giordano bruno e a tradição hermética - frances a. yates

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Giordano Bruno e a tradio hermtica

1a. Hermes Trismegisto, piso da Catedral de Siena.

FRANCES A. YATES

Giordano Bruno e a tradio hermticaTraduo Yolanda Steidel de Toledo

Ttulo do original Giordano Bruno and the Hermetic Tradition

Copyright 1964 Frances A. Yates

Edio __________ 2-3-4-5-6-7-8-9-10

__________ Ano 90-91-92-93-94-95

Direitos reservados EDITORA CULTRIX LTDA. Rua Dr. Mrio Vicente, 374 - 04270 So Paulo, SP - Fone: 63 3141 Impresso nas oficinas grficas da Editora Pensamento.

Sumrio Capa - Contracapa Prefcio I. II. III. ......................................................................................... 7 13 32 57 75 100 139 152 166 182 194 216 232 263 287 307 325 340 364 377 401 440 475 501 503

Hermes Trismegisto ................................................................ O "Pimandro" de Ficino e o "Asclpio" ................................. Hermes Trismegisto e a magia ...............................................

IV. A magia natural de Ficino ....................................................... V. VI. Pico della Mirandola e a magia cabalstica .............................. O "Pseudo-Dionsio" e a teologia de um mago cristo ............

VII. Estudos de Cornlio Agripa sobre a magia da Renascena .......................................................................... VIII. A magia renascentista e a cincia ........................................... IX. Contra a magia ........................................................................ X. O hermetismo religioso no sculo XVI ..................................... XI. Giordano Bruno: sua primeira visita a Paris ............................. XII. Giordano Bruno na Inglaterra: a reforma hermtica ............... XIII. Giordano Bruno na Inglaterra: a filosofia hermtica .............. XIV. Giordano Bruno e a cabala ...................................................... XV. Giordano Bruno: o elisabetano herico e entusiasta ............... XVI. A segunda visita de Giordano Bruno a Paris .......................... XVII. Giordano Bruno na Alemanha ................................................ XVIII. Giordano Bruno: ltima obra publicada ................................ XIX. Giordano Bruno: retorno Itlia ............................................. XX. Giordano Bruno e Tommaso Campanella ................................ XXI. Aps a determinao da data de Hermes Trismegisto ............. XXII. Hermes Trismegisto e as controvrsias de Fludd ................. Abreviaes ..................................................................................

ndice das ilustraes .......................................................................

Prefcio

H muitos anos, planejei uma traduo para o ingls de La cena de le ceneri, de Giordano Bruno, com uma introduo em que pretendia enfatizar a ousadia com que o avanado filsofo da Renascena aceitara a teoria de Coprnico. Mas, medida que acompanhava Bruno em seu caminho, ao longo do Strand, at a casa de Whitehall, onde ele exps a teoria copernicana perante fidalgos e doutores, iam-me surgindo dvidas. Seria imaginria essa jornada, e teria a ceia realmente acontecido na embaixada francesa? E teria sido o assunto do debate a teoria copernicana, ou haveria outro tema subentendido? Da em diante, o problema de Bruno permaneceu comigo como o verdadeiro centro de meus estudos; maos de notas e manuscritos foram coligidos por mim, mas escapava-me a plena compreenso. Faltava uma pista de importncia maior. Durante os ltimos vinte e cinco anos, certos estudiosos vm chamando a ateno para o significado da influncia do hermetismo na Renascena italiana. Os fundamentais estudos bibliogrficos de O. P. Kristeller demonstraram a importncia e a difuso da traduo Corpus hermeticum, feita por Ficino. E. Garin sutilmente indicou vertentes hermticas no pensamento renascentista, em particular em Medioevo e Rinascimento, e nos ensaios agora publicados no livro La cultura filosofica del Rinascimento italiano. Alm disso, sob sua inspirao, um grupo de estudantes empreendeu uma investigao pormenorizada da influncia hermtica em determinados escritores, investigao essa que foi publicada como Testi umanistici su l'ermetismo. Diversos estudiosos franceses tomaram conhecimento do hermetismo renascentista. Na Inglaterra, D. P. Walker examinou a prisca theologia num importante artigo, e analisou em seu livro Spiritual and demonic magic from Ficino to Campanella a interpretao dada por Ficino ao Asclpio hermtico. Esse livro faz 7

sobressair, pela primeira vez, as nuances na atitude renascentista para com a magia, e indica a relao desse assunto com temas religiosos. Ningum ainda falou de Bruno em conexo com o hermetismo, nem, por muito tempo, apesar de meu interesse por esses estudos, me ocorrera a possibilidade de tal conexo. Eu sabia, de longa data, que as obras de Bruno, especialmente as que se referem memria, esto repletas de magia (fato que no escapou a Lynn Thorndike em sua History of magic and experimental science), mas no me dei conta de que a magia de Bruno, juntamente com sua filosofia, se inscrevem no contexto de uma filosofia hermtica. S h pouco tempo, de chofre, surgiu em meu esprito a ideia de que o hermetismo renascentista oferece uma importante pista, h muito procurada, para melhor compreender Bruno. Encontrada finalmente a chave apropriada, meus antigos estudos a respeito de Bruno encontraram suas conexes definitivas, e este livro foi ento escrito com razovel rapidez. bvio que este livro no uma monografia sobre Bruno; pretendo apenas situ-lo na tradio hermtica, tal como diz o ttulo. Antes que seja possvel uma avaliao final de Bruno, so necessrios outros estudos, e em especial uma elucidao de seu lugar na histria da arte clssica da memria, transformada por ele em tcnica mgico-religiosa. Algumas referncias deste livro mnemnica de Bruno podem parecer um tanto obscuras, mas espero tratar deste assunto em outro livro. H uma grande omisso nesta obra, que a influncia que Raimundo Llio exerceu em Bruno; quase no mencionei Llio, e tampouco utilizei diversos trabalhos de Bruno sobre o lulismo. Tambm aqui faz-se necessrio um estudo de Bruno e da tradio luliana, que espero, um dia, ter condies de escrever. As trs vertentes do hermetismo, da mnemnica e do lulismo esto entrelaadas na complexa personalidade, na inteligncia e na misso de Bruno. As trs tm uma histria que, da Idade Mdia, atravessa a Renascena e chega linha divisria de Descartes do sculo XVII. Enquanto escrevia este livro, contra uma dvida para com os editores Nock e Festugire que traduziram para o francs o Corpus hermeticum, e para com o livro de Nock e Festugire, La rvlation d'Herms Trismgiste Embora o hermetismo renascentista jamais tenha sido exposto da 8

maneira como tentei faz-lo nos primeiros dez captulos, estes mesmos muito devem a outras pessoas, particularmente em certos trechos dos captulos IV, VII, IX e X, a Walker; o tema do VIII foi esboado por Garin. Meu conhecimento da cabala provm, quase em sua totalidade, das obras de G. G. Scholem, e minha persistncia em escrever a palavra desse modo inscreve-se numa abordagem do antigo saber do ponto de vista da Renascena; assim a grafaram Pico e Bruno. Os nove captulos referentes a Bruno apresentam-no como uma variante da tradio hermtico-cabalstica. Isso to revolucionrio que no me foi possvel utilizar grande parte da extensa literatura sobre Bruno, exceto o material documentrio e biogrfico e algumas outras obras indicadas nas notas. Utilizei a edio Gentile, revista por G. Aquilecchia, dos dilogos italianos de Bruno, bem como a edio Aquilecchia das duas obras latinas recentemente descobertas. Tratar Campanella como um discpulo de Bruno uma novidade, a despeito da minha dvida para com o livro de Walker em que analisa a magia de Campanella e as obras de L. Firpo. Os dois ltimos captulos do realce decadncia da influncia hermtica, chamando a ateno para a data da Hermtica e para sua sobrevivncia nos escritores e sociedades esotricas (pontos brevemente indicados em Garin). O surgimento do pensamento do sculo XVII em Mersenne, Kepler e Descartes considerado com o pano de fundo da tradio hermtica. Houve, inevitavelmente, um excesso de simplificao no exame desse tema imensamente complexo, e meu propsito, ao organizar todo o material em funo da figura de Giordano Bruno, pode ter influenciado a escolha que fiz do material. A histria completa do hermetismo ainda est por ser escrita; dever incluir a Idade Mdia, continuando muito alm da data at onde cheguei. Tenho conscincia dos riscos a que me exponho, ao traar um roteiro atravs de modos de pensar to pouco familiares e obscuros como os dos hermetistas da Renascena e no posso esperar a inexistncia de erros. Se este livro atrair a ateno para um assunto to importante, incitando outras pessoas a trabalharem nesse campo, ter cumprido sua tarefa. Uma vez que levou tanto tempo para ser escrito, talvez me permitam agradecer aos que me auxiliaram, por ordem cronolgica. Graas a nosso interesse comum em Bruno, vim a conhecer Dorothea Waley Singer, cuja bondade e encorajamento foram decisivos em 9

minha vida, j que me apresentou a Edgar Wind, ao falecido Fritz Saxl e a Gertrud Bing, sendo que, a partir de ento, comecei a frequentar o Warburg Institute, em sua primeira sede em Londres, em Millbank. Posteriormente, em virtude da generosidade e da previdncia de pessoas autorizadas, o Warburg Institute e sua biblioteca tornaram-se parte da Universidade de Londres. Quando a guerra estava quase acabando, Saxl convidou-me para integrar o corpo docente do instituto, e durante muitos anos gozei da vantagem de utilizar a biblioteca fundada por Aby Warburg, atualmente mantida pela Universidade de Londres. uma biblioteca nica, e influencia todos os que a utilizam pelo arranjo caracterstico de seus livros, que reflete a inteligncia do fundador. Tive igualmente o privilgio inestimvel de privar da amizade dos membros do corpo docente do instituto. G. Bing conhece de longa data meus estudos sobre Bruno, e tem me apoiado constantemente com sua compreenso e encorajamento. O presente diretor do instituto, Ernst Gombrich, estimulou-me, aconselhou-me e auxiliou-me, com respeito a este livro, com muita pacincia e afabilidade. Muitas conversas mantive com Perkin Walker sobre assuntos de nosso interesse mtuo, e agora ele faz parte do corpo docente do instituto. Todas essas pessoas leram o manuscrito do livro e ofereceram-me crticas de valor; G. Bing tambm leu as provas. difcil avaliar quanto se deve aos amigos e s conversas mantidas com eles, e tambm como lhes agradecer. Entre outros amigos, agora nos Estados Unidos, esto Charles Mitchell (calorosas discusses, com frequncia em estaes e trens) e Rudolf Wittkover, que me ofereceu conselhos de valor num momento crtico. G. Aquilecchia, um estudioso de Bruno de longa data, como eu, generosamente deixou-me ver materiais seus ainda no publicados. O. Kurz, J. Trapp e todos os bibliotecrios do instituto presentearam-me com todo o conhecimento que possuem, e o pessoal da coleo de fotografias cooperou com uma pacincia inquebrantvel. Utilizei constantemente a Biblioteca de Londres, a cujo pessoal devo agradecimentos. Tambm incalculvel o que devo Biblioteca do Museu Britnico e a seu pessoal. Minha irm, R. W. Yates, fez a leitura do manuscrito e das provas no poucas vezes, e sempre com o infatigvel empenho de auxiliar-me com correes e opinies, alm do apoio vital que me dava, de inumerveis modos. H outros membros de minha famlia, ainda vivos quando comecei os 10

estudos sobre Bruno, de quem me lembro, agora que os conclu. Frances A. Yates Professora de histria da Renascena na Universidade de Londres Warburg Institute, Universidade de Londres.

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Captulo I Hermes Trismegisto

Todos os grandes movimentos de vanguarda da Renascena tiraram vigor e impulso emocional do olhar que lanavam ao passado. A viso de um tempo cclico, como um perptuo movimento que partia da prstina e dourada idade da pureza e da verdade, e passava sucessivamente pelas pocas do bronze e do ferro, ainda vigorava, e a busca da verdade, portanto, implicava necessariamente a busca do ouro antigo, original e primitivo, do qual os metais menos nobres do presente e do passado imediato eram uma degenerescncia ou uma corrupo. A histria do homem no representa uma evoluo da primitiva origem animal para a complexidade e progresso, sempre crescentes; o passado era sempre melhor que o presente, e o progresso era a revivescncia, o renascimento da Antiguidade. O humanista clssico recuperava a literatura e os monumentos da Antiguidade clssica com os sentimentos de retornar ao ouro puro de uma civilizao melhor e mais elevada que a sua. O reformador religioso voltava-se para o estudo das Escrituras e dos primitivos Padres, com o sentimento de recobrar o ouro puro do Evangelho, soterrado sob recentes degenerescncias. Isso so trusmos, e igualmente bvio que ambos os movimentos de retorno no se enganavam quanto data do mais antigo e melhor perodo para o qual se voltavam. O humanista conhecia a era de Ccero e tambm a idade de ouro da literatura clssica; o reformador, embora no muito esclarecido quanto data do Evangelho, buscava retornar aos primeiros sculos do cristianismo. Mas o movimento renascentista, do qual tratar este livro, do retorno pura idade de ouro da magia, est baseado num radical erro de datas. As obras inspiradoras dos magos da Renascena, e que eles acreditavam da mais remota antiguidade, haviam sido escritas no sculo II ou III d.C. O que eles aprendiam no era a sabedoria egpcia, um pouco posterior dos patriarcas 13

e profetas hebreus, e muito anterior a Plato e aos demais filsofos da Antiguidade grega, dos quais todos segundo a crena dos magos da Renascena haviam bebido da fonte sagrada. Eles se baseavam no substrato pago do primitivo cristianismo, aquela religio fortemente tingida de magia e de influncias orientais, verso gnstica da filosofia grega e refgio de fatigados pagos que buscavam respostas para a vida, diferentes das oferecidas pelos primitivos cristos. O deus egpcio Tot, escriba dos deuses e divindade da sabedoria, era identificado pelos gregos com Hermes, ao qual s vezes davam o epteto de Trs Vezes Grande.1 Os latinos apropriaram-se dessa identificao de Hermes ou Mercrio com Tot, e Ccero, em seu De natura deorum, explicou que, na verdade, havia cinco Mercrios, sendo o quinto o matador de Argus, o qual fugira, em consequncia disso, para o Egito, onde "dera aos egpcios suas leis e letras", adotando o antigo nome de Teut, ou Tot.2 Inspirada em Hermes Trismegisto, desenvolveu-se uma extensa literatura em grego, consagrada astrologia, s cincias ocultas, s virtudes secretas das plantas e das pedras e magia simptica, baseada no conhecimento de tais virtudes e interessada tambm na fabricao de talism para atrair o poder das estrelas, etc. Alm destes tratados ou receiturios para a prtica da magia astral, inspirados em Hermes, desenvolveu-se tambm uma literatura filosfica associada a esse mesmo reverenciado nome. Ignora-se quando o quadro de referncias hermtico foi primeiramente utilizado para a filosofia, mas o Asclpio e o Corpus hermeticum, que so a parte mais importante chegada a nossas mos da Hermtica filosfica, devem provavelmente ter sido escritos entre 100 e 300 d.C.3 Estas obras, ainda que moldadas por um quadro de referncias pseudo-egpcio, tm sido consideradas por muitos estudiosos um repositrio de elementos egpcios genunos. Outros entenderam que h nelas alguma influncia das crenas egpcias nativas.4 Seja como for, decerto no1 2

Festugire, I, pg. 67 e segs. Ccero, De nat. deor., III, 22. 3 C. h., I, pg. v (prefcio de Nock); Festugire, III, pg. I. 4 Segundo Bloomfield: "A erudio deu uma virada de cento e oitenta graus nesta questo dos elementos egpcios do hermetismo" (consultar M. W. Bloomfield, The seven deadly sins, Michigan, 1952, pg. 342, alm das referncias correspondentes). Festugire pouco esclarece quanto a esse assunto, concentrando-se totalmente nas influncias gregas da Hermtica. O cauteloso resumo de Bloomfield (op. cit., pg. 46) consiste no seguinte: "Estes escritos so, em sua maior parte, produto dos neoplatnicos egpcios, grandemente influenciados pelo estoicismo, pelo judasmo, pela teologia persa e possivelmente pelas crenas nativas do Egito, bem como, naturalmente, por Plato e, em especial, pelo Timeu. Eram talvez a Bblia de uma religio egpcia de mistrio, cujo mago possvel que remonte ao sculo II a.C.". A teoria do culto do mistrio contestada por Festugire, I, pg. 81 e Segs.

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foram escritas na antiguidade remota por um onisciente sacerdote egpcio, como acreditavam os renascentistas, e sim por vrios autores desconhecidos, todos possivelmente gregos 1, e o que contm a filosofia grega popular de seu tempo, mescla de platonismo e estoicismo, combinada com influncias hebraicas e talvez persas. Ainda que muito diversas, todas elas exalam uma intensa piedade. O Asclpio pretende descrever a religio dos egpcios e os ritos e processos pelos quais eles atraam as foras do cosmos para as esttuas de seus deuses. Esse tratado chegou aos nossos dias atravs da traduo latina antigamente atribuda a Apuleio de Madaura.2 O Pimandro (primeiro tratado do Corpus hermeticum, uma coletnea de quinze dilogos hermticos,3 traz um relato da criao do mundo, reminiscente, em parte, do Gnese. Outros tratados descrevem a ascenso da alma pelas esferas dos planetas para o reino divino, ou narram extaticamente um processo de regenerao, durante o qual a alma quebra as correntes que a ligam ao mundo material e se torna repleta de virtudes e poderes divinos. No primeiro volume de sua obra La rvlation d'Herms Trismgiste,4 Festugire analisou o estado de esprito da poca, por volta do sculo II d.C, na qual foram escritos o Asclpio e os tratados hermticos que nos chegaram na coleo do Corpus hermeticum. Aparentemente, aquele mundo era altamente organizado e vivia em paz. A pax romana estava no auge da sua vigncia, e as populaes mistas do Imprio eram governadas por uma eficiente burocracia. Ao longo das grandes estradas romanas, as comunicaes eram excelentes. As classes instrudas haviam absorvido a cultura greco-romana, baseada nas sete cincias humanas. As condies mentais e espirituais desse mundo, porm, eram estranhas.

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Segundo Nock e Festugire; consultar C. h., loc. cit.; Festugire, I, pg. 85 e segs. A atribuio, alis incorreta, data do sculo IX. Consultar C. h., II, pg. 259; quanto verso copta, ver adiante, pg. 474, nota 1. 3 No se sabe quando o Corpus hermeticum foi reunido em forma de coleo, mas j era conhecido dessa forma por Psellus, no sculo XI; ver C. h., I, pg. xlvii-l pref. Nock. 4 Festugire, I, pgs. i e segs.

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O poderoso esforo intelectual da filosofia grega exaurira-se, paralisarase, atingira um limite, talvez porque o pensamento grego jamais tivesse adotado a verificao experimental de suas hipteses passo que s seria dado quinze sculos mais tarde, com o surgimento do moderno pensamento cientfico, no sculo XVII. O mundo do sculo II estava farto da dialtica grega, que no parecia levar a qualquer resultado seguro. Platnicos, estoicos e epicuristas apenas repetiam as teorias de suas vrias escolas, sem fazer avano nenhum, e as doutrinas haviam-se reduzido ao contedo dos livros de textos, manuais que formavam a base da instruo filosfica do Imprio. No que diz respeito sua origem grega, a filosofia dos escritores hermticos estereotipada, com suas tinturas de platonismo, de neoplatonismo, de estoicismo e de outras escolas do pensamento grego. Esse mundo do sculo II, todavia, buscava intensamente o conhecimento da realidade e uma resposta aos problemas que no encontrava na educao normal. Voltou-se, pois, para outros modos de buscar respostas, para os modos intuitivos, msticos e mgicos. Uma vez que a razo aparentemente falhara, buscou cultivar o nous, a faculdade intuitiva do homem. A filosofia seria utilizada no como um exerccio dialtico, mas como um modo de alcanar o conhecimento intuitivo das coisas divinas e do significado do mundo, como gnose, em resumo, pela qual se estaria preparando o discpulo para o ascetismo e para um modo de vida religioso. Os tratados hermticos, que no raro tomam a forma de dilogos entre mestre e discpulo, costumam culminar numa espcie de xtase, no qual o adepto se exalta por ter recebido a iluminao e desata a cantar hinos de louvor. Aparentemente, ele alcanaria a iluminao por meio da contemplao do mundo ou do cosmos, tal como refletido em seu prprio nous, ou mens, que separa para o discpulo o prprio significado divino, concedendo-lhe mestria espiritual sobre este, tal como na familiar revelao gnstica, ou a experincia da ascenso da alma pelas esferas dos planetas, a fim de imergir no divino. Eis como essa religio do mundo, subjacente em grande parte ao pensamento grego, especialmente no platonismo e no estoicismo, torna-se, no hermetismo, realmente uma religio, sem culto, nem templos, nem liturgia, seguida apenas mentalmente, uma filosofia religiosa ou uma religio filosfica que contm uma gnose. Os homens do sculo II estavam completamente imbudos da ideia (que a Renascena absorveu deles) de que 16

o antigo puro e santo, de que os primeiros pensadores viviam mais perto dos deuses do que os diligentes racionalistas, seus sucessores. De onde a forte revivescncia pitagrica nessa poca. Prevalecia igualmente a impresso de que o remoto e o incomensuravelmente distante eram mais sagrados; 1 da seu culto pelos "brbaros", os gimnosofistas indianos, os magos persas e astrlogos caldeus, cuja abordagem do conhecimento sentiam como mais religiosa que a dos gregos.2 No cadinho que era o Imprio, no qual todas as religies eram toleradas, havia ampla oportunidade de travar conhecimento com os cultos orientais. Acima dos demais, os egpcios eram reverenciados nesse sculo. Os templos egpcios funcionavam ainda, e os devotos que buscavam a verdade religiosa e a revelao, no mundo greco-romano, faziam peregrinaes a algum templo egpcio remotamente situado, passando a noite nas vizinhanas dele, espera de alguma viso dos mistrios divinos que lhes surgisse em sonhos3. A crena de que o Egito era o stio de origem de todo conhecimento, de que os filsofos gregos o haviam visitado e conversado com os sacerdotes do pas, estava presente de longa data no modo de sentir do sculo II; e a antiga e misteriosa religio egpcia, os supostamente profundos conhecimentos de seus sacerdotes, seu asctico modo de vida e a magia religiosa que, conjeturava-se, realizavam nas cmaras subterrneas dos templos, tudo isso oferecia extraordinrias atraes. Essa disposio pr-egpcia do mundo greco-romano que se reflete no Asclpio hermtico, na sua estranha descrio da magia graas qual os sacerdotes egpcios animavam as esttuas dos deuses, e na comovente profecia segundo a qual a antiqussima religio egpcia estava destinada a desaparecer. "Nesse momento", diz o suposto sacerdote egpcio Hermes Trismegisto, ao seu discpulo Asclpio, "nesse momento, cansados da vida, os homens no mais consideraro o mundo um objeto digno de admirao e reverncia. Esse todo, que to boa coisa , a melhor que pode haver no passado, no presente e no futuro, estar em perigo de perecer; os homens o estimaro um fardo, e da em diante o Universo inteiro h de ser desprezado; essa incomparvel obra de Deus, essa construo gloriosa, essa criao que toda boa e feita com infinitas diversidades de1 2 3

Ibid., I, pg. 14 e segs. Ibid., I, pg. 19 e segs. Ibid., pg. 46 e segs.

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forma, esse instrumento de Deus que, sem inveja, prodigaliza favores sobre sua obra, na qual se rene num todo, em harmnica diversidade, tudo o que existe digno de ser reverenciado, louvado e amado."1 Assim o Egito e sua religio mgica identificam-se com a religio hermtica do mundo Podemos compreender agora de que modo o contedo dos escritos hermticos favoreceu a iluso dos magos da Renascena de neles possuir um precioso e misterioso relato do mais antigo saber da filosofia e da magia do velho Egito Hermes Trismegisto, nome mstico, associado a certos gnsticos e a certas revelaes filosficas ou, ainda, a tratados e receitas mgicas, era, para a Renascena, uma pessoa real, um sacerdote egpcio que vivera numa antiguidade remota e que escrevera de prprio punho todas aquelas obras. Os retalhos de filosofia grega que o mago da Renascena encontrava nesses escritos provinham do ensino filosfico comum, um tanto degradado durante os primeiros sculos da nossa era, mas que ainda assim confirmava o leitor renascentista na sua crena de que havia ali uma fonte de prstino saber, da qual Plato e os gregos haviam extrado o melhor do que sabiam. Esse formidvel erro histrico teria resultados surpreendentes. Com o aval de excelentes autoridades, a Renascena aceitou Hermes Trismegisto como uma pessoa real, de grande antiguidade e autor dos escritos hermticos. Isso estava implcito nas crenas dos principais Padres da Igreja, em particular nas de Lactncio e de Agostinho. Naturalmente, no ocorreu a ningum duvidar de que esses autorizados escritores estivessem com a razo. realmente um testemunho notvel da eminncia e importncia dos escritos hermticos e do xito precoce e total da lenda de Hermes Trismegisto, no que diz respeito sua autoria e antiguidade, que, no sculo IV, Lactncio e Agostinho tenham aceito essa lenda sem question-la. Depois de citar Ccero, que definiu o quinto Mercrio como "aquele que deu letras e leis aos egpcios", Lactncio, em seus Institutos, prossegue afirmando que este Hermes egpcio, "embora homem, era de grande antiguidade e plenamente imbudo de toda espcie de erudio, tanto que o

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C. h., II, pg. 328.

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conhecimento de muitos assuntos e artes lhe granjeara o nome de Trismegisto. Escrevera livros em grande nmero, referentes ao conhecimento das coisas divinas, nos quais atestava a majestade do supremo e nico Deus, mencionando-O pelos mesmos nomes que Lhe damos Deus Pai".1 Quanto aos "muitos livros", Lactncio certamente referia-se a alguns dos escritos hermticos que nos vieram s mos. Reproduziu diversas citaes extradas de alguns dos tratados do Corpus hermeticum e tambm do Asclpio.2 A data remota que Lactncio atribua a Hermes Trismegisto e seus livros pode ser deduzida de uma observao do seu De ira dei, na qual afirma que Trismegisto muito mais antigo que Plato e Pitgoras.3 H muitas outras citaes e referncias a Hermes Trismegisto nos Institutos de Lactncio. Evidentemente, achou que Hermes seria um precioso aliado em sua campanha no sentido de utilizar o saber pago como suporte da verdade do cristianismo. Nas citaes que acabamos de reproduzir, ele mostra que Hermes, como os cristos, se refere a Deus como o "Pai", e, de fato, a palavra Pai empregada relativamente ao ente supremo, nos escritos hermticos, com certa frequncia. Ainda mais impressionante, todavia, era o fato de Hermes empregar a expresso "Filho de Deus" para o demiurgo. Para demonstrar essa importante confirmao da verdade do cristianismo, por este muito antigo escritor, Lactncio citou em grego uma passagem do Asclpio ( uma das citaes que preservou para ns os fragmentos do original grego perdido): "Hermes, no livro intitulado A palavra perfeita, utilizou estas palavras: 'O Senhor e Criador de todas as coisas, a quem nos pareceu certo chamar Deus, por ter Ele feito visvel e sensvel o segundo Deus Dado que, portanto, Ele o fez primeiro, s, um e nico, pareceu-Lhe belo e bem provido de tudo quanto bom; e Ele santificou-O e O amou totalmente, como a Seu prprio Filho' ".41

Lactncio, Div. inst. I, vi; traduo inglesa de W. Fletcher, The works of Lactantius, Edinburgh, 1871, I, pg. 15. 2 Sobre as citaes de Lactncio da Hermtica, ver C. h., I, pg. xxxviii; pgs. 259, 276 e 277. 3 Lactncio, De ira dei, XI; traduo Fletcher, II, pg. 23. 4 Lactncio, Div. inst., IV, vi; traduo Fletcher, I, pg. 220. Lactncio cita trechos de Asclpio, 8 (C. h., II, pg. 304).

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A palavra perfeita, ou Sermo perfectus, a correta traduo do ttulo do original grego do Asclpio,1 e a passagem citada por Lactncio em grego corresponde aproximadamente a um trecho de nossa traduo latina. Assim, o Asclpio, obra que contm a excntrica descrio de como os egpcios fabricavam seus dolos e o lamento da sua religio, santificou-se por conter a profecia referente ao Filho de Deus. No foi apenas no Asclpio que os escritores hermticos empregaram a expresso "Filho de Deus". No princpio do Pimandro, que o relato hermtico da Criao, afirma-se que o ato da Criao aconteceu graas a uma Palavra luminosa, que o Filho de Deus.2 Ao explicar, com citaes das Escrituras, o Filho de Deus como Palavra criadora, Lactncio introduz a confirmao dos gentios, assinalando que os gregos a ele se referem como o Logos, como tambm o faz Trismegisto. Sem dvida, acudiu-lhe memria a passagem do Pimandro sobre a Palavra criadora como Filho de Deus, e acrescentou que "Trismegisto, que por um ou outro meio pesquisara quase todas as verdades, com frequncia descrevia a excelncia e a majestade da Palavra.3 Na verdade, Lactncio considera Hermes Trismegisto um dos mais importantes videntes e profetas gentios que previram o advento do cristianismo, por ter falado do Filho de Deus e da Palavra. Em trs passagens dos Institutos, ele cita Trismegisto e as Sibilas como cientes do advento de Cristo.4 Lactncio no deixou qualquer comentrio contra Hermes Trismegisto. Ele sempre o antiqussimo e onisciente escritor, o teor de sua obra favorvel ao cristianismo, e sua meno do Deus Filho o situa, juntamente com as sibilas, como um profeta gentio. Em passagens mais genricas, Lactncio condenou o culto s imagens, acreditando1 2

Ver C. h., II, pgs. 276-277. Ver adiante, pg. 23. 3 Lactncio, Div. inst., IV, xi; traduo Fletcher, I, pg. 226. 4 Lactncio, Div. inst., I, vi; IV, vi; VIII, xviii; traduo Fletcher, I, pgs. 14-19, 220-222, 468-469. Os orculos sibilinos eram mais genuinamente antigos que a Hermtica. Profecias sibilinas forjadas, de origem judaica, apareceram em data incerta e foram mais tarde manipuladas pelos cristos. Parece difcil distinguir o que h de origem judaica e o que de origem crist nos Oracula Sibyllina. Ver M. J. Lagrange, Le Judaisme avant JsusChrist, Paris, 1931, pgs. 505-511; A. Puech, Histoire de la littratute grecque chrtienne, Paris, 1928, II, pgs. 603-615; e a nota de G. Bardy, em Oeuvres de Saint-Augustin, Descle de Brouwer, vol. 36, 1960, pgs. 755-759.

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que os demnios utilizados pelos magos eram anjos maus, decados.1 Essas coisas, todavia, jamais so associadas a Trismegisto, que surge sempre como uma reverenciada autoridade em verdades divinas. No admira que Lactncio se tornasse o Padre favorito dos magos da Renascena que desejavam permanecer cristos. Agostinho, porm, era mais difcil para um mago da Renascena que desejasse permanecer cristo. Na Civitate Dei, emite uma severa condenao do que escrevera "Hermes, o egpcio, chamado Trismegisto", a respeito dos dolos, baseado na passagem do Asclpio, que ele cita por extenso, sobre o ritual egpcio em que se animavam as esttuas de seus deuses por meios mgicos, atraindo espritos para dentro delas.2 Agostinho no se serviu de um texto grego do Asclpio, como fizera Lactncio, mas da mesma traduo latina utilizada por ns e que deve, portanto, ser to antiga quanto o sculo IV.3 Como antes mencionamos, essa traduo era habitualmente atribuda a Apuleio de Madaura. O contexto em que Agostinho condenou a passagem idolatra do Asclpio importante. Ele ataca a magia em geral e, em particular, o parecer de Apuleio de Madaura4 sobre os espritos ou daemones. Apuleio de Madaura exemplo impressionante de homem educado na cultura geral do mundo greco-romano, que, entediado com os cedios ensinamentos das escolas, buscou a salvao no ocultismo. Nascido cerca de 123 d.C. Apuleio foi educado em Cartago e Atenas, tendo viajado mais tarde para o Egito, onde se envolveu numa ao judicial, acusado de magia. famoso pela sua maravilhosa novela, popularmente conhecida como O asno de ouro,5 cujo heri, transformado pelas bruxas num burro, depois de muito sofrer sob a forma animal, recupera sua forma humana aps uma viso exttica da deusa sis, que o teria visitado numa praia solitria aonde fora parar em desespero. Finalmente, tornou-se sacerdote de sis num templo egpcio. Todo o clima daLactncio, Div. inst., II, xv. Agostinho, De civ. Dei, VIII, xxiii-xxvi. Ele cita do Asclpio, 23-24-37; ver C. h., II, pgs. 325 e segs. 3 C. h., II, pg. 259. 4 De civ. Dei, VIII, xiii-xxii. 5 este o ttulo da traduo inglesa do sculo XVI, de William Adlington.2 1

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novela, com seu tema tico (pois a forma animal fora o castigo a uma transgresso), sua iniciao ou iluminao em xtase, seu colorido egpcio, assemelha-se ao clima dos escritos hermticos. Ainda que Apuleio no tenha sido o tradutor do Asclpio, essa obra com certeza seria de seu agrado. Agostinho considerou Apuleio um platnico, e o atacou pelas suas opinies a respeito dos espritos etreos ou daemones, intermedirios entre os deuses e os homens, que descreve em sua obra sobre o "demnio" de Scrates. Agostinho considerou isso uma impiedade, no por descrer de espritos etreos ou demnios, mas por achar que so maus espritos ou diabos. Prosseguiu atacando Hermes Trismegisto por ter louvado os egpcios a propsito da magia graas qual atraam os espritos, ou demnios, para dentro das esttuas de seus deuses, animando-as desta forma e transformando-as em deuses. Citou literalmente a passagem do Asclpio a respeito da criao dos deuses. Explicou depois a profecia segundo a qual a religio egpcia terminaria, e comentou o lamento pelo seu fim, o qual interpretou como uma profecia do fim da idolatria graas ao advento do cristianismo. Tambm aqui Hermes Trismegisto foi tido como um profeta do advento do cristianismo, mas todo o apreo por esse fato lhe foi retirado pela declarao de Agostinho, de que essa prescincia do futuro lhe fora dada pelos demnios que reverenciava. "Hermes profetizou esses fatos na qualidade de confederado do Diabo, suprimindo a evidncia do nome cristo e predizendo com uma triste insinuao que disso proviria a runa de toda a superstio idlatra: visto ser Hermes um daqueles que (como diz o apstolo) 'conhecendo bem Deus, no O glorificavam como Deus, nem Lhe agradeciam, mas envaideciam-se em sua imaginao, sendo seu tolo corao cheio de trevas' "1 Todavia, continua Agostinho, "este Hermes muito diz de Deus conforme a verdade", embora o houvesse cegado sua admirao pela idolatria egpcia, e o Diabo lhe houvesse inspirado sua profecia do passamento desta. Em contrapartida, ele cita um verdadeiro profeta como Isaas, que disse: "Os1

De civ. Dei, xxiii, citado na traduo inglesa de John Healey A citao de Romanos, I, xxi.

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dolos do Egito sero movidos perante Sua face, e o corao dos egpcios se derreter no meio dela".1 Agostinho nada diz, em absoluto, sobre a meno do "Filho de Deus", e toda a sua viso do assunto talvez seja, em parte, uma rplica glorificao feita de Hermes como profeta gentio, por Lactncio. Os pareceres de Agostinho sobre Hermes apresentaram, naturalmente, dificuldades para os admiradores dos escritos hermticos da Renascena. Abriam-se-lhes vrios caminhos. Um deles era afirmar que a passagem idlatra do Asclpio era uma interpolao feita na traduo latina pelo mago Apuleio, e no se achava no original grego de Hermes, j perdido. Foi este o procedimento adotado por diversos hermetistas do sculo XVI, como veremos mais tarde.2 Para os magos da Renascena, porm, a magia do Asclpio era a parte mais atraente dos escritos hermticos. Mas como haveria um mago cristo de contornar Agostinho? Marsilio Ficino o fez, citando a condenao de Agostinho e depois desconsiderando-a, ainda que timidamente, pela sua prtica da magia. Giordano Bruno tomaria o caminho mais usado de sustentar que a religio mgica egpcia, uma religio do mundo, era no s a mais antiga, como a nica religio verdadeira, a qual tanto o judasmo como o cristianismo haviam corrompido e obscurecido. Existe outra passagem sobre Hermes Trismegisto no De civitate Dei, mas separada em larga medida da que se refere idolatria egpcia, e num contexto muito diferente. Agostinho afirmava a antiguidade da lngua hebraica, dizendo que os profetas e filsofos hebreus eram muito mais antigos que qualquer filsofo gentio, e que a sabedoria dos patriarcas precedera a egpcia. "Em que consistia essa sua bela sabedoria? Em nada, na verdade, a no ser na astronomia e em outras cincias, que parecem exercitar a finura de esprito, mais do que elevar os conhecimentos. Quanto moralidade, ela no floresceu no Egito at o tempo de Trismegisto, que viveu muito antes dos filsofos e sbios da Grcia, mas depois de Abrao, Isaac, Jac, Jos e Moiss; porquanto, no tempo em que nasceu Moiss, era vivo Atlas, irmo de Prometeu, um grande1 2

Isaas, .XIX, .i. Ver adiante, pgs. 194, 197-198.

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astrnomo, que foi av pelo lado materno do mais velho Mercrio, que gerou o pai deste Trismegisto."1 Agostinho confirmou assim, com o peso de sua grande autoridade, a extrema antiguidade de Hermes Trismegisto, que vivera "muito antes dos sbios e filsofos da Grcia". E, pelo fato de lhe conceder essa curiosa genealogia, que o situa trs geraes depois de um contemporneo de Moiss, Agostinho levantou uma questo que viria a ser muito debatida, concernente s pocas em que teriam vivido Moiss e Hermes. Seria Hermes um pouco posterior a Moiss, no obstante ser anterior aos gregos, como afirmava Agostinho? Seria Hermes contemporneo ou anterior a Moiss? Todas essas opinies foram mantidas pelos hermetistas e magos. A necessidade de situar Hermes em relao a Moiss foi estimulada pelas afinidades com o Gnese, que certamente impressionaram todos os leitores do Pimandro hermtico. Poder-se-ia aprender2 mais sobre Hermes Trismegisto com outros escritores cristos primitivos, particularmente com Clemente de Alexandria, que, em sua admirvel descrio da procisso dos sacerdotes egpcios, observou que o cantor, direita do cortejo, levava consigo dois livros de hinos e msicas, escritos por Hermes, e o horoscopista levava quatro livros sobre as estrelas, escritos igualmente por Hermes. No decorrer dessa descrio, Clemente declara que existiam quarenta e dois livros de autoria de Hermes Trismegisto, trinta e seis dos quais continham a totalidade da filosofia dos egpcios, sendo os outros seis sobre medicina.3 pouco provvel que Clemente tivesse conhecido algo sobre a Hermtica que chegou aos nossos dias,4 mas o leitor da Renascena acreditava que havia no Corpus hermeticum e no Asclpio, preciosos sobreviventes da grande biblioteca sagrada de que falava Clemente. Por volta de 1460, um manuscrito grego foi trazido da Macednia para Florena por um monge, um dos muitos1 2

De civ. Dei, XVIII, xxix; citado na traduo de Healey. Consultar a coleo Testimonia, in Scott, vol. I. 3 Clemente de Alexandria, Stromata, VI, iv, xxxv-xxxviii. Cf. Festugire, I, pg. 75 e segs. 4 Clemente no menciona os escritos hermticos, do que conclui Scott (I, pgs. 87-90) que nada sabia deles ou sabia que no eram de data muito antiga.

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agentes empregados por Cosimo de Medici para coligir material. Continha uma cpia do Corpus hermeticum mas que no era completa, pois inclua apenas catorze dos quinze tratados da coleo, havendo-se perdido o ltimo.1 Embora os manuscritos de Plato j estivessem reunidos, espera de uma traduo, Cosimo ordenou a Ficino que os deixasse de lado a fim de traduzir imediatamente a obra de Hermes Trismegisto, antes de empreender a dos filsofos gregos. o prprio Ficino que nos relata esse fato, em sua dedicatria a Lorenzo de Medici nos comentrios sobre Plotino, nos quais descreve o impulso dado aos estudos do grego pela incluso no Concilio de Florena de Gemisto Pleto e de outros eruditos bizantinos, acrescentando que ele prprio fora designado por Cosimo para traduzir os tesouros da filosofia grega recmchegados ao Ocidente, vindos de Bizncio. Cosimo, afirma ele, dera-lhe as obras de Plato para traduzir. Mas, no ano de 1463, chegara-lhe o aviso de que devia traduzir Hermes em primeiro lugar e sem demora, e s depois dedicar-se a Plato: "mihi Mercurium primo Termaximum, mox Flatonem mandavit interpretandum".2 Ficino fez a traduo em poucos meses, antes da morte do velho Cosimo (em 1464). Comeou depois a traduzir Plato.3 Eis uma situao extraordinria. L estavam as obras de Plato, espera de uma traduo at que Ficino completasse a de Hermes, provavelmente porque Cosimo quis l-la antes de sua morte. Que testemunho da misteriosa reputao do Trs Vezes Grande! Cosimo e Ficino sabiam, tendo lido os Padres, que Hermes Trismegisto era mais antigo que Plato. Conheciam igualmente o Asclpio latino, que lhe aguou o apetite para a sabedoria mais antiga, da mesma prstina fonte.4 O Egito era anterior Grcia; Hermes,1

O manuscrito traduzido por Ficino encontra-se na Biblioteca Lau renziana (Laurenciano, LXXI 33 (A). Ver Kristeller, Studies, pg. 223; o dcimo primeiro captulo deste livro a verso revista de um artigo que Kristeller havia publicado em 1938, e que fora o estudo pioneiro da traduo de Ficino do Corpus hermeticum. Os estudantes do hermetismo da Renascena muito devem obra de Kristeller.. . 2 Dedicatria de Ficino para Lorenzo de'Medici registrada em seu eptome e nos comentrios sobre Plotino; Ficino, 1537. 3 "Mercurium paucis mensibus eo uiuente", referindo-se a Cosimo, "peregi. Platonem tunc etiam sum aggressus"; Ficino, loc. cit. Cf. Kristeller, Studies, pg. 223; A. Marcel, Marsile Ficin, Paris, 1958, pgs. 255 e segs. 4 A fim de compreender esse entusiasmo, necessrio conhecer a histria do hermetismo na Idade Mdia e na Renascena, antes de Ficino. Para algumas indicaes sobre a influncia do Asclpio na Idade Mdia, consultar C. h., 17, pgs. 267-275. O interesse pelo hermetismo (baseado principalmente no Asclpio e no pseudo-hermtico Liber hermetis Mercurii Triplicis de VI rerum principiis) um dos marcos da Renascena do sculo XII. No tocante influncia dessas obras em Hugo de So Vtor, ver Didascalicon, traduzido por Jerome Taylor, Colmbia, 1961, introduo, pgs. 19 e segs. e notas. Muitos escritos mgicos, alqumicos e astrolgicos que se apresentam sob o nome de Hermes eram naturalmente conhecidos na Idade Mdia. Ver adiante, pgs. 61-62.

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anterior a Plato. O respeito da Renascena pelo antigo, pelo primitivo e pelo longnquo, mais prximos da verdade divina, exigia que o Corpus hermeticum fosse traduzido antes da Repblica ou do Banquete. Ficino deu traduo o ttulo de Pimandro, que correspondia apenas ao primeiro tratado do Corpus hermeticum, mas que ele atribuiu ao corpus todo, ou antes, aos seus primeiros catorze itens, contidos no manuscrito. Ofereceu a traduo a Cosimo, e essa dedicatria, ou argumentum, como ele a chama, revela a atitude de profundo temor religioso e assombro com que abordara aquela prodigiosa revelao do saber egpcio. "No tempo em que nasceu Moiss, floresceu Atlas, o astrlogo, irmo de Prometeu, o fsico, e tio materno do mais velho Mercrio, cujo sobrinho era Mercrio Trismegisto." 1 Assim principia o argumentum, com uma verso ligeiramente deturpada da genealogia agostiniana de Hermes, que desde logo o situa na mais remota antiguidade e quase contemporneo de Moiss. Agostinho escrevera sobre Mercrio, continua Ficino assim como Ccero e Lactncio. Ele repete a informao de Ccero segundo a qual Mercrio "dera leis e letras" aos egpcios, acrescentando que encontrara a cidade chamada Hermoplis. Era um sacerdote egpcio, o mais sbio de todos, supremo filsofo por seus extensos conhecimentos; como sacerdote, pela santidade de sua vida e pela prtica dos cultos divinos; e, pela majestosa dignidade, como administrador de leis razes pelas quais devidamente chamado Termaximus, ou Trs Vezes Grande.21 2

Argumentum que precede o Pimandro (Ficino, pg. 1.836). Essa explicao do significado de "Trs Vezes Grande" remonta Idade Mdia; ver adiante, pgs. 61-62.

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" considerado o primeiro autor de teologia; foi seguido por Orfeu, que tem o segundo lugar entre os antigos telogos. Aglaofemo, iniciado no sagrado ensinamento de Orfeu, foi seguido na teologia por Pitgoras, cujo discpulo era Filolau, o mestre do divino Plato. H, portanto, uma teologia antiga (prisca theologia) que se origina em Mercrio e culmina no divino Plato."1 No prefcio ao Pimandro, Ficino apresenta pela primeira vez esta genealogia do saber, que pouco deve a Gemisto Pleto, que no menciona Trismegisto, mas aos Padres, particularmente a Agostinho, Lactncio e Clemente. Repetiria posteriormente muitas vezes a genealogia do saber: Hermes Trismegisto ora tem nela o primeiro lugar, ora cede-o apenas a Zoroastro (favorito de Pleto como primeiro priscus theologus), ora divide o primeiro lugar com Zoroastro.2 A genealogia da prisca theologia evidencia a extrema importncia que Ficino concedia a Hermes, como fons et origo de uma tradio de sabedoria que levava numa corrente ininterrupta at Plato. Muitas outras evidncias poderiam ser extradas de sua obra a fim de provar a incondicional crena de Ficino na primazia e importncia de Hermes, tanto que essa atitude impressionou um antigo bigrafo do filsofo florentino, que afirmou: "ele", Ficino, "tinha a opinio segura e firme de que a filosofia de Plato tinha a mesma origem que a de Mercrio, cujos ensinamentos lhe pareciam mais prximos doutrina de Orfeu e, de certo modo, nossaFicino, loc. cit. Na Theologia platonica, Ficino apresenta a genealogia do seguinte modo: (1) Zoroastro, (2) Mercrio Trismegisto, (3) Orfeu, (4) Aglaofemo, (5) Pitgoras, (6) Plato (Ficino, pg. 386). No prefcio aos comentrios de Plotino, Ficino afirma que a teologia divina se iniciou simultaneamente com Zoroastro, entre os persas, e com Mercrio, entre os egpcios; passa depois para Orfeu, Aglaofemo, Pitgoras, Plato (ibid., pg. 1.537). Esse modo de igualar Zoroastro a Hermes coloca a genealogia de Ficino em conformidade com a de Gemisto Pleto, para quem a mais antiga fonte de sabedoria Zoroastro, a quem faz suceder uma corrente de intermedirios diferentes da de Ficino, mas, como Ficino, chega a Pitgoras e Plato. Consultar as passagens citadas dos comentrios s Leis, e de sua rplica a Scholario, em F. Masai, Plthon et le platonisme de Mistra, Paris, 1956, pgs. 136 e 138. Para um valioso estudo das genealogias do saber de Ficino, ver D. P. Walker, The prisca theologia in France, J. W. C. I 1954 (XVII), pgs. 204-259.2 1

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prpria teologia*', isto , crist, "que os de Pitgoras".1 Mercrio escreveu muitos livros concernentes ao conhecimento das coisas divinas, continua Ficino em seu prefcio ao Pimandro, onde revela mistrios arcanos. No se expressa apenas como filsofo, mas s vezes como profeta, cantando o futuro. Previra a runa da religio primitiva, o nascimento de uma nova f e o advento de Cristo. Agostinho atribuiu essas previses s estrelas ou revelao dos demnios, mas Lactncio no hesita em situ-lo entre as sibilas e profetas.2 Essas observaes (parafraseadas, e no totalmente traduzidas do argumentum) mostram os esforos de Ficino para evitar que Agostinho condenasse seu heri pela idolatria egpcia do Asclpio, o que faz realando a opinio favorvel de Lactncio. Prosseguiu dizendo que, de todas as obras escritas por Mercrio, duas principalmente eram divinas: a chamada Asclpio, traduzida para o latim pelo platnico Apuleio, e a chamada Pimandro (que o Corpus hermeticum), trazida da Macednia para a Itlia e que ele prprio, obedecendo ao comando de Cosimo, traduzira para o latim. Segundo ele, fora primitivamente escrita em egpcio e depois traduzida para o grego, a fim de revelar os mistrios egpcios aos gregos. O argumentum termina num tom de xtase, que reflete as iniciaes gnsticas das quais trata a Hermtica. Nesta obra, acredita Ficino, refulge a luz da iluminao divina. Ele nos ensina que, elevando-nos por sobre os enganos dos sentidos e as nuvens da fantasia, voltamos nossas mentes para a Divina Inteligncia, como a lua se volta para o sol, para que Pimandro, ou a Divina Inteligncia, nos flua mente e possamos contemplar a ordem das coisas, tal como existem em Deus. Na introduo edio da Hermtica, Scott faz o seguinte balano da atitude de Ficino em relao a estas obras: "A teoria de Ficino sobre a relao entre Hermes Trismegisto e os filsofos gregos era baseada, em parte, em dados apresentados por escritores cristos primitivos, em especial, Lactncio e Agostinho e, em parte, na evidncia interna do Corpus hermeticum e do Asclpio latino do1

Vita di Ficino, publicada a partir de um manuscrito de cerca de 1591, in Marcel, op. cit., pg. 716. 2 Em sua obra sobre a religio crist (De Christ, relig., XXV), Ficino situa Hermes com as sibilas, com elas testemunhando o advento de Cristo (Ficino, pg. 29).

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pseudo-Apuleio. Ele percebera que a semelhana entre as doutrinas hermticas e a de Plato era tal que implicava alguma conexo histrica, mas, ao aceitar como fato sabido que o autor da Hermtica era pessoa que vivera aproximadamente no tempo de Moiss, inverteu a relao verdadeira e acreditou que Plato deduzira sua teologia de Trismegisto, atravs de Pitgoras. E sua opinio foi adotada, pelo menos em suas linhas principais, por todos os que trataram do assunto, at fins do sculo XVI".1 Isto sem dvida um fato e um fato que todos os estudantes do neoplatonismo da Renascena, inaugurado nas tradues e obras de Ficino, fariam bem em reter. No est comprovado o efeito que exerceu sobre Ficino sua abordagem to temerosamente religiosa da Hermtica, concebida como prisca theologia e prstina fonte da iluminao que flui da divina mens concepo que o levaria ao mago original do platonismo, uma gnose derivada da sabedoria egpcia. Os contemporneos compartilharam com Ficino sua avaliao, de extrema importncia, dos escritos hermticos. Conforme assinalou O. P. Kristeller, seu Pimandro teve uma imensa difuso.2 Dele existem manuscritos em grande nmero, maior do que o de qualquer outra obra de Ficino. Foi impresso pela primeira vez em 1471, e teve dezesseis edies que alcanaram o fim do sculo XVI, sem contar aquelas em que aparece impresso com outras obras. Foi impressa em Florena, em 1548, uma traduo italiana de Tommaso Benci. Em 1505, Lefvre d'Etaples reuniu num s volume o Pimandro de Ficino e a traduo do Asclpio, do pseudo-Apuleio. A bibliografia das edies, tradues, coletneas e comentrios dos escritos hermticos do sculo XVI extensa e complicada,3 testemunhando o profundo interesse e o entusiasmo despertados por Hermes Trismegisto na Renascena. A proscrio da magia pela Igreja medieval forara-a clandestinidade, em que o mgico exercia sua abominadaScott, I, pg. 31. O trmino do sculo XVI uma data por demais primitiva na qual situa o fim desta iluso. Ver adiante cap. XXI. 2 Kristeller, Studies, pg. 223 e segs.; Suppl. Fic. I, pgs. Ivii-lvii, cxxxix-cxxxi. 3 Scott, I, pgs. 31 e segs. Ver adiante, pgs. 195, 200, 207-208.1

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arte. As pessoas respeitveis poderiam s vezes empreg-lo furtivamente, pois era muito temido. Mas, decerto, no era publicamente admirado como filsofo religioso. A magia da Renascena, reformada e erudita, que sempre repelira qualquer conexo com a velha magia, ignorante e perversa, ou negra, era com frequncia adotada por algum estimado filsofo da Renascena. Essa nova condio social da magia era devida, principalmente, grande corrente literria proveniente de Bizncio. Em grande parte, ela se originara nos primeiros sculos que haviam sucedido ao advento de Cristo, durante os quais as filosofias reinantes se haviam tingido de ocultismo. O erudito e assduo leitor de autores tais como Imblico, Porfrio ou mesmo Plotino no podia mais considerar a magia como um ofcio de pessoas ignorantes e inferiores. A genealogia da antiga sabedoria, que Ficino tanto fizera para propagar, era tambm favorvel revivescncia da magia, pois muitos prisci theologi eram prisci magici, e a literatura que servia de base s suas afirmaes remontava tambm aos primeiros sculos ocultistas.1 Ao antiqussimo Zoroastro, que, s vezes, troca de lugar com Hermes na primazia da corrente da sabedoria, eram atribudos os Orculos caldeus, que no eram, como se supe, documentos de alta antiguidade, mas datavam do segundo sculo d.C.2 A magia de encantamento supostamente ensinada por Orfeu, que aparece em segundo lugar na corrente dos prisci theologi, era baseada nos hinos rficos, muitos dos quais datam do segundo ou terceiro sculo d.C. Assim, Hermes Trismegisto no era o nico dos mais antigos telogos, ou magos, cuja literatura sacra estava tristemente maldatada. No obstante, provvel que Hermes Trismegisto seja1

Pleto acreditava firmemente na antiguidade destes orculos (ver Masai, op. cit., pgs. 136, 137, 375, etc), que para ele so a fonte primitiva da sabedoria de Zoroastro, cujos desdobramentos finalmente alcanaram Plato. O que corresponde exatamente atitude de Ficino para com a Hermtica. No foi difcil para Ficino misturar as guas destas duas prstinas fontes, dado serem aproximadamente contemporneos e semelhantes em sua atmosfera. Nock afirma, ao referir-se Hermtica: "Comme les Oracles Chaldiques, ouvrage du temps de Marc-Aurle, ils nous rvlent une manire de penser, du plutt une manire d'user de la pense, analogue une sorte de procd magique..." (C. h., I, pg. vii). Os Orculos caldeus foram editados por W. Kroll, De oraculis chaldaicis, in Breslauer Philog. Abhandl., VII (1894), pgs. I-76. 2 Sobre os Orphica da Renascena, ver D. P. Walker, "Orpheus the theologian and the Renaissance platonists", J. W. C. I., 1953 (XVI), pgs. 100-120.

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a mais importante figura da revivescncia renascentista da magia. O Egito era tradicionalmente associado magia negra e poderosa, vinham agora luz os escritos de um sacerdote egpcio que revelava extrema piedade, confirmando a alta opinio que dele expressara o padre cristo Lactncio, e que as mais altas autoridades consideravam corno a fonte de Plato. Foi, quase certamente, a descoberta do Corpus hermeticum o que demonstrou a piedade de Hermes e o associou to intimamente filosofia platnica reinante, reabilitando seu Asclpio, condenado por Agostinho como contendo magia demonaca. A posio extraordinariamente eminente designada a Hermes Trismegisto nessa nova era reabilitou o Egito e sua sabedoria, e, portanto, a magia associada a essa sabedoria.

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Captulo II O "Pimandro" de Ficino e o "Asclpio"

Neste captulo, tentarei resumir o contedo dos quatro tratados selecionados do Corpus hermeticum, escolhidos dentre os catorze traduzidos por Ficino, com o ttulo geral de Pimandro. Indicarei os pontos mais importantes dos comentrios de Ficino, referentes a essa obra, e tentarei realar sua aterrada admirao perante as verdades mosaicas ou mesmo crists de que o antiqussimo escritor egpcio parecia ter misteriosamente recebido a revelao. Darei, finalmente, um relato resumido do contedo do Asclpio. Desse modo, espero dar um apanhado ao leitor das duas obras que Ficino, em seu argumentum precedente ao Pimandro, considera os dois "livros divinos" de Hermes Trismegisto, a saber, o livro "Do poder da sabedoria de Deus" (os catorze tratados do Pimandro) e o livro "Da vontade divina" (o Asclpio). necessrio, para compreender a atitude da Renascena para com a magia do Asclpio, ler essa obra no contexto da extraordinria piedade e do conhecimento das coisas divinas que o Pimandro parece revelar. O leitor interessado na verdadeira natureza dessas obras, como documentos do gnosticismo pago dos primeiros sculos da nossa era deve reportar-se obra volumosa de Festugire, La rvlation d'Herms Trismegiste, na qual ele trata exaustivamente de suas fontes filosficas e reconstri brilhantemente a atmosfera social e religiosa de seu perodo.1 Os escritores poderiam ter utilizado algumas fontes hebraicas.2, bem como a filosofia greco-romana corrente

1

No preciso dizer que os trabalhos de Reitzenstein, particularmente seu Poimandres (Leipzig, 1904), ainda so fundamentais para esse assunto. O prefcio e o aparelhamento crtico de W. Scott nessa edio da Hermtica tm sido consultados, bem como os prefcios e notas da edio Nock-Festugire. Outras obras teis so: A. D. Nock, Conversion, Oxford, 1933; C. H. Dodd, The Bible and the Greeks, Londres, 1935; R. Mc. L. Wilson, The gnostic problem, Londres, 1958.2

um fato incontestvel que o primeiro tratado do Corpus hermeticum, o Pimandro, contm alguns elementos judaicos, mas as opinies diferem quanto sua dvida para com o judasmo helenizado.

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e, em vista de sua data real posterior a Cristo, poderiam ter ouvido falar no cristianismo e no "Filho de Deus"1 cristo. Entretanto com referncia aos nossos propsitos, so irrelevantes os problemas crticos e histricos da literatura hermtica, pois teriam sido desconhecidos de Ficino e de seus leitores, e, assim, abordarei imaginativamente esses documentos, tal como os abordaram Ficino e, depois dele, toda a Renascena; como revelaes da antiqussima sabedoria egpcia, registradas por um escritor que vivera muito antes de Plato e mais tempo ainda antes de Cristo. Para manter essa iluso, atribuirei aos cinco tratados aqui analisados ttulos "egpcios" e sempre me referirei ao autor como "Hermes Trismegisto". Parece-me que, somente aderindo com certo grau de simpatia imensa iluso de sua grande antiguidade e carter egpcio, poderemos esperar compreender o tremendo impacto que essas obras tiveram sobre o leitor da Renascena. Todavia, antes de mergulhar na grande iluso egpcia, so necessrias algumas observaes. Estes escritos, na realidade, so de diferentes autores desconhecidos e, sem dvida, de datas consideravelmente variadas. Mesmo os tratados so com frequncia constitudos de diferentes opsculos agrupados num todo. Seu contedo , portanto, muito variado, e no raro contraditrio. No se pode extrair deles, como um todo, nenhum sistema de real coerncia. Nem pretendiam formar um sistema filosfico racionalmente elaborado. So registros de almas em busca da revelao, da intuio do que divino, da salvao pessoal, da gnose, sem o auxlio de um deus ou salvador pessoal, e com base numa abordagem religiosa do universo. essa abordagem religiosa e seu carter de documento de experincias o que d Hermtica a unidade que lhe falta como sistema de pensamento. O quadro de referncias cosmolgico admitido como axiomtico sempre astrolgico, mesmo quando isso no est expressamente declarado. O mundo material se encontra sob o domnio das estrelas e dos sete planetas, os "Sete1

Muitos estudiosos so de opinio de que h muito pouca ou nenhuma influncia crist na Hermtica. Dodd, que sublinha a influncia judaica, cr que os "trechos da Hermtica nos quais se poderia suspeitar de influncia crist, podem ser explicados pelas ideias heleno-judaicas que subjazem Hermtica e ao Novo Testamento" (op. cit., pg. xv, nota).

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Governadores". As leis da natureza nas quais vive o religioso gnstico so leis astrolgicas, e so o cenrio de sua experincia religiosa. Existe, todavia, uma diferena fundamental entre os vrios autores da Hermtica, em sua atitude referente a esse mundo governado pelas estrelas. Festugire classificou esses escritos como pertencentes a dois tipos de gnose, a saber, uma gnose pessimista e outra otimista.1 Para a gnose pessimista (ou dualista), o mundo material, fortemente impregnado da fatal influncia das estrelas, mau por si mesmo; preciso escapar a ele levando uma vida asctica e evitando, tanto quanto possvel, o contato com a matria, at que a alma iluminada se eleve atravs das esferas dos planetas, livrando-se das ms influncias at atingir seu verdadeiro lar, situado no imaterial mundo do divino. Para o otimista gnstico, a matria impregnada do que divino, a Terra viva, move-se com vida divina, as estrelas so imensos animais vivos, o sol brilha com poder divino e no h parte da Natureza que no seja boa, pois tudo pertence a Deus. As seguintes exposies do contedo dos cinco escritos hermticos escolhidos so, em parte, uma anlise, em parte uma citao direta.2 Omiti muita coisa, e s vezes recompus ligeiramente a ordem. H muita coisa difusa e muita repetio nessas obras, e o que se tentou foi expor sua essncia, to brevemente quanto possvel. (1) A Gnese egpcia. Pimandro. (Corpus hermeticum, I;3 em parte gnose otimista e, em parte, dualista.) Pimandro, que o nous ou mens divina, aparece para Trismegisto quando seus sentidos corporais esto presos a um sono muito pesado. Trismegisto expressa a aspirao de conhecer a natureza dos seres e de conhecer a Deus. O aspecto de Pimandro muda, e Trismegisto passa a ter uma viso toda luminosa e sem limites. Aparece, ento, umaFestugire, I, pg. 84; II, pgs. x-xi (classificao individual da Hermtica como otimista ou pessimista na nota da pg. xi). 2 Tm a natureza de um resumo com algumas citaes diretas, e o leitor deve ser advertido para no tom-las como uma traduo completa. Ao faz-las, tenho diante de mim a traduo francesa de Festugire e a latina, de Ficino. Infelizmente, no me possvel utilizar a traduo inglesa de Scott, devido s liberdades que ele tomou no texto. 3 C. h., I, pgs. 7-19; Ficino, pgs. 1.837-1.839.1

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espcie de obscuridade ou escurido, da qual surge um tipo de fogo acompanhado de um som indescritvel, como um gneo gemido, enquanto a luz despede uma sagrada Palavra, e um fogo sem mescla salta da regio mida para o sublime; e o ar, sendo luz, segue o sopro de fogo. "Essa luz", diz Pimandro, "sou eu, nous, teu Deus e a luminosa palavra que flui do nous o Filho de Deus." Trismegisto, nesse momento, v em si mesmo, em seu prprio nous ou mens, a luz e o incalculvel nmero de Potestades, um mundo ilimitado, e o fogo envolto numa fora onipotente. Pergunta a Pimandro: "De onde vm, ento, os elementos da natureza?", e Pimandro responde: "Da Vontade de Deus, que em si recebeu a Palavra E o nous-Deus, existindo como luz e vida, trouxe luz um segundo nous-Demiurgo, que, sendo o deus do fogo e do sopro, formou os Governadores, em nmero de sete, que envolvem com seus crculos o mundo sensvel". O Mundo uniuse ao nous-Demiurgo, sendo da mesma substncia, e o nous-Demiurgo, conjuntamente com a Palavra, move os Sete Governadores, dos quais depende todo o baixo mundo elementar. Depois de o nous-DemiurgoPalavra e sopro de fogo haver formado e posto em movimento os Sete Governadores, passa o relato de Trismegisto criao do Homem, que ao direta do nous-Pai. "Ora, o nous, Pai de todos os seres, sendo vida e luz, trouxe luz um Homem semelhante a Ele mesmo, o qual amou como seu prprio Filho. Porque o Homem era belo, tendo reproduzido a imagem de seu Pai; e foi na verdade sua prpria forma que Deus amou e a quem deu todas as suas obras. Ora, ao ver a criao que o Demiurgo havia formado no fogo, o Homem desejou tambm produzir uma obra, e para isso recebeu permisso do Pai. Assim, tendo entrado na esfera demirgica, na qual teve pleno poder, o Homem viu as obras de seus irmos, os Governadores o amaram, e cada qual lhe deu uma parte de seu prprio governo. Depois, tendo conhecido sua essncia e recebido participao em sua natureza, ele desejou atravessar a periferia dos crculos e conhecer o poder d'Aquele que reina sobre o fogo. "O Homem, que possua pleno poder sobre o mundo dos seres mortais e animais, inclinou-se sobre a armadura das esferas, depois de passar por seus invlucros, e mostrou Natureza abaixo a bela forma de Deus. Ao ver que havia nele a beleza inexaurvel e toda a energia dos Governadores, 35

aliada forma de Deus, a Natureza sorriu com amor, pois havia visto a forma maravilhosamente bela do Homem, refletida na gua, e, na terra, sua sombra. E ele, tendo visto essa forma semelhante sua na Natureza, refletida na gua, amou-a e quis estar com ela. No momento em que o desejou, ele o realizou, e habitou a forma irracional. Ento, a Natureza, tendo recebido seu amado, abraou-o e uniram-se, pois ardiam de amor." O Homem, tendo tomado um corpo mortal a fim de viver com a Natureza, o nico dos seres terrestres a possuir uma dupla natureza, mortal pelo corpo e imortal do ponto de vista do Homem essencial. Ainda que seja imortal e tenha poder sobre todas as coisas, tem pelo prprio corpo a condio da mortalidade, sendo sujeito ao Destino e escravo da armadura das esferas. "Agora", disse Pimandro, "revelarei um segredo at agora oculto. A Natureza, unida ao homem no amor, produziu um prodgio espantoso. O Homem, como ficou dito, tinha em si a natureza da assembleia dos Sete, composta de fogo e sopro. A Natureza, pela sua unio com o Homem, deu luz sete homens, correspondentes natureza dos Sete Governadores, entre os quais havia machos e fmeas, e que se elevaram para o cu." A gerao dos sete primeiros homens ocorreu do seguinte modo: fmea era a terra, gua, o elemento generativo; o fogo levou as coisas maturidade, e do ter recebeu a Natureza o sopro vital e produziu corpos com a forma do Homem. Quanto ao Homem, emergindo da vida e da luz que ele fora, mudou-se para alma e intelecto, sendo que a vida se transformou em alma, e a luz, em intelecto. E todos os seres do mundo sensvel permaneceram nesse estado at o fim do perodo. No fim do perodo, continua Pimandro, foi quebrado, pela vontade de Deus, o elo que ligava todas as coisas. O Homem e os animais, que at ento haviam sido ao mesmo tempo machos e fmeas, separaram-se em dois sexos, e Deus pronunciou a frase "Crescei e multiplicai-vos". Ento, a Providncia, atravs do Destino e da armadura das esferas, estabeleceu as geraes, e todas as coisas vivas se multiplicaram, cada qual segundo sua espcie. Pimandro aconselha Trismegisto sobre o modo como h de se comportar na vida, em vista do mistrio que lhe foi transmitido. Deve conhecer a si mesmo, visto que "aquele que a si se conhece a si se dirige", isto , dirige-se para sua verdadeira natureza. "Tu s luz e vida como Deus Pai, 36

de quem nasceu o Homem. Se, portanto, aprenderes a conhecer a ti mesmo como feito de luz e vida retornars vida." S o homem que tem intelecto (e nem todos o tm) pode, assim, conhecer a si mesmo. E Trismegisto dever viver com pureza e santidade, agradando ao Pai por meio de amor filial e enunciando bnos e hinos. Trismegisto agradece a Pimandro por ter-lhe revelado todos esses fatos, mas quer saber tambm sobre a "ascenso". Pimandro explica que, ao morrer, o corpo se dissolve em seus elementos, mas o homem espiritual se eleva atravs da armadura das esferas, deixando em cada uma delas uma parte de sua natureza mortal e o mal nela contido. Depois, uma vez inteiramente desnudado de tudo o que as esferas lhe imprimiram, ele entra na natureza "ogdodica", ouve as Potestades cantando hinos a Deus e mistura-se a elas. Trismegisto , ento, despedido por Pimandro, "depois de ser investido de poderes e instrudo sobre a natureza do Todo e da viso suprema". Inicia, assim, sua pregao ao povo, incitando-o a abandonar seus erros e a tomar parte na imortalidade. E Trismegisto "gravou dentro de si o benefcio de Pimandro". 1 Ficino, em seu comentrio sobre o tratado, mostra-se imensamente impressionado pelas notveis semelhanas entre este livro e o Gnese. "V-se, aqui, Mercrio a tratar dos mistrios mosaicos", comea ele, e prossegue fazendo as comparaes bvias. Moiss viu uma escurido por sobre a face do abismo, e o Esprito de Deus a meditar sobre as guas; Mercrio v uma escurido, e a Palavra de Deus a aquecer a natureza mida. Moiss anunciou a criao pela poderosa Palavra de Deus. Mercrio efetivamente declara que a brilhante Palavra, que ilumina todas as coisas, o Filho de Deus. E, se possvel atribuir a um homem nascido antes da Encarnao tal conhecimento, ele viu o Filho nascido do Pai e o Esprito que provinha do Pai e do Filho. Ele viu a criao surgir graas Palavra Divina e o homem ser criado segundo a imagem de Deus e, depois, sua queda da esfera inteligvel para o corpo. Utiliza quase as mesmas palavras que Moiss ao descrever Deus no ato de ordenar s1

"Ego autem Pimandri beneficium inscripsi penetralibus animi..." (traduo de Ficino, pg. 1.839).

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espcies que cresam e se multipliquem. Depois, ele nos instrui sobre como podemos novamente nos elevar para aquela natureza inteligvel e imortal de onde degeneramos. Moiss era o legislador dos hebreus, Mercrio, o dos egpcios; e ele d conselhos sagrados ao seu rebanho quanto ao modo de viver, louvando o Pai com todos os hinos e agradecimentos, contemplando a vida e a luz.1 Conforme demonstra o comentrio acima sobre o Pimandro, o que impressionou Ficino foi, acima de tudo, aquilo que lhe pareceu semelhante a Moiss (e nem tanto a Plato) na sua obra. Eis a razo pela qual, deveria ele ter pensado, os Padres fazem questo de datar Trismegisto em relao a Moiss: ele se assemelha a um Moiss egpcio. Ficino continuou a meditar sobre essas maravilhas durante os anos subsequentes; na Theologia platonica, ele se permite conjeturar se, afinal de contas, Hermes Trismegisto no seria Moiss. Depois de referir-se nesse trabalho ao relato da criao do mundo no Timeu, acrescenta: "Trismegisto Mercrio ensina mais claramente essa origem da gerao do mundo. Nem devemos nos admirar de que esse homem tenha sabido tanto, se Mercrio e Moiss eram o mesmo homem, como demonstra o historiador Artapano com muitas conjeturas".2 E Trismegisto mesmo melhor que Moiss, por ter percebido, muito antes da Encarnao, que a Palavra criadora era o Filho de Deus. "Ille" (Moiss) "potenti verbo domini cuncta creata nunciat, hic" (Mercrio) "verbum illud lucens, quod omnia illuminet filium Dei esse asseverat..." verossmil que Ficino se recordasse de uma comparao com o incio do Evangelho de So Joo. Enquanto Ficino traduzia apressadamente o Pimandro para Cosimo, provavelmente compreendeu quanta razo tivera Lactncio ao dizer que Trismegisto "por uns e outros meios pesquisara quase todas as verdades", e "com frequncia descrevera a excelncia e Majestade da Palavra", dando-lhe o nome de "Filho de Deus", no s no Pimandro como no Asclpio. Um odor de santidade circundava assim o autor da Gnese egpcia, to semelhante a Moiss, que profetizou o cristianismo e ensinou um modo de vida dedicado ao amor e devoo a Deus Pai.1 2

Ficino, loc. cit. Theologia platonica, VIII, I (Ficino, pg. 400). provvel que Ficino tenha obtido sua informao sobre Artapano de Eusbio, De praeparatione evangelicae, IX, 27, 6. Artapano era um judeu helenizado; ver Festugire, I, pgs. 70, 384. 38

certo que o Gnese mosaico, como o egpcio, afirma que o Homem foi feito imagem de Deus e que lhe fora concedido o domnio sobre todas as criaturas, mas no se afirma no Gnese mosaico que isso significa que Ado foi criado como um ser divino, com poderes divinos para criar. Nem mesmo quando Ado andava com o Senhor no Jardim do den, antes da Queda, isso afirmado a seu respeito. Quando Ado, tentado por Eva e pela serpente, tentou comer da rvore do Conhecimento, tornando-se assim igual a Deus, cometeu o pecado da desobedincia, punido com o exlio do Jardim do den. Mas, no Gnese egpcio, o Homem recm-criado, ao ver os recm-criados Sete Governadores (os planetas), dos quais dependiam todas as coisas, desejou realizar algo parecido. Mas isso no tratado como um pecado de desobedincia.1 Deixam-no entrar para a sociedade dos Sete Governadores, que o amam e lhe transmitem seus poderes. O Ado egpcio mais que humano; divino, e pertence raa dos demnios das estrelas, os governadores do mundo inferior divinamente criados. Declara-se at que ele um "irmo" do Demiurgo criador do Mundo e Filho de Deus, o "Segundo Deus" que move as estrelas. Sua Queda por si mesma um ato de poder. Podia inclinar-se atravs das armaduras das estrelas, rasgar seus invlucros e descer para mostrar-se Natureza. Fez essas coisas por sua livre vontade, movido pelo amor bela Natureza que ele prprio ajudara a criar e a manter, com sua participao na natureza dos Sete Governadores. Desejara faz-lo pelo amor de sua prpria imagem refletida na face da Natureza (assim como Deus amou o Homem, ao ver nele sua bela imagem). E a Natureza reconheceu seus poderes, os poderes dos Sete Governadores que estavam nele, e uniu-se a ele no amor. Verdade que essa Queda envolveu uma perda; o Homem, ao descer Natureza, tomou um corpo mortal e o colocou a este corpo mortal, sua parte mortal sob o1

Festugire acredita que, embora o desejo do homem de criar no fosse um erro, visto que lhe fora dada pelo Vai a permisso para faz-lo, ainda assim, sua entrada na esfera demirgica dos Sete Governadores era j um castigo, um incio de sua queda na matria (Revelation, III, pg. 87 e segs.). A interpretao de Dodd (op. cit., pg. 153) semelhante. Os dois escritores sublinham a diferena entre o homem hermtico e o mosaico, o primeiro criado como ser divino, o outro, criado do p da terra. A queda do homem hermtico se assemelha mais de Lcifer que de Ado.

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domnio das estrelas, sendo talvez punido com a separao em dois sexos (depois do curioso perodo dos Sete seres assexuados, engendrados pelo Homem e pela Natureza). Mas a parte imortal do homem permaneceu divina e criadora. O homem consistia, no de uma alma humana e de um corpo, mas de uma essncia divina, criadora e imortal, e de um corpo. E essa divindade, esse poder, ele o recobrou na viso da divina mens, semelhante sua prpria mens divina, que lhe foi mostrada por Pimandro. Pimandro deixa Trismegisto depois de t-lo "investido em poderes e instrudo sobre a natureza do Todo e sobre a viso suprema". Em resumo, o Gnese egpcio conta a histria da criao e Queda do homem divino, um homem intimamente relacionado com os demnios das estrelas em sua prpria origem, o Homem como mago. O Gnese egpcio confere perfeitamente com o famoso arroubo do Asclpio sobre o homem como magnum miraculum (com o qual Pico della Mirandola abriria sua Orao sobre a dignidade do homem): "Grande milagre o homem, Asclpio, um ser digno de reverncia e honra. Pois entra na natureza de um deus como se ele prprio fosse um deus; tem familiaridades com a raa dos demnios, sabendo que procede da mesma origem; despreza a parte apenas humana de sua natureza, tendo posto suas esperanas na divindade da outra parte".1 (2) Regenerao egpcia. O secreto Sermo da Montanha de Hermes Trismegisto a seu filho Hat. (Corpus hermeticum, XIII;2 gnose dualista.) Tat pede ao pai, Trismegisto, que lhe ensine a doutrina da regenerao, pois fortificou o esprito contra a iluso do mundo e est pronto para a iniciao final. Trismegisto diz-lhe ento que o homem regenerado nasce da sabedoria inteligente, no silncio, e a semente o Verdadeiro Bem, que nele foi semeada pela Vontade de Deus. O homem assim renascido "ser deus, o Filho de Deus, tudo em tudo, composto de todas as Potestades". Trismegisto passara pela experincia da regenerao. Em crescente excitao, Tat implora que a transmita a ele. "Quem o responsvel pelo trabalho de regenerao?", pergunta ele, e ouve a seguinte resposta:1 2

Ver adiante, pg. 47. C. h II, pgs. 200-209; Ficino, pgs. 1.854-1.856.

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"O Filho de Deus, um homem como os outros, pela vontade de Deus". Tat pergunta o que a verdade, e Trismegisto lhe diz que "aquilo que no foi poludo, que no tem limites, nem cor, nem forma, nem movimento; que nu, brilhante e que pode ser apreendido por si mesmo, o Deus inaltervel e incorpreo". No pode ser percebido pelos sentidos, s pode ser conhecido pelos efeitos de seu poder e energia, o que exige que a pessoa seja capaz de entender o nascimento de Deus. "No sou capaz disso, Pai?", exclama Tat, e como resposta ouve que deve atrair para si esse fato, e ele vir; deve desej-lo, que ser produzido; deve deter a atividade dos sentidos corporais, e a divindade nascer nele; deve purificar-se dos "castigos irracionais da matria". Terrveis e numerosos so esses "castigos", sendo os doze principais a Ignorncia, a Tristeza, a Incontinncia, a Concupiscncia, a Injustia, a Cupidez, o Engano, a Inveja, a Fraude, a Ira, a Precipitao e a Malcia. Eis os castigos que, pelo seu aprisionamento no corpo, foram o homem interior a sofrer atravs dos sentidos. Agora, em religioso silncio, Tat experimenta a obra da regenerao, as Potestades de Deus vm a ele e expulsam os Castigos. O Conhecimento substitui a Ignorncia; a Alegria repele a Tristeza; a Continncia, a Incontinncia; a Perseverana, a Concupiscncia; a Justia, a Injustia; a Generosidade, a Cupidez; a Verdade, o Engano. Com a chegada da Verdade, vem o Bem, acompanhado da Vida e da Luz, e todos os restantes Castigos so rechaados. A Dcada das Potestades cancelou a Dodcada dos Castigos. Uma vez completada essa experincia regeneradora, Trismegisto conduz Tat para fora da "tenda" (traduzida como tabernaculum por Ficino) sob a qual estivera, e que era constituda do crculo do zodaco. Como explica Festugire, os doze vcios ou "castigos" provm dos doze signos do zodaco que oprimiam Tat enquanto ele ainda era material, vivendo sob as influncias da matria. Festugire compara esse fato com a ascenso atravs das esferas mencionadas no Pimandro, onde h sete vcios que o iniciado abandona com os planetas, em seu caminho ascendente.1 Assim, os castigos da matria so realmente uma influncia das estrelas, substitudas1

Festugire, III, pgs. 90, 154, 156, etc. Ver tambm a interessante exposio deste tratado e da associao dos vcios com o zodaco e com os planetas, in M. W. Bloomfield, The seven deadly sins, Michigan, 1952, pg. 48 e segs.

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na obra de regenerao, pelas Virtudes, que so Potestades Divinas aptas a libertar a alma do peso material do cu e suas influncias. As Potestades so Um na Palavra, e a alma assim regenerada torna-se ela prpria a Palavra e um Filho de Deus.1 Trismegisto transmite a Tat a experincia pela qual ele prprio passara, e as Potestades cantam nele o Hino da Regenerao. "Que toda a natureza oua o hino Cantarei o Senhor da Criao, o Tudo, o Um. Abram-se, cus; vento, retm teu sopro e deixa que o crculo imortal de Deus oua a minha palavra Que os Poderes que esto em mim cantem ao Um, ao Tudo Dou graas, Deus, energia das Potestades, dou graas a Deus, fora das minhas energias Eis o que clamam as Potestades que tenho em mim Eis o que o homem que lhe pertence clama atravs do fogo, do ar, da terra e da gua, atravs do sopro e de todas as tuas criaturas..." No comentrio referente a esse tratado,2 Ficino compara a expulso dos ultores e sua substituio pelas Potestates Dei com a experincia crist da regenerao em Cristo, a Palavra e o Filho de Deus. Efetivamente, como assinala Festugire,3 essa experincia gnstica parece realmente semelhante a uma ddiva de graa, que cancela a predestinao das estrelas. Acrescento uma tabela de Castigos e Potestades, conforme a traduo latina de Ficino. Ele traduziu Incontinncia como Inconstncia e, no texto da traduo, esqueceu-se da Concupiscncia, qual, todavia, refere-se como Luxria na lista dos Castigos encontrada em seu comentrio. Ele no elaborou uma lista das Potestades no comentrio; por isso, no temos o oposto do que traduziu como Luxria, que deveria ser, naturalmente, Castitas (ou, se o texto tivesse sido traduzido, Fortitudo). Castigos Ignorantia Tristitia Inconstantia Cupiditas1 2

Potestades Cognitio Dei Gaudium Constantia Continentia

Sobre as Potestades, ver Festugire, III, pg. 153 e segs. Ficino, V, pg. 1.856. 3 Festugire, IV, pg. 253.

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Luxuria Injustitia Deceptio Invidia Fraus Ira Temeritas Malitia

Castitas? Fortitudo? Justitia Veritas Bonum Lumen Vita

Esse Evangelho segundo Hermes Trismegisto deve ter significado muito para Ficino, que temia desesperadamente as estrelas. Como a criao pela Palavra do Pimandro, tal Evangelho pode ter-lhe parecido semelhante ao de So Joo. "Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens", e a quantos O receberam, "deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus."1 (3) Reflexo (egpcia) sobre o Universo da Mente. A mente para Hermes (Corpus hermeticum, XI;2 gnose otimista.) (Supe-se em toda a obra que a mens se dirige a Hermes.) A Eternidade o Poder de Deus, e a obra da Eternidade o mundo, que no tem princpio, sendo um vir-a-ser contnuo, pela ao da Eternidade. Portanto, nada que est no mundo jamais perecer ou ser destrudo, pois a Eternidade imperecvel. E todo esse grande corpo do mundo uma alma, repleta de intelecto e de Deus, que a enche por dentro e por fora, vivificando tudo. Contempla atravs de mim (isto , da mens) o mundo, e consideralhe a beleza. V a hierarquia dos sete cus e a sua ordem. V que todas as coisas esto repletas de luz. V a terra, estabelecida no centro do Todo a grande nutriz, a alimentar todas as criaturas terrestres. Tudo repleto de alma, e todos os seres esto em movimento. Quem criou essas coisas? O nico Deus, pois Deus Um. V como o mundo sempre um; o sol, um; a lua, uma; a atividade divina, uma; Deus tambm Um. E dado que tudo vive e tambm a vida uma, Deus certamente Um. pela ao de1 2

So Joo, I, iv, xii. C. h., I, pgs. 147-157; Ficino, pgs. 1.850-1.852.

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Deus que todas as coisas vieram a ser. A morte no a destruio de todos os elementos reunidos num corpo, e sim a quebra desta unio. A mudana chamada morte por dissolver o corpo, mas eu te declaro, meu caro Hermes, que os seres que assim se dissolvem apenas se transformam. Todos os seres esto em Deus, mas no como se estivessem colocados num lugar, pois no assim que se inserem na faculdade incorprea de representao. Julga esse fato pela tua prpria experincia. Ordena que tua alma esteja na ndia, que atravesse o oceano; num momento, isso ser feito. Ordena que voe para o cu. No necessitar de asas, e nada poder impedir isso. E se quiseres irromper pela abbada celeste e contemplar o que existe alm se algo h alm do mundo , tu o podes fazer. V o poder e a velocidade que possuis. Assim deves conceber Deus; tudo o que , ele o contm em si, os pensamentos, o mundo, a si mesmo, o Todo. Portanto, a no ser que te tornes igual a Deus, no poders compreend-Lo: pois o igual s inteligvel para o igual. Faze com que cresas at um tamanho alm de toda medida e, de um salto, liberta-te do corpo; eleva-te acima do tempo, torna-te a Eternidade; ento compreenders Deus. Cr que nada te impossvel, pensa que s imortal e capaz de tudo entender, todas as artes, todas as cincias e a natureza de todo ser vivo. Sobe ao mais alto das alturas; desce abaixo da maior profundeza. Absorve em ti todas as sensaes de tudo o que foi criado, do fogo e da gua, do seco e do molhado, imaginando que ests em toda parte, na terra, no mar, no cu; que ainda no nasceste e ests no tero materno; adolescente, ancio, morto, alm da morte. Se abarcares no pensamento todas as coisas de uma s vez, tempo, lugares, substncias, qualidades, quantidades, poders compreender Deus. No mais dirs que Deus invisvel. No falars assim, pois o que mais manifesto que Deus? Ele tudo criou, apenas para que O vejas atravs das criaturas. Este o miraculoso poder de Deus, mostrar-se atravs de suas criaturas. Pois nada invisvel, mesmo o incorpreo. O intelecto se torna visvel no ato do pensamento; Deus, no ato da criao. O comentrio de Ficino sobre esse tratado apenas um curto resumo. O leitor notar que a viso de mundo em que est fundamentada essa revelao egpcia (um tipo de gnose realmente otimista) difere fundamentalmente da precedente (baseada 44

num tipo de gnose pessimista). Na revelao de Hermes para Tat, a matria era m, e a obra de regenerao consistia em escapar do poder dela atravs da ntima unio da alma com as Potestades Divinas ou Virtudes. Aqui o mundo bom, pois repleto de Deus. A gnose consiste em refletir o mundo no ntimo da inteligncia, pois assim conheceremos Deus, que o criou. Todavia, tambm na gnose pessimista descrita na regenerao de Tat, o mundo foi refletido em sua inteligncia. Depois da regenerao, ele clamou a Deus por intermdio das criaturas e tornou-se Eternidade, o Aion, como aqui. O princpio da reflexo do mundo na inteligncia pertence, portanto, a ambos os tipos de gnose, mas com nfase diferente. Num desses tipos, o adepto liberto por sua viso dos poderes do mal na matria, havendo nisso um forte elemento tico. No outro tipo, h a viso de Deus na natureza, uma espcie de pantesmo; o mundo material est repleto do que divino, e a gnose consiste em apreender plenamente esse fato, tal como , encerrando-o na inteligncia. Para o entusiasta renascentista, que acreditava ser tudo isso obra de um homem, o antiqussimo egpcio Hermes Trismegisto, essas distines seriam talvez um tanto nebulosas. (4) Filosofia egpcia do Homem e da Natureza: Movimento da Terra. De Hermes Trismegisto para Tat, sobre o intelecto comum. (Corpus hermeticum, XII;1 gnose otimista.) O intelecto, Tat, extrado da prpria substncia de Deus; e assim alguns homens so deuses e a humanidade deles aproxima-se do que divino. O homem, quando no conduzido pelo intelecto, cai abaixo de si mesmo, cai na animalidade. Todos os homens esto sujeitos ao destino, mas os que esto de posse da palavra, nos quais o intelecto comanda, no so a ele submetidos do mesmo modo que os demais. As duas ddivas de Deus ao homem, a do intelecto e a da palavra, tm valor igual ao da imortalidade. Se o homem fizer delas um uso correto, em nada ser diferente dos imortais. Tambm o mundo um deus, imagem de um deus maior. Unido a ele e conservando a ordem e a vontade do Pai, o mundo a totalidade da vida. Nada h nele, no1

C. h., I, pgs. 174-183; Ficino, pgs. 1.852-1.854.

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decorrer de todo o retorno cclico determinado pelo Pai, que no seja vivo. O Pai determina que o mundo permanea em vida enquanto conservar sua coeso e, em consequncia, o mundo necessariamente bom. Como pode, assim, haver naquilo que bom, que a imagem do Todo, coisas mortas? A morte a corrupo, e a corrupo a destruio, e no possvel que algo de Deus possa ser destrudo. No morrem os seres vivos do mundo, Pai, ainda que faam parte do mundo? Silncio, meu filho, s induzido ao erro pela denominao do fenmeno. Os seres vivos no morrem, mas, sendo corpos compostos, desintegram-se; isso no a morte, mas a dissoluo de uma mistura. Se eles se decompem, no para que sejam destrudos, mas renovados. Que , de fato, a energia da vida? No o movimento? Que h no mundo que seja imvel? Nada. Mas pelo menos a Terra no parece ser imvel? No. Ao contrrio, s a Terra entre todos os seres est sujeita simultaneamente a uma multiplicidade de movimentos e estabilidade. Absurdo seria supor que essa nutriz de todos os seres fosse imvel, ela, que d luz a todas as coisas; sem movimento, no possvel parir. Tudo o que est no mundo, sem exceo, est em movimento, e aquilo que est em movimento est igualmente vivo. Contempla, pois, como bela a disposio do mundo, v que ela est viva e que toda a matria repleta de vida. Deus est, ento, na matria, Pai? Onde poderia ser colocada a matria, se ela existisse independentemente de Deus? No seria ela uma massa confusa, a no ser que fosse posta a trabalhar? E se posta a trabalhar, quem a pe trabalhando? As energias que nela operam so uma parte de Deus. Se falares na matria, nos corpos ou nas substncias, fica sabendo que tais coisas so energias de Deus, que o Todo. No Todo no h nada que no seja Deus. Adora este mundo, filho, rende-lhe culto. O comentrio de Ficino sobre isto , ainda uma vez, pouco mais que um sumrio. O trecho apresenta novamente a filosofia "egpcia" da gnose otimista, repetindo muita coisa dos outros tratados. Sobressai claramente o princpio fundamental de que o homem, pelo intelecto, divino, e de que a gnose consiste em se tornar, ou voltar a ser um deus, a fim de ver a Deus. tambm vigorosamente reiterada a nfase da filosofia 46

natural "egpcia" (gnose otimista) na divindade, na eternidade e na vida do mundo e da matria. Nesse mundo divino e vivo, nada pode morrer e tudo se move, inclusive a Terra. Essa filosofia, na qual o homem divino participa do intelecto completamente impregnado do mundo vivo, da divina natureza, a filosofia ideal de homens como os magos, conforme demonstrar o Asclpio. (5) Religio egpcia. O Asclpio1 ou a Palavra perfeita (ttulo correto divulgado por Lactncio, que lhe d o nome de Sermo perfectus; gnose otimista.) Hermes Trismegisto, Asclpio, Tat e Amon reuniram-se num templo egpcio. Ningum mais fora admitido; seria mpio divulgar s massas um ensinamento inteiramente permeado de majestade divina. Quando o fervor dos quatro homens e a presena de Deus tomaram aquele sagrado lugar, o divino amor (divinus cupido)2 comeou a falar pelos lbios de Hermes. Tudo desce do cu, do Um, que o Todo, por intermdio do cu. Ouam atentamente isto, com inteiro empenho de seus divinos intelectos, porquanto a doutrina da divindade como um dilvio torrencial que tomba das alturas com violenta impetuosidade. Dos corpos celestiais, espalham-se atravs do mundo eflvios contnuos por sobre as almas de todas as espcies e de todos os indivduos, de um extremo ao outro da natureza. A matria foi preparada por Deus para ser o receptculo de todas as formas; e a natureza, ao imprimir as formas por meio dos quatro elementos, prolonga at os cus a sequncia de seres. Todas as espcies reproduzem seus indivduos, sejam demnios, homens, pssaros, animais, e assim por diante. Os indivduos da raa humana so diversos; tendo baixado das alturas, onde tinham comrcio com a raa dos demnios, fizeram alianas com as demais espcies. Est prximo dos deuses aquele homem que, graas ao esprito que o pe em contato com eles, se une a eles por meio de uma religio inspirada pelo cu. E assim, Asclpio, o homem um magnum miraculum, um ser digno de honra e reverncia. Ele entra na natureza de um deus como se fosse deus ele prprio;1 2

C. h, II, pgs. 296-355. Ibid., pg. 297.

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familiariza-se com a raa dos demnios, sabendo que da mesma origem; despreza a parte da prpria natureza que nada mais que humana, e coloca suas esperanas na divindade da outra parte.1 O homem une-se aos deuses por aquilo que possui de divino: seu intelecto. Todas as outras criaturas esto ligadas a ele pelo plano celestial, e ele as prende a si po