gruzinski, serge. a Águia e o dragão

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serge gruzinski A águia e o dragão Ambições europeias e mundialização no século XVI Tradução Joana Angélica d’Avila Melo

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GRUZINSKI, Serge. A Águia e o Dragão: ambições europeias e mundialização no século XVI. São Paulo: Cia. das Letras, 2015.

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serge gruzinskiA guia e o dragoAmbies europeias e mundializaono sculo XVITraduoJoana Anglica dAvila Meloa aguia e o dragao miolo.indd 3 2/13/15 6:23 PMCet ouvrage, publi dans le cadre du Programme dAide la Publication 2014 Carlos Drummond de Andrade de la mdiathque, bnficiedu soutien du ministre franais des Affaires trangres et du Dveloppement international.Este livro, publicado no mbito do programa de auxlio publicao 2014 Carlos Drummond de Andrade da mediateca, contou com o apoio do Ministrio francs das Relaes Exteriores e do Desenvolvimento Internacional.Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de , que entrou em vigor no Brasil em .Ttulo originalLAigle et le dragon: Dmesure europenne et mondialisation au xvie sicleCapaTamires CordeiroImagens de capaAcima: O comrcio de ch na China, 1790-1800, leo sobre tela, escola chinesa Peabody Essex Museum, Salem, Massachusetts, eua/ Bridgeman Images; abaixo: Cultura Totonaca, detalhe da nobrezatotonacanegociandocommercadoresastecas,1950,muraldeDiegoRivera(1886-1957)/ Palacio Nacional, Cidade do Mxico, Mxico/ Bridgeman Images. Banco de Mexico Diego Rivera & Frida Kahlo Museums Trust, Cidade do Mxico/ autvis, Brasil, 2015PreparaoLgia AzevedoRevisoHuendel VianaMarise LealDados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)Gruzinski, SergeA guia e o drago: ambies europeias e mundializao no sculoXVI/SergeGruzinski;traduoJoanaAnglicadAvila Melo. 1a ed. So Paulo: Companhia das Letras, 2015.Ttulo original : LAigle et le dragon.ISBN 978-85-359-2531-9I. Comunicao intercultural Sculo 16 2. Histria universal Sculo 16 3. Ibrica, Pennsula Relaes exteriores Sculo 16 I. Ttulo14-12396CDD-909ndice para catlogo sistemtico:1. Histria universal : Sculo 16 909[:oI,]Todos os direitos desta edio reser va dos editoraschwarczs.a.Rua Ban dei ra Pau lis ta, ,o:, cj. ,:o,,:-oo: So Paulo spTele fo ne: (II) ,,o,-,,ooFax: (II) ,,o,-,,oIwww.com pa nhia das le tras.com.brwww.blogdacompanhia.com.brCopyright :oI: by Librairie Arthme Fayarda aguia e o dragao miolo.indd 4 2/13/15 6:23 PMSumrioIntroduo ..................................................................... 151. Dois mundos tranquilos ................................................ 21Os dois imperadores ........................................................ 22A China de Zhengde e o Mxico de Moctezuma................. 25Zhongguo ....................................................................... 27Anahuac ......................................................................... 32Dois universos de pensamento .......................................... 392. A abertura para o mundo .............................................. 43O mundo segundo os pochtecas ........................................ 44As frotas do imperador..................................................... 45As fronteiras da civilizao ............................................... 47O mar ............................................................................ 49Uma histria traada de antemo? ..................................... 523. J que a Terra redonda ................................................ 55Histrias paralelas ........................................................... 56a aguia e o dragao miolo.indd 9 2/13/15 6:23 PMHistrias conectadas, ou a corrida s Molucas ..................... 57O precedente colombiano ................................................. 614. O salto para o desconhecido? ......................................... 63O Catai de Marco Polo.................................................... 64A preparao das viagens................................................. 67Malaca, encruzilhada da sia ............................................ 71As Novas ndias ficam na sia? ......................................... 73O sonho asitico .............................................................. 76O salto no vazio............................................................... 775. Livros e cartas do fim do mundo .................................... 80Os livros deles so como os nossos .................................. 81Existem impressores na China ........................................ 82Americanismo e orientalismo ........................................... 84Cartas da China e do Mxico ............................................ 88O olhar dos outros ........................................................... 93A iluso retrospectiva ....................................................... 956. Embaixadas ou conquistas? ........................................... 97Improvisaes e trapalhadas............................................ 98Grande desgnio lisboeta e intrigas caribenhas .................... 101A sia das especiarias, mas no o Novo Mundo .................. 105Desembarque portugus na costa da China ........................109Desembarque espanhol na costa do Mxico ........................ 112Deslize de Corts, intenes portuguesas ............................ 116A marcha sobre Beijing (de janeiro ao vero de 1520) .......... 121A marcha sobre Mxico-Tenochtitln(de agosto a novembro de 1519) ........................................ 122A opo pela desmesura ................................................... 126Bloqueios ....................................................................... 129O encontro com os imperadores ....................................... 134a aguia e o dragao miolo.indd 10 2/13/15 6:23 PM7. O choque das civilizaes .............................................. 142Situaes desconfortveis ................................................. 143A morte dos imperadores ................................................. 146O segundo desastre portugus ........................................... 151A revanche dos castelhanos ............................................... 156O choque das civilizaes ................................................. 1588. O nome dos outros...................................................... 162Um esquecimento bem estranho ....................................... 163Castilan! Castilan!............................................................ 165Brbaros ou piratas? ........................................................ 168Seres divinamente monstruosos....................................... 172O inferno so os outros .................................................... 174Nomear os indgenas ....................................................... 176Nomear os intrusos ......................................................... 178ndios canibais e portugueses antropfagos ........................ 180Invisibilidade portuguesa, exibicionismo castelhano........... 1819. Uma histria de canhes.............................................. 183A artilharia dos invasores ................................................. 184Pirataria chinesa............................................................. 185Um canho para o alm................................................... 188Uma tecnologia do passado .............................................. 192Palavras para diz-lo ........................................................ 19410. Opacidade ou transparncia?........................................ 197A experincia ibrica....................................................... 198Os intrpretes .................................................................204Lidar com as diferenas ....................................................208A decifrao das sociedades............................................. 21211. As maiores cidades do mundo ....................................... 214A geografia ou a arte de espionar ....................................... 215a aguia e o dragao miolo.indd 11 2/13/15 6:23 PMAs maiores cidades do mundo ........................................... 219Como Lisboa ou como Salamanca................................222O olhar do conquistador ..................................................230O triunfo pstumo da capital asteca .................................. 23112. A hora do crime......................................................... 235A arte de desmanchar as sociedades ...................................236A vantagem das armas ......................................................242Planos de conquista .........................................................244A hora do crime ou a guerra sem misericrdia ....................249O ps-guerra em Canto ..................................................250O projeto colonial............................................................ 252A rude aprendizagem da colonizao .................................25413. O lugar dos brancos ..................................................... 258 A viso dos vencidos ........................................................259A presso dos brbaros ..................................................... 261A alergia ao estrangeiro ....................................................264H lugar para o aliengena? ...............................................26914. A cada um seu ps-guerra ............................................272Os irmos da costa ........................................................... 273Predao e asiatizao ......................................................277Uma ilha mestia .............................................................279Caos mexicano ................................................................ 281Americanizar-se ou asiatizar-se .........................................28415. Os segredos do mar do Sul ...........................................287A China da primeira volta ao mundo .................................288As tentativas a partir da Espanha .......................................289A segunda vida de Hernn Corts.....................................290Ambies de Corts e conscincia-mundo ..........................295a aguia e o dragao miolo.indd 12 2/13/15 6:23 PMOs obstculos interpostos pelo demnio..........................298Agora a vez do vice-reinado ............................................ 30316. A China no horizonte.................................................307O caminho est livre ........................................................308A linha de demarcao ..................................................... 310O assunto espiritual do sculo.......................................... 314Uma base avanada .......................................................... 31617. Quando a China despertar ............................................ 319Por que a guerra contra a China? .......................................320A guerra do jesuta ........................................................... 325A insuportvel insolncia dos chineses ............................... 327Os caminhos da guerra .................................................. 332Quando a China despertar ................................................ 335Uma coisa to nova ...................................................... 338A guerra da China no acontecer .....................................342Concluso: Rumo a uma histria global do Renascimento ....346Modernidades ................................................................. 350Guinada para o Oeste e nascimento do Ocidente ................. 352MapasA rota de Tom Pires: Malaca-Beijing,junho de 1517-vero de 1520 ............................................ 120As rotas de Hernn Corts no Mxico ................................ 123Agradecimentos ................................................................ 357Notas.............................................................................. 359Referncias bibliogrficas ...................................................389a aguia e o dragao miolo.indd 13 2/13/15 6:23 PM:I1. Dois mundos tranquilosO que me apavora na sia a imagem de nosso futuro, por ela antecipada. Com a Amrica indgena acalento o reflexo, fugaz mesmo ali, de uma era em que a espcie se encontrava na esca-la de seu universo.Claude Lvi-Strauss, Tristes trpicosEm 1520, Carlos v, Francisco i e Henrique viii so os astros ascendentes da cristandade latina. Regente de Castela desde 1517, sagrado rei da Germnia em 1520, Carlos de Gand nasceu com o sculo.Franciscoitorna-sereidaFranaem1515eHenrique viii, da Inglaterra em 1509.1 Em Portugal, o velho Manuel, o Ven-turoso,aindatemforasuficienteparacontrairnovasnpcias, agora com a irm do rei Tudor. Diante dos rivais franceses e in-gleses, Carlos de Gand e d. Manuel alimentam ambies oceni-casqueprojetamseusreinosemdireoaoutrosmundos.Em novembrode1519,umaventureiroespanhol,HernnCorts, frente de uma pequena tropa de infantes e de cavaleiros, entra em a aguia e o dragao miolo.indd 21 2/13/15 6:23 PM::Mxico -Tenochtitln. Em maio de 1520, uma embaixada portu-guesa,deefetivosaindamaismodestos,penetraemNanjing. nessa cidade que o emissrio Tom Pires recebido pelo impera-dor da China, Zhengde. Fontes coreanas assinalam a presena de portuguesesnoambienteimperial,ondeseteriambeneficiado com os servios de um guia e de um intrprete, o negociante mu-ulmanoKhjjaAsan.2EmMxico-Tenochtitlnenamesma poca,HernnCortsencontraMoctezuma,ochefedaTrplice Aliana ou, se preferir, o imperador dos astecas.os dois imperadoresPrimeiro,Zhengde.Emjunhode1505,emBeijing,Zhu Houzhao sucedeu ao seu pai, o imperador Hongzhi, sob o nome imperial de Zhengde. Tendo subido ao trono aos catorze anos, o dcimo imperador Ming morrer em 1521.3 Seu reinado foi de-preciado pelos cronistas. Se dermos crdito a eles, Zhengde teria abandonado os assuntos do Estado para se entregar a uma vida de prazeres. Preferia viajar para fora da Cidade Proibida, deixan-do que seus eunucos predadores amealhassem fortunas.Na verdade, Zhengde era um guerreiro que se esforava para fugir tutela da alta administrao a fim de reatar com a tradio de abertura, para no dizer de cosmopolitismo, da precedente di-nastia mongol, os Yuan. Passava a maior parte do seu tempo fora do palcio imperial e gostava de se rodear de monges tibetanos, clrigosmuulmanos,artistasoriundosdasiacentral,guar-da-costas jurchen e mongis, quando no frequentava as embai-xadas estrangeiras de passagem por Beijing. Ele teria at proibido o consumo de porco para melhorar suas relaes com as potn-cias muulmanas da sia central. Em 1518 e 1519, Zhengde con-duziupessoalmentecampanhasmilitaresnonorte,contraos a aguia e o dragao miolo.indd 22 2/13/15 6:23 PM:,mongis, e no sul, em Jiangxi. Em 1521, decide liquidar um prn-cipe rebelde e manda execut-lo em Tongzhou. Sua imagem no sair engrandecida desse episdio. Pelo menos, essa a impresso deixada pelas crnicas oficiais e pelas gazetas aparecidas aps sua morte,quesounnimesemfazerdeseureinadoumaerade transtornos e de declnio (moshi). xodo de camponeses para as minaseascidades,ascensodosparvenus,revoluodastradi-es, costumes locais varridos pelas mudanas,4 cobranas abu-sivas perpetradas pela administrao, mal-estar e agitao da ple-be, boom do contrabando com os japoneses o balano que a histria oficial reteve no muito brilhante. Sem contar as cats-trofes naturais a inundao e a fome de 1511 , que ningum hesita em lanar conta da crise que atinge a sociedade. Ao mes-mo tempo, so incontveis as novas fortunas, a produo aumen-tou por toda parte e o comrcio internacional mais prspero do que nunca.5Em 1520, o senhor da China, embriagado, cai do barco im-perial nas guas do Grande Canal, a principal artria que liga o norte ao sul do pas. A febre ou a pneumonia que ele contrai aps esse banho forado o matar no ano seguinte, em 20 de abril, com trinta anos. Como a gua o elemento do drago, alguns cronis-tas acreditaram que os drages foram responsveis pelo seu fim.6 Alguns meses antes, criaturas estranhas teriam perturbado a cal-madasruasdeBeijing.Atacavamospassantes,ferindo-oscom suas garras. Eram chamadas de sombrias aflies.7 O ministrio daGuerraseencarregoudeestabeleceraordemeosboatosse dissiparam. Zhengde, que sempre se mostrara curioso por coisas estrangeiras,haviaencontradoosportuguesesdaembaixada pouco antes de morrer. Mas, aos olhos de seus contemporneos e sucessores, o episdio permanecer insignificante. No lhe valer o renome pstumo e trgico que se ligar pessoa do tlatoani de Mxico-Tenochtitln, Moctezuma Xoyocotzin. Um filme feito em a aguia e o dragao miolo.indd 23 2/13/15 6:23 PM:1959, Kingdom and the Beauty [Reino e a beleza], em plena poca comunista, no bastar para imortalizar as extravagncias de um soberano que se disfarava de homem do povo para se entregar aos prazeres.De Moctezuma Xoyocotzin, sabem-se muitas e poucas coi-sas. Aqui, o tom muda. O universo asteca nos ainda menos fa-miliar do que o mundo chins, e se recobre com um vu perma-nentemente trgico. De Moctezuma Xoyocotzin, ndios, mestios eespanhisnosdeixaramretratosparciaisecontraditrios:era necessrio,aqualquerpreo,encontrarrazesparaaderrocada dos reinos indgenas ou para magnificar as proezas da conquista espanhola.8 Neto e sucessor de Ahuitzotl (1486-1502), Moctezu-manasceuporvoltade1467.umhomemidosoeexperiente chegada de Hernn Corts, j tinha passado dos cinquenta anos.Nonotlatoani,reinade1502a1520sobreosmexicasde Mxico-Tenochtitln; domina tambm Texcoco e Tlacopn, seus parceiros da Trplice Aliana as trs cabeas. A tradio oci-dental fez dele o imperador dos astecas.Os cronistas lhe atribuem virtudes guerreiras que teriam si-do manifestadas no incio de seu reinado, mas ele no parece ha-v-las mobilizado muito contra os conquistadores. Teria refora-doseudomniosobreaselitesnobiliriaseremanejadoos quadrosdopoderdestituindoumapartedosservidoresdeseu predecessor; teria modificado o calendrio, um gesto cujo alcance ser percebido mais tarde, e movido vrias campanhas contra os adversrios da Trplice Aliana. Com um sucesso mitigado. A der-rota que sofreu diante de Tlaxcala (1515) prova que no era ne-cessrio, em absoluto, ser espanhol nem possuir cavalos e armas de fogo para enfrent-lo. Assim como seu colega chins, o impe-radorZhengde,Moctezumamantinhaumcurralcheiodeani-mais exticos; tambm como o chins, apreciava as mulheres. O cronistaDazdelCastilloconfirmaqueeleera isentodesodo-a aguia e o dragao miolo.indd 24 2/13/15 6:23 PM:,mias,jqueosespanhissempreprecisavamtranquilizar-se quantoaesseaspecto.Moctezumapereceuexecutadopelosn-diosoupelosespanhis.Ashistriasredigidasapssuamorte recheiamseureinadocommauspressgiosqueossacerdotes dosdolosteriamsidoincapazesdedecifrarequemaistarde sero associados conquista espanhola. Sua sorte lamentvel ins-pirar filmes e peras.9 E lhe valer, ao contrrio de Zhengde, um lugar imperecvel na histria ocidental e no imaginrio europeu.Nada em comum entre esses dois imperadores, exceto pelo fato de ambos se terem visto implicados na mesma histria. Em novembro de 1519, Moctezuma encontra os espanhis em Mxi-co-Tenochtitln; alguns meses mais tarde, Zhengde trava conhe-cimento com portugueses em Nanjing. Antes, porm, de voltar a essa coincidncia, uma palavrinha sobre o que a China e o Mxi-co representam no alvorecer do sculo xvi.a china de zhengde e o mxico de moctezumaEm1511,osportuguesestomamMalacaeosespanhisse apoderam de Cuba. As frotas ibricas se encontram ento a uma curtadistnciadedoisgigantescosicebergscujafaceemersase apresta a descobrir. Durante alguns anos ainda, o Mxico e a Chi-na escaparo ao frenesi expansionista que impele as Coroas ibri-cas e seus sditos.As duas terras no possuem ento, claro, nada em comum, excetopelodestinodeseremasprximasnalistadosdescobri-mentos ou das conquistas hispano-portuguesas. E sobretudo a particularidade aos nossos olhos de europeus de ser o fruto de histrias milenares que se desenrolaram fora do mundo euro--mediterrneo. China e Mxico seguiram trajetrias estranhas ao monotesmo judaico-cristo e herana poltica, jurdica e filo-a aguia e o dragao miolo.indd 25 2/13/15 6:23 PM:osfica da Grcia e de Roma, sem com isso terem vivido voltados sobre si mesmos. verdade que, diferena das sociedades ame-rndias,queseedificaramsemrelaodenenhumtipocomo resto do globo, existiram contatos bastante antigos entre o mun-do chins e o Mediterrneo (atravs da famosa rota da seda). No esqueamos, portanto, que a China teve constantes intercmbios com uma parte da Eursia, no mnimo acolhendo o budismo in-diano, deixando-se durante sculos penetrar pelo isl ou compar-tilhando resistncias imunitrias que, na hora do choque, faltaro cruelmente aos povos amerndios.O que a China ou o Mxico nos anos 1510? Se a China de fato um imprio (embora alguns tenham preferido falar mundo chins),10 o Mxico antigo no tem nada de um conjunto politi-camente unificado. Os arquelogos privilegiam a ideia, mais vas-ta, de Mesoamrica, a tal ponto a noo de Mxico remete a uma realidade nacional surgida no sculo xix, totalmente anacrnica napocadequeestamosfalando.Alis,nosetrata,aqui,de comparar a China ao Mxico, mas de esboar um rpido panora-ma desses lugares s vsperas da chegada dos ibricos, descobrin-do chaves que nos esclaream sobre as reaes chinesas e mexica-nasporocasiodaintervenoeuropeia.Particularmenteem mbitoscruciais,semprequeseproduzumchoquedeciviliza-es:acapacidadedesedeslocarrapidamenteporterraepor gua,aartedearmazenarainformaoedefaz-lacircular,o hbitodeoperaremescalascontinentaiseintercontinentais,a faculdadedemobilizarrecursosmateriais,humanosemilitares diante do imprevisto e do imprevisvel, uma propenso a pensar o mundo. Todos esses fatores, em parte tcnicos, em parte psico-lgicos e intelectuais, exerceram um papel na expanso dos ibri-cos:semoscapitais,osnavios,oscavalos,asarmasdefogoea escrita, nenhuma expanso longnqua teria sido projetvel, com tudooqueelacomportadeenviodehomensedematerial,de a aguia e o dragao miolo.indd 26 2/13/15 6:23 PM:,apoio logstico, de campanhas de informao e de espionagem, de operaesdeextraoedetransportesegurodasriquezas,e,o que demasiadamente esquecido, de criao de uma conscincia--mundo.Todo inventrio sempre insatisfatrio. Tal exerccio ainda mais no caso da Mesoamrica, porque, no terreno da memria, China e Mxico antigo no se situam em iguais condies. Embo-raoafluxorepentinodeespanhissuanovaconquistatenha inspiradoumapletoraderelatosededescries,ostempos pr-colombianospermanecemamplamenteopacosparans,a despeito dos avanos s vezes notveis da arqueologia. Os antigos mexicanos no tinham escrita, os chineses escreviam desde pelo menos 3 mil anos antes. O que significa que as fontes chinesas so abundantes, ao passo que, do lado americano, o historiador deve se contentar com depoimentos europeus ou com um punhado de narrativasindgenasemestiasqueotraumadaconquistaeos constrangimentos da colonizao deturparam irremediavelmen-te. Os mundos indgenas do sculo xv nos escapam sem dvida parasempre.Omundochinsaindanosfala,eprovavelmente nos falar cada vez mais.zhongguoZhongguo, o pas do meio Diante do Novo Mundo e do resto do mundo, a China imperial bate recordes de antiguidade: o impriochinsremontaaoterceiromilnioantesdaeracrist com a dinastia dos Xia, ao passo que os imprios mexica e inca, para nos limitar aos mastodontes do continente americano, mal totalizam um sculo de existncia no momento da conquista es-panhola. A continuidade e a antiguidade, o gigantismo da China, seusrecursoshumanosmaisde100milhes,talvez130mi-a aguia e o dragao miolo.indd 27 2/13/15 6:23 PM:8lhes de habitantes 11 e suas riquezas incalculveis: os ibricos iriamdescobrirtudoisso,comestupefao,eexperimentarum incontestvel prazer quando ouviam tais descries, antes de re-peti-las para o resto da Europa.O imprio chins sobretudo uma colossal mquina admi-nistrativa e judiciria, com uma prtica de sculos, que controla o pas atravs de uma infinidade de mandarins, eunucos, magistra-dos, inspetores, censores, juzes e chefes militares. Ainda que, ex-ceto nas fronteiras setentrionais e no litoral, o Exrcito s exera um papel secundrio. A mquina se renova com base em concur-sos de recrutamento que garantem a continuidade do poder entre a corte de Beijing, as capitais de provncia e os mais baixos esca-les do imprio. No h nobreza de espada nem grandes senho-res,masumapequenanobrezafornecedoradosletradosque, tendo obtido sucesso nos concursos e contando com apoio fami-liar ou regional, empreendem uma ascenso ao trmino da qual um pequeno grupo, os mais dotados e os mais protegidos, se ver na capital imperial. Os 20 mil quadros da burocracia confuciana, os 100 mil eunucos podem dar a impresso, vistos da Europa ou do Mxico, de uma administrao pletrica.Na realidade, a China do sculo xvi um monstro notoria-mentesubadministrado.12Comoemtodaadministrao,acor-rupo lubrifica as engrenagens nos pontos onde o controle im-perial,muitolongnquo,muitolentooumuitoespordico,se mostra ineficaz. Ela atinge o pice no litoral meridional, que ex-trai do comrcio com o estrangeiro grande parte de sua prosperi-dade. Os portugueses tero a frutfera experincia disso. Ningum perfeito; a gesto desonesta, as revoltas e o banditismo impossi-bilitamidealizaraburocraciacelestial,masconvmreconhecer que ela ento, em todo o planeta, a nica a poder enquadrar uma populao e espaos to considerveis. com essa burocracia que colide o poder do imperador: as liberdades que ele assume com os a aguia e o dragao miolo.indd 28 2/13/15 6:23 PM:,rituais e as prticas da corte, suas veleidades militares, sua curiosi-dade pelos mundos exteriores e suas ambies universais desagra-dam aos letrados da administrao, apegados a outros valores.Mas a China tambm um mundo de grandes comerciantes: gros, sedas, sal, ch, porcelanas. O congestionamento crescente do Grande Canal, eixo essencial do comrcio Norte-Sul, compro-va a intensidade das trocas.13 No limiar do sculo xvi, os comer-ciantes reforam sua posio perante a pequena nobreza, que v esses parvenus com maus olhos. Com suas atividades invasoras, eles abalam os princpios da moral confuciana, pois preferem as eventualidadeseoscompromissosdomercadoaomundoest-vel, organizado e saudvel dos campos. Mas o modelo antigo ain-da to pregnante que se impe a essas novas classes. Os comer-ciantesdeHuizhou,grandesexportadoresdegrosedech,e felizes beneficirios do monoplio do sal, se esforam para me-lhorarsuaimagemagarrando-seaouniversodosletradosedos altosfuncionrios.14Quantopequenanobreza,elanoconse-gue resistir aos produtos de luxo porcelanas antigas, plantas e frutosexticosimportados,muitasvezesdebemlonge,por esses negociantes prsperos. A tentao forte porque colecionar ouconsumircoisasrarasepreciosassemprefoivitalparaos membros da pequena nobreza. compreensvel que a curiosida-de despertada pelos objetos estranhos introduzidos pelos ibricos venhaareforaracriaodevnculoscomoseuropeuse,por conseguinte, o contato entre os mundos.O comrcio, o correio e as tropas se beneficiam de uma rede de estradas, de um sistema de estaes de muda, de uma malha de canaisepontescomdensidadeeeficciasurpreendentesparaa poca, em comparao com o que a Europa oferecia. Cavalos, pa-lanquins,barcosdefundochatopercorremopas.Aqualidade das estradas, a quantidade de pontes em pedra de cantaria ou flutuantes fascinaram os visitantes europeus, que no acredi-a aguia e o dragao miolo.indd 29 2/13/15 6:23 PM,otavamnoqueviam.15 Aimportnciadaagriculturatambmos deixou espantados: plantaes a perder de vista, nem um s pe-dacinho de terra no cultivado, multides de camponeses em ati-vidade nos arrozais.O desenvolvimento da agricultura e das tcnicas beneficia-se do avano e da difuso do livro impresso, particularmente sens-veis no final do sculo xv. Publicar tornou-se ento um empreen-dimento bastante lucrativo, e oficinas como o ateli Shendu, no Fujian, transmitem a imagem de um pas dinmico e, em vrios domnios, mais adiantado do que a Europa crist. O boom da produogrficafacilitaaimpressoeareimpressodeobras--padro,cnoneconfuciano,textosnormativoscomoocdigo Mingeasordenaesdomesmonome,histriasimperiais.Tal sucessoseexplicatambmpeladifusodaleitura.inevitvel pensar no aparecimento do texto impresso na Europa do sculo xv.Sque,naChina,otextoimpresso, quepermiteabarcaro mundoapartirdoaposentoondeapessoaseencontra,16no tem nada de novidade nem de conquista recente, e, desde sculos antes,harmonizou-secomumaoralidadeaindapredominante. Essa revoluo antecede em muito os chineses do sculo xvi. O documento escrito a ponta de lana de uma administrao im-ponenteparaapoca,alimentaumaintensareflexofilosfica, mas tambm serve aos espritos, s vezes contestadores, que dos confins das provncias expressam opinies e reaes s coisas do mundo. As gazetas florescem por toda parte, retransmitem not-cias, divulgam tcnicas e conhecimentos, em relao s diferentes regies do imprio e registram os voos de drages anunciadores de catstrofes.Falar de pensamento chins conduz invariavelmente a ge-neralidades que revelam a diversidade das correntes e a originali-dadedasinovaes.Desdeoinciodosculoxv,oscandidatos aos exames tm sua disposio compilaes de textos neocon-a aguia e o dragao miolo.indd 30 2/13/15 6:23 PM,Ifucianos que devem assimilar perfeitamente. Esses escritos, como a Grande suma sobre os quatro livros, alimentam um pensamento ortodoxo herdado dos Song, difundido escala do imprio e que orientarareflexodosmembrosdaburocraciaatoalvorecer do sculo xx. Mas seria um erro imaginar uma esfera intelectual exclusivamente ligada ao universo dos clssicos. A ortodoxia con-fuciana tambm vai ao encontro das influncias do budismo, per-corre tendncias quietistas que privilegiam a experincia interior do esprito s custas da vida exterior, suporta derivas heterodoxas trazidas pelas transformaes sociais da poca. Cultura erudita e cultura popular se misturam como em toda parte, enquanto cor-rentessincretistasmesclamconfucianismo,taosmoebudismo na ideia de que esses trs ensinamentos formam um s.17 O pri-mado atribudo experincia espiritual sobre o corpus doutrin-rio explicaria esses fenmenos de convergncia e essa fluidez das tradies religiosas.No horizonte intelectual se destacam personagens fascinan-tes,entreosquaisumdosmaisnotveisWangYangming (1472-1529),cujopensamentodominaosculoxvichins.Ele enfatiza a intuio individual e insiste na predominncia do esp-rito, pois o esprito primordial na medida em que unidade:18 O esprito do Santo concebe o Cu-Terra e os 10 mil seres como um s corpo. Aos seus olhos, todos os homens no mundo quer sejam estranhos ou familiares, distantes ou prximos, desde que tenham sangue e respirao so seus irmos, seus filhos. Por-tanto, preciso unir-se indissoluvelmente aos 10 mil seres. Inti-mamenteconvencidodeque conhecimentoeaoconstituem umascoisa, Wang Yangmingpregatambmanecessidadede um pensamento engajado. Outras correntes reagem ortodoxia confucianabuscandoaunidadeatravsdoqieafirmandoque nestemundosexisteenergia(WangTinxiang,quemorreem 1547).Aparecemattendnciasmaisradicaisemtornodeum a aguia e o dragao miolo.indd 31 2/13/15 6:23 PM,:personagem como Wang Gen (1483-1541), fundador da escola de Taizhou, na qual as pessoas se dedicam livre interpretao dos textos confucianos. As terras chinesas no tm muito o que inve-jar na Europa de Erasmo e de Lutero.anahuacEm chins, China pode-se dizer Hai nei: entre os [quatro] mares. Em nuatle, a lngua dos astecas e do centro do Mxico, a terra ndia se chama Anahuac, isto , perto da gua. A ideia de um continente rodeado de gua retomada nas expresses cema-nahua e cemanahuatl, o mundo inteiro, o mundo que vai at seu fim, como se China e Mxico tivessem permutado conceitos. Uey atl, a grande gua, que designa o oceano, mas tambm os espec-tros,19circunscreveomundoemergidodosantigosmexicanos. Por trs de seus mortos e de sua muralha de gua intransponvel, o Anahuac era outro mundo tranquilo.Nopormuitotempo.Em1517,osespanhisquehaviam partido de Cuba comeam a margear o golfo do Mxico. de seus barcos que eles descobrem a terra continental que batizamos de Mesoamrica e que abriga ento um mosaico de povos com ln-guas, histrias e culturas distintas. A regio nada tem a invejar China em matria de antiguidade, mas, nela, esses vnculos com o passadoestobemmaisdesfeitos.Paraaspopulaesquese aprestam a acolher os espanhis, a grande cidade de Teotihuacn, contemporneadoapogeudoImprioRomano,seperdenas brumas do esquecimento, e as memrias, segundo os lugares, do interpretaes muito diferentes a um patrimnio comum: maia no Iucat, zapoteca e mixteque na regio de Oaxaca, naua no vale do Mxico. No somente a ausncia de escrita alfabtica ou ideo-grfica complica toda tentativa de identificao histrica, mas tam-a aguia e o dragao miolo.indd 32 2/13/15 6:23 PM