globalização alternativa comprometida com a humanidade...

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Equipe de Justiça, Paz e Criação, Conselho Mundial de Igrejas Genebra 2005 UM DOCUMENTO DE BASE GLOBALIZAÇÃO ALTERNATIVA COMPROMETIDA COM A HUMANIDADE E O PLANETA TERRA (AGAPE)

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  • Equipe de Justiça, Paz e Criação, Conselho Mundial de IgrejasGenebra 2005

    Um DocUmento De Base

    GloBalização alternativa comprometiDa com a

    HUmaniDaDe e o planeta terra (aGape)

  • ÍndiceParte 1: O desafio ÁGAPE 1.1 OprocessoÁgape . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 5 1.2 Porumaeconomiadavida. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6 1.3 Chamadoaqueasigrejassetornemcomunidadestransformadoras. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6

    Parte 2: Apelo por uma economia da vida - ÁGAPE 2.1 Vidaameaçada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8 2.2 Críticadoparadigmadoatualsistema. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8 2.3 Ágape:oamoréjustoegenerosocomoagraçadeDeus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10 2.4 Aimportânciafundamentaldajustiçatransformadora. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10 2.5 CompartilharavidanamesadeDeus:exemplodeumaeconomiaÁGAPEdevida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

    Parte 3: Comércio justo

    3.1 Dolivrecomércioparaocomérciojusto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12 3.2 RegrasdocomérciosegundoaOrganizaçãoMundialdoComércio(OMC)............................ 13 3.3 Dasegurançaalimentarparaasoberaniaalimentar. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 3.4 Resistênciaeatransformaçãodasregraserelaçõescomerciais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14

    Parte 4: Financiamento justo 4.1 Financiamentos:dausuraparaofinanciamentojusto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16 4.2 Dívidasecológicaseilegítimas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 4.3 Ágapeimplicacancelamentodadívidaerestituição. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18 4.4 Atransformaçãodosistemafinanceiroglobal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18 4.5 Apoioparafinanciamentoalternativoemníveislocais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 4.6 Promoverpráticaséticasecódigosempresariaisparainvestimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20

    Parte 5: Ação transformadora e alternativas vivas 5.1 Alternativasvivenciadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 5.2 Ecojustiça . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22 5.3 Economiadasolidariedade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

    Parte 6: Marcos ao longo da jornada ecumênica: textos, decisões e ações 6.1 Marcos,textos,decisõeseaçõesdajornadaecumênica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24 6.2 Marcosaolongodajornadaecumênica:textosedecisões. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25 6.3 OestudodoCMI/APRODEVsobrecristianismo,riquezaepobreza:osresultadosdo‘Projeto21’,2003. . . . . . 28 6.4 Ações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30

    Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

    Apêndice . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32

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    (c) CMI Fotos: Photo Oikumene http://www.photooikumene.org except for (c) Philip Greenspun for the photo on page 9

  • Que o direito corra como a água e a justiça como um rio caudaloso!

    Amós 5,24

    Nos anos que se passaram desde a últimaassembléia do Conselho Mundial de Igrejas(CMI)emHarare,em1998,ainjustiçaeadesi-gualdadetomaramformasnovasemaisagressivas.Muitomaisgenteestámorrendodepobrezahojedoqueemqualquermomentonopassado.Níveisinaceitáveisdepobrezacoexistemcompequenosfocos de riqueza entre as nações e também noseiodelas.AmãeTerra está gemendopor causadas numerosas maneiras em que continuamos aexplorá-la. As igrejas, portanto, são chamadas aler os sinais dos tempos e a responder ao impe-rativo do evangelho, que é justiça para todos.Podemos continuar em silencioso comodismoquando mais de três bilhões de pessoas do povodeDeusestãopresasnasmalhasdapobrezaedamorte?

    Comafinalidadedeengajarasigrejaseafamí-liaecumênicamaiornoconfrontocomessasrea-lidades,estedocumentodefundoexploraaques-tãodecomoasigrejaseafamíliaecumênicamaisampla podem reagir às tragédias humanas quetêmsuaraiznoprojetodaglobalizaçãoeconômi-ca.Tendoportítulo“AlternativadeGlobalizaçãoAbordando o Planeta e a Ecumene (AGAPE)”,este documento foi redigido por um pequenogrupoderepresentantesdeigrejaseorganizaçõesafins. O texto se baseia nos resultados de umasériedeconsultasjuntoàsigrejaseestudossobre

    globalização organizados pelo CMI e por outrasorganizaçõesecumênicasnoperíodotranscorridodesdeaassembléiadoCMIemHarareem1998.

    TemosaesperançadequeesteprocessovenhaasuscitarumchamadoparaaaçãodeAGAPEnapróximaassembléiadoCMIemPortoAlegreem2006.Asigrejaseafamíliaecumênicaserãocha-madasadarumpassoalémdacríticadaglobali-zação neoliberal, para declarar como a graça deDeus pode transformar este paradigma. Será umchamadoparaumavisãoecumênicadavida,emrelações justas e de amor, mediante a busca poralternativasparaasestruturaseconômicasatuais.

    Oobjetivodestedocumentoéinspirarasigre-jas e o movimento ecumênico mais amplo nosentido de continuar a enfrentar os problemasglobais atuais de modo a reagirem resolutamen-te aos intoleráveis níveis de pobreza em nossomundo.

    Estedocumentoestásendoenviadoàsigrejas-membro, comunhões mundiais, órgãos ecumêni-cos regionais, ministérios e agências especializa-das, bem como a movimentos sociais, de modoa promover a reflexão ao se prepararem para aassembléiadoCMIem2006emaisparaafrente.Odocumentoestáestruturadocomoummanualdeestudosparaserusadoemsemináriosegruposde discussão. Algumas perguntas são sugeridasaofinaldecadasessãoeemcadacontextoespe-cífico, como base para discussão. Uma vez quefocaliza alternativas, a sessão final deste texto

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    Prefácio

  • também pode servir de base para ações a seremempreendidas.

    Uma reflexão teológica baseada no conceitode“ágape”–agraçaeamorabundantesdeDeus–sustentatodootextopararessaltarquesetratade um fundamento teológico e espiritual, e nãoideológico,quedesafiaasigrejasparaaação.Istoéoquedistingueopapeldasigrejasedafamíliaecumênica daquele de outras organizações dedesenvolvimento.Enquantoigrejasefamíliaecu-mênica agimos porque respondemos à missão deDeusdelevarjustiçaepazaomundo.

    Temos a esperança de que este documentovenhaainspiraras igrejasea famíliaecumênicano sentido de enfrentar as complexas questõesreferentes à injustiça econômica, que é o maiordesafiodanossaépoca.

    Gostaria de concluir com um caloroso agra-

    decimentoatodasaspessoaseorganizaçõesecu-mênicasqueparticiparamatéaquidesteprocessoe contribuíram para os resultados que apresen-tamos. Foi extraordinária a jornada que o CMIempreendeu juntamente com numerosos e dife-rentes parceiros e amigos. Todos os envolvidosna elaboração deste documento merecem umagradecimentoespecialporseutrabalhodedicadoeengajado.

    Genebra,marçode2005

    Queiraenviarsuasreaçõesa:AGAPEJusticePeaceandCreationTeamWorldCouncilofChurchesP.O.Box2100CH-1211Geneva2Suíç[email protected]

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  • Ele ama a retidão e a justiça; a terra está cheia da benignidade do Senhor

    (Sl 33,5)

    1.1 o processo ÁGape

    O desafio ÁGAPE é uma resposta à questão levantadana assembléia do Conselho Mundial de Igrejas em Harare,Zimbábue,em1998:“Comoviveremosnossafénocontextoda globalização?”1 Igrejas e a família ecumênica maior, oque inclui comunhões mundiais, organizações ecumênicasregionaiseministériosespecializados,têmpelejadocomestaquestãoaolongodosúltimosseteanos.

    Numasériedeconsultaseestudossobreglobalizaçãoeco-nômica2,elas foramorientadaspela seção sobreglobalizaçãono Relatório da Assembléia de Harare que reconheceu osdesafiospastorais,éticos,teológicoseespirituaisqueagloba-lizaçãocolocapara as igrejas eomovimentoecumênico. “Alógicadaglobalizaçãoprecisaserdesafiadaporumaformadevidaalternativadecomunidadeemdiversidade”3.Osdelega-dosdaassembléiareivindicaramumavisãodaecumenedaféesolidariedadequemotiveeenergizeomovimentoecumêniconosentidodesuperaroparadigmaglobalizadodedominação.

    Seisanosdepoisaglobalizaçãoneoliberalcolocaumdesafioaindamaiorparaas igrejas,paraospovoseaTerra, sendoaindamaisurgenteanecessidadededesenvolveralternativas.Naassem-bléiadoCMIemPortoAlegreem2006espera-sequeasigrejaseafamíliaecumênicadêemumpassoalémdacríticaàglobalizaçãoneoliberalparadesenvolverumavisãodeummundojusto,com-passivoeinclusivo,eparasecomprometercomreaçõesconcretasembasadasemalternativasviáveis.OtemadaassembléiadePortoAlegre,“Deus,emtuagraça,transformaomundo”,orientaráade-quadamenteochamadoÁGAPEparaação.

    Talvisãopodetornar-serealidadesomentequandoajus-tiçaeconômicaeecológicaforenfrentadademodoholístico,comparticipaçãodemocráticaemtodososníveis.Estavisãonão pode ser alcançada enquanto a superabundância mate-rial usufruídapor umapequenaparte da comunidade globalcontinuarcrescendonacaraemuitasvezesàscustasdaabjetapobrezadamaioriadessacomunidade.Isto intensificaníveisinadmissíveis de iniqüidade em nosso mundo. A insaciávelsede de poder, ganhos e posses que motiva corporações,alguns indivíduos e grupos sociais, é insustentável e privamuitas comunidades da capacidade de suprir suas própriasnecessidadesemharmoniacomomeioambiente.

    As Vozes das Mulheres sobre ÁGAPE resumiram essaslições aonosdizer: “Não temosmedodedizer quevivemosnumaépocadeimpério.Aousarmosotermo‘império’referi-mo-nosàuniãodepotênciaseconômicas,culturais,políticasemilitaresqueformamumsistemaglobaldedominaçãodiri-gidoporpoderosasnaçõeseorganizações”afimdeprotegeredefenderseusprópriosinteresses.Mulheresdohemisfériosuledo lestedaEuropa reivindicaramque se acabecomestru-turas, instituições e políticas injustas e com a “insegurançae frustraçãoprovocadaspelomodeloneoliberal, infligidasàsmulheresdoberçoàsepultura”4.

    Um grupo ecumênico de 38 pessoas se reuniu emGenebra,Suíça,entre22e24dejunhode2004paraprepa-rarumdocumentoinicialsobre“AlternativadeGlobalizaçãoAbordandooPlanetaeaEcumene”(ÁGAPE),preparandoapróximaassembléiadoCMI(2006)emPortoAlegre.Trata-se de um documento das igrejas para as igrejas. Ele esboçanovos desafios e possibilidades para reflexão e engajamentocom base no tema da assembléia de 2006: “Deus, em tuagraça,transformaomundo”.

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    PArTe1o desafio

    áGAPe

    1) Desde o começo deste processo o CMI fez uma clara distinção entre globalização enquanto processo histórico multifacetado e a forma atual de um funesto projeto econômico e político de capitalismo global. Esta forma de globalização se baseia numa ideologia que os grupos e movimentos envolvidos no Fórum Social Mundial chamaram de “neoliberalismo” (cf. parte 3.2 deste documento). Esta distinção entre as duas noções de globalização foi introduzida pelos Seminários Copenhagen para o Progresso Social, cf. Jacques Baudot (ed.), Building a World Community. Globalization and the Common Good [A Construção de uma Comunidade Mundial], Royal Danish Ministry of Foreign Affairs: Copenhagen 2000, p. 44s.

    2) Desde o processo de Harare até a assembléia atual [Porto Alegre], vide Apêndice.3) Diane Kessler (ed.), Together on the way. Official report of the eighth assembly of the World Council of Churches [Juntos a caminho. Relatório

    oficial da 8ª assembléia do Conselho Mundial de Igrejas], Geneva: WCC, 1999, p. 258; v. tb. Richard Dickinson, Economic globalization: deepening challenge for Christians [Globalização econômica: desafio crescente para os cristãos], Geneva: WCC, 1998

    4) Formulação extraída da mensagem da consulta “A Voz das Mulheres sobre Globalização Comprometida com a Humanidade e o Planeta Terra” (Women’s Voices on Alternative Globalization Addressing People and Earth, WV-AGAPE), Antipolo City, as Filipinas, agosto de 2004.

  • 1.2 por uma economia da vida

    Em 2003 existiam 7,7 milhões de pessoas que possuíam 1milhãodedólaresoumais.Asomadasuariquezaalcançava28,9trilhõesdedólares,ouquasetrêsvezesoPIBdosEstadosUnidosnaquelemesmoano.Enquanto isso,840milhõesdepessoasemtodoomundoestavamsubnutridas,e1,5bilhões,amaioriadasquaissãomulheres,criançasePovosIndígenas,tinham para o seu sustento menos que um dólar por dia.Os 20% mais ricos do mundo consomem 86% dos bens eserviços globais. A renda anual dos 1% mais ricos equivaleàdos57%maispobres,epelomenos24milpessoasmorremtodososdiasdepobrezaedesnutrição.Problemasambientaiscomoaquecimentoglobal,esgotamentode recursosnaturaise perda da biodiversidade representam ameaças cada vezmaiores.Perderemos,porexemplo,entre30e70%dabiodi-versidadedomundonumperíodode20a30anos.Háguer-rasemmuitaspartesdomundo,eamilitarizaçãoeviolênciaentraramemnossaexistênciacotidiana.Crisesfinanceirassetornarammaisfreqüenteseintensas.Portodaapartesevêodesemprego ameaçando o sustento das pessoas. Em suma: avidahumanaeaTerraestãosobgraveameaça.

    Muitos chamam deneoliberalismo a ideologia subjacentequepromoveebuscalegitimarestaconcentraçãodemultiface-tadasestruturasdepoder.5Essaideologiasemanifestanocapi-talismo neoliberalenaglobalização neoliberal.6Nestaperspectiva,oneoliberalismocobrecomummantoideológicooprojetodaglobalização econômica que expande o poder e a dominaçãopormeiodeumaredeinterligadadeinstituiçõesinternacionais,políticasnacionais,práticasempresariaisedeinvestimentobemcomodecomportamentoindividual.Emessência,oneolibera-lismotransformasereshumanosemmercadoriasereduzopapeldos governos nacionais ao de assegurar o desenvolvimentosocialharmoniosoesustentável.Eledáextremaimportânciaaocapitalprivadoeaoschamados“mercadosdesimpedidos”paraadestinaçãoderecursosepromoçãodocrescimento.

    Centradonocapital,oneoliberalismotransformaatudoe a todos em mercadorias que estão à venda por um preço.Tendotransformadoaconcorrêncianoethosdominante,elejoga indivíduo contra indivíduo, empresa contra empresa,raça contra raça e país contra país. Suapreocupação comariqueza material acima da dignidade humana desumaniza oserhumanoesacrificaavidapelaganância.Trata-sedeumaeconomiadamorte.

    Confrontados com essa concentração maciça de podereconômico,político,militareideológico,somosencorajadosanãoperderasesperanças.Nãodevemosdesistirdalutaporumaeconomiadavida.EsteéodesafioqueDeusnoscoloca.NossafidelidadeparacomDeuseparacomagratuitadádivade Deus que é a vida nos obriga a fazer face a concepções

    idólatras,sistemasinjustos,àpolíticadedominaçãoeexplo-ração na atual ordem econômica do mundo. Economia ejustiçaeconômicasempresãoquestõesdeféquandoatingemoâmagodavontadedeDeusparaaCriação.

    Uma economia da vida nos alerta para as principaiscaracterísticasdaeconomiadeDeusparaavida:

    • AprodigalidadedaeconomiagraciosadeDeus(oikonomia tou theou)proporcionaemantémabundânciaparatodos;

    • AeconomiagraciosadeDeusexigequeadministremosaabundânciadavidadeformajusta,participativaesusten-tável;

    • AeconomiadeDeuséumaeconomiadavidaquepromo-veapartilha,asolidariedadeglobalizada,adignidadedaspessoas,oamorecuidadopelaintegridadedaCriação;

    • AeconomiadeDeuséumaeconomiaparatodaaecume-ne–todaacomunidadedaTerra;• A justiça de Deus e sua opção preferencial pelos

    pobressãomarcasdaeconomiadeDeus.7

    3.3 chamado a que as igrejas se tornem comuni-dades transformadoras

    Paulo descreve o sistema global do seu tempo (oImpérioRomano)comomarcadopela“idolatriae injustiça”(Romanos1,18).Todasaspessoasepovosestãopresasnessaprisãodaganância(Romanos1,24ss)sobopoderdopecadoqueconduzàmorteeàdecadênciadetodaaCriação.Mesmose quisessem sair, não conseguiriam (Romanos 7,14ss).Entretanto, a graça de Deus cria uma nova humanidade apartir de todos os povos (Romanos 5,18), pelo Espírito deCristo (Romanos 8). Toda a Criação geme ansiando porentrarnessa liberdade(Romanos8,19).Ospoderesegover-nantes de nenhum império conseguem separar do ágape deDeusessascomunidadesnoespírito(Romanos8,31-39).

    Nós, igrejas e crentes, somos chamados a encarar a rea-lidadedomundodesdeaperspectivadaspessoas,particular-mentedaspessoasoprimidaseexcluídas.

    Somos chamados a ser comunidades não-conformistas etransformadoras. Somos chamados a nos deixar transformarmediantea libertaçãodasnossasmentesdaposturaimperialdominadora,conquistadoraeegoísta,assimpraticandoavon-tadedeDeus(deacordocomaTorá),aqualécumpridaemamor (ágape, em grego) e solidariedade (Romanos 13,10, 1João3,10-24).Comunidadestransformadorassãotransforma-daspelagraçaamorosadeDeus.Elaspraticamumaeconomiadesolidariedadeecompartilhamento.

    AsboasnovasdePaulosãoque,caraacaracomosprin-cipados e poderes de hoje, um outro mundo é possível. As

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    5) Confira a seção 2.2 para a explicação sobre as origens da teoria do neoliberalismo.6) A escola econômica do monetarismo obteve grande influência política nos Estados Unidos e no Reino Unido durante a era Reagan e Thatcher. O

    mantra dos seus proponentes é que o Estado se retire da regulamentação econômica, é a liberalização, privatização e desregulamentação. Na reunião do G7 em 1982 em Cancún (México) adotou-se esta abordagem, a qual começou a conformar as economias nacionais e suas trocas. Ao ser introduzida no discurso das instituições financeiras internacionais, ela também foi denominada “Consenso de Washington”.

    7) Quatro dessas cinco características refletem os “Critérios para a elaboração de políticas econômicas” apresentados no documento de estudos do CMI sobre “Fé cristã e economia mundial hoje” (Christian faith and the world economy today, Geneva: WCC, 1992, p. 29 ss). Este documento foi impor-tante passo para a compreensão de que assuntos econômicos efetivamente são assuntos da fé.

  • tradiçõescristãs,emconjuntocomasabedoriadeoutrasreli-giõeseculturas,podemcontribuirparaestavisãodavidaemrelaçõesjustasimplementadaspeloEspíritodeDeus,alémdepoderemproporcionarvisõesinspiradorasparaalternativas.

    Na qualidadede igrejas somos chamados a criar espaçosparaatransformaçãoenostornaragentesdetransformação,mesmoseestivermosenredadosemancomunadoscomopró-priosistemaacujamudançasomoschamados.

    Presenciamos a violação maciça da dignidade humanae da integridade da Criação. Estamos confrontados com osofrimento, a descomunal disparidade econômica e social,pobreza abjeta e destruição da vida resultantes do modeloneoliberal de globalização econômica. Como igrejas preci-samosaceitareassumiravocaçãodedesafiaropensamentodos tempos atuais, de sermos transformados nós própriospela graça de Deus e de, com ousadia, desenvolver estra-tégias visionárias de longo prazo. Trata-se de uma tarefapastoral e espiritual de as igrejas enfrentarem a falsa espi-ritualidade da conformidade e de encorajar fiéis cristãos ecomunidadesde féaabraçarumaespiritualidadedevidaetransformaçãoenraizadanagraçaamorosadeDeus.Édestaformaqueágape, o amoraDeuse aopróximo, é traduzidaemvidasocialeeconômica.

    Somos chamados a estar juntos com o povo que sofre ecom a Criação que geme, em solidariedade com aqueles eaquelas que estão construindo comunidades alternativas devida. O lugar das igrejas é onde Deus está atuando, Cristoestá sofrendoeoEspíritoestácuidandodavidae resistindoaosprincipadosepoderesdestrutivos.Asigrejasqueseman-tiverem distantes desse lugar concreto do Deus Triúno nãopodemafirmarquesãoigrejasfiéis.

    No contexto da globalização neoliberal, as igrejas sãochamadas a assumir um compromisso explícito e públicoempalavrasde fé e atos.Formasnasquais as igrejaspodemexpressarsuafidelidadesão:

    • Optandoporumdiscipuladomuitocustoso,estandopre-paradasparasetornarmártiresaoseguiraJesus;

    • Assumindo um posicionamento de fé quando os pode-res da injustiça e da destruição questionarem a própriaintegridadedoevangelho;professandosuafédizendoum“NÃO!”muitoclaroaospodereseprincipados;

    • Participando na comunhão (koinonia) do Deus Triúnopelaplenitudedavida;

    • Compartilhando o sofrimento e a dor das pessoas e daTerranacompanhiadoEspírito,queestágemendocomtodaaCriação(Romanos8,22-23);

    • PactuandoemfavordajustiçanavidaconjuntacomospovoseoutrascriaturasdeDeus;e

    • Solidarizando-secomaspessoassofredorasecomaTerraeresistindoaospoderesdainjustiçaedestruição.

    NaqualidadedefielpovodeDeus,asigrejasemconjuntose tornam um movimento que abraça as espiritualidades davida em favor de toda a comunidade da Terra. Isto implicadar testemunho do Espírito dinâmico e criador de Deus nouniverso.

    Em cada momento histórico a fidelidade para com esse

    chamado exige auto-exame crítico. Onde formos cúmplicesdesistemasdedominaçãoeinjustiça,precisamosarrepender-nos.Osministériosdapregaçãodoevangelhoedacelebraçãodos sacramentos podem ficar comprometidos quando asigrejasestiveremmancomunadascom injustiças sistêmicasea exploraçãodavida.Neste sentidoopapeldas igrejas faceàglobalizaçãoneoliberalnãoéexclusivamenteumaquestãodeministérioproféticoe justiçasocialaserviçodavida.Naverdade, a tarefa atingeoâmagodavocaçãoevangélicadaspróprias igrejas:de intermediarochamadodeDeusaoarre-pendimento do pecado e da morte e de abraçar o reino deDeusesuajustiçaevidaparatodos.

    As igrejas são desafiadas a se juntar à luta por justiçamediante resistência contra poderes injustos e destruidorese trabalhando em prol da construção de uma sociedadeÁGAPEqueatravessecrençasreligiosas,culturasemovimen-tossociais,sejanalutalocal,regional,continentalouglobal.

    Afidelidadeexigequeenfrentemosnossomedoeprocu-remos ser libertados do nosso cativeiro. As igrejas precisamser comunidades de esperança, oferecendo novas visões devida,tirandoaspessoasdodesesperoeinvocandoopoderdoEspírito.Tornemo-nos,pelagraçadeDeus,a fielcomunhãodossantos,queanunciaoevangelhodoamoredajustiça,eojubileuparatodaaTerra.

    Por toda a Terra existem pessoas que não se deixaramprender peloneoliberalismo; pessoas que estão encontrandonovas maneiras de sobreviver às crises que a globalizaçãoneoliberal tem provocado; pessoas que exerceram o direito,dado por Deus, de dizer “não” e que retomaram o controlesobrea suavida.Essadiversidadedeeconomias florescentescontrasta nitidamente com o padrão uniforme da globaliza-çãobaseadanomercado.

    Uma economia baseada na cooperação, reciprocidade esolidariedadeé uma economia da vidanamedidaemque:

    • superadivisõessociais;• reúnepessoaserecursosparaobemdecadapessoaecada

    comunidadenasociedade;• exige solidariedade com responsabilidade, reconhecendo

    nossainterconexãocomoutrosecomtodaaCriação;• ligaoquefoidivididoeuneoquefoiseparado;• se fia emqueaspessoas assumama responsabilidadede,

    esetornemcapacitadasa,gerenciarseuprópriosustentoindividualecomunitário,desenhemsuaprópriahistóriaedesenvolvamseusprópriosatributosepotenciais;

    • substitui o capital pelo trabalho, conhecimento e criati-vidade das pessoas como forças propulsoras da atividadeeconômica;

    • adotadireitos individuaisesociaiscomoreferencialparaoplanejamentoeaimplementaçãododesenvolvimento;

    • permitequeindivíduos,comunidadesenaçõescooperemnaconstruçãodeumaglobalizaçãobaseadana solidarie-dade.

    Umaeconomiadavidanãoéumfimemsimesmo,masummeioquepermiteacuraeodesenvolvimentodaspessoas,dasociedadeedaTerra.Taleconomiatraduzágapeparaaprática.

    ■ �

  • O ladrão vem só para roubar, matar e destruir. Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância.

    (João 10,10)

    2.1 vida ameaçada

    Aeconomiadivinadavidaestáameaçadadeváriasmanei-ras.Vivemosnumaépocadeperigososparadoxos.Oparadigmaeconômiconeoliberaldo“livremercadoglobal”acumulou,deumaformanuncavista,maisriquezamaterialdoquejamaisseviunasmãosdeumapequenaminoria.Osprópriosprocessodecriaçãodariquezaderamorigemamaciçasdesigualdadesbemcomo a tendências altamente desestabilizadoras. A vida dospobresestásendosacrificadaemfavordosganhosdosricos.

    Hoje em dia 1,5 bilhões de cidadãos e cidadãs do nossoplaneta, a maioria dos quais são mulheres, crianças e PovosIndígenas, têm para o seu sustento menos que um dólar pordia. Os 20% mais ricos do mundo consomem 86% dos bense serviços globais.A rendaanualdos1%mais ricos equivaleàdos57%maispobres,epelomenos24milpessoasmorremtodososdiasdepobrezaedesnutrição.Problemasambientaiscomo aquecimento global, esgotamento de recursos naturaise perda da biodiversidade representam ameaças cada vezmaiores.Perderemos, por exemplo, entre30 e70%dabiodi-versidade do mundo dentro de 20 a 30 anos. Há guerras emmuitaspartesdomundo,eamilitarizaçãoeviolênciaentraramemnossa existência cotidiana.Crises financeiras se tornarammaisfreqüenteseintensas.Portodaapartesevêodesempregoameaçandoosustentodaspessoas.

    Atualmenteemquasetodosospaísesdomundoodinheiroepadrõesmonetáriosocupamumlugarcentral,particularmen-te no sentido de que crescimento econômico é identificadocomacumulaçãode capital.Mercados financeiros e empresastransnacionais sistematicamente saqueiam a Terra para obterganhosacurtoprazo.Acrençadequeocrescimentoeconômi-coempresarialbaseadonomercadopodesustentarodesenvol-vimentoéilusória.Arealidadesemprevoltaacontradizeressacrençaingênua.Apressãonosentidodemanteracredibilida-

    deeacompetitividadenomercadoglobalprejudicamavonta-depolíticados governosdecriar e implementarumapolíticasocialnacionalforte.Ocolapsodasredesdeseguridadesocial,cortesdedespesasparasaúdeeeducação,eafaltadeproteçãodoecossistemarefletemofatodequeosgovernosperderamocontrolesobresuasfinanças,orçamentosepolíticas.

    2.2 crítica do paradigma do atual sistema

    Cadaeraeconômicatemumaideologiaqueprocuralegiti-maraspolíticasepráticasquebeneficiamosinteressesdomi-nantes da época. Essas ideologias aparecem e desaparecem,namedidaemquesuamaneiradeencararavidaeconômicae social é contestada e finalmente substituída por uma novaortodoxia.Comooutrasantesdelas,cadanovaideologiaeco-nômicaprecisaservigorosamentetestadasegundoospadrõesdajustiçadeDeusesegundooimpactorealdosistemasobreavidadospobresesobreobemestardacomunidadeterrena.Seelanãopassarnesseteste,precisaserrejeitada.

    Aideologiasubjacentequepromoveeprocuralegitimaraconcentraçãodemultifacetadasestruturasdepoder foi rotu-lada de “neoliberalismo”. Este se manifesta no “capitalismoneoliberal”ena“globalizaçãoneoliberal”8.Muitosacreditamque o neoliberalismo serve de manto ideológico para umprojetodeglobalizaçãoeconômicaqueexpandeopodereadominaçãopormeiodeumarede interligadade instituiçõesinternacionais,políticasnacionais,práticascorporativasedeinvestimentobemcomocomportamentoindividual.

    Em essência, o neoliberalismo quer tirar dos governosnacionais o poder de proteger bens e serviços públicos. Eledá, portanto, a maior importância ao capital privado e aosassimchamadosmercadosdesimpedidosnointuitodealocarrecursos com eficiência e promover o crescimento. Assimsendo, ele cancela a função do Estado de promover o bem-estarsocial.

    ■ �

    PArTe2Apelo por

    uma economia áGAPe da vida

    8) Há boas razões para se ressaltar que continuam valendo os elementos básicos da ideologia neoliberal como ela se desenvolveu na situação que se seguiu à Segunda Guerra Mundial como reação contrária ao socialismo e ao Keynesianismo. Vide por exemplo R. Crockett, Thinking the unthinkable: think-tanks and the economic counter-revolution [Pensando o impensável: grupos de pensadores e a contra-revolução econômica] 1931 – 1983, Harper-Collins, London 1994; B. Walpen, Die offenen Feinde und ihre Gesellschaft. Eine hegemonietheoretische Studie zur Mont Pèlerin Society [Os inimigos declarados e sua sociedade. Estudo da teoria da hegemonia, referente à Sociedade Mont Pèlerin], VSA-Verlag, Hamburg , 2004.

  • Afachadacientíficadoneoliberalismoconquistoumuitasinstituições,governoseomeioacadêmicoemtodoomundo.Oneoliberalismopressupõe:

    4 quesomentequemtempropriedadeouquempodeparti-cipardecontratostemdireitodeparticipardaeconomiaedasociedade.EntretantoasdádivasdeDeusestãodesti-nadasaousodetodososviventes,nãosódospoucosqueacumulamriqueza;9

    4 ummundonoqualosindivíduoseascorporaçõesempre-sariais são motivadas pelo interesse próprio e no qual asociedade não passa de um conjunto desses indivíduosquebuscamseuprópriointeresse;acontece,porém,queasrelaçõeseconômicassempreestãoembutidasnasrealida-dessociais,culturaisepolíticasdaspessoas;

    4 quetudoeamão-de-obradetodomundopodeserobjetodepropriedadeecomercializaçãoporumpreçonomerca-do.EntretantoaCriação,naqualseincluiahumanidade,tem uma essência espiritual, valor e sentido intrínsecosdados por Deus, que não podem ser transformados emmercadorias;

    4 que o crescimento econômico por meio de mercados“livres” é de suma importância; o neoliberalismo alegaque somentepormeiodessemodeloeconômico sepodeeliminarapobreza,garantirdesenvolvimentosustentável,alcançaraequiparaçãodosgênerosefinalmentealcançaros Objetivos de Desenvolvimento do Milênio da ONU;entretantoaexperiênciaconcretadaspessoasmostraqueo crescimento econômico impelido pelo mercado é ine-quitativo,insustentáveleirreconciliávelcomjustiçaeco-nômicaecomumaeconomiaqueproporcionecuidado;

    4 quemercadosdetrabalhodesreguladossãoessenciaisparaacriaçãodenovosempregoseoportunidadesparaostra-balhadoresnumaeconomiaglobalcompetitiva;entretan-toadivisãointernacionaldotrabalhopremiavisivelmen-teumaelitedeproprietários,levandoàruínaamaioriadapopulaçãodomundoemfunçãodadessindicalização,dodesemprego estrutural, da exploração em zonas de livrecomércioeemformascontemporâneasdeescravidão;

    4 queocrescimentoeconômicoexigeumprocessodinâmi-co de “destruição criativa”: “permite-se” que atividadesineficientes morram enquanto que empreendimentosbem sucedidos emergem, aproveitando novas tecnolo-gias; entretanto existe um esquema óbvio de contínuareestruturação designado a manter e promover os lucrosdas empresas globais mediante sacrifício de pessoas eda Terra. A “destruição criativa” na verdade promove asobrevivência dos mais aptos e a não-sobrevivência dosfracos, contradizendo a visão bíblica do cuidado e doamorpelospobresevulneráveis;

    4 que os traumas econômicos, pessoais e sociais causadospelosprogramasde“ajusteestrutural”sejustificamcomodordecurtoprazonecessáriaparaoganhodelongoprazo.A suposição édeque a riqueza recém-criada aospoucoschegue aos pobres; entretanto a experiência em todo omundo é de que “ajuste estrutural” redistribui riqueza e

    poderdospobresparaosricos,agravandoadesigualdadeestrutural.Adefesadessainsustentávelrealidadechegaaseruma“teologiaeconômicadosacrifíciohumano”;

    4 queosmercadossempresãomaiseficientesqueoEstado.O neoliberalismo presume que “bom governo” existeonde os governos liberam os mercados e restringem seusoberanodireitodedeterminarsuasprópriaspolíticas,ouseja,promovemprivatizações,dolarizaçãoea implemen-taçãodeacordosde“livrecomércio”;quandonãosecon-seguecumpriressaspolíticas,quandoelasfalham,umavezimplementadas, deixando de produzir os benefícios pro-metidos,atribui-seessefracassoao“maugoverno”,enãoaoprópriomodeloneoliberal;entretantoacompreensãomais fundamental de democracia, justiça e auto-deter-minaçãosublinhaqueaúnicaformadegarantirgenuínobomgovernoépelaregulaçãodocapitaledosmercadospara atender as necessidades das pessoas, definidas pelasprópriaspessoas;

    4 que mercados livres, livre comércio, auto-regulação e aconcorrêncialiberarãoa“mãoinvisível”domercadoparao benefício de todos. Entretanto não há nenhuma forçadivinaqueorienteosmercados; sugerirqueosmercadosteriamessepodersalvadorchegaaserumaidolatria.Dequalquerforma,mercados“livres”nãosãolivres.;omitodo capitalismo de mercado “desimpedido”, “não-regula-do”, “não-controlado” precisa ser contestado de frente.Arealidadeéqueosmercadoseocapitalsãoaltamentecontrolados para garantir o máximo de benefícios paraos donos do capital. A liberalização “libera” o capital eosmercadosdeobrigações sociais, sendopor isso imorale irresponsável por definição. Essa “liberdade” é con-seguida mediante a atuação dos países que dominam asinstituições internacionais do FMI, Banco Mundial eOrganizaçãoMundialdoComércio(OMC);

    4 que a integração na economia global beneficiará em

    ■ �

    9) Cf. U. Duchrow/F.J. Hinkelammert, Property for People, Not for Profit: Alternatives to the Global Tyranny of Capital [Propriedade para a gente, não para o lucro: Alternativas para a tirania global do capital], WCC, Geneva 2004. Ali, na p. 69, confira a reveladora citação de Friedrich v.Hayek, um dos mentores da ideologia neoliberal: “Uma sociedade livre precisa de uma moralidade que em última análise se reduza à manutenção da vida – não manutenção de toda a vida, uma vez que poderia ser necessário sacrificar vida individual a fim de salvar um número maior de vidas. Esta é a razão pela qual as únicas regras da moralidade são aquelas que levam ao ‘cálculo da vida’: propriedade e contratos”.

    © Philip Greenspun

  • últimaanáliseacadapaíseempoderaráacadaindivíduo,ainda que alguns tenham ganhos maiores que outros.Entretantoolegadodoneoliberalismoéoaprofundamen-todadesigualdadederiquezaepoderentreasnaçõesenoseiodasnações.Àmedidaemqueaumentamainstabili-dade,oressentimento,resistênciaerejeição,aeconomiaglobal faz lembrar períodos anteriores do colonialismo,quedependia,parasuaproteção,deníveiscadavezmaio-res de repressão e militarização. Em outras palavras, àmedidaqueosmercadossetornamglobais,omesmosedácom os mecanismos que os protegem. Nos últimos anostemos presenciado a dramática convergência da globali-zação econômica comahegemoniapolítica emilitar deumarededepoderimperial.

    Muitagentesesenteperplexaeimpotentefaceaomaci-ço abuso de poder econômico e político mal-distribuído epelo uso arrogante da força militar. Jesus fala do mâmon[dinheiro ou riquezas] e do império quando tais poderesforçamaspessoas e anatureza a se conformar ao espírito elógicadeles,equandoavidaésacrificadaparaamanutençãodeles. Experimentamos esta realidade de variadas maneirasemdiferenteslugaresesituaçõessociais,semprequepoderesdestinadosaserviràvidadegeneramemestruturasdepecadoemorte.

    Em suamensagem“Sirva aDeus,nãoaomâmon”,par-ticipantesdeumaconsultasobreglobalizaçãoemBudapesteemjunhode2001enfocaramexatamenteessasestruturasdepecadoemorteeconclamaramasigrejasatomarumaposi-ção decidida contra o mâmon, argumentando da seguinteforma:

    “Aodesafiaraglobalizaçãoeconômicaaigrejaéconfron-tadacomaspalavrasdeJesus‘NãosepodeserviraDeuseaomâmon’(Mt6,24).Seráqueasigrejasterãoacoragemdesecomprometercomos ‘valores’deumestilodevidavoltadopara o lucro como uma questão de fé, ou será que elas seretirarãoparaaesfera ‘privada’?Estaéaquestãoquenossasigrejas precisam responder ... se não quiserem perder a suaprópriaalma!”

    “Amensagemdoevangelhoassimcomonossastradiçõesnos ensinam que não devemos nem ser coniventes com ospoderesdominantesnestemundo,nemfugirdasnossasres-ponsabilidadesemexpressõesparticularesdefé.[...]Urgimosàs igrejas que levantem sua voz profética para que hajamudançasembenefíciodecadaindivíduoemtodasaspartesdomundo.Nossamissãoétransformaravidaaonossoredoreresponderàsnecessidadesdetodosossereshumanos,espe-cialmentedaquelesqueestãosofrendo,sãooprimidosemar-ginalizados.Aofazê-lo,estaremosproclamandoaCristo.” 10

    Assimsendo,nossafidelidadeparacomDeuseparacomagratuitadádivadeDeusqueéavidanosobrigaaenfrentarsuposiçõesidólatras,sistemasinjustos,políticasdeexploraçãoe dominação emnossa atual ordemeconômicamundial.AeconomiaeajustiçaeconômicasempresãoquestõesdefénamedidaemqueatingemoâmagodavontadedeDeusparaaCriação.

    para continuar a reflexão:

    - Você consegue identificar estruturas opressivas queimpactamoseucontexto?

    -queprecisamudarseocritériodecisivoéasituaçãodospobreseavidaemrelaçõesjustasunscomosoutrosecomaCriação?

    -ComopoderáoamoraDeuseoamoraopróximoper-mear as atividades econômicas em nível individual, nascomunidadeslocaisenasestruturaseinstituiçõesnacionaiseinternacionais?

    2.3 Ágape: o amor é justo e generoso como a graça de Deus

    Somosencorajadosanãoperdernossasesperançasenãodesistirdeconfrontararealidadeaonossoredorcomnossavisãodeumaeconomiadavida.Osagradopresentedavidaque é dádiva da graça de Deus, não nos sera tirado. Aoinvés, elaéaprópriabaseepoderparacriareviveralter-nativascontraasforçasdamorteedadestruição.Eladerivaseu poder do ágape, do amor do Deus triúno que permeiatodaaCriação.

    EstefocosobreágapesalientaqueaTerraetodaavidatêmsuasorigensemDeusepertencemaDeus.Elasnão sãopro-priedades da humanidade, de modo que pudessem ser trans-formadasemcommodities(Lv25,23;Sl24,1).ACriaçãonãopertenceaossereshumanos,masossereshumanospertencemàCriação,eaCriaçãoédeDeus.RelaçõesdeágaperefletemquetodaavidatemsuaraizcomumnagraçagratuitadeDeusenoamorvivificadordeDeus.GraçaéopoderqueDeustemdesustentarerenovaraCriaçãoedenosreconduzirdamorteparaavida.Adiscriminação,exclusãoedistribuiçãodesigualda riqueza e do poder negam os valores da comunidade deágapeeviolamomandamentodeamaraDeuseaopróximo.

    As relações de ágape afetam todas as dimensões davida. Vida implica dispor de alimento, vestimenta, abrigo,educação,trabalhoesaúde.Incluiinserçãosocial,relações,funçõesecuidadossociais.Istoimplicaterconsciênciadesi,realização própria, experienciar e celebrar comunidade e aparticipaçãonadádiva.Plenitudedevida,avidaabundanteoferecida por Jesus, abrange tudo isto. Ao mesmo tempoágaperealçaovalordaresistênciaeabuscaporalternativassempre e onde quer que vida, a qual temum sentido, sejareduzida a crescimento econômico e lucro às custas dasnecessidades da comunidade terrena e de sua relação comDeus.OmundoéumíconedeDeus.CadaclamordaTerrae do seu povo a sofrer desafia as igrejas a buscar a transfi-guração que Deus, em amor, realiza na humanidade e naCriação.

    2.4 a importância fundamental da justiça tran-sformadora

    Cada forma de poder está sujeita à tentação de se fazerabsoluta,semterqueprestarcontasaosafetadosenegandoas

    ■ 10

    10) Para entender mâmon e império no evangelho vide Warren Carter, Matthew: Mammon and Empire. Initial Explorations [Mâmon e Império. Investigações Iniciais], Harrisburg, PA: Trinity Press International, 2001.

  • múltiplasrelaçõesqueconstituemarededavidaequepreci-samserrespeitadasereconhecidas.11

    A tradição bíblica inclui certas salvaguardas destinadasa evitar e corrigir o acúmulo de poder injusto bem como oabusoeusoindevidodaCriação.Umadasleiscoibidoraséaproibiçãodecobrarjuros.Certasleiscorretivastratamespeci-ficamentedetrêsaspectosdosábadoedojubileu,referentesaorepousoperiódico:

    4 osábadocomodiadedescanso;4 oanosabático;e4 oanodejubileu.

    Jesusapresentasuaprópriamissãocomojustiçade jubi-leuaolerorolodaescrituradeIsaíasemCafarnaum(Lucas4).Atradiçãodo jubileuprevêoacessoa recursosemprolderelaçõesjustascomoutraspessoas,comosanimaisecomaTerra.AjustiçademandaumatransformaçãoprofundadasrelaçõesnoseiodasociedadeecomaTerra.

    Segundo esta concepção, justiça, a qual ela própria édádivadagraçadeDeus,é“justiçatransformadora”,expres-são esta cunhada no trabalho do CMI pela superação doracismo.Justiçatransformadoraenfatizaatarefaconstrutivadeedificarcomunidadesjustas,participativasesustentáveisondequerquesereshumanossevejamobrigadosasuportaras conseqüênciasdadesigualdadeedaexclusãodo sistemaeconômicoepolítico. Injustiçaéaexclusãosistemáticadepessoas das decisões que afetam suas comunidades. Trata-se da destruição da sua capacidade de se auto-sustentar,auto-organizar e autogovernar para satisfazer suas própriasnecessidadeseasdaTerra.Justiçasomenteexistequandohádistribuiçãoeqüitativadosbenssociais,conformeserefletena legislação do jubileu. Ela também prestigia a afirmaçãodo jubileudequeaTerra temseuspróprios requisitosparasua própria regeneração. Entretanto no âmago da justiçatransformadora enquanto atuação humana estão o reco-nhecimento e a participação. Isto implica comunidades esociedadesque:

    4sejam genuinamente inclusivas e participativas (justiçapolítica,socialecultural);

    4estejamprontasacorrigiramádistribuiçãodepodereasuperarodescompassoentreosricosepoderososporumladoeospobresporoutro,sejanomesmopaís,sejaentrepaísesdiferentes(justiçaeconômica);

    4aceitemadependênciaqueahumanidadetememrelaçãoà Terra e apóiem formas sustentáveis de se organizar edesenvolverbemcomodecompartilharasriquezasnatu-rais(justiçaecológica).

    Opontofocaldestaformadejustiça,então,éoclaropri-vilegiamentodaparticipação,doreconhecimentomútuoedaatuaçãodecadamembrodeumacomunidade,assimcomoacríticadetodasasformasdeconcentraçãodepodernasmãosde poucos. O fruto da justiça transformadora é dignidadehumanaepaz.

    2.5 compartilhar a vida na mesa de Deus: exem-plo de uma economia ÁGAPE de vida

    Pode-sevislumbrar justiça transformadorana refeiçãoqueJesus teve com pecadores, a qual a igreja dos primeiros tem-posveioapraticarcomoeucaristia.Elacelebravaaeucaristiainseridanumarefeiçãodeágape,emantecipaçãoaobanqueteescatológico,queéacelebraçãofinaldavidaemsuaplenitude.Em Atos 2,42ss e 4,32-35 a comunidade cristã dos primeirostemposéretratadacomoumacomunidadesustentadaporumarelação recíprocaecomDeus, aqualnutriaoamoreavida,umacomunidadequecompartilhavaonecessárioparaavida,trocandohistóriasdeempoderamentoeesperança.

    Comoa refeiçãodoPessach(páscoa judaica),a refeiçãodoágapeéumarefeiçãotransformadora.Elarememoraa“memóriasubversiva”deumDeuslibertadorepropõeumaformadiferentedeestaremcomunidade.ComoarefeiçãodoPessach,arefeiçãodo ágape assinala uma transformaçãodeumaeconomia amea-çadoradavida, centradanoFaraó, isto é,nopoder, paraumaeconomiadeDeusquesustentaavidaeafirmaavida.OpovofoiresgatadodaescravidãoporqueDeusouviuseuclamorporjustiçaevida.Ashistóriasdebanquetesnosevangelhosrefletemclara-menteesseespíritodaopçãopreferencialdeDeuspelospobres.

    Refeições emconjuntonutremumaculturade amor, res-ponsabilidade e esperança. Vejamos uma observação de umasenhoraidosa,daÁfricadoSul:“Quandoagentecomejunto,sabemos que pertencemos uns aos outros. E quando batemosum papo, proporcionamos vida e dignidade uns aos outros,sabemos que somos responsáveis uns pelos outros. A igrejachama esse compartilhar de ágape, e estão certos. É thanda,amor,eparadizê-locomtodasasletras:nãoháalternativasàmorte”.(SibongileXumalo,Johannesburgo,outubrode2002).

    Umarefeiçãoigualmentecriaumelodosseusparticipantescom a comunidade maior de todos e todas que trabalharamparaproduziroalimento,eatémaisalém,comtodaaCriaçãoe com seu poder de conceder a vida e sustentar a vida. Arefeiçãodeágapenosdesafiaapermanecermosunidosemtes-temunho,liturgia,serviçoecomunhão(ouusandoseustermosgregos: martyria, leitourgia, diakonia e koinonia). Ela congregaculto,reflexãoeaçãocomoponteentrealiturgiadocultoealiturgiadavidacotidiana.

    A comunidade de ágape está em perigo em sua própriaessência e existência quando o ágape é entendido apenas emtermosespirituaisouapenasemtermosprofanoscomoconví-vioemmútuasimpatia.OamoraDeuseoamoraopróximoestãointimamenteinterligados.Sãoasvidaseasrelaçõesqueestãoemjogoquandosenegligenciaouignoraocaráteramo-rosoecompartilhadordoágape.para continuar a reflexão:

    - Como poderão o amor de Deus e o amor ao próximopermearasatividadeseconômicas,sejaindividualmente,seja em nossa comunidade ou nas estruturas e institui-çõesnacionaiseinternacionais?

    - ComoéqueagraçaamorosadeDeusempoderaanóseànossamissãonavidaeconômicaepolíticavisandojusti-çasocialeambiental?

    ■ 11

    11) A busca por alternativas procura restaurar a função original do poder, que é a afirmação da vida , poder este deve prestar contas ao Criador.

  • Ai dos que decretam leis injustas e dos escrivães que escrevem per-versidades, para prejudicarem os

    pobres em juízo, e para arrebatarem o direito dos aflitos do meu povo, e para despojarem as viúvas, e para

    roubarem os órfãos!

    (Isaías 10,1-2)

    3.1 Do livre comércio para o comércio justo

    Ocomércio tratade relaçõese trocadebense serviços.Ágape demanda reciprocidade, respeito e solidariedade emrelaçõesjustas.Justiçanasrelaçõescomerciaiséumprincípiobíblico.Amós,fazendoecoaoutrosprofetas,deploraaquelesque “praticam a fraude com balanças” e que “compram ospobresatrocodeprataeosnecessitadosporumpardesan-dálias”(Amós8,5s).Ajustiçaemfavordospobrescontinuasendoapedradetoquedequalquersistema.Aeliminaçãodadesigualdadeprecisaaplicar-seatodososníveisdocomércio.

    O sistema de comércio atual resultou em desigualdade einjustiçaglobais.Ocrescimentoeconômico ilimitadoeoacú-muloderiquezasãoosdoispilaresdoparadigmadominantequeimpelemo chamado “livre comércio”.O sistemade comércioatualsimplesmentetentaregularosmercadosembenefíciodosdonosdocapitale,assim,éinerentementeinjusto.Eleviolaosvaloresevangélicosdeamoraopróximo,participaçãoecompar-tilhamentojusto,tantoemtermosdoseureferencialinstitucio-nalquantodosvaloresqueorientamseufuncionamento.

    Acomunidadecristãéchamadaparaumpadrãoatémaisradicalaindadecompartilhamentoesolidariedade,earejei-tar a ótica segundo a qual tudo tem valor de troca.Ágape,à semelhançada eucaristia, constitui um símbolo e sinal derelações em amor, baseadas na autodoação e na partilha dopão entre todos. Uma “Economia ágape de solidariedade ecompartilhamento”éaquelanasquaisasrelaçõeseconômicasderivam de dádivas gratuitamente concedidas por Deus ecompartilhadassemreservas.Esteéocernedeumaespiritu-alidadedetransformação,dapromoçãoderelaçõesjustasnoconsumo,naproduçãoenocomércio.

    Por isso o comércio precisa ser configurado de modo aatenderaobjetivos-fim–produção, trocaeconsumoéticos,sustentáveis e eqüitativos de bens e serviços para satisfazeras necessidades de toda humanidade e da Terra. Sob estaperspectiva o comércio internacional é apenas um aspectodocomércio;outrosaspectoseníveisdocomérciomais sig-nificativos para os povos oprimidos e explorados do mundoprecisamserreconhecidoseserprivilegiados.

    O comércio solidário é um passo importante no reco-nhecimentodedesigualdadescomerciais,masajustiçaexigemuitomais.Preferimosfalardecomérciojustoquesejamoti-vado por um sentido de solidariedade e cuidado pela Terra.Isto inclui, mas certamente vai mais além de um sentidode compaixão. Comércio justo baseado na troca de bens eserviçosemníveislocal,nacionaleinternacionalequecom-plementa outras atividades econômicas que mantêm avida,oferece uma abordagem mais profícua para empoderamentoejustiçaeconômicas.Ocomérciojustopodemodificarsubs-tancialmenteavidadaspessoas.

    Paraqueissoocorra,osvaloreseestruturasfundamentaisdo mercado internacional precisam mudar. A simples refor-ma da organização institucional do mercado sem enfrentarproblemassistêmicosnãobasta.Opoderdaespiritualidadeeéticadavidaparatodos,conformesãopropostaspelasigrejas,proporcionaabaseparaenfrentaropoderincrustadoemrela-çõescomerciaisinjustasenariquezaacumulada.

    3.2 regras do comércio segundo a organização mundial do comércio

    É preciso pôr um freio no alcance cada vez maior dasregras do comércio “livre”. Comércio costumava signifi-car a troca comercial de bens nas fronteiras nacionais. AOrganização Mundial do Comércio (OMC) foi criada em1995 com o mandato de garantir e expandir o alcance dasregras do livre comércio. Desde então as regras comerciaistêmsidoampliadasnosentidodeabrangertrocasqueenvol-vam qualquer atividade que se possa imaginar comerciável,inclusive saúde, educação, água e patentes sobre formas devida.Aalegaçãodequeregrasinternacionaissobreserviços,investimentosepropriedadeintelectualtratamdo“comércio”é uma farsa cínica. Esses acordos, sejam eles multilaterais,regionaisoubilaterais,procuramgarantirqueascorporaçõestransnacionais tenham o direito de acesso e controle sobreo serviços sociais, financeiros, de transporte, comunicações,energia e cultura, e também do conhecimento, do mundointeiro,mesmoàscustasdosmaisempobrecidospaíses.

    A OMC alega ser uma organização baseada em regras.Entretanto:

    4suas regras refletem o predomínio das principais potên-cias;

    4umapósoutro,deixaramdesercumpridososprazosqueconstamnachamadaAgendade“Desenvolvimento”deDoha12,quevisava tratardosproblemasdohemisfériosul;

    ■ 1�

    PArTe3comércio

    justo

    12) A quarta reunião de ministros da OMC, em Doha (Qatar) 2001, acordou em dar maior ênfase a questões de desenvolvimento.

  • 4de forma igualmente sistemática, as principais potênciasescolhemsecumpremouignoramosresultadosdaOMC,conforme sirva ou não aos seus interesses econômicos epolíticosdomésticos.

    No seio da OMC, os governos do hemisfério sul que aintegram:

    4vêmresistindoamedidasvisandoexpandiroalcancedasregras“comerciais”paraáreascomoinvestimentoecon-corrência;

    4têmexigidoodireitodereestudarregrascujasimplicaçõesdevastadorassomenteagoraestãoficandoclaras;

    4correm o risco de solapar sua própria resistência se osmesmosobjetivosforemasseguradospormeiodeacordosbilateraiseregionaisdeinvestimento.

    Acordos de livre comércio se baseiam em políticas deprivatização, desregulação e liberalização que são esteiosfundamentais de programas neoliberais de ajuste estrutural.A concorrência agora permeia o mundo inteiro. Escolas euniversidades competem por alunos, cultura e esportes, osconsumidoresrivalizamentresinumconsumismodesenfrea-do,eestadoscompetementresinaatraçãodeinvestimentoecapital.Portodaaparte,emquasetodasasesferas,acoopera-çãoestásendosubstituídapelaconcorrência,aesferaestatalestá sendo encolhida e transferida para o controle privado,muitasvezesmonopolísticoedecorporaçõestransnacionais.Problemassãoabordadossuperficialmenteapretextodefaltaderecursos.Istonãoenfrentaascausasprimáriasdosproble-maseseencaixabemcomos“ObjetivosdeDesenvolvimentodo Milênio” das Nações Unidas (ODMs). Promessas dereduzir apobrezapelametadeeproporcionar educaçãouni-versal, promover a equiparação de gêneros, prover acesso aáguapotávelecombateroHIV/AIDSaté2015soamvaziasquando sepretendequeelas sejamalcançadaspormeiodosmecanismoscomerciaisdemercadoquejustamentecriamosdesequilíbriosempauta.

    A maior insensatez da parcialidade da OMC em favordasprincipais potências e empresas corporativas transnacio-nais está nos monopólios sobre medicamentos que salvamvidas, monopólios estes que ela garante às companhias far-macêuticas. A tão apregoada interpretação do acordo daOMC sobre Direitos de Propriedade Intelectual Ligados aoComércio (TRIPS) referente à saúde e a remédios – a qualcampanhas globais forçaram a União Européia e os EstadosUnidos a aceitar, e que sofreu a oposição dos governos doBrasil,ÁfricadoSuleÍndia–alegapermitiraospaísesmaispobresdomundoa importaçãodemedicamentos genéricos.Infelizmenteestearranjoétãocomplexoquenenhumgover-noconseguiucumprirseustermos.

    OtratamentoqueaOMCdáapaísesquequerementrarnesseacordotiratodoosentidodasuapretensãodeserumaorganização justa e baseada em regras. As regras somenteexistememfavordospaísespoderosos.Comotodosprecisamconcordar, cada país tem um poder de veto efetivo sobre ainclusão de um novo país. Em outras palavras, eles podemexigir termosnão-razoáveis.Vanuatu,porexemplo, foipres-sionadoaassumirumalistatãodispendiosadeserviços,ondese incluem educação, saúde, meio-ambiente etc, que consi-

    derouopreçodemasiadamente elevadopara ir em frente, esomenteseassociarácasopossarenegociaropacote.

    3.3 Da segurança alimentar para a soberania alimentar

    Nãoédifícilmostrar a estreita conexãoentre segurançaalimentaresoberaniaalimentar.Nenhumpaíspodegarantirasobrevivênciadosseushabitantessemterocontrolesobreos meios de produzir o alimento consumido dentro de suasfronteiras.

    No foco do debate em torno do comércio está o direitofundamentaldesoberaniasobreosistemaalimentardemodoagarantiralimentaçãoadequadaparatodos.Emboraomundogereanualmentequinhentosbilhõesdedólares emexporta-çõesagrícolas,oitomilhõesdepessoasmorremtodososanosdefomeededoençasligadasàfome.Outros840milhõesdepessoas,inclusiveprodutoresruraiselavradoresqueproduzemalimento,sofremdeescassezalimentar.Aconversãodeterraspara aproduçãodegrãos comerciaisnão-tradicionaispara aexportação aumenta a dependência dos países mais pobresemrelaçãoaoalimentoimportado.Istofomentaahegemoniade conglomerados como a Cargill, Continental, ConAgrae Tyson no abastecimento alimentar do mundo, enquan-to que gigantes agroquímicos como Monsanto, Syngenta,Bayer e Dupont exigem que produtores rurais sob contratousem sementes transgênicas de alta produtividade (GNOs).Enquantoisso,companhiascomoasfrancesasVivendieSuezLyonnais,asamericanasUSBechteleCoca-Cola,bemcomo

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  • aalemãRWEestãosemovimentandoparacontrolarooutroelemento essencial para o ciclo da vida que é a água. Essaexpansão do controle é apresentada como sendo normal einevitável.Desdeumaperspectivadocomérciojusto,elanãoénormalneminevitável,eprecisaserbarrada.

    As agências internacionais pressionam constantementeos produtores rurais nos países mais pobres no sentido deque convertam sua produção local para cash crops (culturasmeramentecomerciais)paraaexportação.Ospaísesdonorteimpõem barreiras comerciais para proteger seus própriosmercados agrícolas contra a concorrência, ao mesmo tempoem que, com sua sobra de produção altamente subsidiada,praticam dumping sobre os mercados do hemisfério sul. Emconseqüência,osustentodospovosnessespaísesédestruído,solapando-seasoberaniaalimentar.Autilizaçãodeajudaemalimentoscomooutraformadedumping,especialmenteparagrãos transgênicos, aprofunda esses efeitos. Pior ainda, istoconfrontaosgovernoscomadramáticaescolhaentreaceitartransgênicos,comoscorrespondentesriscosparaaintegrida-dedosseusbiossistemas,oudeixarseupovopassandofome.

    NósacreditamosqueaeconomiadeDeus,queédesoli-dariedade e justiça, para o manejo da Criação inclui a pro-messadequeospovosdaTerratenhamodireitodeproduzirseupróprioalimentoecontrolarosrecursosnecessáriosparao seu sustento,onde se inclui abiodiversidade.Por isso éodireito e a responsabilidade dos governos apoiar o meio devidadospequenosagricultoresnohemisfériosulenonorte.Éseudireitorejeitarasexigênciasdeagronegóciosqueprocu-ramcontrolarcadaaspectodociclodavida.Talabordagem

    exigerespeitopelasrelaçõesespirituaisindígenascomosoloecomasriquezasdamãe-Terra.

    Sãoascomunidadesmesmasquedevemdeterminar suasprópriassoluçõesparaaocupaçãodaterraeamanutençãodavida.

    Atradiçãobíblicadosprofetasedo sábado/jubileuprio-riza o uso da terra para o bem-estar dos pobres, das viúvas,dos órfãos e dos desconhecidos. As regras comerciais e asinstituiçõesresponsáveisporsuaimplementaçãosãojustasseserviremantesdemaisnadaaosoprimidosemarginalizados.Estaéaexigênciabíblicadejustiça(Amós5,11-15).

    3.4 resistência e a transformação das regras e relações comerciais

    Hoje a constatação positiva que se pode fazer é que asprópriaspessoas,muitasvezescooperandocomseusgovernos,estão ousando dizer “Chega!”. Camponeses, trabalhadorese movimentos sociais, juntamente com sindicatos e outrasorganizações da sociedade civil, estão se mobilizando emníveislocal,nacionaleinternacional.Suapressãotemforta-lecidoaposturaresolutadegovernosdohemisfériosul,aju-dando-lhesadesmascararapolíticadomaisfortequeimpeleocomérciointernacional.

    Emnomedajustiçasocial,daauto-determinação,demo-craciaedodireitoàvida,aspessoastêmlevantadosuasvozescontra o sistema injusto de comércio. Movimentos campo-neses, por exemplo, formados em lutas locais, agora estãointerligados internacionalmente por meio de redes como aVia Campesina, com 60 milhões de produtores rurais filia-dosem46países.EmCancun2003,num fórumque reuniuIndígenas e produtores rurais por três dias, organizado pelaViaCampesina,discutiuasnegociaçõessobreocomércioqueocorrememnívelministerial;aliosprodutoresruraiscompar-tilharam conhecimento e estratégias referentes a problemascomuns ligados à propriedade da terra, acesso ao alimento,biodiversidade,água,oimpactodaexploraçãocomercialdasflorestas,dapescaedo turismo,eaexploraçãode trabalha-dores rurais.É significativoque suamensagemdeunidadeeinternacionalismo se expressou por uma rica diversidade deculturaseidentidades.

    Essesmovimentosderesistênciatêmfreadoaexpansãodeacordos e regras comerciais opressivas e injustas.Entretantoelesaindaestãolongedesubstituirasregrasatuaisdocomér-cioporumregimequeconfereprimaziaaosprincípioséticose de sobrevivência que caracterizam um comércio justo. Aspotênciasprincipaisdesencadearamumaondacompotencialdevastador de acordos bilaterais e regionais que perpetuamo mesmo modelo de dominação econômica, uma vez queessasregrasprecisamsercompatíveiscomaOMC,inclusivemedidasque são“OMCplus”,deconseqüênciasmuitomaisamplasdoqueaprópriaOMC.Opoderdenegociação ficaainda mais desigual, e a dependência de ajuda e comérciotemobrigadogovernosaassumircompromissosquepoderiamdestruir suas economias e aprofundar sua dependência. Emalguns casos os Estados Unidos chegou a submeter o acessoàsconcessõescomerciaisàcondiçãodequeopaísseadapteàsuapolíticaexternaeaseusinteressesdesegurança.

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  • Acordos regionais como Área de Livre Comérciodas Américas (FTAA/ALCA) e os Acordos de ParceriaEconômica Regional entre a União Européia e a África,o Caribe e o Pacífico apresentam o mesmo desequilíbriode poder que beneficia empresas transnacionais em detri-mentodoinvestimentodecapitalnacionaledosmercadosdomésticos. Uma consulta organizada em conjunto peloCMIepeloConselhoLatino-AmericanodeIgrejas(CLAI)em Buenos Aires no ano de 2003 juntamente com outrosparceiros, deplorou a ALCA por encarnar um modelo deconcorrênciaentreparceirosdesiguaisqueinevitavelmenteacarretaráasubmissãooueliminaçãodosmaisfracos.MaisumavezmovimentosderesistênciaportodaaAméricatêmrecorrido à democracia popular de modo a fazer ouvir asvozes do povo de formas criativas por meio de referendospopulares, mobilização do hemisfério e a formulação dasregrascomerciaiscombasenajustiçasocialeautodetermi-nação.

    Uma alternativa potencialmente eficiente são acordosregionaisesub-regionaisquefortaleçamacapacidadedospaí-sespobresevulneráveisdepromovereprotegerseusprópriosinteresses.Entretantoestesprecisambasear-seemmodelosdecomércio justo, enão emmodelosdo assimchamado “livrecomércio” que a atual camisa-de-força da compatibilidadecomaOMCexige.Elestambémprecisamincorporaroprin-cípiodaproporcionalidade,queprotegeospobresefracosemtrocasentreparceirosdesiguais.

    A resistência é importante, porém não basta. Novasvisões são necessárias para apoiar novas regras, articuladaspela gente mesma e reforçadas por desafios éticos formula-dospelosmovimentossociaiseigrejas,paraquepossahavermudançagenuína.

    Os seguintes princípios de acordos comerciais justospodem servir de indicadores para um paradigma alternativodecomércio.Acordoscomerciaisprecisam:

    4basear-se em princípios fundamentais da economia davida:solidariedade,redistribuição,sustentabilidade,segu-rançaeautodeterminação;

    4proteger e promover os interesses dos países pequenos,maisfracosevulneráveis;

    4proporcionar desenvolvimento sustentável e erradicaçãodapobreza,conformeoprópriopovoodefinir;

    4dar primazia ao direito das pessoas ao alimento, à águae às necessidades da vida e proteger a capacidade dospequenosagricultoresdesobreviveremeprogredirem;

    4subordinar-se ao direito internacional e a acordos inter-nacionaisquegarantamdireitoshumanosuniversalmentereconhecidos,comodireitoscivis,políticos,econômicos,sociais,religiososeculturais,eqüidadedegêneros,direitosdo trabalho,direitosdo trabalhador itinerante edireitosdosPovosIndígenas;

    4reconhecerosdireitosinalienáveisdosPovosIndígenasaseusterritórios,recursoseconhecimentotradicional;

    4fortalecerorespeitopelaCriaçãocompadrõesecológicos

    queresguardemosinteressesdegeraçõesfuturaseasobre-vivênciadaTerra;

    4respeitar o direito e a responsabilidade dos governos degarantirobem-estardetodososintegrantesdasociedade,aparticipaçãodemocráticaeofuncionamentodosservi-çospúblicos;

    4contribuir para a paz mundial mediante a garantia dedistribuiçãoeqüitativaderecursosemedianteaproibiçãodegovernospoderososdeusaremocomérciocomoarmapara promover seus interesses econômicos, militares epolíticos;

    4garantir maior responsabilidade social das empresas, pormeioderegulaçãogovernamentalbaseadanasobrigaçõessociaisdapropriedadeprivada;

    4ser iniciados, concluídos, implementados e monitoradospormeiodeprocessostransparentesquegarantamapar-ticipaçãoplena,informadaeemtempohábildaspessoascujavidaseráafetada;

    4respeitarosdireitosdesoberaniadeospovosescolherementreumadiversidadedetrajetóriasdedesenvolvimento,inclusive com o direito de se retirar desses acordos ourenegociá-los.

    para continuar a reflexão:Como poderiam o Ágape e a justiça transformadora,

    tornar-se uma norma nos relações comerciais em todos asniveis?

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    «E perdoa as nossas dívidas, assim como nós também perdoamos aos

    nossos devedores.»

    (Mateus 6,12)

    4.1 Financiamentos: da usura para o financia-mento justo

    Atransformaçãodocomércionãopodeserdivorciadadatransformação dos órgãos financeiros internacionais. Desdeadécadade80,oFundoMonetárioInternacional(FMI)eoBanco Mundial têm vinculado empréstimo e cancelamentode dívidas a certas condições de modo a aplicar as mesmaspolíticasmacroeconômicasatodossemdistinção.Entreessascondições estão: a abertura dos mercados dos países pobrespara a concorrência de empresas e negociantes internacio-nais,ocortedesubsídiosgovernamentaisparaseusproduto-reslocaiseaprivatizaçãodejuntasdemarketing,indústriaseserviçossociais.Osefeitostêmsidodesastrososparamilhõesdepessoas,extinguindoempregoseobrigandopequenosagri-cultoresacompetircommega-empresas.

    A experiência histórica demonstra que um povo e umanaçãosomentepodemcontrolarseuprocessodedesenvolvi-mentosepuderemcontrolarsuasfinanças.

    Aspolíticas implementadaspelas instituições financeiras

    internacionais (IFIs = FMI, Banco Mundial e bancos dedesenvolvimentoregional)pormeiodecondiçõesvinculadasa empréstimos e cancelamento de dívidas em muitos casostiveramefeitosdevastadoressobreeconomiasnacionais.

    Em dezembro de 2001, milhares de pessoas em toda aBuenosAiresforamparaasruasbatendoempanelasvaziaspromovendo um cacerolazo (panelaço), numa maciça ebarulhentademonstraçãonão-violenta.Esteextraordinário“clamordopovo”desafiouumestadodesítioparadeclararque estavam fartos de ver a pobreza crescer, o desempre-go e a impunidade para aqueles que tinham saqueado ariquezadoseupaís.Essaexplosãosocialmaciçaresultounamudançadecincopresidentesemmenosdeduassemanas.Osbilhõesdedólaresque aArgentinapaga anualmente atítulodeserviçodedívidasilegítimasbemcomoaspolíticasimpostas pelo FMI estavam na raiz da sua crise econômi-ca. Nos anos 90 a Argentina fora o mais brilhante alunodo FMI, seguindo seus conselhos ao pé da letra. Após ummaciçoprogramadeprivatizaçãoeajustes,em1999opaísconstatouquesuadívidahaviaexplodidopara146bilhõesdedólares.Quandoacriseargentinaseaprofundou,oFMIempenhou mais e mais bilhões, até que ao final de 2001todoosistemaeconômicodopaísentrouemcolapso.Antesda implementação das políticas neoliberais, a Argentinaforauma sociedadecom60%declassemédia.Agora60%dapopulaçãoestáabaixodalinhadepobreza.

    NaÁfrica,oalunomaisbrilhantedoFMIfoiaZâmbia.Situada numa região assolada pela seca e pela pandemiado HIV/AIDS, a Zâmbia precisa de todos os seus recursosfinanceiros para sustentar sua infra-estrutura social e agrí-cola.Emvezdisso, ela seviuobrigadaapagarumamédiade 221 milhões de dólares por ano em serviço da dívidade2003até2005,oqueé2/3maisdoquepagavaantesdereceberalívioparaadívidasobainiciativaHIPC(PPME)doBancoMondial.

    EstáprevistoqueoFMIsozinhoextrairá293milhõesdedólaresemserviçodadívidade2003até2005,depoisdecon-cederalíviodadívidapormeiodainiciativaHIPC,enquantoque os zambianos continuam pagando por políticas mal-orientadasimpostaspeloBancoMundialeFMIaolongodosanos90.EmvezdeadmitirsuaresponsabilidadeeobrigaçãopelacrisedadívidanaZâmbia,oFMIcontinuainsistindoemforçaropaísavenderseusrecursosremanescentes.AoseremconfrontadoscomofracassodasuaabordagemnaZâmbia,osresponsáveis pelapolítica internacional se esconderamatrásdealegaçõesdecorrupçãodogoverno local,emvezdeexa-minaroverdadeiroimpactodesuaprópriapolítica.

    Essas experiências apontam para uma crise sistêmicade todo o sistema financeiro global. Nenhuma instituiçãofinanceira internacional, nenhuma regulação de políticaou nenhum poder consegue ou está disposto a controlar anegociaçãodiáriade1,9trilhõesdedólaresqueéovalordocâmbio monetário praticado a cada dia útil. A especulaçãofinanceiradominaocomérciodebense serviços,desviandorecursosdeinvestimentosprodutivosalongoprazoedeáreasdamaiornecessidadehumana.Osmercadosfinanceiros,alémdisso,estãocadavezmaisinstáveis,combolhasespeculativasecrisesfinanceiras.

    PArTe4financiamentos

    justos

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    A divisão dos riscos é desigual. A hegemonia do dólaramericanonasfinançasinternacionaisproporcionaocréditoquepermiteaosEstadosUnidoscriaremnovaliquidezmesmosendo o maior devedor do planeta, além de, entre outrascoisas, investir maciçamente na indústria bélica para travarguerrasgeopolíticas.Aextremavulnerabilidadedepaísesquecomsuamoedaabandonamsuasoberaniapelavinculaçãodasuamoedaaodólarouadotandoodólaramericanoouoeuro,fica tragicamente ilustrada pela Argentina. O preço é pagopelospobres comaperdadeempregoepoupança, elevaçãonospreçosdosalimentos,aumentodapobrezaemuitasvezescomamorte.

    Emépocasdevacasgordas,ospaísesricoscriamliquidezparasiprópriospormeiodosmercadosfinanceiros.Emépo-cas de crise financeira eles também cuidam de si próprios.Financiamentosgeralmente sepodeconseguir internamenteoupormeiodeinstituiçõesinternacionaisparadarumasaídaao investidores quando sua especulação vai água abaixo.Quandopaísesdebaixa emédia rendaprecisamde liquidezconcessional,elesencontramníveisinsignificantesdeapoio,mesmo assim sob condições acachapantes. Muitas vezes sãoobrigadosasevoltarparabancosprivadosparaconseguircré-ditoataxasdemercado,desviandorecursosnecessáriosparaa saúde e educação para inflar os dividendos dos acionistasdosbancos.

    4.2 Dívidas ecológicas e ilegítimas

    Operíododefinanciamentoneoliberaledoajusteestru-tural imposto fez aumentar asdívidas sociais e ecológicas jápré-existentesqueonortetinhaparacomohemisfériosul.AAcciónEcológica,umaorganizaçãodasociedadecivilequa-toriana,defineadívidaecológicacomosendo:

    “... a dívida acumulada pelos países industrializados donorteemrelaçãoaospaísesdoTerceiroMundoporcontadadepredaçãoderecursos,danosambientaiseocupaçãoirrestri-tade espaço ambiental paradepositar resíduos, comogases-estufa,dospaísesindustrializados.”12

    Emalgunscasosadívidaecológicapodeserdiretamenteatribuídaàsempresaspetrolíferasedemineraçãoquepreju-dicamecossistemas embuscada riquezamineral.Emoutroscasos a culpa pela dívida ecológica precisa ser imputada àsinstituiçõesfinanceirasinternacionaisquefinanciamprojetosde extração de recursos, com pouca consideração por suasconseqüênciassociaiseambientais.

    Hádoistiposdedívidailegítima.Aprimeiraestárelacio-nadacomaquestãodecomoeporquemelasforamassumi-das.Emmuitoscasosforamacumuladasporditadores,muitosdos quais chegaram ao poder mediante golpes militares emcooperaçãooucomoapoiodosEstadosUnidosoudasantigaspotênciascoloniais.Aobrigaçãodepagardívidasfinanceirastambéméilegítimaquandoessespagamentosnegamdireitos

    humanos fundamentais ao alimento, moradia, assistênciaà saúde e educação. Por exemplo, apesar dos devastadoresefeitos da pandemia do HIV/AIDS na África sub-saarianasobre famílias, comunidades e economias nacionais inteiras,paísesafricanospagaramumamédiade3,7bilhõesdedóla-resamaisemserviçodadívidadoquereceberamemnovosempréstimosacadaanode1997até2003.Ocustodesumanodadívidaestruturalalongoprazodohemisfériosulestábemdocumentado. A saída de capital constantemente excede aentradadecapitaloriundadeajudaeinvestimentosexternos.

    Essa enorme carga financeira para o hemisfério sul con-duz a maior enriquecimento dos países e bancos do norte,chegandoa3%doseuprodutointernobruto.Considerandoaurgentenecessidadederecursosfinanceirosparatrataraidé-ticosesupriroutrasnecessidadesurgentesdedesenvolvimen-to, como podem credores oficiais justificar o recolhimentode sequer um dólar em pagamento do serviço da dívida daÁfricasub-saariana?Jáqueistoétãonotório,comopodeestasituaçãocontinuarpiorando?

    Arazãodessavergonhosasituaçãoéqueoendividamentoestruturaldohemisfériosulsetemexacerbadoanoapósanodurantemaisque trêsdécadas.As somaspagaspela amorti-zaçãoepelosjurosexcedemestruturalmenteasquantiasque

    12) O conceito de espaço ambiental ou “pegada ecológica” começa pela suposição de que cada habitante da Terra tem direitos iguais aos recursos da Terra. Os 20% da população mundial que vivem nos países mais ricos fazem 86% de todas as compras de consumo; eles consomem 58% de toda a energia e por sua conta correm 53% de todas as emissões atuais de carbono (e 80% em termos históricos). Coletivamente a quinta parte mais rica da população mundial tem uma enorme dívida ecológica para com a maioria que precisa agüentar parte da pior devastação ambiental e muitas vezes tem negada seu justo quinhão na riqueza produzida.

  • entramviaajudae investimentoexternodireto.Duranteosanos 60, para cada dólar que ia do norte para o hemisfériosul, 3 dólares voltavam para o norte. Ao final dos anos 90,apóstrintaanosdedesregulaçãodomercadofinanceiro,paracadadólarqueiaparaohemisfériosul,seteiamparaonorte.Oconjuntodetodosospaísesemdesenvolvimentotransferiaparaosassimchamadospaísesdesenvolvidosnãomenosque3%dototaldoseuprodutointernobruto(PIB)13–umailus-traçãomuitoclaradoaprofundamentodapobrezaemfunçãodocontínuoenriquecimentodooutroladodomundo.

    Comonocasodo comércio, osque emprestamdinheironão têm nenhum desejo de mudar. Para os países atingidospelo tsunami na Ásia, os credores não ofereceram cancela-mento da dívida, mas apenas uma moratória para os paga-mentos. O poder sobre questões monetárias internacionaisreside com 7 economias hegemônicas (Estados Unidos,Japão, Alemanha, Grã-Bretanha, França, Canadá e Itália),conhecidascomoG7,oucomoG8,quandoaRússiaparticipada rodadadediscussõespolíticas.OG7 tambémcontrolaoFMIeoBancoMundial.

    4.3 Ágape implica cancelamento da dívida e restituição

    Na Bíblia o sistema de acumulação de riqueza que lançaaspessoasnapobrezaedestróianaturezaéconsideradoímpiopor Deus e causa de sofrimento evitável. Ele é chamado demâmon, sendo caracterizado como raiz de todo o mal. JesusnosdissecomtodaaclarezaquenãopodemosserviraDeusetambémaomâmon (Lucas16,13)14.Avisãobíblicadenunciafirmementeaexploraçãofinanceiradospobresenecessitados(Amós 8,4-14 é um entre dezenas de exemplos). A trans-formação de relações assimétricas e injustas é realizada nastradiçõesdosábado,doanosabáticoedoanodojubileu.Elasoferecemumapoderosavisãodaorganizaçãodavida econô-mica.Acadasétimoano(sabático)aterradeveriadescansare ficar em repouso, “para que os pobres do teu povo possamcomer”(Êxodo23,10-12).Emconexãocomoanoderepousoestáaremissãodasdívidas,paraque“nãohaja...ninguémemnecessidade entre vós” (Deuteronômio 15,1-5). A tradiçãodo jubileu (Levítico 25,1-55; 27,16-24; Isaías 61 e Lucas 4)repousanosmesmosfundamentosdoanosabático.Alémdissoapareceumnovoaspecto:aterrareverteparaasfamíliasqueaperderamemfunçãodepobrezaedívidas.Ojubileurestauraplenamenteoacessodospobresaosmeiosdeproduçãoebem-estar.Elevaimuitoalémdajustiçadistributivaparadevolveracapacidadeedosmeiosdeaspessoassesustentarem.

    As tradições do sábado, do ano sabático e do ano dejubileunaToráconfirmamqueDeuséumDeusdagraçaemamor.SeguiraDeusécolocarempráticaestagraçaejustiçaparatodosnavidacotidianaenasinstituiçõesquegovernama sociedade. Como Deus é redentor de todos, empréstimosque lançam os pobres em servidão da dívida, deveriam serresgatados. A preocupação primordial é com os pobres. O

    ano de repouso da terra foi instituído para prover alimentopara os pobres (Êxodo 23,11): justiça é o fruto do repousoparaaterra–noçãoestareconhecidapelosPovosIndígenas.Empobrecimento mediante criação de riqueza conduz àfragmentação da sociedade. A preocupação primeira é coma necessidade humana, não com propriedade privada, nãocomamaximizaçãodoslucros,nãocomaobservânciada“leinatural”domercado.As instituiçõesdo sábadoedo jubileutratamdarestauraçãodopovoemaliançacomDeus.Trata-sedodesmantelamentointencionaldeinstituiçõesqueescravi-zampessoaspelaservidãodadívida.

    Avisãodosábadoedojubileutemdesempenhadoimpor-tantepapelnalutapelajustiça.Elainspirou,porexemplo,alutacontraaescravaturaereveloucomoessapoderosavisãopode modificar o mundo. A missão profética das igrejas notocanteaquestõesfinanceirasinternacionaisigualmenteafir-maque“UmOutroMundoéPossível”quando:

    4os sistemas financeiros internacionais se basearem natransparência,naresponsabilidadeporseusatosenocon-troledemocrático;

    4os sistemas financeiros estiverem a serviço da economiareal,queéumaeconomiadavidaaserviçodopovoedasustentabilidadeecológica;equando

    4asreaçõesinternacionaisàscrisesfinanceiraspreservaremacapacidadedospaísesatingidosedesuaspopulaçõesdedeterminar suas próprias políticas, prioridades e estraté-giasdedesenvolvimentoalongoprazo.

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    13 Cf. Relatório Sobre o Desenvolvimento Humano do PNUD de 2002, tabela 1.4: os investimentos estrangeiros diretos nos países em desenvolvi-mento no ano do milênio 2000 estavam em 2,4% do seu Produto Interno Bruto (PIB), doações e ajuda alcançaram 0,6% do PIB, mas o fluxo de retorno para os países desenvolvidos não ficou abaixo de 6,3% do seu PIB.

    14 Cf. a mensagem da consulta de Budapeste, citada na parte 6, seção 6.2

    4.4 transformação do sistema financeiro global

    Qualquer sistema financeiro internacional deveria serestruturadodemodoamaximizaroavançoemdireçãoàjus-tiça, erradicação da pobreza e à sustentabilidade ambiental.Paratal,sãonecessáriasdiversasestratégias.Éimperativopro-moverodebate sobre sistemas alternativosde finanças, quesejam democráticos no sentido pleno da palavra. Tambémse pode reivindicar junto ao FMI e ao Banco Mundial quemodifiquemseusprocedimentosnosseguintesaspectos:4asestruturasdevotaçãoprecisammudar,acabandocomo

    vetoestadunidense(oudequalquerpaís)equeospaíses

  • emdesenvolvimentotenhamvozmaisforte;4atomadadedecisõesprecisatornar-setransparente,sendo

    necessárioumpapelautênticodasociedadecivilnosen-tido de poder intervir mais do que nas meras consultascosméticas realizadas na elaboração dos Documentos deEstratégiadeReduçãodaPobreza,comosãoeufemistica-mentedenominados;

    4osProgramasdeAjusteEstruturaldevemsereliminados,porsetratardecondiçõesunilateralmenteimpostaspelocredor;

    4oFMIeoBancoMundialdevemusarseusprópriosrecur-sospararesolveracrisedadívida(porexemplo,reservasemouronocasodoFMI,fundosdereservaparaemprésti-mosperdidoselucrosretidosnocasodoBancoMundial);

    4Todas as coberturas (bail-outs) para credores privadosdevem cessar para que assumam a responsabilidade deconcederempréstimosdealtorisco.

    Contudoessestiposdepropostasdereformanãobastam;elasdequalquerformadependemdaboavontadedospaísesricosepoderososquecontrolamaeconomianeoliberalesuasinstituiçõeseasrejeitamapriori,umavezquedefendemseusassim chamados “interesses vitais”. É necessário reagir combasenasexperiênciasealternativasdoprópriopovo,ondeseinclueminiciativasque:

    4quebrem a hegemonia das instituições financeiras inter-nacionais e corporações transnacionais, exigindo que osgovernosnacionaisregulemascorporaçõestransnacionaisebusquemumpapelmaisativoparaosórgãosmultilate-raistransformados;

    4rejeitemopagamentodejurosdedívidasodiosas,princi-palmentemedianteaçãoconjuntadepaísesendividados;

    4criemespaçoparaquecomunidadesegovernosexerçamcontrole democrático sobre questões financeiras críticasqueafetemavidadaspessoas;aíse incluiaauditoriadedívidasfinanceirascomoformadeidentificardívidasile-gítimaseodiosas;

    4revertam o fluxo de riqueza financeira e ecológica dohemisfério sul para o norte, mediante cancelamento dedívidas ilegítimas e dedicando 0,7% do produto internobrutodospaíses industrializadosparaaassistênciaoficialao desenvolvimento – não como ato de caridade, mascomorestituiçãodeexploraçãopassada;eque

    4reduzamovolumedetransaçõesfinanceirasespeculativasetambémlevantemreceitassignificativasparaaassistên-cia genuína ao desenvolvimento mediante um ImpostosobreTransaçõesdeMoedassobreos1,9trilhõesquesãoovaloremdólaresnegociadoacadadiaútilnessetipodetransações.

    NoápicedacrisenaÁsiaem1997,aMalásiadesafiouoconselhodoFMIeintroduziurigorosoregimedecontroledecapital que permitiu ao governo malaio adotar políticas deincentivo(inclusivereduçãodeimpostos),investireminfra-estruturaereduzirtaxasdejurossemsepreocuparcomumacorrida sobre a sua moeda. Ao fim e ao cabo, até mesmo oFMIadmitiuqueestapolíticafoiexitosa.Emnívelnacionalosgovernosprecisamrecuperarocontrole sobreaspolíticasfiscal, monetária e de tributação a fim de desestimular aespeculação excessiva, barrar a fuga de capital para paraísosfiscaisnoestrangeiroegarantirqueinvestimentosestrangei-

    rosrecebamtributaçãojustaafimdeatenderàsnecessidadeshumanas e sociais básicas. Os governos deveriam ter plenaautonomia para usar a moeda de sua própria escolha. Osgovernos nacionais precisam abandonar a ideologia neoli-beral de reduzir impostos para empresas e para os ricos. Oobjetivodareduçãode impostosécriarumclimaidealparaoinvestimentoeolivrecomércio,oquelimitaacapacidadedeopaísgerarreceitaparacustearodesenvolvimentosocial.Impostosjustoseeqüitativosincluemaquelesquepromovemjustiçaecológicaereduzemdisparidadesderiqueza,taiscomoimpostossobreemissõesdecarbono.

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    4.5 apoio para financiamento alternativo em níveis locais

    Osetorinformal,quesãoasinúmerasatividadesdesenvol-vidasàmargemdamodernaeconomiademercado,gerarendaparaamaioriadaspessoasnohemisfério sul.Énas famíliasenas pequenas empresas que a maioria das pessoas consegue oseusustento.Cercademetadedosempregospagosemtodoomundo estão em negócios que empregam entre uma e cincopessoas,eemalgunslugaresopercentualéatémaior.Mesmoassim não se deveria ter uma visão romântica do setor infor-mal,microempresasnãosãoumapanacéiaparaodesenvolvi-mentohumano.Suatrajetóriatemsidoummistodesucessoefracasso,eascondiçõesdetrabalhomuitasvezessãoestarrece-doras.Umalimitaçãoconsideráveléodeficienteacessoabensdeprodução,principalmenteterraecapital.

    Atécertopontoasituaçãotemmelhoradocominiciati-vas como a formação de cooperativas de crédito e poupan-ça, iniciativas de trabalhadores autogerenciadas, bancos deinvestimentoético,moedascomunitáriasesistemasdemicro-crédito.AsigrejastêmatuadonestaáreapormeiodoFundoEcumênicodeEmpréstimos(Ecumenical Loan Fund, ECLOF)e posteriormente o Oikocredit. Entretanto, a recente proli-feraçãodomicro-empréstimopormuitosoutrosagentesestáapresentando resultados mistos, não conseguindo superar adesigualdade sistêmica. Algumas décadas atrás a prática deemprestarpequenasquantiasdedinheiroapobresquepode-riam vir a ser empresários, muitas vezes sem caução, esteveemcogitaçãonasfinançasinternacionais.Hojeexistemmui-tasiniciativas.Muitasvezessãodemocráticaseparticipativas,favorecendoempréstimosagruposoucooperativas,emvezdeindivíduos,mantendosimplesosprocedimentosparaa revi-são e aprovaçãode solicitaçõesde empréstimo, edesembol-sandocomrapidezpequenoscréditosacurtoprazo.Devidoaoseubomhistóricodepagamentodadívida,gruposdemulhe-res têm recebido um percentual desproporcionalmente mais

  • elevadodomicro-crédito.Aomesmotempoalgunsgruposdemulheresrelatamquea“tiraniadopagamentodadívida”eomedodedeixarnamãooseugrupotemcausadoforteestresseetraumanavidadasmulheresparticipantes.

    Apesardoseurelativosucesso,oentusiasmosobresiste-masdemicro-créditoprecisaserbalanceado.Essesesquemassomente podem atingir seu pleno potencial se forem alte-rados os sistemas legais que os discriminam, favorecendoo empréstimo convencional. Existe o perigo de algumasorganizaçõesdemicro-créditonãoresistiremàtentaçãodese“institucionalizarem” e deslocarem seu foco dos pobres paraosmenospobres.Asorganizaçõesdemicro-créditoprecisamser cuidadosamente avaliadas em seu impacto. A estratégiademicro-créditonãopodesubstituiratransformaçãodosis-temaeconômico.

    4.6 promover práticas éticas e códigos empresa-riais para investimentos

    Entre aqueles que trabalham em prol da justiça eco-nômica está havendo muito debate sobre a eficiência dese promover práticas éticas e códigos empresariais para oinvestimento.Muitosachamqueosproblemassãosistêmi-cose somentepodemser resolvidosemnível sistêmico,aopassoqueoutrosacreditamqueumaabordagemgradualcriacondiçõesquepodempromovertransformaçãomaisprofun-da.Umnúmerocadavezmaiordeindivíduoseinstituições,

    aotomardecisõesdeinvestimento,estáaplicandocritériossociais e ambientais, além das considerações financeiras.Numerosasorganizaçõesreligiosas,entreelasoCMI,elabo-raramdiretrizesderesponsabilidadesocialeambientalparaseusinvestimentos.Emboravariemasopiniõessobreoqueéuminvestimento“responsável”ouético,amaioriausatrêsestratégias:

    4Evitar ou retirar investimentos, ou seja, deixar de investirdinheiroemempresasquandoestas:

    4produzirem(porexemplo)armas,álcooloutabaco,4praticarempolíticasdiscriminatóriasdeemprego,4apoiaremviolaçõesdedireitoshumanos,4tiveremenvolvimentocomenergianuclearoucontribuí-

    remsubstancialmenteparaadestruiçãoambiental,4estiveremenvolvidasemespeculaçãoeevasãodetributos

    (porexemplo,boicotarcertosbancoscomerciais).4Apoio:usar investimentoscomoalavancaparapromover

    responsabilidade empresarial mediante resoluções deacionistase/ounegociaçõescomagerência;e

    4Investimento alternativo: investir deliberadamente emempreendimentos que apresentem uma conduta social eambientalmenteresponsável.Aexperiênciatemmostra-do que investimentos orientados por critérios sociais eambientais muitas vezes dão retorno financeiro igual oumelhorqueinvestimentos“normais”.

    UmexemploéotrabalhodaIgrejaOrtodoxaRussanodesenvolvimentodeumcódigodeprincípioseregrasmoraisdaatividadeeconômica, combasenosDezMandamentos,eaexperiênciadasuaimplementaçãoporgruposreligiososnaRússia.

    Reconhecemos que a responsabilidade das igrejas depromoverpráticaséticaslançadesafiosdiferentesemépo-casdiferentes.Apesardosimportantesesforçosexistentesno sentido de introduzir padrões éticos no paradigmaatual, propomos que, em vista da natureza sistêmica daglobalizaçãoneoliberaleconsiderandoopapeldasempre-sas transnacionaisdentrodesse sistema injusto, as igrejasprecisamabordaraquestãodosistemaemsi.Afidelidadepara com o transcendental chamado para a justiça emfavordospobresnoscompeleaenfatizarmenosareformaeamoderaçãoparanosconcentrarmaisnatransformaçãosistêmica,semtermedodenossolidarizarcomascampa-nhasdospovoseseusmétodos, inclusiveoapoioàdeso-bediênciacoletiva.

    Dívida, usura e sistemas financeiros injustos destinadosaoacúmulodebensparaosricosàscustasdospobresexigemuma resposta profética e também espiritual das igrejas. AadvertênciadeJesusdequenãopodemosserviraDeuseaomâmon exige um exame até mais profundo ainda do nossodiscipuladocomocomunidadesdefé.

    para continuar a reflexão:- Será que estamos tão mancomunados com o sistema

    de financiamento e investimento internacional que na verdade estamos enleados no serviço ao mâmon e sendo infiéis com nosso serviço radical ao Deus da vida?

    - Será que realmente estamos em condições de amar aDeuseanossopróximocomoamamosanósmesmos?

    ■ �0

  • «Exorto-vos, portanto, irmãos e irmãs, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais vossos corpos como hóstia viva, santa e agradável a

    Deus: este é o vosso culto espiritual. E não vos conformeis com este

    mundo, mas transformai-vos, reno-vando a vossa mente, a fim de

    poderdes discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, agradável e

    perfeito».

    (Rm 12,1-2).

    5.1 alternativas vivenciadas

    A transformação nos compele como igrejas a ir alémdaquiloqueédifícil,porémconcebível,paraimaginar,desco-brir,abraçareencarnaraquiloqueéverdadeiramenteliberta-dor,paraentão fazercomqueo libertador se tornepossível.Rompendo com o paradigma propagador da morte, que é aglobalização neoliberal, defendemos uma visão afirmadoradavida,queéada“oikoumene”–umacomunidadedaTerraonde todosospovosvivememrelações justasentre si, comtodaaCriaçãoecomDeus.

    Hebreus 12 nos lembra que somos “cercados por umagrande nuvem de testemunhas”. Essas testemunhas não sónosajudamadiscerniraverdadedosistemaeconômicoatual,mastambémnosinspiramalembrarqueacriaçãodealterna-tivasparaaordemmundialexistenteéumatarefaquecondizcomaessênciadaigreja.Aigrejaéchamadaanãoseconfor-marcomasestruturasdainjustiça,masaanunciarumanovaCriação. A visão bíblica o tempo todo anuncia as “novascoisas” que Deus está fazendo, e seguramente isto significaqueemnossotempoelugaraigrejaprecisaserumacomuni-dadedealternativas:visõesalternativas,espaçosalternativos,espiritualidade alternativa e idéias e práticas econômicasalternativas.

    Ocaminhoóbvioparaamudançacomeçapelas realida-des e verdades existentes nas pessoas, acreditando que elassejamcapacitadorasecontenhamassementesdatransforma-ção. Pensamento e ação sociais ecumênicas jamais apresen-taramumasoluçãopadrãoparatodasassituações,masan