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Gramsci e a perspectiva histórica acerca do Americanismo e fordismo a Comissão Brasileiro-Americana de Educação Industrial (CBAI) MARIANA PROHMANN* MARIO LOPES AMORIM** RESUMO O presente artigo tem o objetivo de apresentar elementos do pensamento de Antonio Gramsci que possam servir como referencial teórico-metodológico para a História das relações entre Estados Unidos e Brasil, tomando como objeto a Comissão Brasileiro-Americana de Educação Industrial (CBAI) e sua atuação no Brasil. faz parte do trabalho de dissertação intitulado Americanismo e fordismo nos Boletins da Comissão Brasileira-Americana de Educação Industrial, publicado em 2016 com o objetivo evidenciar aproximações do fenômeno que Gramsci descreveu como Americanismo e fordismo e o processo de industrialização do Brasil República, a partir da análise de discurso dos Boletins da Comissão Brasileiro-Americana de Educação Industrial (CBAI), uma instituição de educação industrial formada via acordo bilateral entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos no ano de 1946. O recorte temporal escolhido se refere ao Brasil do término da Segunda Guerra Mundial, período em que se consolida no país o processo de industrialização e se estreitam as relações entre Brasil e Estados Unidos, por meio de acordos, tratados bilaterais e programas desenvolvidos nos EUA que foram executados no Brasil. Para cumprir com o objetivo principal, este trabalho apresenta de maneira breve o contexto em que Gramsci traça suas reflexões, expondo alguns de seus conceitos chaves, que serão utilizados como referencial analítico a fim de problematizar as relações EUA-Brasil. Em seguida, toma como objeto de estudo a Comissão Brasileiro Americana de Educação Industrial, na qual se focaliza não a problemática da educação propriamente dita, mas da educação do ponto de vista estratégico, que em Gramsci aparece como instrumento para a obtenção e construção de consenso, uma noção cara ao autor. Por fim, esse artigo elabora as possibilidades de unir elementos do arcabouço gramsciano com a história do Brasil no momento citado, trazendo elementos capazes de problematizar a relação entre as classes dirigentes, as classes dirigidas, os intelectuais e a hegemonia. O artigo conclui evidenciando o potencial analítico de Gramsci para análises sócio-históricas do Brasil ao longo do seu processo de industrialização. Palavras-chave: Americanismo e fordismo CBAI relações EUA/Brasil hegemonia. *Mariana Prohmann, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) **Mario Lopes Amorim, Prof. Doutor do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) INTRODUÇÃO

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Page 1: Gramsci e a perspectiva histórica acerca do … · Gramsci e a perspectiva histórica acerca do Americanismo e fordismo – a Comissão Brasileiro-Americana de Educação Industrial

Gramsci e a perspectiva histórica acerca do Americanismo e fordismo – a Comissão

Brasileiro-Americana de Educação Industrial (CBAI)

MARIANA PROHMANN*

MARIO LOPES AMORIM**

RESUMO

O presente artigo tem o objetivo de apresentar elementos do pensamento de Antonio Gramsci

que possam servir como referencial teórico-metodológico para a História das relações entre

Estados Unidos e Brasil, tomando como objeto a Comissão Brasileiro-Americana de

Educação Industrial (CBAI) e sua atuação no Brasil. faz parte do trabalho de dissertação

intitulado Americanismo e fordismo nos Boletins da Comissão Brasileira-Americana de

Educação Industrial, publicado em 2016 com o objetivo evidenciar aproximações do

fenômeno que Gramsci descreveu como Americanismo e fordismo e o processo de

industrialização do Brasil República, a partir da análise de discurso dos Boletins da Comissão

Brasileiro-Americana de Educação Industrial (CBAI), uma instituição de educação industrial

formada via acordo bilateral entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos no ano de

1946. O recorte temporal escolhido se refere ao Brasil do término da Segunda Guerra

Mundial, período em que se consolida no país o processo de industrialização e se estreitam as

relações entre Brasil e Estados Unidos, por meio de acordos, tratados bilaterais e programas

desenvolvidos nos EUA que foram executados no Brasil. Para cumprir com o objetivo

principal, este trabalho apresenta de maneira breve o contexto em que Gramsci traça suas

reflexões, expondo alguns de seus conceitos chaves, que serão utilizados como referencial

analítico a fim de problematizar as relações EUA-Brasil. Em seguida, toma como objeto de

estudo a Comissão Brasileiro Americana de Educação Industrial, na qual se focaliza não a

problemática da educação propriamente dita, mas da educação do ponto de vista estratégico,

que em Gramsci aparece como instrumento para a obtenção e construção de consenso, uma

noção cara ao autor. Por fim, esse artigo elabora as possibilidades de unir elementos do

arcabouço gramsciano com a história do Brasil no momento citado, trazendo elementos

capazes de problematizar a relação entre as classes dirigentes, as classes dirigidas, os

intelectuais e a hegemonia. O artigo conclui evidenciando o potencial analítico de Gramsci

para análises sócio-históricas do Brasil ao longo do seu processo de industrialização.

Palavras-chave: Americanismo e fordismo – CBAI – relações EUA/Brasil – hegemonia.

*Mariana Prohmann, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade

(PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR)

**Mario Lopes Amorim, Prof. Doutor do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e

Sociedade (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR)

INTRODUÇÃO

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1

Essa pesquisa faz parte do trabalho de dissertação intitulado Americanismo e fordismo

nos Boletins da Comissão Brasileira-Americana de Educação Industrial, publicado em 2016,

com o objetivo de evidenciar aproximações do fenômeno que Gramsci descreveu como

Americanismo e fordismo e o processo de industrialização do Brasil República, a partir da

análise de discurso dos Boletins da Comissão Brasileiro-Americana de Educação Industrial

(CBAI), uma instituição de educação industrial formada via acordo bilateral entre os governos

do Brasil e dos Estados Unidos no ano de 1946. A dissertação tematiza o contexto sócio

histórico da educação industrial/profissional brasileira, ao possibilitar a análise de uma

instituição de educação profissional pelo referencial teórico-metodológico de Gramsci, o que

se justifica por ser a educação para ele um campo estratégico, fundamental para a manutenção

dos processos estruturantes de determinada sociedade. Mas trabalhar com conceitos ou

categorias por ele elaboradas requer atenção especial, ainda que brevemente, sobre o contexto

em que o autor se situava no momento em que tecia suas reflexões acerca de diversos

aspectos: cultura, hegemonia, Estado e sociedade civil, revolução passiva, intelectuais e

finalmente, o fenômeno ao qual Gramsci chamou de Americanismo e fordismo.

Gramsci, vivendo no despertar do século XX, constrói sua visão de mundo pautado em

uma análise da conjuntura sócio-econômica de seu tempo, “[...] na qual sistematiza

considerações, ações e medidas capazes de resistir à dominação capitalista, tal como reflexões

acerca das causas do insucesso do socialismo em determinadas sociedades ditas ‘Ocidentais’

(PROHMANN, 2016: 67). A busca era por um modelo de sociedade capaz de eliminar as

profundas contradições e desigualdades sociais que ele via entre o Sul da Itália, atrasado e

agrário, e o Norte do país, industrializado e com grandes concentrações de terra e renda.

Assim, Gramsci parte de uma realidade local para uma universal: “a Itália é, em Gramsci, o

ponto de partida para as leituras que seguem a respeito de fenômenos globais com as relações

capitalistas de produção, dentre os quais se incluiria o que o autor chamou de Americanismo e

fordismo” (PROHMANN, 2016: 67). A trajetória do sardo demonstra a importância que este

delegava à participação em movimentos de esquerda como base fundamental a uma filosofia

da práxis, ou seja, a sua concepção de mundo (GRAMSCI, 1978: 11). A cultura

transversalmente situada (ou seja, a cultura como aspectos que marcam as diversas esferas de

produção do conhecimento humano: ciência, religião, modo de produção, tradições) tem de

um lado, grupos sociais dominantes que se mantém no poder através de métodos coercitivos e

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persuasivos, e de outro, as classes oprimidas, que também através da cultura assim entendida,

seriam capazes de criar o fermento à revolução.

A militância política de Gramsci no Partido Comunista da Itália resultou no seu

encarceramento, e por isso os conceitos centrais de suas análises estão dispostos de maneira

dispersa e muitas vezes confusa nos Cadernos do Cárcere que, tal como sugere o título, foram

elaborados por Gramsci durante o período que esteve preso1. O conteúdo dos Cadernos se

caracteriza pela fragmentação de assuntos e por uma preocupação constante com temas

centrais:

Se fosse possível resumir numa pergunta o problema a qual os cadernos tentam dar

uma resposta “fur ewig”, ou seja, de valor histórico universal, essa pergunta soaria

assim: por que, apesar da crise econômica aguda e da situação aparentemente

revolucionária que existia em boa parte da Europa Ocidental ao longo de todo o

primeiro após-guerra, não foi possível repetir ali, com êxito, a vitoriosa experiência

dos bolcheviques na Rússia? (COUTINHO, 1981:65).

Essa introdução ao pensamento gramsciano se faz necessária na medida em que as

reflexões que o autor traça no cárcere não se separam da luta pela emancipação política e

econômica das classes trabalhadoras da cidade e do campo, ligada à busca para se chegar ao

socialismo. É assim que as noções trabalhadas no presente artigo são concebidas: as reflexões

de Gramsci não estão isoladas entre si, mas tem como horizonte a compreensão do porque não

foi possível criar na Europa Ocidental as possibilidades que fizeram emergir na Europa

Oriental a Revolução de 1917. Aqui não nos cabe entrar no mérito das postulações que

Gramsci tece a esse respeito – pois este possui longa e densa reflexão sobre os aspectos sócio-

culturais divergentes entre os povos do dito “Ocidente” e do “Oriente” – é preciso explorar

minimamente a noção deste autor sobre o conceito de hegemonia. Esta, diretamente articulada

à concepção gramsciana de Estado, tem como perspectiva a compreensão dos novos aspectos

e traços da formação e reprodução do poder em sociedades onde o capitalismo atingiu um

novo grau de desenvolvimento. Nestas se exerce o poder por meio da sociedade política

(leiam-se os aparelhos administrativo-burocrático e político-militar, os quais permitem às

classes detentoras de poder criar novos ou manter mecanismos de repressão e

1 Aqui é importante citar acerca dos cadernos o “[...] caráter provisório, de esboços a desenvolver, dessas notas e

apontamentos” (GRUPPI, 1978, p. 65). Esta é a perspectiva que se deve assumir ao lê-los: não como textos a

serem publicados, mas como uma primeira base de sua pesquisa para um posterior aprofundamento, até porque,

com a situação precária dos anos de cárcere o autor não contava com grandes recursos, inclusive a coletânea que

deu origem póstuma aos Cadernos do Cárcere foi escrita pelo italiano em cadernos escolares (PROHMANN,

2016).

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disciplinarização dos grupos opostos ao domínio do Estado). A sociedade política não se

desvincula da sociedade civil, esta se constitui de instituições que criam e divulgam as

ideologias e por sua vez, possibilitam a formação de consenso, e este consenso como pilar de

sustentação das relações de poder então estabelecidas (SCHLESENER, 2007: 28).

Aqui se reitera que a forma muitas vezes ambígua a que Gramsci se refere ao conceito

de hegemonia está ligada à sua condição de encarcerado e suas artimanhas para burlar a

censura fascista. O termo muitas vezes refere-se a conceitos diferentes, e ao aparecer pela

primeira vez, faz referência à aliança de classes proletárias, ou seja, grupos aliados que

negociariam, fazendo concessões e cedendo aos interesses e tendências dos demais aliados,

cunhados pelo termo “compromisso de equilíbrio”, em que o grupo dirigente faria concessões

no âmbito econômico-corporativista, baseado na função que este exerce nos demais setores da

economia (ANDERSON, 2002: 31).

Gramsci havia estendido o conceito de hegemonia da forma como era originalmente

aplicado, a partir “das perspectivas da classe operária em uma revolução burguesa contra uma

ordem feudal, para os mecanismos de dominação da burguesia sobre a classe operária em uma

sociedade capitalista estabilizada”2. É por isso que o conceito de hegemonia passou a se

referir a uma “análise diferente” das estruturas do poder da burguesia no Ocidente

(ANDERSON, 2002: 33). Desse modo, aparecem aqui agentes essenciais à manutenção e

reprodução das relações de poder, que são os intelectuais orgânicos:

[...] a poderosa ênfase cultural que a ideia de hegemonia adquiriu na obra de

Gramsci combinou-se com a sua aplicação teórica para as classes dominantes

tradicionais para produzir uma nova teoria marxista sobre os intelectuais. Pois uma

das funções clássicas destes últimos, afirma· Gramsci, é a de mediar a hegemonia

das classes exploradoras sobre as classes exploradas através dos sistemas

ideológicos, dos quais eles são os agentes organizadores (ANDERSON, 2002: 34).

Os intelectuais orgânicos podem ser, por exemplo, professores primários, advogados,

eclesiásticos, em suma, aqueles que elaboram a hegemonia e garantem consenso às forças

dominantes e à base de massas por meio da persuasão e da educação (GRUPPI, 1978: 62). A

hegemonia em Gramsci também está ligada às problemáticas entre superestrutura e

infraestrutura concebidas pelas transformações do modo de produção: as alterações entre

2 Deve ser lembrado que havia um precedente para isso nas teses da Internacional Comunista. Entretanto, a

passagem em questão era breve e isolada: ela não era resultado de uma análise mais detida da dominação do

capital (ANDERSON, 2002: 33).

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infraestrutura e superestruturas não são automáticas, são necessários processos de persuasão e

coerção que visem apresentá-las como inerentes às transformações na infraestrutura.

Ainda que de forma breve, os conceitos aqui colocados permitem entender aspectos do

fenômeno do Americanismo e fordismo e, por fim, analisá-los nas relações que se traçam

entre o Brasil e o EUA pós-Segunda Guerra Mundial.

Gramsci se utiliza dos termos Americanismo e fordismo para explicar o fenômeno que

surgia no seio da nação estadunidense e passava a ser amplamente divulgado, inclusive na

Europa, em que vivera e presenciara algumas resistências aos métodos de produção tayloristas

e fordistas. Este fenômeno é, na visão do autor, resultado de um momento marcado pela

transição, “da passagem do velho individualismo econômico para a economia programática”

(GRAMSCI, 2014: 241). Este aspecto é importante para uma compreensão mais ampla das

relações que para Gramsci são fundamentais: as mudanças no modo de produção e de

trabalho. “O velho individualismo econômico a que Gramsci se refere estaria então ligado à

ideologia do artesão, que persistia mesmo com os esforços de se chegar a uma economia

programática, planejada e racionalizada, de produção para as massas” (PROHMANN, 2016:

82). Assim, uma condição preexistente e necessária ao americanismo se liga a “composição

demográfica racional”: não existiam na “América” classes numerosas desprovidas de uma

função essencial no mundo da produção, ao contrário da Europa, em que a tradição e a

civilização de uma longa história passada têm como característica a existência destas classes

parasitárias, em outras palavras, classes que vivem do trabalho alheio. A não existência da

plutocracia de longa tradição nos EUA, marco histórico do continente europeu, é que

possibilitou uma base favorável à indústria e ao comércio naquele país (GRAMSCI, 2014),

ainda que esta base favorecesse apenas alguns grupos sociais das elites dominantes em

detrimento das classes trabalhadoras, motivo que também levou à insatisfação e organização

dos trabalhadores em classes, partidos políticos e movimentos sindicais no país americano. O

capitalismo que impulsionou a posição estadunidense, mesmo seguido da então recente

Grande Depressão, não teve as barreiras históricas deixadas pelos resquícios dos modos de

produção que haviam se processado antes dele. O desenvolvimento do comércio nos EUA

resultou em uma

[...] redução cada vez maior da função econômica representada pelos transportes e

pelo comércio a uma real atividade subordinada a produção, ou melhor, a tentativa

de incorporar estas atividades à própria atividade produtiva (cf. os experimentos

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feitos por Ford e as economias obtidas por sua fábrica através da gestão direta do

transporte e do comércio da mercadoria produzida, economias que influíram sobre

os custos de produção, ou seja, que permitiram melhores salários e menores preços

de venda) (GRAMSCI, 2014: 247).

Aqui reside um aspecto essencial do fordismo: a nação foi capaz concentrar sua vida

na produção, estágio que se alcançava combinado às tentativas de racionalização do

desenvolvimento histórico, o que teria facilitado a racionalização também da produção e do

trabalho. A ela se agregaram ainda a força3 e a persuasão4 exercidas sobre os trabalhadores,

mas a racionalização da produção e do trabalho nos moldes americanistas seguia uma lógica

própria:

Fenômeno a um só tempo político, ideológico e econômico, o americanismo surge

aos olhos de Gramsci como um modo de vida profundamente imbricado na esfera

produtiva com o taylorismo – como modelo de organização do trabalho – e com o

fordismo – como mecanismo global de acumulação de capital (BRAGA, 2008: 12).

O americanismo tomava forma, “a hegemonia nasce das fábricas e necessita apenas,

para ser exercida, de uma quantidade mínima de intermediários profissionais da política e da

ideologia” (GRAMSCI, 2014: 248). Isso significa que as adaptações aos novos métodos não

necessariamente precisariam ser feitas através da força política do Estado, mas muitas vezes

através da persuasão, da produção de consentimento e conformação: a manutenção e

reprodução da hegemonia têm na figura dos intelectuais seus principais representantes. Estes

contavam com uma vasta gama de mecanismos discursivos que propagavam o modelo de

sociedade mais adequado ao modelo de produção fordizado, na perspectiva de adaptação

psicofísica a determinadas condições de trabalho para questões que vão além da fábrica como:

“[...] de nutrição, de habitação, de costumes, etc., que não é algo inato, ‘natural’, mas exige

ser adquirido” (GRAMSCI, 2014: 251). Assim, o interesse dos grupos dirigentes se centrava

em produzir o tipo humano apto a esse novo processo de produção bem como em produzir o

consentimento das mais diversas classes de trabalhadores a esse modelo de produção

taylorista-fordista, que para sua concretização requeria não apenas as produções como

também o consumo das massas. Essas massas são a forma deste tipo de sociedade, “na qual a

3 A força a que o autor faz menção é a “destruição do sindicalismo operário de base territorial” (GRAMSCI,

2014, p. 247). 4 A persuasão a que o autor faz menção são os “altos salários, diversos benefícios sociais, habilíssima

propaganda ideológica e política” (GRAMSCI, 2014, p. 247).

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estrutura domina mais imediatamente as superestruturas e estas são ‘racionalizadas’

(simplificadas e reduzidas em número)” (GRAMSCI, 2014: 248). Neste sentido:

A americanização exige um determinado ambiente, uma determinada estrutura

social (ou a decidida vontade de criá-la) e um determinado tipo de Estado. O

Estado é o Estado liberal, não no sentido do livre-cambismo ou da efetiva liberdade

política, mais no sentido mais fundamental da livre iniciativa e do industrialismo

econômico que chega com meios próprios, como “sociedade civil”, através do

próprio desenvolvimento histórico, ao regime da concentração industrial e do

monopólio (GRAMSCI, 2014: 259).

Gramsci descreveu o processo de produção fordista, que se constituía da junção do

sistema de Taylor nas fábricas e do sistema de Ford nas linhas de montagem (BRAGA, 2008:

15), e reconhece o alcance que tiveram as tentativas deste modelo na cultura, com o intuito de

formar um novo tipo de homem para um novo tipo de sociedade. Esse novo tipo de sociedade

combinava mecanismos diversos de coerção moral e persuasão, envolvendo inclusive a

regulação dos instintos sexuais e a disseminação do individualismo como forma de evitar

qualquer associação de classes.

As diversas iniciativas de controle e intervenção na vida privada dos operários, das

quais lançavam mão os empresários como Ford, demonstravam um esforço contínuo de

realizar o alcance do fordismo, através de uma brutal coerção. Essa coerção era necessária,

visto que a história do industrialismo se baseia na sujeição do ser humano à racionalidade da

indústria,

[...] um processo ininterrupto, frequentemente doloroso e sangrento, de sujeição dos

instintos (naturais, isto é, animalescos e primitivos) a normas e hábitos de ordem,

de exatidão, de precisão sempre novos, mais complexos e rígidos, que tornam

possíveis as formas cada vez mais complexas de vida coletiva, que são a

consequência necessária do desenvolvimento do industrialismo (GRAMSCI, 2014:

262).

Esse aspecto do americanismo é essencial para entender como os hábitos e

regulamentações necessitariam de aderência para além das fábricas. Ainda que esta luta tenha

sido imposta externamente, ela trouxe resultados práticos e imediatos bastante significativos,

mas que continuam apenas mecânicos e não constituem assim parte da natureza humana.

Para Gramsci a racionalização do trabalho nos Estados Unidos está ligada diretamente

ao proibicionismo, embora as investigações dos industriais sobre a vida íntima dos

trabalhadores se disfarçaram sob a égide do puritanismo. Foram criados inclusive serviços de

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inspeção com o intuito de controlar a “moralidade” dos operários, uma vez que tal controle

era indispensável aos novos métodos de trabalho. E neste sentido:

Quem ironizasse estas iniciativas (mesmo fracassadas) e visse nelas apenas uma

manifestação hipócrita de “puritanismo” estaria se negando a qualquer

possibilidade de compreender a importância, o significado e o alcance objetivo do

fenômeno americano, que é também o maior esforço coletivo até agora realizado

para criar, com rapidez inaudita e com uma consciência do objetivo jamais vista na

história, um novo tipo de trabalhador e de homem (GRAMSCI, 2014: 266).

Essa tal consciência do objetivo equivaleria ao que Taylor chamaria de “gorila

amestrado”5, em que ele expressa cinicamente o objetivo da sociedade norte-americana:

[...] desenvolver em seu grau máximo, no trabalhador, os comportamentos

maquinais e automáticos, quebrar a velha conexão psicofísica do trabalho

profissional qualificado, que exigia uma certa participação ativa da inteligência, da

fantasia, da iniciativa do trabalhador, e reduzir as operações produtivas apenas ao

aspecto físico maquinal. Mas, na realidade, não se trata de novidades originais:

trata-se apenas de fase mais recente de um longo processo que começou com o

próprio nascimento do industrialismo, uma fase que é apenas mais intensa que as

anteriores e se manifesta sob formas mais brutais, mas que também será superada

através da criação de um novo nexo psicofísico de um tipo diferente dos anteriores

e, certamente, de um tipo superior (GRAMSCI, 2014: 266).

Gramsci chama atenção sobre as iniciativas dos industriais americanos, como o

próprio Ford, que muito mais do que tentar resgatar esse espírito e humanidade, pretendiam

conservar o equilíbrio psicofísico do trabalhador que era profundamente atingido pelo novo

método de produção. Tal objetivo seria cumprido à medida que este equilíbrio externo e

mecânico, imposto pelo novo modelo de sociedade, se tornasse interno, ou seja, se

acontecesse por iniciativa do próprio trabalhador (GRAMSCI, 2014). Isso porque esse novo

trabalhador precisaria se adaptar aos novos processos produtivos, e as classes trabalhadoras

não necessariamente consentiriam ou aceitariam passivamente a condição advinda das

mudanças nos métodos produtivos. A esse respeito Gramsci tece considerações sobre

preocupações por parte da então burguesia industrial daquele país:

Compreenderam que “gorila amestrado” é uma frase, que o operário

“infelizmente” continua homem e até mesmo que, durante o trabalho, pensa mais

ou, pelo menos, tem muita possibilidade de pensar, pelo menos quando superou a

5 Em nota, o redator do texto de Gramsci, Americanismo e Fordismo, explica que a expressão “gorila amestrado”

é usada por Frederik Taylor e é citada a partir do livro de André Philip. “Segundo Philip, Taylor considerava que

um gorila amestrado poderia fazer o trabalho atualmente efetuado por um operário” (GRAMSCI, 2008: 66 apud

MEDEIROS, 2013: 91).

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crise de adaptação e não foi eliminado. E não só pensa, mas o fato de que o

trabalho não lhe dá satisfações imediatas, e que ele compreenda que se quer reduzi-

lo a gorila amestrado, pode levá-lo a um curso de pensamentos pouco conformistas.

Que tal preocupação exista entre os industriais é algo que se deduz de toda uma

série de cautelas e iniciativas “educacionais”, que podem ser encontradas nos

livros de Ford [...] (GRAMSCI, 2014: 272).

Era necessário então investir em outras formas de persuasão capazes de “pacificar” ou

de neutralizar as contradições de classe deste sistema: a cultura, nas suas diversas dimensões,

é parte essencial para manutenção de um grupo hegemônico. Ao grupo dos intelectuais,

compete a missão de, através da persuasão e coação, reproduzir a lógica do sistema burguês

industrial, aliado, em países ocidentais, à força das antigas tradições com suas “classes

parasitárias”, ou possuidores de terra, sendo o sistema fordista de produção e sociedade

apresentado como a única possibilidade histórica de projeto socioeconômico e político.

O Estado passa a ter uma função essencial na consolidação e manutenção do sistema

capitalista, porque nele se concentram os recursos que devem ser investidos segundo as

deliberações industriais e de atividades privadas. Ao assumir tal função, o Estado não

consegue se manter neutro ao processo de livre concorrência e da iniciativa privada sem

perder a credibilidade. Em termos globais, ao fundar um determinado tipo de Estado, um

grupo econômico realiza sua síntese ao desenvolver um complexo de novas superestruturas,

cedendo lugar a expansão “racionalizada” da sociedade civil. “Ou seja, o fordismo sintetiza a

unidade entre a história e a lógica do desenvolvimento da burguesia americana como classe

historicamente determinada” (BRAGA, 2008: 19). Os esforços por parte dos industriais eram

no sentido de apresentar o novo modelo de produção como única alternativa ou saída.

Aqui não foi possível trabalhar sobre todos os aspectos que Gramsci menciona a

respeito dessa cultura que surgia nos EUA, porque mesmo que o caderno sobre Americanismo

e fordismo não tenha sido desenvolvido com maior aprofundamento, são diversas as questões

as quais ele chama a atenção e as quais acredita que necessitam de aprofundamento, desde a

questão da racionalização da composição demográfica à questão sexual e dos costumes, às

questões que se ligam ao modelo de produção e de trabalho no americanismo, mais

especificamente.

Como será apresentado na sequência, alguns dos conceitos explicitados na presente

pesquisa auxiliam para cumprir com o objetivo principal de apresentar Gramsci como

referencial analítico em pesquisas e produções científicas que se debrucem sobre as relações

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entre Brasil e EUA ao longo do século XX. A atuação da Comissão-Brasileiro Americana de

Educação Industrial aparece como fruto da disseminação do americanismo no Brasil, e a fim

de traçar essas relações, é necessário apresentar de maneira breve a CBAI para analisá-la

enquanto um projeto pertencente ao americanismo, não só como algo que se pretendia

generalizar na nação brasileira e nos demais países da América Latina, mas como fenômeno

que vai além apenas da educação formal e atinge diversos campos da atividade humana:

saúde, estilo de vida, lazer, comércio, trabalho.

O surgimento da CBAI e o Americanismo e fordismo em tempos de Guerra Fria

No quadro mundial da década de 1940, de “término” de conflitos e de uma paz que

poderia ser abalada a qualquer momento, alguns episódios de tensão advindos do embate

entre EUA e URSS impulsionaram os Estados Unidos a consolidar uma política de contenção

ao comunismo soviético. Qualquer movimento continental que entrasse em conflito com os

interesses dos EUA era caso grave e relacionado à política interna estadunidense. Ao mesmo

tempo, nos discursos proferidos por seus governantes e representantes, desenhava-se a

imagem dos EUA como um país defensor da liberdade democrática, no qual o capitalismo

seria o único modelo de produção e de sociedade que possibilitaria aos países “atrasados”

alcançarem o ideal americano de sociedade, que ganhava forma no modo de viver do

american way of life, e ganhava vida e personalidade própria na imagem de Tio Sam6.

(PROHMANN, 2016: 40).

As preocupações de dirigentes estadunidenses com a segurança nacional e combate ao

comunismo levaram à criação de uma política que previa uma série de medidas conhecidas

como Doutrina Truman (nome dado por jornalistas em decorrência de um discurso proferido

pelo então presidente Henry S. Truman) e que estabelecia diversas medidas políticas

concretas, como o apoio financeiro aos países que corroboravam a ideia de modernização

conforme o modelo estadunidense nas mais diversas esferas na sociedade, inclusive na

6 Tío Sam,(...),es um hombre barbudo de largas piernas, ataviado con los colores y formato de la bandera

nacional y tocado con un sombrero de copa. Como lo demuestran constantemente los titularas de la prensa en

todo el mundo, el Tío Sam, es la personificación de Estados Unidos. (EMBAIXADA AMERICANA NO

MÉXICO). Disponível em:<http://www.usembassy-mexico.gov/bbf/FAQTioSam.htm>. Acesso em: 19 mar.

2015.

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educação. (PROHMANN, 2016). Sob a égide do discurso de paz e liberdade, a Doutrina

Truman incluía um ponto (o Ponto IV) que dizia respeito à educação, e que resultou na CBAI

(AMORIM, 2004, p. 198). Os Estados Unidos, que emergiam como potência no pós-Segunda

Guerra Mundial e intensificavam sua atuação nos países latinoamericanos, no ano seguinte ao

término do conflito firmavam junto ao governo brasileiro um acordo que deu origem à CBAI.

A CBAI surgia com a finalidade de desenvolver as seguintes atividades no campo da

educação profissional: introdução de serviços de orientação educacional e profissional,

elaboração e publicação de material didático – com a introdução de métodos de trabalho

racionais – o curso de formação de professores e a administração do ensino industrial. O

ensino industrial tinha a função de capacitar os indivíduos cívica, social e economicamente, a

partir da concepção do indivíduo produtivamente capaz. Neste ponto, tal modalidade de

ensino contribuía para consolidar o método de aprendizagem como discurso hegemônico,

tanto por parte dos representantes estadunidenses como brasileiros, imbuídos de uma

concepção taylorista pautada na eficiência para preparar os alunos e capacitá-los para atuação

nas indústrias.

Os materiais didáticos elaborados pela CBAI evocam elementos da racionalização

cientifica e do taylorismo, identificadas na atuação do órgão com vistas a “ajustar” o homem à

máquina. Alguns aspectos eram constantes nesses materiais didáticos: a necessidade de se

ensinar de maneira eficiente, a concepção utilitária da educação (de que o aluno só aprende se

necessitar de tal conhecimento), a aprendizagem por meio de atividades práticas e a

preocupação com a motivação dos alunos. Por fim, o professor estaria para a escola assim

como o gerente estaria para a fábrica, e havia um cuidado para não especializar demais o

ensino, mas fazer com que o aluno aprendesse todas as fases do processo de produção. Ao

professor eram recomendadas então diversas iniciativas de controle no ambiente escolar com

rígido caráter disciplinador, sempre relembrando aos alunos as atitudes que eram ou não

permitidas nas indústrias (AMORIM, 2004: 236).

Assim, a CBAI desenvolvia suas atividades ao passo que crescia a influência política,

econômica e cultural dos Estados Unidos no Brasil. Essa instituição representava então apenas

uma das diversas organizações criadas via acordos bilaterais entre os dois países do continente

americano.

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CONCLUSÃO

A CBAI, instituição aqui analisada sob o prisma do Americanismo e fordismo de

Gramsci, permitiu demonstrar aspectos que naquele momento histórico estavam imbuídos de

valores e traços dos novos métodos de produção e de trabalho que vinham do país do Norte. O

trabalho de dissertação que deu origem a esta pesquisa logrou, por meio da análise dos

Boletins institucionais da CBAI, estabelecer as semelhanças entre os discursos que eram

veiculados nestes e os discursos propagados pelo americanismo de uma forma geral, tomando

os seguintes temas para análise: progresso, ciência e tecnologia, racionalidade, eficiência,

gerenciamento cientifico e padrão americano de vida.

Gramsci coloca que o americanismo, para acontecer, precisa subordinar a ele o sistema

social. Ademais, no fordismo, Gramsci reconhece a importância dos momentos de lazer dos

operários enquanto mecanismo de persuasão. Na CBAI, esse estilo de vida também tomava

forma. Para citar um exemplo, as atividades extracurriculares passavam a receber grande

importância. Ford sabia muito bem da importância da educação. Mas ela não se resumia à

escola, era necessário um aparato cultural bem consolidado para que os ideais do

americanismo fossem bem disseminados. O fordismo é um sistema que carece, para sua

existência, de um vasto programa cultural. Um exemplo que pode melhor elucidar esta

questão é a fala de Milton de Andrade Silva, então assistente de educação do Instituto

Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), sobre as atividades extracurriculares:

[...] todo aluno deve participar ativamente de uma ou mais organizações

extracurriculares, que não terão vida isolada, mas concorrerão para que seja mais

completa a obra educativa, encarada como um todo. O próprio senso de

responsabilidade e economia poderá ser bem desenvolvido com o auxílio das caixas

e bancos escolares, que deverão ser cuidadosamente supervisionados pelos

professores responsáveis e ter colaboração discente, especialmente na parte

administrativa. As informações sobre as atividades extracurriculares dos alunos

chegam mesmo a constituir valiosa base para orientação educacional (CBAI, Vol.

II, n. 6, jun. 1948: 85).

Se em Gramsci “[...] a hegemonia nasce da fábrica e necessita, apenas para ser

exercida, de uma quantidade mínima de intermediários profissionais da política e da

ideologia” (GRAMSCI, 2014: 247), nas escolas profissionais certos aspectos se assemelham

nas formas pelas quais se pretendia conformar o trabalhador ao seu papel. Entendidas pelo

viés da persuasão, tais atividades deveriam ser encaradas como mecanismos capazes de

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reforçar a conformação do aluno ao trabalho, ou melhor, de formar o trabalhador eficiente.

Não por acaso a questão cultural, da qual dependia diretamente o controle sobre os

trabalhadores e a reprodução do modelo estadunidense de trabalho, é amplamente colocada

em discussão, sobre os enunciados que descrevem a necessidade de criar uma mentalidade de

acordo com os novos parâmetros, uma vez que este constituía “o processo educativo

específico para a integração do homem na civilização industrial, não somente habilitando-o

para o domínio da máquina, como ainda orientado-o para uma nova atitude diante da vida

(CBAI, Vol. X, n. 3, mar. 1956: 1566).

Ao tomar como ponto de partida o contexto de onde surgiram iniciativas como a

CBAI, é possível compreender que ela não foi uma tentativa isolada, única ou principal, mas

que se configurava a partir de uma finalidade específica de instituir um novo sistema para o

ensino industrial no Brasil. Dentro de um quadro geral do Americanismo e fordismo, a

tentativa de se chegar a uma economia e sociedade racionalizadas precisaria, para acontecer,

de programas com intentos racionalizadores, imbuídos de um imaginário determinista da

ciência e da tecnologia, que as situassem como forças do desenvolvimento histórico. Neste

aspecto, a CBAI corrobora com a concepção americanista de ciência e tecnologia, concebidas

pelos porta-vozes oficiais nos Boletins como solução para resolver questões de ordem

política, social e econômica, traduzidas pelas tentativas de adestrar os trabalhadores conforme

a necessidade das indústrias. O americanismo necessitava de um longo caminho a ser

percorrido para que se atingisse a finalidade do ensino industrial de adestrar os que dele

participavam, em convergência com a noção gramsciana de que a infraestrutura não determina

a superestrutura, é um longo processo que envolve a função da hegemonia, de mudanças

culturais nas mais diversas esferas da vida humana.

A CBAI contava com significativa estrutura ideológica e material para difusão dos

modelos que a sociedade de uma forma geral deveria seguir: traduções de livros técnicos;

cursos de férias para professores, orientadores, supervisores, bibliotecários; visitas às

indústrias; colaboração indústrias-escolas; psicologia aplicada ao trabalho; seleção de alunos e

professores mais “capacitados”; necessidade de adestrar os “desajustados” e a mocidade como

um todo ao trabalho nas indústrias. Em suma, os apelos enunciativos para que “todos”,

independentemente de classe social, devessem se harmonizar e dissolver as diferenças em prol

de um projeto que viria a ser benéfico a todos. As atividades mencionadas podem ser

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percebidas como mecanismos ideológicos para a produção social do consentimento, e como

comentou Gramsci, os processos não são automáticos, precisam da mais extremada coerção

para acontecer. Os EUA precisariam utilizar diversos esforços na luta pela hegemonia, que

incluíam, além do controle econômico de mercadorias e matérias-primas advindas destes

territórios, a dominação ideológica que justificava o capitalismo e o desenvolvimento

industrial e tecnológico - como única direção possível ao desenvolvimento de tais nações,

tidas como “atrasadas”. Era necessário um trabalho ideológico pesado e massivo nas mais

variadas esferas, inclusive na cultural. (PROHMANN, 2016: 40).

A CBAI, dentro de cenário mais amplo, era apenas uma das instituições de que tal

sistema carecia: o projeto americanizador não estava ligado somente ao âmbito da educação

para o trabalho nas indústrias, embora este fosse de essencial importância. Era necessário um

amplo programa de saúde para lidar com os problemas enfrentados pelos trabalhadores devido

à fadiga e demais distúrbios de ordem fisiológica, além de campanhas para prevenção de

doenças profissionais e acidentes de trabalho; um tipo de Estado que atendesse as demandas

das indústrias, em um cenário onde não mais seria suficiente apenas conservar o aparelho

produtivo, tal como fora em outro momento. Além disso, este sistema careceria de um aparato

cultural bem consolidado para difundir a cultura do american way of life, que moralizasse o

trabalho e afastasse qualquer possibilidade de insurgência socialista e demais correntes

ideológicas conflitantes com os interesses dos agentes do americanismo. Era necessário, por

fim, criar uma mentalidade que não apenas preparasse as diversas camadas sociais para viver

e se adaptar em tal sistema, mas que essas camadas viessem a consentir com ele, no sentido de

conformá-los ao regime de concentração industrial e monopólios, de fazê-los obedecer aos

“imperativos da história” (GRAMSCI, 2014: 258), como se aquele fosse o único caminho ao

qual a humanidade pudesse seguir.

A posição hegemônica com a qual os EUA saíam da Segunda Guerra, as ajudas em

bilhões de dólares a outros países, a atuação nas mais diversas esferas culturais nos países da

América Latina, ainda não garantiam um projeto de amplitude mundial. Entretanto é notável a

influência significativa que o conjunto de valores e métodos do Americanismo e fordismo

exerceram no processo industrial brasileiro, assim como a importância na forma particular

com que se desenvolvia o capitalismo no país. O referencial gramsciano possibilitou

problematizar contradições, limitações e resistências, que surgiam nas próprias tentativas de

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se implementar o Americanismo e fordismo. Ainda assim, a utilização das percepções de

Gramsci acerca do fenômeno americano estão longe de ser esgotadas, e podem auxiliar

pesquisas e produções sobre as construções que naquele momento histórico faziam emergir o

americanismo como único modelo de desenvolvimento.

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