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Happy End (1967) como forma de experimentação da prática de ensino e o ofício do
historiador
VERÔNICA D’AGOSTINO PIQUEIRA* E DÂNGELA NUNES ABIORANA†
A maior parte dos livros didáticos de História segue uma cronologia linear, demarcando a
Guerra Fria logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Em muitos casos, esse recorte espera
facilitar a compreensão e o encadeamento de fatos diversos, inseridos em um contexto mais
amplo dentro da chamada “História Geral”. Essa abordagem, muitas vezes apresentada sem a
introdução de outras fontes, limita a noção de que os sentidos atribuídos a esses dois períodos
históricos são múltiplos. Nessa perspectiva, a mediação em sala de aula pode levar em
consideração não apenas a análise de interpretações diversas, como também desafiar conceitos
históricos mais tradicionais. Desse modo, o próprio conceito de “Segunda Guerra Mundial”
pode ser apresentado como objeto de reformulações constantes, dependendo da perspectiva
analisada.
Tomando como exemplo os russos e os eslavos, durante a permanência do regime soviético, o
mesmo período aparece nomeado como “Grande Guerra Pátria”. O que para nós encontra-se
como parte de um enfoque mais geral, para a história oficial soviética o tema é indissociável de
sua identidade nacional. Palco dos guetos, das frentes de batalha mais sangrentas e dos campos
de concentração, a noção de como a Segunda Guerra Mundial foi sentida na Europa Oriental,
muitas vezes escapa à nossa compreensão, como indica Daniel Aarão Reis Filho:
A União Soviética, sem dúvida, suportou o maior fardo da guerra. As estimativas de
perdas humanas alcançaram cerca de vinte milhões de pessoas (sete milhões de
soldados e treze milhões de civis). O contraste com as potências ocidentais é
revelador. Juntos, Estados Unidos, França e Inglaterra somaram 1,3 milhão de
mortos. Se o sofrimento humano de cada morte é insuscetível de comparações, a
medida do impacto social e econômicos das perdas nas respectivas sociedades é
mensurável, conferindo à União Soviética um lugar único na grande luta que a
* Verônica D’Agostino Piqueira é Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie. † Dângela Nunes Abiorana é Doutoranda em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie e bolsista através de programa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES).
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humanidade travou para abater o nazismo. [...] As estatísticas não mediam,
evidentemente, os traumas psicológicos, as neuroses adquiridas, as mutilações físicas
e espirituais, as patologias acumuladas... como estimá-las? Chagas que
permaneceriam como ferro em brasa, marcando aquela sociedade por gerações. Tão
logo a guerra acabou, e antes mesmo que se encerrasse, começaram, como sempre,
outras batalhas, historiográficas. (REIS FILHO, 2004, p. 105-106).
Inserida como um trecho, uma passagem, a ocultação dessas batalhas historiográficas também
restringe a percepção de significados atribuídos à construção narrativa sobre períodos históricos
posteriores, a exemplo da própria Guerra Fria.
Dessa forma, como a União Soviética [...] “naquela grande guerra que opusera a democracia e
a liberdade ao nazismo” (REIS FILHO, 2004, p. 106), formada por vários países satélites,
culturalmente e etnicamente diversos, comandados por Stalin com mãos de ferro, percebera o
conflito como a “Grande Guerra Pátria”? Ao mesmo tempo, como acontecimentos posteriores
poderiam indicar a natureza transitória das interpretações históricas, sua ponte do passado com
o presente, nos casos citados acima?
Esperando refletir essas questões, levantando novas perguntas, o caso da Checoslováquia será
abordado a partir da obra cinematográfica Happy End (1967) de Oldřich Lipský. Produzida
após o processo de desestalinização, momentos antes da Primavera de Praga, também se espera
que o sentido da narrativa, do tempo e do movimento, assim como a percepção variada de certas
permanências e rupturas nas abordagens históricas possam ser analisados.
Pensar a “Grande Guerra Pátria” como um importante componente que forjaria a sensação de
uma unidade nacional, fundamental para manutenção do regime soviético do pós-guerra,
levanta algumas questões na qual muitos historiadores afirmam, entre eles Tony Judt, que o
caso checo não entraria em choque, em um primeiro momento, com esses interesses:
Praga seria afável com Moscou pelo mesmo motivo que a levara a se aproximar de
Paris antes de 1938: porque a Tchecoslováquia era um país pequeno e vulnerável,
situado em plena Europa Central, e precisava de um protetor. Portanto, apesar de
ser, em vários sentidos, o mais ocidentalizado dos países do "Leste" europeu - com
uma cultura política historicamente pluralista, um importante setor industrial e
urbano, uma próspera economia capitalista (antes da guerra) e uma política
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socialdemocrata ocidentalizada (depois da guerra) -, a Tchecoslováquia, após 1945,
foi também a maior aliada da União Soviética na região, embora houvesse perdido o
seu distrito mais oriental (a Rutênia Cárpata), em decorrência dos "ajustes"
territoriais soviéticos. (JUDT, 2008, p. 241)
Nesse sentido, o forte vínculo que Oldřich Lipský (1924-1986) manteve ao longo da vida com
as expressões artísticas populares1 permitiria reexaminar os significados atribuídos à
determinados períodos históricos sob uma perspectiva ainda muito pouco explorada. Do mesmo
modo, incorporar as suas produções dentro de uma linha historiográfica, que considera os filmes
documentos históricos privilegiados2, auxilia a identificação dos “[..] pontos de ajustamento, os
das concordâncias e discordâncias com a ideologia, […] o latente por trás do aparente, o não-
visível através do visível” (MORETIN, 2007: p.41).
Bem-sucedido no cinema popular, com produções do começo da década de 1950 até o ano de
sua morte em 1986, Lipský retrata temas que se confundem com as principais questões da
Guerra Fria. Citando um desses casos, se na análise de Tony Judt sobre o pós-guerra a perda da
Rutênia Cárpata não encontrou grandes resistências, essa mesma questão será recuperada pelo
diretor no filme O Misterioso Castelo nos Cárpatos, de 1981.
A adaptação para o cinema de uma obra de Júlio Verne que retrata o uso de parafernálias
diversas no controle e vigilância de uma aldeia nos Cárpatos, assinalaria conflitos que ainda
não foram resolvidos entre russos, checos e outras etnias, desde o final da Segunda Guerra
Mundial. Do mesmo modo, sua recuperação em um período de crise adiantaria conflitos
geopolíticos, étnicos e culturais, aflorados com o processo de desintegração do regime.
Dessa forma, do começo ao fim da Guerra Fria, Lipský satiriza assuntos diversos que fizeram
parte do conflito dentro e fora da União Soviética. Em Hvezda jede na jih, de 1958, podendo
ser traduzido como A estrela está indo para o sul, o excesso de controle e a burocracia
encontrada no trânsito de passageiros entre os países satélites serve como pano de fundo para
1 Apesar da sua formação em Filosofia e Direito, antes do seu trabalho na indústria cinematográfica, Lipský
trabalhou em comédias satíricas nos teatros da cidade de Praga. 2 Esse dado parte da reflexão de Eduardo Morettin sobre o cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro.
Em sua análise “o filme age como um “contra-poder” por ser autônomo em relação aos diversos poderes da
sociedade. Sua força reside na possibilidade de exprimir uma ideologia nova, independente, que se manifesta
mesmo nos regimes totalitários, onde o controle da produção artística é rígido. [...]. Aliás, é por se manifestar dessa
forma que a obra cinematográfica constitui um documento privilegiado. […]”. (MORETIN, 2007, p.41)
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uma comédia que narra os encontros e desencontros da Grande Orquestra de Praga em viagem
para a Iugoslávia.
Em Muz z prvního století (Um homem do primeiro século, traduzido em inglês como Man in
Outer Space), um ano após Yuri Gagarin inaugurar as viagens para o espaço, um trabalhador
comum é enviado por engano para o mesmo local. Para surtir um efeito cômico, no encontro
do personagem principal com um alienígena, bem como no seu retorno à Terra no ano de 2447,
o diretor faz uso do contraste entre a realidade dos homens comuns com a representação dos
novos heróis nacionais, ou seja, os cosmonautas da União Soviética.
Seguindo a mesma linha, mesclando comédia com ficção científica, em Zabil jsem Einsteina,
panove de 1969 (Eu matei Einstein, cavalheiros) Lipský consegue satirizar até mesmo o medo
da bomba atômica, mas não deixando de elucidar outros medos do período, como a ruptura com
o modelo de família tradicional e a liberação feminina. Após a explosão de uma bomba
atômica, mulheres ficam barbadas e perdem a sua capacidade reprodutiva. As Nações Unidas,
também representadas no filme, esperam solucionar o problema construindo uma máquina do
tempo para assassinar Albert Einstein. Vale recordar que não faltam autores que relacionam o
advento da bomba atômica com um novo tempo, principalmente de rupturas e permanências
com a sociedade moderna. Apesar do conceito de Pós-moderno ainda ser bastante discutido, a
percepção de uma nova perspectiva, em novo tempo, também se faz presente nesse filme.
Por último, em seu filme mais famoso de 1967, uma paródia musical dos filmes de faroeste
americanos, “[…] o personagem principal, Lemonade Joe, sabe que perderá suas habilidades
como atirador se beber álcool e, para o entusiasmo do persistente movimento de temperança,
beber apenas limonada Kola-Loka3” (DAUM, 2014, p.70, tradução nossa).
Não faltam exemplos da genialidade do diretor. Em alguns casos, como em Lemonade Joe,
seus filmes desagradaram os censores de Moscou, que muitas vezes alegavam “[…] que os
espectadores soviéticos não identificavam a paródia contida nessas produções”. (RALEIGH,
2001, p. 133, tradução nossa). Isso não significou a saída de Lipský do cinema popular. Da
mesma maneira, seu envolvimento com a comédia satírica, não pertencendo aos movimentos
3 Lemonade Joe, intitulado Joe Kolaloka na Argentina, referência ao refrigerante Coca-Cola e ao imperialismo
americano
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considerados vanguarda na história do cinema, a exemplo da Nova Onda Tcheca, constituiu um
posicionamento acrítico diante dos acontecimentos de seu tempo.
A seleção de Šťastný konec, lançado mundialmente como Happy End, se justifica na medida
em que desconstruções diversas elaboradas pelo filme permitem refletir sobre o tempo, o
movimento e a narrativa. Trabalhando os mesmos temas que envolvem a prática de ensino e o
ofício do historiador, a crise das utopias elabora questões preciosas sobre o que julgamos ser o
princípio, o meio e o fim da humanidade, ou o princípio, o meio e o fim da própria História.
Vale destacar que no jogo entre a metafísica e a história, entre o passado o presente, a visão de
Lipský, dependendo do ponto de vista, se torna distante apenas geograficamente, ela também
reelabora desconfortos próprios de nossa sociedade, como assinala José Carlos Reis:
Ao longo do último milênio, os historiadores ocidentais manifestaram preocupação
constante com o destino de uma "humanidade universal". Aterrorizados com as
experiências cada vez mais frequentes e brutais de guerras e invasões, injustiças
sociais, epidemias, fomes, catástrofes naturais, interrogam-se obsessivamente sobre
a história universal, sobre o seu sentido, sobre o dever ser da humanidade, sobre a
perfectibilidade humana, que poderia realizar na história. Perguntas metafísicas
orientaram as reflexões e pesquisas históricas no Ocidente: "quem somos?", "para
onde vamos?", "para que viemos e qual será o nosso destino?", "como obter a
salvação? ”. Essas perguntas revelam uma angústia fundamental, a experiência de
um permanente mal-estar de ser-no-tempo. O Ocidente sofre com a própria ausência
e procura construir uma imagem global, reconhecível e aceitável, de si mesmo. A
cultura ocidental se interroga sobre sua identidade, que generaliza como problema
do homem universal. Esse esforço obsessivo para atribuir um sentido inteligível,
universal à "vida humana" se explica pelo fato de a cultura ocidental não possuir
uma identidade sem fissuras e de precisar justificar seu expansionismo pelo mundo.
Ela se esforça para se integrar, luta para reconhecer em sua totalidade, para poder
expandir com a legitimação de um discurso claro e distinto, irretorquível. (REIS,
2003: p.15)
É nessa perspectiva que também será analisado, a partir de uma fonte que ocupou a porção leste
do conflito, o happy ending dos dois lados de um mundo ainda bipolar.
O Happy Ending Checo
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O filme Happy End, de 1967, mostra a história do açougueiro Bedřich Frydrych (Vladimír
Menšík) do nascimento até a morte. Porém, ele se utiliza de um subterfúgio narrativo ao contar
sua história em ordem inversa. Se acompanhássemos a trajetória do protagonista em uma ordem
cronológica sequencial, estaríamos diante de uma trama de adultério, assassinato,
desmembramento, condenação e execução.
Ao apresentar a ordem dos eventos de forma inversa, o filme consegue um efeito cômico, de
humor negro, forçando seus espectadores a uma interpretação ambígua dos eventos. Dessa
forma, Bedřich nasce quando a lâmina da guilhotina une cabeça e corpo, e morre em seu parto.
Todo o filme se desenrola de trás para frente, mostrando as ações ao contrário, plano a plano.
Quanto ao diálogo, as respostas vêm antes de perguntas, que vêm antes da resposta anterior.
Assim como a historiografia questionou a elaboração de uma História mecanicista, linear,
fazendo frente principalmente ao Positivismo do século XIX, o filme também joga com os
problemas encontrados em estruturas narrativas aristotélicas (início, meio, fim). Em Happy
End, a percepção de uma cadeia linear de causas e consequências ganha um duplo sentido.
Dessa forma, o filme exige muita atenção do espectador, e embora seja divertido, poderia se
tornar cansativo se fosse muito além de seus 69 minutos.
Do mesmo modo, para dar sentido ao filme, um dos estratagemas usados pelo diretor é a
narração pelo personagem principal, que ajuda a construir e dar sentido a uma linearidade na
trama invertida. Nesse sentido, a narração não desorienta, mas reorienta. O protagonista está
sempre comentando o que é mostrado com uma voz suave que soa autêntica e ingênua, mas que
tem função irônica. Ao mesmo tempo que confere coerência aos eventos em ordem invertida,
cria novas situações risíveis. Muito da comicidade se faz presente no contraste entre o narrado
e o visualizado.
Nesse contexto, o realizador monta o enredo selecionando momentos da trajetória da vida do
protagonista que sejam relevantes na construção da história de seu crime, mas que também
consigam ocasionar um comentário cômico.
Em uma cena, por exemplo, se fossemos considerar o tempo progressivo, o protagonista é
acordado por dois carcereiros para ser se vestir e se preparar para sua execução, mas na forma
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como o filme se apresenta, vemos Bedřich devolvendo a roupa com a qual “nasceu” aos
carcereiros, que o ajudam a repousar na cama para dormir. Na sequência, com a ajuda da
narração, a rotina da penitenciária é apresentada pelo protagonista como um seminário com um
sistema de ensino sofisticado, onde um dos passatempos é devolver comida no refeitório.
Com esse recurso, que antecipa inclusive o final da trama, presente no próprio título do filme,
estaria Lipský, em plena Guerra Fria, satirizando dois discursos rivais que se identificavam com
a “busca pela felicidade” nos dois lados do conflito?
Nesse contexto, para a complexidade narrativa funcionar sem maiores problemas, Lipský
apresenta um enredo simples e fácil. Dessa forma, ao passo que o espectador consegue entender
o funcionamento da narrativa, começam a ser apresentadas uma progressão de situações
regressivas relativas à vida de Bedřich. Seu crime, matar e desmembrar sua esposa infiel se
transforma na montagem de uma esposa para si. Em outro momento, surge Pavlinka, uma filha
da qual ele não conseguia se lembrar quando nasceu, e que tem a capacidade de produzir
dinheiro através de uma fogueira. Com o tempo, eles perdem a menina, que desaparece dentro
do ventre de sua mãe, cuja barriga aos poucos se esvazia. Em outra situação, sua esposa passeia
no zoológico com o amante, e os animais lhes cospem pães inteiros, pedaço por pedaço. E,
quando fica infeliz, ele se descasa com a presença de um padre, e em seguida, joga sua esposa
em um prédio em chamas e segue sua vida.
Segundo Tzvetan Todorov,
Ao nível mais geral, a obra literária [assim como qualquer narrativa] tem dois
aspectos: ela é ao mesmo tempo uma história e um discurso. Ela é história, no sentido
em que evoca uma certa realidade, acontecimentos que teriam ocorrido, personagens
que, deste ponto de vista, se confundem com os da vida real. Esta mesma história
poderia ter-nos sido relatada por outros meios; por um filme, por exemplo; ou poder-
se-ia tê-la ouvido pela narrativa oral de uma testemunha, sem que fosse expressa em
um livro. Mas, a obra é ao mesmo tempo discurso: existe um narrador que relata a
história; há diante dele um leitor que a percebe. Neste nível, não são os
acontecimentos relatados que contam, mas a maneira pela qual o narrador nos fez
conhecê-los. (TODOROV, 1973, pg. 211)
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Do mesmo modo, ao ressignificar os acontecimentos de sua própria vida, Bedřich Frydrych não
se assume como um mero narrador, mas como autor da própria história, assumindo o seu
próprio discurso e intervindo na narração, abordando diretamente o espectador.
Em plena Era Brejnev, ainda sofrendo os reflexos do processo de desestalinização, a narrativa
do açougueiro permite elucidar os conflitos gerados pela desconstrução de mitos, executada de
cima para baixo, em constante disputa e negociação com as vítimas da história. Nesse jogo,
longe de conferir respostas imediatas à grande leva de ressentidos, a efervescência da década
de 1960 provocou os limites de todo esse processo histórico.
Do mesmo modo, interessante notar como a interação entre o narrador/personagem, diretor e
espectador, esbarra com questões bastante similares com aquelas encontradas pela prática de
ensino em história. Esse dado pode ser ilustrado por meio de algumas perguntas da obra
Professores de história: entre saberes e práticas de Ana Maria Monteiro:
Quanto à utilização da narrativa, muitas questões podem ser levantadas: os
professores, ao desenvolver suas aulas, agiam como narradores? Construíram
narrativas para "contar" a História que ensinaram? Ou trabalharam na perspectiva
da história-problema, problematizando e argumentando, criando oportunidades para
que seus alunos desenvolvessem suas argumentações? A construção discursiva
elaborada pode ser considerada narrativa? Como as aulas de História foram
construídas? Elas expressavam a concepção da História 'evenementielle' do século
XIX? Qual o domínio que os professores tiveram sobre sua elaboração? Ela resultou
de uma problematização? Ou elas foram a expressão da História processo-progresso
cujos nexos de causalidade são dados pela dimensão temporal, pela cronologia, de
forma aparentemente naturalizada? (MONTEIRO, 2007, p. 187)
No diálogo com o espectador, o diretor se aproxima da história-problema, aproveitando o meio
audiovisual de forma inovadora, permitindo ao espectador reelaborar a história, interpretando
a narração em voz com as imagens mostradas.
Do mesmo modo, Todorov comenta a importância dos formalistas russos para tornar explícita
a distinção entre os acontecimentos e seus relatos: “Chklovski declarava que a história não é
um elemento artístico, mas um material pré-literário; somente o discurso era para ele uma
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construção estética. [...] Entretanto os dois aspectos, a história e o discurso, são todos os dois
igualmente literários” (TODOROV, 1973, pg. 212).
Trazendo um novo questionamento, que muitas vezes reconhece a história como uma abstração,
seguindo a lógica de que ela não existe no nível de acontecimentos compartimentados, mas é
sempre percebida e narrada por alguém, Jacques Le Goff orienta logo no prefácio de Apologia
da História ou ofício do historiador:
Escutemos bem Marc Bloch. Ele não diz: a história é uma arte, a história é literatura.
Frisa: a história é uma ciência, mas uma ciência que tem como uma de suas
características, o que pode significar sua fraqueza, mas também sua virtude, ser
poética, pois não pode ser reduzida a abstrações, a leis, a estruturas. (BLOCH, 2002:
p.19)
E é em uma atmosfera de crise e efervescência na Checoslováquia, de transformação e resgate,
que novas reelaborações do passado buscam novos sentidos, questionando a própria noção de
tempo e de narrativa. Vale ressaltar o choque que esse novo tempo provocou em uma memória
oficial, que geralmente faz uso de uma narrativa mais geral, esperando forjar mitos e uma
identidade nacional única.
Produzido um ano antes da Primavera de Praga, Happy End não lida diretamente com temas
comuns na Nova Onda Tcheca. Ao lado das produções mais sérias da época, ele foi considerado
uma piada banal. No entanto, considerando o contexto político em que o filme surgiu, sua trama
denota um subtexto de alegria, liberdade e emoção, seguindo as intenções de Alexander Dubček
de abrandar a influência da Moscou soviética sobre o povo tcheco. Logo, longe de representar
apenas um filme sobre a vida de um prisioneiro, com as suas sequências apresentadas de forma
inversa, no experimento de Lipský somos levados perceber que “uma vez rompido o tabu, uma
vez que as memórias subterrâneas conseguem invadir o espaço público, reivindicações
múltiplas e dificilmente previsíveis se acoplam a essa disputa da memória” (POLLAK, 1989,
p. 5). A memória do açougueiro serve como uma metáfora das memórias em disputa durante a
desestalinização. O roteiro e abordagem narrativa confirmariam a emergência de novas
metodologias para a compreensão da realidade.
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Não perdendo de vista as diferenças entre um filme ficcional e a ciência histórica, mas
aproximando e relacionando objetos de análise em comum, percebemos que em Happy End o
personagem principal é também narrador, mas dentro de uma outra lógica, que na verdade
marcaria uma dupla narração: a do protagonista e a do próprio cineasta. Nesse contexto, a
importância do presente e o posicionamento do diretor também se fazem presente. E embora o
esforço narrativo de Lipský não seja ostensivamente político, ainda assim:
(...) pode ser interpretado como uma sátira tanto sobre a sociedade capitalista que
representa e (potencialmente) sobre a promessa marxista implícita de uma reversão
da injustiça social. Parte dessa ambiguidade, e muito do humor, está no uso de uma
simples inversão técnica para gerar novos significados a partir de um texto
previamente existente, sugerindo que a confusão pode de fato ser estendida para além
da ideia de uma simples reflexão invertida da realidade percebida. (ATTARDO,
2013, p. 397, tradução nossa)
Considerações Finais
Até os dias atuais, muitos opõem e hierarquizam as ciências naturais e as exatas frente às
humanidades. Entre as justificativas apontadas, como no caso das ciências naturais, o “acerto”
e a “verdade” se relacionam apenas ao primeiro campo do conhecimento, ressaltando por meio
do caráter empírico de suas análises, uma maior exatidão em suas conclusões.
Essa visão, bastante presente no senso comum, pauta algumas políticas públicas que incluem
muitas aulas dessas áreas do conhecimento no sistema de ensino em detrimento das disciplinas
de história, sociologia e filosofia. Outros tantos radicalizam, discutindo inclusive o fim do
ensino de algumas disciplinas das humanidades, concluindo erroneamente que os seus objetivos
se prestam apenas para o dogmatismo político e ideológico. De um extremo ao outro, escapa a
noção de que campos do conhecimento partem de metodologias distintas, com objetos variados.
Essa concepção simplista, reducionista, que transpõe a lógica de um saber para o outro sem as
devidas precauções, auxilia inclusive na reprodução desse equívoco. Do mesmo modo, não
permite desconstruir determinadas intenções, presentes em discursos que geralmente projetam
apenas nos outros, principalmente em representantes de alguma oposição política, a presença
de uma ideologia e um dogmatismo. Esse dado, sozinho, já poderia justificar a importância do
ensino e estudo da História.
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Mesmo com um significativo avanço na reflexão sobre a produção dos historiadores e o ensino
da história, ainda existe um grande distanciamento entre o que é produzido nas universidades e
de como as pessoas fora do âmbito acadêmico percebem essa área do conhecimento. Nesse
sentido, não importa a busca por uma verdade, mas o questionamento da própria verdade
apresentada, nem uma conclusão fixa no tempo e no espaço, mas a revisão contínua, a avaliação
e reavaliação de como percebemos o tempo passado no nosso tempo.
Tudo quanto se diz ou se escreve, tudo quanto se produz e se fabrica pode se tornar um objeto
de estudo no laboratório reflexivo da história. A forma como examinamos determinadas fontes
revela quem somos, os nossos interesses. Do mesmo modo, as representações que construímos
dos outros, como nós nos identificamos diante do mundo. Conhecer a história significa
conhecermos a nós mesmos. Como José Carlos Reis observa, a própria noção de como “O
Ocidente sofre com a própria ausência e procura construir uma imagem global, reconhecível e
aceitável de si mesmo” (REIS, 2003, p.15) merece ser avaliada.
A riqueza do trabalho junto aos documentos atesta não apenas a necessidade de construção de
fatos históricos importantes. Como exemplificou o exame da obra de Oldřich Lipský, serve
como um excelente pretexto para refletir e exercitar a desconstrução de paradigmas diversos,
capacidade que deveria ser considerada cara não apenas aos historiadores.
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Tradução: Maria Zélia Barbosa Pinto. Petrópolis: Editora Vozes, 1973.