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GUILHERMINA MARIA LOPES DE CARVALHO
PRINCÍPIOS DE OBSERVAÇÃO EM TRÊS OBRAS
HISTORIOGRÁFICAS PANORÂMICAS SOBRE A
MÚSICA BRASILEIRA
CAMPINAS
2013
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À minha mãe, a maior incentivadora deste trabalho. A Luciana Jukemura (in memoriam), grande inspiração em ensino de História.
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AGRADECIMENTOS
À profa. Dra. Lenita Nogueira, pela confiança e paciência durante a
orientação deste trabalho.
Aos profs. Drs. Edmundo Hora e Ricardo Goldemberg, pela acolhida no
início deste processo.
À CAPES, pelo financiamento desta pesquisa entre outubro de 2011 e
maio de 2012 e à FAPESP, pelo financiamento entre junho de 2012 e agosto de
2013.
Ao Sr. Vasco Mariz, pela disposição em colaborar com esta pesquisa,
recebendo-me em sua casa para uma entrevista.
Aos profs. Drs. Diósnio Machado Neto e Suzel Reily, pelas valiosas
observações durante o exame de qualificação.
Aos profs. Drs. Diósnio Machado Neto, José Roberto Zan, Mónica
Vermes e Érica Giesbrecht, pela disposição em participar da banca de defesa.
Ao Vinícius Moreno de Sousa Corrêa, pelo auxílio com os
procedimentos relativos às bolsas e auxílios. Aos funcionários da secretaria de
pós-graduação, da Biblioteca do instituto de Artes e da divisão de obras raras e
coleções especiais da Biblioteca Central Cesar Lattes, pela gentileza e atenção.
A todos os professores e colegas do programa de pós-graduação em
música da UNICAMP, pelas discussões e sugestões durante as disciplinas.
Aos meus pais Nilton José Lopes e Maria Zilda de Carvalho Lopes, pelo
apoio incondicional durante os meus estudos.
A todos os meus familiares e amigos, especialmente os que estavam
mais próximos durante este curso, pela troca de ideias, momentos de
descontração e compreensão dos períodos de ausência. Ao Volnei dos Santos,
pela presença e apoio em cada momento deste processo.
Aos alunos da disciplina História da Música Brasileira e à professora
Lenita, pela oportunidade de aprendizado durante o estágio docente.
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Nem tudo o que escrevo resulta numa realização, resulta
numa tentativa. O que também é um prazer. Pois nem em
tudo eu quero pegar. Às vezes quero apenas tocar. Depois o
que toco às vezes floresce e os outros podem pegar com as
duas mãos.
Clarice Lispector
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RESUMO
Partindo de uma concepção de História como um conjunto de discursos interpretativos sobre o passado, o presente trabalho teve por objetivo analisar três obras historiográficas panorâmicas sobre a música brasileira, escritas em diferentes momentos do século XX: A musica no Brasil desde os tempos coloniaes ate o primeiro decenio da Republica (1908), de Guilherme de Mello, 150 anos de musica no Brasil (1800-1950) (1956), de Luiz Heitor Correa de Azevedo e História da Música no Brasil (1981), de Vasco Mariz. Destacamos, nos referidos textos, princípios de observação, considerando dados biográficos dos autores, o contexto sociopolítico e cultural em que se inserem, aspectos metodológicos de suas obras, suas principais referências teóricas, as personalidades e instituições destacadas, bem como sua conceituação de música popular e erudita e sua abordagem de questões relativas a raça, nação e gênero. Observamos nas três obras uma forte relação entre nacionalismo e música, refletida na divisão estrutural dos livros, no juízo estético dos autores e no estabelecimento de um cânone artístico. Conjectura-se a relação entre o nacionalismo dos textos e a exaltação nacional presente nos distintos momentos políticos em que foram produzidos (início do período republicano, governos Vargas/Kubitschek e Regime Militar, respectivamente). O ideário modernista também é apontado como influência na abordagem da música nacional em Luiz Heitor e Mariz. Por mais que esteja presente nos textos, a música popular é sempre vista, numa perspectiva de inferiorização, como material de base para o desenvolvimento de uma música erudita nacional. As figuras do padre José Maurício e de Carlos Gomes recebem destaque em todas as obras, embora suas biografias sejam escritas num tom cada vez menos romanceado e sua importância no cânon dos grandes artistas seja pouco a pouco relativizada. A presença feminina nas obras historiográficas cresceu com o passar dos anos, sobretudo o número de compositoras, embora a maioria dos músicos retratados ainda seja de homens. Percebeu-se a fragilização da abordagem biossociológica (indicação da mistura de raças, do meio físico e da cultura como determinantes da identidade musical brasileira) e sua transição para uma abordagem centrada nos aspectos da própria linguagem musical. Observa-se a carência, em nossa historiografia musical panorâmica, de obras mais aprofundadas, direcionadas especificamente aos estudantes universitários. Destaca-se, entretanto, a utilidade do material disponível como fonte de pesquisa, desde que em diálogo com a produção acadêmica recente. Faz-se necessário, acima de tudo, conscientizar-se da historicidade de todo discurso, passado e presente, sobretudo do próprio trabalho.
Palavras-chave: Guilherme de Mello, Luiz Heitor Correa de Azevedo, Vasco
Mariz, Historiografia Musical Brasileira, Musicologia Histórica.
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ABSTRACT
Based on a conception of History as interpretive discourse, we aim to analyze three historiographical works, written in three distinct moments in the 20th Century: A musica no Brasil desde os tempos coloniaes ate o primeiro decenio da Republica (1908), by Guilherme de Mello, 150 anos de musica no Brasil (1800-1950) (1956), by Luiz Heitor Correa de Azevedo and História da Música no Brasil (1981), by Vasco Mariz. We aim to point out aspects of the biographies of the authors, the politic and social context, methodological aspects of their works, their main theoretical references, the personalities and institutions mentioned, as well as their concepts on popular and classical music and their approach to issues of race, gender and nation. A strong relation between nationalism and music, reflected in the division of chapters, in the authors‟ aesthetical judgment and in the establishment of an artistic canon was observed in the three books. We conjecture the relation between nationalism in the texts and national exaltation typical of the moments when the books were written (respectively, the beginning of the Republican era, the Vargas/Kubitschek presidency and the military government). Modernist ideals are also pointed as an influence on Mariz and Luiz Heitor‟s approach to musical nationalism. Popular music is regarded as inferior, and as raw material for the development of a national classical music. The composers Father José Maurício Nunes Garcia and Carlos Gomes are highlighted in all the three books, although their biographies are lesser and lesser fanciful and their importance in the canon of great artists is gradually relativized. The number of women, especially composers, depicted in Brazilian music historiography has progressively risen, though men are still preponderant. A transition from a bio-sociological methodology (in which Brazilian musical identity is determined by racial, environmental and cultural factors) to an approach centered in musical aspects was noticed. We also observed the lack of panoramic historiographical works specifically directed to undergraduate and graduate students. However, the utility of the available material as research source, in dialogue with the recent academic production, has to be remarked. Above all, one must have in mind that any discourse, past or present, is historically situated. Keywords: Guilherme de Mello, Luiz Heitor Correa de Azevedo, Vasco Mariz, Brazilian Music Historiography, Historical Musicology.
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Lista de Figuras
Fig. 1 – Casa Pia e Colégio de Órfãos de S. Joaquim – Salvador ........................ 18
Fig. 2 - Luiz Heitor .................................................................................................. 64
Fig. 3 - Vasco Mariz ............................................................................................ 132
Fig. 4 - Diagrama 1: o nacionalismo nas três obras ............................................ 177
Fig. 5 - Diagrama 2: Personalidades, instituições e gêneros destacados ........... 178
Fig. 6 – Diagrama 3: A presença feminina .......................................................... 179
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Lista de Siglas e Abreviações
ABM – Academia Brasileira de Música
APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte
FAO – Food and Agriculture Organizations
GL – Guilhermina Lopes
IBECC – Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura
IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
INM – Instituto Nacional de Música
MIS – Museu da Imagem e do Som
OEA – Organização dos Estados Americanos
UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro
UNESCO – United Nations Educational, Scientific and Cultural
Organization
UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas
VM – Vasco Mariz
http://www.unesco.org/http://www.unesco.org/
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SUMÁRIO
Introdução e Revisão bibliográfica ...................................................................... 1
Capítulo 1 – A música no Brasil, desde os tempos coloniaes ate o primeiro
decênio da República, de Guilherme de Mello
1.1 - Dados Biográficos do autor ......................................................................... 17
1.2 - Contexto da elaboração do livro ................................................................. 19
1.3 - Divisão estrutural e critérios de periodização ............................................. 20
1.4 - Metodologia ................................................................................................ 23
1.5 - Referências Teóricas destacadas ............................................................... 28
1.6 - Personalidades, instituições e obras destacadas ....................................... 35
1.7 - Abordagem do nacional em música ........................................................... 44
1.8 - Música popular e música erudita ................................................................ 48
1.9 - Questões de gênero ................................................................................... 53
1.10 - Questões raciais ....................................................................................... 54
Capítulo 2 – 150 anos de música no Brasil, de Luiz Heitor Correa de Azevedo
2.1 - Dados Biográficos do autor ......................................................................... 59
2.2 - Contexto da elaboração do livro ................................................................. 64
2.3 - Metodologia ................................................................................................ 68
2.4 - Principais Referências Teóricas ................................................................. 70
2.5 - Divisão estrutural e critérios de periodização ............................................. 78
2.6 - Personalidades, instituições e obras destacadas ....................................... 79
2.7 - Abordagem do nacional em música .......................................................... 102
2.8 - Música popular e música erudita .............................................................. 109
2.9 - Questões de gênero ................................................................................. 115
2.10 - Questões raciais ..................................................................................... 117
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Capítulo 3 – A História da Música no Brasil, de Vasco Mariz
3.1 - Dados Biográficos do autor ....................................................................... 121
3.2 - O contexto da elaboração e recepção do livro .......................................... 132
3.3 - Divisão estrutural e critérios de periodização ............................................ 134
3.4 - Metodologia ............................................................................................... 136
3.5 - Principais referências teóricas .................................................................. 140
3.6 - Personalidades, instituições e obras destacadas ...................................... 150
3.7 - Abordagem do nacional em música .......................................................... 162
3.8 - Música popular e música erudita ............................................................... 167
3.9 - Questões de gênero .................................................................................. 169
3.10 - Questões raciais ..................................................................................... 171
Considerações Finais ....................................................................................... 173
Referências ........................................................................................................ 181
Anexos ............................................................................................................... 191
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Introdução e Revisão Bibliográfica
Este trabalho nasceu do contato com algumas obras historiográficas
panorâmicas1 sobre a música brasileira e da percepção, nesses textos, de juízos
estéticos e ideológicos, mais ou menos explícitos, e de fronteiras pouco definidas
entre a musicologia e a estética musical. Intrigava-nos o fato de não terem
surgido, nas últimas duas décadas, novas obras nesse modelo, escritas por um só
autor, apesar de as antigas publicações serem ainda frequentemente utilizadas no
contexto didático, seja como orientadoras de programas de História da Música em
conservatórios, itens presentes em bibliografias de exames vestibulares, de
seleção de pós-graduação, ou até mesmo em bibliografias de programas de
disciplinas nesses dois níveis.
Era perceptível um descompasso entre essas obras e a produção
acadêmica brasileira, eminentemente monográfica e centrada na pesquisa
documental e análise musical, enquanto as obras panorâmicas apresentavam
abordagens marcadamente biográficas, norteadas, na maioria das vezes, pelo
desejo de estabelecimento de um cânone dos grandes artistas e obras.
Diante dessas questões, procedemos a um levantamento de textos,
nacionais e internacionais, que discutissem questões teórico-metodológicas em
musicologia e historiografia musical.
O primeiro livro com que tivemos contato e que reflete especificamente
sobre a historiografia musical é Grundlagen der Musikgeschichte (Fundamentos
da História da Música) (1977), do musicólogo alemão Carl Dahlhaus, Estão
presentes no livro questões relativas à natureza do conhecimento histórico, ao
papel do historiador e ao que deve ser o objeto dessa historiografia. O autor
observa criticamente as abordagens em Historiografia Musical em seu tempo,
além de tratar brevemente da Historiografia em períodos anteriores. Busca uma
mediação entre a História da Música e a estética, considerando a “existência
1 Por panorâmicas, entendemos as obras historiográficas que buscam abordar desde o período colonial até a
contemporaneidade do autor.
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legítima” da obra musical recriada na cabeça do ouvinte. Questiona o que deve
ser enfatizado: a História Social ou a História dos Estilos? O autor parece defender
esta última, mas considera a história a partir das mudanças dos ideais estilísticos,
não as vendo como estágios de um processo evolutivo. Para Dahlhaus, “justapor
blocos é má historiografia”, ou seja, o musicólogo alemão defende uma
historiografia a partir das obras, mas conectadas e relacionadas entre si. Critica o
ecletismo muitas vezes presente na metodologia historiográfica. Em alguns
momentos, parece defender uma abordagem formalista, embora também a
critique, visualizando alguns pontos fracos, que talvez se resolvessem se
complementados com uma história da recepção. O musicólogo afirma que os
documentos revelam o pensamento do autor, não necessariamente a realidade
“como era” e que ”um fato histórico nada mais é do que uma hipótese”
(DAHLHAUS, p. 35, tradução nossa)2. Afirma que os fatos podem ser conectados
de múltiplas formas por diferentes pesquisadores. Reconhece a participação ativa
do historiador na reconstrução da cadeia dos fatos. O sujeito histórico é o que
permite sua inteligibilidade; sem sua atuação, a história constituiria apenas
fragmentos desconexos. Nessa afirmação, reconhece tanto o papel do historiador
na reconstrução dos fatos, quanto do compositor na construção das obras.
Dahlhaus, contudo, não é tão radical no entendimento da
discursividade da História. Acredita na possibilidade de uma história das
“intenções dos compositores”, a partir dos “textos autênticos”. Tem em mente
ainda uma historiografia de grandes obras, paradigmáticas de ideais estilísticos.
Questiona a mudança de perspectiva que se dava na historiografia musical de seu
tempo, ao se buscar abordar também as obras e artistas tidos como menores.3
Encontramos similaridades à leitura por nós realizada no artigo Arte
musical e pesquisa historiográfica: Uma reflexão tensa de Carl Dahlhaus em
Foundations of Music History publicado em 2007, onde o brasileiro Sílvio Merhy
faz uma resenha crítica da referida obra. Segundo o pesquisador, o livro se
2 Tradução realizada a partir da tradução para o inglês: Foundations of Music History (1983).
3 O termo utilizado na edição inglesa é trivial music.
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inscreve numa tradição de textos caracterizados pela discussão de idéias, muitas
vezes apresentados sem referência aos livros e autores de onde foram extraídas.
A única referência explicitada por Dahlhaus é Historik, coletânea de textos do
historiador alemão Johann Gustav Droysen (1808-1884) (p. 9).4
Merhy aponta a intenção de uma abordagem de ideais estilísticos e da
recepção ao destacar a afirmação de que “Os fatos musicais podem ser
detectados tanto nas intenções do compositor, quanto na estrutura das peças,
devidamente analisadas de acordo com a história das formas e dos gêneros, e
também na “consciência do público original para o qual a obra se tornou um
evento‟” (DAHLHAUS, 1983, p. 34, apud MERHY, 2007, p. 11). Segundo Merhy,
Dahlhaus aposta no afastamento entre História da Música e História política.
“Música do passado pertence ao presente como música e não como prova
documental” (DAHLHAUS, 1983, p. 4, apud MERHY, 2007, p. 12). Merhy
acrescenta que o musicólogo opõe-se à visão do texto musical como unidade
autônoma da linguagem, depósito de significações compreendidas em si mesmas.
Outro importante texto com que tivemos contato é Contemplating Music,
do americano Joseph Kerman5. Sua publicação, em 1985, revela um esforço de
compreensão do desenvolvimento da musicologia e das perspectivas para as
décadas seguintes. O autor se propõe examinar certas linhas de pensamento em
musicologia e em disciplinas afins, linhas essas que, em suas próprias palavras,
“iluminam a conjugação dessas disciplinas e a crescente orientação da
musicologia para a crítica” (KERMAN, 1985, p. 29).
Em 1989, Régis Duprat, no artigo Evolução da Historiografia Musical
Brasileira, atesta a inexistência e alerta para a necessidade de estudos críticos
sobre a historiografia musical em nosso país, bem como sobre uma “genealogia
4 Atuante num momento de autonomização e delimitação da história enquanto disciplina acadêmica,
Droysen procura defini-la em relação à filosofia e às ciências naturais. Diferentemente da primeira, seria de natureza empírica, não especulativa, porém, ao contrário das ciências naturais, não se basearia em leis gerais. Nas palavras de Pedro Caldas (2006, p. 97), Droysen entende a historiografia como a apresentação de uma investigação metodologicamente controlada da experiência humana. 5 Traduzido para o portugês como Musicologia.
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de obras” (partituras, registros fonográficos/videos, tratados, informações sobre as
atividades pedagógicas, etc.) que influenciaram o gosto e a criação musical entre
nós. De acordo com o autor (p. 33) tais estudos constituiriam “preciosa
contribuição prospectiva diagnosticando, pelo menos, as lacunas de nossa
historiografia constatada”.
O musicólogo traça um panorama da historiografia musical brasileira,
dividindo-a em três períodos, relacionados à História do Brasil e à História da
literatura brasileira: colonial, romântico, marcado pela Independência e moderno-
contemporâneo, marcado pela Semana de Arte Moderna de 1922. Destaca o
projeto nacionalista como norteador da historiografia nesses dois últimos períodos.
Aponta a não identificação da musicologia coeva, já inserida no meio acadêmico,
com a produção historiográfica precedente.
Considera o aumento das pesquisas documentais sobre o período
colonial uma reação à insistência em manter padrões estéticos oriundos de um
projeto nacionalista que vem desde o romantismo. A pesquisa documental seria o
grau mais alto até então alcançado de evolução da historiografia musical
brasileira.
Leonardo Tramontina, em artigo publicado em 2009, realiza uma breve,
porém lúcida análise da situação da disciplina História da Música no contexto
norte-americano, considerando, inclusive, aspectos filosóficos e metodológicos da
historiografia musical na 2a metade do século XX. O pesquisador constata que
estudiosos europeus e norte-americanos têm buscado “abordagens pouco
tradicionais da historiografia musical, mais críticas e próximas aos estudos
contemporâneos da antropologia e da história cultural, e menos atadas à
musicologia analítica.” Tal análise volta-se, no final do texto, para questões
relativas à situação da disciplina na graduação brasileira, como a falta de
pesquisas em pedagogia da História da Música, a heterogeneidade das turmas e
das abordagens didáticas da disciplina e o descompasso entre a formação do
musicólogo brasileiro (mais voltado para a atividade de pesquisa, fortemente
especializado, pouco voltado para a crítica), e as demandas da atuação docente.
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Tivemos também contato com o artigo de Myriam Chimènes.
Musicologia e História: fronteira ou “terra de ninguém” entre duas disciplinas?,
publicado originalmente em 1998 e traduzido no Brasil em 2007. A musicóloga
francesa aponta criticamente o “isolamento da musicologia no seio das ciências
humanas” e o “pouco caso que o historiador fazia da música”, resultando em um
“lugar medíocre, insignificante, destinado à música nos livros de história”.
Observa, contudo, uma recente tomada de consciência de ambas as partes,
prenunciando uma aproximação interdisciplinar. Destaca a “notável evolução na
concepção da musicologia”, possível sinal do “fim da concentração da disciplina
sobre ela mesma e a abertura de diálogo com as outras disciplinas das ciências
humanas”. (p. 26).
Diante da necessidade constatada de uma aproximação interdisciplinar,
buscamos contato com obras da teoria da História. Dois livros vieram ao encontro
do nosso pensamento com relação às questões acima discutidas e tiveram papel
fundamental no desenvolvimento desta pesquisa.
O primeiro deles é A história repensada (Re-thinking History), do inglês
Keith Jenkins, publicada originalmente em 1991, onde o autor reflete sobre a
história na pós-modernidade. Em A Condição Pós-Moderna (1979), o filósofo
francês Jean-François Lyotard assinala como principal característica da pós-
modernidade a incredulidade ante as metanarrativas. Trata-se da crescente perda
de sentido dos discursos fundamentados em visões totalizantes da história, que
buscavam dar sentido à evolução ocidental e propunham soluções para a
humanidade, a partir de determinadas regras de conduta política e ética - por
exemplo, o Iluminismo, o Marxismo e o Positivismo. Apoiado em Lyotard e no
ceticismo de historiadores precedentes, como o norteamericano Hayden White,
Jenkins defende a radical distinção entre passado e história. Para o autor, o
passado já aconteceu e só pode ser “trazido à tona” mediado pelo trabalho dos
historiadores, registrado em artigos, livros, documentários, etc. A história não seria
o passado e, sim, um conjunto de discursos interpretativos sobre o passado.
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Poder-se-ía, portanto, dizer que o estudo da História é, basicamente, um estudo
da historiografia sobre determinado tema.
Entender a inerente subjetividade do discurso histórico não faz com que
desacreditemos definitivamente da disciplina. Mostra-nos apenas a necessidade
de explicitarmos a natureza discursiva do métier, e sua consequente fragilidade
epistemológica, bem como a nossa localização (histórica, geográfica,
metodológica, ideológica...) - e a dos autores estudados - enquanto historiadores
da música. Se, por um lado, identificamo-nos com Jenkins no entendimento da
história como discurso interpretativo, encontramos na aproximação da história com
outras disciplinas das ciências humanas e artes, assinalada em O que é história
cultural? do também inglês Peter Burke, um promissora abordagem metodológica.
Na referida obra, publicada originalmente em 2004, Burke traça um panorama de
diversas abordagens que influenciaram a chamada Nova História Cultural,
apontando, inclusive críticas e fragilidades dessa abordagem, de fronteiras
disciplinares difusas. Chamaram-nos a atenção, nos tópicos abordados no livro, o
olhar da história, normalmente voltada a questões políticas, para novos objetos –
vestuário, costumes, corpo, leitura, etc - bem como a descrição de uma
abordagem, inicialmente associada a um grupo de historiadores italianos da
década de 70, como Carlo Ginzburg, Giovanni Levi e Edoardo Grendi: a “micro-
história”. Tratava-se, segundo Burke, da reação a uma história de matriz
evolucionista, teleológica e unívoca, centrada na dita “civilização ocidental”. Os
valores das culturas regionais passam a ser cada vez mais valorizados. Burke, ao
abordar a micro-história, traça um paralelo entre a crítica à grande narrativa
histórica e às tentativas de estabelecimento de um cânone da literatura e arte
ocidental.
A questão da abordagem linear e da tentativa de formação de um
cânone artístico, detectada nas obras por nós analisadas revelava-se um ponto
crítico e, ao mesmo tempo, uma necessidade. Os limites temporais e espaciais
concernentes à elaboração de um livro ou programa de curso implicam na
necessidade de seleção temática e metodológica. Selecionando, é possível não
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canonizar? Quanto á abordagem historiográfica linear, se por um lado, pode
sugerir uma equivocada visão evolucionista, não é necessária ao estabelecimento
de uma coerência e coesão textual?
Disciplining Music (1996) – Musicology and its canons, organizado por
Catherine Bergeron e Philip Bohlman proporcionou muitas reflexões e
esclarecimentos acerca dessas questões. Destacamos aqui o capítulo Musics and
Canons, onde Bohlman ressalta, ao mesmo tempo, a inevitabilidade e a
pluralidade dos processos de formação de cânones, compreendidos de várias
formas pela própria musicologia. Segundo o autor, os cânones construídos sobre
o Ocidente, sobre os “grandes homens” e a “grande música” carregavam consigo
definições do que a música era e não era. O argumento da disciplina, isto é, da
divisão do campo de estudo, acabava por encobrir racismo, colonialismo e
sexismo, excluindo músicas, pessoas e culturas. Todavia, independentemente da
intencionalidade de juízos valorativos, escolhas são sempre necessárias.
Dada a vastidão de repertórios musicais e potenciais experiências musicais, os musicólogos são responsáveis por escolher alguns, justificando-os em relação aos outros não por um consenso cultural. Criar cânones e fundamentá-los é uma tarefa normativa para os musicólogos. (p. 199, tradução e grifos nossos).
Ir contra os cânones vigentes, segundo o autor, implica sempre
construir novos. “Há certos cânones centrais – observa o autor – mas eles nem
sempre foram centrais e não necessariamente o serão no futuro.” (p. 200,
tradução nossa).
Bohlman observa ainda a relação entre canonização e registro textual.
Uma obra que “dura” é registrada textualmente, seu registro permanece, através
da partitura e/ou de textos que dela tratam. Tal obra torna-se canônica e seu
conhecimento passa a ser necessário para o acesso a determinados níveis e a
conseqüente atribuição de alguma autoridade (exames de seleção para cursos ou
concursos para a docência são um exemplo). Os textos substituiriam a
temporalidade musical enquanto fenômeno oral, atribuindo à obra uma
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atemporalidade musical. O autor observa, entretanto, que a temporalidade parece
estar ganhando mais espaço que a atemporalidade. A musicologia, a seu ver, está
mais inclusiva do que nunca.
Partindo da visão do referido musicólogo ao definir a formação de
cânones como “atos dinâmicos de disciplina”, praticados por uma comunidade de
agentes, de maneira a “manter a vida em comunidade ordenada e funcional”. (pp.
203-205, tradução nossa), reconhecemos que a formação de cânones, apesar de
implicar invisibilização, é um processo inevitável.
Semelhantemente ao texto de Bohlman, as reflexões do musicólogo
chileno Juan Pablo González em Pensar la música desde América Latina (2013)
sugerem o entendimento da construção de cânones como um processo realizado
tanto a partir de centros como de periferias, as quais por sua vez, convertem-se
em centros, num constante desmembramento.
O que acontece então quando a construção canônica se faz pelos que se sentem excluídos? Reproduzimos as tendências hegemônicas sem, na verdade, as reproduzir totalmente? Oferecemos cânones alternativos? Conforme afirma Gorak, “o cânon pode se converter em foco do debate em qualquer período em que artistas, críticos, filósofos ou teólogos tratem de adaptar um corpo herdado de textos, práticas ou ideias às suas necessidades culturais percebidas, presentes e futuras.” (1991, p. 4) [...] o cânon contribui para criar tanto uma narrativa do passado como uma matriz do futuro. (pp. 281-283, tradução nossa).
Dos estudos consultados, o que mais se aproxima do propósito desta
pesquisa, à qual proporcionou ampla fundamentação e diálogo, é a tese de livre-
docência de Diósnio Machado Neto, defendida no ano de 2011. O autor se propõe
estudar a abordagem do período colonial na historiografia sobre a música
brasileira, ao mesmo tempo em que apresenta seu posicionamento enquanto
historiador. Principia por examinar como, na teoria da história, ao longo do século
XX, o foco foi sendo transferido do fato para o discurso. Os próximos parágrafos
revelam o nosso entendimento da posição do autor, acrescido de contribuições de
outros trabalhos com que tivemos contato e que dialogam com as questões a
seguir apresentadas.
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O meio científico vivenciou, no final do século XIX, uma divisão na
busca do conhecimento. Ao mesmo tempo em que se definiam o universo e as
particularidades teóricas e metodológicas das diversas disciplinas, as ciências
sociais buscavam a sua autonomia. (MACHADO NETO 2011, p. 28). A legitimação
científica das humanidades passou, inicialmente, pela adoção de métodos e
parâmetros das ciências naturais. De acordo com Carvalho (in FREDRIGO et. al.,
2009) o discurso histórico definiu-se, nesse momento, como um discurso
científico, objetivo, racional, especializado e não ficcional, em oposição ao
discurso literário, eminentemente artístico. Segundo Diósnio Machado Neto, a
abordagem inicial da História como ciência enraíza-se numa concepção da
disciplina como “inquérito do passado”. Nas palavras do referido autor, “a história
herdeira de racionalismo principia justamente na certeza que seria o fluxo
determinista do tempo a mola propulsora do estabelecimento de uma ordem
analisável pela qual a condição social seria previsível.” (2011, p. 29).
O historiador inglês Robin George Collingwood, ao afirmar, em The Idea
of History (1946), que “os processos da natureza podem, pois, descreverem-se
como sequência de meros eventos, já não assim os da história” questiona esse
fluxo determinista. Os processos históricos não seriam “processos de meros
acontecimentos, mas processos de ações; as quais possuem uma face interior
que consiste em processos de pensamento”. O foco passa dos fatos à formação
do conhecimento histórico, ou seja, a história passa a ser abordada como “história
do pensamento”. (COLLINGWOOD, apud MACHADO NETO, 2011, p. 31).
Desdobram-se daí as seguintes questões: “Como se forma a imagem e o discurso
da história no presente? Ela teria um sentido teleológico? Aliás, ela teria um
sentido, ou seria apenas uma narração permeada pela crítica do tempo vivido?”
(MACHADO NETO, 2011, p. 31). A objetividade do discurso histórico estava,
portanto, posta em cheque.
O francês Marc Bloch define a história como o estudo dos homens na
relação com o tempo, e não do tempo concretizado em passado. Em Apologia da
História ou O Ofício de Historiador (1949 – publicada postumamente) Bloch
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defendia a interdisciplinaridade como único caminho para a compreensão do
contexto onde os fatos ocorriam. (MACHADO NETO, op. cit., p. 32)
Voltando aos ingleses, Edward Hallett Carr, em O que é História?
(1961), entende o tempo como uma dimensão da consciência humana. Para o
estudioso, a história tem início com a tomada de consciência, pelos homens, de
acontecimentos específicos, em que eles estão conscientemente envolvidos e nos
quais podem interferir e influenciar. Alerta, porém, que a organização dos fatos
pelo historiador é dada no presente. (idem, ibidem). Para Machado Neto, em Carr
dá-se a “cisão entre a crônica factual e a história como exercício de interpretação
do passado”. (p. 34).
Para o materialismo histórico6, “a essência da história seria explicitar os
conflitos de sentidos distintos de todas as esferas que formam a sociedade”.
(MACHADO NETO, 2011, p. 34). O historiador seria um elemento desse processo,
não um observador isento. A história é, nesse caso, teleológica e linearmente
orientada, preservando ou transformando os valores que dão sentido à estrutura
social.
A partir da década de 70, a atenção da história passa a se voltar cada
vez mais para o discurso que para o objeto. Passou-se a enfatizar a história como
prática discursiva, subjetiva, instável para uma perspectiva científica. Jacques
Derrida, Gilles Deleuze e Michel Foucault defendiam a impossibilidade do
conhecimento histórico como fato e ganhavam impulso as concepções de
alteridade (Levinas); da horizontalidade do pensamento (Derrida) e da inerente
descontinuidade do presente e do passado (Foucault). Este último autor, em As
Palavras e as coisas (1966), defende que as coisas não têm um significado último,
revelando-se apenas com a intervenção humana, pela atribuição de sentido.
Chegava-se à concepção de que não havia paradigmas universais, mas históricos,
construídos pela experimentação do mundo e expressos na linguagem.
(MACHADO NETO, 2011).
6 Em sua explanação do materialismo histórico, Machado Neto baseia-se em O Cotidiano e a História (1992),
da socióloga húngara Agnes Heller.
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Os pragmáticos, aqui representados pelo estadunidense Richard Rorty,
chamam a atenção para os usos que se fazem da história, de acordo com os
interesses de um determinado grupo, em um determinado período. Rorty, embora
não se declarasse relativista, relativiza o conceito de verdade ao definí-la com
“tudo aquilo que tem significado pragmático para as pessoas”. O sentido das
expressões enraíza-se pela sua utilização, ajustada aos interesses dos que delas
se servem. (MACHADO NETO, 2011, p. 36).
Segundo Machado Neto (op. cit), pragmáticos, céticos e pós-modernos
vêem a história como apropriação de vestígios cuja apreensão não se dá desde o
passado, mas desde o presente. A análise historiográfica levaria à compreensão,
não apenas do discurso do autor, mas do contexto em que este se insere.
Perscrutar os discursos e seus modelos revela mais do que os inquéritos documentais no tocante ao passado, revela, sobretudo, as particularidades dos autores como atores de um ambiente teórico, político e social que os leva a desvelar princípios investigativos e suas teorias, mas, também, desejos e fantasias deles próprios como de toda uma comunidade com a qual retroagem. (p. 10)
O referido autor ressalta a condição humana do conhecimento histórico
e, portanto, também do musicológico. Citando Edgar Morin, defende o diálogo
interdisciplinar que, ao mesmo tempo em que pode responder questões da
musicologia a partir de uma perspectiva externa, não elimina a fragilidade do
pensamento, “mergulhando-o na complexidade e na aleatoriedade advinda da
singularidade individual de cada área” (MORIN, 2000, apud MACHADO NETO,
2011, p. 14). O reconhecimento dessa fragilidade epistemológica é, de certa
maneira, um exercício de autoconhecimento, na medida em que leva à percepção
do nosso próprio discurso como histórica, geográfica e ideologicamente localizado.
Nas palavras de Machado Neto, “revelar as estruturas da transversalidade na qual
o próprio discurso de análise se consubstancia é afirmar a historicidade do próprio
projeto.” (p. 14).
[...] um mesmo fenômeno natural e social pode suscitar uma infinidade de interpretações. Nesse vórtice das interpretações possíveis, as fronteiras
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das áreas do conhecimento dissolvem-se, desse modo, intensificando a busca por modelos transversais que tratam precariamente de organizar o pensamento pela ação transdisciplinar. (p. 21).
Partilhando da visão de Katherine Bergeron, o autor aponta a
importância, para o avanço da musicologia, do reconhecimento dos cânones
historiográficos, da proposição de alternativas de resistência e mesmo do
reconhecimento de que os cânones e suas resistências formam uma posição que
sempre revela a localização do narrador: (BERGERON, apud MACHADO NETO, p
15).
Machado Neto, no artigo Unita Multiplex: por uma musicologia integrada
(2007), já observava que “o chamado à atenção sobre a questão teórico-
conceitual da área [musicologia histórica] força, primeiramente, um esforço de
análise historiográfica e, posteriormente, a uma atualização metodológica” (p. 26).
A presente dissertação busca atender ao primeiro propósito.
Realizamos inicialmente um levantamento das obras historiográficas
panorâmicas publicadas, tendo encontrado os seguintes títulos: A música no Brasil
desde os tempos coloniaes até o primeiro decênio da República (1908), de
Guilherme de Mello, Storia della musica nel Brasile dai tempi coloniali sino ai nostri
giorni (1926), de Vicenzo Cernicchiaro, História da Música Brasileira (1926/1942),
de Renato Almeida, Música do Brasil (1941), de Mário de Andrade, Origens e
evolução da música em Portugal e sua influência no Brasil (1942), de Iza Queirós
Santos, História breve da música no Brasil (1945), do português Gastão de
Bettencourt, História da Música Brasileira (1948), de Francisco Acquarone, A
música no Brasil (1953), de Eurico Nogueira França 150 anos de música no Brasil
(1800-1950), de Luiz Heitor Correa de Azevedo, Panorama da Música Popular
Brasileira (1964) e Raízes da Música Popular Brasileira (1991), de Ary
Vasconcelos, Pequena História da Música Popular: da modinha à canção de
protesto (1974) e História Social da Música Popular Brasileira (1998), de José
Ramos Tinhorão, História da Música Brasileira: dos primórdios ao início do século
XX (1976), de Bruno Kiefer, História da Música no Brasil (1981), de Vasco Mariz,
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13
The Music of Brazil (1983), de David Appleby, as coletâneas Música Popular
Brasileira [2005] e Música Erudita Brasileira [2006], publicadas na Revista Textos
do Brasil, do Ministério das Relações Exteriores, e Uma História da Música
popular brasileira (2008), de Jairo Severiano. Após um primeiro contato e
contextualização das referidas obras, estabelecemos um corpus a ser analisado,
bem como alguns critérios de análise.
Optamos por três obras de autores brasileiros, escritas em português,
em pontos distintos e mais ou menos eqüidistantes do século XX. Optamos pelo
livro de Guilherme de Mello por ser a primeira obra publicada nesse modelo e por
sua localização num momento de grandes transformações nacionais (recente
abolição da escravatura e proclamação da República). Luiz Heitor, por sua vez,
redige seu livro num período de grande impulso desenvolvimentista e de
afirmação nacional, entre os governos Vargas e Kubitschek. No plano cultural, o
pensamento modernista e o Americanismo Musical de Curt Lange, bem como
suas novas propostas metodológicas exerciam forte influência sobre o autor. Em
sua atuação internacional, a divulgação da música brasileira era uma de suas
principais preocupações. Vasco Mariz, diplomata, também estava fortemente
envolvido com a divulgação internacional de nossa música, mas seu livro foi
escrito para o público brasileiro. Optamos por sua inclusão no corpus pela sua
grande quantidade de reedições e pela intrigante ausência de obras posteriores
nesse modelo: de um só autor, tendo como foco a música erudita brasileira.
Com relação aos critérios de análise, iniciamos pela trajetória biográfica
dos autores, complementada com dados sobre o contexto de elaboração das
obras. Buscamos situar os autores quanto ao contexto sociopolítico e cultural em
que se inserem, bem como quanto às circunstâncias em que se deu a elaboração
dos textos - atuação profissional no momento, público a que o livro se destinava,
motivações do autor, etc. Buscamos ainda indicar os procedimentos
metodológicos utilizados (análise musical, biografias, presença de iconografia e
sua relação com o texto, fontes consultadas, etc). Relacionadas à metodologia
estão também as suas principais referências teóricas, que buscamos destacar,
-
14
apontando sua influência em alguns pontos dos livros analisados. A divisão
estrutural do livro, bem como as personalidades, obras e instituições destacadas
auxiliam a nossa compreensão dos critérios que nortearam, em cada obra, o
estabelecimento de um cânone artístico. Observamos nas referidas obras uma
estreita relação entre canonização e abordagem do nacional em música, o que
será também o objeto do nosso estudo. Com relação à conceituação e abordagem
de música popular e erudita, outro dos critérios aqui estabelecidos, observamos
que apenas o livro de Vasco Mariz foi escrito num momento de separação das
abordagens historiográficas sobre as duas vertentes, devido, segundo Elizabeth
Travassos (2003) à crescente especialização dos conhecimentos. O espaço e o
papel da mulher na historiografia também é outro item considerado. Por fim,
buscamos analisar a presença e abordagem de questões relativas à raça, quanto
a possíveis juízos valorativos e relações identitárias.
Tomamos por base a versão digitalizada da primeira edição do livro de
Guilherme de Mello, à qual tivemos acesso via Google Books7. Buscamos
informações biográficas e contextuais a partir de trabalhos que mencionam o
autor, como a dissertação de Soares (2007) e a tese de Machado Neto (2011),
além de enciclopédias, textos sobre o Colégio S. Joaquim, onde cresceu e atuou,
além do próprio livro analisado. Quanto às referências teóricas, partimos dos
autores citados no próprio livro, buscando contextualizá-los ideologicamente. O
livro Cultura Brasileira e identidade nacional, de Renato Ortiz e o artigo A teoria da
obnubilação brasílica na história da música brasileira (2008), de Maria Alice Volpe,
foram especialmente esclarecedores em relação às questões raciais, mesológicas
e identitárias do período.
Quanto ao livro de Luiz Heitor, consultamos a edição de 1956, presente
na coleção Alexandre Eulálio da seção de obras raras da Biblioteca Central Cesar
Lattes, na UNICAMP. As informações biográficas e contextuais foram-nos
fornecidas, sobretudo, pelas teses de Diósnio Machado Neto, Jairo Cavalcanti e
7 Optamos por não nos basear nas reedições por não terem sido realizadas em vida e sob a coordenação do
autor.
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15
Henrique Drach (2011) - esta última traz em anexo um depoimento concedido por
Luiz Heitor ao Museu da Imagem e do Som em 1972, do qual também nos
servimos, bem como pelo livro Três Musicólogos Brasileiros (1983), de Vasco
Mariz.
O próprio Mariz produziu bastante material que auxilia na compreensão
de sua trajetória e pensamento. Baseamo-nos em seu livro Três Musicólogos
Brasileiros, onde figuram suas principais referências teóricas (Mário de Andrade,
Renato Almeida e Luiz Heitor), em seu catálogo de obras, o qual contém um
extenso relato de sua trajetória, escrito a partir de palestra por ele proferida na
Academia Brasileira de Música, bem como em duas entrevistas: uma realizada por
Ricardo Tacuchian em 2011 e publicada pela Revista Brasileira de Música e outra
realizada pela autora deste trabalho na casa do musicólogo, no Rio de Janeiro, no
dia 19 de novembro de 2012.
Quanto às edições do livro, baseamo-nos inicialmente na primeira
(1981) e na 6ª (2005), a mais recente de que dispúnhamos, posteriormente
confrontada com a 8ª (2012), que nos foi oferecida pelo próprio autor.
Segue-se a análise dos três livros, a cada qual foi dedicado um capítulo
desta dissertação.
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16
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Capítulo I – A musica no Brasil desde os tempos coloniaes até o primeiro
decenio da Republica, de Guilherme de Mello
1.1 – Dados biográficos do autor
Guilherme Theodoro Pereira de Mello nasceu em Salvador, em 26 de junho
de 1867, em uma família com fortes vínculos militares. Filho primogênito de Pedro
Theodoro Pereira de Mello e Helena Francisca de Mello, ficou órfão de pai em
1876, aos nove anos de idade. Ingressou, então, no Colégio de Órfãos de São
Joaquim, onde estudou até 1883, saindo a pedido de sua mãe. No Colégio, teve
formação em Primeiras Letras, Latim, Humanidades e Música. Retornou à
instituição em 1892, substituindo seu antigo professor Elisiário de Andrade na
função de mestre de banda. Fundou no colégio também uma Schola Cantorum e
uma orquestra. (MARCONDES, 2000). A Casa Pia e Colégio dos Órfãos de São
Joaquim é considerada a mais antiga instituição educacional em funcionamento no
Brasil. Foi fundada em 1799 pelo irmão leigo catarinense Joaquim Francisco do
Livramento, de passagem pela cidade, com o nome de Casa dos Meninos de São
José. Tinha por finalidade acolher menores órfãos, dando-lhes formação
educacional humanística, religiosa e profissional. Em 1826, um antigo convento
jesuíta, desocupado desde a expulsão da Companhia da colônia pelo Marquês de
Pombal em 1757, foi oficialmente designado pelo Império como sede do orfanato,
que passou a se chamar Colégio de São Joaquim, em homenagem ao seu
fundador. Atualmente funciona como um colégio interno para crianças carentes,
não necessariamente órfãs, da capital e interior da Bahia (CONHEÇA, 2013). O
pioneirismo dessa instituição teria influenciado o estabelecimento de outras
instituições congêneres, como o Colégio Pedro II e o Asilo de Meninos Desvalidos,
no Rio de Janeiro, o Instituto Amazonense de Educandos Artífices, no Pará, e a
Escola de Aprendizes do Arsenal da Marinha, em Salvador. (BAHIA, 2012). Mello
atuou também como mestre de música no Arsenal de Guerra da Bahia. (BAHIA,
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18
2012). Em seu livro, menciona ainda a atuação como professor substituto de
Princípios de Música no Conservatório de Música da Bahia.
Eu mesmo, durante os poucos mezes que lá estive a pedido do Dr. Dotto, em nome da arte, substituindo a cadeira de Principios de musica, cujo lente fora licenciado em virtude da crise financeira que assolava o Estado, o qual já havia alguns annos não pagava as subvenções, consegui povoar completamente o salão de minha aula a ponto de não haver mais logares para os alumnos. (MELLO, 1908, p. 287).
Transferiu-se para o Rio de Janeiro em 1928, onde assumiu o cargo de
bibliotecário interino no Instituto Nacional de Música. Efetivado no ano seguinte,
permaneceria na cidade até sua morte, em 4 de maio de 1932. (COLEÇÃO
GUILHERME DE MELLO, 2013). Quando da fundação da Academia Brasileira de
Música, em 1945, Villa-Lobos designou o nome de Guilherme de Mello como
patrono da cadeira nº 31, hoje ocupada pelo musicólogo também baiano Manuel
Veiga (GUILHERME DE MELLO, 2013). Em memória do ilustre aluno e professor,
o Colégio de São Joaquim criou a medalha de honra ao mérito Guilherme de
Mello, (BAHIA, 2012).
Figura 1 – Casa Pia e Colégio de Órfãos de S. Joaquim – Salvador
Artista e ano não informados – Fonte: . Acesso em 11 jul. 2013.
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1.2 – Contexto da elaboração do livro
Trata-se da primeira obra historiográfica panorâmica sobre a música
brasileira de que se tem conhecimento. Foi publicado pela primeira vez em 1908,
pela Typographia de S. Joaquim, em Salvador, reeditado em 1922, no Dicionário
histórico, geográfico e etnográfico do Brasil e em 1947, pela Escola Nacional de
Música. (MARCONDES, 2000).
Mello ainda residia em Salvador e lecionava no Colégio de S. Joaquim
quando da elaboração e publicação do livro. Logo no início do texto, agradece aos
órfãos por sua ajuda na impressão do material.8
É opportuno aqui testemunhar ao Collegio dos Orphãos de São Joaquim a minha sincera gratidão pelo relevante serviço que me fez na publicação d‟esta obra, proporcionando-me a par de nitidez artística o delicado trabalho dos clichés, caprichosamente feitos por um orphão da casa, que desde já revela grande talento e que suppriu a falta de typos apropriados a esta publicação. (MELLO, 1908, p. II).
Não há, todavia, nenhuma menção explícita a qualquer propósito
didático.
Publicado em 1908, portanto, menos de vinte anos após a proclamação
da República, o livro reflete a esperança gerada pelo advento do novo regime na
intelectualidade do período. A independência do Brasil, proclamada em 1822,
havia suscitado um sentimento semelhante, perceptível, por exemplo, na leitura de
Ideias sobre a música (1836), de Manuel de Araújo Porto Alegre. Nas palavras do
próprio Mello (1908, p. 297): “com a proclamação da república a arte nacional
reivindica todo o seu passado de gloria e inicia uma nova epoca que bem
poderiamos denominar – Periodo de nativismo”.
De fato, o país vivenciava então uma série de transformações visando a
sua modernização e progresso. A política econômica da presidência de Afonso
Pena (1906-1909) orientava-se para a valorização do café, produto brasileiro
8 Todas as citações presentes neste trabalho estão transcritas literalmente, conforme a ortografia,
acentuação e pontuação utilizadas pelos autores.
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20
então com maior inserção no mercado internacional. Realizaram-se, além disso,
melhorias no Exército e na Marinha e incentivos à imigração. Representado por
Rui Barbosa, o país participou, em 1907, da célebre Conferência da Paz em Haia,
na Holanda (SOARES, 2007).
1.3 – Divisão estrutural e critérios de periodização
O desenvolvimento da música brasileira, na visão do musicólogo
baiano, foi influenciado, basicamente, pelas etnias que aqui se estabeleceram e
pelas distintas conjunturas políticas da história do país.
Diversas foram as influências que concorreram em cada período de seu desenvolvimento para a formação do cunho original ou típico da musica popular brasileira: influencia indigena, influencia jesuitica, que constituem o periodo de formação; influencia portugueza, influencia africana, influencia hespanhola, que constituem o periodo de caracterisação, influencia bragantina que constitue o periodo de desenvolvimento; influencia dos pseudo-maestros italianos, periodo de degradação; influencia republicana, periodo de nativismo. (MELLO, 1908, p. 7).
Tais influências manifestam-se na divisão estrutural dos capítulos:
Capítulo I – Influência indígena
Capítulo II – Influência portugueza, africana e hespanhola
Capítulo III – Influência bragantina
Capítulo IV – Período de degradação
Capítulo V - Influência Republicana
No primeiro capítulo, o autor, baseado em relatos de viajantes e
missionários como Fernão Cardim, Gabriel Soares e Jean de Léry, descreve a
música entre os indígenas, seus rituais e instrumentos. Mello reproduz a ideia da
musicalidade inata do indígena, já presente nesses textos. Os nativos são
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21
analisados numa perspectiva de selvageria e inferioridade em relação aos
colonizadores. Os textos em que Mello se baseou, de autoria de homens a serviço
do governo ou da Igreja Católica, revelavam uma concepção eurocentrista.
Referências sobre o local e os costumes visavam uma ação de domínio ou
“civilização” sobre o “outro”, tido como inferior. Segundo Diósnio Machado Neto, “o
relato é sempre realizado na perspectiva das pertenças individuais, da
subjetivação de valores que emergem do distanciamento crítico da alteridade.”
(MACHADO NETO, 2011, p. 47). São mencionados alguns autos9 representados
no Brasil colonial para catequização dos indígenas. Mello baseia-se, nesta parte,
em textos já escritos no século XIX, por Teophilo Braga e Mello Moraes.
O segundo capítulo traz uma abordagem da música popular brasileira
como resultado da fusão dos costumes das “raças” portuguesa, africana,
espanhola e indígena. O lundu, a tirana e a modinha são apontados como os
gêneros-base de nossa música e resultado da citada fusão. São mencionados
diversos gêneros de música popular rural e urbana (que hoje consideramos como
de música folclórica), dos quais o autor busca fazer um breve histórico.
No capítulo seguinte, Mello indica a vinda da família real portuguesa e
posterior independência do país como um momento de evolução musical. Mais:
argumenta que a música teria sido um fator de impulso ao movimento de
independência.
Sendo porém a música a mais sociológica de todas ellas [as artes], por isso que só tocou o seu apogeu quando a sociedade libertando-se do servilismo feudal, clerical e realengo, proclamara a sua independencia, deve esta qualidade ao som que é o agente social por excellencia.(MELLO, 1908, p. 129).
9auto: 1. Certo gênero dramático de cunho moral, místico ou satírico, com um só ato, originário da Idade
Média. 2. Representação dramática do ciclo natalino, com canções e danças (iDICIONÁRIO AULETE,2013).
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22
Nesse mesmo capítulo, inicia-se a abordagem da modinha e sua defesa
como música nacional, assunto que trataremos em maiores detalhes no
subcapítulo 1.7.
O autor destaca a atuação musical da dinastia de Bragança, desde seu
fundador D. João IV (1604-1656).
Prova-se ainda o gosto, a capacidade e a dedicação musical dos mais reis da casa de Bragança pelo que sobre elles diz a historia. Começando por D. João IV a quem coube a glória de inaugurar em 1640 a dynastia de Bragança teve Portugal neste rei não só um composior distincto como ainda o fundador da Bibliotheca Real de Musica, onde se archivavam as composições dos músicos portuguezes e extrangeiros. Este precioso archivo ficou sepultado nas ruinas do terremoto em 1775 [1755], o que foi uma perda immensa para a historia da arte em Portugal. Passando-se a D. João V e depois a D. José I e sua mulher D. Marianna Victoria, mais tarde a D. Maria I e seu filho D. João VI, que foram excellentes musicistas teve ainda a casa de Bragança em D. Pedro I do Brasil e IV de Portugal o genial compositor do nosso Hymno da Independencia e o inspirado poeta e auctor do Hymno da Carta Constitucional de Portugal, sagrado por D. Carlos o Hymno Nacional Portuguez. De todos estes reis porem o que mais concorreu para o desenvolvimento da musica no Brasil foi D. João VI. (MELLO, 1908, p. 154).
Embora ponha em evidência o talento de D. Pedro I como compositor,
reproduzindo uma relação entre desenvolvimento musical e formação de um
Estado nacional já presente desde o ensaio de Araújo Porto Alegre, Mello aponta a
figura de D. João VI como o monarca que mais contribuiu para nossa música,
trazendo ao país uma grande quantidade de artistas europeus e envolvendo
também músicos aqui nascidos na produção e prática musical para os serviços
religiosos, oficiais e de entretenimento. Entre tais músicos, é destacado o padre
José Maurício, e, entre os estrangeiros, o austríaco Sigismund Neukomm e os
irmãos portugueses Marcos e Simão Portugal.
O capítulo aborda as influências de D. Pedro II e do início do período
republicano comentando os hinos nacionais; traça um breve histórico da música
que é hoje nosso hino, fala sobre o Hino da Carta, composto por D. Pedro I já de
volta a Portugal e sobre o Hino da República. Traz também uma biografia de
Francisco Manuel, autor do Hino Nacional.
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23
Retoma o tema da modinha e aborda artistas populares que se
dedicaram, além desse gênero, ao lundu. A partir da temática da modinha, emenda
um longo trecho sobre a música na Bahia, trazendo breves biografias de músicos
que se dedicaram à modinha e ao lundu no século XIX e, por fim, menciona e
comenta brevemente alguns nomes de destaque em diversos momentos da
história da música no seu estado natal.
Segue-se, no quarto capítulo, o relato de um período por ele
considerado como “de degradação”, marcado pela influência da música ligeira
italiana, instrução musical precária fornecida pelas “artinhas” 10, declínio da
modinha nos salões, aquisição de um gosto musical considerado inferior após os
intercâmbios na Guerra do Paraguai e migração de compositores brasileiros para a
Europa. Embora tais comentários se refiram a todo o país, o foco do capítulo ainda
é a Bahia.
O quinto e último capítulo aborda o período republicano, avaliado pelo
autor como um momento de esplendor e orgulho da música nacional. Mello traz
uma grande quantidade de nomes de artistas desse período: compositores,
intérpretes, além de críticos musicais. Deve-se lembrar que este autor é
contemporâneo de tais personalidades. São também descritas algumas
instituições de ensino, como o Colégio de Órfãos de São Joaquim (onde ele
lecionava) e o Instituto Nacional de Música, onde posteriormente atuaria como
bibliotecário.
1.4– Metodologia
Observando as imagens do sumário (presentes no Anexo I desta
dissertação), podemos perceber seu enorme detalhamento - praticamente cada
10
Artinhas eram manuais escritos por compositores brasileiros ou radicados no país, em falta de livros publicados. Diferentemente do afirmado em Mello, estudos recentes têm revelado o alinhamento metodológico desse material com a produção europeia coeva. Um exemplo é a Arte Explicada de Contraponto, de André da Silva Gomes, mestre de capela da Sé de São Paulo no século XVIII. (DUPRAT et. al., 1998).
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24
parágrafo do texto integral é resumido em um tópico! Todavia, sua leitura revela
um encadeamento dos capítulos muitas vezes confuso e truncado.
Dalton Soares (2007) caracteriza as primeiras obras historiográficas
sobre a música no país como uma compilação de fatos relacionados à música e
aos músicos cuja contribuição pessoal era considerada importante, alinhados aos
ditos “grandes acontecimentos históricos”, visando desenvolver no leitor uma
consciência musical nacional. O livro de Mello corresponde muito bem a esta
descrição. O leitor tem a impressão não de um texto coeso, mas de uma colagem
de informações das mais diversas fontes e naturezas: relatos de viajantes e
missionários, críticas musicais, narração de fatos históricos e memórias pessoais.
O próprio autor, no prefácio, descreve sua metodologia como um misto
de narrativa biográfica e histórica:
Há dous modos, diz Edmond Scherer, de escrever a história artística e literária de um povo: “pender para as considerações geraes, referir os effeitos ás causas, distinguir, classificar; ou então tomar por alvo este mundo de artistas e escriptores do meio que tão grandes cousas produziu, procurar suprehender estes homens em sua vida de todo dia, desenhar-lhes a pysionomia e recolher as picantes anecdotas a seu respeito. Foi pois na observância destes modos que procurei achar as leis ethnicas que presidiram à formação do genio, do espírito e do caracter do povo brasileiro e de sua música bem como ainda de sua ethnologia; isto é, como o povo portuguez sob a influencia do clima americano e em contacto com o índio e o africano se transformou, constituindo o mestiço ou o brasileiro propriamente dito. (MELLO, 1908, p. 6).
A falta de explicitação de muitas das fontes utilizadas, bem como o
tratamento mais compilatório que analítico das informações suscitariam,
posteriormente, críticas ao livro.
A parte histórica do mesmo é, no entanto, deficiente e nem sempre muito exata; constituem-na transcrições inmeráveis [sic] das várias fontes a que o autor teve acesso, digressões ociosas sobre questões de ordem geral, que nada têm a ver com o assunto do livro, ou disputas de mero interesse local. (AZEVEDO, 1956, p. 378) É um tanto difícil perceber no livro de Guilherme de Melo quais ideias são suas e quais são repetidas de outros autores. A absoluta falta de notas e referências bibliográficas impedem que se identifique como chegou às suas afirmações. De maneira um tanto velada ele indica que a biografia
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25
do padre José Maurício havia sido feita por Araújo Porto Alegre. Depois, sem deixar isso claro, incorporou ao seu texto páginas inteiras do artigo “Iconografia brasileira” do mesmo autor, sem alterar uma vírgula sequer. [Melo, 1908, p. 153-170 e RIHGB, 1856, vol. XIX, p. 349-378]. (LEONI, 2010, p. 102).
Mello reconhecia, ainda que com certa ingenuidade, a escassez, à
época, de informações sobre a atividade musical no Brasil.
Não fiz este modesto trabalho com a vaidade estulta de vos dar uma historia completa da Musica no Brasil. Para isso ser-me-iam necessarios grandes capitaes para, pessoalmente em cada Estado, poder cavar nas diversas phases dos tempos coloniaes, do primeiro e segundo imperio e agora da Republica, todos os factos interessantes do dominio da Musica, ao em vez disso, tive de me resignar ao cabedal, aliás apreciável, que sobre o assumpto me forneceram o Instituto Geographico e Historico da Bahia e o Real Gabinete Portuguez de Leitura (MELLO, 1908, p. 10).
11
Apesar de se tratar de uma obra em prosa, percebe-se, em alguns
momentos, a influência do parnasianismo em seu estilo de escrita. O referido
movimento literário, que influenciou a obra poética de muitos de seus
contemporâneos, tais como Vicente de Carvalho (1866-1924), Olavo Bilac (1865-
1918) e Joaquim Osório Duque-Estrada (1870-1927), apresentava, entre outros
elementos, o preciosismo vocabular e a valorização da mitologia. Tais elementos
manifestam-se em vários trechos do livro, sendo as comparações com a
Antiguidade Clássica, aparentemente tomada como modelo de civilização, usadas
como elementos de legitimação da música brasileira.
De par com as modinhas e as modas portuguesas, a serranilha galleziana foi pouco a pouco se acomodando ao nosso clima e, recebendo a essencia de nossos campos, o aroma de nossas relvas, o perfume de nossos jardins, o cheiro de nossas flores, eleva no coração da mulher brasileira um novo altar, cujo sacrario iluminado pelo fogo puro e santo das vestaes, encerra ainda hoje a ambula do pabulo comunial e a
11
O autor faz referência ao Real Gabinete Portuguez de Leitura. Esse era o nome da biblioteca e sociedade de leitura fundada por imigrantes portugueses no Rio de Janeiro em 1837 (CATEDRAL, 2013). Entretanto, há também um Gabinete Portuguez de Leitura, também fundado por imigrantes portugueses em 1863, na cidade de Salvador (HISTÓRICO, 2013). Acreditamos que Mello se referia, na verdade, a este último, uma vez que o livro foi publicado bem antes de sua mudança para o Rio de Janeiro, numa época em que viagens dessa distância, realizadas de navio, eram bastante trabalhosas e dispendiosas.
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26
anphora dos santos oleos que sagrara Cupido e Venus deuses do amor (MELLO, 1908, pp. 149-150).
Entretanto, quando traz ao texto memórias pessoais, Mello adota um
estilo mais próximo do coloquial.
Ainda em Janeiro de 1906 estando veraneando em S. Thomé de Paripe, foi-me solicitada a permissão para dansar em minha casa o Rancho do Boi. Preparei-me com toda a satisfação para receber condignamente estes foliões, unicos representantes dos nossos costumes tradicionaes. Deram nove horas, dez, onze, nada delles virem, cheguei a pensar que não viriam mais. Engano, é que elles vinham de casa em casa, e a minha morada era uma das ultimas. Só depois da meia noite foi que chegou a minha vez. (MELLO, 1908, p. 62).
Estão presentes no livro algumas análises musicais realizadas pelo
próprio autor. Bastante impressionistas, grandiloquentes e um tanto confusas, tais
análises normalmente relacionam aspectos musicais a sentimentos despertados. A
mais detalhada delas é a análise da marcha Dous de Julho, de Barreto de Aviz,
peça composta em 1895 para a inauguração de um monumento em memória à
Batalha do Pirajá. Realizada a 2 de julho de 1823, a referida batalha resultou na
expulsão dos portugueses da Bahia, consolidando no estado a independência do
Brasil. Mello identifica a composição como um poema sinfônico, apontando, na
instrumentação e no uso da forma, do ritmo e da harmonia, elementos narrativos e
imitativos da natureza.
N‟este poema, que e de uma inspiração sublime, mostra-se Barreto de Aviz não só um verdadeiro harmonista como ainda um provecto symphonista. Inspirando-se nas páginas de nossa história, que também era sua, procura o maestro pintar onomatopaicamente todo o quadro da descoberta do Brasil. Começando por uns toques de clarins, intermediados por uns pizzicatos baseados na falsa da mediante e da dominante, como que pintando o temor e o terror da marinhagem perante a borrasca que se anunciava imminente, Barreto de Aviz descreve este quadro, com uma grande felicidade de imaginação, por um crescendo estrepitoso, traçado em movimento contrário, no qual as partes agudas sobem de terceiras em terceiras menores e os baixos descem até um grave profundo onde termina com um rufo de bombo, imitando o ribombar dos trovões. Em seguida cae a uma verdadeira prostração após a qual implora o auxílio de Maria Santíssima por um pequeno Madrigal, se não em estylo sevéro usado no contra-ponto neerlandez do seculo XVI, pelo menos em estylo do contra-ponto livre e diatônico iniciado por
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Monteverde no seculo XVII. Só n‟este madrigal mostra Barreto de Aviz um mundo de conhecimentos. Como harmonista não podia ser superior, como melodista mais inspirado, como desenhista mais onomatopaico, pois além de traçar todo o rythmo em compasso 6/4 imitando o jogo do mar pinta as pancadas das ondas enfurecidas esbatendo sobre o dorso do navio, por umas tenutas syncopadas executadas pelo ophicleide e pelo saxofone barytono. Como poeta ainda e de um lyrismo admirável, pois na transição da tempestade para a bonança é de uma delicadeza verdadeiramente mystica e adorável. De repente ressoam de novo os clarins anunciando na repercussão de seus toques e na confusão dos seus echos, a descoberta e posse do territorio brasileiro. Ao saltar em terra entôa a marinhagem uma solemne marcha grave em que na segunda phrase as cornetas fazem ouvir o seu toque épico, como que ordenando sentido. Em seguida ouve-se um coro mystico e angelico em voz de soprano, ao que respondem em voz de baixo profundo os missionários entoando um psalmo em acções de graças, após o que todos afinam sua voz em fabordão para entoar o coro final. Eis senão quando ouve-se como um annuncio de paz o canto das selvas de nossos aborígenes, acompanhado pelo rythmar dos maracás e pelos accentos imperiosos dos cotecás.Segue-se o santo sacrifício da missa, celebrada em acções de graças, com acompanhamento de orchestra, cujos baixos e instrumentos graves em harmonia de estylo escholastico a 4 partes, fazem um conjuncto de uma instrumentação bellissima muito semelhante aos acordes profundos e mysteriosos de um grande órgão. Terminada esta parte imagina ainda Barreto de Aviz pintar a confusão de línguas de uns e de outros como a da Torre de Babel, por pequenas phrases melódicas em estylo canônico de imitações severas em sequencia de quartas maiores, que constituem uma parcella vantajosa de seus conhecimentos de composição, harmonia, contra-ponto, fugas e cânones. E admirável ainda a maneira pela qual elle termina este Canon, como se, embora mecânico, esta composição fora de pequeno fôlego. Começam a retirada e as despedidas. A principio ouve-se a toada de um canto saudoso de melodia européa ricamente ornamentada, a que os índios na terceira phrase, apossando-se do sentimento musical dos europeus, misturam suas vozes com as d‟êstes, formando repetições em fugas a uníssono de um effeito verdadeiramente magestoso e imponente. Em seguida suspendem-se os ferros num grande alarido de alegria, fazendo ouvir a charanga de bordo uma marcha épica e heróica após a qual volta o primeiro motivo n‟um rythmo extraordinariamente excitado, acompanhado de toques de cornetas, clarins, trombones e todo o instrumental. Aqui termina-se repentinamente o poema. (MELLO, 1908, pp. 288-291).
No capítulo em que são abordadas as manifestações populares de
caráter religioso, como os congos e reisados, bem como diversos tipos de
cantigas, o autor, além de trazer um breve histórico e descrever com considerável
riqueza de detalhes sua realização, traz transcrições de alguns trechos em
partitura, bem como dos textos. A fonte de tais partituras não é indicada, o que nos
leva a interpretá-las como transcrições realizadas pelo próprio Mello, com base em
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suas memórias. O livro Cantos populares do Brasil (1883), de Silvio Romero, é
citado em muitos momentos. Todavia, tal livro contém apenas exemplos das letras
das músicas, sem transcrição de partituras. Embora seja citado como fonte, Mello
sempre afirma ter tido contato com essas canções na Bahia. A leitura de Romero,
aparentemente, não lhe teria trazido nenhuma novidade em termos de repertório,
no máximo algumas pequenas diferenças regionais de texto.
Por serem usados nos costumes populares de Sergipe a maior parte dos cantares attribuidos por Silvio Roméro, nos Cantos Populares do Brasil, como de origem sergipana, não se póde entretanto contestar á Bahia a primazia que tem sobre quase todos elles, não só porque Sergipe foi um pedaço do território da Bahia desmembrado della, como também porque elles ainda fazem parte da sua tradição e são cantados em quase todos os recessos de família essencialmente bahiana.(MELLO, 1908, p.67).
Com relação à iconografia, o livro, impresso em condições bastante
modestas, não apresenta retratos de músicos, tampouco imagens de lugares
(teatros, escolas, igrejas, etc.), onde se davam as apresentações e a formação
dos músicos brasileiros. Tampouco conseguimos ter acesso a qualquer imagem
do autor.
1.5 – Referências Teóricas destacadas
Retomemos a citação que ilustrou, no subcapítulo anterior, a concepção
narrativa de Mello:
Há dous modos, diz Edmond Scherer, de escrever a história artística e literária de um povo: “pender para as considerações geraes, referir os effeitos ás causas, distinguir, classificar; ou então tomar por alvo este mundo de artistas e escriptores do meio que tão grandes cousas produziu, procurar suprehender estes homens em sua vida de todo dia, desenhar-lhes a pysionomia e recolher as picantes anecdotas a seu respeito. Foi pois na observância destes modos que procurei achar as leis ethnicas que presidiram à formação do genio, do espírito e do caracter do povo brasileiro e de sua música bem como ainda de sua ethnologia; isto é, como o povo portuguez sob a influencia do clima americano e em contacto com o índio e o africano se transformou, constituindo o mestiço ou o brasileiro propriamente dito. (MELLO, 1908, p. 6).
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Ao introduzir sua concepção narrativa, Mello também revela sua visão
do brasileiro (e, consequentemente, de sua arte) como fruto de um amálgama de
fatores étnicos e mesológicos. Ao incluir, ainda, as influências de diferentes
conjunturas políticas em diferentes momentos históricos – destacadas na divisão
estrutural do livro – Mello alinha-se ao Determinismo integral, teoria desenvolvida
na segunda metade do século XIX pelo francês Hippolyte Taine (1828-1893).
(VOLPE, 2008).
O crítico literário e teólogo francês Edmond Scherer, citado por Mello,
foi influenciado pela concepção histórica de Hegel, que, nas palavras de Diósnio
Machado Neto (2011, p. 20), “partia da consideração de que a objetividade e a
subjetividade são operadas, ambas, por uma razão que “pensa” através de um
processo evolutivo da “menor” razão para a “maior”, ou seja, o princípio do
evolucionismo tendo a história como elemento de depuração.” A visão hegeliana
de história implicava, portanto, uma temporalidade linear e orientada (JAPIASSÚ e
MARCONDES, 2001). Perspectiva semelhante encontrava-se no evolucionismo,
teoria que teve na figura do filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1903) seu maior
expoente nas Ciências Humanas. O sentido da evolução - entendida
necessariamente como “progresso” – seria sempre do “simples” para o ”complexo”
(LOPES; HORA, 2012, p. 114). Ao interpretar a reação do missionário francês
Jean de Léry aos cantos indígenas, Mello alinha-se a esse raciocínio.
Que Léry se deixasse arrebatar pela execução d‟esses trechos e guardasse d‟essa audição as impressões mais agradaveis era natural porque elle estava em seu tempo. Já não dirá assim o artista moderno que, tendo acompanhado passo a passo a evolução da música, desde a monodia antiga ate a melodia dos grandes séculos italianos e trobadorescos, desde o canto-chão gregoriano e cisteriano ate o ratisboniano e benedictino, desde a polyphonia da edade media ate a symphonia e o drama moderno, só reconhece nestas composições seu valor histórico. (MELLO, 1908, p. 11).
Segundo Renato Ortiz (2006), essa visão legitimava ideologicamente a
“superioridade da civilização europeia”, situando o Brasil em uma posição de
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“atraso” sociocultural. Fazia-se, então, necessário explicar o “atraso” brasileiro e
apontar para sua constituição como nação, em um futuro próximo ou remoto. Para
tanto, passou-se a enfatizar o estudo do “caráter nacional”. A compreensão da
especificidade social brasileira dava-se complementando o evolucionismo com
argumentos relacionados às noções de meio e raça. Silvio Romero, cujo livro
Cantos Populares do Brasil (1883) é citado por Mello como uma das fontes
utilizadas, foi um dos autores que se destacaram na aplicação de tais noções no
estudo das manifestações culturais brasileiras. É considerado pela crítica literária
o introdutor do método crítico no Brasil, isto é, o primeiro a buscar explicar o texto
literário pela realidade histórica que o determina. Considerava o brasileiro um
“novo tipo histórico”. Conferindo ao fator racial papel preponderante na formação
do brasileiro, argumentava que a miscigenação do europeu com os negros era
indispensável à sua sobrevivência nos trópicos. (VOLPE, 2008). Por outro lado,
defendia a evolução do brasileiro por meio do branqueamento; em outras
palavras: a mistura do nativo12 e do negro com o branco os elevaria
intelectualmente. (ORTIZ, 2006).
Citando Guyau, filósofo francês cujo pensamento foi fortemente influenciado
pelo evolucionismo de Spencer (Michon et. al., 2008), Mello aponta uma influência
recíproca entre a música e a história do país.
Guyau, estudando o poder psychico da arte musical, pela acção phenomenal do som, diz: a dor expressa pela voz nos commove mais que a expressa pelos traços do rosto ou pelos geitos. Si os surdos são geralmente mais tristes que os cegos é que o ouvido é mais necessário que a vista á percepção da vida exterior. Mais que a luz, mais que o movimento ou a mímica o som revela a existência e a exprime. [...] a música sendo um agente sociológico incomparável, ou comparável somente com a religião, pois que ambas agindo sobre a sensibilidade tem o poder maravilhoso de unificar e socializar a humanidade, acompanhou passo a passo todas as evoluções sociaes do povo brasileiro. (MELLO, 1908, pp. 129-130).
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Para Romero, o negro seria um componente mais forte na formação do brasileiro do que o índio, sendo que este último estaria fadado ao desaparecimento.
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Também se faz presente no livro a influência do positivismo, concepção
filosófica que considerava o método da ciência como o único válido, devendo-se
estender “a todos os campos de indagação e da atividade humana”
(ABBAGNANO, 2000, p. 777). O francês Auguste Comte (1798-1857), principal
teórico do Positivismo, enfatizava a ideia do homem como ser social e propunha o
estudo da sociedade por meio de métodos e técnicas empregados pelas ciências
naturais (CHAUÍ, 2008). A influência positivista manifesta-se no livro por meio da
ênfase na busca de provas documentais da existência de uma música
autenticamente brasileira. Cabe ressaltar, ainda, que o lema republicano, “Ordem
e Progresso”, estampado em nossa bandeira, consiste na abreviação do lema
positivista “O Amor por princípio, a Ordem por base, o Progresso por fim.”
(CASTRO, 2000).
Mello baseia sua abordagem do período colonial, sobretudo no que se
refere aos usos e costumes dos nativos, em relatos de missionários, como o
jesuíta Fernão Cardim (1540-1625) e o pastor protestante francês Jean de Léry
(c.1563 - c. 1613) e de viajantes, como Gabriel Soares de Sousa (c. 1540-?).
Segundo Diósnio Machado Neto (2011, p. 47), tais textos “comportam-se como
fontes e não como historiografia, porque a imensa maioria não é [de] estudos
sistemáticos, é [de] explicitações das fronteiras de estranhamento, quando não de
repugnância”. Os referidos autores trazem em comum a ideia de uma
musicalidade inata dos indígenas. Ao mesmo tempo, consideram sua música
inferior à musica europeia, por sua aparente simplicidade.
Todos os escriptores do século XVI, referindo-se á predilecção dos selvagens pela musica, e especialmente pelo canto, dizem: “Eram em geral os aborígenes grandes musicos e amigos do bailar, principalmente os tamoyos do Rio de Janeiro, que eram grandes compositores de cânticos de improviso”. Igual predilecção demonstravam também os tupinambys, que bailavam todos num rhytmo uniforme, monótono, durante 24 horas consecutivas, por ocasião de se embriagarem com os vinhos que fabricavam, quando immolavam, em meio de cruéis cerimônias, os prisioneiros feitos na guerra. Gabriel Soares, no seu Roteiro do Brasil, declara também que “os tupinambás se presavam de grandes músicos, e ao seu modo cantavam com soffrivel tom, que tinham boas vozes, porem cantavam todos a uníssono”. Fernão Cardim,
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confirmando o que diz Gabriel Soares, na sua Narrativa Epistolar de uma viagem ao Brasil, diz mais: “Eram entre os selvagens tão estimados os cantores de ambos os sexos que se por acaso tomavam nas ciladas um contrario “bom cantor e inventor de trovas” poupavam-lhe a vida, calando o seu imperioso appetite de antropophagos”. [...] [Léry] attendendo à falta de conhecimentos musicaes dos índios, não pensou que elles cantassem tão bem afinados e com tanta arte a ponto de lhe produzir arrebatamento. (MELLO, 1908, pp. 9-11).
Citando a História da Literatura Portugueza, do político e escritor
português Teophilo Braga, e o livro Patria Selvagem, do poeta e folclorista baiano
Mello Moraes Filho, destaca a atuação dos jesuítas na catequese, por meio da
encenação de autos, peças teatrais de temática religiosa, fortemente
influenciadas, segundo Braga, pelo teatro de Gil Vicente. Cita ainda textos do
padre Simão de Vasconcellos, clérigo jesuíta do século XVII, que põe em relevo a
contribuição dos padres José de Anchieta, Manuel da Nóbrega e Álvaro Lobo. A
catequese é vista como uma ação positiva e civilizadora.
O terreiro da egreja move-se na multidão pressurosa, trescala nos aromas activíssimos, retumba dos sons dos tamborins e pratos luzentes, das flautas e cornetas aspérrimas. O theatro esta ao lado, com suas cortinas de damasco, com seus bastidores de arbustos favoritos. A caixa tem seus mecanismos rudimentares, rio artificial, alçapões que tragam e expellem demônios. Os chefes de guerra, os pagés, as feiticeiras, os inigenas catechisados, os colonos, à sombra das alas nativas e dos galhardetes, cujas bandeiras symbolicas authenticam a vitoria do Christianismo e de Portugal, comem e descantam, dansam e vibram seus instrumentos. Os músicos da orchestra vestidos de pennas e listrados de urucu, descançam as pernas às maças e flechas, e dão signal para a representação. (MELLO MORAES FILHO, apud MELLO, 1908