governança e globalização sonia de camargo

Upload: joao-elbio

Post on 16-Jul-2015

270 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Governana no mundo globalizado

Governana global: utopia, desafio ou armadilha?Sonia de Camargo*

A linguagem da poltica mundial de nossos dias faz crescentes referncias a problemas que, transcendendo os limites das fronteiras nacionais, traduziriam valores e vises universais prprios de uma comunidade global. Ao lado desta percepo ampliada dos problemas, ou melhor, como uma decorrncia desta nova viso, a questo da permanncia, dissoluo ou reestruturao do Estado nacional ocupa, como contraponto, um lugar, tambm crescente, no discurso e no debate acadmico das relaes internacionais. A importncia dada, na reflexo atual, aos temas globais facilmente explicvel se levarmos em conta o fato de que as sociedades e os Estados nacionais deste fim de sculo no esto mais insulados em seus prprios territrios na medida em que esto sendo cada vez mais atingidos por movimentos transnacionais de capitais e por idias, crenas, acontecimentos, guerras e mesmo crimes produzidos em uma esfera mais ampla e que escapam a seu controle. Ou, em outras palavras, pelo fato de que se vive em uma era em que uma parte crescente da vida social est sendo atingida por processos globais, nos quais as economias, as culturas, a poltica e as fronteiras territoriais esto sendo desafiadas. Como decorrncia, as unidades nacionais sentem que sua autonomia est sendo posta em xeque em benefcio de uma comunidade global, cujo contorno real e formas de ao ainda ignoram em toda sua extenso e significado. Esta tenso latente entre o global e o nacional reflete, portanto, o fato estrutural de que, se por um lado os acontecimentos e as aes ocorridas em alguma parte do mundo produzem ramificaes em comunidades de pases distantes, configurando-se um mundo acentuadamente interdependente, por outro este mundo permanece organizado em Estados soberanos, aproximada-

* Cientista poltica, Diretora do Instituto de Relaes Internacionais da Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

3

mente 170 unidades separadas, cada uma lutando para preservar sua identidade, seus valores e sua capacidade autnoma de ao. Com efeito, aprofundando esta idia, vemos que a acelerao do processo de globalizao, ao produzir uma interseo crescente entre foras nacionais, internacionais e transnacionais, isto , ao gerar um processo concreto de transformao social, tende a modificar, internamente, as relaes entre Estado, territrio, populao e nao e a questionar, externamente, o lugar central que os Estados ocupam no sistema internacional, h mais de trs sculos. E tende, sobretudo, a corroer o conceito clssico de soberania do Estado que, confundindo-se com a idia de nao, estaria sendo desafiado, tanto por foras transnacionais que traspassam as fronteiras e os limites demarcados poltica e territorialmente, quanto por foras subnacionais e/ou locais que, questionando fronteiras estabelecidas, se dispem a reconstitulas segundo novos, ou antigos, traados. O que este novo cenrio nos indica que a dicotomia tradicional entre uma esfera domstica ordenada e pacfica, isto , regulada, e uma esfera interestatal anrquica e belicosa no se ajusta mais realidade do mundo presente. Como nos diz James Rosenau, as mudanas na esfera domstica e na esfera externa das comunidades e dos Estados so de tal forma profundas que as velhas formulaes no so mais confiveis (J. Rosenau, 1992). Como decorrncia, torna-se necessria uma nova concepo da poltica que abandone a velha dicotomia inter-Estado/intra-Estado e que, reunindo estas duas dimenses, incorpore a diversidade das entidades polticas e dos novos atores pblicos e privados que, atuando em diferentes planos, o local, o nacional e o global, dem uma nova configurao reflexo sobre poltica internacional (Y. H. Ferguson e R. W. Mansbach, 1996). A partir destas formulaes, e tendo presente o fato de que a atual ordem mundial crescentemente dominada por princpios e prticas de um mercado capitalista internacionalizado e transnacionalizado e por um sistema de comunicaes e de informao globalizado que desafia regulaes e controles, cabe perguntarmos se o modelo realista clssico de estabilidade hegemnica, tal como parece estar sendo posto em prtica no momento presente, o mais adequado. Talvez caberia mudar o rumo da pergunta e indagarmos que formas de governana corresponderiam aos desafios polticos, econmicos e sociais que esto se formando em escala global e qual seria o futuro do Estado nacional e das diferentes sociedades e populaes, em um novo modelo de organizao poltica mundial. Antes de tentarmos responder a essas indagaes gostaria de salientar que, se o termo governana foi forjado recentemente, alguns dos conceitos e questes aos quais ele se liga na literatura atual tm, na verdade, uma4

histria mais longa iniciada pelo menos em meados do sculo XVII, no contexto das chamadas monarquias universais. Com efeito, os imprios coloniais europeus desse perodo tinham a convico de que, no decorrer do tempo, todos os povos do mundo se tornariam no apenas cristos, como adotariam o modelo europeu de organizao poltica e formas europias de organizao social (A. Pagden, 1998). Esta viso claro que no perfeitamente homognea persistiu at meados do sculo XVIII, quando o declnio econmico e poltico da Espanha, o desmonte do imprio francs na Amrica, e o crescimento dos conflitos entre a Gr-Bretanha e suas possesses de ultramar retiraram validade a esses postulados ideolgicos. Anteriormente, juristas como Hugo Grotius e outros haviam tentado criar um direito internacional capaz de traar limites para os empreendimentos das potncias europias. Mas foram dois ensaios publicados por Immanuel Kant, o primeiro, Idia para uma Histria Universal com um Propsito Cosmopolita, em 1784, e o segundo, Para uma Paz Perptua, em 1795, as obras mais influentes e discutidas desse perodo. Nelas o autor nos indica os caminhos para se alcanar a paz perptua, entendidos como os meios pelos quais a humanidade poderia resolver o problema da violncia e emergir do estado de natureza prprio das relaes entre os Estados. E esses caminhos deveriam ter, como fundamento, o ideal cosmopolita de uma federao entre repblicas independentes, cada uma respeitando os direitos bsicos de seus cidados e estabelecendo uma esfera pblica na qual toda a populao pudesse se sentir livre e fazendo parte de uma cidadania mundial (A. Pagden, 1996).1 Ou, em outras palavras, uma comunidade universal governada pelo imprio da lei, ideal no apenas necessrio para a sobrevivncia da humanidade, mas como um requerimento da razo que, constituindo, para Kant, o mais alto grau de poder moral, condena de forma absoluta a guerra como uma violao de direitos e considera a construo da paz como um dever imediato (I. Kant, 1979, p. 184). A partir dessa perspectiva, o ideal de paz perptua se desenvolve em dois planos. No primeiro, Kant expe os mecanismos causais que operam na histria da humanidade e que lhe permitem alcanar a paz mundial, independente da inclinao agressividade e ao esprito de competio inerentes natureza humana. Ou, em outras palavras, a inesperada decorrncia de uma1. Para Kant, assim como, no plano das relaes entre indivduos, o conflito inerente aos seres humanos s pode ser evitado e regulado pela existncia de um direito civil, no plano das relaes entre os Estados uma situao de paz permanente s pode ser alcanada por meio de uma constituio fundamentada em um direito cosmopolita no qual os indivduos e os Estados so considerados cidados de uma comunidade universal. Ver: KANT, I. Paz Perptua. In: REISS, Hans (ed), Kant: Political Writings. Cambridge University Press, 1979.

5

interconexo entre diferentes povos espalhados na superfcie da terra inesperada j que impulsionada por uma mo invisvel ou providencial o que criaria as condies subjetivas para a formao de uma comunidade universal que, expressando-se em um direito cosmopolita, plantaria as bases permanentes para se alcanar a paz. Estas condies subjetivas eram mediatizadas, no plano internacional, pela prtica do comrcio que, entendido como a relao generalizada de cada um com todos os outros a partir de interesses recprocos, reduziriam as probabilidades de guerra, mesmo na ausncia de um direito cosmopolita. O que fundamentaria esta prtica comercial generalizada seria a existncia de um esprito de comrcio que, mais cedo ou mais tarde, seria absorvido por todos os indivduos, tornando a guerra incompatvel com essa forma de atividade (I. Kant, 1979, p. 114). Se transportarmos essa idia para o momento presente, estaramos afirmando que o comrcio livre e a globalizao financeira no seriam fenmenos histricos mas processos que, expressando o esprito inerente aos seres humanos, gerariam, por si mesmos, como afirmam as vertentes liberais clssicas, as condies positivas para assegurar a paz. Em um segundo plano, Kant argumenta que uma concepo positiva e multidimensional de paz requer, como j salientamos, a existncia de instituies derivadas de um direito cosmopolita, situado em nvel acima das leis nacionais. Estas novas instituies legais deveriam substituir as precedentes, neutralizando a potencialidade de conflito inerente s leis locais e unificando globalmente a comunidade humana acima do nvel do Estado nacional. Contudo, para que isso ocorresse, seria necessrio que os Estados que fossem constituir a ordem cosmopolita se submetessem a uma mesma forma de Estado, a Repblica.2 Somente uma constituio republicana que, ao contrrio dos sistemas despticos, no se fundamentaria na eliminao da diversidade nem na extino das diferenas poderia conter e transformar em harmonia todas as disposies humanas para o bem e para o mal e a rivalidade inerente aos homens e aos Estados.

2. As vrias formas de Estado (civitas) para Kant, podem ser classificadas de acordo com as diferentes pessoas que exercem a autoridade suprema, ou de acordo com a maneira em que a nao governada por seu chefe de Estado, qualquer que seja ele. Nesse sentido, a forma de governo pode ser uma autocracia, uma aristocracia ou uma democracia, isto , governada pelo poder de um prncipe, de uma nobreza, ou do povo. A segunda classificao, forma de governo, se relaciona ao modo em que o Estado, apoiado em sua constituio, faz uso de seu pleno poder, podendo ser republicano ou desptico. Kant classifica a democracia como necessariamente desptica j que sua constituio, ao estabelecer um poder executivo mediante o qual todos os cidados podem tomar decises relativas a um indivduo sem seu consentimento, no se fundamenta no princpio da representatividade. Ver: KANT, I. Paz Perptua. In: REISS, Hans (ed), Kant: Political Writings. Cambridge University Press, 1979, p. 101.

6

Se novamente nos transportarmos para o momento presente e substituirmos a Repblica, sede da ordem cosmopolita na viso de Kant, por democracias liberais representativas, constatamos que, apesar do enorme aumento no nmero de Estados democrticos desde o fim da Guerra Fria3, visvel que este aumento no foi acompanhado por um aumento correspondente de democracia nas relaes entre os Estados nem no interior de cada um. No primeiro caso, isto , no que se refere organizao das relaes inter-Estados, vemos que, no momento em que a antiga e estabelecida hierarquia entre eles entra em colapso, um vazio de poder se estabelece na administrao dos assuntos internacionais, o que conduziu a comportamentos contraditrios, e muitas vezes ilegais, por parte dos prprios pases democrticos. Basta tomar, como exemplo, casos de aes unilaterais dos Estados Unidos contra pases mais fracos, e mesmo casos de conflitos armados, como a presente guerra da Iugoslvia, cujo bombardeio se iniciou e prosseguiu sem o aval do Conselho de Segurana das Naes Unidas. Por outro lado, no que se refere s prprias organizaes internacionais, como este mesmo Conselho de Segurana e o Fundo Monetrio Internacional, sua ao pouco tem mudado desde a queda do Muro de Berlim. No que se refere tese da expanso da democracia como valor que segundo a vertente ocidentalista liberal se teria tornado a regra universal dos povos algumas consideraes merecem ser feitas. Dentre elas quero salientar o fato de que a democracia no trouxe, para milhares de pessoas, uma melhora visvel em suas condies de vida nem na qualidade de suas associaes polticas, tendo mesmo ocorrido casos de retorno da guerra civil, um tipo de conflito que parecia haver desaparecido para sempre. Algumas explicaes podem ser dadas para esse relativo insucesso da democracia, nos planos sistmico e domstico. Um argumento que pode ser colocado o fato de que, assim como no sculo XVII, os imprios coloniais europeus tinham a convico de que todos os povos do mundo se tornariam no apenas cristos, como adotariam o modelo europeu de organizao poltica e social, e no sculo XVIII Kant postulava que o ideal cosmopolita de uma federao de repblicas era um requerimento da razo prtica, o pensamento hegemnico de nossos dias tambm afirma que a prpria razo democrtica liberal ocidental o que verdadeiramente teria se universalizado. Gostaria, contudo, de salientar que, no caso de Kant, na medida em que seu interesse principal no eram os Esta-

3. Em meados dos anos 70 dois teros, aproximadamente, de todos Estados podiam ser chamados de autoritrios. Esta proporo caiu significativamente nestas duas ltimas dcadas e, atualmente, pode-se falar em menos de um tero, o que indica que o nmero de pases democrticos cresceu rapidamente.

7

dos polticos reais e sim princpios abstratos fundamentados no progresso da civilizao humana, a diversidade de lnguas, de culturas, de religies no impedia a existncia de um equilbrio entre as diferentes naes. Porm, no caso das democracias atuais, no so apenas princpios os que se julga que teriam se universalizado, mas formas concretas de organizao poltica, e, sobretudo, instituies, como o mercado capitalista ocidental, que teria alcanado a forma final de liberdade...4 justamente esse ponto que merece discusso na medida em que, como argumenta David Held, mesmo que se possa considerar 1989 como a data a partir da qual a legitimidade democrtica se consolidou e estendeu por vrias regies do mundo, pode-se afirmar, da mesma maneira, que o domnio de uma s cultura constitui uma fonte de violncia e de arbitrariedades e, como conseqncia, de rejeio e no de convergncia, como imaginavam Kant e os liberais de todos os tempos. Argumenta ainda que, sob o aparente triunfo universal da democracia, sua eficcia efetiva como forma de organizao poltica no tem o mesmo peso nem a mesma significao para todas as sociedades em que foi implantada. Acrescenta que nem todos os Estados consideram que a liberdade dos mercados implique, necessariamente, a liberdade poltica de sua populao, nem muito menos assegure a paz entre as naes. Poder-se-ia mesmo fazer uma leitura em sentido contrrio acentuando o fato de que as mudanas ocorridas na ordem econmica mundial estariam criando, em regies e pases situados na periferia do sistema, restries de tal ordem que estariam dificultando o surgimento, a permanncia e mesmo a legitimidade de uma organizao poltica efetivamente democrtica, tanto no plano domstico como internacional (D. Held, 1991). Voltando a Kant, o modelo poltico que o inspirava e que mais tarde vai inspirar James Madison em sua concepo de um futuro Estados Unidos da Amrica e James Wilson em sua avaliao como tendo sido sua constituio a grande obra-prima da poltica humana era o de uma federao de Estados independentes em que cada um conservava sua soberania, modelo de sociedade finalmente no adotado pelos Estados Unidos. Apesar de que a maneira em que Kant entendia a ordem mundial foi se modificando no decorrer do tempo, o princpio inicial da unificao permaneceu constante, sendo designado seja como uma fora unida apoiada em uma deciso legal de uma vontade unificada seja

4. Estas formulaes so assumidas por Francis Fukuyama quando nos fala em fim da histria, entendendo por isso o fim de um mundo em que a expanso universal da cultura ocidental e do mercado capitalista teriam alcanado a forma final de liberdade. Ver: FUKUYAMA, Francis The End of the History and the Last Man. Penguin Books, 1992.

8

como um Congresso permanente dos Estados, ou como uma federao de Estados, frouxamente concebida. No seria difcil ligarmos estas formulaes idia moderna de uma aldeia global, cuja ordem procederia no de um governo mas de uma governana, conceito que se referiria no apenas a Estados, mas tambm a organismos no-estatais e ostensivamente no polticos e, especialmente, s instituies monetrias internacionais e s empresas multinacionais, que com isso transmitiriam a idia de que em uma aldeia global todos os valores so neutros do ponto de vista cultural (A. Pagden, 1998). Nos dois sculos que se seguiram obra de Kant, em vrias ocasies histricas, vozes se levantaram na condenao da guerra e dos horrores da violncia poltica organizada. H alguns anos atrs, em 1995, quando fazia 200 anos que sua obra fora escrita, celebraram-se os cinqenta anos do fim da Segunda Grande Guerra e do estabelecimento da Carta das Naes Unidas. Mas a histria do sistema internacional desses dois sculos e a mais imediatamente recente, em que a violncia poltica tem alcanado nveis extremos, nos mostram que as aspiraes de Kant por uma paz permanente esto longe de haverem sido atingidas, isto , que a condio de anarquia no sistema de Estados est longe de haver sido eliminada. A esperana liberal de Kant de que o esprito de comrcio traria a harmonia de interesses em escala mundial e impulsionaria a constituio de um direito cosmopolita parece estar tendo um efeito contrrio, da mesma maneira que o aumento do nmero de Estados democrticos no foi acompanhado, como j salientamos, de democracia na relao entre os Estados e, muito menos, na constituio de uma comunidade cosmopolita. Ligando esta discusso ao tema que me foi proposto, o da governana global, comeo por examinar qual o significado conceitual, na literatura mais recente, do termo governana, apesar de que, no tendo ainda sido includo no vocabulrio da lngua portuguesa, o utilizo com um certo constrangimento. Governana, assim como globalizao, so conceitos cada vez mais utilizados na anlise e na descrio da presente realidade mundial, apesar de que trazem ainda uma grande carga de indefinio e, na maior parte das vezes, uma forte conotao ideolgica. De qualquer maneira, a idia de governana global traduz a exigncia de uma reflexo sobre as relaes de autoridade e poder, isto , sobre as novas formas de organizao e de regulao poltica nos planos mundial e nacional o que inclui, necessariamente, uma discusso sobre democracia assim como reflete a necessidade de se examinar o papel das organizaes e de outros atores estatais e no estatais nos mecanismos de regulao poltica, gerando uma reflexo mais adaptada s transformaes do mundo contemporneo.9

Em sua acepo inicial, o termo governana vinha assimilado governabilidade dos Estados nacionais e, mais especificamente, poltica de desenvolvimento no contexto do mundo ps-colonial. O debate sobre este tema se gerou, portanto, a partir da necessidade de uma reflexo sobre a redefinio da articulao entre Estado e mercado, isto , a partir da crise do modelo do Estado-providncia dos anos 80, no mbito dos pases da OCDE, e da crise do Estado-desenvolvimentista na Amrica Latina e na frica. Com efeito, o aparente esgotamento desses modelos, ao trazer consigo, como tendncia, a desnacionalizao e internacionalizao das empresas estatais e a privatizao de grande parte dos servios pblicos, assim como programas de ajuste estrutural de carter claramente neoliberal, trouxe, simultaneamente, a exigncia de se pensar modelos de organizao poltica que assegurassem a governabilidade desses Estados. (P. Senarclens, 1998). Isto aparece com nitidez quando, a partir de 1989, algumas organizaes internacionais, como o Banco Mundial, desejosas de legitimar suas orientaes e seus projetos de inspirao liberal, se utilizam do termo governana para qualificar a situao do continente africano como de crise de governana. Com isso, o termo adquire um carter prescritivo, sendo usado para designar instituies e prticas polticas teoricamente destinadas a assegurar uma boa governana, avaliao associada, na viso do Banco Mundial, a uma gesto saudvel do desenvolvimento. O sentido de saudvel, nesse contexto, era entendido como a responsabilidade dos governos em respeitar as leis que permitissem o funcionamento do mercado, especialmente no que se refere proteo da propriedade privada e segurana dos investimentos e em estabelecer medidas corretivas quando o mercado estivesse perdendo flego (P. Senarclens, 1998). Posteriormente o termo foi utilizado para dar uma nova caracterizao s relaes internacionais, tendo se expandido a partir do fim da Guerra Fria, momento em que, ocorrendo simultaneamente acelerao do processo de globalizao e de regionalizao e destruio de certos Estados, colocou em xeque os mecanismos clssicos de regulao internacional e os marcos conceituais da cincia poltica, concentrados, preponderantemente, no papel do Estado e de sua soberania. Com efeito, a presena crescente de empresas transnacionais na economia mundial, as transformaes dos modos de produo, o avano nos sistemas de informao e comunicao, a desregulao dos mercados monetrios e financeiros trouxeram uma imbricao cada vez mais forte entre as sociedades desenvolvidas. Por outro lado, deu-se uma modificao de certas representaes geopolticas clssicas, como a diviso entre leste-oeste e norte-sul e o enfraquecimento e perda de sentido de certas noes, como a de Terceiro Mundo, cujos elos de solidariedade no seio das Naes Unidas e do movimento dos No-Alinhados perderam parte de sua validade (P. Senarclens, 1998).10

Foi nesse contexto que o conceito de governana invadiu a reflexo da ordem internacional, sem que tenha sido, at o momento, objeto de uma definio rigorosa, o que permitiu sua apropriao por correntes de diferentes inspiraes terico-ideolgicas. De um modo geral, contudo, por ter nascido e se expandido no quadro das anlises crticas do Estado, de seus dficits oramentrios, dos efeitos negativos das polticas de seguridade social e de sua interferncia na economia, isto , no quadro do que se chamou de pensamento nico ocidental que substituiu o conflito ideolgico global do perodo da Guerra Fria e o fim da era do socialismo real, absorveu, preponderantemente, uma conotao liberal. Com efeito, a noo de governana partiu de uma anlise da crise de governabilidade, nos planos local e internacional, inscrevendo-se na problemtica da perda de credibilidade da instncia estatal e da diminuio de eficincia e eficcia da ao pblica. A idia central, a partir desta perspectiva, de que em um mundo de complexidade crescente e de uma diferenciao, tambm crescente, de sub-sistemas, o Estado impotente para prever a conseqncia de suas aes e, portanto, para ditar normas e aplic-las, tornando-se incapaz de responder s demandas da sociedade. Em seu limite, o Estado conservaria, apenas, a aparncia do poder, j que os mercados internacionais constituiriam os verdadeiros rbitros das polticas possveis, sendo suas decises tomadas por operadores fechados em suas instituies especializadas, indicando, com isso, que a economia globalizada ter-se-ia libertado da poltica (F. X. Merrien, 1998). Como resposta ao que consideram como desfuncionalidade crescente do poder pblico, as vertentes liberais tendem a valorizar outros interlocutores, especialmente privados, e pregam o Estado mnimo como forma saudvel de governana, de acordo com o modelo da empresa privada (Rhodes, 1996). Paralelamente, autores ligados s correntes crticas que surgiram a partir dos anos 80 no campo de estudos das relaes internacionais, conscientes da necessidade de uma nova reflexo que acompanhasse o processo de transio de um mundo idelogica e estrategicamente bipolar para outro multipolar, se propuseram a reexaminar o conceito de multilateralismo, classicamente ligado ao das organizaes internacionais existentes. Estes autores, levados pela necessidade de estabelecerem novas formas de governana no plano mundial que incorporassem as diferentes foras sociais que emergiam, assumem que o sistema internacional deveria ser entendido como uma combinao entre Estado/sociedades complexas, isto , como uma unidade articulada entre as dimenses sistmica, estatal e social, e que fosse capaz de ir alm das estratgias convencionais na preservao tanto da segurana nacional quanto da ordem internacional. Dessa maneira, ao preservarem, em suas anlises, a permanncia do Estado e, ao incorporarem a idia de uma interpenetrao e identidade11

crescentes entre sistema internacional, Estado e sociedade civil, previram possibilidade de surgimento de novas modalidades de governana que, emergindo de baixo para cima, se constitua no como formas modificadas das organizaes intergovernamentais existentes, mas como formas novas de expresso social (R. Cox, 1997). Outras interpretaes, apoiadas em premissas em grande parte semelhantes, tambm fazem parte do debate atual sobre globalizao e governana. Paul Hirst e Grahame Thompson, por exemplo, revalorizam a dimenso poltica, bastante desacreditada pelo pensamento liberal, indicando que a poltica, da mesma forma que a economia, se transnacionalizou, dividindo-se em vrios centros de poder de diferentes nveis, o Estado nacional constituindo um desses nveis certamente ainda o central em um sistema de interaes complexas em que diferentes agncias de governana se superpem e muitas vezes competem. A partir dessa perspectiva, o sistema internacional teria passado a ser no mais simplesmente um sistema de Estados e sim uma estrutura plural, ou melhor, plurilateral, composta por blocos regionais, regimes regulatrios, agncias internacionais e transnacionais e polticas comuns legitimadas por tratados. Ou, em outras palavras, um sistema de mltiplos nveis e formas de regulao no qual micro e macro regies, assim como diferentes modalidades de associaes, organizaes e redes de cidados que emergem como novas unidades polticas podem contribuir para a reconstituio da poltica global em termos mais democrticos e socialmente menos excludentes. Mas importante salientar que dentro dessa nova configurao nova ao mesmo tempo que futura o Estado nacional, apesar de ver sua fora e autoridade compartilhadas com outras instncias de poder localizadas fora de seu territrio, no se teria tornado, como avaliam os liberais mais radicais, uma simples modalidade, dentre outras, de poder local ou de agncia poltica internacional em um sistema com multiplicidade de poderes e instncias regulatrias. Exatamente por ser Estado nacional, isto , por estar ligado tanto ao territrio como populao, teria permanecido como eixo central de mediao entre as agncias internacionais e as atividades nacionais e locais, criando as condies para uma efetiva governana em mbito internacional (P. Hirst e G. Thompson, 1996). Encerrando esta exposio, em que muitas indagaes foram colocadas e poucas respondidas, gostaria de salientar que o tema da governana traz inmeros questionamentos e grande diversidade de interpretaes. Contudo, elas convergem, em grande parte, na afirmao da existncia de uma tenso efetiva entre a esfera nacional e a ordem mundial globalizada, fazendo temer o enfraquecimento de todas as formas de articulao poltica, particularmente a do Estado-nao. Os limites da autonomia nacional, antes impostos pelo equi12

lbrio do terror, foram substitudos por formas mais sutis e mais estruturais de eroso, causadas pelos processos de globalizao econmica, social, ambiental, isto , por mudanas na escala inter-regional e transcontinental do exerccio de poder social e de sua organizao (D. Held, 1998). Uma nova teoria poltica que incorpore em suas anlises os problemas que emergem nos planos global e regional ainda no se visualiza com clareza. A teoria democrtica, preponderantemente voltada para os desafios que emergem dentro das fronteiras do Estado nacional, tem agora, diante de si, a tarefa de explorar as interconexes crescentes entre Estados e sociedades e entre foras nacionais, internacionais e transnacionais. E tem, como desafio analtico urgente, se perguntar se o Estado nacional dever permanecer no centro da reflexo democrtica. Como hiptese inicial pode-se prever que a chamada crise do Estado nacional no seja necessariamente terminal, isto , que represente um momento de transio para novos padres de articulao entre uma governana puramente nacional e novas formas polticas de atuao multilateral e global em que os direitos civis, polticos e sociais dos indivduos e dos Estados fossem incorporados s estruturas de poder inter-governamentais e transnacionais. Nessa nova configurao, as sociedades civis teriam uma participao destacada, contrariando o ideal liberal de que o mercado, com sua dinmica de liberdade total e de desconhecimento das fronteiras nacionais, se apresente como o nico candidato possvel para substituir a funo reguladora e integradora do Estado nacional (S. Camargo, 1997).

13

Bibliografia de RefernciaBOHMAN, James e LUTZ-BACHMANN, Matthias. Introduction, em BOHMAN, James e LUTZ-BACHAMANN, Matthias (ed). Perpetual Peace. Essays on Kants Cosmopolitan Ideal. The MIT Press, Cambridge, Londres, 1997. CAMARGO, Sonia. Economia e Poltica na Ordem Mundial Contempornea em Contexto Internacional, vol. 19, no. 1, janeiro/junho, 1997. COX, Robert W. Reconsiderations em The New Realism. Perspectives on Multilateralism and World Order. COX, Robert W. (ed), United Nations University Press, 1997. FERGUSON, H. YALE e MANSBACH. Political Space and Westphalian States in a World Polities: Beyond Inside/Outside, Global Governance, a Review of Multilateralism and International Organizations, volume 2, number 2, mayaug. 1996. FUKUYAMA, Francis, The End of History and the Last Man, Penguin Books, 1992. HELD, David, Political Theory Today.Stanford, Ca.. Stanford University Press, 1991. ___________ Cosmopolitan Democracy and the Global Order, em BOHMAN, James e LUTZ-BACHAMANN, Matthias (ed). Perpetual Peace. Essays on Kants Cosmopolitan Ideal. The MIT Press, Cambridge, Londres, 1997. JESSOP, Bob. Lessor de la gouvernance et ses risques dchec: le cas du dveloppement conomique, em Revue des Sciences Sociales, 155, maro de 1998 KANT, Immanuel, A Perpetual Peace, em KANT: Political Writings, REISS, Hans, Cambridge University Press, 1979. MERRIEN, Franois-Xavier. De la gouvernance et des Etats-Providence contemporains, em Revue des Sciences Sociales, 155, maro 1998 PAGDEN, Anthony. La gense de la gouvernance et lordre mondial cosmopolitique selon les Lumires em Revue Internationale de Sciences Sociales, 155, maro 1998 RHODES, R. A. The New Governance: Governing without Government. Political Studies,XLIV, 1996. ROSENAU, James N. Governance, Order and Change in World Politics. In: ROSENAU, James e CZEMPEL, Ernst-Otto (ed), Governance without Government. Cambridge, Cambridge University Press, 1992. SENARCLENS, Pierre. Gouvernance et crise des mcanismes de rgulation internationale em Revue Internationale des Sciences Sociales, 155, maro 1998.

14

Governana em um mundo ps-interdependente a caminho de uma poltica pblica globalWolfgang H. Reinicke*

IntroduoGovernana num mundo ps-interdependente seria mais uma nova frase de efeito? A escolha desta terminologia provm do desejo de indicar que a economia mundial est passando por uma profunda transformao estrutural que, no que tange s implicaes de poltica, difere nitidamente do perodo de interdependncia dos anos 70 e incio dos anos 80. Diante dos laos atuais entre produo e consumo global e o surgimento de redes sociais e de identidade que ultrapassam as fronteiras, difcil imaginar como poderamos retornar ao status quo ante sem uma grande crise econmica, poltica ou social. Com efeito, o setor privado, a sociedade civil e o indivduo continuam a adaptar-se a estas circunstncias novas e ainda movedias. Entretanto, aprender a operar nele e identificar-se com este ambiente sem hierarquia, altamente dinmico e cada vez mais desprovido de territorialidade e vencer as muitas presses que provoca mostrou-se um desafio maior do que muitos teriam previsto imediatamente aps o fim da Guerra Fria. Muito pelo contrrio, reconhece-se cada vez mais que o desafio central da poltica pblica no sculo XXI ser garantir que a ps-interdependncia continue sustentvel numa perspectiva social, poltica, de meio ambiente e de desenvolvimento. Evidentemente, o termo mais usual para designar este mundo ps-interdependente globalizao. Reflexo feita, porm, impressionante quo pou* Wolfgang H. Reinicke Senior Partner do Corporate Strategy Group do Banco Mundial e Senior Fellow no-residente da Brookings Institution. O autor agradece os valiosos comentrios de seus colegas Xavier Devictor, Arshad Sayed e Paula Stone. As opinies manifestadas na presente comunicao so exclusivamente do autor e no devem ser atribuidas s organizaes s quais pertence. A comunicao baseada na publicao do autor Global Public Policy: Governing without Government? (Brookings Institution Press, 1998). Traduo de Nikolaus Karwinsky.

15

co se sabe a respeito. Muitas vezes o termo usado sem que tenha sido definido. Com freqncia, a globalizao caracterizada pela intensificao contnua de atividades financeiras e econmicas acima das fronteiras resultando em maiores graus de interdependncia econmica. Essencialmente, interdependncia e globalizao seriam termos intercambiveis. Porm, se pudssemos captar a mudana atual em termos meramente quantitativos, haveria pouca necessidade ou incentivo para que os governos reavaliassem, luz da globalizao, seu prprio papel ou o das instituies multilaterais e os princpios que regeram a economia mundial desde o fim da II Guerra Mundial. Por outro lado, se estivermos no meio de uma transformao realmente qualitativa, torna-se necessrio estabelecer uma distino mais formal entre interdependncia econmica e globalizao, que nos permita avaliar no somente a necessidade, mas tambm a direo adequada da mudana.

Qual a distino essencial?Ao contrrio da interdependncia econmica, que reduziu a distncia entre naes soberanas e exigiu uma cooperao macroeconmica mais estreita entre atores do setor pblico (isto , governos), o maior impulso da globalizao provm de atores microeconmicos, o que nos obriga a reconsiderar formas tradicionais de cooperao internacional apropriadas para a gesto da prpria interdependncia econmica. A globalizao um fenmeno de grandes corporaes. Comeou em meados dos anos 80 quando as empresas reagiram concorrncia mais acirrada provocada pela desregulamentao e liberalizao durante a era de interdependncia econmica. Assim, a globalizao representa a introduo de uma dimenso transnacional na prpria natureza da estrutura organizacional e no comportamento estratgico de determinadas empresas. O crescente movimento alm das fronteiras de capital cada vez mais intangvel, como finanas, tecnologia, informao, bem como propriedade e controle de ativos possibilita s empresas incrementar sua competitividade e cria uma rede trans-fronteiras de ndulos interligados que geram valor e riqueza. Dados sobre a atividade das empresas comprovam o surgimento destas redes empresariais globais e assinalam uma transformao verdadeiramente qualitativa. Nos anos 60 e 70, por exemplo, o investimento direto estrangeiro cresceu em estreita relao com tangveis como produo e comrcio mundial. Entre 1985 e 1997, porm, o investimento direto estrangeiro cresceu taxa anual de 20,7%, contra 2% e 5,2% respectivamente para produo e comrcio. A maior parte deste investimento adicional se concentrava nos pases da OCDE16

e alguns poucos pases em desenvolvimento escolhidos e consistia em fuses e aquisies em ramos intensivos de pesquisa e desenvolvimento. Excludos os recursos dirigidos para a China e antigo bloco sovitico, que antes de 1985 quase no receberam investimentos, a parcela de investimento direto estrangeiro dirigida ao mundo em desenvolvimento baixou na realidade. Este quadro se confirma pelos padres de alianas entre empresas e acordos de cooperao que cresceram espetacularmente no decorrer da ltima dcada. O comrcio internacional tambm passa por uma transformao qualitativa, reestruturado pelo investimento direto estrangeiro e alianas internacionais. Segundo estimativas da OCDE cerca de 70% do comrcio mundial intra-ramo ou intra-empresa. No mundo financeiro, o advento da securitizao significa uma transformao qualitativa que facilita estratgias globais das empresas e que proporcionou a devedores e credores estrangeiros acesso a mercados financeiros domsticos. Em particular, o mercado de derivativos levou a maior crescimento e volatilidade de fluxos internacionais de capitais. O fato de que em 1995 o valor anual conjunto de comrcio e investimento direto estrangeiro em escala global correspondia a apenas cinco dias de movimento nos mercados globais de divisas comprova este fenmeno. Tudo isto indica que parte crescente da atividade econmica internacional durante a ltima dcada retrata a reestruturao de atividades das empresas em nvel interno, embora trans-fronteiras. Em muitos casos as empresas absorvem aes estrangeiras e internalizam atividades econmicas que outrora se efetuavam no mercado aberto. Alianas como contratos de fornecimento a longo prazo, de licena ou franquia no ficam plenamente expostas s foras do mercado. Quanto importncia crescente de fuses e aquisies, a OCDE lembra que mesmo o maior investimento isolado em determinado ano talvez nada mais represente do que uma mudana de propriedade, sem efeito sobre a alocao de recursos entre dois pases. Quanto ao comrcio, bons dados existem apenas para os Estados-Unidos, mas em 1996 perto de 40% de todo o comrcio dos EUA se referia ao comrcio intra-empresa ou, como o chama a OCDE, comrcio fora do mercado. Os governos continuam a registrar estas transferncias internas de grandes sociedades no porque sejam efetivamente operaes comerciais, mas porque atravessam mltiplos espaos polticos. Assim, necessria muita cautela ao se identificar automaticamente a globalizao com o surgimento de uma economia de mercado global, a menos que se possa garantir a existncia de uma infra-estrutura apropriada, de um espao pblico global dentro do qual estas redes empresariais podem competir. Isto no significa de modo algum que performance e gesto macroeconmica deixam de ser importantes. Pelo contrrio, a interdependncia e17

necessidade de cooperao macroeconmica eram precursores importantes da globalizao e permanecem o fator mais crtico para mant-la. Junto com a inovao tecnolgica, esta liberalizao da atividade econmica trans-fronteiras criou um ambiente que no somente possibilitou a adoo de estratgias globais pelas empresas mas tambm as obrigou a faz-lo. No obstante, a importncia crescente de barreiras no-tarifrias ao comrcio e a necessidade de concentrar nossa ateno sobre polticas de concorrncia global so apenas dois exemplos indicando que a dimenso microeconmica precisa de maior ateno. Com efeito, nada tornou mais evidente a importncia da dimenso estrutural, institucional e jurdica de uma economia de mercado global e local do que a recente crise financeira global. No surpreende que muitas das respostas crise tero de focalizar este aspecto estrutural e institucional das economias de mercado. Antes de considerar algumas destas respostas, pode ser til uma breve anlise da economia poltica da globalizao.

Definindo o desafioQue tipo de desafio a globalizao coloca aos governos e em que se for o caso ele difere do da interdependncia? A globalizao desafia a soberania? Intuitivamente, a resposta sim, mas o mesmo ocorre com a interdependncia e, sendo assim, precisamos mais uma vez diferenciar. Para tanto, cabem algumas distines essenciais. Primeiro, nem a interdependncia, nem a globalizao podem desafiar a soberania jurdica de um Estado somente outros Estados o podem. A rigor, estas foras desafiam a soberania operacional de um governo (isto , a capacidade do governo conduzir a poltica pblica). Segundo, o conceito de soberania tem duas dimenses uma interna, outra externa. A dimenso interna retrata o relacionamento entre Estado e sociedade civil. Para parafrasear o socilogo Max Weber, um governo tem soberania interna quando detm o monoplio do poder legtimo sobre uma srie de atividades sociais em um determinado territrio. No que tange a economia, os governos operacionalizam sua soberania interna ao arrecadar impostos ou regulamentar atividades do setor privado. A dimenso externa da soberania se refere a relacionamentos entre Estados no sistema internacional. Por exemplo, governos exercem soberania econmica externa ao arrecadar direitos alfandegrios e mudar suas taxas de cmbio. A interdependncia econmica considerada um desafio dimenso externa da soberania. Para reagir a este desafio, os governos seguiram os princpios e normas do internacionalismo econmico liberal, aceitando a reduo gradual mas recproca de sua soberania econmica externa, reduzindo bar18

reiras tarifrias e controles de capital no contexto de regimes internacionais. A globalizao no desafia a soberania externa de um pas, mas sim a soberania interna de um governo, ao alterar o relacionamento espacial entre o setor privado e o pblico. Este fenmeno se tornou evidente em muitos contextos sociais e mais claramente no campo da economia. Desde que a globalizao induziu as grandes empresas a fusionar mercados nacionais em um nico conjunto, elas passam a operar em um espao econmico que agora engloba mltiplos espaos polticos. Conseqentemente, um governo no mais dispe de monoplio do legtimo poder no territrio no qual as grandes empresas se organizam, minando sua soberania interna. A incidncia crescente de arbitragem de regulamentos e impostos evidencia o declnio deste monoplio. Isto no implica de modo algum que atores do setor privado sempre exeram um esforo consciente para minar a soberania interna. Pelo contrrio, seguem uma lgica organizacional que difere fundamentalmente da dos Estados, que so sistemas de defesa de fronteiras. Com efeito, a legitimidade dos Estados decorre de sua capacidade de defender fronteiras. Os mercados, porm, no dependem da presena de fronteiras. Assim, a globalizao integra mercados e ao mesmo tempo fragmenta polticas. Embora esta ameaa se refira apenas dimenso operacional da soberania interna, no se deve subestimar o desafio. Por qu? Porque uma ameaa capacidade de um governo exercer sua soberania interna implica uma ameaa eficcia da democracia. Apesar de pessoas poderem exercer seu direito de voto, o poder efetivo deste voto configurar a poltica pblica diminui com o declnio da soberania interna. Uma fraqueza permanente da soberania interna levantar dvidas sobre instituies democrticas. Mesmo que esta dinmica no seja a nica explicao do declnio da confiana em instituies de governana em numerosos pases, um fator com importante contribuio. Governos que constatam que sua legitimidade, sua prpria raison dtre, vem sendo minada, no tm outra escolha seno reagir.

Respostas globalizaoPor enquanto, a maioria destas respostas globalizao tem sido principalmente reativa e pertence a duas categorias, ambas variantes do que, essencialmente, so estratgias intervencionistas. As que consideram a globalizao uma ameaa pregam uma interveno defensiva, recomendando medidas econmicas como a introduo de direitos aduaneiros, barreiras no-tarifrias, controles de capital e outras restries definidas em termos de territrio que obrigam as empresas e atores privados em geral a uma reorganizao de19

mbito nacional ou regional. Mesmo tendo sido este fenmeno j observado antes da crise financeira global, provvel que se intensifique em conseqncia da mesma. Se o nacionalismo econmico no entusiasma a opinio pblica, sua forma poltica talvez seja mais bem sucedida. Clamar por maior independncia regional no apenas na poltica econmica mas tambm na poltica exterior e at diviso do territrio na esperana de recobrar a soberania interna uma estratgia poltica que, no mundo inteiro, ganhou foras no decorrer da ltima dcada. Outros exigiram dos responsveis polticos uma interveno ofensiva com incentivos ao investimento e desregulamentao competitiva. Nestas circunstncias, os prprios Estados se tornam concorrentes globais, procurando convencer as grandes empresas a operar nos seus respectivos territrios. Independentemente do xito destes propsitos, a interveno ofensiva tambm se tornou instrumento poltico bastante difundido, com alguns pases tentando expandir o alcance de sua soberania interna de forma a combinar a geografia econmica com as redes globais de grandes empresas. A tentativa da California de tributar em base global as empresas ali sediadas e a Lei Helms-Burton so dois dos exemplos mais ilustrativos. Nenhuma destas respostas promissora para o futuro das relaes internacionais, nem o das nossas economias. O protecionismo de um pas ou regio leva retaliao e coloca a economia mundial na rota da desintegrao. Subvencionar uma indstria com a nica finalidade de obter vantagem competitiva no ajudar a integrao mas, pelo contrrio, desviar escassos recursos pblicos de objetivos importantes de poltica pblica. A desregulamentao competitiva talvez no leve desintegrao, mas contraria a finalidade inicial desta poltica; um mercado plenamente desregulamentado reduz ainda mais a soberania interna de um governo. Isto no coloca em dvida, de modo algum, a importncia de reformas estruturais. , porm, um lembrete que a obsesso pela competitividade entre naes levar a uma situao de ganho e perda e dar apoio quelas foras polticas que favorecem o nacionalismo econmico (ou seja, interveno defensiva), tornando ainda mais difcil o ajuste estrutural. A extraterritorialidade, como no caso da Lei Helms-Burton, tambm no favorece uma integrao mais profunda. Outros Estados adotaro represlias contra uma imposio deste tipo. Enfim, redefinir a geografia poltica atravs da diviso apenas d uma aparncia de maior controle da poltica. Dividir um pas focaliza unicamente a dimenso externa da soberania. De modo algum isola um governo dos desafios da globalizao e talvez at o torne mais vulnervel. Note-se que todas estas respostas insistem novamente sobre a territorialidade como princpio de ordenamento das relaes internacionais, uma situao que a interdependncia procurou vencer. Todas so contrrias globaliza20

o e sero bem sucedidas apenas se forem abandonadas as conquistas do ps-guerra. Alguns julgam esta possibilidade remota, mas no se pode deixar de assinalar que nos ltimos anos a popularidade destas polticas aumentou consideravelmente. Em muitos pases, polticos oportunistas tm aproveitado os receios do pblico quanto eficcia declinante da soberania interna e esto pregando um maior nacionalismo econmico e/ou regionalismo fechado. Se no encontrarmos alternativa melhor, os governos sero logo obrigados a contar com estas intervenes para estancar a perda de soberania interna e crescente eroso da confiana nas nossas instituies democrticas.

Configurando a globalizaoQuais as linhas gerais de uma alternativa? Se os governos desejarem configurar a globalizao em lugar de reagir mesma, tero de tornar operacional a soberania interna num contexto no-territorial. Constituir um governo global seria uma resposta, embora irrealista. Obrigaria os Estados a renunciar a sua soberania no apenas no dia-a-dia mas tambm em um sentido formal. Tambm seria indesejvel por motivos de responsabilidade e legitimidade. Outrossim, embora um governo global possa ser a resposta do tecnocrata s falhas de enfoques de poltica pblica baseados na territorialidade, no poderia de modo algum igualar o dinamismo de redes globais econmicas e sociais. Nada leva a crer que um governo global seria melhor equipado para lidar com as complexidades tcnicas de poltica pblica neste final do sculo XX do que seus semelhantes nacionais. Uma estratgia mais promissora parte da diferenciao j assinalada entre soberania operacional e formal. Governana como funo social essencial para o funcionamento de toda economia de mercado nacional, regional ou global no precisa ser identificada com governo. Assim, uma poltica pblica global desconectaria os elementos operacionais de soberania interna (governana) de sua base territorial formal (o Estado nacional) e ambiente institucional (o governo). Para implementar uma estratgia como esta, os responsveis pela poltica recorreriam ao princpio da subsidiariedade, embora num sentido muito mais lato do que o conhecido na Unio Europia, na Dcima Emenda Constituio dos EUA ou em outras estruturas federalistas. O sub na subsidiariedade se emprega em sentido funcional e se refere a todo ator ou instituio bem colocado para apoiar a operacionalizao da soberania interna no contexto global. Podemos ainda diferenciar duas formas de subsidiariedade. A subsidiariedade vertical delega a elaborao de poltica pblica a outros atores do setor pbli21

co. No que tange a globalizao, trata-se principalmente de instituies multilaterais. Embora pouco comentado, o papel e mandatos em mudana do FMI, Banco Mundial e OMC que atualmente tratam de corrupo, regulamentao financeira e padres de meio ambiente parece indicar que, de fato, se tornam cada vez mais engajados em assuntos de soberania interna. Entretanto, este papel expandido de instituies multilaterais somente ser bem sucedido se as burocracias nacionais vierem a estabelecer canais permanentes de comunicao e interagirem regularmente para facilitar o intercmbio de informaes da maneira aberta e transparente necessria para uma poltical pblica global bem informada. Na rea das finanas globais isto se tornou evidente em nvel institucional em casos como o colapso do Barings ou os problemas no Daiwa. No nvel sistmico, a crise financeira na sia alertou os responsveis pela poltica quanto ao fato de que estes contatos deveriam ter sido estabelecidos muito anteriormente. No deveria restar dvida de que alianas burocrticas transnacionais precisam ir muito alm da rea de mercados de capital globais e abranger uma larga faixa de problemas de poltica, inclusive o do nmero crescente de barreiras no-tarifrias no comrcio que comea a ser considerado no mbito da OMC e OCDE. O estabelecimento de uma colaborao burocrtica transnacional um primeiro passo importante e necessrio para a criao de um espao pblico global, mas no basta. Estas redes burocrticas no podero eliminar todas as disparidades em pauta. Continuariam a carecer do dinamismo, agilidade e base de conhecimentos caractersticos de redes econmicas e sociais globais. Nem chegariam perto do nvel de participao e responsabilidade que toda estrutura geradora de poltica pblica desejaria gerar para garantir sua credibilidade e, portanto, sustentabilidade, seja no nvel local, nacional, regional ou global. Sistemas de poltica pblica versteis, inteligentes e legtimos somente podem surgir se a poltica pblica se dispuser a recorrer largamente subsidiariedade horizontal, ou seja, se delegarem ou terceirizarem aspectos da criao de poltica pblica a atores no-estatais, como os meios de negcios, ONGs, fundaes e outros participantes interessados da sociedade civil. A finalidade destas redes globais de poltica pblica preencher um dficit ou vcuo a fim de construir pontes entre governos, setor privado e sociedade civil, que atualmente no existem mas fazem muita falta. Retratam em si a cambiante distribuio de poder entre estes atores no sistema internacional. Possibilitam aos participantes reunir recursos diversos e tratar de problemas que grupo algum pode atualmente solucionar sozinho ou no contexto de um territrio soberano. Assim e no obstante o fato de cada setor (pblico, com fins lucrativos e sem fins lucrativos) ter interesse direto no resultado da poltica pblica, ajudam a estabelecer uma perspectiva tri-setorial de inte22

ressados que transcende valores e vises das organizaes participantes, criando um forum para definir as melhores prticas, padres e normas com os quais os interessados essenciais podem identificar-se com engajamento na sua implementao. igualmente importante o fato da faixa de atividades dos participantes do setor privado em redes deste tipo no ser limitada por fronteiras polticas. Outrossim, uma melhor informao, conhecimento e compreenso destes atores quanto aos problemas de poltica pblica cada vez mais complexos, impulsionados pela tecnologia e em mudana acelerada, no somente gerar maior aceitabilidade e legitimidade de uma poltica pblica global; estas parcerias entre o pblico e o privado, baseadas em rede criada pela subsidiariedade horizontal, tambm produziro um processo de poltica mais eficiente e efetivo. Enfim, lanando pontes entre sociedades civis, a subsidiariedade horizontal cria uma comunidade internacional real, uma verdadeira sociedade civil global incentivando sistemas recprocos de aprendizado e abertura mudana no seio da poltica pblica. Em matria de regulamentao financeira global, proteo do meio ambiente, proteo social, luta contra a criminalidade transnacional e numerosos outros problemas de poltica global, a subsidiariedade horizontal se tornaria um singular princpio central de poltica pblica global. Crticos desta idia questionaro a sabedoria de colocar interesses privados e pblicos sob a direo de uma mesma instituio, argumentando que o interesse do pblico passaria provavelmente ao segundo plano. Realmente, a experincia limitada de regulamentao mista justifica este ceticismo at certo ponto. Antes, porm, de renunciar a uma poltica pblica global caberia examinar as falhas atuais de uma regulamentao mista. Em primeiro lugar necessria maior transparncia. Princpios estritos de regulamentao baseada em divulgao, proporcionando a outros grupos acesso suficiente para garantir a representao adequada de seus interesses, incrementaria a confiana em uma estrutura deste tipo. Em segundo lugar, as grandes empresas precisam facilitar parcerias entre o pblico e o privado, melhorando suas prprias estruturas internas de controle e gesto. Auditorias independentes e estruturas de incentivo e recompensa que desencorajem a tomada de riscos excessivos so exemplos de providncias que podem ser tomadas com facilidade. Quanto maior o cuidado com a governana empresarial, menor ser o risco de falha do mercado e necessidade de regulamentao por terceiros. Os cticos com relao a parcerias entre o pblico e o privado e poltica pblica global deveriam considerar os riscos embutidos nas alternativas. Uma segunda fonte de crticas que redes de poltica pblica global possam padecer de dficit democrtico, termo familiar aos observadores da inte23

grao europia. Em outras palavras, desligar formulao e implementao de poltica pblica de sua base territorial talvez seja soluo tcnica ao desafio de sustentar a globalizao, mas no pode oferecer uma soluo poltica muito pelo contrrio, ao separar o processo de poltica pblica de sua base territorial prejudica-se mais ainda sua legitimidade e seu carter democrtico. Isto exige um esforo concentrado de conceitualizar a teoria democrtica e o conceito de pluralismo, no mais apenas no contexto do ente poltico definido territorialmente. Diante da dificuldade de tornar operacional a democracia representativa em um contexto global, em futuro previsvel, um primeiro passo promissor pareceria ser uma maior insistncia em modelos participativos e deliberativos de democracia, contando com as parcerias entre o pblico e privado que acabamos de delinear. No obstante, neste particular que uma poltica pblica global enfrentar seu maior desafio e ainda exigir um considervel trabalho analtico e operacional. Enfim, por enquanto a soberania formal permanece nas mos do setor pblico. A subsidiariedade horizontal apenas possibilita aos responsveis pela poltica criar uma estrutura de poltica pblica mais flexvel e dinmica, eficaz e eficiente, que possa responder aos requisitos de uma economia global, possibilitando aos governos recobrar sua legitimidade de principais provedores de bens pblicos.

Novas demandas na rea de segurana internacionalA globalizao ainda coloca novos requisitos para o conceito de segurana internacional. Note-se que a soberania externa depende da capacidade de excluir outros (obviamente, neste particular o conflito bipolar era o exemplo mais vvido). Porm, conforme j vimos, a soberania interna depende da capacidade de incluir, criar um senso de comunidade e de pertencer. a raiz da cidadania, configura nossas identidades. Entretanto, ao examinar mais de perto os dados sobre investimento direto estrangeiro e alianas entre empresas aos quais nos referimos, constatamos que vastas partes da economia mundial e de seus participantes permanecem excludos da globalizao. Se prosseguir a globalizao e se, em resposta, a manuteno da soberania interna se tornar cada vez mais um problema de relaes internacionais, a incluso passar a ser ento um dos temas centrais da segurana internacional nos prximos anos, colocando as instituies financeiras internacionais e em particular o Banco Mundial no centro da segurana internacional. Assim, longe de ficarem cada vez mais marginalizadas, as instituies multilaterais permanecem cruciais. Porm, ao invs de dominar o processo, deveriam atuar como suporte, propor24

cionando uma plataforma para reunir redes de poltica pblica global, garantindo acesso, transparncia e gesto de conhecimentos da mais alta qualidade, bem como estabelecendo um processo capaz de prover bens pblicos em escala global. A parceria entre a Unio Mundial de Conservao e o Banco Mundial na constituio da Comisso Mundial de Barragens criou um precedente. O processo malogrado para chegar a um Acordo Multilateral sobre Investimentos tambm esclarecedor, embora tenha tido resultado diferente. H cinco dcadas, estas instituies receberam o mandato de gerir a crescente interdependncia. Seu futuro reside na gesto da globalizao e poltica pblica global. Para ter credibilidade e eventualmente xito, redes de politica pblica global tambm precisam ser includas num quadro jurdico internacional. Neste particular tambm h mudanas em curso. A rea internacional comeou a dar preferncia a acordos jurdicos internacionais facultativos, ao mesmo tempo mais flexveis e ainda abertos a partes que no sejam Estados, refletindo a natureza mista dos que participam em redes de poltica pblica global. No obstante o fato destes acordos representarem direito internacional facultativo, o grau de observncia surpreendentemente elevado e nada impede que venham a evoluir para legislao compulsria. provvel que se recuse uma agenda to ambiciosa. Poderia surgir o argumento de que a constituio de redes de poltica pblica global transfere poderes em excesso a instituies multilaterais e que esta transferncia fere a soberania de Estados nacionais. Esta atitude ilustra perigosa falcia encontrada com crescente freqncia em crculos polticos. Encarregar instituies multilaterais da criao de plataformas para redes de poltica pblica global para garantir que a globalizao prossiga num caminho sustentvel no leva a uma perda de soberania. Muito pelo contrrio, demonstramos que os Estados nacionais j perderam soberania e a criao de redes de poltica pblica global representa uma maneira coletiva de recobr-la, evitando ao mesmo tempo as repercusses econmicas e sociais da interveno defensiva. Outrossim, no significa que atores locais no possam preencher relevante papel na observncia e monitoramento de regras e padres ajustados em escala global. Ao garantir que estas redes sejam baseadas em parcerias com a sociedade civil e o setor privado, do significado prtico e orientao ao princpio freqentemente citado, pensar globalmente agir localmente. Outros alegariam que estabelecer e administrar estas redes ser impossvel diante da dificuldade de racionalizar a ajuda externa depois da Guerra Fria e da diversidade de interesses polticos envolvidos. Entretanto, transferncias de recursos que apiam a criao de redes de poltica pblica e larga participao nas mesmas, para promover a estabilidade financeira internacional, prote25

ger o meio ambiente global, combater o crime transnacional e prover outros bens pblicos globais ou regionais no so, na realidade, nem externas nem ajuda, mas sim um investimento que gera retornos compartilhados por todos.

ConclusesRedes de poltica pblica global no contestam a soberania interna como princpio organizador da vida poltica e social; contestam, sim, sua organizao nos moldes territoriais tradicionais. Isto exige liderana poltica e mudana institucional, ambos raros, embora crises como a atual exeram um efeito positivo (temporrio?) neste sentido. A construo destas redes exige ainda a vontade e estreita cooperao de atores privados e no-governamentais de compartilhar responsabilidade no exerccio da poltica pblica. Em particular, ser decisivo para o xito o grau no qual a comunidade empresarial global estiver pronta e capacitada a assumir algumas funes de poltica pblica em conjunto com outros atores no-estatais. Enfim, a poltica pblica global no algum objetivo distante o momento de dar os primeiros passos prticos agora. H uma tendncia de perceber a globalizao como algo inevitvel, irreversvel e at significando o fim da Histria. No o caso. A economia mundial viveu nveis similares de integrao entre 1870 e 1913, um perodo freqentemente chamado de idade de ouro da economia internacional. E este teve um fim diferente. Hoje, a interdependncia corre o perigo de se tornar vtima do prprio sucesso. As atuais discrepncias entre formas pblicas e privadas de organizao social no so sustentveis. As estratgias intervencionistas aqui delineadas no deveriam ser descartadas como inaplicveis. Muito pelo contrrio, gozam de crescente popularidade e entraram no mainstream do debate poltico. Mais do que isso, estamos apenas comeando a compreender as implicaes de mais longo prazo da crise financeira global. previsvel que acabem por intensificar o receio generalizado a respeito da globalizao na sia e outras partes do mundo.

26

Obstculos e possibilidades para a governabilidade global*Tullo Vigevani**

Este fim de sculo XX e incio de sculo XXI constituem oportunidade para a reflexo sobre relaes internacionais, sobre a chamada globalizao e sobre as possibilidades de governabilidade global a partir de uma perspectiva de ciclos longos. Discute-se sobre o conceito de governana, mas este deve ser melhor definido. Apenas desta forma poderemos, se for o caso, utiliz-lo de forma adequada. Buscando contribuir a este debate, consideraremos alguns dos temas que tm a ver com a idia que o termo governana parece pressupor. Deste ponto de vista, teremos em conta questes gerais, que interessam a todos os povos e a todos os Estados, mas tambm temas que fazem parte das preocupaes de pases intermedirios e pobres, como o caso do Brasil. As questes que apresentamos a seguir, sob forma de itens, tm a ver com a possibilidade ou no da governabilidade global. De qualquer forma, podemos adiantar que se governabilidade e governana se tornarem conceitos que atendem apenas aos interesses de algumas naes, se se limitarem a pontos restritos da agenda internacional, ainda que muito relevantes, se no considerarem o interesse de todos, tero pouca possibilidade de consolidarem-se. O que no significa, como a experincia sugere, que no possam tornar-se efetivos. Provavelmente, a ordem internacional do incio do sculo XXI se enfrentar com o dilema, no novo, mas com novas caractersticas, de ser alcanada ou pela forma da hegemonia ou pela forma do consenso. Sabemos que os processos histricos no so nem simples nem lineares, h espao para solues intermedirias e contemporizadoras. O fim da Guerra Fria e o surgimento da possibilidade de prevalncia de valores universais construdos coletivamen* A elaborao deste texto contou com a colaborao de Priscila Rodrigues Correa e Rodrigo Cintra, bacharis em Relaes Internacionais da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. **Professor da UNESP (Universidade Estadual Paulista) e pesquisador do CEDEC (Centro de Estudos de Cultura Contempornea).

27

te so fatores que poderiam colocar as bases de uma ordem de tipo consensual. Porm, uma anlise objetiva dos processos contemporneos sugere que ainda estamos longe deste tipo de ordem. Da a razo pela qual difcil ser otimista no que tange boa governabilidade internacional e governana. Tendo como objetivo a reflexo a respeito das condies positivas e negativas para alcanarmos estas metas, os obstculos, as dificuldades e as oportunidades que surgem, examinaremos algumas questes que merecem considerao.

1. Equilbrio de poderUm pilar do sistema interestatal, o equilbrio de poder, considerado desde o fim do sculo XVII at 1989 de fundamental importncia, o elemento essencialmente poltico das relaes internacionais, pareceria deixar de existir com o fim da Guerra Fria. certamente este um tema relevante para analisar as modificaes no sistema e se a aparente ausncia do equilbrio de poder, ao menos do equilbrio sistmico, como pensado at 1989, pode facilitar ou no a associao de objetivos, requisito necessrio para a governabilidade. A tentativa de responder a essa questo abre caminho a discusses diversas: o significado dos valores, a segurana internacional, a posio a ser tomada pelos Estados. No mundo ps-Guerra Fria se esboa um debate situado no mesmo campo em que situa-se o conceito de associao de objetivos. Isto, provavelmente, tem a ver com o surgimento do conceito de governana. Mas a constante reproduo de valores realistas, ainda que atualizados para adequarem-se a um mundo em profunda modificao, permite afirmar que os valores da associao prtica persistem em ter maior influncia. Nardin afirmou partilhar a premissa de que so as prticas comuns e no os objetivos partilhados que oferecem as condies da associao internacional (Nardin, 1987, p. 27). Isto , prticas comuns existiriam independentemente da existncia de objetivos comuns. Para a teoria das relaes internacionais, h possibilidade de compatibilizar normas com anarquia. Para Bull (1995) isto significa fortalecer os elementos societrios no quadro de um sistema de Estados. O que certo que, desde Westfalen, diplomacia, direito e equilbrio de poder intermediam as relaes entre os Estados. Presenciamos na contemporaneidade a um fato, at certo ponto, indito: o equilbrio entre potncias particularmente sob o ngulo poltico-militar j no existe. E no sabemos como o equilbrio internacional ser doravante mantido. Esta questo tem relao com o debate sobre governabilidade internacional. O que dissemos sugere que a convivncia28

poder permanecer, mas no ser suficiente para garantir governana. O equilbrio de poder foi, nos ltimos trs sculos, um elemento daquilo que podemos chamar de governabilidade precria. Quando parece desaparecer o equilbrio, ao menos como at aqui pensado, cabe questionar-nos sobre como poder processar-se a conteno da anarquia. As normas prevalecero, voltaremos anarquia ou haver normas impostas pela hegemonia?

2. Sociedade internacionalNo incio do sculo XXI, o tema do confronto entre a vontade geral, que aceita o princpio da ordem, e a vontade individual dos Estados, que rejeita a hierarquia, continuar no centro do debate. Ao no aceitar limitaes prpria soberania, so os Estados que, mesmo quando afirmam sua posio em favor da governabilidade e, alguns, da governana, colocam, ao mesmo tempo, limites a estes objetivos. O equacionamento deste confronto poder contribuir resposta para a questo de se permanecemos num sistema interestatal, cujos integrantes se toleram entre si, ou se estamos s vsperas de uma sociedade internacional, que preserva os interesses coletivos e a volont gnrale. Estes interesses e esta volont, quando aplicados s relaes internacionais, so ricos de conseqncias: o sistema interestatal adquire a noo de que h questes de interesse especfico de alguns pases, no de todos, que podem ter conseqncias para o conjunto. Do ponto de vista estrito das relaes internacionais, regras, acordos, instituies criadas para permitir a convivncia entre Estados, podem funcionar convenientemente e atender aos objetivos pelos quais so estabelecidas, na medida em que ordem e estabilidade relativas servem prpria perpetuao do sistema interestatal, portanto a um sistema ainda anrquico. A associao prtica pode surgir de diferentes formas. Pela existncia de um Estado hegemnico, pela vontade de uma poliarquia, pelo acordo voluntrio de um grande nmero de pases. A teoria dos regimes internacionais no exclui que qualquer destas situaes possa dar origem a regimes. Portanto, podemos sugerir que uma situao em que haja regras, procedimentos e valores compartilhados no caracteriza nem a superao do sistema interestatal nem a da associao prtica. Recordando as palavras de Rousseau (1970), a comunidade de valores no possibilita ainda a caracterizao de uma associao de objetivos, estes exigiriam o banimento da hierarquia e a existncia de uma soberania, de leis legtimas que a todos inclussem e que por todos fossem decididas. Esta idia, certamente associada de mudana nas relaes internacionais, permitiria aceitar a outra idia, de que o mundo ps-Guerra Fria29

estaria virando a pgina, no sentido da superao do sistema de Westfalen. Na virada do sculo, nada h que sugira a existncia de objetivos comuns. Portanto, governabilidade e governana parecem discutidos, ainda, no campo da lgica de interesses, sobretudo nacionais. A governabilidade do sistema internacional, de acordo com as distintas teorias, supe autoridade e legitimidade. Tanto em Maquiavel quanto em Marx poderamos encontrar os pressupostos desta afirmao. Os que defendem a idia, numa perspectiva realista, que a paz para ser permanente exige ordem e hierarquia, acentuam o papel do Estado. Gilpin, ao discutir a interdependncia do mercado, concentra sua ateno sobre o papel da poltica internacional e em particular a presena ou a ausncia da liderana poltica (Gilpin, 1987, p. 24). A teoria da estabilidade hegemnica procura demonstrar que sem a existncia de uma responsabilidade de ltima instncia no possvel qualquer forma de estabilidade internacional, pois a lgica anrquica do sistema acabaria prevalecendo (Kindleberger, 1984). Para a compreenso de como os acordos internacionais, a criao de valores hegemnicos e a coincidncia de interesses, por mais importncia que tenham e por mais durabilidade que venham a demonstrar, no so suficientes para a criao da homogeneidade necessria ao estabelecimento de uma sociedade internacional, ou de uma comunidade de destinos, vale a pena citar as razes apontadas por Holsti para a criao do Concerto Europeu. Os governantes criaram o sistema com base num (1) consenso ideal o desejo de impedir a repetio do drama napolenico, a hegemonia e uma guerra paneuropia; (2) a existncia de uma colaborao prvia que se desenvolveu durante a coalizo existente nas guerras contra Napoleo; e (3) acordo de que as instituies, se no fossem possveis as organizaes, seriam necessrias para levar adiante os objetivos de governabilidade (Holsti, 1992, p. 36).

3. Valores hegemnicosValores hegemnicos internacionalmente reconhecidos parecem crescentemente pesar na configurao do sistema. A institucionalizao de novos valores decorreria das mudanas que parecem levar forma unipolar, embora nela permaneam significativas caractersticas de multipolarismo. A tendncia ao unipolarismo no necessariamente sinnimo de predomnio de uma determinada potncia. Os valores que durante a Guerra Fria serviram de apoio para a sustentao do equilbrio bipolar (defesa da civilizao ocidental ou antiimperialismo militante) no mais se ajustam nova configurao do sistema internacional, cuja sustentao dependeria agora da predominncia de pilares30

diversos, como o liberalismo econmico, os direitos humanos, a proteo ambiental, os direitos sociais e, igualmente importante, o militar-estratgico, ainda que considerado sob formas novas. A aceitao formalmente voluntria de boa parte dos novos valores pelos Estados ocorre em funo da busca da viabilizao de sua insero no sistema internacional. Em relao a diferentes temas, vem contribuindo a presso dos assim chamados novos atores. A emergncia de regimes internacionais como o dos direitos humanos, ou a maior nfase que se tem dado aos regimes econmico-financeiros de carter liberal e competitivo, so o resultado da hegemonia contempornea de valores aptos a se apresentarem como intrinsecamente universais e funcionais ao bem comum. Seu xito decorre da capacidade de apresentarem-se como bens morais de conotao positiva e de corresponderem a anseios humanos historicamente construdos. So tambm o resultado de um maior ativismo internacional de instituies ou grupos que explicitamente fomentam esses regimes: organizaes no-governamentais (ONGs), empresas multinacionais, rgos internacionais, comunidades epistmicas etc. Na maior parte dos casos, estas instituies ou grupos tm conotaes inteiramente diferentes entre si, sendo seus objetivos estabelecidos de acordo com finalidades prprias. Inmeras vezes, os regimes so o resultado da combinao de interesses privados, mesmo partindo de premissas universalistas, transformados em pblicos pela ao de um, alguns ou muitos Estados. Em determinadas circunstncias, aquelas instituies ou grupos podem servir como instrumento de um ou mais Estados para a aceitao ou para a institucionalizao dos novos valores hegemnicos. Um problema clssico, mas que ganha conotaes novas, o de como cada Estado e sua populao elaboram a possibilidade de superposio desses valores de interesse universal com os seus prprios. Em outros termos, como poderia-se conjugar o particularismo nacional com a governabilidade global e com a governana. As alteraes ocorridas na configurao do sistema internacional no fim do sculo XX, particularmente na dcada de 90, so fatores relevantes nas transformaes em curso. Cabe verificar quais seriam essas alteraes em relao s dcadas anteriores e em relao a todo o sculo XX e mesmo aos anteriores, e quais os possveis cenrios futuros. Este cenrio , mais do que algo do final do sculo, o resultado de um processo de desenvolvimento do sistema internacional moderno. Desde Westfalen, os Estados vm afirmando a soberania nacional. Com o amadurecimento da idia de soberania, a segurana internacional, sobretudo a proteo da prpria soberania, passou a no se fundamentar apenas nas capacidades individuais de cada Estado, mesmo porque surgiram as armas nucleares. Estas tiveram um papel ainda no plenamente analisado no sentido de enfraquecer a segurana individual de cada31

Estado. Sem dvida, este enfraquecimento poderia ser um dos elementos favorveis criao da volont gnrale. At aqui, o que temos visto que a idia de segurana, seja militar, seja econmica, seja financeira, seja ambiental, ou outra qualquer, tem permanecido de responsabilidade de atores individuais ou de considerados garantes de ltima instncia. O risco de identificao das vontades e das responsabilidades de atores individuais com a prpria idia de governabilidade global o que est em questo. Em outras palavras, no convm estabilidade da governabilidade sua identificao com as vontades dos atores individuais.

4. Interesses e valores comunsA sociedade internacional existiria, segundo Bull (1995), por estarem os Estados convencidos da existncia de alguns interesses e valores comuns. A defesa do direito internacional seria a base para a existncia da sociedade de Estados, em que estes procurariam agir de acordo com suas leis. Numa concepo pluralista da sociedade internacional, os Estados so capazes de se colocarem de acordo em relao a alguns pressupostos bsicos, dentre os quais os mais importantes so o reconhecimento da soberania nacional e a norma da no-interveno. De acordo com esta concepo pluralista, a ordem pode ser alcanada mesmo num contexto internacional onde prevalecem sociedades heterogneas em relao a inmeros valores: Gr-Bretanha e Rssia em 1818. Os Estados, segundo Linklater (1992), so capazes de concordar sobre a necessidade de ordem em detrimento de suas vises sobre justia. Provavelmente, uma das grandes dificuldades para caracterizar o sistema internacional da ltima dcada do sculo XX e dos primeiros anos do sculo XXI (Lafer e Fonseca Jnior, 1994) esteja sendo a tendncia em curso, no definitivamente consolidada, modificao de alguns daqueles pressupostos bsicos. Bastaria ver o debate contemporneo relativamente aos principais deles, a soberania nacional e a no-interveno (Archibugi, Held e Kohler, 1998), ao mesmo tempo em que, justamente, uma viso universal de justia parece abrir caminho. Os riscos implcitos esto estreitamente ligados s formas como vai sendo definida esta viso universal. As idias diferentes mas paralelas de governabilidade global e de governana ganhariam espao dentro desta trajetria: a da associao de ordem com justia, ou, preferencialmente, a integrao do conceito de justia e de igualdade aos valores reconhecidos como fundantes da comunidade internacional. Ainda que lgica esta perspectiva, s vezes incorporada s decises dos organismos internacionais, deve-se reconhecer estar longe da realidade efetivamente existente. Isto , interesses e valores co32

muns nem sempre constituem a base da viso considerada universal. Como exemplo, universaliza-se o valor livre comrcio, mas no se torna um valor comum a idia de desenvolvimento. Para que as potncias assegurem a ordem seria necessrio que elas estabelecessem suas prprias relaes de forma ordenada, com base em princpios comuns, e que utilizassem a diferena de poder para fortalecer e no para enfraquecer o sistema internacional. O fortalecimento do sistema tem como pressuposto bsico consensos consolidados e no consensos estabelecidos com base no pressuposto da hegemonia. Apenas esta idia de fortalecimento do sistema criaria condies para uma sociedade internacional, uma associao de objetivos (Nardin, 1987) com interesses e valores comuns.

5. Ordem, justia e desenvolvimentoAo discutir-se o tema da governabilidade global, preciso ter em conta que estamos assistindo ao fortalecimento de foras centrpedas, havendo, ao mesmo tempo, o desenvolvimento de foras centrfugas (Lafer e Fonseca Jnior, 1994). Deve-se insistir no fato de que a predominncia de uma das duas foras, em si mesma, no garante um determinado tipo de configurao, unipolar ou multipolar, nem tem diretamente a ver com a possibilidade de governana. A coexistncia das duas foras, atuando contemporaneamente, amplia o campo das incertezas. Nesta fase da histria, deve ser sublinhado que, apesar da assimetria produzida por um grande excedente de poder por parte dos Estados Unidos, tem havido situaes em que regimes internacionais que a todos obrigam possibilitaram resultados que, a longo prazo, podem favorecer regras, procedimentos e valores de carter universal. Cabe, portanto, reconhecer que h, parcialmente, situaes aptas ao fortalecimento das possibilidades de governabilidade. Seria o caso da atitude da OMC, sustentada particularmente pela Unio Europia, de rejeio de fato da lei norte-americana Helms-Burton, e a deciso da Conferncia de Roma, de 1998, a favor da criao de um Tribunal Penal Internacional para o julgamento de crimes contra a humanidade. Nesta fase ps-Guerra Fria, as questes internacionais referem-se configurao do sistema, tendo diretamente a ver com o modelo de ordem que se quer ver estabelecido. Uma determinada concepo de ordem no tem a ver apenas com o poder, mas tambm com a prpria concepo de mundo. Para a estabilidade da ordem internacional, inclusive para que sejam criados os pressupostos de uma ordem cosmopolita, ou at de uma cidadania mundial (Thompson, 1998), faz-se necessrio o tratamento privilegiado das questes normativas que se apresentam sob o ttulo geral de ordem com justia, ou, no33

caso particular da linguagem diplomtica brasileira, como lembra Lafer (1998), ordem com desenvolvimento: conceitos no iguais mas com parentesco entre si. Tambm nesse caso, fortalecer-se-ia a perspectiva, por ora utpica, de sociedade internacional, com potencialidades quanto governabilidade. O sistema internacional ps-Guerra Fria apresenta uma natureza mltipla e paradoxal. Por um lado, est mais impermevel, j que neste perodo da histria h uma evidente assimetria de poder, h reconhecidamente um sistema hegemnico. Os custos da no-insero so elevados, como demonstram os casos do Iraque, do Ir, da Iugoslvia, de Cuba. Aparentemente, no h modelos alternativos viveis para os Estados. Ao mesmo tempo, no ps-Guerra Fria ganhou fora a idia do consenso como algo importante nas relaes internacionais. Esta regra generaliza-se em algumas instituies surgidas depois de 1989, como a Organizao Mundial do Comrcio (OMC). Torna-se necessria a adeso de todos os pases para o funcionamento das instituies, imprescindvel sua operacionalidade, e permanece o condicionamento bsico das potncias, sobretudo dos Estados Unidos, na formulao das pautas e das decises. A compreenso desta relao, entre consenso e condicionamento, decisiva. Se governabilidade e governana dependerem sobremaneira do condicionamento, dificilmente sero alcanveis. Se, pelo contrrio, relacionaremse mais idia de consenso, tero possibilidade de serem alcanados.

6. As oportunidadesAo mesmo tempo em que reconhecemos o terreno complexo, difcil, onde as oportunidades escasseiam para as naes pobres, h outros deslocamentos, j existentes anteriormente e que alcanam hoje novas dimenses, que sugerem o retorno da perspectiva universalista no-hegemnica. Esta, se efetivamente levada a efeito, seria a grande novidade, a da superao do sistema de convivncia surgido em Westfalen, que sempre oscilou entre guerra e paz, entre poder e norma, apesar destes nem sempre estarem em contraposio. A apreenso das oportunidades difcil, pois, paradoxalmente, elas no deixam de ser o resultado da capacidade de estabelecimento de hegemonia, mas, ao mesmo tempo, podem adquirir conotaes favorveis tambm aos estados pobres. So valores como os relativos preservao do meio ambiente e da Terra, aos direitos humanos e sociais. Estes, contraditoriamente, podem favorecer o multipolarismo ou o unipolarismo. Os exemplos so muitos. Os Estados Unidos vm repetindo a necessidade de democratizar as decises internacionais, tornando-as transparentes e abertas s presses da opinio pblica. Contam com sua capacidade de influncia e querem utilizar o peso de sua prpria34

opinio pblica. Mas a idia corresponde, tambm, a reivindicaes antigas de estados dbeis e de setores socialmente desfavorecidos, como os representados pelo movimento sindical. A onda internacional crtica s iniqidades sociais tem origem nos interesses de competio dos pases desenvolvidos, mas pode representar um instrumento de negociao favorvel aos pases pobres. A mesma perspectiva analtica pode ser aplicada ao campo da segurana. Utilizando o conceito de Kindleberger (1989) de garante de ltima instncia para o caso da segurana internacional, no restam dvidas de que a nica potncia com este papel so os Estados Unidos. Mas a complexidade deste campo, como indicam experincias fracassadas, tais como Somlia, retaliaes ao terrorismo etc., apontam para a necessidade de uma convergncia majoritria de Estados. Percebe-se, ento, como temas novos, ou mesmo tradicionais, como o comrcio e a economia internacional e a prpria segurana, podem ter leituras que favorecem a necessidade da governabilidade. Mas certamente no a asseguram. A prevalncia ou no da governabilidade depende das referncias tericas, mas tambm da capacidade de apropriao, por parte das sociedades e dos Estados, dos valores aptos universalizao. Desta forma, as oportunidades surgiriam como resultado de protagonismo por parte dos Estados, mas tambm das sociedades. Da mesma forma, a idia de cidadania mundial pode representar o caminho de acesso da humanidade a formas polticas democrticas e fruio dos bens materiais e simblicos disponibilizados pela modernidade, mas tambm pode representar a iluso deste acesso, que de fato permaneceria limitado aos que j o tm, representados por Estados detentores de excedentes de poder. Mesmo os valores universais podem, paradoxalmente, favorecer o unipolarismo, na medida em que surgem como o resultado da vontade hegemnica das sociedades representadas pelos Estados fortes do sistema.

7. O bem comumA idia de governabilidade tem a ver com a de comunidade mundial, ao introduzir a possibilidade de princpios visando o bem comum: se h comunidade, h obrigaes e, conseqentemente, h regras que a todos obrigam. Quem as viola est sujeito a que a comunidade o sancione. Ao mesmo tempo, como afirmou Carr (1981), h dificuldades para alcanar-se um padro suficiente de coerncia que viabilize o bem comum. Para ele, isso a causa das imperfeies da moral internacional. Faltariam dois princpios: o da igualdade entre os membros da comunidade e o de que o bem do todo tem precedncia sobre o35

bem da parte. Se o primeiro princpio, com toda evidncia, continua inexistente, o mesmo no pode ser dito em relao ao segundo. As teorias contemporneas de carter idealista, liberal, grociano e socialista buscam, na lgica dos jogos de soma positiva, o caminho, s vezes normativo, de consolidao da idia de que o bem comum tem precedncia. Se o bem comum tiver, efetivamente, precedncia, estariam criados os pressupostos para polticas cooperativas que, por sua vez, abririam o caminho governabilidade. Na virada do sculo XX para o XXI, no possvel afirmar que isto prevalece. O que possvel perceber que alguns temas, mesmo quando utilizados como instrumentos de poder, adaptam-se melhor s necessidades do bem de todos. Assim, teramos avanado em relao a perodos histricos anteriores, quando no era possvel perceber qualquer forma de prevalncia do bem comum.

8. A agenda e a lideranaAs dificuldades para a consolidao de uma agenda na qual prevalea o bem comum no eliminam a necessidade de compreenso das motivaes pelas quais, mesmo com uma geometria das relaes internacionais tendencialmente unipolar, tem se fortalecido a tendncia incorporao de temas de valor universal, em certo sentido, a tendncia centrpeta. Este seria o fator favorvel governabilidade e governana. H duas possibilidades explicativas para a incorporao: 1. a geometria das relaes internacionais unipolar, com a evidente predominncia estratgica e no plano dos valores dos Estados Unidos, estimula formas de ao coletiva, cujo garante de ltima instncia seriam os prprios Estados Unidos, da sua capacidade de construo de agendas; 2. apesar da geometria das relaes internacionais tender ao unipolarismo, a incorporao de temas de valor universal se d porque tm se fortalecido as condies, discutidas desde Rousseau (1970), para a prevalncia do bem do todo. Recordando a formulao de Nardin (1987), a associao de objetivos sobrepe-se associao prtica, de interesses. Nas relaes internacionais contemporneas, um tema relevante saber se a assimetria de um Estado em relao aos outros coincide ou no com um modelo hbrido que soma a idia de imprio-mundial e de economia-mundo, se quisermos utilizar as formas propostas por Waters (1996). Como assinalado por diferentes autores, o plo principal atuaria hoje no isoladamente, mas por meio de um sistema de crculos concntricos, cujo primeiro nvel seria o Grupo dos Sete. Outro tema relevante detectar se o unipolarismo reflexo de uma nova forma de relaes internacionais que estar sendo construda no incio do36

sculo XXI. Isto , a crise do Estado-nao, que corre paralelamente ao ascenso do fenmeno da globalizao, atingiria todos os Estados, ampliando-se o espao dos valores compartilhados, que, sendo universais, abrigam as diversidades compatveis. Universalismo no seria imposio, ainda que determinada por uma hegemonia que utiliza o consenso, mas vontade coletiva da humanidade. O fato da agenda internacional, em grande medida, ser aceita por maiorias expressivas de Estados aps a aprovao norte-americana denota a preponderncia ao unipolarismo e a tendncia a terem os Estados Unidos sua autoridade reconhecida. Uma forma parecida, ainda que simtrica, se d quando decises tomadas sem a aprovao norte-americana s alcanam reconhecimento e possibilidade efetiva de aplicao se este pas adere a elas. o caso do Tribunal Penal Internacional e da Agenda 21. Na perspectiva do unipolarismo, importante ressaltar que autores situados em diferentes perspectivas tericas consideram que os Estados Unidos mantm papel primordial na preservao do ordenamento existente. Primeiro, a liderana uma palavra elegante para o poder. Exercer a liderana levar outros a fazer coisas que de outra forma no fariam. Isso implica habilidade em criar, direta ou indiretamente, os interesses ou as aes de outros. Liderana deve envolver a habilidade em no desembainhar as armas; mas tambm em levar outros Estados a conceber seus interesses e objetivos polticos de forma nova. Isto sugere um segundo elemento da liderana, que implica no apenas a organizao das possibilidades do poder e dos recursos materiais. Ela tambm implica a capacidade de projetar um formato de idias polticas ou princpios em relao especificidade ou ordem efetiva das polticas. Implica a capacidade em produzir aes pactuadas ou coordenadas por inmeros Estados ou outros setores. Liderana o uso do poder para organizar a ao de um grupo visando um objetivo comum. (Ikenberry, 1997, p. 4). Nesse sentido, a liderana norte-americana parece no estar ameaada. O fim da Guerra Fria reorganizou os termos do debate internacional, tornando ultrapassadas as grandes polmicas sobre o declnio norte-americano, ao menos como foi discutido nos anos oitenta (Kennedy, 1989). Aqui, diferentemente de antes, podemos imaginar a possibilidade de governabilidade e de governana como determinada por esta liderana. importante ressaltar que a liderana vincula-se capacidade, como observado por Ikenberry, de projetar um formato de idias polticas ou princpios e valores que tenham conexo com aqueles compartilhados p