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OS CONCEITOS DE PÚBLICO E PUBLICIDADE NO SURGIMENTO DA OPINIÃO
PÚBLICA NO BRASIL (1820-1830)
Renato de Ulhôa Canto Reis (História – Universidade Federal de Juiz de Fora)
Orientadora: Silvana Mota Barbosa
Palavras-Chave: Opinião pública; publicidade; história dos conceitos.
Passaram-se 27 anos entre a publicação da tese de habilitação de Jürgen
Habermas, “Mudança estrutural da esfera pública: uma investigação quanto uma
categoria da sociedade burguesa” (1962)1, e sua primeira tradução para o inglês (1989).
Na década de 80, quando a discussão proposta pelo autor começa a ter uma repercussão
maior entre os historiadores, consolidou-se o conceito de “esfera pública” como tradução
para o termo investigado pelo autor: öffentlichkeit. Devido à ausência do conceito de
esfera pública na realidade política de diversos países no século XIX, um dos grandes
debates em torno da questão se direcionou para o embate entre a historicidade ou a
normatividade da sua análise. Acredito que é possível abordar a discussão proposta por
Habermas através de outro prisma, pois a ausência do conceito não implica que o
processo descrito por ele não exista. A solução passaria, então, pela adoção de outra
tradução para o termo öffentlichkeit, uma tradução que estivesse mais próxima do
contexto linguístico dos oitocentos.
Dois anos após a publicação da tese de habilitação de Habermas, em 1964, W. G.
Runciman publica uma resenha sobre o livro, na qual diz que “öffentlichkeit não é
facilmente traduzido para o inglês”, sendo que “um número de tópicos pode ser
interessantemente justapostos sob o título comum de öffentlichkeit”2. Runciman opta em
sua resenha pelo termo publicness, que poderia ser encontrado no dicionário de Oxford,
mas alerta que este estava se perdendo na língua inglesa. Bem mais recentemente, Pablo
Piccato afirmou que public sphere só aparece no dicionário de Oxford no ano de 1992,
1 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da
sociedade burguesa. Tradução: Flávio R. Kothe. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
2 HABERMAS, Jürgen. Strukturwandel der Öffentlichkeit. Untersuchungen zu einer Kategorie der
bürgerlichen Gesellschaft. 1962. Resenha de: RUNCIMAN, W. G. Strukturwandel der Öffentlichkeit by Jürgen Habermas. The British Journal of Sociology. Vol. 15. Nº 4. Dez. 1964. P. 366.
possivelmente devido à primeira tradução para o inglês de 19893. De qualquer forma,
public sphere não aparece em nenhum momento na resenha escrita por Runciman. Vale
notar que, atualmente, seria impossível escrever uma resenha sobre a tese de habilitação
de Habermas sem falar, em nenhum momento, de esfera pública.
No dicionário inglês-alemão e alemão-inglês de Nathan Bailey do ano de 18014 a
tradução de öffentlichkeit se dá através de publicness, tal como sugerido por Runciman.
Já no dicionário de George J. Adler de 18855, além de publicness, as opções possíveis são
openess e publicity. No dicionário português-alemão e alemão-português de Henriette
Michaëlis de 1887, o conceito é traduzido para “publicidade, notoriedade”6. Além disso,
sabemos de antemão que existem diversos textos clássicos do XIX, tais como de Jeremy
Bentham ou Benjamin Constant, que discutem o significado e a importância da
publicidade na política. A opção por “publicidade” ao invés de “esfera pública”, por outro
lado, oferece alternativa a algumas passagens confusas derivadas da tradução. Habermas
teria afirmado: “a própria ‘esfera pública’ [öffentlichkeit] se apresenta como uma esfera
[sphäre]: o âmbito do que é setor público contrapõe-se ao privado”7. Na verdade, não se
tratava de entender como a “esfera” se apresentava como uma “esfera”, mas sim como
um atributo, a publicidade, passaria a demarcar um espaço social distinto, a adquirir
conotações espaciais. Repensar a esfera pública como publicidade permite compreender e
incorporar uma dimensão não espacial que foi sendo negligenciada da teoria de
Habermas8. Essa dimensão tem a ver com a sugestão de tradução literal para o conceito
3 PICCATO, Pablo. Public sphere in Latin America: A map of the historiography. In: Social History 35:2,
May, 2010. P. 165-192.
4 BAILEY, Nathan. Nathan Bailey’s Dictionary English-German and German-English. Leipzig und Sena:
bei Friedrich Frommann, 1801.
5 ADLER, George J. A Dictionary of the German and English Languages: indicating the ccentuation of
every word, containing several hundred german synonymes, together with a classification and alphabetical
list of the irregular verbs, and a list of abbreviations. Compiled from the works of Hilpert, Flügel, Grieb,
Heyse, and others. New York: D. Appleton and Company, 1885.
6 MICHAËLIS, Henriette. Novo Diccionario da Lingua Portugueza e Allemã: enriquecido com os termos
technicos do commercio e da indústria, das sciencias e das artes e da linguagem familiar. Leipzig: F. A. Brockhaus, 1887.
7 HABERMAS, Jürgen. Op. Cit. 2003. pp. 14.
8 MAH, Harold. Phantasies of the public sphere: Rethinking the Habermas of historians. The Journal of
Modern History, Vol. 72, nº 1, New Work on the Old Regime and the French Revolution: A Special issue in honor of François Furet, 2000.
öffentlichkeit apresentada pelo professor Sérgio Alcides. Segundo ele, literalmente,
öffentlichkeit seria mais bem traduzido para “aberturidade”9.
Assim, o que parece é que a tradução da obra de Habermas, de alguma forma, a
encaminhou da história conceitual para a sociologia. Não se trata de negar o processo
descrito pelo autor, mas de recuperar a historicidade implícita nele procurando evitar
possíveis anacronismos. Além dos benefícios já citados que viriam da opção por outra
tradução, seria possível também compreender o aparecimento da opinião pública de outra
maneira. Na teoria do autor, a opinião pública emerge da literarische öffentlichkeit (esfera
pública literária, ou “publicidade” literária), afirmação que enfatiza o papel da imprensa e
dos novos espaços de sociabilidade, como os salões, os coffe-houses, as associações, etc.,
na possibilidade do intercâmbio de ideias na formação e constituição de um “público”.
Este significa um conjunto de indivíduos privados que, através da razão, colocam de lado
suas particularidades sociais e se reduzem às qualidades comuns humanas, reivindicando
para si o atributo de “público”10. De qualquer forma, trata-se de pensar que a imprensa e
os novos espaços de sociabilidade inauguram, na verdade, uma nova forma de se pensar a
“publicidade”, e que se relaciona com uma nova concepção sobre o “público”. Em outras
palavras, reconfigurações de sentido do conceito de público e publicidade se coadunam
com a existência de um novo tipo de sociabilidade e de imprensa que, por sua vez, são
elencados como pressupostos necessários para o aparecimento da opinião pública.
Portanto, no objetivo de entender a presença do conceito de opinião pública como força
política, torna-se imperioso investigar as alterações de sentido do conceito de publicidade
e de que maneira esta passa a atuar nos discursos políticos do período.
No Antigo Regime Português o uso que prevalecia do conceito de público era
aquele relacionado ao poder régio. O papel que ele desempenhava dentro das teorias
corporativas de poder da segunda escolástica era de ressaltar a unicidade do corpo, a
junção das partes que o compunham através da cabeça. “Público” era o que a cabeça
representava. Ao mesmo tempo, a “publicidade” era um atributo exclusivo do poder
9 (Informação Verbal). Palestra intitulada “Um pouco de Grécia na Literatura Nacional”, proferida no 8º
Seminário Brasileiro de História da Historiografia, no dia 19 de Agosto de 2014.
https://www.youtube.com/watch?v=V-Z6R5NI9ZA. (especificamente no minuto 37:20). Acessada em
27/10/2016.
10 HABERMAS, Jürgen. Op. Cit., 2003. P. 71-12.
régio. Bluteau11 associa “publicidade” com os termos autêntico (aquilo que era munido
de autoridade e testemunho público), notório e promulgado. Para explicar o que é
“público”, “publicar”, “publicação” e “publicado”, o autor recorre às comunicações
realizadas pelas autoridades régias. A “publicidade” no Antigo Regime Português recebia,
assim, uma marca de autoridade que derivava do fato de emanar das autoridades
políticas. Encarnando o interesse do “geral” dos homens, apelando para o zelo e a
garantia da “paz pública”, as autoridades atribuíam à “publicidade” sua própria
autoridade, e isso se manifestava semanticamente no conceito através da sua vinculação
com as ideias de autenticidade, notoriedade e promulgação. Essa autoridade era recebida
de maneira apriorística, pois dependia apenas de sair à luz dentro do privilégio real.
Conforme a “publicidade” foi se desgarrando da sua função oficial essa vinculação se
desfaz gradualmente, derivando três formas de comunicação: a divulgação, a
promulgação e a publicação. Porém, ainda dentro da sua função oficial, a publicidade,
sob a mão das autoridades, cumpria a função de regulação moral da sociedade.
Nesse período a publicidade não possuía presença no debate político e se referia
apenas às comunicações das autoridades aos súditos. Carregava uma autoridade derivada
da posição social de quem publicava ou autorizava a publicação e cumpria a função de
regular moralmente a sociedade. Alterações ocorreram no início do XIX que permitiram
pensar a “publicidade” como “alma” do sistema constitucional e representativo, bem
como tornaram possível a existência da opinião pública como força política. A meu ver,
dois processos são centrais nessa mudança de sentido: primeiro, a liberação dos escritos e
o aparecimento de uma imprensa não oficial e, segundo, uma nova concepção sobre a
verdade. Entendo que esses dois processos afetam a estrutura de sentido destes conceitos
de uma forma relativamente independente de posições específicas nos debates políticos.
Ainda que se inserissem nos conflitos da época através destes conceitos, os atores tinham
que lidar com esses novos sentidos, assim como tinham que lidar com a presença da
opinião pública, fosse para tentar ganhar para si ou para negá-la. Estes dois processos são
tratados separadamente neste trabalho apenas como recurso de análise, na verdade,
ocorriam ao mesmo tempo e nutriam-se mutuamente.
11 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino. Lisboa: Officina de Pascoal Silva, 1712-1727.
O início da mudança no sentido do conceito se dá a partir de 1808 com a
introdução da imprensa periódica, especificamente, a partir da Gazeta do Rio de Janeiro.
Até 1820 a Gazeta permanecia como uma gazeta tradicional, conforme aponta Marco
Morel12, e ainda lança mão dos sentidos mais antigos dos conceitos de público e
publicidade. Sem embargo, algumas alterações já são possíveis de observar. Em primeiro
lugar, a Gazeta recorre muitas vezes ao conceito de “público” para se referir ao “geral dos
homens” ou a “todas as classes de pessoas”13. Trata-se de um público que está descolado
do poder régio. Ainda permanece com um sentido universalizante14 de público,
impedindo-o de tornar-se mais efetivo polêmica e politicamente. Refere-se ao público
como um sujeito, mas passivo: “comunicar ao Público”, “anunciar ao Público”, “dar ao
Público”, “apresentar ao Público”, “oferecer ao Público”. Este público como sujeito-
passivo recebe atribuições que o personifica e que permite que se manifeste, ainda que
indiretamente: “rancor”, “ansiedade”, “curiosidade” e “impaciência pública” são alguns
exemplos. Não é estranho pensar que esse “público” também vai passar a ter “opinião”,
mas isso implica em outra mudança: ele deve deixar de ser passivo e se tornar agente.
A segunda forma como a Gazeta inicia a mudança é através da inserção de artigos
e notícias estrangeiras que, de alguma forma, inova nos usos dos conceitos. É o caso do
“Extrato das reflexões que sobre o discurso de Luiz Bonaparte se publicaram em Londres
no Courier” 15, na qual o redator deste periódico diz que “seu próprio irmão [Luiz
Bonaparte] é quem o traz de rastros ante o tribunal público”. Antes da “opinião pública”
como um tribunal, que passaria a integrar o vocabulário político a partir da década de
12 MOREL, Marco. Da gazeta tradicional aos jornais de opinião: metamorfoses da imprensa periódica no
Brasil. In: NEVES, Lúcia Maria Bastos P. (org.) Livros e impressos: retratos do setecentos e do oitocentos. Rio de janeiro: Editora da UERJ, 2009, p. 156.
13 De acordo com Roger Chartier, o público do século XVIII na França é “composto por homens e
mulheres de todos os estamentos”. CHARTIER, Roger. Espacio público, crítica y desacralización en el
siglo XVIII: los orígenes culturales de la Revolución Francesa. Gedisa, 1995. P. 34.
14 Reinhart Koselleck tratando do conceito de humanidade diz que enquanto este possuiu apenas um
sentido universal (“todos os homens”) foi “politicamente cego e neutro”. Para ele, a partir do momento que
o conceito de homem adquiriu uma diferenciação interna, homem como cidadão, o conceito de humanidade
adquiriu também “qualidades adicionais”. Adquirir essas qualidades é fundamental para a politização do
conceito, pois a exclusão e a disputa de sentidos o tornam polêmica e politicamente mais efetivo.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à Semântica dos Tempos históricos; tradução,
Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira; revisão César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto-Ed.
PUC-Rio, 2006. P. 220.
15 GAZETA DO RIO DE JANEIRO, 01/12/1810, nº 96.
1830, referências ao “tribunal público” já podem ser encontradas mesmo na Gazeta. Na
verdade, o conceito de público, em sua longa trajetória, foi por diversas vezes utilizado
como recurso para responder à pergunta fundamental de “quem deve julgar” no âmbito
político e moral da filosofia. Em outro trecho também do Courier, a Gazeta insere a
seguinte passagem sobre problemas enfrentados na Inglaterra: “os Ministros trabalham
mais do que nunca; mas o público não tem conhecimento do resultado de suas
discussões”16. A ideia é de que o público deve ou pode checar as ações dos governantes.
A publicidade das ações das autoridades se tornará uma exigência comum após a década
de 1820 e a entrada efetiva dos ideais liberais no Brasil.
A terceira forma como a Gazeta contribui para as mudanças de sentido é através
da inserção em suas páginas de correspondências de pessoas não vinculadas diretamente
ao poder régio. A publicação de opiniões diversas sobre temas políticos ao saírem dentro
dos marcos do privilégio real acabaria por receber uma autoridade que passaria a se
rivalizar com as autoridades estabelecidas. Em grande medida, devido ao sentido da
publicidade que imperava no Antigo Regime e sua autoridade apriorística. Tal processo
era notado pelos redatores, e não à toa insere-se logo no primeiro número uma nota que
diz que “esta Gazeta, ainda que pertença por Privilégio aos Oficiais da Secretaria de
Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra não é contudo oficial; e o Governo
somente responde por aqueles papéis, que nela mandar imprimir em seu nome”17. Essa
passagem demarca um tipo de tensão específica que o surgimento dos impressos trouxe
para a realidade do início dos oitocentos. O “privilégio” continua sendo essencial para a
publicação, contudo, o governo não podia e nem queria se responsabilizar por todo e
quaisquer “papéis” impressos. Mesmo uma gazeta tradicional, originada “sob proteção
oficial” e “por iniciativa oficial”18, já tinha que lidar com a possível perda da
exclusividade da informação e se adaptar a um contexto no qual a “multiplicidade de
vozes” ganhava a cena pública, isto é, ganhava publicidade.
Ao longo da década de 1820 e a presença mais efetiva dos ideais liberais, o
movimento constitucionalista, as discussões sobre a liberdade de imprensa e o fim da
16 GAZETA DO RIO DE JANEIRO, 08/02/1815, nº 2.
17 GAZETA DO RIO DE JANEIRO, 10/09/1808, nº 1.
18 SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 4ª Ed., 1999. P. 19.
censura prévia, a ampliação dos espaços de sociabilidade e dos números de periódicos,
entre outros fatores, contribuíram para aprofundar o processo e consolidar a mudança nos
sentidos dos conceitos. O dicionário de Antonio Morais Silva de 183119 foi editado por
Theotônio José de Oliveira Velho. Este, por sua vez, recorreu ao Ensaio sobre alguns
synonimos da Lingua Portuguesa de Francisco de São Luiz Saraiva (1776-1845)20, com o
intuito de esclarecer as diferenças de alguns termos utilizados geralmente como
sinônimos. Assim, o autor apresenta as diferenças entre divulgar, considerada uma forma
vulgar e oral de comunicação, onde as notícias são geralmente mentirosas; promulgar,
que diz respeito a “publicar com autoridade”, tratando especialmente das leis e decretos
dos legisladores; e publicar, propriamente, que se referia a “fazer saber ao público, fazer
constar a todo um povo, cidade ou nação”. A definição de quem é o público da
publicação ainda não está clara, mas este já possui “qualidades adicionais” que o diferem
de um público universal, tal como na ideia de “todas as classes de pessoas”, pois ele pode
ser o povo, a cidade ou mesmo a nação. Também se diferencia “público” de “notório”, a
partir da constatação de que “público” concerne aquilo que é “sabido de todos”, à
extensão do conhecimento, e notório significava certeza do fato:
Os jurisconsultos romanos designavam pelo vocábulo notória as
informações e instruções que davam conhecimento e prova do fato, e no
foro é como axioma que o fato notório não necessita de prova; porque a própria notoriedade o põe fora de toda controvérsia21.
Dessa forma, Francisco de São Luiz Saraiva conclui que “a simples publicidade
nunca teve esta prerrogativa, nem a terá jamais, senão quando o juiz tiver vontade, ou
interesse de condenar”. O autor pretende com isso separar a publicidade daquela
autoridade inerente que possuía, afastando-a das ideias de autenticidade e notoriedade
19 SILVA, António de Moraes. Diccionário da língua portugueza, reformada, emendada, e muito
accrescentada pelo mesmo autor: posta em ordem, correcta e enriquecida de grande número de artigos
novos e dos synonymos por Theotonio José de Oliveira Velho. Lisboa: Impressão Régia, 4ª Ed, 2 tomos,
1831.
20 O Tomo I foi publicado no ano de 1821 e teve uma segunda edição, acrescentada de alguns sinônimos,
no ano de 1824. O Tomo II saiu no ano de 1828. A terceira edição saiu em 1838. SARAIVA, D. Francisco
de São Luiz. Ensaio sobre alguns synonimos da língua portugueza. Lisboa: Typografia da Academia Real
das Sciencias, 2ª Edição, 1824.
21 SARAIVA, D. Francisco de São Luiz. Ensaio sobre alguns synonimos da língua portugueza. Lisboa: Typografia da Academia Real das Sciencias, Tomo II, 1828. pp. 28-29.
pelas quais se compreendia o ato de tornar algo público anteriormente. Outra distinção é
entre “público” e “comum”, conceitos que até então também eram utilizados como
sinônimos. Para São Luiz Saraiva, “comum” é entendido distributivamente, no qual o
todo é constituído por partes. Os interesses da sociedade, corporação ou família
particular seriam comuns e não públicos. Já os interesses da nação seriam “comuns” e
“públicos”: comuns, pois cada indivíduo participa deles e “públicos, porque pertencem ao
todo dessa nação”. Dessa forma, o autor entende “público” como algo coletivo e unitário:
“Público é o que pertence ao todo da nação, povo ou cidade, considerada como pessoa
moral, debaixo da autoridade de um governo” 22.
Essas alterações no sentido da publicidade anotada na edição de 1831 tem início
com a Gazeta do Rio de Janeiro, como se procurou demonstrar, mas se desenrolam mais
efetivamente durante a década de 1820. A separação da publicidade das ideias de
autenticidade, promulgação e notoriedade, bem como o aumento considerável de
periódicos, folhas, manuscritos e cartazes, não são processos isolados. A percepção é que
a publicidade, que não estava mais sobre o controle das autoridades, ou ao menos não se
vinculava a elas diretamente, perde aquela autoridade recebida de maneira a priori. Com
ela, perde também sua força e certeza. Outro processo, contudo, contribui para substituir
e fundamentar a autoridade da publicidade, agora sob pressupostos relacionados a fatores
imanentes à própria condição de ser público. Refere-se a uma nova percepção sobre a
verdade.
Marco Morel em seu artigo sobre as Gazetas tradicionais anota uma passagem de
Voltaire, na qual este afirmava que “nem todas as verdades” estavam contidas nas
gazetas. Para Morel, o autor “se referia à verdade num dos sentidos mais peculiares da
filosofia, ou seja, o da justeza da visão de mundo”. Voltaire estaria apontando para o fato
de que as Gazetas “expressavam de algum modo suas respectivas visões de mundo”23. Tal
é a noção de verdade que gradualmente vai se tornando mais comum: a de que para se
chegar a ela é preciso conectar os pontos de vista, às diversas perspectivas, através de
discussão e debate. Essa noção já era comum nos círculos eruditos de Portugal desde o
22 SARAIVA, D. Francisco de São Luiz. Ensaio sobre alguns synonimos da língua portugueza. Lisboa:
Typografia da Academia Real das Sciencias, 2ª edição, 1824. p. 204-205.
23 MOREL, Marco. Op. Cit. 2009. p. 158.
século XVIII, através das obras de F. Bacon (Novum Organum - 1620) e Newton
(Philosophiae Naturalis Principia Mathematica – 1687), e constituía as bases do método
experimental em oposição ao método dedutivo24. Novamente, Francisco de São Luiz
Saraiva explicita essa noção por meio da distinção entre na verdade/na realidade:
Como porém o filosofo nada possa conhecer da realidade das coisas, senão
por meio das suas ideias; nada da realidade absoluta, mas só da realidade
relativa; nada em fim do que as coisas são em si mesmas, mas só do que são com respeito a nós, e aos nossos conhecimentos; daqui vem que usam
promiscuamente as duas expressões na verdade e na realidade, atribuindo
nós sempre ao objeto as propriedades, ou relações, que vemos claramente envolvidas nas ideias que deles fazemos25.
Na acepção de Saraiva, a realidade seria o “mundo real” e a verdade o “mundo
intelectual”. De qualquer forma, não se tratava da verdade como “razão informada” pelos
textos, princípios e doutrinas da Igreja, mas sim de uma verdade relativa, no sentido dos
pontos de vista e perspectivas em conexão. Após 1820 é relativamente comum encontrar
referências a esse tipo de “verdade” na imprensa brasileira, que não só dissemina esta
forma de pensar como, baseada nela, justifica um tipo de autoridade imanente à
publicidade. A forma relativa da verdade funda a autoridade da nova publicidade.
Em 1822, o periódico A Verdade Constitucional diz que apesar de gritar no
coração do homem “o amor da verdade e da justiça (...) o excesso de paixões a tem
ofuscado em uns e tornado odiosa em outros muitos homens”26. Já no Reverbéro
Constitucional Fluminense, como a liberdade de imprensa teria possibilitado “arrancar as
máscaras que disfarçam os vícios: como ela pôde mostrar no seu verdadeiro ponto de
vista, aquilo que até agora era encarado pelo microscópio das paixões e dos prejuízos”,
teriam aparecido “atletas a combater a liberdade de imprensa”27. Gradualmente, essa
discussão parece ir tomando mais forma. Nos finais da década de 1820 já aparece mais
claramente este ponto de inflexão da verdade. O periódico A Aurora Fluminense diz que
“muito diversa é a índole do Sistema Representativo, ele exige franqueza, e discussão,
24 ARAÚJO, Ana Cristina. A cultura das luzes em Portugal: temas e problemas. Lisboa: Livros Horizonte,
2003.
25 SARAIVA, Francisco de São Luiz. Op. Cit. 1824. P. 184-185.
26 A VERDADE CONSTITUCIONAL, 16 de março de 1822.
27 REVERBÉRO CONSTITUCIONAL FLUMINENSE, 15/11/1821. n. 5.
para que apareça a verdade, e não são os Constitucionais, nem os homens honestos, que
devem recear-se de semelhante prova”28. Em outra passagem diz que "muitas matérias se
deixam de discutir, e de produzir interesse, por não haver o choque de opiniões diversas e
opostas, que faz aparecer mais brilhante a verdade"29.
Procuro chamar a atenção para o fato de que no discurso constitucional liberal que
emerge a partir de 1820 no Brasil, concebia-se que para se chegar a “verdade” era preciso
superar as paixões, os ânimos individuais, os interesses particulares. O conceito de
público e a publicidade passam a desempenhar uma função específica e eficaz nesta nova
concepção sobre a verdade. A publicidade era fundamental, pois apresentava as diversas
perspectivas para a formação de uma verdade superior, cuja força residiria exatamente na
troca de perspectivas e no debate político. Ao mesmo tempo, se o particular e o individual
obscurecia a verdade, apenas o recurso ao público podia fundamentar essa verdade. Por
isso disse que a força da publicidade, e sua própria autoridade, passam a ser extraídas de
um fator imanente ao próprio conceito, e não por uma “autorização” ou “regulação”
dependente da posição social de quem publica. De uma publicidade usada como
ferramenta de retidão moral, a partir de verdades, valores e normas estabelecidas
previamente por autoridades políticas e eclesiásticas, ela se torna a própria ferramenta de
formação destas verdades, valores e normas, não mais exclusivamente nas mãos dessas
autoridades, mas sim através de “indivíduos iguais” que se associam voluntariamente
visando o “bem público”.
Elias J. Palti também encontra na alteração do conceito de verdade indícios para
explicar as inflexões do sentido da “opinião pública”. Segundo ele:
opinión pública deja, en fin, de aparecer como la premisa para convertirse en un resultado de la politiká (entendida como publicidad); ésta eleva la
pura opinión subjetiva (doxa) a convicción racionalmente fundada (ratio),
convierte la mera opinión en ‘opinión pública’30.
28 A AURORA FLUMINENSE, 30 de julho de 1828.
29 A AURORA FLUMINENSE, n. 171, 30 de março de 1829.
30 PALTI, Elías J. El tiempo de la política: el siglo XIX reconsiderado. 1ª Ed. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2007. p. 168.
Em outras palavras, a política entendida como “publicidade”, no sentido da troca
de opiniões e debate na formação da verdade, é elevada como pressuposto para a
existência da “opinião pública”. Aquela opinião ligada ao juízo particular, ao sentimento,
à incerteza, através da publicidade, se torna “opinião pública”. A associação da política
com a publicidade denota outra forma de pensar a teoria e a prática política. Nesta
concepção, a exclusividade do soberano nos assuntos de interesse geral, que justificava o
próprio “segredo” do exercício da política, é substituída pela ideia de que “qualquer um”
ou “todos” podem interferir nas decisões do governo, pois quanto mais “opiniões diversas
e opostas”, “mais brilhante” aparece a verdade. Pensando na tradução literal de
öffentlichkeit, trata-se da “aberturidade”. A “abertura” se torna o princípio que une a
publicidade e a política dentro do mesmo discurso. Nos termos Habermasianos, a função
da esfera pública/öffentlichkeit é mediar a relação entre sociedade civil e Estado. O que
pode ser compreendido, então, como a função de mediação que a publicidade exerce na
relação entre a sociedade e o poder.
Por fim, nesse mesmo período, e como consequência dessa abertura da
publicidade, aquilo que é tornado público passa a ter possibilidade de ser avaliado e
criticado pelo escrutínio do público. Este, dessa forma, torna-se um agente no processo.
“Comunicar”, “oferecer”, “apresentar ao Público”, é substituído por “aprovação do
Público”, “ao exame e crítica do Público”, “confiança pública”, “discussão pública”,
“submetida ao Público” e “execração Pública”. O público não só é “ansioso”,
“rancoroso” e “impaciente”, agora ele “obriga” os escritores a marcharem na causa da
constituição31 e também é capaz de ter e dar sua opinião.
Referências
Periódicos
A VERDADE CONSTITUCIONAL (1822)
AURORA FLUMINENSE (1827-1830)
GAZETA DO RIO DE JANEIRO (1808-1822)
REVERBÉRO CONSTITUCIONAL FLUMINENSE (1821-1822)
31 REVERBÉRO CONSTITUCIONAL FLUMINENSE, 15/11/1821, n.5.
Bibliografia
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accentuation of every word, containing several hundred german synonymes, together
with a classification and alphabetical list of the irregular verbs, and a list of abbreviations.
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1712-1727.
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Tempo Brasileiro, 2003.
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(Informação Verbal). Palestra intitulada “Um pouco de Grécia na Literatura Nacional”,
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2014. https://www.youtube.com/watch?v=V-Z6R5NI9ZA. (especificamente no minuto
37:20). Acessada em 27/10/2016.
MICHAËLIS, Henriette. Novo Diccionario da Lingua Portugueza e Allemã: enriquecido
com os termos technicos do commercio e da indústria, das sciencias e das artes e da
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