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i GUILHERMINA MARIA LOPES DE CARVALHO PRINCÍPIOS DE OBSERVAÇÃO EM TRÊS OBRAS HISTORIOGRÁFICAS PANORÂMICAS SOBRE A MÚSICA BRASILEIRA CAMPINAS 2013

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    GUILHERMINA MARIA LOPES DE CARVALHO

    PRINCÍPIOS DE OBSERVAÇÃO EM TRÊS OBRAS

    HISTORIOGRÁFICAS PANORÂMICAS SOBRE A

    MÚSICA BRASILEIRA

    CAMPINAS

    2013

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    À minha mãe, a maior incentivadora deste trabalho. A Luciana Jukemura (in memoriam), grande inspiração em ensino de História.

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    AGRADECIMENTOS

    À profa. Dra. Lenita Nogueira, pela confiança e paciência durante a

    orientação deste trabalho.

    Aos profs. Drs. Edmundo Hora e Ricardo Goldemberg, pela acolhida no

    início deste processo.

    À CAPES, pelo financiamento desta pesquisa entre outubro de 2011 e

    maio de 2012 e à FAPESP, pelo financiamento entre junho de 2012 e agosto de

    2013.

    Ao Sr. Vasco Mariz, pela disposição em colaborar com esta pesquisa,

    recebendo-me em sua casa para uma entrevista.

    Aos profs. Drs. Diósnio Machado Neto e Suzel Reily, pelas valiosas

    observações durante o exame de qualificação.

    Aos profs. Drs. Diósnio Machado Neto, José Roberto Zan, Mónica

    Vermes e Érica Giesbrecht, pela disposição em participar da banca de defesa.

    Ao Vinícius Moreno de Sousa Corrêa, pelo auxílio com os

    procedimentos relativos às bolsas e auxílios. Aos funcionários da secretaria de

    pós-graduação, da Biblioteca do instituto de Artes e da divisão de obras raras e

    coleções especiais da Biblioteca Central Cesar Lattes, pela gentileza e atenção.

    A todos os professores e colegas do programa de pós-graduação em

    música da UNICAMP, pelas discussões e sugestões durante as disciplinas.

    Aos meus pais Nilton José Lopes e Maria Zilda de Carvalho Lopes, pelo

    apoio incondicional durante os meus estudos.

    A todos os meus familiares e amigos, especialmente os que estavam

    mais próximos durante este curso, pela troca de ideias, momentos de

    descontração e compreensão dos períodos de ausência. Ao Volnei dos Santos,

    pela presença e apoio em cada momento deste processo.

    Aos alunos da disciplina História da Música Brasileira e à professora

    Lenita, pela oportunidade de aprendizado durante o estágio docente.

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    Nem tudo o que escrevo resulta numa realização, resulta

    numa tentativa. O que também é um prazer. Pois nem em

    tudo eu quero pegar. Às vezes quero apenas tocar. Depois o

    que toco às vezes floresce e os outros podem pegar com as

    duas mãos.

    Clarice Lispector

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    RESUMO

    Partindo de uma concepção de História como um conjunto de discursos interpretativos sobre o passado, o presente trabalho teve por objetivo analisar três obras historiográficas panorâmicas sobre a música brasileira, escritas em diferentes momentos do século XX: A musica no Brasil desde os tempos coloniaes ate o primeiro decenio da Republica (1908), de Guilherme de Mello, 150 anos de musica no Brasil (1800-1950) (1956), de Luiz Heitor Correa de Azevedo e História da Música no Brasil (1981), de Vasco Mariz. Destacamos, nos referidos textos, princípios de observação, considerando dados biográficos dos autores, o contexto sociopolítico e cultural em que se inserem, aspectos metodológicos de suas obras, suas principais referências teóricas, as personalidades e instituições destacadas, bem como sua conceituação de música popular e erudita e sua abordagem de questões relativas a raça, nação e gênero. Observamos nas três obras uma forte relação entre nacionalismo e música, refletida na divisão estrutural dos livros, no juízo estético dos autores e no estabelecimento de um cânone artístico. Conjectura-se a relação entre o nacionalismo dos textos e a exaltação nacional presente nos distintos momentos políticos em que foram produzidos (início do período republicano, governos Vargas/Kubitschek e Regime Militar, respectivamente). O ideário modernista também é apontado como influência na abordagem da música nacional em Luiz Heitor e Mariz. Por mais que esteja presente nos textos, a música popular é sempre vista, numa perspectiva de inferiorização, como material de base para o desenvolvimento de uma música erudita nacional. As figuras do padre José Maurício e de Carlos Gomes recebem destaque em todas as obras, embora suas biografias sejam escritas num tom cada vez menos romanceado e sua importância no cânon dos grandes artistas seja pouco a pouco relativizada. A presença feminina nas obras historiográficas cresceu com o passar dos anos, sobretudo o número de compositoras, embora a maioria dos músicos retratados ainda seja de homens. Percebeu-se a fragilização da abordagem biossociológica (indicação da mistura de raças, do meio físico e da cultura como determinantes da identidade musical brasileira) e sua transição para uma abordagem centrada nos aspectos da própria linguagem musical. Observa-se a carência, em nossa historiografia musical panorâmica, de obras mais aprofundadas, direcionadas especificamente aos estudantes universitários. Destaca-se, entretanto, a utilidade do material disponível como fonte de pesquisa, desde que em diálogo com a produção acadêmica recente. Faz-se necessário, acima de tudo, conscientizar-se da historicidade de todo discurso, passado e presente, sobretudo do próprio trabalho.

    Palavras-chave: Guilherme de Mello, Luiz Heitor Correa de Azevedo, Vasco

    Mariz, Historiografia Musical Brasileira, Musicologia Histórica.

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    ABSTRACT

    Based on a conception of History as interpretive discourse, we aim to analyze three historiographical works, written in three distinct moments in the 20th Century: A musica no Brasil desde os tempos coloniaes ate o primeiro decenio da Republica (1908), by Guilherme de Mello, 150 anos de musica no Brasil (1800-1950) (1956), by Luiz Heitor Correa de Azevedo and História da Música no Brasil (1981), by Vasco Mariz. We aim to point out aspects of the biographies of the authors, the politic and social context, methodological aspects of their works, their main theoretical references, the personalities and institutions mentioned, as well as their concepts on popular and classical music and their approach to issues of race, gender and nation. A strong relation between nationalism and music, reflected in the division of chapters, in the authors‟ aesthetical judgment and in the establishment of an artistic canon was observed in the three books. We conjecture the relation between nationalism in the texts and national exaltation typical of the moments when the books were written (respectively, the beginning of the Republican era, the Vargas/Kubitschek presidency and the military government). Modernist ideals are also pointed as an influence on Mariz and Luiz Heitor‟s approach to musical nationalism. Popular music is regarded as inferior, and as raw material for the development of a national classical music. The composers Father José Maurício Nunes Garcia and Carlos Gomes are highlighted in all the three books, although their biographies are lesser and lesser fanciful and their importance in the canon of great artists is gradually relativized. The number of women, especially composers, depicted in Brazilian music historiography has progressively risen, though men are still preponderant. A transition from a bio-sociological methodology (in which Brazilian musical identity is determined by racial, environmental and cultural factors) to an approach centered in musical aspects was noticed. We also observed the lack of panoramic historiographical works specifically directed to undergraduate and graduate students. However, the utility of the available material as research source, in dialogue with the recent academic production, has to be remarked. Above all, one must have in mind that any discourse, past or present, is historically situated. Keywords: Guilherme de Mello, Luiz Heitor Correa de Azevedo, Vasco Mariz, Brazilian Music Historiography, Historical Musicology.

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    Lista de Figuras

    Fig. 1 – Casa Pia e Colégio de Órfãos de S. Joaquim – Salvador ........................ 18

    Fig. 2 - Luiz Heitor .................................................................................................. 64

    Fig. 3 - Vasco Mariz ............................................................................................ 132

    Fig. 4 - Diagrama 1: o nacionalismo nas três obras ............................................ 177

    Fig. 5 - Diagrama 2: Personalidades, instituições e gêneros destacados ........... 178

    Fig. 6 – Diagrama 3: A presença feminina .......................................................... 179

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    Lista de Siglas e Abreviações

    ABM – Academia Brasileira de Música

    APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte

    FAO – Food and Agriculture Organizations

    GL – Guilhermina Lopes

    IBECC – Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura

    IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

    INM – Instituto Nacional de Música

    MIS – Museu da Imagem e do Som

    OEA – Organização dos Estados Americanos

    UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro

    UNESCO – United Nations Educational, Scientific and Cultural

    Organization

    UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas

    VM – Vasco Mariz

    http://www.unesco.org/http://www.unesco.org/

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    SUMÁRIO

    Introdução e Revisão bibliográfica ...................................................................... 1

    Capítulo 1 – A música no Brasil, desde os tempos coloniaes ate o primeiro

    decênio da República, de Guilherme de Mello

    1.1 - Dados Biográficos do autor ......................................................................... 17

    1.2 - Contexto da elaboração do livro ................................................................. 19

    1.3 - Divisão estrutural e critérios de periodização ............................................. 20

    1.4 - Metodologia ................................................................................................ 23

    1.5 - Referências Teóricas destacadas ............................................................... 28

    1.6 - Personalidades, instituições e obras destacadas ....................................... 35

    1.7 - Abordagem do nacional em música ........................................................... 44

    1.8 - Música popular e música erudita ................................................................ 48

    1.9 - Questões de gênero ................................................................................... 53

    1.10 - Questões raciais ....................................................................................... 54

    Capítulo 2 – 150 anos de música no Brasil, de Luiz Heitor Correa de Azevedo

    2.1 - Dados Biográficos do autor ......................................................................... 59

    2.2 - Contexto da elaboração do livro ................................................................. 64

    2.3 - Metodologia ................................................................................................ 68

    2.4 - Principais Referências Teóricas ................................................................. 70

    2.5 - Divisão estrutural e critérios de periodização ............................................. 78

    2.6 - Personalidades, instituições e obras destacadas ....................................... 79

    2.7 - Abordagem do nacional em música .......................................................... 102

    2.8 - Música popular e música erudita .............................................................. 109

    2.9 - Questões de gênero ................................................................................. 115

    2.10 - Questões raciais ..................................................................................... 117

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    Capítulo 3 – A História da Música no Brasil, de Vasco Mariz

    3.1 - Dados Biográficos do autor ....................................................................... 121

    3.2 - O contexto da elaboração e recepção do livro .......................................... 132

    3.3 - Divisão estrutural e critérios de periodização ............................................ 134

    3.4 - Metodologia ............................................................................................... 136

    3.5 - Principais referências teóricas .................................................................. 140

    3.6 - Personalidades, instituições e obras destacadas ...................................... 150

    3.7 - Abordagem do nacional em música .......................................................... 162

    3.8 - Música popular e música erudita ............................................................... 167

    3.9 - Questões de gênero .................................................................................. 169

    3.10 - Questões raciais ..................................................................................... 171

    Considerações Finais ....................................................................................... 173

    Referências ........................................................................................................ 181

    Anexos ............................................................................................................... 191

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    Introdução e Revisão Bibliográfica

    Este trabalho nasceu do contato com algumas obras historiográficas

    panorâmicas1 sobre a música brasileira e da percepção, nesses textos, de juízos

    estéticos e ideológicos, mais ou menos explícitos, e de fronteiras pouco definidas

    entre a musicologia e a estética musical. Intrigava-nos o fato de não terem

    surgido, nas últimas duas décadas, novas obras nesse modelo, escritas por um só

    autor, apesar de as antigas publicações serem ainda frequentemente utilizadas no

    contexto didático, seja como orientadoras de programas de História da Música em

    conservatórios, itens presentes em bibliografias de exames vestibulares, de

    seleção de pós-graduação, ou até mesmo em bibliografias de programas de

    disciplinas nesses dois níveis.

    Era perceptível um descompasso entre essas obras e a produção

    acadêmica brasileira, eminentemente monográfica e centrada na pesquisa

    documental e análise musical, enquanto as obras panorâmicas apresentavam

    abordagens marcadamente biográficas, norteadas, na maioria das vezes, pelo

    desejo de estabelecimento de um cânone dos grandes artistas e obras.

    Diante dessas questões, procedemos a um levantamento de textos,

    nacionais e internacionais, que discutissem questões teórico-metodológicas em

    musicologia e historiografia musical.

    O primeiro livro com que tivemos contato e que reflete especificamente

    sobre a historiografia musical é Grundlagen der Musikgeschichte (Fundamentos

    da História da Música) (1977), do musicólogo alemão Carl Dahlhaus, Estão

    presentes no livro questões relativas à natureza do conhecimento histórico, ao

    papel do historiador e ao que deve ser o objeto dessa historiografia. O autor

    observa criticamente as abordagens em Historiografia Musical em seu tempo,

    além de tratar brevemente da Historiografia em períodos anteriores. Busca uma

    mediação entre a História da Música e a estética, considerando a “existência

    1 Por panorâmicas, entendemos as obras historiográficas que buscam abordar desde o período colonial até a

    contemporaneidade do autor.

  • 2

    legítima” da obra musical recriada na cabeça do ouvinte. Questiona o que deve

    ser enfatizado: a História Social ou a História dos Estilos? O autor parece defender

    esta última, mas considera a história a partir das mudanças dos ideais estilísticos,

    não as vendo como estágios de um processo evolutivo. Para Dahlhaus, “justapor

    blocos é má historiografia”, ou seja, o musicólogo alemão defende uma

    historiografia a partir das obras, mas conectadas e relacionadas entre si. Critica o

    ecletismo muitas vezes presente na metodologia historiográfica. Em alguns

    momentos, parece defender uma abordagem formalista, embora também a

    critique, visualizando alguns pontos fracos, que talvez se resolvessem se

    complementados com uma história da recepção. O musicólogo afirma que os

    documentos revelam o pensamento do autor, não necessariamente a realidade

    “como era” e que ”um fato histórico nada mais é do que uma hipótese”

    (DAHLHAUS, p. 35, tradução nossa)2. Afirma que os fatos podem ser conectados

    de múltiplas formas por diferentes pesquisadores. Reconhece a participação ativa

    do historiador na reconstrução da cadeia dos fatos. O sujeito histórico é o que

    permite sua inteligibilidade; sem sua atuação, a história constituiria apenas

    fragmentos desconexos. Nessa afirmação, reconhece tanto o papel do historiador

    na reconstrução dos fatos, quanto do compositor na construção das obras.

    Dahlhaus, contudo, não é tão radical no entendimento da

    discursividade da História. Acredita na possibilidade de uma história das

    “intenções dos compositores”, a partir dos “textos autênticos”. Tem em mente

    ainda uma historiografia de grandes obras, paradigmáticas de ideais estilísticos.

    Questiona a mudança de perspectiva que se dava na historiografia musical de seu

    tempo, ao se buscar abordar também as obras e artistas tidos como menores.3

    Encontramos similaridades à leitura por nós realizada no artigo Arte

    musical e pesquisa historiográfica: Uma reflexão tensa de Carl Dahlhaus em

    Foundations of Music History publicado em 2007, onde o brasileiro Sílvio Merhy

    faz uma resenha crítica da referida obra. Segundo o pesquisador, o livro se

    2 Tradução realizada a partir da tradução para o inglês: Foundations of Music History (1983).

    3 O termo utilizado na edição inglesa é trivial music.

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    inscreve numa tradição de textos caracterizados pela discussão de idéias, muitas

    vezes apresentados sem referência aos livros e autores de onde foram extraídas.

    A única referência explicitada por Dahlhaus é Historik, coletânea de textos do

    historiador alemão Johann Gustav Droysen (1808-1884) (p. 9).4

    Merhy aponta a intenção de uma abordagem de ideais estilísticos e da

    recepção ao destacar a afirmação de que “Os fatos musicais podem ser

    detectados tanto nas intenções do compositor, quanto na estrutura das peças,

    devidamente analisadas de acordo com a história das formas e dos gêneros, e

    também na “consciência do público original para o qual a obra se tornou um

    evento‟” (DAHLHAUS, 1983, p. 34, apud MERHY, 2007, p. 11). Segundo Merhy,

    Dahlhaus aposta no afastamento entre História da Música e História política.

    “Música do passado pertence ao presente como música e não como prova

    documental” (DAHLHAUS, 1983, p. 4, apud MERHY, 2007, p. 12). Merhy

    acrescenta que o musicólogo opõe-se à visão do texto musical como unidade

    autônoma da linguagem, depósito de significações compreendidas em si mesmas.

    Outro importante texto com que tivemos contato é Contemplating Music,

    do americano Joseph Kerman5. Sua publicação, em 1985, revela um esforço de

    compreensão do desenvolvimento da musicologia e das perspectivas para as

    décadas seguintes. O autor se propõe examinar certas linhas de pensamento em

    musicologia e em disciplinas afins, linhas essas que, em suas próprias palavras,

    “iluminam a conjugação dessas disciplinas e a crescente orientação da

    musicologia para a crítica” (KERMAN, 1985, p. 29).

    Em 1989, Régis Duprat, no artigo Evolução da Historiografia Musical

    Brasileira, atesta a inexistência e alerta para a necessidade de estudos críticos

    sobre a historiografia musical em nosso país, bem como sobre uma “genealogia

    4 Atuante num momento de autonomização e delimitação da história enquanto disciplina acadêmica,

    Droysen procura defini-la em relação à filosofia e às ciências naturais. Diferentemente da primeira, seria de natureza empírica, não especulativa, porém, ao contrário das ciências naturais, não se basearia em leis gerais. Nas palavras de Pedro Caldas (2006, p. 97), Droysen entende a historiografia como a apresentação de uma investigação metodologicamente controlada da experiência humana. 5 Traduzido para o portugês como Musicologia.

  • 4

    de obras” (partituras, registros fonográficos/videos, tratados, informações sobre as

    atividades pedagógicas, etc.) que influenciaram o gosto e a criação musical entre

    nós. De acordo com o autor (p. 33) tais estudos constituiriam “preciosa

    contribuição prospectiva diagnosticando, pelo menos, as lacunas de nossa

    historiografia constatada”.

    O musicólogo traça um panorama da historiografia musical brasileira,

    dividindo-a em três períodos, relacionados à História do Brasil e à História da

    literatura brasileira: colonial, romântico, marcado pela Independência e moderno-

    contemporâneo, marcado pela Semana de Arte Moderna de 1922. Destaca o

    projeto nacionalista como norteador da historiografia nesses dois últimos períodos.

    Aponta a não identificação da musicologia coeva, já inserida no meio acadêmico,

    com a produção historiográfica precedente.

    Considera o aumento das pesquisas documentais sobre o período

    colonial uma reação à insistência em manter padrões estéticos oriundos de um

    projeto nacionalista que vem desde o romantismo. A pesquisa documental seria o

    grau mais alto até então alcançado de evolução da historiografia musical

    brasileira.

    Leonardo Tramontina, em artigo publicado em 2009, realiza uma breve,

    porém lúcida análise da situação da disciplina História da Música no contexto

    norte-americano, considerando, inclusive, aspectos filosóficos e metodológicos da

    historiografia musical na 2a metade do século XX. O pesquisador constata que

    estudiosos europeus e norte-americanos têm buscado “abordagens pouco

    tradicionais da historiografia musical, mais críticas e próximas aos estudos

    contemporâneos da antropologia e da história cultural, e menos atadas à

    musicologia analítica.” Tal análise volta-se, no final do texto, para questões

    relativas à situação da disciplina na graduação brasileira, como a falta de

    pesquisas em pedagogia da História da Música, a heterogeneidade das turmas e

    das abordagens didáticas da disciplina e o descompasso entre a formação do

    musicólogo brasileiro (mais voltado para a atividade de pesquisa, fortemente

    especializado, pouco voltado para a crítica), e as demandas da atuação docente.

  • 5

    Tivemos também contato com o artigo de Myriam Chimènes.

    Musicologia e História: fronteira ou “terra de ninguém” entre duas disciplinas?,

    publicado originalmente em 1998 e traduzido no Brasil em 2007. A musicóloga

    francesa aponta criticamente o “isolamento da musicologia no seio das ciências

    humanas” e o “pouco caso que o historiador fazia da música”, resultando em um

    “lugar medíocre, insignificante, destinado à música nos livros de história”.

    Observa, contudo, uma recente tomada de consciência de ambas as partes,

    prenunciando uma aproximação interdisciplinar. Destaca a “notável evolução na

    concepção da musicologia”, possível sinal do “fim da concentração da disciplina

    sobre ela mesma e a abertura de diálogo com as outras disciplinas das ciências

    humanas”. (p. 26).

    Diante da necessidade constatada de uma aproximação interdisciplinar,

    buscamos contato com obras da teoria da História. Dois livros vieram ao encontro

    do nosso pensamento com relação às questões acima discutidas e tiveram papel

    fundamental no desenvolvimento desta pesquisa.

    O primeiro deles é A história repensada (Re-thinking History), do inglês

    Keith Jenkins, publicada originalmente em 1991, onde o autor reflete sobre a

    história na pós-modernidade. Em A Condição Pós-Moderna (1979), o filósofo

    francês Jean-François Lyotard assinala como principal característica da pós-

    modernidade a incredulidade ante as metanarrativas. Trata-se da crescente perda

    de sentido dos discursos fundamentados em visões totalizantes da história, que

    buscavam dar sentido à evolução ocidental e propunham soluções para a

    humanidade, a partir de determinadas regras de conduta política e ética - por

    exemplo, o Iluminismo, o Marxismo e o Positivismo. Apoiado em Lyotard e no

    ceticismo de historiadores precedentes, como o norteamericano Hayden White,

    Jenkins defende a radical distinção entre passado e história. Para o autor, o

    passado já aconteceu e só pode ser “trazido à tona” mediado pelo trabalho dos

    historiadores, registrado em artigos, livros, documentários, etc. A história não seria

    o passado e, sim, um conjunto de discursos interpretativos sobre o passado.

  • 6

    Poder-se-ía, portanto, dizer que o estudo da História é, basicamente, um estudo

    da historiografia sobre determinado tema.

    Entender a inerente subjetividade do discurso histórico não faz com que

    desacreditemos definitivamente da disciplina. Mostra-nos apenas a necessidade

    de explicitarmos a natureza discursiva do métier, e sua consequente fragilidade

    epistemológica, bem como a nossa localização (histórica, geográfica,

    metodológica, ideológica...) - e a dos autores estudados - enquanto historiadores

    da música. Se, por um lado, identificamo-nos com Jenkins no entendimento da

    história como discurso interpretativo, encontramos na aproximação da história com

    outras disciplinas das ciências humanas e artes, assinalada em O que é história

    cultural? do também inglês Peter Burke, um promissora abordagem metodológica.

    Na referida obra, publicada originalmente em 2004, Burke traça um panorama de

    diversas abordagens que influenciaram a chamada Nova História Cultural,

    apontando, inclusive críticas e fragilidades dessa abordagem, de fronteiras

    disciplinares difusas. Chamaram-nos a atenção, nos tópicos abordados no livro, o

    olhar da história, normalmente voltada a questões políticas, para novos objetos –

    vestuário, costumes, corpo, leitura, etc - bem como a descrição de uma

    abordagem, inicialmente associada a um grupo de historiadores italianos da

    década de 70, como Carlo Ginzburg, Giovanni Levi e Edoardo Grendi: a “micro-

    história”. Tratava-se, segundo Burke, da reação a uma história de matriz

    evolucionista, teleológica e unívoca, centrada na dita “civilização ocidental”. Os

    valores das culturas regionais passam a ser cada vez mais valorizados. Burke, ao

    abordar a micro-história, traça um paralelo entre a crítica à grande narrativa

    histórica e às tentativas de estabelecimento de um cânone da literatura e arte

    ocidental.

    A questão da abordagem linear e da tentativa de formação de um

    cânone artístico, detectada nas obras por nós analisadas revelava-se um ponto

    crítico e, ao mesmo tempo, uma necessidade. Os limites temporais e espaciais

    concernentes à elaboração de um livro ou programa de curso implicam na

    necessidade de seleção temática e metodológica. Selecionando, é possível não

  • 7

    canonizar? Quanto á abordagem historiográfica linear, se por um lado, pode

    sugerir uma equivocada visão evolucionista, não é necessária ao estabelecimento

    de uma coerência e coesão textual?

    Disciplining Music (1996) – Musicology and its canons, organizado por

    Catherine Bergeron e Philip Bohlman proporcionou muitas reflexões e

    esclarecimentos acerca dessas questões. Destacamos aqui o capítulo Musics and

    Canons, onde Bohlman ressalta, ao mesmo tempo, a inevitabilidade e a

    pluralidade dos processos de formação de cânones, compreendidos de várias

    formas pela própria musicologia. Segundo o autor, os cânones construídos sobre

    o Ocidente, sobre os “grandes homens” e a “grande música” carregavam consigo

    definições do que a música era e não era. O argumento da disciplina, isto é, da

    divisão do campo de estudo, acabava por encobrir racismo, colonialismo e

    sexismo, excluindo músicas, pessoas e culturas. Todavia, independentemente da

    intencionalidade de juízos valorativos, escolhas são sempre necessárias.

    Dada a vastidão de repertórios musicais e potenciais experiências musicais, os musicólogos são responsáveis por escolher alguns, justificando-os em relação aos outros não por um consenso cultural. Criar cânones e fundamentá-los é uma tarefa normativa para os musicólogos. (p. 199, tradução e grifos nossos).

    Ir contra os cânones vigentes, segundo o autor, implica sempre

    construir novos. “Há certos cânones centrais – observa o autor – mas eles nem

    sempre foram centrais e não necessariamente o serão no futuro.” (p. 200,

    tradução nossa).

    Bohlman observa ainda a relação entre canonização e registro textual.

    Uma obra que “dura” é registrada textualmente, seu registro permanece, através

    da partitura e/ou de textos que dela tratam. Tal obra torna-se canônica e seu

    conhecimento passa a ser necessário para o acesso a determinados níveis e a

    conseqüente atribuição de alguma autoridade (exames de seleção para cursos ou

    concursos para a docência são um exemplo). Os textos substituiriam a

    temporalidade musical enquanto fenômeno oral, atribuindo à obra uma

  • 8

    atemporalidade musical. O autor observa, entretanto, que a temporalidade parece

    estar ganhando mais espaço que a atemporalidade. A musicologia, a seu ver, está

    mais inclusiva do que nunca.

    Partindo da visão do referido musicólogo ao definir a formação de

    cânones como “atos dinâmicos de disciplina”, praticados por uma comunidade de

    agentes, de maneira a “manter a vida em comunidade ordenada e funcional”. (pp.

    203-205, tradução nossa), reconhecemos que a formação de cânones, apesar de

    implicar invisibilização, é um processo inevitável.

    Semelhantemente ao texto de Bohlman, as reflexões do musicólogo

    chileno Juan Pablo González em Pensar la música desde América Latina (2013)

    sugerem o entendimento da construção de cânones como um processo realizado

    tanto a partir de centros como de periferias, as quais por sua vez, convertem-se

    em centros, num constante desmembramento.

    O que acontece então quando a construção canônica se faz pelos que se sentem excluídos? Reproduzimos as tendências hegemônicas sem, na verdade, as reproduzir totalmente? Oferecemos cânones alternativos? Conforme afirma Gorak, “o cânon pode se converter em foco do debate em qualquer período em que artistas, críticos, filósofos ou teólogos tratem de adaptar um corpo herdado de textos, práticas ou ideias às suas necessidades culturais percebidas, presentes e futuras.” (1991, p. 4) [...] o cânon contribui para criar tanto uma narrativa do passado como uma matriz do futuro. (pp. 281-283, tradução nossa).

    Dos estudos consultados, o que mais se aproxima do propósito desta

    pesquisa, à qual proporcionou ampla fundamentação e diálogo, é a tese de livre-

    docência de Diósnio Machado Neto, defendida no ano de 2011. O autor se propõe

    estudar a abordagem do período colonial na historiografia sobre a música

    brasileira, ao mesmo tempo em que apresenta seu posicionamento enquanto

    historiador. Principia por examinar como, na teoria da história, ao longo do século

    XX, o foco foi sendo transferido do fato para o discurso. Os próximos parágrafos

    revelam o nosso entendimento da posição do autor, acrescido de contribuições de

    outros trabalhos com que tivemos contato e que dialogam com as questões a

    seguir apresentadas.

  • 9

    O meio científico vivenciou, no final do século XIX, uma divisão na

    busca do conhecimento. Ao mesmo tempo em que se definiam o universo e as

    particularidades teóricas e metodológicas das diversas disciplinas, as ciências

    sociais buscavam a sua autonomia. (MACHADO NETO 2011, p. 28). A legitimação

    científica das humanidades passou, inicialmente, pela adoção de métodos e

    parâmetros das ciências naturais. De acordo com Carvalho (in FREDRIGO et. al.,

    2009) o discurso histórico definiu-se, nesse momento, como um discurso

    científico, objetivo, racional, especializado e não ficcional, em oposição ao

    discurso literário, eminentemente artístico. Segundo Diósnio Machado Neto, a

    abordagem inicial da História como ciência enraíza-se numa concepção da

    disciplina como “inquérito do passado”. Nas palavras do referido autor, “a história

    herdeira de racionalismo principia justamente na certeza que seria o fluxo

    determinista do tempo a mola propulsora do estabelecimento de uma ordem

    analisável pela qual a condição social seria previsível.” (2011, p. 29).

    O historiador inglês Robin George Collingwood, ao afirmar, em The Idea

    of History (1946), que “os processos da natureza podem, pois, descreverem-se

    como sequência de meros eventos, já não assim os da história” questiona esse

    fluxo determinista. Os processos históricos não seriam “processos de meros

    acontecimentos, mas processos de ações; as quais possuem uma face interior

    que consiste em processos de pensamento”. O foco passa dos fatos à formação

    do conhecimento histórico, ou seja, a história passa a ser abordada como “história

    do pensamento”. (COLLINGWOOD, apud MACHADO NETO, 2011, p. 31).

    Desdobram-se daí as seguintes questões: “Como se forma a imagem e o discurso

    da história no presente? Ela teria um sentido teleológico? Aliás, ela teria um

    sentido, ou seria apenas uma narração permeada pela crítica do tempo vivido?”

    (MACHADO NETO, 2011, p. 31). A objetividade do discurso histórico estava,

    portanto, posta em cheque.

    O francês Marc Bloch define a história como o estudo dos homens na

    relação com o tempo, e não do tempo concretizado em passado. Em Apologia da

    História ou O Ofício de Historiador (1949 – publicada postumamente) Bloch

  • 10

    defendia a interdisciplinaridade como único caminho para a compreensão do

    contexto onde os fatos ocorriam. (MACHADO NETO, op. cit., p. 32)

    Voltando aos ingleses, Edward Hallett Carr, em O que é História?

    (1961), entende o tempo como uma dimensão da consciência humana. Para o

    estudioso, a história tem início com a tomada de consciência, pelos homens, de

    acontecimentos específicos, em que eles estão conscientemente envolvidos e nos

    quais podem interferir e influenciar. Alerta, porém, que a organização dos fatos

    pelo historiador é dada no presente. (idem, ibidem). Para Machado Neto, em Carr

    dá-se a “cisão entre a crônica factual e a história como exercício de interpretação

    do passado”. (p. 34).

    Para o materialismo histórico6, “a essência da história seria explicitar os

    conflitos de sentidos distintos de todas as esferas que formam a sociedade”.

    (MACHADO NETO, 2011, p. 34). O historiador seria um elemento desse processo,

    não um observador isento. A história é, nesse caso, teleológica e linearmente

    orientada, preservando ou transformando os valores que dão sentido à estrutura

    social.

    A partir da década de 70, a atenção da história passa a se voltar cada

    vez mais para o discurso que para o objeto. Passou-se a enfatizar a história como

    prática discursiva, subjetiva, instável para uma perspectiva científica. Jacques

    Derrida, Gilles Deleuze e Michel Foucault defendiam a impossibilidade do

    conhecimento histórico como fato e ganhavam impulso as concepções de

    alteridade (Levinas); da horizontalidade do pensamento (Derrida) e da inerente

    descontinuidade do presente e do passado (Foucault). Este último autor, em As

    Palavras e as coisas (1966), defende que as coisas não têm um significado último,

    revelando-se apenas com a intervenção humana, pela atribuição de sentido.

    Chegava-se à concepção de que não havia paradigmas universais, mas históricos,

    construídos pela experimentação do mundo e expressos na linguagem.

    (MACHADO NETO, 2011).

    6 Em sua explanação do materialismo histórico, Machado Neto baseia-se em O Cotidiano e a História (1992),

    da socióloga húngara Agnes Heller.

  • 11

    Os pragmáticos, aqui representados pelo estadunidense Richard Rorty,

    chamam a atenção para os usos que se fazem da história, de acordo com os

    interesses de um determinado grupo, em um determinado período. Rorty, embora

    não se declarasse relativista, relativiza o conceito de verdade ao definí-la com

    “tudo aquilo que tem significado pragmático para as pessoas”. O sentido das

    expressões enraíza-se pela sua utilização, ajustada aos interesses dos que delas

    se servem. (MACHADO NETO, 2011, p. 36).

    Segundo Machado Neto (op. cit), pragmáticos, céticos e pós-modernos

    vêem a história como apropriação de vestígios cuja apreensão não se dá desde o

    passado, mas desde o presente. A análise historiográfica levaria à compreensão,

    não apenas do discurso do autor, mas do contexto em que este se insere.

    Perscrutar os discursos e seus modelos revela mais do que os inquéritos documentais no tocante ao passado, revela, sobretudo, as particularidades dos autores como atores de um ambiente teórico, político e social que os leva a desvelar princípios investigativos e suas teorias, mas, também, desejos e fantasias deles próprios como de toda uma comunidade com a qual retroagem. (p. 10)

    O referido autor ressalta a condição humana do conhecimento histórico

    e, portanto, também do musicológico. Citando Edgar Morin, defende o diálogo

    interdisciplinar que, ao mesmo tempo em que pode responder questões da

    musicologia a partir de uma perspectiva externa, não elimina a fragilidade do

    pensamento, “mergulhando-o na complexidade e na aleatoriedade advinda da

    singularidade individual de cada área” (MORIN, 2000, apud MACHADO NETO,

    2011, p. 14). O reconhecimento dessa fragilidade epistemológica é, de certa

    maneira, um exercício de autoconhecimento, na medida em que leva à percepção

    do nosso próprio discurso como histórica, geográfica e ideologicamente localizado.

    Nas palavras de Machado Neto, “revelar as estruturas da transversalidade na qual

    o próprio discurso de análise se consubstancia é afirmar a historicidade do próprio

    projeto.” (p. 14).

    [...] um mesmo fenômeno natural e social pode suscitar uma infinidade de interpretações. Nesse vórtice das interpretações possíveis, as fronteiras

  • 12

    das áreas do conhecimento dissolvem-se, desse modo, intensificando a busca por modelos transversais que tratam precariamente de organizar o pensamento pela ação transdisciplinar. (p. 21).

    Partilhando da visão de Katherine Bergeron, o autor aponta a

    importância, para o avanço da musicologia, do reconhecimento dos cânones

    historiográficos, da proposição de alternativas de resistência e mesmo do

    reconhecimento de que os cânones e suas resistências formam uma posição que

    sempre revela a localização do narrador: (BERGERON, apud MACHADO NETO, p

    15).

    Machado Neto, no artigo Unita Multiplex: por uma musicologia integrada

    (2007), já observava que “o chamado à atenção sobre a questão teórico-

    conceitual da área [musicologia histórica] força, primeiramente, um esforço de

    análise historiográfica e, posteriormente, a uma atualização metodológica” (p. 26).

    A presente dissertação busca atender ao primeiro propósito.

    Realizamos inicialmente um levantamento das obras historiográficas

    panorâmicas publicadas, tendo encontrado os seguintes títulos: A música no Brasil

    desde os tempos coloniaes até o primeiro decênio da República (1908), de

    Guilherme de Mello, Storia della musica nel Brasile dai tempi coloniali sino ai nostri

    giorni (1926), de Vicenzo Cernicchiaro, História da Música Brasileira (1926/1942),

    de Renato Almeida, Música do Brasil (1941), de Mário de Andrade, Origens e

    evolução da música em Portugal e sua influência no Brasil (1942), de Iza Queirós

    Santos, História breve da música no Brasil (1945), do português Gastão de

    Bettencourt, História da Música Brasileira (1948), de Francisco Acquarone, A

    música no Brasil (1953), de Eurico Nogueira França 150 anos de música no Brasil

    (1800-1950), de Luiz Heitor Correa de Azevedo, Panorama da Música Popular

    Brasileira (1964) e Raízes da Música Popular Brasileira (1991), de Ary

    Vasconcelos, Pequena História da Música Popular: da modinha à canção de

    protesto (1974) e História Social da Música Popular Brasileira (1998), de José

    Ramos Tinhorão, História da Música Brasileira: dos primórdios ao início do século

    XX (1976), de Bruno Kiefer, História da Música no Brasil (1981), de Vasco Mariz,

  • 13

    The Music of Brazil (1983), de David Appleby, as coletâneas Música Popular

    Brasileira [2005] e Música Erudita Brasileira [2006], publicadas na Revista Textos

    do Brasil, do Ministério das Relações Exteriores, e Uma História da Música

    popular brasileira (2008), de Jairo Severiano. Após um primeiro contato e

    contextualização das referidas obras, estabelecemos um corpus a ser analisado,

    bem como alguns critérios de análise.

    Optamos por três obras de autores brasileiros, escritas em português,

    em pontos distintos e mais ou menos eqüidistantes do século XX. Optamos pelo

    livro de Guilherme de Mello por ser a primeira obra publicada nesse modelo e por

    sua localização num momento de grandes transformações nacionais (recente

    abolição da escravatura e proclamação da República). Luiz Heitor, por sua vez,

    redige seu livro num período de grande impulso desenvolvimentista e de

    afirmação nacional, entre os governos Vargas e Kubitschek. No plano cultural, o

    pensamento modernista e o Americanismo Musical de Curt Lange, bem como

    suas novas propostas metodológicas exerciam forte influência sobre o autor. Em

    sua atuação internacional, a divulgação da música brasileira era uma de suas

    principais preocupações. Vasco Mariz, diplomata, também estava fortemente

    envolvido com a divulgação internacional de nossa música, mas seu livro foi

    escrito para o público brasileiro. Optamos por sua inclusão no corpus pela sua

    grande quantidade de reedições e pela intrigante ausência de obras posteriores

    nesse modelo: de um só autor, tendo como foco a música erudita brasileira.

    Com relação aos critérios de análise, iniciamos pela trajetória biográfica

    dos autores, complementada com dados sobre o contexto de elaboração das

    obras. Buscamos situar os autores quanto ao contexto sociopolítico e cultural em

    que se inserem, bem como quanto às circunstâncias em que se deu a elaboração

    dos textos - atuação profissional no momento, público a que o livro se destinava,

    motivações do autor, etc. Buscamos ainda indicar os procedimentos

    metodológicos utilizados (análise musical, biografias, presença de iconografia e

    sua relação com o texto, fontes consultadas, etc). Relacionadas à metodologia

    estão também as suas principais referências teóricas, que buscamos destacar,

  • 14

    apontando sua influência em alguns pontos dos livros analisados. A divisão

    estrutural do livro, bem como as personalidades, obras e instituições destacadas

    auxiliam a nossa compreensão dos critérios que nortearam, em cada obra, o

    estabelecimento de um cânone artístico. Observamos nas referidas obras uma

    estreita relação entre canonização e abordagem do nacional em música, o que

    será também o objeto do nosso estudo. Com relação à conceituação e abordagem

    de música popular e erudita, outro dos critérios aqui estabelecidos, observamos

    que apenas o livro de Vasco Mariz foi escrito num momento de separação das

    abordagens historiográficas sobre as duas vertentes, devido, segundo Elizabeth

    Travassos (2003) à crescente especialização dos conhecimentos. O espaço e o

    papel da mulher na historiografia também é outro item considerado. Por fim,

    buscamos analisar a presença e abordagem de questões relativas à raça, quanto

    a possíveis juízos valorativos e relações identitárias.

    Tomamos por base a versão digitalizada da primeira edição do livro de

    Guilherme de Mello, à qual tivemos acesso via Google Books7. Buscamos

    informações biográficas e contextuais a partir de trabalhos que mencionam o

    autor, como a dissertação de Soares (2007) e a tese de Machado Neto (2011),

    além de enciclopédias, textos sobre o Colégio S. Joaquim, onde cresceu e atuou,

    além do próprio livro analisado. Quanto às referências teóricas, partimos dos

    autores citados no próprio livro, buscando contextualizá-los ideologicamente. O

    livro Cultura Brasileira e identidade nacional, de Renato Ortiz e o artigo A teoria da

    obnubilação brasílica na história da música brasileira (2008), de Maria Alice Volpe,

    foram especialmente esclarecedores em relação às questões raciais, mesológicas

    e identitárias do período.

    Quanto ao livro de Luiz Heitor, consultamos a edição de 1956, presente

    na coleção Alexandre Eulálio da seção de obras raras da Biblioteca Central Cesar

    Lattes, na UNICAMP. As informações biográficas e contextuais foram-nos

    fornecidas, sobretudo, pelas teses de Diósnio Machado Neto, Jairo Cavalcanti e

    7 Optamos por não nos basear nas reedições por não terem sido realizadas em vida e sob a coordenação do

    autor.

  • 15

    Henrique Drach (2011) - esta última traz em anexo um depoimento concedido por

    Luiz Heitor ao Museu da Imagem e do Som em 1972, do qual também nos

    servimos, bem como pelo livro Três Musicólogos Brasileiros (1983), de Vasco

    Mariz.

    O próprio Mariz produziu bastante material que auxilia na compreensão

    de sua trajetória e pensamento. Baseamo-nos em seu livro Três Musicólogos

    Brasileiros, onde figuram suas principais referências teóricas (Mário de Andrade,

    Renato Almeida e Luiz Heitor), em seu catálogo de obras, o qual contém um

    extenso relato de sua trajetória, escrito a partir de palestra por ele proferida na

    Academia Brasileira de Música, bem como em duas entrevistas: uma realizada por

    Ricardo Tacuchian em 2011 e publicada pela Revista Brasileira de Música e outra

    realizada pela autora deste trabalho na casa do musicólogo, no Rio de Janeiro, no

    dia 19 de novembro de 2012.

    Quanto às edições do livro, baseamo-nos inicialmente na primeira

    (1981) e na 6ª (2005), a mais recente de que dispúnhamos, posteriormente

    confrontada com a 8ª (2012), que nos foi oferecida pelo próprio autor.

    Segue-se a análise dos três livros, a cada qual foi dedicado um capítulo

    desta dissertação.

  • 16

  • 17

    Capítulo I – A musica no Brasil desde os tempos coloniaes até o primeiro

    decenio da Republica, de Guilherme de Mello

    1.1 – Dados biográficos do autor

    Guilherme Theodoro Pereira de Mello nasceu em Salvador, em 26 de junho

    de 1867, em uma família com fortes vínculos militares. Filho primogênito de Pedro

    Theodoro Pereira de Mello e Helena Francisca de Mello, ficou órfão de pai em

    1876, aos nove anos de idade. Ingressou, então, no Colégio de Órfãos de São

    Joaquim, onde estudou até 1883, saindo a pedido de sua mãe. No Colégio, teve

    formação em Primeiras Letras, Latim, Humanidades e Música. Retornou à

    instituição em 1892, substituindo seu antigo professor Elisiário de Andrade na

    função de mestre de banda. Fundou no colégio também uma Schola Cantorum e

    uma orquestra. (MARCONDES, 2000). A Casa Pia e Colégio dos Órfãos de São

    Joaquim é considerada a mais antiga instituição educacional em funcionamento no

    Brasil. Foi fundada em 1799 pelo irmão leigo catarinense Joaquim Francisco do

    Livramento, de passagem pela cidade, com o nome de Casa dos Meninos de São

    José. Tinha por finalidade acolher menores órfãos, dando-lhes formação

    educacional humanística, religiosa e profissional. Em 1826, um antigo convento

    jesuíta, desocupado desde a expulsão da Companhia da colônia pelo Marquês de

    Pombal em 1757, foi oficialmente designado pelo Império como sede do orfanato,

    que passou a se chamar Colégio de São Joaquim, em homenagem ao seu

    fundador. Atualmente funciona como um colégio interno para crianças carentes,

    não necessariamente órfãs, da capital e interior da Bahia (CONHEÇA, 2013). O

    pioneirismo dessa instituição teria influenciado o estabelecimento de outras

    instituições congêneres, como o Colégio Pedro II e o Asilo de Meninos Desvalidos,

    no Rio de Janeiro, o Instituto Amazonense de Educandos Artífices, no Pará, e a

    Escola de Aprendizes do Arsenal da Marinha, em Salvador. (BAHIA, 2012). Mello

    atuou também como mestre de música no Arsenal de Guerra da Bahia. (BAHIA,

  • 18

    2012). Em seu livro, menciona ainda a atuação como professor substituto de

    Princípios de Música no Conservatório de Música da Bahia.

    Eu mesmo, durante os poucos mezes que lá estive a pedido do Dr. Dotto, em nome da arte, substituindo a cadeira de Principios de musica, cujo lente fora licenciado em virtude da crise financeira que assolava o Estado, o qual já havia alguns annos não pagava as subvenções, consegui povoar completamente o salão de minha aula a ponto de não haver mais logares para os alumnos. (MELLO, 1908, p. 287).

    Transferiu-se para o Rio de Janeiro em 1928, onde assumiu o cargo de

    bibliotecário interino no Instituto Nacional de Música. Efetivado no ano seguinte,

    permaneceria na cidade até sua morte, em 4 de maio de 1932. (COLEÇÃO

    GUILHERME DE MELLO, 2013). Quando da fundação da Academia Brasileira de

    Música, em 1945, Villa-Lobos designou o nome de Guilherme de Mello como

    patrono da cadeira nº 31, hoje ocupada pelo musicólogo também baiano Manuel

    Veiga (GUILHERME DE MELLO, 2013). Em memória do ilustre aluno e professor,

    o Colégio de São Joaquim criou a medalha de honra ao mérito Guilherme de

    Mello, (BAHIA, 2012).

    Figura 1 – Casa Pia e Colégio de Órfãos de S. Joaquim – Salvador

    Artista e ano não informados – Fonte: . Acesso em 11 jul. 2013.

  • 19

    1.2 – Contexto da elaboração do livro

    Trata-se da primeira obra historiográfica panorâmica sobre a música

    brasileira de que se tem conhecimento. Foi publicado pela primeira vez em 1908,

    pela Typographia de S. Joaquim, em Salvador, reeditado em 1922, no Dicionário

    histórico, geográfico e etnográfico do Brasil e em 1947, pela Escola Nacional de

    Música. (MARCONDES, 2000).

    Mello ainda residia em Salvador e lecionava no Colégio de S. Joaquim

    quando da elaboração e publicação do livro. Logo no início do texto, agradece aos

    órfãos por sua ajuda na impressão do material.8

    É opportuno aqui testemunhar ao Collegio dos Orphãos de São Joaquim a minha sincera gratidão pelo relevante serviço que me fez na publicação d‟esta obra, proporcionando-me a par de nitidez artística o delicado trabalho dos clichés, caprichosamente feitos por um orphão da casa, que desde já revela grande talento e que suppriu a falta de typos apropriados a esta publicação. (MELLO, 1908, p. II).

    Não há, todavia, nenhuma menção explícita a qualquer propósito

    didático.

    Publicado em 1908, portanto, menos de vinte anos após a proclamação

    da República, o livro reflete a esperança gerada pelo advento do novo regime na

    intelectualidade do período. A independência do Brasil, proclamada em 1822,

    havia suscitado um sentimento semelhante, perceptível, por exemplo, na leitura de

    Ideias sobre a música (1836), de Manuel de Araújo Porto Alegre. Nas palavras do

    próprio Mello (1908, p. 297): “com a proclamação da república a arte nacional

    reivindica todo o seu passado de gloria e inicia uma nova epoca que bem

    poderiamos denominar – Periodo de nativismo”.

    De fato, o país vivenciava então uma série de transformações visando a

    sua modernização e progresso. A política econômica da presidência de Afonso

    Pena (1906-1909) orientava-se para a valorização do café, produto brasileiro

    8 Todas as citações presentes neste trabalho estão transcritas literalmente, conforme a ortografia,

    acentuação e pontuação utilizadas pelos autores.

  • 20

    então com maior inserção no mercado internacional. Realizaram-se, além disso,

    melhorias no Exército e na Marinha e incentivos à imigração. Representado por

    Rui Barbosa, o país participou, em 1907, da célebre Conferência da Paz em Haia,

    na Holanda (SOARES, 2007).

    1.3 – Divisão estrutural e critérios de periodização

    O desenvolvimento da música brasileira, na visão do musicólogo

    baiano, foi influenciado, basicamente, pelas etnias que aqui se estabeleceram e

    pelas distintas conjunturas políticas da história do país.

    Diversas foram as influências que concorreram em cada período de seu desenvolvimento para a formação do cunho original ou típico da musica popular brasileira: influencia indigena, influencia jesuitica, que constituem o periodo de formação; influencia portugueza, influencia africana, influencia hespanhola, que constituem o periodo de caracterisação, influencia bragantina que constitue o periodo de desenvolvimento; influencia dos pseudo-maestros italianos, periodo de degradação; influencia republicana, periodo de nativismo. (MELLO, 1908, p. 7).

    Tais influências manifestam-se na divisão estrutural dos capítulos:

    Capítulo I – Influência indígena

    Capítulo II – Influência portugueza, africana e hespanhola

    Capítulo III – Influência bragantina

    Capítulo IV – Período de degradação

    Capítulo V - Influência Republicana

    No primeiro capítulo, o autor, baseado em relatos de viajantes e

    missionários como Fernão Cardim, Gabriel Soares e Jean de Léry, descreve a

    música entre os indígenas, seus rituais e instrumentos. Mello reproduz a ideia da

    musicalidade inata do indígena, já presente nesses textos. Os nativos são

  • 21

    analisados numa perspectiva de selvageria e inferioridade em relação aos

    colonizadores. Os textos em que Mello se baseou, de autoria de homens a serviço

    do governo ou da Igreja Católica, revelavam uma concepção eurocentrista.

    Referências sobre o local e os costumes visavam uma ação de domínio ou

    “civilização” sobre o “outro”, tido como inferior. Segundo Diósnio Machado Neto, “o

    relato é sempre realizado na perspectiva das pertenças individuais, da

    subjetivação de valores que emergem do distanciamento crítico da alteridade.”

    (MACHADO NETO, 2011, p. 47). São mencionados alguns autos9 representados

    no Brasil colonial para catequização dos indígenas. Mello baseia-se, nesta parte,

    em textos já escritos no século XIX, por Teophilo Braga e Mello Moraes.

    O segundo capítulo traz uma abordagem da música popular brasileira

    como resultado da fusão dos costumes das “raças” portuguesa, africana,

    espanhola e indígena. O lundu, a tirana e a modinha são apontados como os

    gêneros-base de nossa música e resultado da citada fusão. São mencionados

    diversos gêneros de música popular rural e urbana (que hoje consideramos como

    de música folclórica), dos quais o autor busca fazer um breve histórico.

    No capítulo seguinte, Mello indica a vinda da família real portuguesa e

    posterior independência do país como um momento de evolução musical. Mais:

    argumenta que a música teria sido um fator de impulso ao movimento de

    independência.

    Sendo porém a música a mais sociológica de todas ellas [as artes], por isso que só tocou o seu apogeu quando a sociedade libertando-se do servilismo feudal, clerical e realengo, proclamara a sua independencia, deve esta qualidade ao som que é o agente social por excellencia.(MELLO, 1908, p. 129).

    9auto: 1. Certo gênero dramático de cunho moral, místico ou satírico, com um só ato, originário da Idade

    Média. 2. Representação dramática do ciclo natalino, com canções e danças (iDICIONÁRIO AULETE,2013).

  • 22

    Nesse mesmo capítulo, inicia-se a abordagem da modinha e sua defesa

    como música nacional, assunto que trataremos em maiores detalhes no

    subcapítulo 1.7.

    O autor destaca a atuação musical da dinastia de Bragança, desde seu

    fundador D. João IV (1604-1656).

    Prova-se ainda o gosto, a capacidade e a dedicação musical dos mais reis da casa de Bragança pelo que sobre elles diz a historia. Começando por D. João IV a quem coube a glória de inaugurar em 1640 a dynastia de Bragança teve Portugal neste rei não só um composior distincto como ainda o fundador da Bibliotheca Real de Musica, onde se archivavam as composições dos músicos portuguezes e extrangeiros. Este precioso archivo ficou sepultado nas ruinas do terremoto em 1775 [1755], o que foi uma perda immensa para a historia da arte em Portugal. Passando-se a D. João V e depois a D. José I e sua mulher D. Marianna Victoria, mais tarde a D. Maria I e seu filho D. João VI, que foram excellentes musicistas teve ainda a casa de Bragança em D. Pedro I do Brasil e IV de Portugal o genial compositor do nosso Hymno da Independencia e o inspirado poeta e auctor do Hymno da Carta Constitucional de Portugal, sagrado por D. Carlos o Hymno Nacional Portuguez. De todos estes reis porem o que mais concorreu para o desenvolvimento da musica no Brasil foi D. João VI. (MELLO, 1908, p. 154).

    Embora ponha em evidência o talento de D. Pedro I como compositor,

    reproduzindo uma relação entre desenvolvimento musical e formação de um

    Estado nacional já presente desde o ensaio de Araújo Porto Alegre, Mello aponta a

    figura de D. João VI como o monarca que mais contribuiu para nossa música,

    trazendo ao país uma grande quantidade de artistas europeus e envolvendo

    também músicos aqui nascidos na produção e prática musical para os serviços

    religiosos, oficiais e de entretenimento. Entre tais músicos, é destacado o padre

    José Maurício, e, entre os estrangeiros, o austríaco Sigismund Neukomm e os

    irmãos portugueses Marcos e Simão Portugal.

    O capítulo aborda as influências de D. Pedro II e do início do período

    republicano comentando os hinos nacionais; traça um breve histórico da música

    que é hoje nosso hino, fala sobre o Hino da Carta, composto por D. Pedro I já de

    volta a Portugal e sobre o Hino da República. Traz também uma biografia de

    Francisco Manuel, autor do Hino Nacional.

  • 23

    Retoma o tema da modinha e aborda artistas populares que se

    dedicaram, além desse gênero, ao lundu. A partir da temática da modinha, emenda

    um longo trecho sobre a música na Bahia, trazendo breves biografias de músicos

    que se dedicaram à modinha e ao lundu no século XIX e, por fim, menciona e

    comenta brevemente alguns nomes de destaque em diversos momentos da

    história da música no seu estado natal.

    Segue-se, no quarto capítulo, o relato de um período por ele

    considerado como “de degradação”, marcado pela influência da música ligeira

    italiana, instrução musical precária fornecida pelas “artinhas” 10, declínio da

    modinha nos salões, aquisição de um gosto musical considerado inferior após os

    intercâmbios na Guerra do Paraguai e migração de compositores brasileiros para a

    Europa. Embora tais comentários se refiram a todo o país, o foco do capítulo ainda

    é a Bahia.

    O quinto e último capítulo aborda o período republicano, avaliado pelo

    autor como um momento de esplendor e orgulho da música nacional. Mello traz

    uma grande quantidade de nomes de artistas desse período: compositores,

    intérpretes, além de críticos musicais. Deve-se lembrar que este autor é

    contemporâneo de tais personalidades. São também descritas algumas

    instituições de ensino, como o Colégio de Órfãos de São Joaquim (onde ele

    lecionava) e o Instituto Nacional de Música, onde posteriormente atuaria como

    bibliotecário.

    1.4– Metodologia

    Observando as imagens do sumário (presentes no Anexo I desta

    dissertação), podemos perceber seu enorme detalhamento - praticamente cada

    10

    Artinhas eram manuais escritos por compositores brasileiros ou radicados no país, em falta de livros publicados. Diferentemente do afirmado em Mello, estudos recentes têm revelado o alinhamento metodológico desse material com a produção europeia coeva. Um exemplo é a Arte Explicada de Contraponto, de André da Silva Gomes, mestre de capela da Sé de São Paulo no século XVIII. (DUPRAT et. al., 1998).

  • 24

    parágrafo do texto integral é resumido em um tópico! Todavia, sua leitura revela

    um encadeamento dos capítulos muitas vezes confuso e truncado.

    Dalton Soares (2007) caracteriza as primeiras obras historiográficas

    sobre a música no país como uma compilação de fatos relacionados à música e

    aos músicos cuja contribuição pessoal era considerada importante, alinhados aos

    ditos “grandes acontecimentos históricos”, visando desenvolver no leitor uma

    consciência musical nacional. O livro de Mello corresponde muito bem a esta

    descrição. O leitor tem a impressão não de um texto coeso, mas de uma colagem

    de informações das mais diversas fontes e naturezas: relatos de viajantes e

    missionários, críticas musicais, narração de fatos históricos e memórias pessoais.

    O próprio autor, no prefácio, descreve sua metodologia como um misto

    de narrativa biográfica e histórica:

    Há dous modos, diz Edmond Scherer, de escrever a história artística e literária de um povo: “pender para as considerações geraes, referir os effeitos ás causas, distinguir, classificar; ou então tomar por alvo este mundo de artistas e escriptores do meio que tão grandes cousas produziu, procurar suprehender estes homens em sua vida de todo dia, desenhar-lhes a pysionomia e recolher as picantes anecdotas a seu respeito. Foi pois na observância destes modos que procurei achar as leis ethnicas que presidiram à formação do genio, do espírito e do caracter do povo brasileiro e de sua música bem como ainda de sua ethnologia; isto é, como o povo portuguez sob a influencia do clima americano e em contacto com o índio e o africano se transformou, constituindo o mestiço ou o brasileiro propriamente dito. (MELLO, 1908, p. 6).

    A falta de explicitação de muitas das fontes utilizadas, bem como o

    tratamento mais compilatório que analítico das informações suscitariam,

    posteriormente, críticas ao livro.

    A parte histórica do mesmo é, no entanto, deficiente e nem sempre muito exata; constituem-na transcrições inmeráveis [sic] das várias fontes a que o autor teve acesso, digressões ociosas sobre questões de ordem geral, que nada têm a ver com o assunto do livro, ou disputas de mero interesse local. (AZEVEDO, 1956, p. 378) É um tanto difícil perceber no livro de Guilherme de Melo quais ideias são suas e quais são repetidas de outros autores. A absoluta falta de notas e referências bibliográficas impedem que se identifique como chegou às suas afirmações. De maneira um tanto velada ele indica que a biografia

  • 25

    do padre José Maurício havia sido feita por Araújo Porto Alegre. Depois, sem deixar isso claro, incorporou ao seu texto páginas inteiras do artigo “Iconografia brasileira” do mesmo autor, sem alterar uma vírgula sequer. [Melo, 1908, p. 153-170 e RIHGB, 1856, vol. XIX, p. 349-378]. (LEONI, 2010, p. 102).

    Mello reconhecia, ainda que com certa ingenuidade, a escassez, à

    época, de informações sobre a atividade musical no Brasil.

    Não fiz este modesto trabalho com a vaidade estulta de vos dar uma historia completa da Musica no Brasil. Para isso ser-me-iam necessarios grandes capitaes para, pessoalmente em cada Estado, poder cavar nas diversas phases dos tempos coloniaes, do primeiro e segundo imperio e agora da Republica, todos os factos interessantes do dominio da Musica, ao em vez disso, tive de me resignar ao cabedal, aliás apreciável, que sobre o assumpto me forneceram o Instituto Geographico e Historico da Bahia e o Real Gabinete Portuguez de Leitura (MELLO, 1908, p. 10).

    11

    Apesar de se tratar de uma obra em prosa, percebe-se, em alguns

    momentos, a influência do parnasianismo em seu estilo de escrita. O referido

    movimento literário, que influenciou a obra poética de muitos de seus

    contemporâneos, tais como Vicente de Carvalho (1866-1924), Olavo Bilac (1865-

    1918) e Joaquim Osório Duque-Estrada (1870-1927), apresentava, entre outros

    elementos, o preciosismo vocabular e a valorização da mitologia. Tais elementos

    manifestam-se em vários trechos do livro, sendo as comparações com a

    Antiguidade Clássica, aparentemente tomada como modelo de civilização, usadas

    como elementos de legitimação da música brasileira.

    De par com as modinhas e as modas portuguesas, a serranilha galleziana foi pouco a pouco se acomodando ao nosso clima e, recebendo a essencia de nossos campos, o aroma de nossas relvas, o perfume de nossos jardins, o cheiro de nossas flores, eleva no coração da mulher brasileira um novo altar, cujo sacrario iluminado pelo fogo puro e santo das vestaes, encerra ainda hoje a ambula do pabulo comunial e a

    11

    O autor faz referência ao Real Gabinete Portuguez de Leitura. Esse era o nome da biblioteca e sociedade de leitura fundada por imigrantes portugueses no Rio de Janeiro em 1837 (CATEDRAL, 2013). Entretanto, há também um Gabinete Portuguez de Leitura, também fundado por imigrantes portugueses em 1863, na cidade de Salvador (HISTÓRICO, 2013). Acreditamos que Mello se referia, na verdade, a este último, uma vez que o livro foi publicado bem antes de sua mudança para o Rio de Janeiro, numa época em que viagens dessa distância, realizadas de navio, eram bastante trabalhosas e dispendiosas.

  • 26

    anphora dos santos oleos que sagrara Cupido e Venus deuses do amor (MELLO, 1908, pp. 149-150).

    Entretanto, quando traz ao texto memórias pessoais, Mello adota um

    estilo mais próximo do coloquial.

    Ainda em Janeiro de 1906 estando veraneando em S. Thomé de Paripe, foi-me solicitada a permissão para dansar em minha casa o Rancho do Boi. Preparei-me com toda a satisfação para receber condignamente estes foliões, unicos representantes dos nossos costumes tradicionaes. Deram nove horas, dez, onze, nada delles virem, cheguei a pensar que não viriam mais. Engano, é que elles vinham de casa em casa, e a minha morada era uma das ultimas. Só depois da meia noite foi que chegou a minha vez. (MELLO, 1908, p. 62).

    Estão presentes no livro algumas análises musicais realizadas pelo

    próprio autor. Bastante impressionistas, grandiloquentes e um tanto confusas, tais

    análises normalmente relacionam aspectos musicais a sentimentos despertados. A

    mais detalhada delas é a análise da marcha Dous de Julho, de Barreto de Aviz,

    peça composta em 1895 para a inauguração de um monumento em memória à

    Batalha do Pirajá. Realizada a 2 de julho de 1823, a referida batalha resultou na

    expulsão dos portugueses da Bahia, consolidando no estado a independência do

    Brasil. Mello identifica a composição como um poema sinfônico, apontando, na

    instrumentação e no uso da forma, do ritmo e da harmonia, elementos narrativos e

    imitativos da natureza.

    N‟este poema, que e de uma inspiração sublime, mostra-se Barreto de Aviz não só um verdadeiro harmonista como ainda um provecto symphonista. Inspirando-se nas páginas de nossa história, que também era sua, procura o maestro pintar onomatopaicamente todo o quadro da descoberta do Brasil. Começando por uns toques de clarins, intermediados por uns pizzicatos baseados na falsa da mediante e da dominante, como que pintando o temor e o terror da marinhagem perante a borrasca que se anunciava imminente, Barreto de Aviz descreve este quadro, com uma grande felicidade de imaginação, por um crescendo estrepitoso, traçado em movimento contrário, no qual as partes agudas sobem de terceiras em terceiras menores e os baixos descem até um grave profundo onde termina com um rufo de bombo, imitando o ribombar dos trovões. Em seguida cae a uma verdadeira prostração após a qual implora o auxílio de Maria Santíssima por um pequeno Madrigal, se não em estylo sevéro usado no contra-ponto neerlandez do seculo XVI, pelo menos em estylo do contra-ponto livre e diatônico iniciado por

  • 27

    Monteverde no seculo XVII. Só n‟este madrigal mostra Barreto de Aviz um mundo de conhecimentos. Como harmonista não podia ser superior, como melodista mais inspirado, como desenhista mais onomatopaico, pois além de traçar todo o rythmo em compasso 6/4 imitando o jogo do mar pinta as pancadas das ondas enfurecidas esbatendo sobre o dorso do navio, por umas tenutas syncopadas executadas pelo ophicleide e pelo saxofone barytono. Como poeta ainda e de um lyrismo admirável, pois na transição da tempestade para a bonança é de uma delicadeza verdadeiramente mystica e adorável. De repente ressoam de novo os clarins anunciando na repercussão de seus toques e na confusão dos seus echos, a descoberta e posse do territorio brasileiro. Ao saltar em terra entôa a marinhagem uma solemne marcha grave em que na segunda phrase as cornetas fazem ouvir o seu toque épico, como que ordenando sentido. Em seguida ouve-se um coro mystico e angelico em voz de soprano, ao que respondem em voz de baixo profundo os missionários entoando um psalmo em acções de graças, após o que todos afinam sua voz em fabordão para entoar o coro final. Eis senão quando ouve-se como um annuncio de paz o canto das selvas de nossos aborígenes, acompanhado pelo rythmar dos maracás e pelos accentos imperiosos dos cotecás.Segue-se o santo sacrifício da missa, celebrada em acções de graças, com acompanhamento de orchestra, cujos baixos e instrumentos graves em harmonia de estylo escholastico a 4 partes, fazem um conjuncto de uma instrumentação bellissima muito semelhante aos acordes profundos e mysteriosos de um grande órgão. Terminada esta parte imagina ainda Barreto de Aviz pintar a confusão de línguas de uns e de outros como a da Torre de Babel, por pequenas phrases melódicas em estylo canônico de imitações severas em sequencia de quartas maiores, que constituem uma parcella vantajosa de seus conhecimentos de composição, harmonia, contra-ponto, fugas e cânones. E admirável ainda a maneira pela qual elle termina este Canon, como se, embora mecânico, esta composição fora de pequeno fôlego. Começam a retirada e as despedidas. A principio ouve-se a toada de um canto saudoso de melodia européa ricamente ornamentada, a que os índios na terceira phrase, apossando-se do sentimento musical dos europeus, misturam suas vozes com as d‟êstes, formando repetições em fugas a uníssono de um effeito verdadeiramente magestoso e imponente. Em seguida suspendem-se os ferros num grande alarido de alegria, fazendo ouvir a charanga de bordo uma marcha épica e heróica após a qual volta o primeiro motivo n‟um rythmo extraordinariamente excitado, acompanhado de toques de cornetas, clarins, trombones e todo o instrumental. Aqui termina-se repentinamente o poema. (MELLO, 1908, pp. 288-291).

    No capítulo em que são abordadas as manifestações populares de

    caráter religioso, como os congos e reisados, bem como diversos tipos de

    cantigas, o autor, além de trazer um breve histórico e descrever com considerável

    riqueza de detalhes sua realização, traz transcrições de alguns trechos em

    partitura, bem como dos textos. A fonte de tais partituras não é indicada, o que nos

    leva a interpretá-las como transcrições realizadas pelo próprio Mello, com base em

  • 28

    suas memórias. O livro Cantos populares do Brasil (1883), de Silvio Romero, é

    citado em muitos momentos. Todavia, tal livro contém apenas exemplos das letras

    das músicas, sem transcrição de partituras. Embora seja citado como fonte, Mello

    sempre afirma ter tido contato com essas canções na Bahia. A leitura de Romero,

    aparentemente, não lhe teria trazido nenhuma novidade em termos de repertório,

    no máximo algumas pequenas diferenças regionais de texto.

    Por serem usados nos costumes populares de Sergipe a maior parte dos cantares attribuidos por Silvio Roméro, nos Cantos Populares do Brasil, como de origem sergipana, não se póde entretanto contestar á Bahia a primazia que tem sobre quase todos elles, não só porque Sergipe foi um pedaço do território da Bahia desmembrado della, como também porque elles ainda fazem parte da sua tradição e são cantados em quase todos os recessos de família essencialmente bahiana.(MELLO, 1908, p.67).

    Com relação à iconografia, o livro, impresso em condições bastante

    modestas, não apresenta retratos de músicos, tampouco imagens de lugares

    (teatros, escolas, igrejas, etc.), onde se davam as apresentações e a formação

    dos músicos brasileiros. Tampouco conseguimos ter acesso a qualquer imagem

    do autor.

    1.5 – Referências Teóricas destacadas

    Retomemos a citação que ilustrou, no subcapítulo anterior, a concepção

    narrativa de Mello:

    Há dous modos, diz Edmond Scherer, de escrever a história artística e literária de um povo: “pender para as considerações geraes, referir os effeitos ás causas, distinguir, classificar; ou então tomar por alvo este mundo de artistas e escriptores do meio que tão grandes cousas produziu, procurar suprehender estes homens em sua vida de todo dia, desenhar-lhes a pysionomia e recolher as picantes anecdotas a seu respeito. Foi pois na observância destes modos que procurei achar as leis ethnicas que presidiram à formação do genio, do espírito e do caracter do povo brasileiro e de sua música bem como ainda de sua ethnologia; isto é, como o povo portuguez sob a influencia do clima americano e em contacto com o índio e o africano se transformou, constituindo o mestiço ou o brasileiro propriamente dito. (MELLO, 1908, p. 6).

  • 29

    Ao introduzir sua concepção narrativa, Mello também revela sua visão

    do brasileiro (e, consequentemente, de sua arte) como fruto de um amálgama de

    fatores étnicos e mesológicos. Ao incluir, ainda, as influências de diferentes

    conjunturas políticas em diferentes momentos históricos – destacadas na divisão

    estrutural do livro – Mello alinha-se ao Determinismo integral, teoria desenvolvida

    na segunda metade do século XIX pelo francês Hippolyte Taine (1828-1893).

    (VOLPE, 2008).

    O crítico literário e teólogo francês Edmond Scherer, citado por Mello,

    foi influenciado pela concepção histórica de Hegel, que, nas palavras de Diósnio

    Machado Neto (2011, p. 20), “partia da consideração de que a objetividade e a

    subjetividade são operadas, ambas, por uma razão que “pensa” através de um

    processo evolutivo da “menor” razão para a “maior”, ou seja, o princípio do

    evolucionismo tendo a história como elemento de depuração.” A visão hegeliana

    de história implicava, portanto, uma temporalidade linear e orientada (JAPIASSÚ e

    MARCONDES, 2001). Perspectiva semelhante encontrava-se no evolucionismo,

    teoria que teve na figura do filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1903) seu maior

    expoente nas Ciências Humanas. O sentido da evolução - entendida

    necessariamente como “progresso” – seria sempre do “simples” para o ”complexo”

    (LOPES; HORA, 2012, p. 114). Ao interpretar a reação do missionário francês

    Jean de Léry aos cantos indígenas, Mello alinha-se a esse raciocínio.

    Que Léry se deixasse arrebatar pela execução d‟esses trechos e guardasse d‟essa audição as impressões mais agradaveis era natural porque elle estava em seu tempo. Já não dirá assim o artista moderno que, tendo acompanhado passo a passo a evolução da música, desde a monodia antiga ate a melodia dos grandes séculos italianos e trobadorescos, desde o canto-chão gregoriano e cisteriano ate o ratisboniano e benedictino, desde a polyphonia da edade media ate a symphonia e o drama moderno, só reconhece nestas composições seu valor histórico. (MELLO, 1908, p. 11).

    Segundo Renato Ortiz (2006), essa visão legitimava ideologicamente a

    “superioridade da civilização europeia”, situando o Brasil em uma posição de

  • 30

    “atraso” sociocultural. Fazia-se, então, necessário explicar o “atraso” brasileiro e

    apontar para sua constituição como nação, em um futuro próximo ou remoto. Para

    tanto, passou-se a enfatizar o estudo do “caráter nacional”. A compreensão da

    especificidade social brasileira dava-se complementando o evolucionismo com

    argumentos relacionados às noções de meio e raça. Silvio Romero, cujo livro

    Cantos Populares do Brasil (1883) é citado por Mello como uma das fontes

    utilizadas, foi um dos autores que se destacaram na aplicação de tais noções no

    estudo das manifestações culturais brasileiras. É considerado pela crítica literária

    o introdutor do método crítico no Brasil, isto é, o primeiro a buscar explicar o texto

    literário pela realidade histórica que o determina. Considerava o brasileiro um

    “novo tipo histórico”. Conferindo ao fator racial papel preponderante na formação

    do brasileiro, argumentava que a miscigenação do europeu com os negros era

    indispensável à sua sobrevivência nos trópicos. (VOLPE, 2008). Por outro lado,

    defendia a evolução do brasileiro por meio do branqueamento; em outras

    palavras: a mistura do nativo12 e do negro com o branco os elevaria

    intelectualmente. (ORTIZ, 2006).

    Citando Guyau, filósofo francês cujo pensamento foi fortemente influenciado

    pelo evolucionismo de Spencer (Michon et. al., 2008), Mello aponta uma influência

    recíproca entre a música e a história do país.

    Guyau, estudando o poder psychico da arte musical, pela acção phenomenal do som, diz: a dor expressa pela voz nos commove mais que a expressa pelos traços do rosto ou pelos geitos. Si os surdos são geralmente mais tristes que os cegos é que o ouvido é mais necessário que a vista á percepção da vida exterior. Mais que a luz, mais que o movimento ou a mímica o som revela a existência e a exprime. [...] a música sendo um agente sociológico incomparável, ou comparável somente com a religião, pois que ambas agindo sobre a sensibilidade tem o poder maravilhoso de unificar e socializar a humanidade, acompanhou passo a passo todas as evoluções sociaes do povo brasileiro. (MELLO, 1908, pp. 129-130).

    12

    Para Romero, o negro seria um componente mais forte na formação do brasileiro do que o índio, sendo que este último estaria fadado ao desaparecimento.

  • 31

    Também se faz presente no livro a influência do positivismo, concepção

    filosófica que considerava o método da ciência como o único válido, devendo-se

    estender “a todos os campos de indagação e da atividade humana”

    (ABBAGNANO, 2000, p. 777). O francês Auguste Comte (1798-1857), principal

    teórico do Positivismo, enfatizava a ideia do homem como ser social e propunha o

    estudo da sociedade por meio de métodos e técnicas empregados pelas ciências

    naturais (CHAUÍ, 2008). A influência positivista manifesta-se no livro por meio da

    ênfase na busca de provas documentais da existência de uma música

    autenticamente brasileira. Cabe ressaltar, ainda, que o lema republicano, “Ordem

    e Progresso”, estampado em nossa bandeira, consiste na abreviação do lema

    positivista “O Amor por princípio, a Ordem por base, o Progresso por fim.”

    (CASTRO, 2000).

    Mello baseia sua abordagem do período colonial, sobretudo no que se

    refere aos usos e costumes dos nativos, em relatos de missionários, como o

    jesuíta Fernão Cardim (1540-1625) e o pastor protestante francês Jean de Léry

    (c.1563 - c. 1613) e de viajantes, como Gabriel Soares de Sousa (c. 1540-?).

    Segundo Diósnio Machado Neto (2011, p. 47), tais textos “comportam-se como

    fontes e não como historiografia, porque a imensa maioria não é [de] estudos

    sistemáticos, é [de] explicitações das fronteiras de estranhamento, quando não de

    repugnância”. Os referidos autores trazem em comum a ideia de uma

    musicalidade inata dos indígenas. Ao mesmo tempo, consideram sua música

    inferior à musica europeia, por sua aparente simplicidade.

    Todos os escriptores do século XVI, referindo-se á predilecção dos selvagens pela musica, e especialmente pelo canto, dizem: “Eram em geral os aborígenes grandes musicos e amigos do bailar, principalmente os tamoyos do Rio de Janeiro, que eram grandes compositores de cânticos de improviso”. Igual predilecção demonstravam também os tupinambys, que bailavam todos num rhytmo uniforme, monótono, durante 24 horas consecutivas, por ocasião de se embriagarem com os vinhos que fabricavam, quando immolavam, em meio de cruéis cerimônias, os prisioneiros feitos na guerra. Gabriel Soares, no seu Roteiro do Brasil, declara também que “os tupinambás se presavam de grandes músicos, e ao seu modo cantavam com soffrivel tom, que tinham boas vozes, porem cantavam todos a uníssono”. Fernão Cardim,

  • 32

    confirmando o que diz Gabriel Soares, na sua Narrativa Epistolar de uma viagem ao Brasil, diz mais: “Eram entre os selvagens tão estimados os cantores de ambos os sexos que se por acaso tomavam nas ciladas um contrario “bom cantor e inventor de trovas” poupavam-lhe a vida, calando o seu imperioso appetite de antropophagos”. [...] [Léry] attendendo à falta de conhecimentos musicaes dos índios, não pensou que elles cantassem tão bem afinados e com tanta arte a ponto de lhe produzir arrebatamento. (MELLO, 1908, pp. 9-11).

    Citando a História da Literatura Portugueza, do político e escritor

    português Teophilo Braga, e o livro Patria Selvagem, do poeta e folclorista baiano

    Mello Moraes Filho, destaca a atuação dos jesuítas na catequese, por meio da

    encenação de autos, peças teatrais de temática religiosa, fortemente

    influenciadas, segundo Braga, pelo teatro de Gil Vicente. Cita ainda textos do

    padre Simão de Vasconcellos, clérigo jesuíta do século XVII, que põe em relevo a

    contribuição dos padres José de Anchieta, Manuel da Nóbrega e Álvaro Lobo. A

    catequese é vista como uma ação positiva e civilizadora.

    O terreiro da egreja move-se na multidão pressurosa, trescala nos aromas activíssimos, retumba dos sons dos tamborins e pratos luzentes, das flautas e cornetas aspérrimas. O theatro esta ao lado, com suas cortinas de damasco, com seus bastidores de arbustos favoritos. A caixa tem seus mecanismos rudimentares, rio artificial, alçapões que tragam e expellem demônios. Os chefes de guerra, os pagés, as feiticeiras, os inigenas catechisados, os colonos, à sombra das alas nativas e dos galhardetes, cujas bandeiras symbolicas authenticam a vitoria do Christianismo e de Portugal, comem e descantam, dansam e vibram seus instrumentos. Os músicos da orchestra vestidos de pennas e listrados de urucu, descançam as pernas às maças e flechas, e dão signal para a representação. (MELLO MORAES FILHO, apud MELLO, 1908