial e fundamental

para si, liquidando todas as outras pretensões em disputa. É mais importante observar

que grupos diferentes constituem-se em bases diferentes que correspondem às

várias frequências de tratamento que nos tocam e formam nossas identidades

sempre incompletas em um campo instável. Em oposição a um etnocentrismo

apriorístico, eu diria que as raciologias e os nacionalismos promovem, e podem

mesmo produzir, certos tipos bem específicos de coletividade, em especial aquelas

que são hierárquicas, autoritárias, patriarcais e fóbicas em relação à alteridade.

Ficamos fragilizados ao deixar de enfrentar os nacionalismos como um poder

específico em termos históricos, o qual vincula as patologias dos movimentos racistascontemporâneos à história da raciologia européia e do absolutismo étnico. A referida

recusa de encarar as qualidades específicas dos discursos raciologicos, as

solidariedades e os modos de pertencimentos promovidos por eles, e as formas de

35. Clifford Geertz, "The Uses of Diversity", Michigan Quarterly Review (1986).36. Richard Rorty, Objectivity, Relattvtsm and Truth (Cambridge University Press, 1991).

I 325 I

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ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça

parentesco que eles tanto constroem como projetam, compõe o problema. Os

"etnocentrismos" moderados e valiosos que, como nos dizem, não podemos e nãodevemos dispensar, mostram-se em toda parte zelosamente compatíveis com as

formas palingenéticas do ultranacionalismo populista que representa o cerne míticode um genérico mínimo fascista."

A contraposição piedosa entre o etnocentrismo bom e inevitável e o racismo

lamentável, porém excepcional, é uma charada vazia favorecida por aqueles que

mistificam e se esquivam das responsabilidades morais e políticas que cabem aos

comentaristas críticos nesta área especialmente difícil. Devemos aceitar que acultura pode ser racializada e nacionalizada? As escolhas são claras. Os grupos

étnicos são esmagadoramente nacionais e "raciais"? E em que escala a

solidariedade de grupo deve ser praticada e reconhecida: sala de aula, rua,

vizinhança, cidade, região, estado; parentesco de sangue, parentesco de espécie,

parentesco planetário? Mesmo se aceitássemos a forma de pcrtencimento a um

"etno", de teor unitário e fundamentalista, esboçada por Rorty c transformada em

catecismo por seus discípulos menos sofisticados, não haveria nada a sugerir que

os limites em torno daquela versão de coletividade monadística devesseminevitavelmente coincidir com as fronteiras políticas arbitrárias dos grupos "étnicos"

contemporâneos. Pertencer-juntos pode fazer sentido seja abaixo ou acima daquele

limiar fatal, e a política, despachada pela raciologia, precisa ser reativada, e não

liquidada. Esta disputa sobre o status da cultura e suas pretensões sobre os

indivíduos acarretam mais uma rixa em relação ao modo como a própria políticadeve ser compreendida.

Em oposição à moda que remeteria estes conceitos irmãos - política e cultura- para domfnios separados e contraditórios, quero ligá-los, ou mais precisamente,

apreciar o fato de que eles já estão ligados em termos inescapãveis, tanto pela

idéia da arte politizada, como pela noção de política do cotidiano, noção esta agora

em desuso. A política ainda é concebida em geral como se ela também existisse

exclusivamente dentro dos confins de fronteiras nacionais fechadas que se alinham

com exatitude àqueles das autoridades govemamentais soberanas. Esta idéia aindapode se manter firme, mesmo quando a meta oficial do multiculturalismo vem

para forçar uma certa reconceitualização na maneira como se compreende o

pluralismo político. Nesse caso, a nação emerge como um receptáculo orgânico

37. Reger Griffin, The Nature ofFascísm (Routledge, 1993).

326

PAUL GILROY

para várias formações discretas, impermeáveis, e ao final das contas, incompatíveis.

Nos dias de hoje, cada um é em geral compreendido como um mercado em simesmo por inteiro.

O estranhamento em relação ao Estado-nação tem se consolidado através

de um sentimento contemporâneo no qual o compromisso com a nacionalidade

como uma comunidade dominante e imbuída de ética ou uma comunidade étnicatomou-se difícil de manter. As tecnologias políticas que demandam o pertencimento

nacional são muito diferentes hoje em comparação com o que eram na era da

cultura industrializada. Contudo, o sonho de culturas naturalmente nacionais ainda

está vivo em meio a uma fantasmagoria de tradições inventadas que não permitem

a separação meticulosa entre os nacionalismos cívicos (bons) e os nacionalismos

étnicos (maus). A ressurgência do esporte comercial espetacular no cerne do"setor televisivo de infoentretenimento" é o aspecto mais expressivo do seu poderrenovado.

Ingressamos naquilo que é, de acordo com os padrões hegelianos, uma

condição da pós-História, isto é, quando a África e seu destino contemporâneo

conseguem emergir como questões políticas e morais significativas. As histórias

da modernidade imperial que se seguirão a esse ajuste rerroarivo oferecem uma

alternativa oportuna à centralidade da Europa com as suas noções demasiadoinocentes e obstinadamente centradas na fantasia de progresso sem catástrofe.

Numa resposta relutante a essa nova condição, o Estado-nação ainda tem sido

defendido como a versão menos ruim da prática governamental. Ele é ainda

apresentado como o único arranjo disponível para organizar a tarefa essencial de

administrar a justiça e orquestrar projetes de longa duração com relação ao

reconhecimento cultural e à redistribuição económica. Em minha opinião, trata-se

de uma resposta demasiado defensiva, sem imaginação e desnecessariamente

pessimista. Ela não encontra nada de valia na história que liga o comércio moderno

à formação e ao desenvolvimento do pensamento de raça, ou na sucessãoextraordinária de movimentos translocais que se estendem do anti-escravismo e

feminismo aos "Médicins sans Frontiêres" [Médicos Sem Fronteiras]. É sintomático

que ela não reconheça nenhuma influência do poder da arte feral, ou de outros

padrões de cultura, solidariedade e afinidade que atuaram, em termos semelhantes

aos de meus preciosos discos, em órbitas mais largas, encontrando circuitostranslocais, irnpredizíveis e pouco examinados. Uma compreensão pós-antropológica

da condição humana é apenas a recompensa mais básica que aguarda a reanimação

simultânea da cultura política em escalas subnacional e supranacional.

327

Page 24: GILROY_Negro Para Futuro (Entre Campos Parte3)

8"RAÇA", COSMOPOLITISMO E

CATÁSTROFE

A questão de por que as pessoas amam o que é igual a elas e odeiam o que édiferente raramente é levantada com suficiente seriedade.

ADORNO

A guerra atual de nossos inimigos é uma luta contra os fundamentos de todas asnações européias. Um aviador enviado por gangsters políticos que lança suasbombas sobre os mais belos locais culturais da Europa não sabe o que faz, ele nãotem a menor idéia do que a cultura é de modo geral. E quando, em tempos recentes,os Estados Unidos chegam a ponto de colocar negros em seus bombardeiros, istomostra como aquele país, fundado no passado por europeus, já se perdeu.

AlFREDROSENBERG

"SEMPRE QUE ouço a palavra cultura, eu pego a minha arma". Recordar

estas famosas palavras, proferidas há não muito tempo por um infame nazista,deve inibir a fluência acadêmica empenhada atualmente em jogar a palavra"cultura" de um lado para o outro. Suas palavras são citadas aqui a fim de transmitirum importante convite: elas nos instam a compreender a frágil natureza dosambientes políticos que apóiam as culturas de dissidência que têm se constituído apartir da oposição contemporânea a códigos e hierarquias raciológicos. Refletirsobre o horrível contexto em que essas palavras foram proferidas pela primeiravez, e pensar sobre o modelo implacável de instituições que se fixaram ao redordelas, pode nos ajudar a identificar precisamente as diferentes maneiras que fazemcom que os dissidentes da observância racial ainda habitem um nicho sitiado.

O conflito disseminado entre o neofacismo e seus oponentes democráticostem sido expresso em geral como uma luta sobre a cultura e sua relação comvalores fundamentais. Um dos principais arquitetos da destruição de Sarajevo foi

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ENTRE CAMPOS .. Nações, CuLturas e o Fascínio da Raça

Nikola Koljcvic, vice-presidente dos sérvios bosnenses e autor de oito livros sobre

Shakespeare. Conta-se que ele fez da Biblioteca Nacional da cidade um alvo

específico para ser bombardeado por ela ser um símbolo do hibridismo e dafntennistura cultural odiados por ele. Inquietações semelhantes sobre os efeitos

corrosivos da mistura cultural são rotina no interior da ultradireita. Por exemplo, o

conflito cultural tem sido evidente em batalhas recentes na França centradas emorganismos governamentais locais controlados pela neofacista Front Nationale

[Frente Nacional]. A ultradireita desse país tem promovido uma cruzada contra a

cultura de esquerda subversiva e inconveniente, os imigrantes e outros grupos

vistos por ela como estrangeiros ou impatrióticos. A visão da Front sobre uma

cultura francesa apropriada c purificada fez com que ela se empenhasse em

censurar a escola e outras bibliotecas públicas. Sua utopia ultranacionalista tem sedefinido contra os atas ofensivos de dissidentes, como foi o caso do grupo de híp-hop Nique Ta Mêre, proibido de tocar rap por um juiz em Toulon em novembro de

1996, e o do gerente de um cinema em Vitrolles, perto de Marselha, demitido por

se recusar a retirar de cartaz filmes sobre homossexualismo. Também em Vitrolles,

a Front conseguiu que uma escultura moderna inaceitável fosse levada para odepósito local de entulhos.

A cultura e suas instituições não apenas fomecem o índex para se medir o

declínio nacional e o renascimento, mas também proporcionam o campo de batalha

principal onde os fascistas buscam estabelecer sua autoridade moral. O historiadorSaul Priedlãnder chamou a atenção para a importância dos conflitos culturais que

caracterizaram os primeiros estágios da violência anti-semita na Alemanha nazista.=> domínio cultural, escreveu ele, "foi o primeiro de onde os judeus (e os

'esquerdistas') foram expulsos em massa".' Sugerir que esses conflitos em torno

ia cultura levaram inexorável e irreversivelmente aos portões da fábrica de morte

seria banalizar a história que se seguiu a eles. Contudo, os conflitos sobre valores

culturais, hierarquias, instituições c relações podem ainda funcionar como um

aarômetro grosseiro para detectar mudanças de níveis de pressão política. Sua

ecente história na França neofascista e em outros lugares sugere que precisamos

tgora de um retrato mais complexo destas batalhas do que aquele em que um

Saul Friedlãnder, Nazi Germony and the Jews, vol. 1: The Years of Persecution, 1933-39(HarperCollins, 1997),p. J2. Ver também Stephanie Barron et al.. "Dcgcnerate Art": The Fale ofthc Avant Carde in Nazi Gennany (Los Angeles Conty Museum of Art, Abrams, 1991).

330

PAUL GILROY

nazista autodeclarado e, portanto, facilmente identificável, empunha uma arma defogo a fim de extinguir a cultura e matar seus portadores e defensores.

Uma vez delineados os contornos das espécies iniciais de pensamento

ultranacionalista, os primeiros nazistas reivindicaram a cultura para eles mesmos.Sua raciologia fez do ariano e do alemão os guardiões históricos da cultura. Eles

selecionavam e julgavam a cultura. Eles avaliavam que raças seriam capazes de

desenvolvimento cultural, declarando que a aparente cultura dos judeus não passava

de uma impostura.' Sua vasta competência antropológica imbuiu-os de confiança

para decidir que cultura deveria ser promovida e quais de suas formas degeneradas

precisavam ser suprimidas e destrufdas." A necessidade de combater os fascismos

ressurgentcs do nosso próprio tempo serve como um aviso para que estejamossempre alertados para o lugar preeminente da "raça" na construção e na legitimação

destes juízos culturais e políticos.

Muito antes dos nazistas, a linguagem cívica da cultura havia se entrelaçado

com as idéias de "raça" e carãter nacional. Esta interconexão produziu um princípio

de diferenciação que competia com os modelos alternativos proferidos pelas biologias

políticas de fins do século XIX. Após 1945, os efeitos do genocídio nazista fizeram

com que a opinião acadêmica respeitável se tornasse tímida e cautelosa quanto a

invocar abertamente a idéia de diferença racial em puros termos biológicos. Nessas

condições, o conceito de cultura forneceu um vocabulário descritivo alternativo e

um idioma político mais aceitável para tratar das variações geográficas, históricas

e fenotípicas que distinguiam a desigualdade racializada e simplificá-las. Reelaborada

e repensada de acordo com os antigos imperativos da razão antropológica

pragmática, esta versão de cultura suplementou e depois suplantou a raciologiaque havia sido desacreditada pela implementação geral da raça-higiene

industrializada.' Nestas novas circunstâncias, as teorias culturalistas sobre a

diferença racial, as quais estiveram presentes por muito tempo, tendo sido, porém,

silenciadas pelos sucessos conspícuos da biologia política, poderiam uma vez mais

2. George L. Mosse, Nazi CU/fure: A Documentary Hisrory (Schocken Books, 1981 l.3. Max Weinreich, Hitler's Professors: The Part of Scholarship in Germany's Crimes Aga/nst the

Jewish Peop/e (Yiddish Scientifie Institute, 1946), em especial capítulos 3-10.4. George Stocking, org., Volkgeist as Method and Ethic: Essays 01'1 Boasian Ethnography and

GermanAmhropologica/ Tradition (University cf wisconsiu. 1996); c Suzanue Marchand, DOlVnFrom Olympus: Archaeology and Philhellenism in Germany, 1750-1970 (Princeton UniversityPress, 1996).

331

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I ENTRE CAMPOS .. Nações, CuLturas e o fascínio da Raça I

alçar vôo. As variedades de violência e brutalidade sancionadas por elas não forammenos bárbaras do que haviam sido as expressões genocidas da bíopolrüca. Épreciso repetir que a "raça" proporcionou o denominador comum para todas essas

operações; entretanto, suas associações primárias, porém, ambivalentes com acultura não têm sido sempre reconhecidas, e muito menos submetidas à análisecuidadosa que elas merecem.'

É claro, o status controvertido do conceito de cultura tem sido bem

compreendido pelos analistas com posições políticas diversas. Mais de um século

de debate explícito sobre as dimensões culturais de poder, governo nacional e

antagonismo de classe não obscureceram o fato de que a cultura detém um outro

conjunto de significados que dá apoio, mas também resiste aos conflitos políticosque emergiram com sua pluralização, racialização e etnificação. Em inglês, pelo

menos, ainda que fortemente inflectido pela classe e suas hierarquias, o conceito

ajudou a indicar as alternativas benéficas e atrativas à anarquia, ao barbarismo, ao

niilismo e à anomia. Ele não sugeriu a aplicação mecanicista da razão modema e

desumana, mas sim o crescimento orgânico da vida social dentro de fronteiras

territoriais estáveis. Este conceito pode ainda trazer à mente a promoção da

mutualidade e da criatividade em um regime imaginativo que se estenda em direção

à realização de uma verdade, de beleza e direitos coletivos. Entretanto, como Robert

Young demostrcu, mesmo aquela energia e história da cultura foram identificadascomo produtos de uma grande dialética racial entre os instintos disputantes dohebraísmo e helenismo."

No capítulo 2, vimos como esta compreensão modema e imperial distintiva

de cultura foi nacionalizada e particularizada no espaço soberano e imperial das

nacionalidades "encampadas''. Traçamos parte de seu circuito transnacional e

consideramos algumas das conexões comunicativas - tanto negativas, comopositivas - estabelecidas por ela. Precisamos agora nos voltar para uma direção

diferente. Nossa preocupação com humanismos morais e políticos, ainda que com

as variedades raras e delicadas que só podem ser encontradas nas mandíbulas

mesmas da catástrofe, exige que consideremos o que acontece quando a idéia de

5. Frantz セ。オッョL :'Racism and cオャエセイ・BL in Toward the African Revolution: Poíitical Essays, traduçãode H. Chevalier (Monthly Revicw Press, 1967); este alugo é lima interessante cxceção a essaomissão.

6. Robert Young, Colonial Desire: IIybrldity in T!JeOI)', Cutture, and Race (Routledge, 1995), pp.50-89.

I 332

I PAUL GILROY I

cultura é desenvolvida de maneira apropriada e construtiva num nível diferente deabstração. Aqui ela não precisa mais ser hierárquica, amigável em relação à raça,

ou étnica, e deve permitir que problemas éticos e estéticos mais óbvios reapareçamcom a consolidação de formações democráticas e cosmopolitas que não são apenas

humanistas, mas também híbridas, impuras e profanas.

Com estas preocupações em mente, este longo capítulo começa com umalembrança não apologética de como a cultura tem sido associada profundamente

com a "raça", dirigindo-se em seguida para uma questão relacionada: não se trata

do papel da "raça" e da raciologia na destruição da cultura, mas sim da significância

prospectiva da cultura cosmopolita caso a "raça" seja apagada ao final. O

reconhecimento de ma receosa antipatia nazista com relação à cultura, constante

da abertura deste capítulo, não deve por conseguinte ser mal entendido. Areconfiguração da cultura de acordo com padrões racializados, demandada por

governos totalitários, dá lugar a uma história extremamente complicada, cujas

implicações são significativas para a maneira que o relacionamento entre os regimes

normal e excepcional ainda está para ser entendida.Apesar de elementos de cultura, estilo, arte e governo fascistas estarem

presentes em termos residuais, tanto dentro como fora da democracia

contemporânea, a emergência que os alimentava em períodos anteriores esvaneceu-

se. A emergência arual não é mais uma condição aguda e excepcional, ou uma

fase crítica existente por um certo período até que as coisas revertam ao seuestado mais estável e normal. Esta emergência é uma condição crônica e rotineira

a que nos habituamos cada vez mais. Nossos governos nacionais com sua luta

supranacional contra o terrorismo, o fundamentalismo e a desordem, bem como

nossas paisagens midiáticas rotineiramente transnacionais, obrigaram-nos a aceitar

o lugar do excepcional junto com o normal e em seu interior. Estas duas condições

podem coexistir facilmente num mundo onde as culturas cosmopolitas e itinerantes

são sitiadas e, algumas vezes, engolfadas por nacionalismos e pelo absolutismoétnico. Enquanto civilidade, criatividade diária e esperança, essas culturas são postas

em confronto com o sistema de política formal e seus códigos representacionais

entorpecidos. Suas aspirações democráticas são contrapostas pelos valores

dcsumanizantes do comércio multicultural e pela abjeção da vida urbana pós-

industrial com a qual elas estão entrelaçadas. Nestas condições, a cultura é assaltadapor movimentos politicas e forças tecnológicas que trabalham em prol do apagamento

de considerações éticas e do desaparecimento das sensibilidades estéticas. O poderressurgente da linguagem racista e racializante - incluindo-se aqui os anti-

I 333 I

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ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça

semitismos modernos, os ultranacionalismos e seus discursos correlatos - constituiuma forte ligação entres os riscos de nossos tempos perigosos e os efeitosduradouros de horrores passados que continuam a nos assombrar.

A LELADADE NEGATIVA DO MODERNISMO À MODERNIDADE

A prática artística modernista cresceu onde as contraculturas modernashaviam criado raízes. Foi realçada pelo fato de que estava destinada a ser para

sempre impura, sendo assim cronicamente ilegítima de acordo com os padrões

etnocêntricos da crítica cultural nacionalista. Os nazistas denunciaram suas

expressões degeneradas de uma "coisa pela metade" repulsiva, mas tão-somente

leal à arte, o modernismo divertiu-se com o potencial transgressivo que lhe foi

legado por sua constituição híbrida. O modernismo foi reconstituído e redefinido

uma vez que se considerou rompido o laço entre o progresso e a evolução, sobretudo

em função do cataclismo provocado pela guerra de 1914-1918. Essa culturamodernista surgiu com uma força profana muito capacitada a romper com os elos

da miséria, consolação e resistência que caracterizavam situações de inexistência

de liberdade igualmente modernas. Suas formas expressivas e criativas, que

anunciam jocosa mas sabiamente, que não têm direito de existir, recusando-se,

porém, com obstinação a morrer, figuram como testemunhas das frágeis verdades

humanas da modernidade catastrófica a que recorro neste ensaio para conectar acolônia e a metrópole.

A transformação da prática de crítica cultural de maneira que corresponda

a este novo objeto requer uma mudança considerável de perspectiva. Entre outrascoisas, é preciso que nos tornemos mais sensíveis em relação à existência de

contraculturas étnicas e racializadas da modernidade, e mais atentos às condições

sistêmicas em que elas têm sido capazes de se reproduzir, senão exaramente de

prosperar. Frente à condição precária e ameaçada dos valores culturais, estes

ajustes não precisam significar que as críticas da modernidade perdem sua força.

Escrevendo em meio à atmosfera gélida da Guerra Fria, o expatriado do Atlânticonegro Richard Wright delineou uma "lealdade negativa"] em relação à modernidade

que, tal como ele pressentia, poderia se tornar compatível com o trabalho difícil e

7. Richard Wright, ''The Psychologioal Reactions of Oppressed Pcople", in White Man Listenl(Anchor Doubleday, 1964), pp. 16-17.

334

PAUL GILROY I

urgente de manter um sentido da antinomia irredutível da cultura ocidental - a

dialética do Iluminismo desta cultura - e mais importante ainda, tornar aquelaapreensão política e eticamente útil para o desenvolvimento de uma democracia

agonística e destituída de "raça". Com base nestes indicadores, podemos aspirar a

formas de democracia capazes de resistir à racialização e suas hierarquias distintivas

e de responder ao forte apelo dos nacionalismos com uma utopia cosmopolita.Wright articulou este objetivo por meio de questões dirigidas a seus pares no pós-

guerra que então lutavam com as tarefas práticas envolvidas na luta contra o

colonialismo e na construção de instituições pós-coloniais nos países outrora

colonizados, e recentemente independentes:

Comoo espíritodo Iluminismoe da Reformapode se estenderagorapara todos oshomens?Comoeste benefícioacidental pode se tornarglobalem seus efeitos?Estaé a tarefa que a história agora nos impõe. É possível se encontrar um caminhopurgadode racismoe de lucros, para combinaras áreas racionais e os funcionáriosracionais da Europa com aquelesda Ásia e da África?fl

A trajetória intelectual e política de Wright revela uma espécie de complexa

dissidência surgida na Europa e em suas colónias após 1945. Uma compreensão

da relação fundamental da cultura moderna maculada com a violência racializada

e o terror era central à cultura de dissidência criada por ela. As percepções deWright, comuns entre muitos da geração Bandung - a elite pós-colonial encarregada

de aplicar as lições morais e políticas a serem aprendidas com a vitória sobre os

nazistas aos processos de descolonização e desegregação - haviam sido

alimentadas devido a compreensões ainda mais perturbadoras. A ciência racial, a

razão racializada e a imposição de suas fronteiras em torno do status humano

oficial não eram aberrações diretas, ou simples de padrões mais nobres ou

consistentes." Definições mais eqüitativas e inclusivas de humanidade não poderiamser trazidas à existência por meio de uma declaração positiva. Isto era verdade

especialmente quando os objetivos mais preciosos, tais como a liberdade e a igualdade

8. Ibid., p. 64.9. Emmanuel Chukwudi Eze, "The Color of Reason: The Idea of 'Race' in Kant's Anthropology",

in Anthropology and lhe Gennan Enlightenment: Perspectives on Humanity, org. Katherine FaulI(Bucknell University Press and Associated University Press, 1994), pp. 200-241; Berel Lang,"Genocide and Kant's Enlightenment", in Act and Idea ín the Nazi Genocide (University ofChicago Press, 1990), pp. 169-190.

335

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ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça

haviam sido rebaixadas em termos de substitutivos racializados injustos, promovidospelas operações do império e da colônia. Se a extensão do processo implacável,identificado de início por Wright e seus pares, já foi agora observada por inteiro,deve-se apelar para algo mais do que uma defesa rotineira dos mesmos valoresmorais e culturais que brilharam com muito mais intensidade ao serem confrontadospelas barbaridades que podem ter sido confundidas no passado com a sua simplesnegação. Podemos nos desprender da conveniente fantasia de que a civilização eo barbarismo se opõem wn ao outro num arranjo ou conflito, feito à base de umasustância congelada e ordenada, somente se adotarmos os contornos animadoresde um antagonismo dialético, cuja promessa é a resolução.

Conforme se mostrou no capítulo 2, grande parte da autoridade especialassociada ao termo "cultura" na Europa modema havia se desgastado pelos esforçosdevotados à manutenção da civilização colonial. As histórias sangrentas quepermitiram aquela observação têm sido obrigadas a reconhecer o poder daraciologia. Elas revelaram repetidas vezes as cumplicidades da civilização com abarbárie, da racionalidade com o terror, e da razão com a irracionalidade. Por maisrefinadas que sejam, as histórias locais dos malogros europeus não constituemfontes suficientes de percepção quanto a estas questões translocais. Elas se esforçam

em alcançar um equilíbrio entre dois pontos de vista. De um lado, necessita-se deuma fidelidade meticulosa para com verdades históricas incómodas, que por vezesparecem provincianas. De outro lado, há pretensões maiores e mais audaciosasfeitas a partir de abstrações que podem ter nascido dos motivos mais nobres e quese voltam para a emergência de um universalismo misantrópico, que às vezes,porém, parecem vazias. Embora o primeiro permaneça um aspecto essencial dasexigências de justiça, ele acaba mutilando o poder quase alquímico dos discursosraciais de transformar um elemento de cada combinação infeliz em outro. Asúltimas redimem-se por meio de seu intento cosmopolita e de uma habilidade pararesponder à força prescritiva da particularidade absoluta, em especial quando estase articula com a linguagem da incomensurabilidade étnica e, por conseguinte,cultural.

A tensão entre estas duas ênfases aparece à sombra de uma compreensãoainda mais chocante. Ela representa uma fonte profunda de vergonha e dedesconforto para todos aqueles que pretendem praticar a lealdade negativa deWright. Apesar de incorrer no risco de simplificarem demasia, deixe-me relembraroutro argumento já mencionado em capítulos anteriores. Os antigos mitos, medose tipologias raciais pré-científicos foram incorporados pelas ciências raciais

336

PAUL lilLRUY

modernas do século XIX. Atada às linguagens do Iluminismo, do progresso, daordem e da saúde social, esta combinação permitiu conferir uma sanção moral eprática aos racismos genocidas muito antes que metas deste tipo fossemabertamente pronunciadas como objetivos governamentais na própria Europa.'?Este argumento precisa ser repisado porque a complexidade filosófica e históricadeste processo está sempre a escorregar da mente crítica até mesmo agora. Elase esquiva aos métodos respeitáveis e repele o olhar fixo de investigações cujapremissa é a legibilidade do mal e a transparência do irracional. Observar o podersubstantivo da raciologia pode tomar óbvio o que era antes incompreensível.

Isto explica em parte por que a "raça" pennanece um problema incômodopara as humanidades. Ê claro, a tarefa de explicá-la no mais das vezes é atribuídaa negros, judeus e outros Outros como se fosse nossa propriedade intelectualespecial, ou alguma responsabilidade "étnica" exclusiva, associada às histórias desofrimento. As humanidades ainda estão dominadas por suposições particularmenteliberais e, como eu diria, suposições por vezes etnocêntricas sobre o que contacomo conhecimento e como a renúncia à particularidade se encaixa na busca daverdade. Este não é um problema somente de judeus ou negros, mas de qualquerum que rejeite a idéia de que o espaço não demarcado de onde os protocolosacadêmicos nos obrigam a falar não cobre nada pelo empréstimo de sua autoridade.Agora que as acusações irrefutaveis de "correção política" colocaram um númerogrande demais de gente direita em posição incômoda e na defensiva em relaçãoaos padrões profissionais, bem como em relação à compatibilidade delas com otrabalho interdisciplinar sério, a "raça" alcançou o status de um segredo aberto. Apalavra cria um catálogo de enigmas intelectuais e políticos que é exibidointermitentemente (às vezes de modo proeminente), mas ainda assim ésistematicamente negligenciado, esquecido, e ignorado num silêncio embaraçoso amenos que as acusações ganhem corpo e a pesquisa acadêmica contemplativa e

10. Helmut Bley, South-West Africa undcr Oerman Rule, 1894-1914, tradução de Hugh Ridley(Northwestern University Press, ]971); A. F. Calvert, South-West Africa: During the German.Oocupation (T. Werner Laurie, 1(15); I. Goldblatt, History of South West Africa, [rom lheBeginníng of the Ninetcenth Century (Juta end Co., 197 l}; L. H. Gann e P. Duignan, lhe RulersofGerman Africa, 1887-1914 (Stanford University Press, 1(77); Jon Swan, "Ibe Final Solutionín South West Afuca", Quanerty Joumal ofMilitary Hístory 3, 4, pp.36-55; Bvelyn Nicodemus,"Carrying the Sun on Our Backs", in M. Catherine de Zcgher, Andrea Robhins e Max Becher,

orgs. (The Kanaal Art Foundation, 1994).

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ENTRE CAMPOS •• reaçoes, curturas e o j-ascrmo ela Raça

desinteressada capitule em relação às exigências ruidosas da diversidadeindisciplinada e do multiculturalismo insurgente.

A história da relação entre tipologias raciais, diferenças culturais e matança

em massa é extensa o bastante para permitir a continuação destas investigaçõessobre "os talentos fatais" do homem civilizado. Essa história confunde as linhas

audaciosas que gostaríamos de colocar entre o industrial e o pré-industrial, o primitivo

e o moderno. Nessa zona, as palavras do nazista sobre pegar sua arma podem

servir a uma função mnemônica vital. Elas nos ajudam a compreender a energia

etnocida lançada na conjunção da raciologia e da cultura. Podem ser usadas comoum meio de relembrar como as questões de vida e morte tornaram-se intrínsecas

aos desdobramentos daquela palavra sobrecarregada, a palavra "cultura".

TESTEMUNHANDO A CATÁSTROFE

A tensão entre histórias locais e abstrações cosmopolitas tem sido tambémresolvida em histórias de viagens e de viajantes que contribuíram para o ideal

cosmopolita a partir Montaigne.!' As experiências translocais de intelectuais negrosde elite que desembarcaram na Europa do entre guerras para exigir as recompensas

culturais representadas por uma educação na metrópole já foram invocadas para

atualizar e refinar esta precisa possibilidade. Chamei a atenção para a sua

complexidade e os distintivos acentos humanistas audíveis nas críticas da

modernidade ocidental feitas por seus membros internos. Sua compreensão das

oportunidades sem precedentes abertas pela modernidade ocidental e sua frustraçãocom o prejuízo que a raciologia trouxe a ela foram profundas. Argumentei também

que as teorias de cultura, direito e justiça que eles recuperaram, além de as terem

bravamente oferecido ao mundo descolonizante da Guerra Fria, haviam se formado

a partir de suas observações sobre a consolidação do fascismo, feitas antes da

eclosão do conflito, e com base em suas experiências na guerra contra aquele. De

modo especial, a sua investigação das conexões entre as abominações perpetradaspelo hirlerismo e aquelas forjadas pela ordem colonial, a qual lhes trouxe tanto

sofrimento como benefício, engendraria recursos morais competentes. Em nenhum

11. S. M. Islam, The Ethics of Travel: From Marco Palo to Kafka (Manchester University Press.1996); James Clifford, Routes: Travei and Translation. in the Late Twcmíeth. Century (HarvardUniversity Press, 1997).

338

PAUL GILROY

outro lugar isto se evidencia de modo tão contundente e articulado como no poema"Tyaroye" de Senghor, uma expressão concentrada de sua revolta contra o

massacre francês de soldados coloniais senegaleses em 1944, recém-retomados

após passarem quatro anos em prisões nazistas. II

Uma sensibilidade semelhante afloraria mais tarde entre outros líderes da

geração Bandung para incriminar a lógica implacável do desenvolvimento econômico

capitalista e os insucessos das tradições de compreensão política, tradições estas

de teor liberal complacente e obstinado quanto aos códigos de cor. Esse argumentopode se complicar e estender-se ainda mais, se fizermos um outro desvio turno à

destinação preferida destes pensadores: um humanismo verossfmil, pós-

antropológico e resolutamente não racial. Isto implica considerar o caráter ético e

normativo de uma cultura cosmopolita distintiva, manifesta nas vidas e nas

experiências dos viajantes do Atlântico negro dos tempos de guerra e de seus

sucessores: trabalhadores, assim como estudantes. Estes podem ter sido fugitivos

dos Estados Unidos em busca de cultura e de se libertarem do Jim Crow; soldados

em busca da cidadania e do reconhecimento que eles imaginavam poder encontrarapenas arriscando suas vidas no campo de batalha em defesa de seus países; ou

numerosos outros viajantes do pós-guerra, alguns dos quais foram colhidos em

relações extremamente complexas de afiliação com a Europa e suas culturas ao

longo de sua participação em atívidades de restauração da ordem após o conflito

com Hitler. Todos estes grupos depararam-se com aspectos do fascismo. Suas

reflexões e comentários sobre as precondições, características e conseqüências

do fascismo conduziram-nos rumo a direções interessantes que podem oferecer

um ponto de apoio para a constituição das identidades européias de hoje e dofuturo multicultural da Europa de amanhã. De um modo bem sucinto, a história

dele não começa com a II Guerra Mundial, mas sim com a ruptura cultural e

histórica representada pela I Guerra.A grande expansão das linhas de frente de tropas coloniais na guerra de

1914-1918 é tão conhecida quanto a sua significância fundamental para os

americanos negros. Em geral considera-se que a importância deste segundo aspecto

consista na migração interna em larga escala para o norte que acompanhou oenvolvimento americano na guerra, além das mudanças marcantes na atmosfera

12. L. S. Senghor, "Tyaroye," "Hosties Noíres", in Poêmes (Senil, 1984); ver também Myron J.Echenberg, "Tragedy at Thtaroye: The Senegalese Sotdíers' Ilprising of 1944,", in P. Gutkind etal., orgs., African Labor History (Sage, 1978).

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ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o ras ctntc da Raça

política que saudaram as tropas em seu retorno." Em contraposição à idéia deque o conflito na Europa estivesse longe das preocupações dos afro-americanos,

alguns analistas influentes identificaram de imediato a importância moral e histórica

da guerra com a Alemanha. Em seu livro A África e a Guerra, publicado em1918, Benjamin Brawley afirmou que "a grande guerra dos nossos dias deve

determinar o futuro do Negro no Mundo";" e em um notório editorial em The

Crisis, Du Bois, que vivera na Alemanha por um longo período, identificou comorgulho as origens francesas e huguenotes, em vez de anglo-saxãs, de seus próprios

ancestrais europeus. Embora Du Bois tivesse já há tempos reconhecido o caráter

imperialista da guerra, ele explicou detalhadamente as oportunidades que ela poderia,

no entanto, trazer para melhorar a posição desesperadora de sua comunidade.

Numa mudança substancial em termos de orientação política da revista, que é

citada às vezes como evidência da fraqueza e vaidade de Du Bois," ele explicou

que a participação dos americanos negros no conflito tinha de ser séria, mesmoque eles não tivessem nenhum interesse óbvio ou imediato nisto:

Esta é a crise do mundo. Por todos os anos que virão, os homens apontarão o anode 1918 como o grandeDiada Decisão,o diaqueo mundodecidiuse iria se submeterao despotismo militare a uma paz armada semfim - se isso pudesse ser chamadodepaz - ou seeles deveriampor fim à ameaçado militarismogermânicoe inaugurarosEstados Unidos do Mundo.Nós da raça de cor não temos um interesse pequeno no resultado. Aquilo que osalemães representam hoje significa morte para as aspirações dos negros, e de todasas raças mais escuras, por igualdade, liberdade e democracia. Não vamos hesitar.Vamos, enquanto esta guerra perdurar,esquecer nossas queixas específicas e cerrarfileiras com nossos companheiros cidadãos c com as nações aliadas que lutam pelademocracia.Não é um sacrifício pequenoque fazemos, mas o fazemoscom alegriae vontade com nossos olhos erguidos para as montanhas."

Du Bois pode bem ter escrito estas palavras tendo em mente umaincumbência dos organismos de inteligência do exército dos Estados Unidos, mas

é de chamar a atenção a sua substituição de "América" por "Mundo". Isto permite

perceber a tensão entre seus comprometimentos locais, provincianos e aqueles

13. Sir Charles Lucas, The Empire ar War (Oxford Univcrsity Press, 1924).14. Benjamin Brawley, Africa and the War (Duffield and Co., 1(18), p. I.15. David Levering Lewis, W. E. B. Du Bois: Biography ofa Race (Henry Holt,1993), p. 556.16. The Crisis (julho de 19H!).

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PAUL GILROY

mais cosmopolitas. Independentemente da idéia óbvia de que a prontidão para

sacrificar a vida em defesa de interesses nacionais era um recurso para retardar aidéia de cidadania negra, subversiva em definitivo, suas palavras também transmitem

uma compreensão mais significativa de que a democracia não era divisível. Há

aqui algumas mudanças significativas de escala conceituaI e imaginativa. Primeiro,os conflitos de americanos negros foram traduzidos com audácia em questões

para o mundo como um todo. Segundo, Du Bois articulou uma dimensão

transnacional para a política afro-americana que se associa de perto com a crescente

perspectiva pan-africana. Isto se tomou urgente no contexto resultante da guerra

com a proposta de que as colônias africanas da Alemanha, recentemente liberadas,

deveriam se tomar o núcleo de uma nova pátria africana. Esta sensibilidade afloraria

nos quatro congressos pau-africanos realizados entre 1919 e 1927, três dos quaisocorreram em solo europeu, o que era de todo congruente com os argumentos

semelhantes de Marcus Garvey em defesa daquilo que ele chamava de um "ajuste

racial internacional" em prol do negro. 17

Du Bois chegou na França, em dezembro de 1918, como representante da

Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (ANPPC) para investigar

o tratamento dado a soldados negros em tempo de guerra e também para coletar

material que pudesse ser usado para escrever uma história da guerra. Apenas

uma pequena proporção de tropas afro-americanas havia chegado a posições de

combate, sendo que a maioria foi muito maltratada pelo exército dos Estados Unidos.

As realizações de alguns poucos, em especial dos quatro regimentos da 93a divisãoque, em um dos mais estranhos desdobramentos de guerra, lutaram bravamente

sob a bandeira francesa, oferecem o melhor ponto de partida para se considerar as

grandes mudanças históricas e culturais desencadeadas na vida e na mente da

Europa pela passagem do negro americano. Não se trata somente do fato que os

soldados negros que lutaram na França trouxessem de volta um conhecimento

militante negro de como o regime americano de estratificação racial havia se tornado

estreito e específico, mas também que eles sofreram diversas influências políticas

e culturais oportunas, incluindo-se aqui o comunismo bolchevique e o nacionalismo.

O verão sangrento de violência nunca vista contra o negro, que os saudou em seu

retorno aos Estados Unidos, imprimiu uma nova significância a essas descobertas,

17. Marcus Garvcy, "Speech ar theRoyal Albert Hall June 6th 1928", emMarcus Garvey and theVision ofAfrica, org. John Henrik Clarke (Vintage, 1(74).

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ENTRE CAMPOS :: Nações, Culturas e o Fascinio da Raça

enquanto eles se deparavam com Orenascimento da Klan, definido por John Hope

Franklin como "o maior período de luta inter-racial que a nação jamais

testemunhou".18 Essa turbulência política foi acompanhada por mudanças na vida

cultural da Europa.

A diferença entre estes negros ocidentais e os outros soldados coloniais

havia sido observada por inteiro. Deixando de lado os efeitos sobre o pensamento

militar com relação aos sucessos em combate e os conflitos entre autoridades

européias e americanas a respeito das conseqüências da mistura de raça, o que

seria recorrente na guerra contra Hitler, é significativo que o mais importante canal

pelo qual se introduziram aspectos atrativos e excitantes da cultura negra americana

pela primeira vez no coração da Europa tenha sido o militar. O apelo exercido

pelas bandas militares afro-americanos deu início a um processo elaborado que

revolucionou ao final as culturas populares européias. O famoso 369a batalhão de

infantaria chamou a atenção tanto pela excelência de sua música, quanto por suas

façanhas no campo de batalha durante os 191 dias em combate, um período mais

longo do que qualquer outro regimento da Força Expedicionária Aliada havia

enfrentado." Sob a direção geral do tenente James Reese Burope," a banda do

regimento era também regida pelo seu tambor-mor, Noble Sissle, que fez um estudo

dos efeitos das interpretações de ragtime pela banda sobre audiências francesas:

Nós estamos a viver um momento muito interessante, tocando nossas melodiasnativaspara o deleitede todas as nacionalidadesque vivem debaixo do sol...Quandoo nosso país estava louco pela dança há alguns anos, nós bem que concordamoscom o popular compositor de canções da Broadway que escreveu: "o sincopadodomina a nação, não podemos escapar disso". Mas, se você pudesse ver o efeitoque as nossas boas e velhas melodias de "jazz" tem sobre as pessoas de todas asraças e credos, você mudaria a palavra "Nação", citada acima, para "Mundo"...penso às vezesque se o Kaiser ouvisse em algum momento uma melodiasincopada,ele não se levaria tão a sério.Se a França fosse bem suprida com bandas americanas a tocar seus vívidos sons,tenho a certeza que isto ajudaria bastante a trazer entretenimentos de nosso país

18. John Hope Franklin, From S/avery lu Freednm (Vintage Books, 1969), p. 480,19. Arthur E. Barbeau e Florette Henri, Unknown So/diers: Afrícan-American Troops in World War

I (Temple University Press, 1974), p. J2J.20. Reid Badger,A Life in Ragtime. A Biography ofJames Reese Europe (Oxford University Press,

1997).

342

PAUL GILROY

para nossos garotos, o que ao mesmo tempo permitiria que o coração pesaroso daFrança batesse com mais leveza."

o período entre guerras assistiu a um fluxo constante de notáveis artistas,

cantores c músicos afro-americanos passar pela brecha consolidada por essas

bandas, o que transformou a vida musical, teatral e artística das capitais da Europa.

Depois de se apresentar em Londres e Paris, o teatro de revista "Chocolate Kiddies",

de Sam Wooding, com uma banda de onze músicos tocando partituras arranjadas

por Duke Ellington, estreou no Admiralspalast de Berlim em maio de 1925,21Josephine Baker, que havia trabalhado com Sissle nos Estados Unidos, acabou

arrebatando a atenção extasiada de Berlim. Alguns meses depois, graças ao sucesso

popular dos Kiddies, ela chegou em Paris, onde Louis Armstrong já havia se

apresentado, para estrelar em La Révue Négre." Na época da crise da bolsa de

1929, quando afro-americanos afortunados preparavam-se para ir a Europa em

números nunca vistos, a demanda européia por entretenimento negro autêntico

crescia tanto que artistas bem viajados tinham de se fazer passar por talentos

frescos colhidos em clubes notumos de Harlem e Chicago."O número crescente de americanos negros a trabalho e em viagem na Europa

pode ter sido um fator para o grande interesse que os afro-americanos tinham pela

situação alemã no período prévio à ascensão dos nazistas ao poder. Marcus Garvey,

numa rápida viagem ao país em 1928, ficara impressionado com a eficácia e

disciplina alemã, assim como com a tendência alemã para a autoconfiança." A

21. SI. Louis POS! Dispatch; IOdejunhode 1918,citadoem R. Kimball and W.Bolcom,Reminiscingwith Sissle and Blake (Vlking, 1972). Gostaria deagradecer Jayna Brown porme chamar atençãopara estelivro magnífico.

22. Petcr Jelavich, Berlin Cabaret (Harvard Univerxity Press, 19(3); Michael Kater, DijferentDrummers: Jazz in the Culture ofNazi Germany (Oxford University Press, 1992), p. 8. Vertambém Jurgen Wilhelm Heinriohs, "Blackness in Weimar: 1920s German Art Practice andAmerican Jazz and Dance" (tese de doutorado, Yale University, maio de 1998).

23. Nancy Nenno, "Femininity, lhePrimitive, andModem Urban Space: Josephine Baker inBerlin",in Katharina Von Ankum, org., Women in lhe Metropo/is: Gender and Modernity ín WeimarCulture (University of Califórnia Press, 1997),

24. "Para espanto e aflição demuitos americanos brancos, os rostos escuros pareciam estarcmtodaparte no verão de 1929 - nas piscinas do Nonnandie e nos apartamentos de luxo do QueenMary". David Levering Lewis, When Ror/em Was ín \.bgue (Oxford University Press, 1989), p.255.

25. The Marcus Garvey and Universal lmprovement Associcuion Papers, vol. 7, novembro 1927 -agosto 1940, org. Robert A. Hillet el. (University ofCalifornia Press, 1990), p. 212.

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I ENTRE CAMPOS :: Nações, Culturas e o Fascínio da Raça I

situação política e econômica da Alemanha, em especial no tocante à "raça", foi

acompanhada de muito perto pelas publicações afro-americanas por todo os Estados

Unidos. Nos primeiros anos do século XX, a violência contra os judeus na Rússiae na Europa Oriental desencadeou manifestações comparativas e de simpatia na

imprensa negra; o tratamento reservado aos judeus despertara um interesse

considerável entre o público leitor negro. À medida que o movimento nazista setornou mais proeminente, a vitimização dos judeus por meio da "raça" tornou-se

outra vez; um ponto central de interesse.A visibilidade crescente do anti-semitismo negro nos Estados Unidos foi

outro fator importante por trás da atenção que se destinou aos problemas raciais

da Europa. Este crescimento era tão preocupante que o Departamento de Sociologia

da Universidade de Howard, sob a direção de Ralph Bunche, empreendeu um

projeto de pesquisa sobre as atitudes e reações da comunidade afro-americana em

relação ao antí-semitismo, que se revelavam em sua imprensa independente e na

sua rrúdia impressa. Sob a diretiva de Bunche de que "nenhuma pessoa no mundo

de hoje é imune ao contágio de estereótipos e ódios raciais", a pesquisadora

Lunabelle Wedlock examinou o conteúdo das maiores publicações afro-americanas

e sua cobertura dos eventos europeus ao longo de sete anos, de 1933 a 1940.O estudo detalhado de Wedlock foi publicado em 1942.26 É um documento

um tanto repetitivo e irregular que apresenta definições muito soltas e elásticas do

pensamento anti-semita. De qualquer modo, ele oferece uma pesquisa inestimável

de como os negros americanos viam a situação de sofrimento dos judeus europeus.

Após uma exposição histórica geral sobre o papel da publicação independente na

constituição do que denominaríamos agora de "esfera pública", além de algumas

observações a respeito dos efeitos da Depressão sobre as relações entre "duas

minorias em desvantagem", Wedlock mapeou os pontos de debate e comparação

que eram então identificados entre as histórias dos dois grupos. Ela tentou esboçar

uma periodização das mudanças na consciência negra americana sobre o nazismo,tanto como uma filosofia política, quanto como um modo de governo racial que

convidava à comparação com as condições nos Estados Unidos, construindo uma

geografia política do anti-semitismo negro, descrito por ela como "um luxo arriscado

26. The Reactíon of Negro Pubtícattons and Organirations lo German Antt-Semítism, HowardUniversity Studies in lhe Social Sciences, vol. 3, n" 2 (Howard University, 1942). Gostaria deagradecer Laura Yow por chamar a atenção para li importância desse texto.

I 344 I

I"I\UL uU..I\VJ

para os negros". Como ela explicou, este "falso credo e preconceito racial" estava

"centrado sobretudo nas grandes cidades do leste" , sendo fortemente associadocom a vida da classe média negra, colocada "na posição irânica de simpatizar empelo menos um aspecto com o nazismo".

Wedlock expressa sua frustração diante da relutância da comunidade afro-

americana em compreender a sua situação "como intemacional''. Isto ocupa umlugar secundário apenas em relação à sua preocupação de que "o preconceito e o

chauvinismo de grupo continuem a dividir negros e judeus". b interessante notar

que ela considera o próprio conhecimento da situação judaica na Alemanha como

um taror contribuinte das grandes expectativas dos negros em relação aos judeus

com quem eles entram em contato: "eles parecem esperar mais simpatia e ajuda

dos judeus do que qualquer outro grupo, por causa da situação judaica alemã".

Ao considerar a impulso intermitente de interesse na difícil situação dosjudeus, Wedlock revela que alguns jamais negros, em particular o Washington

Tríbune, haviam discutido a possibilidade de um massacre dos judeus daAlemanha

já em março de 1933. De acordo com Wedlock, os níveis de comentários e

reportagens sobre esses tópicos no jornal subiam e desciam. Os picos de interesse

seguiam-se a grandes eventos simbólicos como o triunfo olímpico de lesse Owens,as lutas entre Louis e Schmeling e a exclusão de Marian Anderson do Constitution

Hall pelas Filhas da Revolução Americana (PRA) e pelo Conselho de Educaçãodo Distrito de Columbia em 1939. Nessa ocasião, observou-se que "a notável

contralto negra" havia sido recebida previamente tanto por Hitler como por

Mussolini, que ao menos nisso pareciam estar à frente dos fanáticos americanos.

O livro de Wedlock revela repetidas vezes a natureza extensiva de explicações

comparativas sobre as experiências relativas de privação de direitos e violência

que atingiam ambos os grupos. Essas argumentações faziam-se acompanhar às

vezes, assim como são agora, de especulações sobre o "parentesco cultural" dessasduas comunidades.

De uma significância mais prática e imediata foram as opiniões sobre asegregação de atletas negros e brancos nos Estados Unidos ocasionadas pelas

Olimpíadas. A percepção de que Hitler havia menosprezado lesse Owens em seu

momento de glória intensificou o ritmo de uma discussão de amplo alcance que

abarcava o poder da Constituição para inibir a discriminação, a legalidade e ailegalidade do preconceito em ambos regimes e a idéia de que a "Geórgia teme que

o negro faça baixar o nível da civilização anglo-saxã; [enquanto] Hitler teme que

os judeus o elevem demais". Outra maneira possível de se pensar a Alemanha

I 345 I

Page 33: GILROY_Negro Para Futuro (Entre Campos Parte3)

tl'llKt l.i\l"lrU::l e açoes, uurruras e o r ascmtc aa Kaça PAUL GILROV

nazista como comparável à América contemporânea foi vislumbrada por Wedlockno modo como os jornais negros noticiavam as ações de "perseguição dos judeus"

promovidas por Sufi Abdul Hamid. que se autodenorninava o "Hitler negro" e que

tinha as suas bases em New York, mas cuja campanha terminou abruptamentecom a sua morte em um acidente de avião em 1938. Em 1934, noticiou-se que os

judeus negros do Harlem estavam levantando fundos para uma ação mundial

antinazista.Jornais como Philadelphia Tribune, Brown American e Amsterdam News

expunham uma série de artigos sobre negros que viviam "sob o terror" na Alemanha

e acerca da visão nazista sobre os negros. Eles revelavam, por exemplo, um

conhecimento detalhado dos planos nazistas de esterilizar as crianças negras

"bastardas" da região do Reno e do Ruhr, levantando ainda questões perspicazes

sobre a maneira como os nazistas viam as tropas coloniais francesas que os haviam

reconhecido. Duas manchetes de 1934, estampadas no Norfolk Journal andGuide - "Hitler, o Simon Legree moderno" e "Hitler: o Ku-Klux alemão" - parecem

ter captado o tom de boa parte desta cobertura. Discutiu-se se seria apropriadoque os residentes afro-americanos na Alemanha fossem registrados como africanos

e a respeito do provável tratamento que viajantes negros americanos encontrariam

naquele país. As reações nazistas aos "males do jazz" eram também alardeadas,

dando-se um certo alívio, quando por exemplo o mesmo jornal citou um relatório

alemão que censurava os judeus pelo jazz, e não mais os negros, de acordo com a

manchete "Os nazistas nos 'livram' do jazz; culpam os judeus"."

ADORNO, LOCKE E O DEBATE SOBRE JAZZ

Os analistas europeus da ascendência do fascismo haviam também

observado a proeminência da cultura negra em geral e do jazz, em particular, na

cultura pré-fascista do período Weimar. A intrusão da negritude na Europa não foi

algo que estes analistas estivessem preparados a celebrar irrefletidamente. Os

nazistas e muitos de seus oponentes podiam concordar que a estranha habilidadeda cultura negra americana de ser ao mesmo tempo ultramoderna c ultraprimitiva

era a prova de sua decadência e dos riscos que ela apresentava para o corpo

político. Desta perspectiva, a popularidade da cultura negra americana entre os

27. Norfolk: Ioumui and Cuide, 21 de dezembro de 1935, p. 9, cal. 4.

346

europeus rebaixava e corrompia não somente a sua própria arte e cultura, mas a

sua natureza racial que fora invadida e infectada pelo "bacilo" do jazz. O entusiasmocosmopolita pelo que se tornaria logo conhecido como "O jazz judeu negro" 28

teve conseqüências inauspiciosas. As rígidas soluções políticas para essas condições

crónicas, oferecidas pelos fascistas que então mascateavam suas fantasias militares

fascistas de renascimento nacional, começaram a parecer atraentes."Em suas conhecidas tentativas de desvendar os enigmas apresentados pelo

jazz ao dialético, Adorno, que havia notoriamente saudado com entusiasmo os

primeiros controles nazistas impostos sobre o "Negerjazz'', revelou o que percebia

como um laço profundo entre o jazz e o fascismo. Ele descartava a música emparte devido às suas ligações históricas com as bandas militares que haviam

despertado de novo a Europa. Estas conexões marciais fizeram-no afirmar que o

"jazz pode facilmente ser adaptado para o uso do fascismo. Na Itália ele éespecialmente apreciado, tal como o Cubismo e o artesanato". ao Quando combinadocom um elemento volkish, mas tão somente pseudodemocrático e outros atributos

formais e estilísticos que eram regressivos, essa herança militar tornava o jazz e o

fascismo parte da mesma lastimável virada sócio-cultural. Eles foram aspectos

gêmeos de um aviltamento da experiência no sentido da "i nsensibilidade mecânica

ou... decadência licenciosa"." Em vez de cogitar a possibilidade de que o jazz

ajudasse a definir e a praticar novas liberdades, Adorno o considerou como uma

disseminação perniciosa de um padrão alienado e destrutivo que se estabelecera

de início na composição musical de escravos, quando a lamentação em torno da

ausência de liberdade combinou-se pela primeira vez com a confirmação de suaopressão." Para ele, Josephine Baker não foi a personificação do expressionismo.

Enquanto Adorno via e temia a pseudodemocracia encenada com o jazz, os

críticos negros contemporâneos em seu esforço para firmar o modernismo contra

o primitivismo em moldes que acentuavam a sua própria ação tendiam a perceber

28. Michael Kater, "Forbiddcn Fruir?' American Historical Review 94, 1 (1989), pp. 11-43.29. Wendy Martin, "Remembering the Jungle: Josephine Baker and Modcrnist Parody", in Prehistories

ofthe Future; The Prímuívist Project and lhe Culture (jfModernism, org. Elazar Barkan e RonaldBush (Stanford Univcrsity Press, 1995).

30. T. W. Adorno, "On Jazz", tradução de. Jamie Owen Daniel, Díscourse 12, I (outono-inverno,

1989), p. 61.31. Ibid., pp. 45-69.32. T. W. Adorno, "Pcrennial Pashtou-Jazz". in Prisrns, tradução de Samuel Weber und Shicrry

Weber (Nevi1le Spearman, 1967).

347

Page 34: GILROY_Negro Para Futuro (Entre Campos Parte3)

ENTRE CAMPOS o' Nações, Culturas e o Fascínio da Raça

um momento libertador mais autêntico. Ao escrever no New Negro, J. A. Rogerssugerira que um verdadeiro espírito democrático residia no "descaso zombeteiro

com a formalidade" transmitido por aquela música. Nos Estados Unidos, a música

celebrava um novo espírito de alegria e espontaneidade que, como ele afirmou,

"pode por si mesma fazer o papel de reformador". A importante percepção deRogers fora decerto alcançada às custas de se aceitar uma visão do jazz como

uma força exótica e primitiva "recarregando as baterias da civilização" com um

vigor novo e muito necessário. É possível que seja hoje mais profícuo encarar

esses aspectos de seu argumento como uma concessão não essencial e decorativaà atmosfera então vigente e que não compromete sua tese central:

...apesar de seus presentes vícios e vulgarizações, de suas informalidades sexuais,de seu espírito moralmente anárquico, o jazz tem uma missão popular a cumprir. Aalegria, apesar de tudo, tem uma base física. Aqueles que riem, dançam e cantamestão em melhor situação mesmo em seus vícios do que aqueles que não o fazem."

Em toda parte, as vozes da disputa sobre o valor e o significado da música

negra do entre-guerras em relação ao fascismo nascente parecem ter aceitado a

proposição de que mesmo se a música não era em si mesma um meio de restauração

e de renascimento democrático, ela poderia fornecer uma mcdida apropriada para

que o progresso da raça em desenvolvimento pudesse ser lido. Foi aqui que a

música começou a ser imaginada como um modelo criativo para as artes visuais eum plano técnico para romancistas e poetas.

O grande sábio Alain Locke, logo após um período de três anos na cátedrade Rhodcs em Oxford e outro de dois anos em Berlim, assumiu esta abordagem

em sua cuidadosa exposição a respeito do estado da composição musical, publicada

em 1936. Locke entendia o jazz em termos rripartites, isto é, "parte negro, parte

americano, [e] parte moderno". Ele reconhecia o papel fundamental que a banda

de James Europe - descrita por ele como "a maravilha musical da década" -

havia desempenhado ao levar a música para um público mais vasto. Ele burlava as

origens e o caráter raciais do jazz contra as qualidades cosmopolitas e modernasque surgiram quando as formas negras misturaram-se com elementos dos brancos

e dos judeus numa "grande colaboração inter-racial'': "o jazz atual é um negócio

cosmopolita, um amálgama do tempo e dos humores modernos ... o jazz é

33. J. A. Rogers, "Jazz at Home", New Negro, org. A. Locke (Athcneum, 1968 [1925J), p. 223.

348

PAUL GILROV

basicamente negro, e assim felizmente, também é humano o bastante para ser

universal em apelo e expressividade't." Como ele acrescentou, o que importa "é a

qualidade artística do produto, não a quantidade da distribuição, e nem a cor doartista. O inimigo comum é o perigo sempre presente de comercialização que até

bem recentemente tem tido uma influência ruinosa cada vez maior sobre ocrescimento saudável desta música". 3S

Assim como Adorno, Locke estava ciente dos perigos da comercialização eda transformação da música em mercadoria. Num bom estilo hegeliano, também

como Adorno, ele tentou compreender o significado da emergência do jazz como

"a moda recreativa dominante" em seu contexto histórico, um estágio descrito por

ele repetidas vezes como "febril e neurótico". Ele afirmou que a "moda do jazz

deveria ser considerada como um sintoma de uma inquietação e mudança culturais

profundas" que "seriam um fator importante na interpretação do espírito subjacente

de nosso tempo"."Locke não identificou o fascismo explicitamente como outro elemento desse

fluxo cultural, preferindo em vez disso enfatizar a maneira com que o jazz se

opunha, tanto ao protestantismo, como às monotonias da civilização guiada pela

máquina. Ele reconhecia o poder explicativo das teorias dominantes do jazz, que o

viam como um meio de fuga emocional por um lado, e de rejuvenescimento

emocional por outro. Contudo, o jazz não era apenas uma combinação sutil de

narcóticos e estimulantes como sugerem essas teorias influentes. Ao se aperceber

que as formas sérias do jazz haviam ultrapassado em muito o seu papel como "o

antídoto desesperado do negro e a cura para o seu pesar", tomando-se "a línguamusical característica da idade moderna", Locke levantou a possibilidade de que

esta música alegre pudesse ser uma "anti-toxina cultural, trabalhando contra os

sintomas mais mórbidos da mesma doença da qual o próprio jazz era um subproduto".

Uma vez mais tal como Adorno, ele reconhecia a significância fundamental do

"lado erótico do jazz", que tinha "uma relação direta com a sexualidade mais livredesta época"."

34. Alain Locke, The Negro and Ris Music, Bronze Bookler n° 2 (The Associares in Negro FolkEducation, 1936), p. 72.

35. Ibid., pp. 82-83.36. Ibid., p. 89.37. Ibid., p. 38.

349

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ENTRE CAMPOS :: Nações, Culturas e o Fascinio da Raça

Uma contra-história fragmentária do modernismo artístico está à espera deser destilada a partir destas observações sugestivas, mas para nossa frustraçãoLocke deixa em aberto a possibilidade de "conexões diretas" entre "o jazz e ascrises da civilização modema". Suas percepções ajudam a estabelecer mais doque meras conexões contingentes entre as culturas e as histórias negra e branca,e entre a cultura dos negros do Novo Mundo e o destino dos judeus na Europa,aglutinados pela higiene racial nazista sob o signo abusivo do cosmopolitismodesenraizado. Contudo, elas não vão muito além, deixando de mostrar como osnegros testemunharam vivamente as circunstâncias catastróficas a seremencontradas no ponto terminal da tipologia racial da Europa.

ÉTICA E MÉTODOS

Diversas estórias de cruzamento cultural igualmente desestabilizadoraspodem ser tecidas em torno de figuras heróicas negras a quem é possível considerarcomo tendo infligido pequenas, mas significativas derrotas simbólicas sobre osnazistas:Josephine Baker, Jesse Owens eJoe Louis. Mais do que ninguém, MichaelKater se esmerou em recolher e analisar os impressionantes contos da presençado jazz e suas ramificações locais na vida cultural da Alemanha nazista, e emtraçar os percursos da música até mesmo nas operações internas dos campos deconcentração." Estas conexões e reflexões podem, é claro, ser deixadas de ladode acordo com as mesmas linhas sugeridas pelas análises críticas de Adorno,como nada mais do que instâncias da natureza interconectada da vida culturalalienada e reificada que se seguiu à industrialização da produção cultural. Dessaperspectiva, elas revelariam apenas o alcance transnacional da cultura negraamericana, exibindo parte dos recursos dinâmicos providos por essa cultura à vidada Europa antes da guerra e ao longo dela. Mas é apenas isso. Minha perspectivaé distinta na medida que reconhece oportunidades importantes neste cruzamentode culturas. Estas histórias de cosmopolitismo desenraizado tomaram-se umcatalisador para a multicultura do futuro.

38. Michael Kater, Different Drummers: Jazz ín the Cutture of Nazi Germany (Oxford UniversuyPress, 1994); Eric VogeJ, "Jazz ín a Nazi Concentrarion Camp, pts. 1 and 2", Downbeat (7 dedezembro de 1961), pp. 20-21, e (21 de dezembro de 1961), pp. 16-21; Mike Zwerin, LaTristesse de Saint Louis: Swing unáer the Nazis (Quartel, J985); Horst 1. P. Bergmeier e RainerE. Lotz, Hítler's Airwaves.The Inside SlOryofNa:)' Radio andPropaganda Swmg (YaleUniversityPress, 1997).

350

PAUL blLKUY

Os estudos históricos de Kater, Detlev Peukert'" e outros trouxeram à tonarelatos poderosos daquela centralidade da subcultura musical para a consciênciade oposição, em especial entre os jovens. É extraordinário que o regime nazistatenha tido de batalhar tanto para cooptar e recuperar esses estilos modernos paraseus próprios propósitos. A avaliação desta camada de conexões adicionais,conversas transculturais e convergências estilísticas inesperadas deveria incluiruma ampla consideração sobre a visibilidade dos negros na arte, propaganda ecultura popular nazista, assim como o lugar da "raça" nos termos do que se temtentado nomear de "estética fascista", estando esta tarefa, porém, além do alcance

deste livro."A revolução cinematográfica inovadora e duradoura iniciada por Leni

Riefenstahl e examinada brevemente no capítulo 4 será, sem dúvida, central paraaquelas considerações. É preciso pensar também não apenas nas tentativas deGoebbels em manufaturar substitutos racialmente aceitáveis para o jazz, mas noseu desejo de produzir um entretenimento nazista grandioso que pudesse oferecerum equivalente cinemático para E o vento levou. O épico de 1941, Ohm Krügerfoi, por exemplo, encenado na África do Sul tendo como pano de fundo a guerrados bôeres. Em Quax ín Af"rica e Congo Bxpress, o colonialismo proporcionouum veículo apropriado para os mesmos prazeres e fantasias poderosas. Assimcomo a fantasia orientalista de Josef Von Baky, Münchhausen," que é maisconhecida, essas produções tinham o efeito imprevisto de ajudar um númerosignificativo de prisioneiros de guerra afro-alemães e afro-americanos a sobreviveràs durezas dos tempos de guerra por meio do trabalho como figurantes de filmes."O biógrafo de Goebbels, Ralf George Reuth, nos conta que apesar de Goebbelscriticar E o vento levou em público, este era "entre os filmes de Hollywood ...aquele que mais o arrebatou"." Para saber exatamente o que prendeu seu olhar e

39. Detlev Peukert, tnsíde Nazi Germany: Conformíty, Opposition ond Racism ín Everyday Life,tradução de Richard Deveson (Pelican Books, 1989).

40. Karen Pmkus, Bodily Regimes: ftalian Advertising undcr Fascism (Univcrsity of MinnesotaPress, 1995); Susan Sontag, "Fascinating Pasclsm", in Under the Sign ofSaturn. (Farrar Straus

and Giroux, 1984).41. Linda Schultc-Sasse, Entertainingthe Third Reich: tllusions ofWholeness iIINazi Cinema (Duke

University Press, 1996), cap. 10.42. David Stewart Hull, PUm ín theThirdReich: A Studyofthe CermanCinema, 1933-1945 (University

of Califórnia Press, 1969), p.182.43. Ralf Georg Rcurh, Gaebbels, tradução de Krishna Winston (Harcourt Braoe, 1993), p. 194.

351

Page 36: GILROY_Negro Para Futuro (Entre Campos Parte3)

I ENTRE ャamiGuセ •• naçoes. lUlturas e o j-asctntc da Raça I

mexeu com suas emoções, seria preciso também levar em consideração mais

detalhes do que é possível fazer aqui. Basta dizer que há neste exemplo ainda mais

evidências preliminares tanto para perceber a importância da encenação coloniaJ

destes.épicos, quanto para examinar o significado do cenário racializado frente ao

qual o conflito mundial histórico entre as nações inglesa e alemã poderia ser avaliado

com mais clareza. Em outras palavras, em que medida o cenário africano e a

presença de negros contribuíram para a acentuação destas imagens fascistas?

Embora reconheça, abstendo-me, porém, de enveredar pelo escopo

vertiginoso destas grandes questões, gostaria de considerar a possibilidade de haver

um outro tipo de articulação, talvez mais fundamental, a ser explorado entre aquelas

histórias que não precisam mais ser consideradas como discrepantes e atribuídas

de um modo não problematizado aos seus vários profissionais étnicos. Esta conexão

mais conceituaI parece ter sido gerada pela lógica política distintiva da tipologia e

diferenciação raciais que fundamenta as conexões culturais contingentes

mencionadas acima. Ela tomou os judeus sem cultura responsáveis pela música

negra que era - isso para não mencionar Hollywood -eua arma cultural mais

perniciosa na luta secreta pela dominação do mundo. Esta articulação pode ser

melhor abordada como um simples produto da anti-Iógica conspiratória que operava

na raciologia nazista. O negro infantil produzia música e dança, mas não tinha

preparo para compreender ou explorar o poder primitivo e sedutor de ambas como

um meio para distrair, enganar e, por fim, destruir o ariano desavisado, que por seu

turno tornou-se vulnerável a essa infecção somente através das maquinações

diabólicas do judaísmo internacional. Sempre que o poder degenerativo da música

negra se difundiu entre ajuventude ariana desavisada e vulnerável, o racismo anti-

negro e o anti-semitismc reconciliaram-se prontamente em matéria de política

prática. Eles se aglutinaram teoricamente através de diversos tipos de reducionismo,

determinismo e mecanicismo que envolviam a codificação da biologia como cultura

e a codificação da cultura como biologia. Estas diferentes formas de raciologia

têm sido distinguidas mais recentemente como o velho racismo e o novo racismo,

mas é importante lembrar que em grande parte do período tratado aqui, elas formaram

o que George Stocking chamou de "gestalt etnográfica", onde o "tipo físico não

se separava perceptivamente" de outros sinais de diferença."

44. George Stocking, Victorian Anthropology (Free Press, 191!7), p. 106.

I 352

I PAUL GILROV I

Se a biologia ou a cultura aspirou a uma precedência suprema, uma lógica

subjacente que se expressa através de ontologias raciais e a marginalização de

questões éticas, o que constitui a sua marca, propiciaram uma legitimação importante

para a brutalidade, o terror e o etnocídio historicamente decretado do diferente e

do inferior. É necessário testar constantemente a capacidade específica destes

discursos racíalieantes. Eles podem ser comparados não apenas com a linguagem

de algumas religiões fundamentalistas e sectárias, mas também com as ambições

exterminadoras representadas pelos anseios classistas de matar, que ocorrem alhures

na história do totalitarismo europeu. É valioso também refletir sobre as linhas

específicas internas em que os apelos à solidariedade e ao pertencimento racial e

étnico eram operativos. As brutalidades perpetradas em conjunção com o que

pode ser chamado de "poética do sangue" por meio do contínuo regime de poder e

de representação, chamado por Fanon de "epidermização'', e conduzidas, mais

recentemente, através do emergente discurso nanopolítico de "raça" (remodelado

agora em termos de genes e de informação), estão a exigir em uníssono que essa

possibilidade seja considerada.

A força específica do discurso racista moderno pode ser registrada em

lugares e tempos aparentemente remotos em relação aos exemplos que tornaram

a Europa ocidental o ponto exclusivo de ingresso nas considerações críticas sobre

o fascismo. Dois exemplos distintos bastam para sublinhar este ponto. O primeiro

é tirado da história do nacionalismo croata, no qual, sob a liderança de Ante Pavelic,

a descendência de fontes arianas heróicas tornou-se a chave de aspirações

assassinas, merecedoras do nome fascista. O segundo emerge dos sepulcros de

Ruanda. A hipótese camita sobre as origens das diferenças "raciais" entre bahútu

e batútsi, que lá foi introduzida por missionários e consolidada por administradores

coloniais, tem sido identificada como um elemento importante na constituição da

mentalidade genocida. Em ambas as instâncias, a narrativa de uma identidade

absoluta emerge como um problema central. Onde quer que as forças míticas de

diferença racial e étnica apareçam, as solidariedades poderosas emergem juntamente

com formas distintivas de legitimidade." Num nível mais básico - estaria tentado

a dizer humano - precisamos também notar as maneiras com que as técnicas da

soldadesca, as quais o psicólogo militar tenente-coronel Dave Grossman chamou

45. Yael Zerubavel, RecoveredRoots:Cottectíve Memoryand file Makingoflsroeíí NationoiTradítion(University 01' Chicago Press, J995).

I 353

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ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça

com propriedade de "assassinologia", admitem o papel que uma sensibilidadeacentuada em relação à diferença "étnica" e "racial" desempenhou na remoçãoda inibição fundamental contra a matança:

É tão mais fácil matar alguém se eles parecem muito diferentes de nós. Se a suamáquina de propaganda pode convencer seus soldados que os oponentes delesnão são realmente humanos, mas sim "formas inferiores de vida", então a suaresistência natural a matar sua própria espécie será menor. A humanidade do inimigoé reduzida com frequência ao nos referirmos a ele como "gook", "Kraut" e "Nip."No Vietnã, este processo foi assistido por uma mentalidade de contagem de corpos,quando nos referíamos ao inimigo e pensávamos nele como números. Um veteranodo Vietnã me contou que isto permitiu aele pensar que matar NVAe o VC era como"pisar em formigas"."

Primo Levi, que também se ocupou do papel dos números no processo dedesumanização, adotou um ponto de vista diferente ao considerar os elementosdeste problema numa seçâo de The Drowned and lhe Saved [Os Afogados e os

Salvos], em que ele descobre a utilidade real da violência aparentemente inútiltestemunhada por ele como um interno de Auschwitz. Acima de tudo, aquelabrutalidade foi útil como um meio para produzir a solidariedade entre seusperpetradores. Ela os capacitou a se comportar com mais liberdade sem o ônusdos fatores moral, religioso, emocional e psicológico quc teria perturbado suasoperações caso tivessem conferido um status humano às suas vítimas, comparávelàquele que haviam destinado a si mesmos. A discussão do coronel Grossman, arespeito daquilo que ele chama "poder intemalizado para matar", sugere que ao

menos nisto o grande programa nazista de assassinato racial não parece ter sidoexcepcional."

46. Lt. CoI. Dave Grossman, On Killing: The Psychologiccd Cost of Leamlng to KiIl ín War andSociety (Little, Brown, 1996), pp. l ó I"162; Grossman especula sobre o possível efeito docondicionamento racial nazista em aumentar as taxas de perdas que foram infligidas às forçasbritânicas e americanas por tropas alemãs. Acredita-se que estes índices sejam 50 por cento maisaltos do que aqueles sofridos pelas tropas alemãs nas mãos de seus inimigos. Ver também BenShalir, The Psychology ufConflict and Combar (Praeger, 1988).

47. Herbert Kelrrum,"víolence without Moral Restraint", Journal ofSociat Issuos, 29, 4 (1973), pp.25-61; Henri Zukier, "The Twisted Road to Genocide: On the Psychological Developmeru otEvil During lhe Holocausr", Social Research; 61 (1994), pp. 423-455.

354

PAUL GILROV

Este é mais um pequeno passo para se cogitar sobre a possibilidade de quea linguagem racializante e a ação correlata podem instigar aqueles mesmossentimentos e solidariedades que em geral se pensa como prévios a elas. Estesprogramas de ação são regimes racializantes セ estruturas de sentimento e de ação

- que produzem as "raças" em arranjos hierárquicos ao fazer com que a "raça"seja significativa, mantendo-a como um aspecto óbvio, natural e aparentementeespontâneo da vida social ordenada. A qualidade da ordem se toma ainda maispreciosa e relevante em situações extremas. A hierarquia, a autoridade e aindulgência, que a ordem pode proporcionar, facilitam o processo em que homense mulheres se tornam capazes de matar outros seres humanos. Este padrãocomplexo envolve uma interação recíproca entre a raciologia e suas conseqüências.Devemos, portanto, estar preparados para confrontar a ação da violência - e, defato, do próprio sangue - como um meio de produção das próprias diferenças"raciais" que não existem antes de tantas tentativas brutais e sangrentas para

engendrá-las.A ordem distinta de diferenciação "racial" é marcada pelo seu rótulo singular,

pelo peculiar deslizamento entre "relações reais" e "formas fenomenais" a que

esta ordem corresponde, e por uma postura específica (a)moral e (antijpolttica.Esta ordem envolveu não só o confinamento de pessoas "não-brancas" ao statusde animais ou de coisas, mas também a redução de pessoas européias ao statusintermediário dessa ordem inferior de ser, situado entre o humano e o animal quepode ser mal-tratado sem as intrusões de uma má consciência.

Atualmente, em circunstâncias que conseguem de algum modo tanto proibircomo demandar uma política cultural insurgente, nossas escolhas são maiscomplexas do que aquelas sugeridas pela declaração apócrifa de Goebbels citadana frase de abertura deste capítulo. Um fascismo original e convenientemente

rotulado, tendente a obliterar a cultura e a destruir seus defensores e silenciososguardiões, não se coloca com audácia e em oposição cerrada a uma consciênciaanti-fascista inocente e íntegra que alinha a cultura e a civilização ao seu ladonuma batalha contra o mal. As sementes do fascismo europeu têm se espalhadopor uma grande extensão nos moldes do que Primo Levi chamou de "a silenciosa

diáspora nazista". Poderíamos mencionar que a complexa linhagem do fascismotem se complicado ainda mais devido ao amplo mimetismo de seu estilo político porvários regimes, que embora possam ser de natureza ulrranacionalista, violenta ouconservadora, não compartilham da orientação do fascismo propriamente dito, cujoteor é anti-conservador, anti-liberal, populista, fratemalista e revolucionário. As

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ENTRE CAMPOS :: Nações, Culturas e o Fascinio da Raça

tecnologias fascistas da personalidade e da solidariedade provaram ser tão influentese atrativas quanto o apelo de qualquer um de seus aspectos ideológicossístemãticos." Talvez esta seja a forma como os fascismos têm sido capazes de

falar repetidamente em nome da cultura, tornando-se eloqüentes sobre as

hierarquias raciais, nacionais e étnicas construídas pela idéia da diferença culturalabsoluta ao longo das linhas nacionais. De certo modo, então, pode-se dizer que o

fascismo adquiriu, ou mesmo se tomou, uma cultura em seu próprio direito. Estaoperação teve lugar no interior das fronteiras constituídas por aquilo que Deleuzee Guattari se referem - em seu célebre alerta de que ninguém é poupado dasseduções do fascismo セ como seus "pontos focais, moleculares".

Os COSMOPOLITAS NEGROS FACE A FACE COM O FASCISMO

É provável que Baker, Fanon e Senghor sejam os mais conhecidos dentremuitos negros que se opuseram ao fascismo no campo de batalha e na resistência.Há outras pessoas menos conhecidas e em grande medida esquecidas que sejuntaram à oposição a Hitler, passaram suas vidas em campos e centros de detençãode vários tipos, ou sobreviveram silenciosamente, retornando para as estranhasambigüidades de sua existência como europeus negros. Entre aqueles que deveriamser lembrados aqui está Hilarius "Lari'' Gilges, que foi espancado até a morte pornazistas em Dusseldorf em 1933, sendo uma das ーoucセャs vítimas negras de Hitler ater algum tipo de memorial público. O ativista belga Johnny Vosté foi um membrodo movimento de resistência. Preso em 1942, ele não só sobreviveu a Dachau,

mas também ajudou alguns de seus camaradas a conseguirem o mesmo. Houvetambém Johnny William, um francês nascido na Costa do Marfim que foi deportadopara o complexo do campo Neuengamme perto de Hamburg, ao qual sobreviveu,

conforme ele acredita, graças ao calor produzido pela fábrica de armamentosWalther, onde ele foi posto em trabalho forçado. Segundo ele testemunhou, haviaoutros cinco ou seis internos negros no mesmo campo que, ao menos de início, sebeneficiaram da reputação de destreza física estabelecida nas mentes de seus

captores pelo triunfo de lesse Owens em 1936.49

48. Daniel Chirol, Modem Tymnss: The Power und Prevalence uf Evil iII Our Age (PrincetonUniversuy Press. 1994).

49. Entrevistas com e sobre estas importantes figuras encontram-se no filme pioneiro de DavidOkuefuna, Híüers Forgotten viaíms, produzido pela Afrn-Wisdom Productions em 1997.

356

PAUL GILROY

Como a discussão anterior de Senghor sugere, o material sobre a vida dosgrandes campos fundados pelos alemães para os prisioneiros coloniais de guerra é

um tanto incompleto. Contudo, uma literatura pequena, mas extremamente útilnarra a experiência contraditória e às vezes bizarra de prisioneiros de guerra negros

nas mãos dos nazistas, a quem faltava segurança sobre onde exatamente os negrosse encaixavam no esquema racial das coisas. Ainda que rejeite em termos umtanto peremptórios o caso de Johnny Vosté, um "homem mulato que pretendia terestado em Dachau'' sem oferecer documentos comprobatórios nesse sentido,Robert W. Kesting, arquivista do Museu Memorial do Holocausto dos EstadosUnidos em Washington, D. c., acumulou uma coleção pequena, mas profícua dedocumentos extraídos em sua maioria de pastas de pesquisadores do pós-guerraacerca dos crimes de guerra." Sua pesquisa preliminar confirma haver evidênciassaídas do próprio cenário europeu de soldados coloniais e afro-americanos, assimcomo de efetivos da Força Aérea sendo sumariamente assassinados e mutilados adespeito dos termos de tratados internacionais que regem o tratamento dos POWs[prisioneiros de guerra]. Há também material sugerindo que os nazistas eraminconsistentes, se não o fossem de fato confusos, sobre como lidar com os negros

capturados por eles em combate. Histórias horríveis sobre a carnificina do campode batalha e a violência inspirada em termos raciológicos combinam-se com outrosrelatos de prisioneiros negros que admitem ter encontrado uma certa medida deconsideração que reconhecia a sua humanidade, ou ainda terem sido tratadosrazoavelmente com base numa hierarquia racial que especificava seu status comomenor do que um humano por inteiro e, por isso mesmo, não precisando ser

maltratados, tal como no caso de animais domésticos ou de estimação.A Força Aérea Real Britânica (J:<f\R) recrutou um número significativo de

eferivos negros através do Esquema de Recrutamento Ultramarino do Ministérioda Aeronáutica. Um oficial guianês da FAR, Cy Grant, foi capturado depois de ser

abatido próximo a Arnhem em 1943, tendo passado os dois anos seguintes em umcampo de POWs. Segundo relatou, "o único racismo que encontrei [lá] veio daparte de um americano ... um cabo ou algo assim que estava neste campo de

detenção. E ele me chamou de nigger, uma ou duas vezes, mas eu não tive nadaassim dos alemães. Eles não me escolheram para nenhum tratamento especial"."

50. Robert W. Kesting, "Porgotten Victims: Blacks in the Holocausr", Journal.ofNegro History, 78,1 (1992), pp. 30-36.

51. Mike Phillips e Trevor Phillips, wíndrush: The lrresistihle Rise 0/ Multi-Racial Brítaín(HarperCollins, 1998), pp. SQセSRN

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ENTRE CAMPOS •• Nações, CuLturas e o Fascinio da Raça

Ransford Boi, um marinheiro da frota mercante britânica, foi capturado perto daCosta da Libéria, em dezembro de 1939, tendo sido transferido para um campo em

Sandbosrel, entre Bremen e Hanover. Ele passou dois anos nesse lugar antes deser mandado para outro campo de internação não nomeado, onde havia cerca de

trinta outros internos negros. O regime era relaxado a ponto de ele viver algumas

aventuras picarescas surpreendentes.52 Embora não se deva conferir significância

em demasia a estes fragmentos, é preciso permitir que eles assumam um lugarapropriado nos relatos das complexidades práticas da raciologia nazista num contexto

de guerra. Em termos mais oblíquos, este tipo de matcrial pode também ser usado

para indicar um diferente tipo de narrativa: a pré-história de uma Europa multicultural.

Embora formados cultural e intelectualmente a partir de pressões e de

instituições bem diferentes daquelas que influenciavam esses descendentes dascolônias, os soldados afro-americanos, que chegaram por fim aos portões dos

campos de concentração nazistas como parte das forças militares vitoriosas, também

deram mostra de que a sua compreensão da ordem racial a que eles haviam sido

submetidos em suas terras natais inóspitas acabou sendo transformada diante da

dimensão absoluta dos horrores racionalmente empreendidos nos campos. O senso

básico de vergonha humana que eles compartilhavam com seus companheiros

brancos complicou-se no caso deles devido à percepção de que também eles haviamsido vítimas da raciologia e de suas brutalidades características através de formas

cotidianas mais amenas. Muito do trabalho de limpeza em Dachau e Buehenwald

foi empreendido pelo 183" batalhão de engenheiros de combate." Sua presença

naquele humilde papel tradicionalmente designado ao negro permite visualizar as

experiências de soldados negros que estiveram na linha de frente no combate àsforças militares nazistas.

A presença destes soldados negros na libertação de um campo foi notadapor Benjamin Bender, um interno de Buchenwald em busca do paradeiro de seuirmão em meio ao derradeiro caos deste lugar:

o terreno adjacente à portaria estava coberto de corpos. Muitos tinham cobertoresrasgados sobre suas cabeças. Estes internos haviam se recusado a se juntar à

52. Weekly Journat, 4 de maio de ]995, p. 5, e West A.Mca, vol. 22, 8 de maio de 1995, p.778.53. Lou Potter com William Miles e Nina Rosenblum, Liberators: Fighting on TwoFrorüs in World

War II (Harcoun Bracc lovanovich, 1992); vertambém Brenda L. Moore, To Serve My Courury;to Serve M)' Race: The Story of the GIlI)'African-Amencan WACs Stationed Overseas duríngWorld War II (New York University Press, 1996).

358

PAUL GILROY

derradeira marcha da morte pm·a Dachau; alguns estavam feridos, alguns estavammortos.A cena era repulsiva...Ao lado da estrada, jipes e veículos semicaterpilares

estavam estacionados... O imenso pátio de chamada estava cheio de soldadosamericanos, os melhores do General Patton, homensnegros altos, medindo cercade1,83 m, com lenços coloridos em torno do pescoço. Eu nunca tinha visto homensnegros antes. Eles eram irreais para mim. Os soldados tentavam ajudar, carregando111te111os em macas, alguns mortos, alguns moribundos que estendiam suas mãosdizendo: "Irmão, eu estou morrendo, me dê sua mão". Os soldados estavam emestado de choque,choravam comobebês. Eles lhes davam as mãos.Algunsinternosestavam apenas sentados estupefatos.>'

Samuel Pisar, um interno de Dachau, prestou um depoimento sobre a suaprópria "libertação" ao Washington Post em maio de 1995. Escondido em umceleiro depois de escapar de uma marcha da morte, ele espionou um tanquedesconhecido numa estrada próxima:

O tanque prosseguia seu cauteloso avanço... Procurei automaticamente peladetestável suástica, mas não havia nenhuma. Em vez disso, vi um emblemadesconhecido - urna estrela branca com cinco pontas.Por um instante, o inimaginável inundou minha mente e minha alma. Depois dequatroanosnasprofundezasdo inferno, eu,condenadon'' B-1713, tambémconhecidocomo Samuel Pisar,filho de uma bela famíliaque haviasido varridada face da terra,sobrevivi de fato para ver a gloriosa insígnia do Exército dos Estados Unidos.Minha cabeça pareciaestourar. Comum urroselvagem salteiparaforae mearremesseiem direção àquelamagnífica visão.Eu aindaestava correndo,agitandomeus braços,quando de repente a escotilha do veículo blindado se abriu e um rosto negro,protegidocomcapacetec óculos,emergiu,praguejandoem minhadircção de maneiraininteligível...Pistola na mão, pulou para o chão para me examinar mais de perto..Para sinalizar que eu era amigo e precisava de ajuda, caf a seus pés, dizendo aspoucas palavras em inglês que minha mãe costumava suspirar enquanto sonhavacom a nossa libertação; gritei: "Deus Abençoe a América!" Com um gestoinconfundível, o americano alto acenou para que eu me levantasse, e me ergueuatravés da escotilha até o ventre da liberdade."

54. Benjamim Bender, Glimpses Through Holocaust and Liberation (North Atlantic Bnoks, 1995),pp. 161-162.

55. "Escape from Dachau: My Dwn, Private V-E Dai', Wáshington Post, domingo, 7 de maio de1995.

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ENTRE CAMPOS" Nações, Culturas e o Fascínio da Raça

Elie Wíesel e Israel Lau, dois ex-prisioneiros muito conhecidos, mencionarama presença de soldados negros em momentos semelhantes de sua vivência. OArquivo Portunoff da Universidade de Yale, com testemunhos de sobreviventes doHolocausto gravados em vídeo, apresenta diversos outros exemplos contendo relatosde prisioneiros libertados por tropas americanas negras, ou descrições de seusencontros com eles logo depois de escaparem dos campos.56 Assim como aconteceucom Benjamin Bender, esses encontros tornaram-se em geral memoráveisprecisamente por serem as primeiras ocasiões em que se via uma pessoa negra.

Estes encontros servem como uma lembrança poderosa da arbitrariedadedas divisões raciais, do absurdo e da mesquinhez das tipologias raciais e dos perigosmortais que sempre estiveram presentes em sua institucionalização. O testemunhoeloqüente prestado por eles sobre a unidade e a similaridade da espécie humana, etambém sobre a moralidade do reconhecimento intersubjetivo, é ainda mais valiosopor ser oferecido inocentemente do âmago da desgraça radical do século XX.Entretanto, estas mesmas qualidades intranqüilas tornam estes testemunhosperturbadores e extremamente difíceis de lidar num mundo codificado racialmentecujas suposições obstinadas são desestabilizadas por estas histórias cosmopolitas.A exigência implícita de que as diferenças insignificantes identificada" como raciaisnão têm nenhum peso quando vistas em meio à aura dos horrores engendradospela "raça" é atualmente impossível de satisfazer.

Nos Estados Unidos, a significância contemporânea destes contos sinistro"tem sido disputada e diluída pela controvérsia que ainda ronda o filme documentárioinovador Liberators dirigido por Nina Rosenblum e Bill Miles e exibido na televisãopública dos Estados Unidos e no Canal 4 da Grã-Bretanha no começo da décadade 1990. Como parte de uma ampla analise sobre o lugar dos afro-americanos nasforças armadas e a relação entre as suas lutas contra o fascismo e o fracasso daAmérica mesma em cumprir com os direitos humanos e civis de seus cidadãosnegro::; durante o mesmo período, o filme reuniu ex-prisioneiros de campos eveteranos de guerra negros para comemorar e explorar a importância histórica,moral e política de seus primeiros encontros diante dos vergonhosos portões dos

56. Tape '1'-107;Leon Bass do 183Q batalhão de engenheiros de combate, '1'-1241; Robbi Weissman,'1'-3061;Jacob Boehm, HVT 1357: Harry F., HVT 2761, Tobias C, HVT 2266; Susan Soffcr, '1'-876. Estas fitas do Arquivo Fortunoff, Universidade de Yale, cobrem incidentes em Buchenwald,Sa1zwedel, Gunskirchcn e Mauthauscn.

360

PAUL GILROY

campos. O texto local a este respeito enconrra-se na sua tentativa corajosa demudar os teimas que então conduziam a triste relação entre negros e judeus, em

especial na área de New York.Para entender a tempestade de críticas que envolveu o filme, passado o

entusiasmo inicial que saudou sua aparição, é importante notar que o termo"Liberator" adquiriu uma definição técnica específica neste contexto. Para serem

merecedores dele, os soldados tinham de ter chegado no campo nas quarenta eoito horas de sua abertura à visão de um mundo incrédulo. Os registres militaresoficiais relativos ao deslocamento de soldados negros e seus tanques estãodesaparecidos, inconclusos e contraditórios, mas ninguém põe em dúvida que ossoldados afro-americanos chegaram em Mathausen e ao seu subcampo deGunskirchen dentro do tempo especificado, ou que tenham sido vistos em Dachaue Buchenwald em algum momento próximo da hora da libertação, apesar de quenão necessariamente dentro do período de quarenta e oito horas requerido. Combase tanto em evidências fotográficas quanto em testemunhos de sobreviventespara sustentar seu caso, o filme trouxe as mesmas pretensões de "Liberator'' paraos soldados negros em Dachau e Buchenwald: campos mais famosos com maiorprestígio na economia da memória oficial do Holocausto. Mas é muito mais profícuoobservar que o filme, que contou com o importante endosso público do ReverendoJesse Jackson, parece ter trazido um desafio profundo ao estado das relaçõesentre negros e judeus nos Estados Unidos. Sua percepção da indivisibilidade doracismo e da importância do testemunho prestado pelos negros a respeito dogenocídio nazista violou uma visão popular que considera esta história como umapropriedade de grupos e interesses particulares, cuja serventia atende a importantesfunções de legitimidade e solidariedade. Houve em seguida diversas denúncias dofilme como uma mentira e como um exemplo distorcido de uma reescrita da história

politicamente correta. Ele foi definido e repudiado pelo seu revisionismo e pelo seupapel em divulgar uma "nova linha sobre os judeus", de acordo com o radical e

controvertido Jackson.Se as teses centrais do filme, a saber, que os afro-americanos envolveram-

se bravamente na guerra contra o hitlerismo e na abertura de suas fábricas demorte e outros campos, não podem ser recusadas, então a controvérsia sobre ostatus-chave do "Liberaror" parece deslocada. Para o forasteiro isto se parececom um subproduto estranho do processo misterioso que restringia a concessão dehonras militares a unidades específicas e a seletos comandantes. Numa situaçãoem que se recusava atívamente aos negros a partilha de um reconhecimento

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I ENTRE CAMPOS .. Nações, CuLturas e o Fascínio da Raça I

nacional proporcional ao heroísmo deles nos campos de batalha, não é de se

surpreender o apagamento de quaisquer papéis que eles tenham desempenhado

nesses eventos. A rixa sobre a duração de tempo e o posicionamento também

parece trivial quando considerada juntamente com a inegável presença de negrose outros americanos não-brancos nessas lutas. Este é um fato histórico que não

tem sido suficientemente apreciado e contextualizado. É parte não apenas da história

de negros e judeus em New York, mas da história da Europa no próximo século.Os detalhes desses encontros certamente são importantes; constituem um baluarte

contra as tentativas de negar a ocorrência do genocídio nazista. Os registres

fragmentados e incompletos do caos da guerra não deveriam se tomar um pretexto

para as batalhas políticas contemporâneas, cuja única serventia é reificar e fortificardiferenças raciais espúrias.

A FACE DE PEDRA

Após reunir as implicações deste longo argumento, ficamos com a questãode como podem ser usadas essas histórias cosmopolitas e translocaís de extremidade

e mutualidade humana. Que lugar, isto se houver algum, deveria ser conferido a

elas ョ。セ explicações 」 ッ ョ エ セ ュ ー ッ イ  ̄ ョ ・ 。 ウ sobre a "raça" e nos conflitos sobre a direção

e o carater da cultura e civilização européia? Estas questões foram especialmente

ー イ ・ セ 」 セ ー 。 ョ エ ・ ウ não apenas aos afro-americanos e tropas coloniais que haviam

ー セ セ ャ ー 。 、 ッ da ァセ・イイ。L mas também àqueles que chegaram na Europa logo após otermíno das hostilidades formais. O romancista e escritor afro-americano William

Gardner Smith fez parte das forças de ocupação na Alemanha, tendo se decidido

a mo:ar em セ 。 イ ゥ ウ depois da guerra. Seu trabalho oferece uma respostaespecIalmente interessante para estes desafios morais e políticos _ não porque

seus romances manifestem grandes qualidades literárias, mas porque, imbuídos de

オセョ。 bravura exemplar, eles ousam abordar questões complexas e importantes que

エセュ オセ。 イZャセ ̄ッ 、ゥイ・エセ com os problemas de identidade, pertencimento e justiçanao raciolôgica que hoje nos preocupam.

O primeiro romance de Smith, O Último dos Conquistadores, foi publicadoem セYTXL quando ele tinha apenas vinte e dois anos. Ele trata dos destinos de um

セッョエャセァ・ョエ・ de soldados americanos na Alemanha em meio às conseqüênciasImedIatas da guerra. Smith explora uma série de posições e experiênciascontrastantes à medro . ..

• ' 1 a que esses jovens negros mspecronam o naufrágio do regimenazista e observam os alemães começando a reconstruir suas vidas. Os soldados

I 362 I

I PAUL GILROY I

consideram e discutem as suas próprias perspectivas de retorno, por vezes relutante,

aos Estados Unidos. Eles são um grupo diverso e qualquer senso de unidade racial

se rompe em meio às suas origens e lealdades regionais. Os negros sulistas enortistas são diferentes em termos culturais e educacionais. Mesmo o racismo

institucionalizado em profundidade na vida militar é insuficiente para uni-los.

O livro mostra que as relações opressivas entre negros e brancos na América

não se modificaram para acomodar as experiências de homens que haviam sido

preparados para arriscar suas vidas por seu país em combate no estrangeiro, masa quem ainda se recusava direitos humanos e civis básicos na terra de seu

nascimento. As tropas negras confrontam-se com uma hierarquia militar ansiosa

em expurgar de suas fileiras os soldados negros cujo papel nos combates fora

sancionado com muita relutância, tendo se tornado central aos sucessos militares

dos aliados.

Em meio ao caos das privações do pós-guerra, do mercado negro e daGuerra Fria emergente, Smith mostra como as autoridades americanas estavam

inquietas acerca das relações entre as tropas negras e as mulheres alemãs brancas.

Este contato transgressivo constitui o tema central do romance. Mais ainda do que

ocorrera na Grã-Bretanha;" os soldados afro-americanos na Alemanha sofriam

injúrias e eram incriminados por seus comandantes e pela polícia militar por

"fraternizar" com garotas e mulheres locais. Onde quer que vigorassem amplamente

as atitudes do sistema Jim Crow e o cavalheirismo sulista, as mulheres também

eram tratadas com brutalidade pelas autoridades militares de ocupação. Estes são

os estranhos bastidores onde os soldados de Smith consideravam o significado das

diferenças raciais e debatiam a relação entre o genocídio nazista, legitimado pelaraciologia, e suas próprias experiências de racismo codificado pela cor, dentro e

fora do meio militar, no seu próprio país e 110 exterior.Os protagonistas de Smith - Randy, com suas inclinações patrióticas, Homo

com sua sensibilidade, Murdoch o sábio professor de cabeça quente e Hayes

Dawkins, um datilógrafo tranqüilo da Filadélfia que atua como a voz principal do

autor - todos aceitam a centralidade esmagadora da "raça" em suas vidas, mas

não compartilham de uma visão unificada sobre a América ou a Alemanha. Adifícil tarefa de entender o nazismo e as suas conseqüências acarretava divisões

57. Graham Smith, When Jim Crow Met John Buli: Black Amerícan Soldiers ín World War Il (1. B.Tauris, 1987).

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ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça

ainda mais afiadas entre eles. Alguns dos veteranos endurecidos pelas batalhastendem a considerar o que viam como a linha oficial do exército, identificando

todos os alemães com o hitlerismo, enquanto outros, inclusive Dawkins, desenvolvem

passo a passo uma posição mais complexa e perturbadora que percebe o racismocontra os negros como fundamentalmente ligado ao anti-semitismo. Eles não

aprendem isto apenas devido à percepção de que os nazistas também se

preocupavam com o destino de seus subalternos negros, mas por compreenderem

a dura lição ensinada pelo anti-semitisrno feroz de seus compatriotas brancos.

Numa rodada de bebidas descontraída após o expediente, um capitão brancoaparentemente liberal reconhece os efeitos do racismo anti-negro nos Estados

Unidos e em seu exército. Ele defende a democracia americana e faz um apelo

sutil à reeducação da nação alemã, antes de expressar sua apreciação pelo trabalhoefetuado pelos nazistas no sentido da eliminação dos judeus:

"Gente, me esqueci. Havia um lado bomem Hitlere nos nazistas".Esperamos por este único lado."Eles se livraram dos judeus".Um dardo de tensão aterrissou na sala. Não se podia vê-loou ouvi-lo, mas se podiasenti-lo aterrissando. As garotas alemãs, em especial, estavam chocadas..."A única coisa. A únicacoisa boaque elesfizeram...Deveríamosfazer o mesmonosEstados Unidos".Comofazer um capitão pararde falar?"Os judeus tomam todo o dinheiro", disse o capitão. "Tomam todas as lojas ebancos.Gananciosos. Querem tudo. Não deixamnada para as pessoas. Fizeramissona Alemanha e Hitler foi esperto. Livrou-se deles. Estão fazendo isto agora nosEstadosUnidos.Tomamo país e os americanosnão têm nada a dizer sobre isso.Elesdeixam os judeus conduzirem seu país"."

Essa percepção desconcertante sobre as operações do pensamento racialcoloca a orientação moral e política dos personagens negros sob grande tensão.

Ela se acentua particularmente quando se elabora o duplo padrão que permite ao

governo dos Estados Unidos atacar a conduta nazista e ao mesmo tempo praticar

uma forma de racismo diferente, porém brutalmente institucionalizada. Smith traz

à tona um mundo complicado e moralmente exigente, onde os anti-semitas。 N ュ ・ イ ゥ セ 。 ョ ッ ウ e outros racistas podiam lutar contra o fascismo europeu com

smcendade sob os lemas de sua própria democracia imperfeita sem questionar de

58. Willian Gardner Smith, The Ú/SI oj the Conquerors (Farrar, Strauss and Co., [948), p. 105.

364

PAUL GILROV

nenhuma maneira a sua própria racíologia.Seria bom repetir que estas comparações entre os dois diferentes regimes

racializados na Alemanha e na América já haviam sido feitas em geral pelos

americanos negros antes do início do genocídio nazista. A passagem de leis

discriminatórias suprimindo os direitos e as oportunidades dos judeus desencadeouum grande debate sobre os males sancionados pelos dois sistemas opostos. Os

soldados negros de Smith discutem tudo isso em certa medida. Eles também resolvem

esses problemas de maneira prática em suas relações próximas com vários alemães,

cujas opiniões pós-nazistas sobre a América c sua hierarquia racial são ambivalentes

no conflito crónico com seus oficiais brancos e o que importa ainda mais, em seus

atritos costumeiros com a polícia militar que se esforça por regular a condutapública dos soldados de acordo com as prescrições racistas do senador Bilbo do

Mississipi e de membros sulistas do Estado-Maior dos Estados Unidos.

A especificidade deste momento histórico já foi abordada por vários autores

de autobiografias." mas não foi ainda adequadamente explorada pelos historiadores.

Esta foi uma fase importante em que as autoridades dos Estados Unidos sentiram

pela primeira vez a vulnerabilidade internacional de seu país às críticas de suahierarquia racial interna. É significativo que a apreensão de toda a extensão do

genocídio nazista tenha refinado aquela acusação da democracia codificada em

cores vigente nos Estados Unidos. Esta disposição também se faz presente nas

reminiscências dos tempos de guerra dos soldados afro-americanos, alguns deles

tendo procurado obter do governo americano o reconhecimento público de sua

contribuição para o esforço de guerra, em combate e em atividades de apoie."Os americanos de Smith lutaram todos na guerra contra Hitler, mas se dividem

entre aqueles que apóiam os objetivos do autor e aqueles que os menosprezam. Os

alemães de Smith precisam ser reconhecidos também como um grupo diferenciado.A questão da sua responsabilidade coletiva pelo genocídio nazista é levantada no

início da narrativa:

"Você sabe", disse Randy, "Não posso acreditar nisto. Dois anos atrás eu teria

59. As memórias de Leon C. Standifer narram detalhes fascinantes das atividades dos soldadosnegros na Bavária do pós-guerra. Elas se aproximam muito das observações feitas por GardnerSmith. Ver Binding Up lhe Waunds: An Amcrícan Soldier iII Occupíed Germany. 1945-1946(Louisiann State University Press, 1997), em especial pp. 150-t73.

60. U.S. News and World Report, 6 de maio de 1996.

365

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ENTRE CAMPOS :: Nações, Culturas e o Fascínio da Raça

atirado no filho da puta que dissesse que eu algum vez me sentaria num bar levantandoum brinde com os filhos de Hitler".Foi como um choque elétrico, a palavra Hitler. Eu podia sentir a garota ao meu ladotomar-se rígida... Randy ria-se... "Vocês são todos iguais. Todos vocês. As pessoascom quem nos sentamos hoje à noite são aquelas mesmas que queimavam pessoasnos campos e esmurravam o nariz de judeus".

Smith faz com que o ataque de Randy aos alemães seja respondido por uma

jovem alemã, igualmente irada, que replica a condenação geral de seu país feita

por ele com um exemplo distinto tirado do cenário americano:

"Olhe só quem fala! E quanto aos americanos'! Você talvez não possa nem mesmoandar na rua com uma mulher branca em seu país. Os americanos brancos te enforcamnuma árvore se você fizer algo assim". Ela sorria com o canto da boca."Onde você ouviu esse lixo'?" Randy gritou. Ele corou até mesmo com sua peleescura."

A intimidade sexual e emocional entre homens negros e mulheres brancas

apresenta-se como algo a mais do que um símbolo primário das diferenças entre a

Europa e a América. É também a fonte principal de conflitos entre soldados

negros e as forças armadas a que pertencem. Smith dramatiza as maneiras como

esses homens jovens negros são levados a refletir não apenas sobre o sentido de

sua própria negritude, mas através dos percursos da viagem militar sobre a natureza

da própria democracia. Assim como o valor do amor e a possível significância da

humanidade em comum que o desejo sexual põe cm foco, pode-se compreender

melhor este aspecto quando ele é visto contra o cenário de fundo provido pelo

término do fascismo. Hayes Dawkins meditava precisamente sobre estes tópicos,

enquanto descansava numa praia arenosa e contemplava a água em Wannsee

com sua nova namorada alemã, Ilse Mueller:

Eu já me estirara muitas vezes na praia, mas nunca antes com uma garota branca.Uma garota branca. Aqui, longe por um tempo da idéia de diferenças, era estranhocomo eu esquecia disso tão rápido. Já não tinha mais importância.Todo mundo eraazul, verde, ou vermelho. Ninguém olhava quando nos deitávamos juntos na praia,nossas peles contrastando, mas nossos corações batendo identicamente e cada umcom um nariz bem no meio das nossas caras. Estranho me parecia que aqui, na terrado ódio, eu devesse encontrar esta fase de suma importância da democracia. E, de

61. Smith, The Last ofthe Conquerors, p. 35.62. fbid., p. 44.

366

PAUL GILROY

repente, eu senti uma amargura."

Use ensina a Hayes o alemão elegante, Hochdeutsch., não Blatt DeussctúEla também o apresenta a sua tia e seu tio, levando-o para uma visita à casa deles,

onde ele os agrada com um presente muito estimado, os cigarros. Enquanto o

tempo passa, os jovens soldados negros trocam idéias sobre esportes, política,

garotas e a música onipresente da American Forces Network. Hayes mostra ter

se tornado tão familiarizado com Berlim quanto o era com Filadélfia e New York.

Em meio à emoção despertada pela canção "Prisoncr of Love" cantada por Perry

Como - um dos vários momentos-chave em que a música e os sentimentos trazidos

por ela têm um papel especial na narrativa - ele ouve Murdoch explicar sua

relutância em deixar a Europa e retomar para os Estados Unidos. Este encontro

merece ser citado minuciosamente: "Escute Hayes, eu não posso deixar este lugar.

Não posso. Não quero voltar para lá de novo. Juro que não. Eu não quero voltar

nunca mais". Murdoch, um combatente veterano que fingia vir de Chicago, revela

ter nascido na Geórgia, onde tudo que ele poderia esperar era o duro trabalho

físico de cavador de fossas. Ele continua:

Você não está longe de toda aquela m__ há tanto tempo quanto eu. Você aindanão teve a sensação de ser livre. Eu gosto deste país maldito, sabia? ... É o primeirolugar que eu já fui tratado como um homem pra valer. Você sabe o que eu aprendiaqui? Eu aprendi a dançar todas essas danças bestas elegantes e agora sei o que éentrar em qualquer lugar, qualquer lugar, sem me preocupar se eles servem pessoasde cor. Você não está aqui um tempo suficiente para se sentir como eu. Você sabeque diacho eu aprendi? Que um negro não é diferente de ninguém. Tive de vir paracá para aprender isto. Tive de vir aqui para que os nazistas me ensinassem isso. Elesnão ensinam este negócio lá na terra da liberdade ... Talvez você pense que é porcausa destas malditas garotas daqui. Por mim, elas podem todas ir para o inferno. Euapenas me sinto como um homem. Sinto que ninguém me olha de cima por causa daminha pele. Se eu quisesse, poderia comprar qualquer casa aqui. Posso agir comoqualquer outra pessoa. Eu me sinto como um homem. Percebe? Apenas como umhomem."

Murdoch volta de má vontade para uma vida miserável na Geórgia, mas

Homo, outro membro desencantado do grupo, toma outra decisão ao receber ordem

de retorno para os Estados Unidos, dando início a uma vida de exílio no setor

63. Ibíd., p. 68.

367

Page 44: GILROY_Negro Para Futuro (Entre Campos Parte3)

ENTRI:: lAMPUS .. Nações, CuLturas e o Fascinio da Raça

russo. O incentivo para isso se deu num encontro com soldados russos, cuja

familiaridade com detalhes da questão racial nos Estados Unidos é surpreendente:

eles conhecem o caso dos garotos de Scottsboro e estão bem a par da história dagreve do P.T.e. de Filadélfia. Ele percebe que talvez não possa ir muito longe em

termos materiais no bloco comunista, mas explica que existem outros benefíciosmenos tangíveis acenados por este difícil caminho.?"

A agressão pré-genocida dos alemães contra os judeus é comparada

repetidas vezes com o sistema Jlm Crow, suas semelhanças informais nortistas e

a violência de supremacia branca ministrada pela polícia militar na Europa. Apesar

de Smith não ser muito enfático quanto a este ponto, esta convergência sugere que

as possibilidades genocidas podem ser latentes ou dormentes dentro das formas de

brutalidade e de ódio racial cotidiano que operam nos limiares mais baixos. Hayessurpreende-se em descobrir que outros negros - de ascendência colonial e mista -

ainda se encontram em Berlim, tendo sobrevivido ao período nazista. Ele também

encontra Sonny, o lindo filho de quatro anos de um soldado afro-americano com

uma mulher alemã, criado pelos amigos alemães de Ilse.

De um dia para o outro, Hayes e seus companheiros são enviados para um

novo posto em Bremburg. Hayes sofre com a possibilidade de ser forçado a se

separar de Use e perder a camaradagem do seu alojamento no quartel de Berlim,

além do vigor cosmopolita da cidade e sua vida noturna. Ele se depara com um

cotidiano muito diferente no ambiente novo e mais segregado, onde o racismo seexpressa de um modo vicioso e aberto, e a polícia branca, militar e civil, procura

impor uma linha estrita, quase formal entre os soldados negros e a população local.

Ao que parece, esta mudança tem a ver com a forma como o exército lidava

então com as suas próprias tensões raciais na fase do pós-guerra. Em termos

coloquiais, Bremburg era conhecida como "o inferno dos negros", trazendo muitos

estímulos formais e informais para que as tropas negras deixassem a Europa e avida militar. Os homens sofriam corte marcial ao não serem encontrados em seusalojamentos à noite, sendo punidos caso contraíssem doenças venéreas. Muito

esforço engenhoso foi posto para conter os soldados negros e mantê-los confinados

tanto quanto possível nas áreas ao redor da base:

Eles colocaram quase todos os soldadosde cor na Alemanha bem por aqui, na área

64, Ibid., p. 108.

368

PAUL lilLKUY

de Bremburg. Parece que decidiram escolher este lugar para colocar quase todas astropas... É um sistema engenhoso. Agora, quando querem dar ordens somente paraas tropas de cor, eles têm apenas dc esperar que o comandante do grupo dê umaordem para todas as suas tropas. Dessa maneira, isto afeta apenas os negros, maseles não precisam mencionar a raça. Ê um sistema engenhoso, sem dúvida...Todosos oficiais são crackers [brancos pobres rurais].65

As garotas locais alemãs são espertas em matéria de enganar essas

regulamentações. Ilse, cujo amor por Hayes faz com que ela seja tambémengenhosa, encontra uma maneira de frustrar as regras que regulam os cartões de

ração, suprimentos de PX e a movimentação de civis entre os setores para segui-

lo até Bremburg. Em suas buscas por um local de moradia para ela, Hayes conheceKurt Schneider, um jovem veterano alemão, loiro de olhos azuis, que voltara há

pouco dos Estados Unidos onde fora prisioneiro de guerra, primeiro no forte Leonard

Wood no Missouri e, depois, em Camp Lee na Virgínia." As observações de

primeira mão de Schneider sobre as relações raciais sulistas forneceram ao seu

veredicto sobre a América um sabor especialmente pungente. Ao que parece, ele

também se beneficiou daquela mágica política especial que transforma os europeus

"étnicos" em brancos americanos assim que eles pisam em solo americano:

"Na América eles fazem quase a mesma coisa com o seu povo - os americanosnegros _ que os nazistas faziam aqui com os judeus. Quando estava em Camp Leena Virgínia, eu tinha de ir à cidade às vezes com outros prisioneiros para trabalhar, eem algumas ocasiões um soldado negro vinha nos vigiar. Na hora de comer ossoldados nos levavam a um restaurante. Mas, você quer saber de uma coisa? Nóspodíamos comer no restaurante,mas os soldados não. Porque eles eram negros. Osprisioneirospodiamcomer, mas eles nãoserviriamaos guardas.De volta ao campo,os soldados alemães sempre riam daquilo. Era muito engraçado... Você sabe do que

você precisa na América?"Eu esperava."Um Hitier",Ele olhou para mim com olhos sorridentes..."Vocêprecisa de um Hitler", ele disse. "Alguém forte o bastante para assegurarque

65. Ibid., p. 138.66. Arnold Kramrner, Nazi p nsoners ofWar in America (Srein and Day, 1979); e Hermann Jung, Díe

Veutschen. Kriegsgefangenen iIIamerikanischer Hand USA (Verlag Ernst und wcrner Gieseling,

1972).

369

Page 45: GILROY_Negro Para Futuro (Entre Campos Parte3)

I tNIKt LAMI'U::' .. aaçces, Culturas e o Fascínio da Raça I

todos sejam tratados igualmente. Hitler teria assegurado isso"."Como ele fez com os judeus?"Ele não teria feito isso com os negros"."Você leu Mein Kampj?""Não", ele disse?"Você deveria. Você descobriria o que ele acha dos negros''.»?

Esta é a segunda declaração de Smith a respeito das afirmações de Hitler

sobre os negros. Ela antecede uma cena interessante em que os amantes unidos

novamente vão ao cinema local. Sua atenção crítica é atraída pelas técnicasracializadas de iluminação e pelas convenções ao estilo do coon-show [show do

Negro caricaturesco] aplicadas ao filme curto de abertura, o que se identifica

como parte de um processo para iniciar audiências européias indefinidas nos códigos

raciais da indústria de entretenimento americana. Mais tarde, já em casa, a

masculinidade americana "mais macia" de Hayes suscita diversos comentários

entre as mulheres alemãs que não estão acostumadas a ver um homem participando

de boa vontade de afazeres como o de lavar a parte que lhe cabe da louça. Afelicidade do jovem casal é interrompida quando ao ser vista em público com Hayes,

Use é presa pela polícia militar racista e acusada de prostituição sob pena de Iei..

Hayes é ameaçado c maltratado quando vai perguntar sobre o destino dela. Ele

luta com os PMs, que já haviam estabelecido elos com a Polizei alemã, envolvendo-

os na malha de moldes americanos com suas idéias de supremacia branca. Passam-

se duas semanas antes do casal se rever; eles são capazes de recompor um pouco

de sua felicidade comum até que aumentam as pressões sobre Hayes para eledeixar o exército e voltar para os Estados Unidos.

Enquanto isso, Steve, um soldado amigo que ajuda Hayes no trabalhoadministrativo do escritório da companhia, aguarda pela corte marcial por ter

desobedecido a uma ordem direta ofensiva do sargento, o qual está determinado a

tomar a vida do soldado a mais miserável possível. Esta acusação tem boa recepção

entre seus superiores por ser um instrumento conveniente para forçar a saída do

exército de mais um negro indesejado, assim como uma maneira de ajustar uma

velha rixa. O tiro sai pela culatra de maneira catastrófica depois que Steve é

condenado a uma detenção de seis meses. Ele aponta uma arma contra seusperseguidores e foge pela estrada. As circunstâncias seguintes levam o capitão,

67. Smith, The Last ufrhe Conquerors, p. 165.

I 370 I

I PAUL GILROY I

que sobrevive ao atentado de Steve, tentar por seu turno forçar a saída de Hayes.

Hayes pode escapar da corte marcial sob a acusação forjada de ter estado ausentedurante a inspeção notuma do alojamento apenas se ele estiver preparado a dizer

que optara em deixar o exército voluntariamente. Perante esta coerção, Hayes vai

embora cheio de ressentimento, ponderando as muitas ironias em ter tido de viajar

para a Alemanha para descobrir a democracia. Seus amigos alemães foram avisados

de que, contra todas suas as expectativas, ele voltaria um dia para aquele país.O último romance de Smith, A Face de Pedra (1962) compartilha e estende

muitas das preocupações de seu primeiro livro. Mais uma vez, o protagonista é umafro-americano sem lugar e deslocado que escolheu o exílio europeu, agora em

Paris. Mais significativo ainda é que o livro amplia e modifica as tentativas de

Smith de considerar as conseqüências do pensamento racial em termos

comparativos e transnacionais. Outra vez, o genocídio nazista está presente. Agora

ele também é encenado contra a brutalidade muito distintiva envolvida nos conflitosamericanos entre negros e brancos. Os personagens de Smith habitam as sombras

projetadas por esse evento monumental, tornando-se o contexto essencial em que

se pode fazer avaliações éticas e políticas importantes. Entretanto, agora uma

terceira história sobredetermina e intermedeia a relação entre os processos históricos

mundiais que formaram e reuniram seus personagens principais: a guerra em tomo

da descolonização francesa do norte da África. A Face de Pedra tenta responder

como o racismo do processo de descolonização vincula-se com esses outros

sistemas racializados. Chama-se a atenção para o cenário da Guerra Fria onde as

questões da diferença racial emergem como aspectos centrais e reconhecidos de

geopolítica.O protagonista de Smith neste romance é Simeon Brown, outro talentoso

jovem afro-americano vindo da Filadélfia para trabalhar como jornalista na França.

Ele tem apenas um olho, tendo perdido a visão ao sofrer o ataque sádico e cruel de

uma gangue de jovens brancos que o capturaram quando ele atravessava o gramado

deles. Simeon encara sua cegueira como uma troca em vez de uma perda. A

visão reduzida lhe deu outros tipos de força. Ele ganhou força, sabedoria, respeito,virilidade e autodisciplina em decorrência de ter sido mutilado. Sua deficiência de

visão é um elemento chave de sua capacidade para se ligar a Maria, uma judia

cordata da Polónia que sobreviveu aos campos nazistas e saiu ferida, mas

determinada a usar seu belo corpo e gestos graciosos para construir uma carreira

de arriz.A visão parcial de Simeon é também associada com sua vontade de ser

371

Page 46: GILROY_Negro Para Futuro (Entre Campos Parte3)

ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça

artista. Ele se move por entre os conflitos e ciumeiras que caracterizam a subculturados americanos expatriados - negros e brancos. A colônia negra na Margem

Esquerda [do Sena] toma-se uma fonte importante de amparo na qual ele pode sedeleitar com a linguagem e os gracejos culturais de sua terra natal. Ele faz novos

amigos entre artistas, músicos e escritores. A tensão entre os membros deste

grupo aumentara com a Guerra Fria, mas Simeon diverte-se em meio à atmosfera

cosmopolita, à liberdade sexual e à ausência da hierarquia de cor e do racismo

anti-negro que ele deixara para trás nos Estados Unidos. Ele também se deleitacom o legado político revolucionário dos franceses:

Ele gostava das caras do povo comum francês - não de lojistas, políticos,intelectuais,funcionários ou policiais,mas simde motoristasde ônibus, limpadoresde rua, vendedores dejornais, trabalhadores em LosHalles, ferroviários ...Ele liaemseus olhos as memórias vagas da RevoluçãoFrancesa, da Comuna, da Resistência.Essas Coisas não haviam sido esquecidas, elas ainda estavam no povo francês e,através deles, em Símeon."

Não demora muito para ele perceber que este belo legado tem suas limitações.

O racismo, apesar de tudo, não está ausente de Paris; apenas assume formas

diferentes. Embora nunca antes a sua própria vida sofresse tão poucos

constrangimentos, os mecanismos brutais que ele encontrara anteriormente

aparecem uma vez mais no racismo anti-colonial dos franceses contra os árabes.

Independentemente dos escritos quc lhe trazem uma renda mínima, Simeonocupa-se agora com uma pintura. Ele retrata uma face impressionante em sua

frieza e aparência inumana que, conforme ele explica, trata-se de um retrato do

homem a quem ele evitara matar por ter deixado sua terra natal. Embora diversos

personagens expressem os efeitos imprevisíveis e libertadores da vida parisiense,

Simeon encontra racistas brancos dos estados sulistas que não haviam setransformado com a atmosfera alegre e multicultual. Por meio de uma técnica

muito mais refinada do que aquela usada em seu primeiro livro, Smith intercala as

cenas parisienses com lembranças da vida anterior de Simeon nas ruas violentas

da Filadélfia e das vidas miseráveis de seus pais sob o sistema Jim Crow e seus

equivalentes nortistas. As cenas em que se vê Simeon ser cegado, surrado pela

polícia racista e atacado por um grupo de marinheiros racistas em folga, dão lugaràs estórias de intimidação de seu pai em um ônibus segregado e de sua mãe,

68. Willian Gardner Smith, The Stone Face (Farrar, Strauss and Co. 1963), p. 115.

372

PAUL GILROY

empregada doméstica, que não consegue votar, impedida pela patroa branca.

A cada episódio, o mais brutal perpetrador de violência racial parece terestampada a mesma terrível expressão. Simeon capta suas feições como se

moldadas na mesma face inumana e instantaneamente reconhecível. Esta medonha

alucinação é a face de pedra que dá o título ao livro, e é este aspecto assustador da

face de pedra que Simeon tenta capturar em sua pintura semi-acabada. O rosto éapresentado de início ao leitor no episódio em que Simeon fica cego nas mãos de

seus torturadores adolescentes: "A face brilhou. Ficou mais luminosa, uma estrela

satânica, incendiada pelo ódio e pela maldade. Simeon cerrou os olhos para não

vê-la. Suas pernas cederam, mas os garotos o levantaram. O mundo carnbaleou't.s"Mas, além de ser uma marca do racismo americano, esta face também é

familiar a Maria. Traz-lhe à mente coisas doloridas que ela se esforça por esquecer.

Pouco a pouco, ela revela ter visto algo parecido ao sofrer abuso sexual aos nove

anos de idade em um campo nazista.Foi depois de um de seus encontros terríveis com brancos violentos que

Simcon decide deixar sua terra natal. Ele carrega uma pistola para se proteger,

temendo que se não for embora acabará matando alguém em legítima defesa. Sua

compreensão provinciana americana de raça começa a mudar ao ser pego emmeio a um conflito entre argelinos e a polícia. Os argelinos, aborrecidos por sua

falta de solidariedade e de percepção acerca de suas lutas, insultam-no como a um

homem branco. Um deles serviu como membro das Forças Francesas de

Libertação, tendo visitado os Estados Unidos na época em que estava na marinha.

Ele repreende Simeon com severidade por sua visão limitada e sua incapacidade

de perceber as conexões entre os sofrimentos dos negros nas cidades americanas

e aquilo que os argelinos enfrentam em Paris. Ele diz a Simeon:

Nós somos os negros aqui! Saiba do que os franceses nos chamam - bicot, melon;ratan, nor 'raf. Isto significanegroem francês.Você não tem medode que nós talvezo roubemos? Você não está horrorizado com nossas roupas amassadas,com o odorde nossocorpo? Não, de verdade,quero te fazer uma pergunta séria - você deixariasua filha casar com um de nós?"

Nem todos os americanos negros em Paris estão tão preparados para

esclarecer sua definição sobre quem se tem como negro. O amigo de Simeon,

69. Ibid., p. 28.70. Ibid., p. 57.

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ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça

Babe, é um "homem da raça" e fundador oficial da ANPPC [Associação Nacional

para o Progresso das Pessoas de Cor], mas ele se convenceu que a definição

oficial francesa sobre o conflito com os argelinos é correta. Ele avisa Simeon paranão considerar de modo algum as situações dos dois grupos como conectadas.

"Esqueça isso, homem. Os argelinos são pessoas brancas. Eles se sentem como

pessoas brancas quando estão com negros, não se engane com isso. Um homem

negro já tem problemas demais neste mundo para se meter a defender gente

branca"." Ao contrário, as palavras sábias e perturbadoras de um velho negro

barbado perseguem os sonhos de Simeon: "Filho, onde quer que o racismo exista,onde quer que a opressão exista, quem quer que viva na complacência de suassombras é culpado e amaldiçoado para sempre".72

Esta injunção ancestral ainda está na mente de Simeon ao nnal da primeira

parte do romance quando ele compreende que o sentimento anti-érabe equivale

precisamenre ao racismo anti-negro sofrido por ele no contexto americano. Quando

as implicações deste pensamento são sentidas por Simeon, Maria começa a revelar

um pouco de sua própria estória de vida nos campos. Isto aprofunda a compreensãodele sobre o poder corrosivo do pensamento racial, mas é bem mais que um modo

fácil de trazer um tom de gravidade moral à estória americana de Simeon. Ela

narra detalhadamente a separação forçada de seus pais durante uma inspeção de

campo empreendida pelo seu agressor alemão. Simeon aceita sua narrativa de

sofrimento como mais compatível do que equivalente com a tradição de opressão

que acarretou a sua fuga. A reação dela à sua resposta paciente e solidária é mais

complexa. Não é o sofrimento passado que torna possível a sua comunicação e

compreensão mútua. São suas lutas paralelas com sentimentos homicidas de

vingança que promovem a base de sua compreensão recíproca e estimula seudesejo mútuo:

Simeon estava calado. Ele a abraçava com força, sentindo-se maisperto dela do quenunca. Talvez eles pudessem se compreender afinai. Ele observa a fumaça dosciganos de ambos ondulando até o teto. Maria beijou o ombro dele e disse: "Vocêentende, Simeon, eu não te contei isto por pena. Milhões de pessoas viveram omesmo. Mas isto é uma parte de mim, você precisa entender isto para me entender.

71. lbid., p. 105.72. Ibid., p. 58.73. Ibid., p. 79.

374

PAUL GIlROV

Por anos depois da guerra, eu não sonhei com nada a não ser aquelecampo, aquelasfileiras de gente, os rostos de meus pais e o rosto daquele comandante. Por anos eusonheique poderia torturar e matar aquelehomem.Por anos, eu não podia dormir senão tivesse uma faca debaixo de meu travesseiro"."

Enquanto Maria e Simeon tornam-se cada vez mais íntimos e à vontade, elefaz amizade com Ahmed, um radical argelino. Ele visita o bairro argelino,

comparando-o com o Harlem. Neste lugar ele reconhece muitos padrões de

comportamento social e cultural que antes pensava como algo específico dos

americanos negros. Simeon não se detém no fato da Argélia se situar no continente

africano. Com muita paciência ele explica que a África parece remota da vida

cotidiana dos americanos negros em termos de espaço e de tempo." Ele também

deixa bem claro que os árabes não são negros. Smith faz Simeon descobrir uma

profunda afinidade nascida da condição de opressão racializada. Esta solidariedadeé confirmada assim que ele percebe uma comunidade argelina sitiada tal como em

seu país. Os argelinos são constantemente internados em campos que não se

destinam à morte, mas que ainda assim lembram os dos nazistas;

Há dois bem perto de Paris, e os outros estão no meio-oeste e no sul. Pensava quetodos soubessem disso. Os argelinos desaparecem todos os dias, e depois se ouvedizer que eles estão neste ou naquelecampo. Estes campos não são tão agradáveis.Não há câmara de gás, é claro, mas os guardas e funcionários não são gentis.É piorna Argélia. A tortura desenvolveu-se em uma arte superior naquele lugar."

Quando um dos árabes pergunta a Simeon como ele se sente em viver

como um homem negro em um país branco, sua resposta mostra o quanto ele

absorveu de sua intimidade com Maria: "Como um homem sem país. Como ojudeu errante". Estas palavras, que antecipam o veredicto de Babe sobre sua

própria vida como um "negro errante", assinalam o momento para um ataque da

polícia.A percepção de que as diferenças raciais não impedem as continuidades

significativas do sentimento humano, e a compreensão de que os racismos assumem

várias formas, não tornam Smith um ingênuo em matéria da natureza contínua dadivisão racial ou das tãticas apropriadas para extinguir o racismo. Simeon responde

74. lbid., p. 93.75. Ibid., p. 91.

375

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ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça

à perplexidade de um hipster [pessoa elegante e amante do jazz] branco solidário

com estas palavras: "qualquer membro de um grupo privilegiado em uma sociedade

racista é considerado culpado. Todo sul-africano branco é culpado. Todo francês éculpado aos olhos dos argelinos. Todo americano branco é culpado. A culpa pode

acabar somente quando o racismo acabar".76 Este esquema demasiado nítido se

rompe com a força do anti-semitismo percebido no momento que os amigos argelinos

de Simeon tentam consolar Maria, que se sentiu extorquida por um lojista aocomprar um bracelete de beleza irresistível:

"Deve ter sido um judeu sujo quem te vendeu isto".Estas palavras caíram em cheio sobreeles. Maria levantou a cabeça num rompantecomo se tivesse sido esbofeteada. Lou ficou boquiaberta, os olhos de Bettyarregalaram-se, revelando surpresa e dor... Simeon estava atordoado. Aquelaspalavras de um dos argelinos? De repente toda uma estrutura mental e psicológicaque ele construíra desde a sua primeiraconversa com Hossein parecia desmoronar.O rosto de Maria estava lívido de raiva; toda a frivolidade havia sumido."Eu sou umajudia suja", ela dísse."

Esta cena fundamental marca a emergência de Maria como uma personagem

complexa, desenvolvida e articulada, longe de ser uma nulidade fugaz cujo papel

seria permitir que Smith transcendesse o seu relutante provincianismo americano.

Vemos Simeon lutando com a possibilidade inquietante de que qualquer um poderiaser racista antes de Maria intervir e refutar relatos simplistas da história e do

desenvolvimento do anti-semitismo. Ela confronta Hossein - o ideólogo político do

grupo de árabes - com a questão fundamental sobre a fonte de sua aversão aos

judeus, instando-o a racionalizá-la. Ele revela que odeia os judeus mais do que

odeia os franceses e os colonialistas. Smith recusa-se a se deixar engolfar na

conversa penosa seguinte. Simeon pergunta por que eles se deixam levar pelo

preconceito cego nesta discussão enquanto se lembra do anri-semitismo de seustempos de criança na Filadéfia e reflete sobre ele. Os argelinos partem, os

espectadores brancos se desesperam, ao passo que Simeon e Maria, que não

gosta de discutir grandes questões morais por isto a deixar mal, estão mais ligados

do que antes. Ela se perturba diante da inclinação dele em se solidarizar politicamente

76. Ibid., p. 121.77. lbid., p. 122.

376

PAUL GILROY

com Os árabes e também em mergulhar em complicações, causas e problemas

políticos. Segundo ela, este comportamento significa em termos psicológicos uma

recusa em aceitar a felicidade que a vida parisiense lhe proprociona. Simeon, querecusa "a psicanálise e as caixas orgone", contrapõe-se argumentando que a vida

pacífica e estável a que ela aspira "pode não ser possível para um negro se ele

pensa e sente".

As experiências de Maria também a fazem hesitar em declarar seu amor

por Simeon. Suas ansiedades existenciais aumentam devido àpreocupação imediata

com a cirurgia ocular necessária para que ela recupere a visão declinante. Simeonlê sobre o progresso das lutas pela desegregação no Sul enquanto aguarda a

operação destinada a ser um divisor de águas na vida de Maria. Ele sente dores

em seu globo ocular vazio ao mesmo tempo em que as fotografias de Little Rock

vislumbradas na mídia francesa o perseguem. Os expatriados debatem longamente

a situação no Congo nos cinco dias em que Simeon espera para descobrir se a

operação de Maria teve sucesso ou se ela perderá a visão. O resultado é positi vo

e com isso os amantes partem para um feriado prolongado na Córsega, onde Simeonfica cismado em ver a imagem de uma cabeça de negro na bandeira da província.

O resultado positivo da cirurgia ocular traz mais energia e ambição a Maria.

Ela agora está determinada a alcançar fama como atriz. Uma festa para celebrar

o casamento de Babe e Marika, sua namorada sueca, termina de forma abrupta

quando os convidados se inteiram do assassinato de Patrice Lumumba. Simeon

sente o impacto destrutivo sobre a vida em Paris desencadeado pelo fim do poder

colonial francês. Ahmed, seu amigo argelino, desiste de seus estudos para se juntarao Front de Libéraríon Nationale (FLN) [Frente de Libertação Nacional]. O veneno

lento que se difunde a partir do fim do império francês manifesta-se com o

crescimento do nacionalismo e do chauvinismo de ultradireita. Simeon observa

com pesar uma mudança nos modos do policiamento da cidade. Protegido pela

vida pacífica improvisada por ele e por Maria, Simeon compara a indiferença francesa

quanto ao destino dos argelinos com a maneira que os cidadãos alemães deram as

costas aos sofrimentos dos judeus, e não pode fazer nada para impedir o estado de

ânimo hediondo que impregna a consciência francesa pós-colonial.

Numa noite solitária, ao ouvira som distante de uma bomba da OrganisationArmée Secrête (OAS) [Organização Armada Secreta] ser detonada, Simeon sai

para a rua e surpreende Maria flertando com Vidal, um cineasta determinado a

fazer dela uma estrela. Maria palie para fazer um filme, iniciando uma trajetóriaque acabará em Hollywood, enquanto Ahmed reaparece na vida de Simeon. Através

377

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tNIKt l a m i G u セ Nações, curturas e o Fascínio da Raça PAUL GIL ROY

de Ahmed ele conhece duas mulheres muçulmanas, Latifah e Djamila, veteranas

do movimento de libertação da Argélia. Elas o informam sobre o andamento do

conflito, desafiando suas suposições sobre os aspectos religiosos do movimento e,

em particular sobre a posição subalterna destinada às mulheres. Convoca-se uma

manifestação massiva de solidariedade para outubro de 1961.78 A polícia parisiense

a reprime com terrível violência e Simeon vê quando os corpos de árabes mortos

são despejados no Sena. O corpo de Ahmed fica jogado na rua, sendo que mais de

duzentos outros corpos são retirados do rio nos dias seguintes ao massacre.

Esta tragédia separa Simeon do resto da comunidade expatriada, que mais

do que ele se satisfaz em continuar a viver uma fantasia, "como uma espuma a

flutuar no mar da sociedade francesa"." Num cais perto da Pont Neuf ele espia

um policial desferindo seu cacete em uma mulher argelina e seu bebê. Num instante,

ele reconhece a careta característica da face de pedra "retorcida com a alegria da

destruição... pontos vermelhos de excitação sobre a pele pálida de morte [do

policial]". Ao atacar o policial, ele é atingido na nuca e desmaia, acordando num

estádio esportivo em meio aos lamentos de milhares de argelinos à espera de

punição e deportação:

Simeon deita-se de costas e aperta os olhos de dor. O que aconteceria com ele? Elenão se importava. Pela primeira vez em muito tempo ele se sentiu razoavelmente empaz com a sua consciência. Teria sido seu ataque ao policial um ato deliberado decoragem, ou o resultadode uma fúria e alucinação momentâneas? Isso não importava;o que importava é que ele havia revidado o golpe contra a face ... a face do policialfrancês... a face do torturador nazista em Buchcnwald e Dacbau, a face da multidãohistérica em Little Rock, a face do fanático africâner e do carniceiro português emAngola e, ainda, as faces negras dos assassinos de Lumumba - elas eram todas asmesmas faces. Não importa onde esta face se encontrasse, ela era inimiga dele; equem quer que a temesse, sofresse com ela, ou a combatesse, era irmão dele."

O policial da Súreté que libera Simeon faz um breve e incisivo discurso

antes de mandá-lo embora. Não há racismo na França; não é como nos Estados

78. Novas análises destes eventos surgiram em decorrência do julgamento do colaborador nazistaMaurice Papon, que foi chefe de polícia cm Paris na épocado massacre dos manifestantesargelinos. Os depoimentos de sobreviventes destes eventos foram recolhidos em Liberation 18(19 de outubro de 1997); ver também Le Monde, 17 de outubro de 1997, em especial "Laresponsnbilité du préfer de police est dírecre, personelfe, écrasante", de Jean-Luc Einaudi.

79. Smith, The Stonc Face, p. 175,80. lbid., p. 205.

378

Unidos. Aqui nós gostamos dos negros; podemos entender porque você prefere

viver neste país. Depois desse episódio, Simeon resolve deixar Paris. Mas, antes

de se decidir aonde ir, ele tem um último encontro com Maria nos Champs Elysées.

Ela conta que vai finalmente para os Estados Unidos. Vidal, o novo amante ementor de Maria, os vê trocar abraços e pensa que ela terá de aprender a não

abraçar homens negros nas ruas da América. Shneon vai embora para marcar sua

própria passagem de volta para a sua terra natal. Na véspera do embarque, ele

destrói a sua pintura da face: "Não precisava da imagem; a realidade já havia

penetrado. Ele rasga a tela e joga as tiras tora"."Smith foi incapaz de, ou então não estava preparado para, levar a -lógica de

sua própria percepção para uma conclusão óbvia, ou seja, que a face do ódio racial

poderia ser combatida quando e onde quer que aparecesse. A decisão final de Simeon

de enfrentar a face nos Estados Unidos, e não em Paris ou na Argélia, significa que

ele aceitou seu pertencimentc àquele país em vez de qualquer outro lugar. Essa

escolha não é esclarecedora e nem se justifica, tomando-se um repúdio explícito,

porém, inconvincente, da alternativa cosmopolita envolvida na tomada de

responsabilidade na luta contra a injustiça em suas manifestações imediatas. Trata-

se de uma capitulação às demandas de uma versão mais estreita de afinidade cultural

que parecia ter sido transcendida pelo argumento universalizante de Smith. O retorno

de Simeon parece ser uma maneira precipitada em demasia para concluir uma

narrativa, cujo ritmo difícil perdeu-se num esquema polarizado mais simples que

contrapõe a autenticidade, o ativismo e a boa consciência étnica à liberdade, à cura

e ao prazer oferecidos aos negros fugitivos pela Europa. Esta ainda pode ser uma

escolha honrosa, mas não está à altura dos melhores exemplos históricos produzidos

pelos verdadeiros itinerantes do Atlântico negro, cujas vidas podem ser apontadas

atualmcnte para afirmar outras escolhas, mais oportunas e recompensadoras.

O pintor Josef Nassy, nascido na Guiana holandesa em 1904, é alguém

cujas realizações criativas podem ser consideradas nesta perspectiva. Nassy, um

negro de ascendência judia, mudou-se aos quinze anos para N ew York, cidade em

que seu pai concentrava seus negócios. Ele freqüentou o colegial no Brooklyn,

tendo depois estudado engenharia elétrica industrial no Instituto Pratt; em 1929,já

naturalizado americano, ele viajou para a Europa, onde assumiu um posto na indústria

cinematográfica: o trabalho de instalação da nova tecnologia de reprodução de

som nos cinemas. Em 1939,já residente em Bruxelas e casado com a belga Rosine

81. Ibid., p, 213.

379

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ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça

Van Aershot, Nassy desistiu de seu trabalho técnico e assumiu a pintura comoalternativa. Foi detido como estrangeiro inimigo pelos nazistas em abril de 1942, e

levado para Beverloo, um campo de prisão temporária da Wehrmacht em

Leopoldsburg. Em novembro do mesmo ano, ele foi transferido para os campos deLaufen e Tittmoning destinados a detentos civis nos Alpes da Bavária, perto da

fronteira austríaca, onde permaneceu - com diversos outros prisioneiros negros セ

até a sua liberação conjunta pelo Terceiro Exército dos Estados Unidos em maio

de 1945. Suprido de materiais artísticos graças aos bons ofícios da YMCA

[associação cristã de jovens], e ao "patronato" do comandante do campo, Nassydeu aulas de artes plásticas para outros prisioneiros, tendo registrado em mais de

duzentas pinturas a vida nos campos onde ficou detido. Os retratos de Nassy e

outros estudos da vida no campo pintados com predominância de marrom, cinza,

bege e preto são expressões tocantes do tédio, da solidão e da despersonalização

da detenção. O conjunto deste trabalho integra agora uma única coleção no Museu

Severin Wunderman, em Irvine, Califórnia. Na época em que o marido estavapreso, Madame Nassy escondeu três famflias judias na residência do casal.

Nassy não foi o único itinerante da Guiana cuja imaginação artística foitestemunha da falta de humanidade dos nazistas. Contemporâneo de Nassy e três

anos mais velho do que ele, meu primo distante Rudolph Dunbar, neto de escravos,

foi outro jovem cosmopolita cujas ambições criativas, neste caso de ordem musical,

levaram-no à Europa. Depois de alguns anos devotados ao estudo na Escola

Juilliard, em New York, tendo se dedicado também de um modo camuflado a tocar

jazz naquela cidade, ele chegou em Londres vindo de Leipzig e Paris, onde estudoufilosofia, composição musical e regência, além de se aprofundar no estudo daclarineta, seu principal instrumento.

Além de suas realizações musicais, Dunbar publicou um tratado técnicoinfluente sobre a clarineta e escreveu artigos com freqüência para a publicação

musical britânica Melody Maker. Suas ambições jornalísticas o levaram a ser

correspondente de guerra da Associated Negro Press durante a guerra, posição

que ele usou para atacar as políticas segregacionistas do exército dos Estados

Unidos e para defender a bravura e integridade dos soldados afro-americanos no

campo de batalha. Em setembro de 1945, quatro meses depois de terminada a

82. Journal Courier (New Haven, Conn.), 3 de setembro de 1945, reproduzido cm "In Retrospect:W. Rudolph Dunbar, Pionecring Orcbestra Conductor", The Black Perspective in Musíc, vol. 9,n'' 2 (outono, 1981), pp. 193-225.

380

PAUL GILROY

guerra, ainda vestindo seu uniforme de correspondente de guelra, Dunbar regeu aOrquestra Filarmônica de Berlim num dos Concertos da Vitória, realizado no setor

americano diante de um público de cerca de "3,500 civis alemães e um punhado de

homens dos exércitos alíaoos''." O programa daquela noite incluía músicas de

Tchaikovsky e Von Weber, assim como a sinfonia afro-americana de William Grant

ssn.As autoridades russas e americanas foram receptivas à proposta que uma

pessoa considerada antes como inferior em termos raciais, e cujos esforços prévios

no pódio do Albert Hall de Londres foram escarnecidos pelos nazistas como um

sintoma do declínio cultural inglês, seria uma escolha apropriada para liderar um

evento que celebrava a derrota do hitlerismo. As autoridades britânicas, porém,viam as coisas de maneira diferente e fizeram o que puderam para impedir o

concerto. Ouviu-se o seguinte comentário sobre a regência de Dunbar, dito por um

alemão idoso ao seu acompanhante durante o espetéculo: "E eu pensava que eles

eram uma raça decadente," Cenas similares repetiram-se em Paris um mês depois,

quando Dunbar regeu a Orquestra Sinfânica Pasdoloup em concerto beneficentepara órfãos de guerra, realizado no Palácio Chaillot. O programa daquela noite foi

todo de composições de Grant Still.As extraordinárias estórias destes detentos negros, antifascistas, veteranos,

libertadores e viajantes militares não constituem apenas uma oportunidade propícia

para recordar a atuação dos negros na histórica luta mundial contra o hitlerismo.

Embora aquele empenho de reparação seja por si mesmo um importante gesto

voltado para a Europa, chega-se ainda a um outro significado menos passageiro.

Estas estórias são um meio precioso para situar as pessoas negras e suas batalhas

contra a raciologia e seus códigos no mesmo mundo moral e político que abarca ossofrimentos autênticos dos judeus e o genocídio industrializado presente na

implementação da higiene raciaL Além disso, estas estórias podem agora fazer

parte da elaboração do universalismo "estratégico" para o qual tenho encaminhado

meu argumento. Elas promovem uma compreensão dos elos vitais entre o racismo

e o fascismo que deveriam ser vistos como parte do conflito político contemporâneo

e não como uma relíquia a expressar um significado essencial e imutável do nazismo.

381

Page 51: GILROY_Negro Para Futuro (Entre Campos Parte3)

9"A TERCEIRA PEDRA DO SOL":

HUMANISMO PLANETÁRIO E

UNIVERSALISMO ESTRATÉGICO

Não há dúvida de que a vida dos povos menos civilizados do mundo, os selvagense os bárbaros, é mais inculta, rude e cruel do que a nossa como um todo, mas adiferença entre nós e eles não reside inteiramente nisso ...as tribos selvagens ebárbaras representam com frequência de uma maneira mais ou menos equilibrada osestágios de cultura pelos quais nossos ancestrais passaram há muito tempo, e seuscostumes e leis nos explicam muitas vezes, de umjeito que dificilmente perceberíamosde outro modo, o sentido e a razão dos nossos próprios costumes e leis.

E.B.TYLOR

Se nos perguntarmos agora se a espécie humana pode ser considerada uma raçaboa Oll má (ela pode ser chamada de raça somente quando se pensa nela como umaespécie de seres racionais da terra, comparada com aqueles seres racionais de outrosplanetas, que brotaram como uma multidão de criaturas a partir de um demiurgo},então devo confessar que não há muito para se gabar. Contudo, quem quer queconsidere o comportamento humano, não apenas na história antiga, mas também nahistória recente, sentirá muitas vezes a tentação de concordar com o juízomisantrópico de Timon, mas será ainda com mais freqüência e com acerto aindamaior que ele concordará com Morno e pensará que a característica maissurpreendente da nossa espécie é a insensatez em vez da maldade. Mas, como ainsensatez combinada com traços de maldade...não pode ser ignorada na fisionomiamoral da nossa espécie, é óbvio que ...todos em nossa raça pensem ser recomendávelficar de sobreaviso... Este comportamento revela a tendência de nossa espécie deque todos sejam mal-intencionados uns em relação aos outros.

KANT

MINHA PESQUISA sobre o pertencimcnto em suas múltiplas ecologias, emespecial a ontologia racial do território soberano e o cultivo das culturas nacionaisconfinadas em campos, tem se preocupado necessariamente com a organização

Page 52: GILROY_Negro Para Futuro (Entre Campos Parte3)

ENTRE CAMPOS" Nações, Culturas e o Fascínio da Raça

simbólica do espaço, do lugar e da comunidade política. Kant que fez tanto para

dotar este domínio acadêmico de coerência intelectual, pronunciou-se em favor de

toda uma tradição de reflexão raciológica moderna organizada entre os eixosdisciplinares da antropologia e a geografia, combinando em algumas infelizes frases

"epidermízantes", as características ffsicas e sociais das pessoas denominadas por

ele de "Negros" com as condições climáticas em que os viajantes europeus, em

sua busca da "alegre dança da morte e do comércio", primeiro os descobriram:

A superabundância das partículas de ferro, que estão presentes em todo sanguehumano, e que secondensame caem na substânciareticular por meio da evaporaçãodos ácidos de fósforo (os quais fazem todos os negros feder) causa a pretidão quebrilha através de sua pele superficial...O óleo da pele, o qual enfraquece o muconutrientequeé um requisitoparao crescimentode cabelo,permitiude ummodo bempouco uniforme a produção de uma cobertura lanosa para a cabeça. Além dissotudo,o calorúmidofavoreceum falte crescimentonos animaisem geral;emresumo,o Negroé produzidode um modo bemadequadoao seu clima;ou seja, forte, robusto,flexível, mas em meio às provisões copiosasda sua terra mãe, preguiçoso,simplórioe vadio.'

o deslocamento massivo de populações envolvidas na globalização do

comércio, a escravização de africanos e a conquista do Novo Mundo romperam

os padrões naturais tão caros a este materialismo mecânico ilustrado. À medida

que isto aconteceu, as forças da natureza deram lugar às da história. Mas para

Kant, escrevendo no último quartel do século XVIII, a geografia continuavafundamental. Ela fornecia as bases para que a história humana pudesse sedesenvolver:

o que veio antes, a história ou a geografia? A última é o fundamento da anteriorporque as ocorrências têm de se referir a algo. A História está num processo quenuncaseafrouxa, masascoisas mudamtambéme resultampor vezesnumageografiatotalmente diferente. A Geografia é, portanto, o substrato."

1. I. Kant, "On theDifferenl Races of Mau", in This is Roce. An Anthology, seleção, organização eintrodução de Earl W. Count Hanery Schuman (New York, 1950), p. 22.

2, 1. Kant, "Physiche Geography", apêndice de 1. A. May, "Kant's Concept of Geography and ltsRelation to Recenr Geographical Thcught", tradução do autor (University of Toronto Press.Geography Department Research Publications, 1970), p. 262.

384

PAUL GIL ROY

As teorias raciológicas posteriores seguiram os preceitos da revoluçãodarwinista e emanaram de premissas muito distintas bem mais sintonizadas com o

fascínio do alto modernismo em relação ao tempo e à temporalidade. A própria

obra de Darwin fora auxiliada pela concepção de tempo descoberta por ele notrabalho do geólogo Sir Charles LyelJ. Transformado pela substância mesma da

terra, o próprio tempo podia agora fornecer o meio para compartir as populações,

e ainda compreender e expressar as diferenças entre elas. As raças não deviam

ser distinguidas meramente com base nas suas várias origens climáticas e diferenças

de adaptação ambiental; elas deviam ser enfileiradas numa hierarquia derivadadas suas posições relativas na escala temporal evolucionéria. Bernard McGrane

sumarizou esta mudança:

Para além da Europa era de agora em diante antes da Europa. A antropologia doséculo XIX, a partir desta perspectiva, existia então como o eixo pelo qual asdiferençasexistentes no espaço geográfico foram viradas e reviradas até que elas setornaram diferenças existentes no tempo histórico em desenvolvimento, ou seja, oeixopeloqual a simultaneidade do espaçogeográficofoi transformadana linearidadesucessiva do tempo evolucionário.'

o argumento de McGrane é forte, embora um tanto límpido demais quando

aplicado à transformação da raciologia no período imperial. Precisamos nos lembrar

não só que Gobineau produziu O seu Ensaio sobre a desigualdade das RaçasHumanas sem contar com as percepções de Darwin, mas que a raciologia mais

sustentada, brutal e desumana não emergiu da teoria antropológica especulativa,mas sim em meio à prática de terror racial como uma forma de administração

política nos impérios coloniais da Europa." O poder imperial assegurou que o teatro

da história não fosse mais confinado à zona temperada.

As pesquisas influentes de Gobineau sobre a química histórica que governava

as leis do declínio, o problema da decadência e os riscos da intermistura ligaram

suas inquietações com a ordem racial e a duração limitada da civilização humana

a um novo argumento que se tomaria a matéria-prima de todas as Versões sucessivas

da ideologia fascista. A sua teoria constituía a política primordial de "raça" para

3. Bernard McGrane, Beyond Anthropulogy: Society and the Other (Columbia University Press,1989), p. 94. Ver também Johannes Fabian, Time and the Other: How Anthropo/ugy Makes ltsObject (Columbia Univcrsity Press, 1983).

4. Hannah Arendt, The Origins ofTotalitaríanism (Allen andUnwin, 1967), p. 171.

385

Page 53: GILROY_Negro Para Futuro (Entre Campos Parte3)

ENTRt ャ a m i G u セ .. naçces. Culturas e o Fascínio da Raça

além do alcance das superficialidades governamentais, situando-a entre os póloselementares da degeneração e regeneração. A destruição legada pelo

comprometimento teórico e político dominante com a regeneração correspondia à

instauração iminente de um novo tempo em que a nação novamente purificada

pudesse tornar-se, uma vez mais, ela mesma. Embora esta revolução tenha sidopor vezes identificada com a instituição de uma relação transformada com o poder

divino, a autoridade extraterrestre que o fundamenta não é de modo algum sempre

de caráter cristão.

O desejo de se liberar, isto é, de se liberar da "raça" e do racismo, proporcionou

fundamentos constantes para as firmes aspirações utópicas que emergiram a partirde um mundo racialmente codificado em meio aos subordinados, pauperizados e

colonizados. A ruptura da teodicéia cristã que já havia sido transformada pelo

contínuo potencial da espiritualidade africana deveria também ser reconhecida

como uma parte significativa de nossa pesquisa sobre as bases sociais do

autoritarismo negro. O cristianismo negro orientava-se certamente para o futuro,

mas o seu senso de futuro vinculava-se à sua escatologia. A sua utopia não era

deste mundo de dores, precisando assumir o tempo moderno, ou seja, o tempo

racializado e racializante. A difusão mundial dessa utopia, especialmente por MarcusGarvey e outros defensores da diáspora pertencentes ao fundamentalismo africano

organizado, requeria a inauguração de uma nova era de desenvolvimento nacional

na qual, como vimos, o exemplo das culturas políticas fascistas exercia poderosa

atração. O entusiasmo comum pelo ritual, pela pompa e sacralização da esfera

política levou Garvey, repetidas vezes, a declarar afinidade com Hitler e Mussolini,

descrevendo-se a si próprio como a inspiração deles.

A escatologia anti-cristâ da Nação do Islã oferece um exemplo relevantede um padrão bem mais abrangente através do qual a ideologia fascista tem tambérn

se vinculado profundamente a um conjunto de crenças ocultas que associam relatosdas origens humanos e da evolução com teorias cíclicas e catastróficas do tempo.

Nesses esquemas, que têm uma longa linhagem nas letras afro-americanas, o

poder divino pode ser refletido e ampliado pelas poderosas tecnologias que

contradizem silenciosamente os modelos arcaicos e orgânicos de família, parentesco

e comunidade que estão também em jogo." Sob a liderança tanto de Elijah

5. Susan Gilman, "Pauline Hopkins and the Occuft: African American Rcvlsions of Ninereenth-Ccntury Sciences'', American Literary History, vol. 13, no. 4 (1992), pp. 57-82.

386

PAUL GILROY

Muhammad como de Louis Farrakhan, a Nação do Islã (NI) associou o relatobíblico da visão de Ezequiel sobre lima roda destrutiva aos relatórios contemporâneos

dos ÓVNIs.6 No texto-chave do movimento, Mensagem ao Homem Negro daAmérica, publicado inicialmente em 1965, Elijah Muhammad invocou uma imagemdo fim do mundo. Era vista não só em termos de altas realizações tecnológicas,

exemplificada naquele momento pela "corrida no espaço" com os russos, mas pormeio das armas de destruição em massa, as quais lembravam as explosões que

puseram um fim à guerra de 1939-1945:

A nave feita de círculos conhecidacomo a Mãe das Naves tem 804,6 m2 e é o maiorobjetomecânicofeito pelo homem no céu. É um pequeno planeta humano feito 」ッセo propósitode destruir o atual mundodos inimigosde Alá. O custo para se construiruma nave como essa é surpreendente! Os melhores cérebros foram usados paraconstruí-la. Ela é capaz de permanecer no espaço exterior ao longo de seis a dozemeses por vez sem entrar na gravidade da terra. Carrega mil e quinhentosaviões debombardeio com osmaismortíferos explosivos - o tipousadoparalevantarmontanhasna terra. O mesmo método deverá ser empregado na destruição do mundo....As pequenas naves circulares chamadas de discos-voadores, as quais tantosdizem terem avistado, poderiam vir desta Nave Mãe. Esta é apenas uma das coisasarmazenadas para o mundo de maldadesdo homem branco."

Esta visão aterrorizante, na qual a terra a que os negros têm estado

injustamente presos é destruída, enquanto eles se mudam rumo ao céu para um lar

melhor e mais celestial, lembra mais do que tudo as predições apocalípticas eigualmente racializadas feitas por figuras comparáveis ocultas e excêntricas comoHelena Blavatsky e Carl Jung, as quais ainda não foram em grande parte

reconhecidas como influências sobre o desenvolvimento do NI e sua teologia." A

obra de Blavatsky pode bem ter penetrado na consciência do jovem Elijah Poole

(Muhammad) através da influência mística de Sun Ra, o grande músico e estudioso

6. Manha F. Lee, The Nation ofIstam: An American Millenarian Movement (Syracuse University

Press, 1996).7. Elijah Muhammad, Message to the Blackman in América (United Brothers Communications

Systems, Newport News, Virginia, 1992), p. 291.8. Nicholus Gcodrick-Clarke, The Occuu Roots ofNazism: Secrct Aryan Culis and the lnfluence 011

Nazi ldeology (I. B. Tauris, 1992); Sylvia Cranston, H. P. B.: The Extraordinarv Llfe and InfluenceofHelena Btavarsky, Founder of the Modem Theosophica! Movement (Tarcher Pumam, 1993),em especial capítulo 7; Richard NolI, The Aryall Christ: The Secret Life ufCar! Jung (Random

House, 1997).

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ENTRE CAMPOS ., Nações, Culturas e o Fascínio da Raça

de esotérica que foi seu contemporâneo em Chicago e que, tal como ele, havia serecusado à convocação para alistar-se no exército dos Estados Unidos durante aII Guerra Mundial. Os ensinamentos de Blavatsky tiveram um impacto significativosobre a sociedade americana ao final do século XIX. Ela foi amplamente lida nascomunidades afro-americanas, contribuindo muito para a erudição arcana dediversas versões iniciais do nacionalismo negro que mudaram a polaridade racialda sua ariosofia e a inclinaram para o objetivo da supremacia negra em lugar dabranca." Os elementos tirados de suas teorias de "raça" ainda circulam nos relatoscontemporâneos mais conspiratórios sobre a aruação dos extraterrestres na história

humana.Para a NI, a aparição histórica dessas poderosas naves espaciais transmite

algo mais do que a liberação envolvida com a partida deste planeta moralmentecomprometido. Prevendo os derradeiros dias da terra, ela pressagia o "novodomfnio'' dos negros sobre a humanidade. Não sinaliza o fim das divisões raciais,mas sim o seu entrincheiramento mais profundo em uma nova ordem teocrática.Ao assumir o leme da NI, Farrakhan se posicionou bem mais além da profecia deElijah Muhammad ao declarar ter viajado em um ÓVNI. 10 Segundo seu relato, elefez um vôo deste tipo da cidade do México a Washington, O.c., em setembro de1985, sendo que durante a viagem ele se encontrou com Elijah Muhammad, falecidodez anos antes.

É interessante que a memória de Parrakhan a respeito desses eventos tenhadesaparecido logo depois, retornando dois dias depois graças a um terremoto deinspiração divina. Esta experiência de se tornar incapaz de se dar conta do tempodesponta em muitos relatos de cantata com extraterrestres, ÓVNIs, e outrasmanifestações de inteligência alienígena. O fato da sua persistente recorrênciasugere que se possa interpretá-la de uma maneira proveitosa como um sintoma domodo como estes encontros perturbadores demandam ajustes à compreensão sobreonde acaba o presente e começa o futuro.

Muitos escritores perceberam problemas oriundos das maneiras como osmovimentos fascistas do século XX organizavam as suas sensibilidades temporais:como eles se debatiam em termos da relação apropriada entre passado e futuro,tradição e modernidade, e como eles expressavam, sem se dar conta, a incapacidade

9. John F.Szwed, Spoce Is the Píace: The Líves and Times of Sun Ra (Panrheon, 1997).10. Manias Gardell, Countdown to Armageddon: Louis Farrakhan and tne Nauon of Is/um (Hursr

and Co., 1996).

388

PAUL GIlROV

de diferentes grupos sociais viverem simultaneamente o mesmo e indiferenciadopresente. Roger Griffin fez da preocupação desses movimentos com o renascimentonacional uma parte vívida e essencial da sua valiosa definição genérica a respeitodas atívidades deles. A ênfase de Griffin, com relação ao investimento teóricoespecífico que os fascistas sempre fizeram dentro da "visão de um começoradicalmente novo que se segue a um período de destruição ou dissoluçãopercebida"," aponta para a grande fé dos fascistas na transformação revolucionáriae restauradora da história humana. Os fascistas afirmam que a vida social podeser levada de volta para os ciclos severos, mas essencialmente naturais, quegovernam a produção de uma humanidade racialmente estratificada em formasfortemente generizadas e intergeracionais. Segundo Griffin, os seus mitosracialmente orientados, seculares e palingenésicos nem sempre derivam das suasnoções religiosas, as quais compartilham muitas das mesmas sensibilidades

escatológicas.Em algum lugar atrás de Griffin poderíamos situar com muito proveito a

figura do filósofo Ernst Bloch. Ele se debateu num ambiente especialmente hostilcom a idéia de que a busca de compreensão da dinâmica cultural positiva envolvidano movimento nazista significava ler o seu anti-capitalismo romântico e místicocomo um fenômeno utópico - e não niilista - que havia sido apropriado a partir defontes as mais diversas. De acordo com ele, o jubiloso irracionalismo dos hitleristase grupos similares tinha de ser compreendido como um sintoma de realizaçãoduradoura, o que é bem semelhante ao diagnosticado por Levinas em suas tentativasde vincular o nazismo com os prazeres corporais do ser. Esta perspectiva implicanuma condenação amarga dos fracassos das culturas democráticas anti-fascistasque não proporcionavam aos seus adeptos nenhuma imaginação fantasiosa compoder comparável àquela. O fato de se aplicar as percepções de Bloch àsmanifestações mais recentes do desejo por uma solidariedade unanimista, umahierarquia rígida e natural e um parentesco autoritário, as quais emergiram nahistória do Atlântico negro, não deveria acarretar a tarefa moralmente indefensávelde peneirar o seu conservadorismo revolucionário em busca de uns poucosfragmentos redentores que poderiam desculpar as suas más escolhas políticascomo efeitos da opressão ou subalternidade. Precisamos compreender o apelo dautopia encouraçada e a associação entre aquela resposta e as longas histórias de

11. Rogcr Griffin, The Nature ofFascism (Routledge, 1993), p. 33,

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ENTRE CAMPOS o' Nações, CuLturas e o Fascínio da Raça

terror e sofrimento. Como a definição genérica de fascismo de Griffin sugere, esta

compreensão precisa considerar a idéia do renascimento racial demarcando umnovo tempo como o seu ponto de partida.

Vimos que as formações autoritárias e prato-fascistas da cultura políticanegra do século XX foram animadas com freqüência por um desejo intenso de

resgatar as glórias perdidas do passado africano. A vontade de restaurar aquelagrandeza morta nem sempre se fez acompanhar de um entusiasmo equivalente

para remediar a má situação da África no presente. Mas a idéia de uma civilização

africana original e imaculada gerou por vezes um arcaísmo complexo tão poderoso

a ponto de poder se opor ao capitalismo e, ao mesmo tempo, permanecerinteiramente alheio à democracia. O desagrado romântico e sentimental pelo

capitalismo racial, que num momento anterior transformou os próprios negros em

mercadorias, constitui um fator profundo a influenciar as condições morais em que

se formam as culturas políticas negras. Contudo, este desagrado nem sempre levou

a uma crítica sustentada dos próprios mecanismos de mercado. Ao contrário, o

desenvolvimento económico negro ao longo de linhas capitalistas tem sidorepetidamente identificado como um componente substancial na ascensão da raça

como um todo e como a chave para a sua transição em direção a um autêntico

status nacional num mundo de modernos Estados-nação. Mesmo o comércio podese tomar um sinal de que a nova era está a caminho.

Estes conflitos sobre a moralidade que regularão a reconstrução comunal

são aspectos menores de outra batalha da política de "raça" em relação ao queconstitui uma autêntica civilização. Será que é para ela ser a mutualidade genuína

e sustentável que só pode ser praticada em escala limitada? Ou o desenvolvimento

incessante que abre a porta de entrada para os perigos da barbaridade hi-tech

ultramoderna? Termos como "selvagem" e "bárbaro" que despontaram nesta

discussão sobre extremismos e humanismo misantrópico ainda são trocados como

pejorativos aqui e ali. A economia racial em que eles circulam revela as conexõesduradouras entre características morais, culturais e temporais. O seu poder

constante, tal como encontramos nos distúrbios temporais associados com os

movimentos revolucionários, autoritários e fascistas, significa que não podemos

esquivar-nos a um encontro conclusivo com a política racial da temporalidade.

Esta política deve ser vista, tal como foi, a partir de dois lados: toda vez que foi

invocada pela supremacia branca como um princípio de exclusão e disciplina sociale quando foi domada pelas vítimas da raciologia como um meio de resistência e

afirmação. Este exercício difícil também é necessário porque minha própria vontade

390

PAUL GILROY

de ver o fim da raciologia significa que também eu apelei para o futuro ignoradocontra o presente inclemente. Ao agir assim, insisto sobre a necessidade de uma

mudança fundamental de disposição com relação ao que se costumava chamar de

"anti-racismo''. O que se pede num espírito explicitamente utópico é que ele acabecom a sua relação ambivalente com a idéia de "raça" no interesse de um vir a ser

heterocultural, pós-antropológico e cosmopolita.

Voltar-se para a idéia de um futuro cosmopolita, mesmo quando ele recua,

envolve uma variedade de trabalho político sobre o discurso racial e a divisão

racial que é muito diferente do que tem sido praticado em tempos recentes. No

passado, estas atividades eram dominadas pela necessidade de se contrapor aformas de racismo nacionalistas e fortemente culturais. Amparado pela raciologia,

este padrão exclusivista negava aos negros a possibilidade de pertencimento e nos

forçava em vez disso a demonstrar continuamente uma presença histórica

substancial na vida das comunidades nacionais modernas às quais a escravidão

racial nos obrigou de início a pertencer. Tínhamos que indicar como a "raça" poderia

ser articulada juntamente com outras dimensões do poder, demonstrando a forçaccnformativa das relações imperiais e coloniais sobre a formação da vida social

metropolitana. Não é o caso de sermos complacentes, uma vez que podemos

facilmente cair de novo no velho programa. Contudo, a conclusão deste livro inicia-

se com a idéia de que uma teoria crítica da raciologia está agora numa posição

capaz de fazer um inventário distinto das tarefas políticas com relação à "raça" e

de assumi-las com um novo espírito. A inclusão corretiva ou compensatória não

deveria mais constituir o tema dominante na modernidade.

O ajuste temporário que garante este drástico virar de costas à antiguidadeafricana e de frente para o futuro do nosso planeta é uma questão difícil e delicada,

em especial se reconhecermos a possibilidade de que O contestado passado imperial

e colonial ainda não nos soltou inteiramente de suas garras. Ao nos dirigirmos para

um novo estágio de reflexão e aspiração que corresponda às nossas novas

circunstâncias enquanto deixamos o século da linha de cor para trás, minha sugestão

é que precisamos nos tornar conscientemente mais orientados para o futuro.Precisamos encarar o futuro e encontrar linguagens políticas com as quais se pode

discuti-lo. Não se trata absolutamente de fazer agora uma escolha para tentarmos

esgotar e esquecer o que levou tanto tempo para lembrar, ou para simplesmente

deixarmos de lado o passado e seus traumas. O reconhecimento dos sofrimentos

passados e sua projeção em locais públicos de memória e comemoração oferecem

uma importante alternativa ética em relação à busca de compensação financeira

391

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t:NTKt: l a m B G u セ .. Nações, CuLturas e o Fascinio da Raça

dentro de ordens jurídicas e fiscais de distintos Estados-nação. As mudanças emcomunicação e infomatics significam que as reivindicações do passado são agoraqualitativamente distintas. Para o bem ou para o mal, elas estão mais fracas do queantes, e a maré vazante das brutais relações coloniais que deram um significadotão distintivo à "raça" está drenando-as ainda mais. A transformação histórica éoutro aspecto da crise contemporânea da raciologia delineada no início deste ensaio.É mais um sinal forçoso de que a "raça" não é mais o que era. Entretanto, aindaestão vivas as reivindicações não atendidas que derivam de injustiças passadas,como por exemplo, o caso dos remanescentes do povo hereró em busca dereparação económica para o genocídio sofrido por eles a mando do General VonTrotha e seus associados, ou então o caso das batalhas nos tribunais travadas

pelos descendentes vivos dos trabalhadores-escravos dos nazistas em busca dereparação em oposição às companhias multinacionais que os obrigaram a servirsob ameaça de morte. 12

Fazer com que a raciologia pareça anacrônica - situando-a justamente no

passado - requer neste momento um juízo cuidadoso quanto a que histórias o nosso

presente heterocultural e o nosso futuro cosmopolita deveriam acarretar. Estetrabalho pode ser empreendido no espírito indiscretamente anti-marxista estabelecidopor aquele prototípico europeu negro, Frantz Panon, nas páginas conclusivas deseu primeiro livro, Pele Negra, Máscaras Brancas. Nele, num primeiro vôo de

seu entusiasmo juvenil pelo existencialismo, ele voltou toda a força de uma iraainda inocente igualmente contra a supremacia branca colonial e aquilo que agora

reconhecemos como as suas sombras negras nacionalistas. Escrevendo como seele estivesse lutando tanto para se tranquilizar quanto para direcionar os pensamentosdos leitores que conseguissem acompanhar até o fim o exigente percurso de seulivro, ele produziu estas memoráveis sentenças: "Não sou um prisioneiro da história.Não deveria buscar ali o significado do meu destino... Não tenho o direito de mepermitirme ver refletido naquilo que o passado determinou... A densidade da histórianão determina qualquer uma das minhas açõcs"."

12. A fábrica da Ford em Colônia permaneceu aberta durante toda a II Guerra Mundial, fabricandocaminhões com base no trabalho escravo vindo do [este europeu. Internos de Buchenwald foramadquiridos para trabalhar na linha de montagem. Ver também Neil Gregor, Doimler-Ben« in lheThird Reich (Yale University Press, 1998).

13. Frantz Fanon,Black Skin, White Masks, tradução de Charles Lam (Markman, Pluto Press, 1986[1952]), pp. 230-231 passím.

392

PAUL GIlROY I

Fanon apresentou esta superação imaginativa da história como uma iniciaçãoconsciente de um ciclo de liberdade para as populações negras ainda presas aochoque posterior à escravidão, o seu trauma fundador. Isto porque os companheirosde Fanon - os negros modernos que se inseriam, apesar de nunca à vontade, no

Ocidente codificado em cores - os quais reivindicavam um Ser mais autêntico doque a ordem racializada da modernidade havia permitido, precisavam aceitar opassado e ao mesmo tempo deixá-lo para trás. Sua história transnacional eintercultural precisava agora ser deixada de lado, fosse ela encarada primordialmentecomo heróica, nobre, sapiente e magnificente, ou então como abjeta, brutalizada,desumanizada e acorrentada. Suas reivindicações no presente haviam se tomadoilegítimas pelas demandas de autonomia e posse de si mesmo. A "desallenação dahumanidade", nas palavras de Panon, em particular sua liberação da divisão dadapela ''raça'' e o repúdio da supremacia branca que deve precedê-la, estava a exigir

esta mudança decisiva de orientação. Os ajustes políticos e éticos envolvidos nissonão poderiam se realizar sem uma mudança na consciência do tempo e acertos

significativos quanto à entrada na contemporaneidade.Tendo por fim enterrado o status primitivo que amarrava o negro tanto à

intra-humanidade quanto à pré-história, os negros devem ser capazes de se sentirseguros, mesmo se não completamente à vontade, no presente. De acordo comFanon, a capacidade de se dirigir ao futuro, tanto como uma abstração política,quanto como algo pessoalmente concreto, era uma pré-condição para a saúde e a

cura, para se recobrar da alienante e corruptora anti-socialidade da "raça". Ostrabalhos dele proporcionam a moldura na qual pretendo juntar os fios conclusivosdeste livro. Minha abordagem das questões contemporâneas da ciência racial, domulticulturalismo, do absolutismo e da nanopolftica se deu num espírito utópico,tendo em mente o modelo comunicativo oferecido pela intercultura da diáspora.

Antes que eu aborde um futuro sem raça a serviço da minha própria tese, que éobstinadamente deslocada, sinto-me obrigado a reconhecer a historia dos apelosnegros em termos do futuro, devendo agora observar as formações vemaculares

onde estes temas se cruzam com freqüência.A música e os músicos engendraram recursos especialmente importantes

que facilitaram os difíceis procedimentos de reajustamento temporal. Éimportante reconhecer a sua tradição de ansiar por uma temporalidade quefomente a capacidade de ver o curso da vida individual assim como o movimento

sincronizado dos mundos da vida contingentes. Essa tradição anunciou repetidasvezes a fé secularizada no fato de que uma mudança virá. Esta aspiração

393

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ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça

pode ser compreendida melhor como uma versão ainda mais exigente do jáformidável apelo de Fanon. Levar isso a sério hoje significa compreender quea extraterrestrialidade, a futurologia, as ficções da tecnociência têm sidoarticuladas nos ritmos e formas cotidianos daquilo que poderia ser denominado"o curso dominante" da expressão negra vernacular. Do mesmo modo, deve-

se considerar os apelos para o futuro, feitos por artistas, músicos, críticos eescritores negros - particularmente em circunstâncias históricas nas quaisqualquer futuro havia se tornado difícil à sua imaginação. Esta iniciativaproporciona uma maneira tardia para se confrontar o fato de que uma vez

tornada a necessidade absoluta, negar o futuro e o direito de se orientar parao futuro passou a ser uma parte integral do modo como a supremacia branca

operou durante e após o sistema de escravidão.A usurpação do futuro pelos negros envolveu-os em lutas para se

desvencilhar das COlTentes do primitivo e ganhar o direito de se dirigir ao futuro.Este idioma não ocorreu facilmente às culturas políticas dominadas pelahermenêutica da memória. O cristianismo negro havia se enraizado na crençade que o único futuro habitável situava-se num outro mundo melhor, para alémdeste vale de lágrimas. Esse futuro celestial era a negação e a redenção dosofrimento presente. A preocupação com o futuro era do mesmo modo remotapara aqueles imbuídos de perspectivas mais prontamente secularizadas ereivindicatórias. Os futuros dessas pessoas eram delimitados e orientados pelaidéia de reparação e pela possibilidade de reconciliação com as possibilidadestecnológicas e educacionais que haviam sido recusadas pela hierarquia racial. O

nacionalista polímata Martin Delany é um bom exemplo aqui. O seu projetovisionário a respeito de um desenvolvimento futurista político c econômico negroenvolvia a construção de uma sublime façanha tecnológica, uma grande ferroviaatravés do continente africano. Esta visão compelativa de desenvoltura, progresso

e ascensão racial foi crucial para estabelecer a "posição nacional" dos afro-americanos, mas envolvia pouco mais do que simplesmente alcançar o que osbrancos já haviam realizado em outras partes do mundo. O sonho de Delany denum mesmo grande movimento modernizar a África e proporcionar a infra-estrutura econômica e tecnológica necessária à destruição da escravidão,eXemplifica este laço duplo:

[A ferrovia] terminando no oeste do Oceano Atlântico; ...faria a GRANDEPASSAGEM para todoo comérciodas ÍndiasOrientais e a costa lesteda África, e o

PAUL GILROY

continente da América. Todo o mundocruzariaa África nestaestradade ferro,quedaria proventos infinitamente maiores do que qualquer outro investimento domundo. 14

Apesar do apocalipse hl-tech ensinado aos seguidores de Delany por Elijah

Muhammad, esquemas deste tipo têm sido bem poucos e raros. O nacionalismomilitante reivindicativo em que se situam ambos os homens tem se caracterizado

pela preocupação com a necessidade de provar e estabelecer o carãter ー イ ッ ー イ ゥ 。 セ ・ ョ エ ・

histórico da negritude como parte de importantes campanhas para trazer a Africae seus povos submetidos por inteiro para dentro da História moderna racialmenteexclusiva à qual Hegel deu uma expressão tão lúcida e duradoura. Deveríamosobservar que nos mesmos escritos sobre a filosofia da história que haviam consignadoa África a uma condição permanente de ausência de história, Hegel identificou aAmérica como a terra do futuro, um lugar especial onde o fardo da história mundialrevelar-se-ia, "a terra do desejo para todos aqueles que estão cansados do cômodcde cacarecos histórico da velha Europa"." A lembrança dessa provocativaseqüência teleológica deveria nos pôr em alerta. Ela nos permite indagar quanto dareflexão contemporânea sobre os problemas criados pela preocupação com oslimites do ser e da comunidade é de fato uma conseqüência da globalização das

culturas populares americanas que definem atualmente uma boa parte da nossa

ansiosa modernidade pós-catastrófica.Como vimos nos capítulos 5 e 7, estamos a tratar de uma formação na qual

os severos códigos raciais usufruíram de um papel constitutivo especial. Para dizer

de outro modo, muito deste interesse pelas culturas negras disseminadas - sinaisde negritude - pode derivar ao final das contas de uma frustração dos propagandistascom os limites óbvios de um eterno presente de consumismo e de sua ambição denos levar para os estados tensos representados pelo condicional e pelo futuro-perfeito material dos compradores. A perspectiva mais cética, menos imbuída de

uma mentalidade comercial, tal como avançada aqui, exige o nOSSO questionamentode todos os quadros de tempo, linhas de tempo e escalas de tempo. Requer-se, em

especial, que tentemos ficar alertas para a política de temporalização, ajustada

14. Martin Delany,The Conditirm, Elevation, Emigration and Destiny of the Colored Pcopie Oflh e

Ifnited States Politically Consídered (George Charles, 1852), p.2l3.15. Georg Wilhelm Friedrich Hegel, lhe Philosopky orHlstory, tradução de J. Sibree (Dover Editicns,

1956), p. 86.

394 395

Page 58: GILROY_Negro Para Futuro (Entre Campos Parte3)

tN IKt lAMI"U::' rtaçces, cutturas e o rascrmc ela Raça I'AUL l:JILKUT

intimamente aos fluxos e refluxos, redemoinhos e correntes que têm energizado aproteica criatividade cultural negra que estimulou e provocou este ensaio. Pode-se

também sugerir que evitemos uma sobre-integração dos fenômenos que queremosinvestigar de modo a não reduzir O seu caráter contraditório e desigual e também anão minimizar as suas qualidades irrequietas e mutantes.

o NEGRO PARA O FUTURO

Para compreender a história dos apelos da negritude em relação ao futuro e

como essa história poderia contribuir para o dinamismo cultural e a confiança

moral de uma Europa cosmopolita e hospitaleira, precisamos examinar as distintas

ressonâncias e articulações a respeito do futuro que se tem exprimido em várias

fases - emergentes, dominantes e residuais - do processo de dissidência da

raciologia. A ciência, o símbolo maior de um futuro de promessas ilimitadas, nem

sempre tem sido uma aliada dos movimentos políticos envolvidos na desagregaçãodo modema pensamento de raça. Um certo desencanto com a ciência e um exame

das linhas corretas delimitadas pela raciologia racional entre as suas variedades

respeitáveis e as espúrias têm sido partes essenciais da crítica da modernidade

apresentada pela história do Atlântico negro. Importantes cientistas afro-americanos

como Benjamin Bannekcr e Lewis Henry Latimer têm sido sacralizados para facilitar

a celebração de suas conquistas durante o mês da história negra, mas as vidas de

personalidades complexas do século XX como Ernest Everett Just, o biólogo da

Marinha que abandonou a Universidade de Howard para ir a Europa, tendo sidointernado por um breve período pelos nazistas, continuam pouco conhecidas."

Todas essas figuras devem agora ocupar um segundo lugar em relação às populares

assertivas "afrocêntricas'' sobre as grandes descobertas da ciência e tecnologia

ocidental, as quais teriam sido conhecidas na África da Antiguidade, roubadas de

suas fontes antigas e depois atribuídas aos gregos pelos historiadores favoráveis àsupremacia branca.

Esta perspectiva interroga com proveito a política racial de prestígio científico,levantando a questão do impacto da helenomania européia sobre a história da

ciência, mas se fecha efetivamente à possibilidade de qualquer engajamento

16. Kenneth R. Manning, BlackApollo ofScience: The Life of Ernest Everen Jus! (Oxford UniversityPress, 1983).

396

específico ou crítico com a ciência enquanto prática. É através desta perspectiva

que as conspirações que encobriram o roubo tomam-se a questão principal. Estacontra-narrativa do progresso faz-se acompanhar de um certo distúrbio temporal.

Ela diz com efeito: "Estávamos à sua frente na escada rolante ascendente da

civilização até que vocês nos deslocaram por meios ilegítimos". Esses ciclos

depressivos contribuem para o clima em que paixões autoritárias e anti-liberaispodem assumir o comando da imaginação política. A estória bem conhecida sobre

o conhecimento inesperado e surpreendente da estrela Sirius B pelo povo dogon -

e o que deveríamos ter em mente - tirada integralmente da etnografia colonial de

Marcel Griaule c Germaine Dieterlen, tem sido desdobrada por escritores "afro-

centristas" não apenas para romper e confundir a velha polarização primitivo/

moderno, mas também para demonstrar uma superioridade compensatória dosafricanos e do conhecimento científico africano. Enquanto isso, a mesma África é

excluída da revolução tecnológica contemporânea.Discrepâncias entre os diferentes níveis na hierarquia das culturas racializadas

têm sido identificadas muitas vezes como processos de disjunção temporal. Richard

Wright expressou este ponto ao levantar uma questão fundamental para a

consciência dos intelectuais negros, respondendo-a deste modo:

Meu ponto de vista é ocidental, mas um ponto de vista ocidental que conflita emdiversos aspectos com a perspectiva presente dominante do Ocidente. Estou adianteou atrás do Ocidente? Meu juízo pessoal é que estou adiante. E não digo isso parame gabar; a implicação de um tal um juízo está na natureza mesma dos valoresocidentais que eu prezo. 17

Deixando-se de lado a questão de como a suposta hiper modernidade da

música negra do século XX poderia ter contribuído para a credibilidade da assertiva

de Wright, o exame das implicações da sua postura nos leva para longe dasexultações em tomo do exotismo ou kitsch negro que acompanhou por vezes a

fascinação com a vanguarda musical afro-americana em lugares onde os prêmios

da política de raça não são tão altos como nos Estados Unidos. Atualmente, mais

importante do que a questão de se os negros estavam à frente ou atrás, é saber até

que ponto aqueles sentimentos dissidentes estavam em descompasso em relação

17. Richard Wright, White Man Listenl (Anchor, 1964), p. 53.

397

Page 59: GILROY_Negro Para Futuro (Entre Campos Parte3)

I tNIKt lJ\MrU:::' naçces, cuuuras e o r-ascrme na «aca I I PAUL GILROV I

ao tempo militar estrito do mundo da Guerra Fria. A partir de uma leitura contra-

corrente de Wright, eu diria que estar em descompasso nestes termos precisos

proporcionou algumas oportunidades críticas e analíticas e que o seu valor precisa

ser invocado mais uma vez, agora que tantas pessoas estão preparadas para se

adaptar com sofreguidão ao tempo distinto de um capitalismo de mercado

planetarizado que tem se consolidado sobre os escombros da cortina de feno.

Ser contra o racismo, e contra o poder da supremacia branca, era antes

estar vinculado ao futuro. Isto já não parece mais ser o caso. As palavras de

Wright também sublinham que podemos ouvir com proveito a futurologia evidente

nas culturas negras populares e interpretar seus comentários sobre ciência e

tecnologia como tendo algum propósito em termos de matérias éticas e mesmo

políticas. Há ainda algo a ser examinado com cautela assim que se apresenta este

problema interpretativo. As pretensões sobre a complexa integridade da vida

cotidiana, a exemplo dos problemas morais e conceituais resultantes da descoberta

pelos críticos bem-intencionados de consciência política cm todo lugar ou em lugar

algum, são cabíveis aqui devido à séria obrigação de abordar os trabalhos e feitos

de moda da cultura negra moderna sem se deixar levar pelos efeitos da moda. Isto

significa considera-los como partículas radioativas emitidas por um movimento

social- um movimento de liberação - e mesmo como uma parte ainda mais direta

do próprio movimento. Precisamos identificar os vários momentos políticos desta

futurologia vemacular e reconhecer que mesmo à medida que ela se dissolve, o

movimento que os produziu criou uma certa perturbação temporal. Isto tem sido

registrado de um modo consciente na noção de uma identidade diaspórica composta

onde o tempo, a historicidade e a histcricalidade têm sido politizados duplamente:

de início pela resistência à supremacia branca e depois pela aceitação incômoda

de que não somos mais o que fomos anteriormente, não podendo mais enrolar as

fitas de nossa complexa vida cultural até um único ponto conhecido de origem.

Como vimos no capítulo 3, esta difícil alternativa produz uma diáspora irreversível

que pode ser compreendida como teia, multiplicidade e rede comunicativa. Requer-

se com isso uma mudança de escala no modo como tanto a história como a tradição

devem ser conceitualizadas.

Em tempos recentes os trabalhos de teor oracular deliberado e eticamente

comprometido, mas ainda jocosos de figuras futurísticas como Sun Ra e George

Clinton começaram a chamar atenção. Greg Tate desempenhou a inestimável tarefa

de vincular parte da obra de Clinton direramente à imaginação visual de Leni

Riefenstahl ao buscar a informação sobre a inspiração trazida a ele pelas fotografias

I 398 I

dos nuba tiradas por ela." É muito importante que não vejamos as atividades

desses proeminentes tecno-malandros como as únicas manifestações de uma

subtradição a sobreviver exclusivamente nos experimentos lúdicos de uma minoria

de vanguarda no interior de uma minoria. Sua significação é mais ampla e profunda

do que isso, sobretudo porque ao se articular nos múltiplos cenãrios históricos

constituídos pelo modernismo populista do Atlântico negro (um estilo que impõe os

seus próprios códigos temporais síncopados), a paixão deles pelo futuro põe em

.questão toda a idéia de vanguarda.

Estes exemplos chamam a atenção para o status especial usufruído

anteriormente pela música nas culturas vernaculares negras referidas por mim.

Até aqui, celebradores e críticos daquelas culturas tiveram de considerar o poder

do som significativo antes de poder passar para tarefas distintas, e talvez menos

exigentes, envolvidas na análise da visualização do extraterrestre e do futurístico

em formas racializadas. Devemos caminhar ainda com maior cuidado, agora que a

iconização fomece a lógica comunicativa dominante, o som está a perder o seu

lugar primordial em favor da comunicação visual, e a dança COlTC o risco de se

tomar uma subdivisão intencional excessiva da indústria de boa forma. Os termos

culturais no interior dos quais são conduzidos os julgamentos de identificação racial

têm se transformado. Ver e ouvir O futuro não precisa resultar na mesma coisa.

Um outro efeito bem-vindo das especulações de Wright é que elas obrigam

os historiadores da cultura vernacular a reexaminar aqueles álbuns negligenciados,

gravados pelos artistas deliberadamente futurfsticos e populares da Guerra Fria

dos anos 1970: Dexter Wansell, Masterfleet, Stargard, Earth, Wind and Pire, the

Undisputed Truth. Este período de intensa criatividade musical emergiu entre o

declínio do Poder Negro e a ascensão do Pan-Africanismo popular desencadeado

por Bob Marley. Foi um período dominado pelo desejo de encontrar um novo código

político e ético no qual as demandas contraditórias de negritude por um lado e a

utopia pós-racial por outro podiam ser articuladas conjuntamente sob os signos

brilhantes do progresso, da modernidade e do estilo. Vemos esta aspiração de um

modo distinto quando percebemos que com o tempo a conexão da nave mãe de

George Clinton foi para as nuvens, o trompetista Donald Byrd já trilhava o futuro,

o organista de jazz Charles Earland anunciara a possibilidade de deixar este planeta,

18. "Sai c comprei alguns livros desta alemã chique Leni Riefenstahl, Lnst ofthe Nuba and Peoplc ofKay [sic] [Os últimos nuba e o povo de kay]. Tem um filho da puta em uma foto que se parececomigo". Greg Tale, Flyboy in the Buffer Milk (Simon ano Schuster, 1992), p. 34.

399

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ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascinio da Raça

e o som hi-tech hipermoderno dos sintetizadores conjurava a possibilidade de que

logo ocorreria um total domínio negro da tecnociência. Logo depois, a música funk

futuóstica de Wansell - composta pelos refinamentos tecnológicos da síntese eseqüenciamento de som análogo - desafiaram os solos da dança diaspórica ao

afirmar com presciência a possibilidade de "Vida em Marie".

É preciso sempre lembrar que Wright, assim como Panon, escrevia

como um prototípico europeu negro. Enquanto ele datilografava aquelas palavras,ele olhava ansiosamente para trás na direção dos conflitos raciais idiossincrãsicos

de sua terra natal. A sua decisão de se colocar à frente em vez de atrás do resto

do Ocidente pode ainda nos ajudar a tornar inteligíveis as atividades mais

deliberadamente opacas de figuras como Ra, Clinton e Slim Gaillard, outro músicoex-cêntrico cuja conversa em línguas hip interplanetãrias fora um tanto

negligenciada. É possível que as palavras de Wright também nos ajudem a decifrar

alguns dos enigmas apresentados em "Answers in Progress" [respostas em

andamento], uma estória curta e memorável de Amiri Baraka em que se descreve

a visita de alienígenas blue a este planeta em busca dos discos de Art Blakey. A

escolha de um exílio meramente territorial feita por Wright como um primeiro

passo em direção a sua utopia não-racial pode possivelmente esclarecer de ummodo interessante o pensamento criativo revelado por Duke Ellington em "Ballet

of the Plying Saucers" [A Dança dos Discos Voadores], e ainda de uma forma

mais interessante, em seu breve ensaio de 1957 "The Race for Space" [A Corrida

Espacial]." Nesses trabalhos, Ellington declarou o seu pertencimento à comunidade

nacional americana, e em meio ao clima gelado da Guerra Fria que terminaria por

pulverizar' Wright, Fanon e tantos de seus companheiros, ele afirmou não só que a

cultura de jazz modema da América era um "bom barómetro" de suas liberdadesmodernas singulares, mas também que a inabilidade do país em igualar-se às

realizações tecnológicas de seus rivais russos era um resultado do efeito

constrangedor da consciência de raça sobre a criatividade americana e a esperançaamericana:

19. eウエセ ensaio é tratado longamente por Graham Taylor cm sua tese de doutorado, "Blutopia:vístons of lhe Future and Rcvísíons of the Past in the Work of Sun Ra, Duke Ellingron andAnthony Braxton" (Dept. of American and Canadian Studics, University ofNoltingham, 1997).Esta tese foi publicada com o mesmo título, com revisão, pela Duke University Press em 1999,o nome do autor aparecendo como Graham Lock.

400

PAUL GILROY I

Parece-me que o problema da inabilidade da América até agora em ultrapassar ou aomenos se manter pari passu com a Rússia na corrida pelo espaço pode ser observadodiretamente a partir deste problema racial ao qual tem sido dada prioridade máxima,não apenas em todo o país, mas até em Washington. Eles gastam tanto tempotentando entender se o voto negro potencial é tão importante a ponto de valer apcna enlouquecer o Sul com a abertura das escolas brancas para as crianças negras,a ruptura da barreira de cor em restaurantes, ferrovias e estações de ônibus, nosempregos de colarinho branco e em nomeações políticas, que aqueles que estão àfrente de programas nucleares e de mísseis não sabem para onde ir."

A suposição de tempo linear ou evolucionário e sequências teleológicas

meticulosas nos quais se define e avalia o progresso pelos atos voltados para aeliminação do racismo teve conseqüências profundas para os artistas negros. De

diferentes modos, todos esses exemplos desenvolveram a hipermodemidade da

atividade extraterrestre (de humanos e outros) como um meio para conduzir uma

interrogação codificada sobre a dúbia ética territorial associada com a supremacia

branca e sua parcialidade racial fora de moda. Todos, exceto Elijah Muhammad e

suas legiões, concordaram que o pensamento de raça situa-se no passado e aopassado pertence.

Este é um ponto apropriado para relembrar que o primeiro beijo interracialda televisão americana se deu entre William Shatnere Nichele Nichols, comumente

mais vistos em seu trabalho conjunto na ponte do Starship Enterprise de Gene

Roddcnbury. Em sua autobiografia, Nichols descreveu o que aconteceu depois

que aquele episódio histórico foi ao ar: "Recebemos uma das maiores fornadas decartas de fãs já enviadas, todas positivas, sendo muitas dirigidas a mim por garotas

tentando imaginar qual a sensação de beijar o Capitão Kirk, e muitas outras paraele de rapazes querendo saber o mesmo sobre mim"." Embora eles tivessem sido

forçados por alienfgenas a dar este abraço não natural, a imagem desses não-

amantes centrou-se largamente no sentimento compartilhado de que a consciência

de raça liga-se à terra e é anacrônica. Foi o endosso de uma conclusão inevitável:

uma vez que a consciência de raça é tão manifestamente antiquada, as suas vítimas

e outros que percebem o segredo aberto de seu status residual devem estar mais

20. Duke Ellington, 'lhe Race for Spaoe", in The DukeEllingtonReador,org. Mark Tucker (OxfordUniversity Press, 1993), pp. 293-296.

21. Nichelle Nichols, Beyond Uhura: Star Trekand Other Memories (Boxtree Books, 1996), p. 196.

401

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tNIKt LAMrU::lo naçoes, cuuuras e o -escrmc da Raça PAUL GILROY

próximos de viajantes interplanetãrios avançados do que de seus iludidos praticantes

terrestres. É por isso que os viajantes espaciais de Baraka queriam a música maiship de jazz e porque, mais recentemente, algo tão perigoso no estilo "velhos tempos"

como a música country white-bread de Slim Whitman podia ainda mostrar-se

fatal aos invasores alienígenas mal-intencionados no filme Mars Attacks de Tim

Burton. Há uma clara implicação de que os marcianos pós-modernos de Burtonficam tão à vontade com o hip-hop e suas ramificações profanas quanto o restantedos habitantes deste planeta decadente.

A circulação universal da cultura negra foi também enfatizada por Space

Iam, o popular filme infantil de 1997 no qual Michael Jordan é raptado e escravizado

por alienígenas impiedosos, porém incompetentes, que procuravam oferecer umprograma de entretenimento ainda mais excitante cm seu parque temático pan-

galático. Nesse filme, Jordan é um atleta super-homem, mas também de tamanho

reduzido para que ele pudesse agir facilmente no mesmo mundo dos "Lconey

Tunes", personagens de desenho animado da Warner Brorhers, que eram seus

companheiros de escravidão e seus amigos. Embora o personagem de Jordan não

fosse claramente uma criança, ele ingressa no mundo infantil de um modo

interessante - como um brinquedo - deste modo correspondendo tanto ao desejoda agência de propaganda de alcançar consumidores cada vez mais jovens, como

aos códigos raciais duradouros que permitem a um herói negro ser, ao mesmo

tempo, mais e também algo menos do que um homem, sem nunca conseguir ahumanidade estável do adulto que exige o reconhecimento.

Cada um destes exemplos merece uma consideração mais extensa devido

ao modo com que eles se desvencilham do rótulo de "primitivo", apontando para oatrasado e trágico absurdo auto-derrotista da ordem racial da América. Contudo,

há algo mais em operação aqui. Estas imagens de ciência, espaço e cantata

interplanetário também revelam importantes pontos de ruptura na apreensão e

compreensão do puder pelos afro-americanos. Elas levam a uma gradual percepção

de que as lutas pela liberdade negra dentro e fora do espaço colonial haviam

alcançado um significado geopolítico planetário. O cenário de Guerra Fria constantedas observações de Wright é muito significativo por trazer este aspecto de volta

para casa. O poder do governo americano não podia mais ser adequadamente

compreendido como um mero fenômeno nacional. A guerra de 1939-1945, o cerco

de Berlim, e as operações da Cl.A e outras agências secretas pelo mundo afora

haviam mostrado que Tio Sam era bem mais ambicioso. Essas eram as condiçõesem que a questão de "raça" tornou-se gradualmente central para os debates sobre

402

a adequação ética da democracia americana à medida que ela se dirigia para uma

fase imperial madura. A cultura vemacular negra pôde observar isso dolorosamenteatravés das mortes de tantos líderes da geração Bandung que se distinguiram e

arriscaram a própria vida ao produzir as perspectivas globais que hoje encaramos

como dadas.Os comentários otimistas do tempo da Guerra Fria sobre a raça e o espaço

que, tal como os de Ellington, ainda aspiram a alistar a ciência a serviço da

democracia, têm um caráter bem diferente daqueles que se encontram em material

posterior onde a tecnociência é vista como inteiramente cúmplice da ordem da

supremacia branca. Este padr-ão posterior abandona uma preocupação

desproporcional em relação ao futuro para se dirigir a um presente desesperador

em que contrastes extremos entre ricos e pobres põem à mostra a profundidadedas divisões raciais e de seu poder de corrupção da promessa democrática da

América. Neste ponto, o futuro chegou. Aquele conhecido fã do Star Trek, Dr.

Martin Luther King, Jr., esteve entre os primeiros a dar voz a um argumento

importante a se repetir muitas vezes nos anos seguintes à sua morte:

Nos dias de hoje a exploração do espaço está nos engajando não só com o nossoentusiasmo, mas também com o nosso patriotismo. Ao desenvolvê-la como umacompetição global, nós intensificamos o seu drama inerente, introduzindo a suaaventura em todas as salas de visita, creches, lojas e escritórios. Não se vê um talfervor ou júbilo servindo a guen"a contra a pobreza. Há impaciênciaem relaçãoaosseus problemas, indiferença para com o seu progresso e hostilidade para com osseus erros. Sem negar o valor do esforço científico, há um surpreendente absurdoem se destinar bilhões de dólares para se chegar à lua onde não vive ninguém,enquanto apenas uma Fraçâo daquela quantia é apropriada a serviço dos cortiçosdensamente habitados. Se estas estranhas perspectivas persistirem, em poucosanos podemosficar segurosde que assimque pusermosum homemna lua, comumtelescópioadequado, ele será capaz de ver os cortiços da terra com o seu excessopopulacionalintensificado,decadênciae turbulência. Em que escala de valoresesteé um programa de progresso?"

22. Martin Luther King., Jr., Where Do We Gofrom Here: Chaos ar Communisy? (Harper and Row,

1967), p. 86.

403

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I tNIKt LAIOJI"V:::' reaçoes, cuuuras e o -ascimc ela Raça I I PAUL GILROY I

Há um contraste pronunciado entre as tentativas de Wright e Ellington deimpulsionar o futuro em favor da liberação negra, e o sentimento de King, apenas

uns poucos anos depois, de que o abismo entre as conquistas sociais e tecnológicas

era agora tão profundo a ponro de pôr em questão a própria idéia de progresso

social e económico. A compreensão da diferença entre essas posições podecontribuir para a construção de uma linhagem de discursos de futurologia e

extraterrestrialidade que mais uma vez ocupam o centro das práticas culturais

vemaculares. Esta genealogia também exigirá o nosso confronto com o glamour

translocal e o poder de atração da cultura afro-americana, assim como a aparição

de ícones modernos representativos e buscas reveladoras deste tempo: corposexemplares, músicas características e esportes típicos. Estes premiados atributos

transmitem uma aceleração do presente e a intensificação de seus prazeres. Eles

têm se destacado com a industrialização e a conseqüente globalização de rnídia

comunicativa e de entretenimento. Nichelle Nichols explicou que King foi muito

claro sobre o significado da presença dela na ponte do Enterprise em relação àslutas de liberdade dos afro-americanos:

Eu me voltei...e dei de cara com o Dr. MartinLuther King, Jr. Fiquei pasmada... Ohomemnosapresentou. Imaginemminhasurpresaaoouvirque asprimeiras palavrasdo Dr. Kingforam: "Sim, eu sou muito seu Ia e queria te dizer como é importante oseu papel".Ele começoua contar que ele e seusfilhos assistiamfielmente Star Treke o quanto eles adoravam Uhura."

No palco planetário, o comprometimento teimoso e provinciano da América

com a idéia de hierarquia racial fez com que as suas pretensões democráticas

começassem a parecer absurdas. A sua ordem racial poderia ser contradita apenas

pelo mundo emergente da cultura de consumo e sem lugar fixo, onde aspectos da

negritude injuriados por ela passavam a ser cada vez mais venerados como umsuplemento adequado para algumas acentuadas oportunidades de mercado. Esta

não era a situação familiar em que um apetite por culturas negras é completamente

divorciado de um entusiasmo equivalente pelas pessoas negras que as produziram.

Eu diria que o momento em que a Guerra Fria começou a dar lugar àquilo que a

sucedeu pode ser demarcado pelo modo como as pessoas representativas emtermos raciais do afro-americano tornaram-se efetivamente o híbrido estranho e

23. Nichols, Beyond Uhura, p. 164.

I 404 I

II

hiperhumanodo ultramoderno e ultraprimitivo que a sua culturadistintivahaviaassinaladohá tempos na Europa. À medida que essas pessoas viajavam cada vez mais longe das

fontes da sua cultura situadas no Novo Mundo, elas personificaram crescentemente

alguns de seus atributos mais apelativos para um público translocal de veneradores. Os

seuscorpos comunicavam saúde, vitalidade,força, e um poder absolutamenteracializado

capaz de reconciliar o primitivo com o moderno, o pós-contemporâneo.Este projeto é agora uma operação virtual que pode continuar sem que os

seus agentes tenham de deixar seus lugares de moradia. Em outras palavras, o

desenvolvimento de uma futurologia vernacular tem se ligado ao entendimento de

que a antiga negritude, compreendida de um modo estreito demais como a abjeção

americana, deve permitir uma nova percepção da negritude como um sinal de

prestígio, em especial como um significante de saúde e competência corporal, dehumano, ou melhor, de super-humano, vitalidade, graça e potência animal. Isto

proporciona o horizonte para que as cenas primordiais da pós-modernidade

privatizada sejam representadas.Os códigos do complexo cultural que denominamos de infoentretenimento

negociaram e abarcaram as forças estético-políticas resultantes das tecnologias

culturais desbravadas pelo fascismo europeu. Para compreender a força sedutora

dessas imagens de humanidade e seu futuro tecnocientffico ordenado, precisamosreconstruir a confluência desses dois mundos de sonho de cultura de massa onde

eles roçam e requerem identificação com os COllJOS negros superhumanos, tanto

de homem como de mulher. Esses sistemas de representação combinaram-se e se

transformaram numa única fantasmagoria bem mais poderosa do que qualquer

coisa que Fanon tenha inicialmente vislumbrado, nos anos de 1940 e 1950, em

tabuletas brilhantes e esmaltadas marcadas com as palavras legendárias e

desencorajadoras "Sho'good eating'' [boa comida na certa], esforçando-se por

nomeá-la naquelas partes de Pele Negra, Máscaras Brancas em que - ao pensarem lesse Owens e Joe Louis - ele discutiu os processos pelos quais a fisicalidade

ativa do Negro não simboliza a natureza, mas sim o biológico.As conseqüências políticas mais óbvias desta mudança são perceptíveis no

espetãculo, no ritual e no drama político numa tessitura estética, os quais têm sido

oferecidos numa escala global sem precedentes, além de serem articulados

deliberadamente como um meio para promover as formas de solidariedade,interconexão e unanimidade inquestionável que caracterizam o ideal impossível de

nacionalidade homogénea num mundo de Estados-nação constituídos em campos.

A celebrada seqüência de fisicalidade negra superhumana que se estende de Jack

405

Page 63: GILROY_Negro Para Futuro (Entre Campos Parte3)

I ENTRE CAMPUS .. Nações, tuuuras e o j-ascrmc ela Raça I

Johnson e Owens, passando por Louis e Muhammad Ali até Michael Jordan e

mesmo Mike Tyson deve também ser examinada como uma parte integral desta

mudança cultural substancial. A sua corporeidade contestada forneceu um elemento

decisivo para se compreender como as técnicas e tecnologias de si mesmo, a

identidade e a solidariedade nascidas do nacionalismo e refinadas pelos regimes

governamentais e escópicos do nazismo têm sido recicladas de uma forma quase

irreconhecível nas operações visuais do comércio contemporâneo. Elas proporcionam

agora a substância cotidiana para a venda de vestuário esportivo, sapatos e outras

mercadorias. Elas oferecem um atraente contraponto humano para o anonimato

do logotipo empresarial, o qual promove precisamente essas formas de solidariedade

que os emblemas nazistas, em primeiro lugar, buscaram impor sobre um mundo em

desordem.É a perfeição atlética do corpo masculino negro que especifica o futuro

aqui. Esses valores dinâmicos pós-modernos reduzem a experiência da atividade

esportiva ao ideal de ser um vencedor. Eles estão bem longe das antigas noções de

honra, beleza, disciplina e competição, previamente associadas ao esporte. A

distância entre eles foi muito bem ilustrada no jogo final da Copa do Mundo de

1998, na França, quando Ronaldo, então o jogador mais caro, e portanto, ao que

parece o melhor jogador de futebol do planeta, foi supostamente coagido a participar

da partida decisiva e final após sofrer um ataque epilético. O patrocinador comercial

do time brasileiro, a Corporação Nike, para quem a presença emblemática do

jogador era considerada central, exigia que ele, são ou doente, assumisse seu lugar

na frente das câmeras. De repente, para aquele descendente de escravos, o futuro

começou a se parecer muito com o passado.

De muitas maneiras, a assertiva sobre a alteridade radical dos negros e a

invocação associada de forças para além deste mundo tornaram-se integrais àcrítica pós-tradicional da raciologia e da racialidade à qual o trabalho de Riefenstahl

constitui um monumento tão sutil e duradouro. Barrados de uma humanidade

comum, além de lhes serem oferecidos os papéis igualmente insatisfatôrios de

semideus, guardião, ou bichinho de estimação, os artistas como Sun Ra buscam

outro modo de reconhecimento na identidade mais estrangeira que possam imaginar.

O momento em que eles conseguem passar do infra-humano para o super-humano

os leva finalmente para além do humano por inteiro. Você acreditará que um homem

pode voar. Essa crítica ainda é vivenciada e usufruída tanto como contra-cultura,

como contra-poder, formulada no ponto de junção - a encruzilhada - da morada na

dlãspora e do estranhamento na diãspora.

I 406

I PAUL GIL ROY I

NEORO NÃO MAIS

Estas questões incómodas proporcionaram um cenário promissor para o

primeiro romance de "ficção científica", escrito por um autor do Atlântico negro.

Trata-se de "Black No More" [Negro Não Mais] de George Schuyler, uma exposição

satírica sobre a era da Renascença do Harlem, publicado pela primeira vez em

1931. Não há alienfgenas do espaço ou viagens espaciais em sua novela futurística.

Ao contrário, a sua estória diz respeito aos efeitos na América da invenção de uma

máquina para transformar pessoas negras em brancas. Como se poderia imaginar,

as tecnologias elétricas e químicas para realizar esta transformação surpreendente

eram trazidas de volta da Alemanha para os Estados Unidos pelo inventor desviado

e cosmopolita, Dr. Junius Crookrnan. É especialmente significativo para os nossos

propósitos éticos que a primeira grande ação do protagonista, após passar por sua

mutação de raça, é se alistar nas fileiras de uma viciosa organização de supremacia

branca, os Cavaleiros de Nórdica. Uma vez. mais, a ciência, a tecnologia e o

progresso expandem o campo da imoralidade. Eles multiplicam as oportunidades

existentes para se cometer atas errôneos. Schuyler, um conservador na política

que foi ativo anti-comunista, argumenta de um ponto de vista misantrópico que os

negros e os brancos são absolutamente iguais em suas incapacidades morais. O

seu futuro imaginário não oferece nenhuma pausa em relação àquele ciclo eterno,

somente a sua intensificação.

Os tropas da extraterrestrialidade reapareceram recentemente na era das

culturas e das relações econômicas globalizadas quando a negritude alcançou a

importância à qual me referi acima. Desta vez, porém, esses tropos não se associam

com a idéia de progresso científico ou de qualquer outro tipo de progresso. Eles

têm se manifestado numa encarnação menos positiva como um potente elemento

na articulação do que se poderia chamar de "fundamentalismo da Nova Era" com

padrões perturbadores de irracionalismo autoritário. Não é preciso dizer que este

código cifrado de uma crônica falta de poder não é uma amálgama que se submete

a supostos limites inquebrantáveis da cor ou do fenótipo.

Na década de 1970, aquilo que podemos denominar invocações

liberalizadoras do arcaísmo africano e da modernidade tecnocienüfica era mantido

num equilíbrio apropriado apesar de instável. A música, o discurso e a cultura

visual de grupos como Earth, Wind and Pire demonstravam isso claramente. A

tensão entre esses dois comprometimentos foi resolvida num apelo universalista à

espiritualidade de um lado e às características humanas compartilhadas de outro.

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ENTRE CAMPOS •• Nações, CuLturas e o Fascínio da Raça

Este último apelo, simbolizado acima de tudo pelos feitios do rosto humano,

infinitamente distintos, porém sempre semelhantes, foi inesperada e felizmenterevelado por meio do contraste explíeito com o extraterrestre. A música emoldurou

essas possibilidades ao criar espaços de prazer e descoberta. Os anos entre "Outra

Space", uma extravaganza em c1avinete de Billy Preston e "Planet Rock" de

Afrika Bambaataa tiveram seus salões de dança tomados não só pelo conhecido

trabalho de Clinton, mas também pelos inúmeros produtos tributários de Star Warse pedidos efêmeros para que ET telefonasse para casa.

Vinte anos mais tarde, a cultura predominante americana parece ter

descoberto o valor dessa percepção, mas no que diz respeito à cultura negra este

equilfbrio delicado dos anos 1970 e 1980 já se perdeu. Até certo ponto é

compreensível encontrar um sentimento anti-moderno nas tradições inventadas de

uma comunidade constituída a partir da percepção de que o progresso e a catástrofe

não poderiam ser separados em sua própria história recente, mas ambos os ladosda equação da identidade - arcaísmo negro e hipennodernidade negra - parecem

estar fora de qualquer controle. A busca de um espaço não contaminado, fora das

operações de um sistema comprometido e não-democrático, a partir do qual um

exame crítico poderia ser conduzido e possibilidades de desenvolvimento mais

frutíferas seriam identificadas, já foi quase abandonada. As pessoas já não apostam

na possibilidade de partida deste planeta naquele mesmo espírito com que seus

antecessores se entretiveram com a idéia de um retomo à África. A África era

um lugar mais receptivo no período das guerras anticoloniais do que parece seratualmente, encerrada como está na privação pós-colonial. O tradicional desejo

dos escravos de escapar precisou ser redefinido. A fuga é agora tanto uma jornada

interior, ou uma viagem curta até o mercado. Atualmente os entusiastas mais

meticulosos da antiguidade africana buscam engajar os poderes extraterrenos dos

viajantes espaciais, ou outros imbuídos de uma percepção extraterrestre, a serviço

de propósitos mais místicos e mais profanos. Os alienfgenas não representam

nenhuma esperança ou fuga, mas sim a frustração humana básica diante docrescente poder dos governos terrestres com os quais eles se aliam, além da ira

cotidiana contra os Illuminati transnacionais que estão agora mesmo a conspirar

pela subordinação da humanidade racialmente dividida.

No período inicial, a teologia da Nação do Islã relacionada às naves espaciais

foi satirizada sem grandes danos por George Clinton e sua tripulação de clones

bem vestidos. Atualmente pode-se dizer que o irracionalismo autoritário triunfousobre a carnavalização subversiva com a qual o Dr. Funkenstein o havia submetido.

PAUL GIL ROY

Da pesquisa de Stephen Lawrence em Londres às ruas de Jasper, Texas, o estilo

militar e destituído de humor de homens negros rígidos e uniformizados confirma alinhagem insípida da sua perspectiva política. A sua disciplina recebe aplausos de

espectadores como se ela pudesse ser separada dos seus outros atributosfotogênicos. É preciso que nos perguntemos como esse militarismo terreno

glamoroso pode prontamente coexistir com o interesse deles em alienfgenas, navesespaciais e numa redenção engenhada lá de cima. Há um pequeno indício quanto

a isso no modo como se apresenta a ciência nos ensinamentos daqueles. Nessa

subcultura, a ciência conseguiu escapar consistentemente da critica graças à sua

capacidade de negar a imagem do "Negro" infantil, estúpido e ignorante. Há uma

evidência deste fracasso na estória do cientista rebelde Yacub a quem a Nação do

Islã atribui a invenção não-natural da raça do diabo branco. Ele não foi amaldiçoado

pelos tipos de ciência que praticava, mas sim devido à inspiração ilegítima delas eseus resultados catastróficos. Em outro nível, as atividades deste cientista, apesar

de malévolas, poderiam ser pensadas como confirmadoras do empreendimento e

do gênio da sua raça como um todo. Nesta versão da estória de Frankenstein,

Yacub devia ser zombado por sua desobediência, arrogância e fracasso em

corresponder às demandas da piedade e da autoridade intergeracional, mas nãopela imoralidade patológica de suas compulsões científicas. O crescimento da NI,

com as suas ramificações e o poder de seus companheiros de viagem, ainda envolvea circulação dessas estórias fuumsucas, as quais não são periféricas ao apelo de

seu rígido programa de regeneração racial. A sua popularidade atual é apenas um

sinal de que hoje a política negra democrática enfrenta um ressurgimento do

ocultismo. As tendências de conservadorismo revolucionário arcãicas e inventoras. ,de tradições, estão sendo modificadas, atualizadas e parcialmente substituídas por

altas doses de uma fantasia tecnocienttfica irracional que é reveladora de novos

abismos para os negros em matéria de falta de poder e pauperização. O trabalhognóstico de Richard King se aproxima dos pináculos dessas evoluções deprimentes:

A negritude, o solvente universal de todos, era vista como a única realidade deonde o tear da vida tirava os seus fios. Todas as cores, todas as energias vibratóriasnão eram mais do que uma tonalidade do preto. Preta era a Cor do céu notumo, dooceano primitivo, do espaço externo, do lugar de nascimento e ventre dos planetas,estrelas e galáxias do universo; buracos negros foram encontrados no centro danossa galáxia mesma e num sem número de outras galáxias. Preta era a cor docarvão, o átomo fundamental encontrado em todas as coisas vivas. Os átomos decarvão se juntaram para formar a melanina negra, o primeiro elemento químico que

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ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça

pode capturar a luz e reproduzir a si mesmo. Descobriu-se que o elemento アオ■ュゥセッᆳ

chave da vida e do próprio cérebro estava centrado em torno da neurornelaninanegra. A visão interior, a intuição, o gênio criativo e a iluminação espiritual ヲッセ。ュ

todos percebidos como dependentes do sangue da glândula pineal; mensageirosquímicos inatos que controlavam a cor da pele e abriam a porta ・ウ」セョ、ゥ、セ ーセイ。 aescuridão da mente coletiva e inconsciente permitiram com que o antigo cíenusta-sacerdote visualizasse o conhecimento a partir dos bancos de memória inconscientes,coletivos e imemoriais da mente."

Em minha tentativa de compreender como foi possível este ressurgimento e

de esclarecer o seu caráter autoritário, cheguei através de anúncios do jornal FinalCal! da NI ao livro Observem um Cavalo Pálido, produzido e publicado em 1991

pelo teórico da milícia William Cooper." Cooper é natural do estado de Oklahoma

e declara ser de "sangue Cherokce''. Ele acentua o caráter "constitucional" da

sua cruzada política pela verdade e também chama a atenção para o fato de ele ter

uma esposa chinesa, provando assim que a supremacia branca não faz parte de

seu sistema de crenças. Ao que parece, Cooper ganhou um número substancial deleitores negros com base nessas estratégias. O capítulo inicial de seu livro intitula-

se "Silent Weapons for Quiet Wars'' [Armas Silenciosas para Guerras Tranqüilas].

Segundo ele nos diz, este é o título de um importante documento secreto descoberto

significativamente numa máquina copiadora do governo, adquirida em uma liquidação

de estoques excedentes. A mesma frase já foi incorporada pela banda de hip-hop

uniformizada, Killarmy, um braço militar de Wu Tang Clan, que a usou, por seu

turno, como título de seu CD de 1997.Cooper construiu uma elaborada teoria conspiratória que abarca o assassinato

de Kennedy, as operações de um governo mundial secreto, a vinda de uma idade

do gelo e diversas outras atividades clandestinas associadas com a declaração de

guerra ao povo da América pelos llluminati. As suas explicações elaboradas e

irrefutáveis são escavadas de antigos veios do "estilo paranóico" americano. Se o

livro dele conseguiu chamar alguma atenção, isto se deu até aqui sobretudo por

incluir uma reprodução de grandes trechos do texto de um notório panfleto arui-semita Protocolos dos Anciãos de Síon. No texto de Cooper, o capítulo que

contém esses excertos abre-se com uma nota do autor advertindo os leitores de

24. Richard King, M.D., African orlgin. qf' Biologicol Psychíatry (U.B. and V.S. ComrnunicaticnsSystems, 1994), pp. 13-14.

25. Milton William Cooper, Behold a Pale Horxe (Light Technology Publishing, 1991 l·

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PAUL GILROY

que "qualquer referência aos "judeus" deveria ser substituída pela palavra

"Illuminati", assim como a palavra "goyim'' [não-judeus] pela de "gado?". Menosdigno de nota tem sido o fato de que a capa lúgubre do livro projeta Cooper como

"o maior especialista do mundo em ÓVNTs". Ele parece indeciso quanto a se os

alienígenas constituem uma ameaça real, ou se foram manufaturados pelos Illuminati

como um meio para forçar a humanidade à unificação não desejada, resultante dasua reação com base nos melhores recursos militares da Terra contra o poder

alienígena.

Uma cuidadosa conspiração em que alienígenas e naves espaciais figuram

em termos proeminentes como adjuntos do poder cosmopolita e como prova da

perfídia ァ ッ カ 」 イ ョ 。 ュ ・ セ エ 。 Q constitui parte essencial da língua franca que vincula a

Nação do Islã e sua cultura periférica à perspectiva e às ações das organizações

autoritárias e fraternais que falam em nome de uma branquitude militarizada. Essafantástica ligação fraternal por cima da linha de cor não é apenas resultante do

modo como alguns grupos ultranacionalistas negligenciam estrategicamente a

"raça". O "multiculruralismo" de Cooper sugere que o racismo anti-negro pode ter

de fato se tornado bem menos importante em sua composição ideológica, perdendo

terreno nos assuntos de teor anti-elite e anti-governo nos quais também aos negros

pode-se conceder um papel de vítima até certo ponto - por exemplo, como alvos

infantis dos negócios em drogas pesadas operados pelo governo, ou como vítimasdo HIV introduzido em suas comunidades como parte de um esquema genocida

para livrar o planeta da raça negra.

Os representantes negros e brancos desse fundamentalismo podem discordar

quanto ao status icônico do General Colin Powell que aparece como o ator-chave

na constituição da Ordem do Novo Mundo, mas convergem em maior profundidade

quanto ao valor dado por eles à fraternidade, violência e guerra. Enquanto os

Illuminati encontram-se preparados de uma maneira simulada para permitir oingresso de mulheres em seus exércitos, a velha cultura marcial, que se opõe às

ambições ilícitas delas, permite que os homens verdadeiros se liguem uns aos outros

em um amor primordial capaz de crescer somente na medida da exclusão das

mulheres. Este repertório militarista não conhece linhas de cor ou de cultura.

Os membros de Frutos Militares do Islã de Khallid Muhammad demonstraram

a sua força armada nos dias que se seguiram ao brutal assassinato de James Byrdem Jasper, Texas. Reunidos a apenas alguns metros dos homens brancos da Klan

que haviam chegado à cidade em missão política similar - homens que compartilham

das mesmas ansiedades sobre a pureza de "raça" e a degeneração, e que poderiam

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ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça

em outras circunstâncias ser de fato aliados - eles tornaram claras as implicaçõespolíticas de sua postura anti-política ao transformar uma lista conhecida de queixas

em antigas reivindicações por dinheiro e por território soberano. A possibilidade de

que os direitos políticos pudessem fazer parte da solução para esses conflitosracializados foi explicitamente repudiada. Como explicou o seu comandante GeneralOmar Al-Tariq:

Nunca haverá paz neste país até que o homem negro seja separado e que terra lheseja dada. Não estou interessado em direitos civis. Queremos reparações e rumarpara a nossaprópria terra. E se vocês nãoperceberem isso, haverá um tempoem quenós,o homemnegro,tomaremosas vidasdos homens,mulherese bebês caucasianos.Nós os mataremos, mataremos todos vocês. Vocês Verão o homem negro explodir ejá estamos próximos disso - esse diajá está a cair sobre voc↑sNRセ

Por meio desta citação podemos perceber que a questão do contato efetivocom a elite e da colaboração tecnológica com alienígenas é importante, mas enfim

secundária. Bem mais significativo é o modo como o segredo de governo sobre os

ÓVNIs emerge como um significante extremamente forte em matéria da duplicidade

e corrupção geral de toda uma ordem política ilegítima. Cooper iniciou-se na perigosatrilha que o conduziu para as operações do governo mundial secreto na época em

que servia no Vietnã, onde a presença dos ÓVNls e a sua participação relatada

em combates parece ter sido um evento corrente. O fato de ele lembrar

continuamente ele seu status de veterano de guerra prova mais do que as suas

credenciais patrióticas. Com isso se estabelece a profundidade da traição perpetrada

pelo governo dos Estados Unidos, apontando-se para outro indício maior em termosdo poder do irracionalismo cego à cor e do militarismo. A ameaça imaginária

representada pelos alienfgenas, suas tecnologias ameaçadoras, e sua colaboração

secreta com governos fraudulentos tornaram-se meios para gerar e legitimar

respostas paramilitares. Os extraterrestres colocam a vida humana em risco. A

única resposta apropriada para o seu poder desmesurado é a guerra. A ameaça

alienígena é acima de tudo uma oportunidade para instigar as regras marciais capazes

de repudiar todos os processos políticos e substitui-los por uma hierarquia natural.Isto poderia ser mudado de fato somente por meio de um respeito fraternalbeligerante.

26. Ed. Vulliamy, "Face-off in Jasper", Guardian Weekend, 1] de julho de 1998, p. 14.

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PAUL GILROY

Na época de sua triste vivência na Califórnia, Adorno escreveu um ensaiocelebrado e polêmico intitulado "Stars down to Earth" [As Estrelas aqui na Terra).

Neste ensaio, ele fez comentários cáusticos sobre a seção de horóscopo então

publicada pelo Los Angeles Times. Suas observações contrárias sobre a relaçãoentre o outro mundo e o desenvolvimento do irracionalismo autoritário tornaram-se

uma vez mais interessantes no contexto contemporâneo. Embora Adorno negasse

que o seu pequeno estudo sobre aquela seção pudesse ser generalizado, ele tentou

identificar as variedades de desencantamento e opacidade que fomentam a

necessidade de acreditar que o poder sublime das estrelas e dos planetas é o guiade toda a atuação humana. Ele menciona a hipostasiação da ciência, a vontade

desesperada de quebrar o encanto limitador de tudo quanto existe e o desejo ardentede encontrar um atalho para sair das trevas rumo a algo melhor, algo além deste

mundo. Vimos que todas estas tendências estão vivas na obsessão contemporânea

por alienígenas, naves espaciais e conspirações de governo. Elas também operam

melhor naquilo que ele denominou um clima de "agnosticismo desiludido". Aqui,

também neste ensaio sobre a seção de astrologia, os fatos, apesar de encobertospelas ações secretas de governo, constituem a questão principal e inescapável.

Se este capítulo passar a impressão de que se arrisca a se tornar mesmerizado

por assuntos marginais, as observações de Adorno demonstram a obrigação de

tratar das versões cotidianas, visíveis, sobre os mesmos temas ocultos:

"institucionalizados, objetivados e, em larga medida, socializados". Estes temas

têm sido articulados de maneira mais clara e óbvia em filmes de sucesso como

lndependence Day e Men in Black em que as narrativas no estilo ur [de origens]

de uniões heteroscxuais e reconstrução familiar têm sido momentaneamente

deslocadas por outras preocupações urgentes. A família burguesa está agora

aparentemente perdida no espaço e há, suponho, alguma medida pequena deprogresso envolvida na imagem alternativa de salvação planetária que se está

vendendo para o mundo, forjada não por Buck Rodgers ou Dan Dare, mas através

dos irreprimíveis estereótipos americanos encarnados na inteligência cerebral de

JeffGoldblum e na fisicalidade adolescente de Will Smith. Mas o multiculturalismo

empresarial tem seus limites. Embora os mecanismos da conexão sejam pouco

claros, a proliferação de filmes nos quais os homens se unem em termos rransétniccs

perante perigos maiores representados por alienígenas, invasões, cometas econquistas planetárias ameaçadas afirmam de fato algo da condição radical de

falta de poder, produzida por uma inabilidade crónica em reduzir a saliência das

divisões raciais na vida social, económica e cultural. Esta mesma tendência está

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J ENTRE Hampuセ •• neçces. ruuuras e o Fascínio da Raça I

aberta a ser lida como um resultado das mudanças funestas que alimentaram o

crescimento do militarismo e do absolutismo étnico.Contudo, há outra saída mais esperançosa para aqueles que se abrigam à

sombra do modernismo fascista interpretarem o modo como Hollywood colocou

estes temas extraterrestres em primeiro plano cm tempos recentes. Deixando de

lado as considerações sobre a destinação dos rendimentos, é impossível passar porcima do fato de que esta safra de filmes expressa uma fome real e difusa por um

mundo não mais dividido pelas pequenas diferenças que mantemos e inflamos ao

chamá-las de raciais. Estes filmes buscam celebrar o fato de que a vontade de

manter esses princípios de diferenciação ultrapassados regride ao ser confrontada

com variedades mais substanciais do Outro e formas de vida verdadeiramente

extra-mundo. Com isso a fábrica global de sonhos parece afinal ter se equiparadocom o melhor conteúdo das correntes mais dominantes do pensamento político

negro. O nosso desafio agora deveria ser trazer visões ainda mais poderosas da

humanidade planerãria do futuro para o presente, religando-as com as tradições

democráticas e cosmopolitas que quase foram apagadas do atual imaginário políticonegro.

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