henry giroux

Download Henry Giroux

If you can't read please download the document

Upload: thiago-gama

Post on 10-Aug-2015

28 views

Category:

Documents


3 download

TRANSCRIPT

O QUE PODE SIGNIFICAR A EDUCAO APS ABU GHRAIB: REVISITANDO A POLTICA DE EDUCAO DE ADORNO 1 Henry A. GIROUX* Traduo: Edison BARIANI** Traduo: Daniela Mendona RIBEIRO*** RESUMO: Como pode a educao ser usada para questionar o senso comum da guerra ao terrorismo ou para insu ar os cidados a desa ar as condies sociais, polticas e culturais que conduziram aos eventos horrveis de abusos contra prisioneiros iraquianos na priso americana de Abu Ghraib? S assim, de modo crucial, podemos ponderar os limites da educao. At que ponto as condies extremas causam curto-circuito em nossos instintos morais e em nossa capacidade de pensar e agir racionalmente? Se for esse o caso, qual nossa responsabilidade em desa ar o etos imprudente da violncia como primeiro recurso da administrao de Bush? Tais questes estendem-se alm dos eventos de Abu Ghraib, mas, ao mesmo tempo, Abu Ghraib fornece uma oportunidade para relacionar o tratamento sdico aos prisioneiros iraquianos tarefa de rede nir a pedagogia como uma prtica tica, s situaes nas quais a pedagogia acontece e s consequncias da pedagogia para repensar o signi cado da poltica no sculo XXI. A m de confrontar os desa os pedaggicos e polticos originados pela realidade de Abu Ghraib, quero revisitar 1 What Might Education Mean After Abu Ghraib: Revisiting Adornos Politics of Education, artigo publicado anteriormente em Comparative Studies of South Asia, Africa, and the Middle East, v.24, n.1, 2004. Tambm disponvel em . Este artigo uma verso revisada e bastante expandida de um artigo publicado em Cultural Studies, v.18, n.6, 2005. Eu gostaria de agradecer Susan Giroux, Roger Simon e Imre Szeman por suas leituras crticas e conselhos. * McMaster University Department of English and Social Studies. Hamilton Ontrio Canada. ** UNESP Universidade Estadual Paulista. Departamento de Sociologia Faculdade de Cincias e Letras. Araraquara So Paulo Brasil 14800-901 [email protected] *** UFSCar Universidade Federal de So Carlos. Programa de Ps-graduao em Educao Especial Centro de Educao e Cincias Humanas. So Carlos SP Brasil. 13565-905 danimribeiro@yahoo. com.br.178 Henry A. Giroux Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 um ensaio clssico de Theodor Adorno, no qual ele tenta abordar a relao entre a educao e a moralidade luz dos horrores de Auschwitz. PALAVRAS-CHAVE: Educao. Adorno. Auschwitz. Abu Ghraib. Representaes visuais da guerra tiveram um papel importante no desenvolvimento das percepes pblicas sobre a invaso e a ocupao do Iraque pelos Estados Unidos. A imagem inicial, muito festejada e amplamente usada para representar a guerra no Iraque, mostrava a esttua de Saddam Hussein, em Bagd, sendo posta abaixo logo aps a invaso. A segunda imagem, tambm dramtica e espetacular, retratava o Presidente Bush vestindo traje completo de aviador aps pousar no convs do USS Abraham Lincoln. O cenrio previsto para a fotogra a inclua um cartaz atrs do Presidente que dizia: Misso Cumprida. Os principais meios de comunicao apoderaram-se com prazer da primeira

imagem, uma vez que ela reforou a pressuposio de que a invaso era uma resposta justi cada ameaa, exageradamente divulgada, que o regime de Saddam fez aos Estados Unidos, e que a sua queda era o resultado de uma extenso da democracia americana e uma a rmao do papel desta como um imprio benfeitor, inspirada pelo [...] uso do poder militar para moldar o mundo de acordo com os interesses e valores americanos (STEEL, 2004, p.12-13). A segunda imagem, alimentada pelas representaes do roteiro, era de Bush como um valento, como um lder viril que assumiu um disfarce de guerreiro de Hollywood determinado a proteger os Estados Unidos de terroristas e a levar a guerra no Iraque a uma concluso rpida e bem-sucedida 2 . O estreito campo ideolgico que enquadrou essas imagens na mdia americana demonstrou vises inacessveis e dspares, exibindo uma profunda desconsiderao ao relato acurado e crtico, assim como uma indiferena em cumprir seu papel como um quarto estado, como guardies da democracia e defensores do interesse pblico. Relatando a guerra servilmente, como se estivessem na folha de pagamento do Pentgono, a mdia dominante raramente questionou as razes administrativas de Bush para ir guerra, nem o impacto que a guerra teria no povo iraquiano e na poltica nacional e exterior. Na primavera de 2004, um novo conjunto de imagens desa ou as representaes mticas da invaso do Iraque: centenas de fotografias e de vdeos horrendos documentaram a tortura dos prisioneiros iraquianos pelos soldados americanos em Abu Ghraib. Eles foram primeiramente exibidos na srie de televiso 60 Minutes II e depois vazaram para a imprensa, tornando-se uma atrao televisiva noturna 2 Para um interessante comentrio sobre como a assessoria de imprensa de Bush tentou enaltecer a pessoa do Presidente por meio de uma iconogra a conservadora, superestimulando sua machoflica masculinidade, ver Goldstein (2003).179 O que pode signi car a educao aps Abu Ghraib:revisitando a poltica de educao de Adorno Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 nas semanas e nos meses que se sucederam. A priso de Abu Ghraib foi um dos mais notrios locais usados pelo regime deposto de Hussein para in igir horrores indescritveis aos iraquianos considerados descartveis por diversas razes polticas, e as fotos ironicamente reforaram a percepo crescente no mundo rabe de que um tirano estava simplesmente substituindo outro. Havia um forte contraste entre as imagens muito familiares e o cialmente sancionadas de soldados americanos de bom corao patrulhando vizinhos iraquianos perigosos, cuidando de soldados feridos ou entregando doces a crianas iraquianas, e, por outro lado, as fotos recmdescobertas que retratavam os detentos iraquianos sendo humilhados e torturados. O retrato da invaso americana logo foi substitudo por imagens sdicas, incluindo as fotos infames que mostravam as faces inspidas e sorridentes do especialista Charles A. Graner e da recruta de primeira classe Lynndie R. England, fotografados fazendo sinal de positivo atrs de uma pirmide de sete detentos nus, um recluso ajoelhado posando como se estivesse fazendo sexo oral em outro detento encapuzado, um recluso iraquiano apavorado tentando desviar do ataque de um cachorro comandado por soldados americanos e um soldado americano sorrindo prximo ao corpo de um detento embalado em gelo. Duas das imagens mais assombrosas retratavam um homem encapuzado em p em uma caixa, com seus braos estendidos como Jesus Cristo e os eltricos presos s suas mos e a seu pnis. A outra imagem revelava uma sorridente Lynndie England segurando uma coleira presa a um homem iraquiano nu, estendido no cho da priso. Como o infame retrato de Dorian Gray, de Oscar

Wilde, o retrato do patriotismo americano estava irrevogavelmente transformado em seu oposto. A luta por coraes e mentes iraquianos estava irreparavelmente prejudicada, visto que a guerra contra o terror parecia reproduzir apenas mais terror, mimetizando os mesmos crimes que a rmava ter eliminado. Como Susan Sontag ressalta, as fotogra as que vazaram incluem ambos, as vtimas e seus deleitados captores. Para Sontag (2004, p.26-27), as imagens de Abu Ghraib no so apenas [...] representativas da corrupo fundamental de qualquer ocupao estrangeira e suas polticas distintas que servem como uma receita perfeita para as crueldades e crimes nas prises americanas [] [mas so tambm] retratos de linchamento e so tratadas como suvenires de uma ao coletiva. Evocativas das fotos tiradas pelos brancos que lincharam negros aps a Reconstruo, as imagens circularam como trofus a serem divulgadas e enviadas aos amigos. Para Sontag e outros, Abu Ghraib no poderia ser compreendida fora do racismo e da brutalidade que acompanharam o exerccio quase descontrolado e irresponsvel do poder absoluto, na ptria e no exterior. Similarmente, Sidney 180 Henry A. Giroux Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 Blumenthal argumenta que Abu Ghraib foi uma consequncia previsvel da administrao de Bush e sua forma de lutar contra o terrorismo, criando um sistema alm da lei, para defender o papel da lei contra o terrorismo. Uma consequncia de tal postura obscenamente irnica, como ele enfatiza, um Gulag: [...] que se estende desde prises no Afeganisto ao Iraque, de Guantanamo as prises secretas da CIA em todo o mundo. H, talvez, 10.000 pessoas detidas no Iraque, 1.000 no Afeganisto e quase 700 em Guantanamo, mas ningum sabe os nmeros exatos. A lei que se aplica a eles aquela que o executivo considerar necessria. No h nada como esse sistema desde a queda da Unio Sovitica. (BLUMENTHAL, 2004). medida que o tempo passou, tornou-se claro que as ocorrncias de abuso e de tortura que aconteceram em Abu Ghraib foram extensivas, sistmicas e parte de um padro mais amplo de comportamento criminoso observado em outras prises no Iraque e no Afeganisto para no mencionar as prises na frente de batalha domstica. 3 Padres de maus tratos por parte de soldados americanos tambm foram observados no Campo Bucca, um centro de deteno dos EUA no sul do Iraque, assim como em centros de interrogatrio ultramarinos na base area Bagram, no Afeganisto, onde a morte de trs detentos foi registrada como homicdio por mdicos militares dos EUA4 . A evidncia mais constrangedora, que refuta o argumento de que o que aconteceu em Abu Ghraib foi o resultado de aes isoladas de poucos indivduos que se desviaram do protocolo, decifrada por Seymor Hersh (2004a), em seu artigo no New Yorker, no qual analisou o relatrio con dencial de 58 pginas do Major General Antonio Taguba, que investigou os abusos em Abu Ghraib. No relatrio, Taguba (apud HERSH, 2004a, p.40) insistiu que uma imensa falha de liderana em Abu Ghraib foi a responsvel pelo que descreveu como abusos criminais sdicos, gratuitos e lascivos (TAGUBA apud POUND; ROANE, 2004). Taguba no apenas documentou exemplos de tortura e de humilhao sexual, mas tambm listou uma srie de indignidades, que incluam: [...] quebrar lanternas fosforescentes e jogar o lquido fosfrico nos detentos; despejar gua gelada nos detentos nus; bater nos detentos com um cabo de vassoura

3 Por enquanto eu no posso nomear todas as fontes tericas relevantes que teorizam sobre a natureza tica da tortura ou seu uso pelos militares americanos, algumas contribuies recentes incluem: Hersh (2004b), Danner (2004a, 2004b, A. Lewis (2004b). 4 Ver Pound e Roane (2004), ver tambm o editorial do The Nation. A degradao dos prisioneiros em Abu Ghraib tem sido to difundida que a nudez forada foi vista como um fenmeno comum tanto por militares quanto por detentos, ver Zernike e Rohde (2004). 181 O que pode signi car a educao aps Abu Ghraib:revisitando a poltica de educao de Adorno Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 e uma cadeira; ameaar os detentos homens de estupro; permitir que um guarda policial militar suturasse um detento ferido aps ter sido jogado contra a parede de sua cela; sodomizar um detento com uma lanterna fosforescente e, talvez, com um cabo de vassoura, e incitar ces militares ao ataque para amedrontar e intimidar detentos e, em uma ocasio, para efetivamente morder um detento (TAGUBA apud HERSH, 2004b, p.43) 5 . O relatrio de Taguba no apenas revela cenas de abusos mais sistmicos que aberrantes, mas tambm tragicamente familiar a comunidades de cor do fronte domstico, por muito tempo sujeitas estigmatizao, perseguio, intimidao e brutalidade por parte de pro ssionais da lei e da ordem. A poltica do atraso e do abuso Respostas de todo o mundo mostraram irritao e repugnncia em relao s aes dos EUA em Abu Ghraib. A retrica da democracia americana foi denunciada em todo o globo como hipcrita e absolutamente propagandstica, especialmente luz das observaes do Presidente Bush, em 30 de abril de 2003, ao a rmar que, com o afastamento de Sadam Hussein, [...] no h mais cmaras de tortura ou sepulturas em massa ou salas de estupro no Iraque (BUSH apud HAJJAR, 2004, p.12). A liberao tardia do novo conjunto de imagens dos soldados americanos sorrindo enquanto torturavam e humilhavam sexualmente os prisioneiros iraquianos em Abu Ghraib enfraqueceu a credibilidade moral e poltica dos EUA no mundo rabe e em todo o globo. Recuperar uma das cmaras de tortura mais infames de Saddam Hussein para seu uso original reforou a imagem dos EUA como um Estado perigoso e desonesto, com ambies desprezveis e imperiais. Como a rma a colunista Katha Pollitt (2004, p.9), As imagens e histrias [de Abu Ghraib] tm, naturalmente, causado fria em todo o mundo. Elas no so apenas grotescas, elas reforam a impresso preexistente de que os americanos so racistas, cruis e frvolos. Elas so destinadas a alienar mais ainda os iraquianos que tinham a esperana de que a invaso conduziria a uma democracia secular e a uma vida normal, e que temiam o domnio islmico. No exterior, seno aqui no pas, elas sublinham, em primeiro em lugar, quo estpida e errada foi a invaso do Iraque, e quo previsivelmente a guerra escolhida, que era pra ser algo muito tranquilo, tornou-se uma ocupao brutal e corrupta, 5 Seo do Relatrio de Taguba (apud HERSH, 2004b, p.43), como cou conhecido o inqurito militar sobre os abusos contra os prisioneiros de Abu Ghraib, conduzido pelo General Antonio Taguba.182

Henry A. Giroux Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 justi cada por uma doutrina de excepcionalismo Americano na qual ningum, alm dos americanos, acredita. Mas Abu Ghraib fez mais do que inspirar repulsa moral, tambm serviu como clamor e incentivo para recrutar extremistas radicais, assim como para produzir uma oposio legtima ocupao Americana. De um lado, a imagem do detento sem face, encapuzado, braos estendidos e ligados a os eltricos, evocava as imagens da Inquisio Espanhola, da brutalidade Francesa aos Argelinos e do massacre de pessoas inocentes em My Lai durante a Guerra do Vietn. A retrica da democracia Americana foi totalmente prejudicada e deu lugar ao discurso mais realista do imprio, da colonizao e da militarizao. Por outro lado, as imagens lanaram uma luz crtica sobre a frequentemente ignorada conexo entre a dominao Americana no exterior, muitas vezes direcionada aos pobres e despossudos, e no pas, principalmente, contra pessoas de cor, incluindo o linchamento de negros americanos na primeira metade do sculo XX, assim como o encarceramento cada vez mais brutal, que persiste no novo milnio, de um grande nmero de jovens de cor. Patricia Williams (2004) relaciona o abuso criminal na priso de Abu Ghraib rede de sigilo, violao dos direitos civis e violncia racista que tem se tornado comum no fronte domstico. Ela escreve: terrivelmente difcil olhar para aqueles capuzes e no pensar na Inquisio; ou para as pilhas dos homens nus e sodomizados e no pensar em Abner Louima; ou para os cadveres espancados e no pensar em Emmett Till [] Essa imundcie o subproduto previsvel de qualquer autoridade que comea varrendo os bandidos e os mantendo sem acusao, na solitria e em segredo, e os tomando como culpados. Floresceu, alm do alcance de qualquer scalizao do Congresso, de advogados ou do judicirio, uma condio vagamente racionalizada como consistente com, seno precisamente de acordo com a Conveno de Genebra. Prisioneiros ensanguentados foram removidos para evitar a scalizao de observadores internacionais, uma maneira muito disciplinada de limpeza (WILLIAMS, 2004, p.10). s atrocidades no exterior combinaram-se as respostas frequentemente simples, seno grosseiras, dos envolvidos, tantos nos quartis militares como nos escritrios de Washington. Para os grandes pregadores da responsabilidade pessoal foi um estudo de como transferir a culpa para os outros. O Presidente Bush respondeu a rmando que o que aconteceu em Abu Ghraib no foi nada mais que uma conduta vergonhosa de poucas tropas Americanas (BUSH, 2004). O general Richard Myers (apud MONIZ; SQUITIERI, 2004, p.13A), chefe do Estado-maior das Foras 183 O que pode signi car a educao aps Abu Ghraib:revisitando a poltica de educao de Adorno Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 Armadas, sugeriu que foi trabalho de um punhado de indivduos alistados. Mas a a rmao de que o Pentgono desconhecia os incidentes de Abu Ghraib estava em desacordo com os relatos da Cruz Vermelha Internacional que, regularmente, avisava o Pentgono sobre tais abusos. Posteriormente, tal a rmao foi contraditada pelo relatrio do General Taguba, assim como por uma srie de memorandos que vazaram para a mdia e que indicavam que a Casa Branca, o Pentgono e o Departamento de Justia tentaram (dois anos antes da invaso) justi car as prticas de interrogatrio que violavam o estatuto federal antitortura. Um dos tais memorandos foi escrito em agosto de 2002 pelo ProcuradorGeral Assistente Jay S. Bybee (apud LEWIS, A., 2004a, p.8), chefe do departamento de assessoria jurdica. Nesse memorando, ele argumentou que, no mundo ps 11 de setembro, qualquer tentativa de aplicar a lei criminal contra a tortura e

sob a Conveno de Genebra enfraqueceria o poder presidencial e deveria ser considerada inconstitucional. Mais especi camente, o memorando de Bybee argumentou em nome do Departamento de Justia, que o Presidente podia ordenar o uso da tortura. Alberto Gonzalez, Advogado-Geral da Unio, argumentou em um rascunho do memorando ao Presidente Bush, em 25 de janeiro de 2002, que a Conveno de Genebra pitoresca, seno obsoleta, e que certas formas de mtodos tradicionalmente no-autorizados de in igir dor fsica e psicolgica podem ser justi cadas sob a gide da luta contra o terrorismo 6 . Anthony Lewis, ao comentar o memorando, a rma: Ele acredita que qualquer tratado pode ser rejeitado por ser inconveniente ao Governo Americano? (LEWIS, A., 2004a, p.6). De fato, uma srie de memorandos con denciais produzidos pelo Departamento de Justia a rmaram que a administrao no comprometida com proibies contra a tortura (LEWIS, N., 2004).Um memorando do Departamento de Defesa, na mesma linha, fez eco tentativa calculada de incorporar a tortura como parte dos procedimentos de interrogatrio, em oposio aos protocolos internacionais. O jornal The Wall Street relatou em 07 de junho de 2004 que aqueles memorandos tentaram dar ao Presidente autoridade virtualmente ilimitada no que se refere tortura (BRAVIN, 2004). Exercitando certo grau de licena retrica ao de nir a tortura em termos estreitos, eles acabaram legitimando prticas de interrogatrio que contrariavam a Conveno de Genebra Contra a Tortura e o Manual de Campo para inteligncia das Foras Armadas americanas, que probe: O uso da fora, tortura mental, ameaas, insultos ou exposio a tratamentos desagradveis e desumanos de qualquer tipo 7 . Em reviso posio governamental na questo da tortura, Anthony Lewis escreve: 6 O memorando pode ser encontrado em . Acesso em: 20 ago. 2004. 7 Ver o captulo um do manual INTERROGATION AND THE INTERROGATOR (2004). 184 Henry A. Giroux Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 Os memorandos lidos parecem um conselho de um advogado a um lder da m a sobre como contornar a lei e se manter fora da priso. Evitar acusaes legais literalmente um tema do memorando [] Outro tema, ainda mais incmodo, que o Presidente pode ordenar a tortura de prisioneiros, embora seja proibida por um estatuto federal e por uma conveno internacional contra a tortura, da qual os Estados Unidos fazem parte [] as questes levantadas pelas a rmaes da administrao de Bush em sua guerra ao terror so to numerosas e problemticas que algum di cilmente sabe como comear a discuti-las. A tortura e a morte dos prisioneiros, o resultado nal indiferente s abstraes legais, tem um poderoso crdito em nossa conscincia nacional [] Mas igualmente incmodo o argumento constitucional da administrao de que o poder presidencial livre da lei (LEWIS, A., 2004a, p.4-6). Ambos, John Ashcroft e o Secretrio de Defesa Donald Rumsfeld, negaram qualquer envolvimento da administrao Bush tanto em fornecer sanes legais para a tortura quanto em criar as condies que tornaram os abusos de Abu Ghraib possveis. Ashcroft recusou o pedido da Comisso de Justia do Senado para tornar

pblico o memorando de 2002 do Departamento de Justia, que sancionou tticas de interrogatrio de alto risco que podiam violar o estatuto federal antitortura, embora repetisse insistentemente que a administrao no sancionou a tortura. Quando o escndalo de Abu Ghraib invadiu a mdia pela primeira vez e os reprteres comearam a lhe perguntar sobre o relatrio de Taguba, Rumsfeld a rmou no o ter lido. Quando os reprteres questionaram sobre a acusao de Seymor Hersh de que Rumsfeld aprovou pessoalmente um programa clandestino conhecido como SAP, o qual encorajou a coero fsica e a humilhao sexual dos prisioneiros iraquianos na tentativa de gerar mais conhecimento sobre a crescente insurgncia no Iraque, o Porta-voz do Pentgono, Lawrence Di Rita, respondeu chamando o artigo de Hersh de bizarro, conspiratrio e recheado com erros e conjeturas annimas (ASSOCIATED PRESS, 2004). Ao mesmo tempo, Di Rita no refutou diretamente nenhuma das a rmaes de Hersh. Quando confrontado diretamente a respeito da acusao de que havia autorizado um programa secreto que dava carta-branca para matar, torturar e interrogar alvos de grande valor, Rumsfeld encenou um malabarismo semntico que teria feito Bill Clinton (apud FOLKENFLIK, 2004) corar. Ele disse aos reprteres: Minha impresso que o que estava sendo mencionado at agora era abuso, o que eu acredito que seja tecnicamente diferente de tortura [] Eu no sei se se correto dizer o que voc acabou de dizer, que tem ocorrido tortura ou 185 O que pode signi car a educao aps Abu Ghraib:revisitando a poltica de educao de Adorno Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 que h uma prova de que tenha havido tortura. E, portanto, no vou me referir palavra tortura. Mas o descaso de Rumsfeld com a Conveno de Genebra e os protocolos militares estabelecidos tornou-se pblico logo depois que a guerra ao terror foi lanada em 2001. Desprezando uma mquina militar moldada por velhas regras, Rumsfeld (apud HERSH, 2004a, p.41) declarou que eles preveniram os militares e sua liderana a respeito de correr riscos maiores. Em 2002, ele foi to longe a ponto de a rmar que [...] as reclamaes sobre o tratamento dos americanos aos prisioneiros [] remontavam a bolses isolados de hiper-ventilao internacional (RUMSFELD apud HERSH, 2004a, p.41). Posteriormente, uma srie de fontes de notcias, incluindo o Wall Street Journal e Newsweek, relataram que Rumsfeld realmente apoiou tcnicas de interrogatrio, contra o Taliban e contra prisioneiros iraquianos, que violavam a Conveno de Genebra. Como os fatos que envolviam os abusos emergiram tardiamente na mdia dominante, ele admitiu que foi responsvel por esconder detentos fantasmas da Cruz Vermelha e a rmou, antes da Comisso do Senado, que assumiria a culpa por Abu Ghraib, mas recusou a se resignar. O que cou claro, logo depois que o escndalo de Abu Ghraib tornou-se pblico, foi que no podia ser reduzido a uma falha de carter de uns poucos soldados, como insistia George W. Bush. Em junho de 2004, ambos, New York Times e Washington Post, revelaram ainda mais histrias que documentavam o uso de prticas semelhantes tortura pelos soldados americanos, que sujeitavam os prisioneiros ao assdio de ces militares sem focinheira como parte de uma competio travada para ver quantos detentos eles poderiam fazer urinar involuntariamente de medo dos ces (WHITE; HIGHAM, 2004, p.A01) e obrigavam os detentos a car nus em caixas e cantar o Hino Nacional Americano, The Star Spangled Banner. Ambas as tticas ocorreram muito antes de as famosas fotogra as serem tiradas em Abu Ghraib (ZERNKE; ROHDE, 2004, p.A11).Longe de serem travessuras de meninos da fraternidade, s quais apologistas comparam a tortura, esses atos foram planejados para in igir danos mximos mirando detentos cuja cultura v a nudez como uma

violao dos princpios e associa a nudez pblica vergonha e culpa. Igualmente perturbador o Comit Internacional da Cruz Vermelha estimar que setenta a noventa por cento dos detentos presos pelas tropas de coalizo foram capturados por engano e no tinham nada a ver com o terrorismo (DROGIN, 2004). Pior ainda, desde a liberao das fotos iniciais, um novo conjunto de fotogra as recentes e sequncias de lmes de tortura em Abu Ghraib e em outras prises no Iraque incluem detalhes de estupro e [...] abuso de algumas mulheres iraquianas e de centenas de crianas algumas de aproximadamente 10 anos de idade (MCGOVERN, 2004). Um depoimento fornecido pelo sargento do exrcito 186 Henry A. Giroux Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 Americano Samuel Provance, que estava lotado na priso de Abu Ghraib, lembra como os interrogadores encharcaram um jovem de 16 anos, cobriram-no de lama e, ento, usaram seu sofrimento para dominar o pai do rapaz, tambm prisioneiro, durante o interrogatrio (MCGOVERN, 2004). Uma investigao do exrcito tambm revelou, como mencionado anteriormente, que ces militares sem focinheira eram utilizados na priso de Abu Ghraib como parte de um jogo sdico usado para fazer com que jovens de 15 anos de idade urinassem neles mesmos como parte de uma competio (WHITE; RICKS, 2004, p.A01). O abuso lascivo dos detentos iraquianos (incluindo crianas), os esforos dos mais altos nveis da administrao de Bush para estabelecer novas bases legais para a tortura e o uso de prestadores de servio particulares para fazer o trabalho sujo de interrogar os detentos para contornar o que claramente uma abdicao da lei civil e militar, so evidncias de um conluio sistmico, generalizado, do Governo Americano com crimes contra a humanidade. Apesar das a rmaes da administrao de Bush de que tais abusos eram trabalho de uns poucos soldados canalhas, certo nmero de inquritos de uma comisso de alto nvel, especialmente os quatro membros da Comisso Schlesinger, concluiu que os abusos em Abu Ghraib apontam para falhas de liderana dos [...] mais altos nveis do Pentgono, do Comando das Foras Armadas e do Comando Militar no Iraque (SCHMITT, 2004, p.1).Tais relatos, assim como as frequentes revelaes da extenso do abuso e da tortura perpetuados no Iraque, no Afeganisto e nas prises Americanas, fazem mais do que promover escndalos morais em relao s crescentes injustias praticadas pelo Governo Americano. Elas tambm classi cam os Estados Unidos como um dos regimes mais embusteiros, que compartilha como aponta um editorial do The Washington Post da companhia de juntas militares anteriores na Argentina e no Chile [] que a rma[ra]m que a tortura justi cada quando usada para combater o terrorismo (TALKING POINTS, 2004; LEGALIZING..., 2004, p.A20). Apesar das extensas provas fotogr cas, relatos internos, internacionais e descries jornalsticas que revelaram egrgia brutalidade, racismo e desumanidade por parte dos soldados americanos contra os prisioneiros rabes, especialistas conservadores tiraram seus exemplos da Casa Branca, tentando justi car tais atos detestveis e defender a usurpao do poder presidencial pela administrao de Bush. Idelogos de direita poderosos, como Rush Limbaugh e Cal Thomas, defenderam tais aes como uma maneira simples de jovens (sic) desabafarem, engajarem-se em formas inofensivas de trotes da fraternidade ou dar aos prisioneiros Muulmanos o que eles mereciam. Mais ofensivo do que as atitudes indiferentes dos lderes foi o disfarce de autoridade moral e de afronta dos apresentadores de televiso que se ressentiram com aqueles que ousaram criticar Bush ou seu exrcito em um momento de guerra. O Presidente da Cmara dos Deputados Newt Gingrich e o 187 O que pode signi car a educao aps Abu Ghraib:revisitando a poltica de educao de Adorno Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010

senador republicano James Inhofe insistiram que chamar a ateno para tais crimes no apenas enfraquecia a moral da tropa no Iraque, mas tambm era profundamente antipatritico. Na verdade, ao ouvir que ele estava ofendido pela injria que todos pareciam manifestar em relao ao tratamento desses prisioneiros, Inhofe a rmou publicamente na Comisso do Senado para as Foras Armadas: Eu tambm estou ofendido com a imprensa, com os polticos e com as agendas polticas que tm de ser cumpridas em relao a isso [] Eu tambm estou ofendido porque, agora, temos tantos benfeitores humanitrios rastejando em todas essas prises e procurando por violaes dos direitos humanos, enquanto nossas tropas, nossos heris, esto lutando e morrendo (SOLOMON, 2004). O fato de que muitos desses prisioneiros iraquianos eram civis inocentes apanhados em varreduras indiscriminadas pelo exrcito dos Estados Unidos, e que as tropas Americanas estavam operando uma cmara de horrores em Abu Ghraib era simplesmente irrelevante, e os protestos contra tais injustias apenas forneciam pretexto para silenciar as crticas, denominando-as antipatriticas ou para servir de bode expiatrio para a mdia liberal. Inhofe fornece um timo exemplo de como a poltica corrompida por um perigoso etos de direito divino informado pelo mito do excepcionalismo Americano, e um fervor patritico que despreza a divergncia sensata e a crtica moral. A arrogncia de Inhofe deveria ter sido desa ada com o encerramento do dilogo e censurada pela maneira vulgar com a qual convida os americanos a identi car a violncia dos autores. Outros conservadores, como o envolvido no caso Watergate e agora regenerado pregador Charles Colson, Robert Knight (do Culture and Family Instititue) e Rebecca Hagelin (vice-presidente da Fundao Heritage), assumiram uma altivez moral, culpando a libertinagem da cultura popular sobre o que aconteceu em Abu Ghraib. Invocando a linguagem cansativa das guerras culturais, Colson argumentou que os guardas das prises foram corrompidos por uma dieta regular de MTV e pornogra a. Knight argumentou que a depravao exibida em Abu Ghraib foi modelada a partir de pornogra a gay, o que deu ao pessoal do exrcito a idia para engajar-se em atividade sadomasoquista e registr-la de maneira voyeurista. Rebecca Hagelin viu o escndalo na priso como o resultado de um desleixo moral generalizado, no qual nosso pas permite que Hollywood coloque quase tudo em um lme e ainda chama isso de PG-13 (imprprio para crianas menores de 13 anos) 8 . Para aqueles apoiadores ligados rede de Bush que queriam mais do que culpar Hollywood, pornogra a, MTV, horrio nobre da televiso e (no menos) a 8 Todos esses exemplos so citados por Rich (2004, p.AR1).188 Henry A. Giroux Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 cultura gay, as imagens escandalosas foram vistas como a fonte do problema em virtude da natureza ofensiva de seu contedo e da controvrsia que geraram. Apesar das colossais imprecises (aparentemente deliberadas) dos fatos que levaram guerra no Iraque e do fundamentalismo neo-conservador e cristo que guiavam a Presidncia de Bush e suas polticas desastrosas no pas e no exterior, a credibilidade de Bush permaneceu intacta para muitos conservadores. Consequentemente, eles ignoravam as condies subjacentes que levaram aos abusos horrveis em Abu Ghraib, removendo-os do inventrio de prticas antiticas e prejudiciais associadas ao excepcionalismo e triunfalismo Americano. Portanto, eles ignoravam a desastrosa e sem m guerra ao terrorismo de Bush e como essa falhou em proteger a populao Americana no pas, enquanto sancionavam guerras

no exterior que foram usadas para: proporcionar instrumentos para os terroristas Islmicos; a doutrina de sigilo e irresponsabilidade de Bush 9 ; a suspenso de liberdades civis bsicas por Bush sob o Ato Patriota dos Estados Unidos e seu desejo de incluir alguns supostos terroristas sob a designao de combatentes inimigos para retirar-lhes a proteo da lei; e o completo assalto, por parte da administrao Bush, s garantias do contrato social e de bem-estar pelo Estado 10 . Considerar a Presidncia de Bush sacrossanta e, dessa maneira, inexplicvel e acima do compromisso pblico permite que os conservadores convenientemente negligenciem sua prpria cumplicidade em favorecer as relaes de poder existentes e as polticas que permitiram os eventos desumanos de Abu Ghraib. Nesse discurso apologtico, questes de responsabilidade individual e coletiva desaparecem em um turbilho de hipcritas e estratgicas manobras diversionistas. Como coloca Frank Rich (2004,p. AR1, AR16): O ponto central dessa estratgia poltica repressiva e uma estratgia poltica, apesar da quase religiosidade de seus adeptos bvio o bastante. No meramente demonizar gays e a usual galeria desonesta de bichos-papes seculares por qualquer a io Americana, mas inocentar a administrao de Bush de qualquer culpa em relao a Abu Ghraib e ao desastre que pode ter destrudo a misso no Iraque. Se pornogra a ou a MTV ou Howard Stern pode ter induzido umas poucas mas podres a comportarem-se mal em uma priso, ento, todos os outros que estavam no comando, do Comandante Supremo para baixo, no tm culpa. Se a guerra de cultura estiver em linha cruzada com a guerra real, ento, o fanfarro 9 O nvel de sigilo empregado pela administrao Bush tanto perigoso quanto absurdo. Por exemplo, alguns indivduos foradamente aprenderam que se eles tentassem comparecer a uma reunio marcada pelo Vice-Presidente Dick Cheney no Rancho Mid-High School, no Novo Mxico, no nal de semana de 30 de julho de 2004, no poderiam ter passes para a reunio sem assinarem um termo de garantia de aliana com o Presidente George W. Bush. Ver Jones (2004, p.1). 10 Muitas dessas questes foram desenvolvidas detalhadamente em Giroux (2004).189 O que pode signi car a educao aps Abu Ghraib:revisitando a poltica de educao de Adorno Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 no vai parar no Pentgono ou na Casa Branca, mas no vdeo de Paris Hilton, ou em Mean Girls, ou talvez em Queer Eye for the Straight Guy 11 . Quando se tenta reconciliar os atos brbaros de tortura e humilhao com a retrica dissimulada de democracia, to popular entre os conservadores, a questo da culpa pode assumir um carter brutal. Por exemplo, certo nmero de conservadores (assim como aqueles responsveis pelo relato do inspetor-geral do exrcito de 11 de setembro de 2004) localiza as causas do abuso em Abu Ghraib na baixa classi cao social do pessoal que, uma vez considerado material descartvel para os esforos de guerra, agora igualmente til como bode expiatrio. Sem poder se defender das acusaes implcitas de que seu tipo de trabalho e seus antecedentes rurais produziram a propenso para o desvio sexual e para a crueldade no grande

estilo do lme Deliverance (Amargo Pesadelo), o pessoal acusado a rmou estar apenas seguindo ordens. Mas o preconceito de classe demonstrou ser um meio vantajoso de desviar a ateno sobre a administrao de Bush. De que outra maneira seria possvel explicar o comentrio do senador republicano Ben Campbell (apud YOUNGE, 2004): Eu no sei como essas pessoas entraram no nosso exrcito? Mas o antagonismo de classes no era a nica arma no arsenal da extrema-direita. Ainda mais desesperada por um bode expiatrio, Ann Coulter (apud YOUNGE, 2004) culpa Abu Ghraib pela natureza pretensamente extravagante da mulher, a rmando que: Essa ainda outra lio sobre porque mulheres no deveriam estar no exrcito [] Mulheres so mais perversas do que homens. Todos esses argumentos, como aponta o colunista do New York Times Frank Rich (2004, p.AR1), compartilham um esforo para desviar a ateno de questes polticas e histricas a m de inocentar a administrao de Bush de qualquer erro cometido. claro que no estou sugerindo que Lynndie England, Sabrina Harman, Jeremy Sivits, Charles Graner Jr. e outros no devam ser considerados responsveis por suas aes; minha reivindicao que a responsabilidade por Abu Ghraib no caia apenas sobre eles. Susan Sontag (2004, p.25) argumentou que as fotogra as fornecem as pistas de como importantes con itos so julgados e lembrados. Mas, ao mesmo tempo, ela deixa muito claro que todas as fotogra as no podem ser entendidas por meio de uma linguagem reconhecida por todos. Fotogra as nunca so transparentes ou existem independentemente da mcula da arte ou da ideologia (SONTAG, 2003, p.26). Entendidas como construtos sociais e histricos, as imagens fotogr cas requerem atos de interpretao necessrios para mobilizar compaixo em vez de indiferena, testemunho em vez de consumo, e crtica em vez de apreciao esttica ou simples repdio. Posto de outra maneira, fotogra as como aquelas que revelaram 11 Vdeo pornogr co, comdia adolescente e seriado gay americanos, respectivamente (nota dos tradutores).190 Henry A. Giroux Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 os horrores que aconteceram na priso de Abu Ghraib no tm signi cado de nido, mas existem em um complexo de mediaes que so de natureza material, histrica, social, ideolgica e psicolgica 12 . As fotogra as de Abu Ghraib e a poltica da pedagogia pblica Por isso, as imagens fotogr cas de Abu Ghraib no podem ser analisadas fora da histria, da poltica ou da ideologia. Isso no sugerir que fotogra as no registram algum elemento da realidade, mas insistir que o que elas capturam pode ser compreendido apenas como parte de um compromisso mais amplo com a poltica cultural e sua interseco com vrias dinmicas de poder, as quais informam as condies para ler as fotogra as como uma interveno pedaggica e como uma forma de produo cultural 13 .As imagens fotogr cas no consistem nem na viso nica de seus produtores, nem na realidade que elas tentam capturar. As representaes privilegiam aqueles que tm algum controle sobre a autorrepresentao, e so amplamente enquadradas em modos dominantes de inteligibilidade. As fotogra as de Abu Ghraib so constitutivas de ambos, ambientes diversos e tecnologias da pedagogia e, como tais, representam formas polticas e ticas de orientao que estabelecem as demandas morais e reivindicaes sobre seus espectadores. Questes de poder e de signi cado so sempre centrais em qualquer

discusso de imagens fotogr cas como forma de pedagogia pblica. Tais imagens no registram apenas os traos de mitologias culturais, os quais devem ser criticamente mediados, elas tambm representam modos ideolgicos de orientao relacionados aos limites do discurso e da inteligibilidade humana, e funcionam como prticas pedaggicas em relao a como a ao deve ser organizada e representada. As imagens do abuso em Abu Ghraib ganham seus status como uma forma de pedagogia pblica em virtude dos espaos que elas criam entre os lugares nos quais se tornaram pblicas e as formas de orientao pedaggica que enquadram e mediam seu signi cado. medida que elas circulam em vrios lugares, incluindo rdio, telas de computadores, televiso, jornais, internet e na mdia alternativa, elas iniciam diferentes formas de orientao, mobilizam signi cados culturais diferentes e oferecem diversas situaes de aprendizagem. Os signi cados que enquadram as imagens de Abu Ghraib so contingentes a situaes pedaggicas em que so consideradas (DI LEO; JACOBS; LEE, 2002, p.9) e sua capacidade para limitar ou excluir certas questes, investigaes histricas e explicaes. Por exemplo, novos programas na rede de televiso Fox 12 Para uma excelente discusso sobre essa questo ver Lucaites e McDaniel (2004). 13 Essa questo retomada brilhantemente em Solomon-Godeau (1994).191 O que pode signi car a educao aps Abu Ghraib:revisitando a poltica de educao de Adorno Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 sistematicamente obstruem qualquer crtica s imagens de abuso em Abu Ghraib que questionem a presena Americana no Iraque. Se tais questes so levantadas, elas so rapidamente repudiadas como antipatriticas. Tentativas de neutralizar ou reescrever as imagens que tratam pessoas como coisas, como menos que humanos, tm uma longa histria. Comentaristas tm feito comparaes entre as imagens do linchamento de mulheres e homens negros no sul dos EUA e dos judeus nos campos de concentrao nazistas. John Louis Lucaites e James P. McDaniel (2004, p.7) documentaram como a Life Magazine colocou uma fotogra a em sua capa, durante a Segunda Guerra Mundial, de uma mulher contemplando pensativa o crnio de um soldado japons enviado pelo seu namorado que estava servindo no Pac co, um tenente que, ao ir para a guerra, prometeu-lhe um japa. Longe de relembrar seus leitores da barbrie da guerra, a revista invocou o olhar patritico para enquadrar a imagem brbara como parte de um ritual pblico de morti cao e um marco visual do Outro. Como formas de pedagogia pblica, as imagens fotogr cas devem ser engajadas, tanto tica quanto scio-politicamente, uma vez que esto envolvidas na histria e, com frequncia, contribuem para suprimir as condies que as produzem. Frequentemente enquadradas em formas dominantes de circulao e de signi cado, tais imagens muitas vezes legitimam formas particulares de reconhecimento e de signi cado caracterizadas por aspectos perturbadores de diverso e de evaso. Essa posio evidente nos polticos que acreditam que o problema de Abu Ghraib so as fotos e no as condies que as produziram. Ou nos contnuos comentrios daqueles que veem os abusos em Abu Ghraib como provocados por umas poucas mas podres. Submeter tais pronunciamentos pblicos a um questionamento crtico possvel apenas em ambientes e prticas pedaggicos, nos quais os temas passam pela crtica e cultura do questionamento, cujos requisitos so essenciais para a existncia de uma democracia ativa e vibrante. Mas a pedagogia pblica, na melhor das hipteses, oferece mais que leituras crticas e que relacionam textos culturais, como fotogra as, a um contexto maior. A pedagogia pblica no apenas de ne a interpretao de objetos culturais, ela tambm oferece a possibilidade de engajamento em modos de instruo que no so somente sobre competncia, mas tambm sobre

a possibilidade de interpretao como uma interveno sobre o mundo. O signi cado no est somente nas imagens, mas nas maneiras nas quais as imagens so alinhadas e moldadas por discursos institucionais e culturais, e como estes pem em jogo a condenao da tortura (ou sua celebrao), como ela aconteceu e o que signi ca prevenir para que isso no acontea novamente. Essa no uma questo meramente poltica, mas tambm uma questo pedaggica. Tornar a poltica mais pedaggica, nesse caso, relaciona o que conhecemos s condies que tornam a aprendizagem primeiramente possvel. Cria oportunidades para ser crtico e tambm cria, como 192 Henry A. Giroux Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 observa Susan Sontag, oportunidades para [...] fazer um balano do nosso mundo e [participar] da sua transformao social de modo que relaes internacionais noviolentas, cooperativas e igualitrias permaneam o ideal norteador (BUTLER, 2002, p.19). Enquanto Sontag bastante perspicaz ao apontar a natureza poltica da leitura das imagens, ela no considera, por outro lado, como de interesse pedaggico uma poltica preocupada com questes de interpretao e de signi cado. Como parte de uma poltica de representao, uma leitura til das imagens fotogr cas requer capacidade para ler criticamente e para utilizar habilidades analticas particulares que permitam que os espectadores estudem as relaes entre as imagens, os discursos, a vida diria e as estruturas mais amplas de poder. Como ambos, sujeito e objeto da pedagogia pblica, as fotogra as simultaneamente organizam o poder e so organizadas pelo poder, e registram as condies sob as quais as pessoas aprendem a ler os textos e o mundo. Fotogra as requerem habilidade para ler e criticar as representaes que apresentam, e para levantar questes fundamentais sobre como elas asseguram signi cados, desejos e investimentos particulares. Como uma forma de pedagogia pblica, as imagens fotogr cas tm o potencial de invocar nos leitores formas de testemunho que relacionam signi cado com compaixo, uma preocupao com os outros e uma compreenso mais ampla dos contextos histrico e contemporneo, e as relaes que enquadram o signi cado de determinadas maneiras. A leitura crtica exige prticas pedaggicas que causam curto-circuito no senso comum, resistem a suposies simples, consideram o conjunto das imagens dissociadas, consideram o signi cado como uma luta pelo poder e pela poltica e, como tal, recusam postular a leitura (especialmente de imagens) exclusivamente como um exerccio esttico, tomando-a tambm como uma prtica poltica e moral. O que frequentemente ignorado nos debates sobre Abu Ghraib, sobre suas causas e o que pode ser feito em relao a isso, so questes que evidenciam a relevncia da educao crtica para o debate. Tais questes certamente focalizariam, no mnimo, quais condies pedaggicas precisam ser arranjadas para permitir que as pessoas vejam as imagens de abuso na priso de Abu Ghraib no como parte de uma recepo voyeurista, mesmo pornogr ca, mas atravs de uma variedade de discursos que as permitam fazer questionamentos crticos e inquiries que atinjam o cerne da questo de como as pessoas aprendem a participar de tais atos sdicos de abuso e de tortura, a internalizar suposies racistas que tornam mais fcil desumanizar pessoas diferentes, a aceitar comandos que violam direitos humanos bsicos, a se tornar indiferente ao sofrimento e s di culdades do outro, e a ver a dissidncia como antipatritica. Que prticas pedaggicas podem permitir que o pblico veja em primeiro plano os cdigos e as estruturas que do signi cado s fotogra as e associar as operaes que produziram as fotogra as com os discursos mais amplos? Por exemplo, como 193 O que pode signi car a educao aps Abu Ghraib:revisitando a poltica de educao de Adorno Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 as imagens de Abu Ghraib podem ser compreendidas como parte de um debate mais

amplo sobre redes de informao dominantes que no apenas desculpam a tortura, mas tambm desempenham um papel poderoso de organizar a sociedade em torno de temores compartilhados em vez de responsabilidades compartilhadas? Fotogra as requerem mais do que uma resposta especi cidade de uma imagem, tambm levantam questes fundamentais sobre os ambientes de pedagogia e tecnologia que produzem, distribuem e enquadram essas imagens de determinadas maneiras, e o que essas operaes signi cam em termos de como elas ressoam nas relaes estabelecidas de poder, e as identidades e modos de atuao que permitem que tais relaes sejam reproduzidas ao invs de retidas e problematizadas. Comprometerse com as fotogra as de Abu Ghraib e os eventos que as produziram apontaria para uma prtica pedaggica que evidencia [...] as culturas de circulao e de trans gurao com as quais aqueles textos, eventos e prticas tornam-se palpveis e reconhecidos como tal (GAONKAR; POVINELLI, 2003, p.386). Por exemplo, como compreendemos as imagens de Abu Ghraib e as condies pedaggicas que as produziram sem considerar os discursos de privatizao (particularmente a contratao de mo-de-obra militar), a interseco do militarismo e da crise de masculinidade, a guerra ao terrorismo e o racismo que a torna to desprezvel? Como algum pode explicar a evaporao da dissidncia poltica e dos pontos de vista opostos nos Estados Unidos que precederam os eventos em Abu Ghraib sem considerar a campanha pedaggica de amedrontamento, coroada com a retrica patritica apropriada promovida pela administrao de Bush? Tenho dedicado algum tempo sugerindo que h uma ligao entre a interpretao das imagens e a pedagogia porque estou interessado no que os eventos da priso de Abu Ghraib podem sugerir sobre educao, considerada tanto como sujeito quanto como objeto de uma sociedade democrtica, e como podemos considerar essa educao de maneira diferente. Que tipo de educao une a pedagogia e suas diversas situaes formao de uma cidadania crtica capaz de desa ar a contnua quase-militarizao cotidiana, o crescente assalto democracia secular, o colapso da poltica em uma guerra permanente contra o terrorismo e uma cultura de medo crescente que cada vez mais usada por extremistas polticos para sancionar o inexplicvel exerccio do poder presidencial? Que tipo de prticas educacionais pode fornecer as condies para uma cultura de questionamento e de ao cvica comprometida? O que signi ca repensar a base educacional da poltica de maneira a reivindicar no apenas as tradies de dilogo e de divergncia, mas tambm modos crticos de ao e espaos pblicos que permitam um compromisso com a luta coletiva? Como a educao pode ser, concomitantemente, compreendida como uma forma de interpretao e fundamento de um engajamento civil? Que novas formas de educao podem ser invocadas para resistir s condies e cumplicidade 194 Henry A. Giroux Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 que permitiram que a maioria das pessoas se submetesse com tanto prazer a uma nova ordem poltica organizada em torno do medo? (GREIDER, 2004, p.14). O que signi ca imaginar um futuro alm da guerra permanente, de uma cultura de medo e de um triunfalismo que promove os srdidos interesses do imprio? Como pode a educao ser usada para questionar o senso comum da guerra ao terrorismo ou para insu ar os cidados a desa ar as condies sociais, polticas e culturais que conduziram aos eventos horrveis de Abu Ghraib? S assim, de modo crucial, podemos ponderar os limites da educao. At que ponto as condies extremas causam curto-circuito em nossos instintos morais e em nossa capacidade de pensar e agir racionalmente? Se for esse o caso, qual nossa responsabilidade em desa ar o etos imprudente da violncia como primeiro recurso da administrao de Bush? Tais questes estendem-se alm dos eventos de Abu Ghraib, mas, ao mesmo

tempo, Abu Ghraib fornece uma oportunidade para relacionar o tratamento sdico aos prisioneiros iraquianos tarefa de rede nir a pedagogia como uma prtica tica, s situaes nas quais a pedagogia acontece e s consequncias da pedagogia para repensar o signi cado da poltica no sculo XXI. A m de confrontar os desa os pedaggicos e polticos originados pela realidade de Abu Ghraib, quero revisitar um ensaio clssico de Theodor Adorno, no qual ele tenta abordar a relao entre a educao e a moralidade luz dos horrores de Auschwitz. Embora, certamente, eu no esteja equiparando os atos genocidas que aconteceram em Auschwitz aos abusos de Abu Ghraib uma analogia completamente insustentvel acredito que o ensaio de Adorno oferece algumas motivaes tericas importantes sobre como pensar no signi cado mais amplo e no propsito da educao como uma forma de pedagogia pblica luz do escndalo na priso de Abu Ghraib. O ensaio de Adorno levanta questes fundamentais sobre como atos de desumanidade so inextricavelmente relacionados s prticas pedaggicas que modelam as condies em que so incorporados ao ser humano. Adorno insiste que crimes contra a humanidade no podem ser reduzidos simplesmente ao comportamento de poucos indivduos, em vez disso, expem de maneira profunda o papel do Estado na propagao desses abusos, os mecanismos empregados na esfera da cultura que silenciam o pblico diante dos atos horrveis e o desa o pedaggico que denominaria tais atos como crimes morais contra a humanidade e, assim, traduziria a autoridade moral em prticas pedaggicas e cientes para toda a sociedade, de maneira que tais eventos nunca aconteam novamente. Certamente, o signi cado dos comentrios de Adorno estende-se muito alm das questes de responsabilidade pelo que aconteceu na priso de Abu Ghraib. O apelo de Adorno educao como uma fora moral e poltica contra a injustia humana to relevante hoje quanto foi aps as revelaes sobre Auschwitz e sobre outros campos de concentrao depois da Segunda Guerra Mundial. Como ressalta Roger W. Smith (2004), atos genocidas tiraram as vidas de mais de sessenta milhes 195 O que pode signi car a educao aps Abu Ghraib:revisitando a poltica de educao de Adorno Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 de pessoas no sculo XX, sendo que dezesseis milhes dessas mortes aconteceram aps 1945. As foras polticas e econmicas que abastecem tais crimes contra a humanidade quer sejam guerras ilegais, tortura sistmica, indiferena em relao inanio e enfermidade crnicas ou atos genocidas so sempre mediadas por foras educacionais, assim como a resistncia a tais atos no podem acontecer sem um grau de conhecimento e de autorre exo sobre como, em primeiro lugar, denominar esses atos e transformar a afronta moral em tentativas concretas de prevenir tais violaes humanas. A educao aps Abu Ghraib Em 1966, Theodor Adorno publicou um ensaio intitulado Educao aps Auschwitz. Nesse ensaio, ele a rma que as demandas e questes levantadas em razo do ocorrido em Auschwitz penetraram to escassamente na conscincia das pessoas que as condies que as tornaram possveis continuaram, como ele a rma, completamente inalteradas 14 . Consciente de que as presses sociais que produziram o Holocausto estavam longe de retroceder na Alemanha do ps-guerra e que, em tais circunstncias, tal ato de barbrie poderia ser facilmente repetido no futuro, Adorno argumentou que os mecanismos que tornam as pessoas capazes de tais aes devem ser tornados visveis (ADORNO, 1998a, p.192). Para Adorno, a necessidade de no se resignar diante dos desa os originados pela realidade de Auschwitz est relacionada a uma questo poltica e a uma considerao educacional crucial. Adorno reconheceu que a educao deve ser uma parte importante de qualquer poltica que

considere seriamente a premissa de que Auschwitz nunca deve acontecer de novo. Como ele a rma: De nitivamente, toda instruo poltica deveria ser centrada na idia de que Auschwitz nunca deveria acontecer novamente. Isso ser possvel apenas quando essa se dedicar abertamente, sem medo de ofender qualquer autoridade, aos seus problemas mais importantes. Para isso, a educao deve transformar-se em sociologia, quer dizer, deve ensinar sobre o jogo de foras social que atua sob a superfcie das formas polticas (ADORNO, 1998a, p.203). Est implcito na argumentao de Adorno o reconhecimento de que a educao como uma prtica crtica poderia fornecer os meios para dissociar o senso comum 14 O texto foi apresentado pela primeira vez em um programa de rdio em 18 de abril de 1966, sob o ttulo Padagogik nack Auschwitz. A primeira verso publicada apareceu em 1967. A verso inglesa apareceu em Adorno (1998a).196 Henry A. Giroux Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 na aprendizagem do estrito impacto ideolgico dos meios de comunicao de massa, das tendncias regressivas associadas hiper-masculinidade, dos rituais dirios de violncia, da incapacidade de se identi car com os outros, assim como das ideologias penetrantes de represso do Estado e suas iluses de imprio. A resposta de Adorno s ideologias e prticas retrgradas foi enfatizar o papel de indivduos autnomos e a fora da autodeterminao, o que considera o resultado de um projeto moral e poltico que livra a educao da estreita linguagem das habilidades, da autoridade no problematizada e da seduo do senso comum. A autorre exo, a habilidade de questionar as coisas, e a vontade de resistir s foras materiais e simblicas de dominao foram centrais para uma educao que se recusou a repetir os horrores do passado e se comprometeu com as possibilidades do futuro. Adorno estimulou os educadores a ensinar os estudantes a serem crticos, a aprender a resistir s ideologias, necessidades e discursos que levaram a uma poltica na qual a autoridade era simplesmente obedecida, e a sociedade totalmente administrada reproduzia-se atravs de uma mistura da fora do Estado e, muitas vezes, do consenso orquestrado. Nesse caso, a liberdade signi cou ser capaz de pensar criticamente e agir corajosamente, mesmo quando confrontado com os limites da compreenso de algum. Sem tal pensamento, debate e dilogo crticos, s h degenerao em lemas, e a poltica, dissociada da busca por justia, torna-se uma refm do poder. No mbito da educao, Adorno vislumbrou a possibilidade do conhecimento para a formao social e do eu, assim como a importncia de prticas pedaggicas capazes de in uenciar a prxima gerao de Alemes de modo que eles nunca repitam o que seus pais ou avs zeram (HOHENDAHL, 1995, p.51). Adorno percebeu que a educao desempenhou um papel importante nas condies psicolgicas, intelectuais e sociais que permitiram o Holocausto, ainda assim, recusou-se a repudiar a educao como uma instituio e um conjunto de prticas sociais associadas, exclusivamente, dominao. Ele argumentou que os tericos que consideraram a educao simplesmente uma ferramenta para a reproduo social sucumbiram suposio do primeiro-ministro de qualquer ideologia hegemnica opressiva: nada pode mudar. Recusar a fora poltica e crtica da pedagogia, segundo Adorno, era limitar-se tanto a um determinismo desastroso quanto a um cinismo cmplice. Ele argumenta: Esse estado de pensamento desastroso consciente e inconscientemente inclui a idia errnea de que a maneira de ser de algum e que algum apenas daquela maneira e no de outra sua essncia, um dom inaltervel, e no uma

evoluo histrica. Mencionei o conceito de conscincia materializada. Acima de todas, essa a conscincia enganada por todo o passado histrico, por todas as idias de condicionamento de algum, e por suposies absolutas que existem 197 O que pode signi car a educao aps Abu Ghraib:revisitando a poltica de educao de Adorno Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 contingencialmente. Se esse mecanismo coercitivo fosse rompido, ento, eu penso, que de fato haveria algum ganho. (ADORNO, 1998a, p.200). Ao perceber que a educao na Alemanha, antes e depois de Auschwitz, foi separada por um abismo intransponvel, Adorno quis invocar a promessa da educao atravs de um imperativo moral e poltico de nunca permitir que o genocdio, testemunhado em Auschwitz, acontecesse novamente. Para que tal propsito se tornasse signi cativo e realizvel, Adorno sustentou que a educao tem de ser considerada um compromisso e um projeto, a m no s de revelar as condies que estabeleceram as bases psicolgicas e ideolgicas para Auschwitz, mas para anular o [...] potencial para sua recorrncia at o ponto que o consciente e o inconsciente das pessoas estejam comprometidos (ADORNO, 1998a, p.191). Ao investigar o poderoso papel da educao para promover o consenso pblico sobre os elementos conscientes e inconscientes do fascismo, Adorno entendeu a educao como mais que uma engenharia social, e argumentou que ela tambm deve ser pensada como uma esfera pblica democrtica. Nesse contexto, a educao teria uma funo libertadora e emancipadora, recusando-se a substituir a aprendizagem crtica por um treinamento mental alienante (ADORNO, 1998b). Na melhor das hipteses, tal educao criaria as condies pedaggicas nas quais os indivduos atuariam como sujeitos autnomos capazes de se recusar a participar de inominveis injustias e, ao mesmo tempo, trabalhariam para eliminar as condies que tornam essas injustias possveis. A autonomia humana, por meio da autorre exo e da crtica social, tornou-se, para Adorno, a base para o desenvolvimento de formas de atuao crticas como um meio de resistir e de superar a ideologia fascista e a identi cao com o que ele chama de fascista coletivo. Segundo Adorno, o fascismo, como uma forma de barbrie, desafia todas as tentativas educacionais para a autoformao crtica e comprometida, autodeterminao e atuao transformadora. Ele a rma: A nica fora efetiva contra o princpio de Auschwitz seria a autonomia humana [] isto , a fora da re exo e da autodeterminao, a deciso de ir contra a participao (HOHENDAHL, 1995, p.58).Ao mesmo tempo em que h uma profunda tenso entre a crena de Adorno no incremento do poder da sociedade totalmente administrada e, por outro lado, sua exortao a formas de educao que produzam mentes crticas, comprometidas e livres, ele ainda acredita que sem a educao crtica impossvel pensar na poltica e na ao, especialmente luz das novas tecnologias e dos processos materiais de integrao social. Similarmente, Adorno no acredita que a educao, como um ato de autorre exo, pode isoladamente derrotar as foras institucionais e as relaes de poder que existem fora da educao institucionalizada e de outros poderosos ambientes pedaggicos da cultura mais ampla, embora ele tenha devidamente 198 Henry A. Giroux Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 reconhecido que mudar tal poderoso complexo de foras sociais e econmicas comea pela tarefa educacional de reconhecer que tais mudanas so necessrias e podem ser conduzidas por formas de resistncia individuais e coletivas. O que Adorno entendeu brilhantemente embora de uma maneira um pouco limitada dada a sua tendncia, ao nal, rumo ao pessimismo foi a necessidade de relacionar a poltica a questes de ao individual e social 15

. Estabelecer essa relao, em parte, signi cou teorizar sobre o que pode tornar a poltica mais pedaggica, isto , como os processos de aprendizagem constituem os mecanismos polticos por meio dos quais as identidades individuais e coletivas so modeladas, desejadas e mobilizadas, e como as experincias assumem modo e signi cado nas formaes sociais que estabelecem a base educacional para constituir a vida social. Ao mesmo tempo em que seria presunoso assumir que os escritos de Adorno sobre educao, autonomia e Auschwitz podem ser diretamente aplicados para pensar a respeito dos eventos na priso de Abu Ghraib, esse trabalho oferece algumas idias para se discutir como a educao pode ajudar a repensar o projeto de poltica que possibilitou Abu Ghraib, assim como de que maneira a violncia e a tortura tornaramse normais como parte da guerra ao terrorismo e queles considerados marginais em relao vida e cultura Americanas. Ao reconhecer como a educao crucial para modelar a vida diria e as condies que tornam a crtica possvel e necessria, Adorno insistiu que o desejo por liberdade e autonomia so funes da pedagogia e podem no ser percebidas a priori. Ao mesmo tempo, Adorno estava totalmente consciente de que a educao acontece nas escolas e em esferas pblicas mais amplas, especialmente no mbito da mdia. O debate democrtico e as condies para a autonomia, baseados em uma noo crtica da atuao individual e social, podem ocorrer apenas se as escolas considerarem o seu papel na democracia. Por isso, Adorno argumentou que a educao crtica dos professores desempenha um papel crucial para que se previna que o poder dominante elimine a possibilidade de um pensamento re exivo e de uma ao social engajada. Tal idia parece particularmente importante em um momento em que a educao pblica est sendo completamente privatizada, comercializada e 15 Algum pode inquirir que eu estou levando adiante uma viso um tanto otimista de Adorno. Mas eu penso que o pessimismo poltico de Adorno, dada sua experincia do fascismo, sob essas circunstncias, parece inteiramente justi cado, mas no pode ser confundido com seu otimismo pedaggico, o qual proporcionou que ele escrevesse o ensaio sobre Auschwitz em primeiro lugar. Mesmo a ambivalncia de Adorno sobre como a educao poderia ser exercida atualmente no resulta num indisfarvel pessimismo tanto quanto o cuidado de reconhecer os limites da educao como uma poltica emancipatria. Adorno procurou assegurar-se de que os indivduos tivessem conscincia das grandes estruturas de poder para alm do apelo tradicional educao, ao mesmo tempo, ele apelava ao pensamento crtico como a precondio, mas no a absoluta condio, da ao individual e social. Sou grato a Larry Grossberg por essa distino. Sou grato tambm a Roger Simon e Imre Szeman por seus estimulantes comentrios sobre as posies polticas e o pessimismo de Adorno.199 O que pode signi car a educao aps Abu Ghraib:revisitando a poltica de educao de Adorno Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 testada, ou, se presta servio a estudantes de cor desfavorecidos, transformada em um mecanismo disciplinar que se assemelha priso 16 .As escolas pblicas esto sob ataque exatamente porque tm o potencial de se tornar esferas pblicas democrticas e de incutir nos estudantes as habilidades, o conhecimento e os valores necessrios para que eles se tornem cidados crticos e capazes de tornar o poder responsvel e

o conhecimento um objeto de dilogo e de comprometimento intensos. Certamente, o ataque educao pblica est ocorrendo cada vez mais juntamente com o ataque ao ensino superior, particularmente s humanidades (GIROUX, H.; GIROUX, S., 2004). Tudo, desde a ao a rmativa at a liberdade acadmica, est nas mos dos neo-conservadores, fundamentalistas religiosos e idelogos de extrema-direita como David Horowitz organizador da imposio de cotas polticas para tornar a ideologia conservadora a base para a contratao do corpo docente 17 que tentam introduzir a legislao de diversidade ideolgica que, por exemplo, cortaria o nanciamento federal para faculdades e universidades que acolhessem professores e estudantes que criticassem Israel (PIPER, 2003) e atacaria incessantemente o currculo e os professores por serem muito liberais. Se Adorno est certo sobre educar os professores para no esquecerem e nem permitirem que horrores como os de Auschwitz aconteam novamente, a luta pela educao pblica e superior como uma esfera pblica democrtica deve ser defendida contra os ataques da extrema direita. Ao mesmo tempo, a maneira como educamos os professores de todos os nveis de educao escolar deve ser vista como mais do que uma tarefa tcnica ou de titulao: ela deve ser vista como uma prtica pedaggica de aprendizagem e de desaprendizagem. Baseando-se na psicologia freudiana, Adorno acreditava que os educadores devem ser educados para pensar criticamente e para evitarem se tornar os mediadores ou autores da violncia social. Isso signi cou chamar a ateno para suas deformaes psicolgicas, esclarecendo os mecanismos ideolgicos, sociais e materiais que encorajam as pessoas a participar ou a no intervir em tais aes. A pedagogia, nesse caso, no apenas est interessada na aprendizagem de certos modos de conhecimento, habilidades e autorre exo, mas tambm em considerar as necessidades dominantes sedimentadas e os desejos que permitem que os professores identi quem-se cegamente com grupos repressores e, irre etidamente, imitem tais valores enquanto disseminam atos de dio e de agresso (ADORNO, 1998a, p.192). Se a desaprendizagem, como uma prtica pedaggica, signi ca resistir s deformaes sociais que modelam as necessidades e desejos dirios, a aprendizagem crtica signi ca tornar visveis as prticas e os mecanismos sociais que representam o oposto da autoformao e do pensamento 16 Sobre a relao entre prises e escolas, ver H. Giroux (2004). 17 Sobre a diversidade intelectual, ver Lazere (2004).200 Henry A. Giroux Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 autnomo, de maneira a resistir a tais foras e impedir que elas exeram tal poder e in uncia. Adorno compreendeu muito alm de Freud que a extenso e o alcance da educao, sem mencionar o impacto, excederam os limites da educao pblica e superior. Adorno cada vez mais acreditava que a mdia, como um vetor para a aprendizagem, constitui uma forma de pedagogia pblica que deveria ser criticada por desencorajar a re exo crtica e recuperada como uma fora crucial para fornecer um ambiente intelectual, cultural e social no qual a recorrncia [de crimes contra a humanidade como Auschwitz] no fosse mais possvel, portanto, um ambiente no qual os motivos que levam ao horror tornar-se-iam relativamente conscientes (ADORNO, 1998a, p.194).Adorno corretamente entendeu e considerou criticamente a mdia como um modo de pedagogia pblica ao argumentar que esta contribuiu

grandemente para certas formas de barbrie que zeram com que professores e outros considerassem o impacto da mdia de massa moderna no estado de conscincia (ADORNO, 1998a, p.196). Se vamos levar Adorno a srio, o papel da mdia em inspirar medo dos Muulmanos e em suprimir as divergncias em relao invaso e ocupao do Iraque, e sua in uncia em legitimar mitos e mentiras da administrao de Bush, devem ser consideradas partes de um conjunto maior de interesses que levaram ao horror de Abu Ghraib. A mdia tem se recusado sistematicamente, por exemplo, a comentar criticamente os caminhos com os quais os Estados Unidos, em seu desdm pela Conveno de Genebra em relao tortura, estavam violando leis internacionais, e, ao invs disso, tm favorecido o discurso de Bush sobre a segurana nacional. Alm disso, a mdia tem colocado em prtica formas de jingosmo, de exatido patritica, de chauvinismo de viso limitada, e uma celebrao da militarizao que considera a divergncia uma traio e retira as torturas de Abu Ghraib dos limites discursivos da tica, da compaixo, dos direitos humanos e da justia social. Adorno tambm insistiu que a evoluo da mdia e de novas tecnologias que diminuem as distncias, que corroem o contato face-a-face (e a habilidade de desconsiderar as consequncias das aes de algum), criou um ambiente no qual rituais de violncia tm se impregnado na cultura e agresso, brutalidade e sadismo tm se tornado uma parte normal e inquestionvel do cotidiano. O resultado uma relao distorcida e patolgica com o corpo, que no apenas tende violncia, mas tambm promove o que Adorno chamou ideologia da dureza que, nesse caso, referese a uma noo de masculinidade baseada em uma idia de resistncia na qual: [...] a virilidade consiste no grau mximo de tolerncia [que] se alinha facilmente ao sadismo [] [e in ige] dor fsica muitas vezes, dor insuportvel em uma pessoa como o preo a ser pago para se considerar um membro, fazer parte do 201 O que pode signi car a educao aps Abu Ghraib:revisitando a poltica de educao de Adorno Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 grupo [] Sendo severo, a exaltada qualidade que a educao deveria inculcar signi ca absoluta indiferena em relao dor como essa. Nisso, a distino entre a dor de algum e a do outro no to rigorosamente mantida. Quem quer que seja severo consigo mesmo adquire o direito de ser severo com os outros, assim como se vinga da dor, cujas manifestaes ele no pode demonstrar e teve de reprimir (ADORNO, 1998a, p.197-198). Os rituais da cultura popular, especialmente espetculos da vida real na televiso como Survivor, The Apprentice, Fear Factor 18 , e a nova moda dos esportes radicais transformam dor, humilhao e abuso em espetculos digerveis de violncia 19 ou servem como uma celebrao contnua da competitividade retrgrada, que tornam a obrigao de ir sozinho, a ideologia da dureza e o poder sobre os outros as caractersticas centrais da masculinidade. Masculinidade, nesse contexto, considera mentiras, manipulaes e violncia como um esporte, um componente crucial que permite que os homens conectem-se uns aos outros em algum nvel primitivo, no qual o prazer pelo corpo, a dor e a vantagem competitiva so maximizadas enquanto se aproximam perigosamente de dar violncia um aspecto glamuroso e fascista. A celebrao da violncia e da dureza (anunciada pelos clarins do bordo de Donald Trump, voc est demitido!) tambm pode ser vista nas representaes e imagens contnuas que acompanham simultaneamente o desgaste da segurana (em relao assistncia mdica, ao trabalho, educao) e a militarizao do cotidiano. Os Estados Unidos tm, agora, mais polcia, prises, espies, armas e soldados do

que em qualquer momento de sua histria junto com um exrcito crescente de desempregados e encarcerados. Ainda, seu exrcito enormemente popular e seus valores subjacentes, relaes sociais e esttica patritica e hiper-masculina espalhem-se em outros aspectos da cultura Americana. A ideologia da dureza, resistncia e hiper-masculinidade esto sendo constantemente disseminadas por uma cultura militarizada que funciona como um modo de pedagogia pblica, incutindo os valores e a esttica da militarizao atravs de uma variedade de ambientes pedaggicos e culturais. A ideologia da dureza e a hiper-masculinidade nas formas atuais tambm expressam uma descontinuidade em relao era em que os crimes de Auschwitz foram cometidos. Como Zygmunt Bauman comentou comigo em uma correspondncia particular, Auschwitz foi um segredo cautelosamente guardado, do qual at os nazistas estavam envergonhados. Tal segredo no poderia ser defendido 18 Sries de televiso baseadas em desa os e competies (n. t.). 19 George Smith refere-se a um programa no qual uma mulher era trancada em uma caixa transparente enquanto alguns impetuosos homens [...] despejavam algumas centenas de tarntulas sobre ela [...] voc podia ouvir e testemunhar seus gritos e seu choro. Um rapaz vomitava. Isto grave, porque hoje esvaziar o contedo do estmago um grande programa para a televiso. Todos eles esto rindo maliciosamente, como nossos bons e velhos rapazes e garotas de Abu Ghraib (SMITH, G. 2004).202 Henry A. Giroux Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 luz da moralidade burguesa (mesmo que ela tenha possibilitado Auschwitz), mas pela moralidade atual da diminuio, da punio, da violncia e do aviltamento do excludo, a imposio da humilhao, da dor e do abuso daqueles considerados fracos ou menos inteligentes no apenas celebrada, mas tambm serve como um ritual dirio da vida cultural. Tais prticas, especialmente atravs da proliferao do realismo na TV, tornaram-se to familiares que o desa o para qualquer tipo de educao crtica reconhecer que a conduta dos envolvidos nos abusos em Abu Ghraib no foi chocante, alienante ou original. Por isso, a ideologia da dureza muito mais disseminada hoje e impe muito mais desa os educacionais e polticos 20 . Bandeiras aparecem cada vez mais nas fachadas de lojas, lapelas, carros, casas, veculos utilitrios esportivos e em todos os lugares, como uma demonstrao do apoio expanso dos interesses do imprio no exterior. Escolas pblicas no apenas tm mais recrutadores do exrcito, elas tambm tm mais militares ensinando nas salas de aulas. Programas J.R.O.T.C. 21 esto cada vez mais se tornando parte da rotina escolar. Anncios de Humvee 22 oferecem a fantasia do glamour e da masculinidade do exrcito, sugerindo que a posse de veculos militares garante virilidade aos seus proprietrios e promove uma mistura de medo e de admirao nas outras pessoas. O complexo industrial-militar agora se une indstria do entretenimento para produzir tudo, desde brinquedos para crianas a videojogos, os quais constroem uma certa forma de masculinidade e tambm servem como tentao para o recrutamento. De fato, mais de 10 milhes de pessoas baixaram um videojogo gratuito (American Army)

que as Foras Armadas usam como instrumento de recrutamento (THOMPSON, 2004). De videojogo a lmes de Hollywood e a brinquedos de criana, a cultura popular cada vez mais bombardeada por valores, smbolos e imagens militares. Tais representaes da masculinidade e da violncia simulam a militarizao fascista da esfera pblica, na qual a agresso fsica um elemento crucial e a violncia a linguagem nal, referncia e moeda corrente da de nio masculina, por meio da qual se pode entender em que condies, bem como Susan Sontag (apud BECKER, 1997, p.28) sugeriu em outro contexto, a poltica dissolve-se [] em patologia. Tais pedagogias militarizadas desempenham um papel poderoso para produzir identidades e modos de atuao completamente contrrios aos elementos de autonomia, de re exo crtica e de justia social, os quais Adorno privilegiou em seu ensaio. A ideologia da dureza de Adorno, quando acoplada a valores neoliberais que agressivamente promovem um mundo hobbesiano baseado no medo, na estreita 20 Estes pargrafos remetem diretamente correspondncia com Zygmunt Bauman, datada de 31 agosto 2004. 21 The Junior Reserve Of cers Training Corps (JROTC) uma programa federal das Foras Armadas americanas que estimula o patriotismo e o militarismo entre jovens do ensino mdio (n. t.). 22 Veculo utilitrio esportivo semelhante a um jipe militar (n. t.).203 O que pode signi car a educao aps Abu Ghraib:revisitando a poltica de educao de Adorno Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 busca de interesses individuais e na aceitao de relaes mercantilizadas, in uencia profundamente os interesses dos indivduos que parecem cada vez mais indiferentes em relao dor dos outros, opem suas prprias ambies s das outras pessoas e se equiparam a coisas, adormecidos em relao aos princpios morais que aclamam os americanos como testemunhas e nos convocam a fazer algo em relao ao sofrimento humano. Adorno vai to longe a ponto de sugerir que a incapacidade de se identi car com os outros foi uma das causas essenciais de Auschwitz: A incapacidade de se identi car com os outros foi inquestionavelmente a condio psicolgica mais importante para que algo como Auschwitz tenha ocorrido entre pessoas mais ou menos civilizadas e inocentes. O chamado companheiro de viagem era, em primeiro lugar, um negociante interessado: algum tira vantagem das outras pessoas e, simplesmente, para no se arriscar, no fala muito. Esta a lei geral do status quo. O silncio sob o terror foi apenas sua consequncia. A frieza da mnada social, o competidor isolado, foi a condio prvia, assim como a indiferena ao destino dos outros, para o fato de que apenas poucas pessoas reagiram. Os torturadores sabem disso e sempre o pem prova de diferentes maneiras. (ADORNO, 1998a, p.201). A anlise visionria de Adorno sobre o papel da educao aps Auschwitz particularmente importante para examinar valores, ideologias e foras pedaggicas em vigor na cultura Americana que sugerem que Abu Ghraib no uma aberrao, mas o resultado do desenvolvimento de ideologias, valores e relaes sociais desumanas e demonizantes, caractersticas de um mercado fundamentalista, militarista e nacionalista em expanso. Embora essas no sejam as nicas foras que contriburam para os abusos e violaes de direitos humanos que aconteceram em Abu Ghraib, elas mostram como certas manifestaes de hiper-masculinidade, violncia, militarizao e patriotismo jingosta so elaborados por meio de formas de pedagogias pblicas que produzem identidades, relaes sociais e valores condizentes com as ambies do imprio e com o tratamento cruel, desumano e degradante dado s suas vtimas. No nal das contas, o que direciona a viso ideolgica por detrs

dessas prticas, que se constituem em estmulo para o abuso e para a brutalidade sancionada, a pressuposio de que uma certa sociedade e seus cidados esto acima da lei, devedores apenas a Deus, como John Ashcroft insistiu, ou diretamente desdenham daqueles indivduos e culturas indignos de direitos humanos porque tm sido rotulados como parte do imprio do mal ou confundidos com terroristas 23 . A fora educacional dessas prticas ideolgicas permite que o poder do Estado permanea inquestionado enquanto legitima uma [...] indiferena aos interesses e 23 A questo tomada com grande discernimento e compaixo em Lifton (2003).204 Henry A. Giroux Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 ao sofrimento de pessoas em lugares distantes dos nossos ambientes metropolitanos ocidentais de interesse pessoal (BILGRAMI, 2004, p.x). Adorno acreditava que as tendncias autoritrias do capitalismo estavam criando indivduos que cultuam a e cincia, sofrem de insensibilidade emocional e tm a tendncia a tratar outros seres humanos como coisas a expresso nal da rei cao do capitalismo. O fascnio que esses traos patognicos exerceram, naquela ocasio, sobre a populao Alem e, hoje, na Americana, pode ser explicado, em parte, pela incapacidade das pessoas de reconhecer que tais traos so condicionados em vez de determinados. Seguindo o raciocnio de Adorno, tais traos, mesmo quando vistos como um fato intolervel so, muitas vezes, postulados como verdade absoluta, algo que inviabiliza qualquer processo de humanizao, em relao a qualquer idia sobre a nosso prprio condicionamento 24 . As idias de Adorno, em relao fora educacional do capitalismo recente para construir indivduos totalmente frios e incapazes de se identi car com a situao dos outros, so teis teoricamente para esclarecer algumas das condies que contriburam para os abusos, assassinatos e atos de tortura que aconteceram em Abu Ghraib. Adorno foi particularmente sagaz ao prever a ligao entre os mecanismos subjetivos que produziram indiferena poltica e intolerncia racial, todo o fundamentalismo de mercado da ideologia neoliberal e um nacionalismo violento que alimenta as devoes pretenso teocrtica, assim como sua relao com a escalada autoritria. O que notvel em sua anlise do fascismo que parece se aplicar igualmente bem aos Estados Unidos. Os sinais esto em todos os lugares. Sob o domnio do fundamentalismo de mercado, o capital e a riqueza tm sido amplamente distribudos para cima enquanto o valor cvico tem sido minado por uma celebrao servil do mercado livre como modelo para organizar todas as facetas do cotidiano. Investimentos nanceiros, identidades de mercado e valores comerciais prevalecem sobre as necessidades humanas, responsabilidades pblicas e relaes democrticas. Com essas crenas corruptas de que ns lucrativos so a essncia da democracia e que cidadania de nida como uma imerso no consumismo, assim, o fundamentalismo de mercado elimina a regulamentao do governo, celebra um individualismo competitivo cruel e coloca as instituies polticas, culturais e econmicas dominantes nas mos dos interesses das poderosas corporaes, dos privilegiados e dos fanticos religiosos. Em tais circunstncias, indivduos so vistos como consumidores privados em vez de cidados pblicos. Como a administrao Bush empurra a sociedade americana de volta ao capitalismo vitoriano de Robber Barons, o bem-estar social visto como um dreno nos lucros das corporaes que deveria ser eliminado, enquanto

24 Da verso radiofnica (ADORNO, 1966).205 O que pode signi car a educao aps Abu Ghraib:revisitando a poltica de educao de Adorno Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 o desenvolvimento da economia deixado para a sabedoria do mercado. O fundamentalismo de mercado destri a poltica por meio da mercantilizao da esfera pblica, da corrupo e do cinismo (BAUMAN, 1999) 25 . O empobrecimento da vida pblica cada vez mais combinado ao empobrecimento do pensamento, particularmente medida que a mdia substitui o jornalismo real por uma torcida patritica (BAUMAN, 1999). O disfarce do patriotismo agora lanado sobre polticas sociais retrgradas assim como sobre um unilateralismo coercitivo no qual a fora militar substituiu o idealismo democrtico, e a guerra torna-se o princpio norteador da sociedade uma fonte de orgulho em vez de uma fonte de alerta. Diante de corrupo massiva, da eroso da liberdade civil e da difuso de uma cultura de medo, a caracterstica de nidora da poltica a sua insigni cncia, que celebra a resignao e o cinismo enquanto promove conformidade e impotncia coletiva (BAUMAN, 1999).Para muitos, o colapso da vida democrtica e da poltica pago pela moeda do isolamento, da pobreza, da assistncia mdica inadequada, escolas empobrecidas e a perda de empregos decentes (PHILLIPS, 2003).Nesse regime de capital simblico e material, o outro representado como um dreno social na acumulao individual e coletiva de riqueza temido, explorado, coisi cado ou considerado descartvel. Apenas raramente a relao entre o eu e outro mediada por compaixo e empatia 26 . Mas o fundamentalismo de mercado faz mais do que destruir as condies subjetivas polticas e ticas para a ao poltica autnoma ou para a vigncia do interesse dos cidados, ele tambm solapa a ordem social e ameaa destru-la. Como Cornel West (2004, p.19-20) ressalta: O fundamentalismo de livre mercado o dogma bsico em todo o globo est produzindo nveis imorais de riqueza e desigualdade em todo o mundo. Mercado como dolo. Corporao como fetiche. Agir como se trabalhadores fossem apenas acessrios ou nmeros no clculo de mercado. Terceirizao aqui, terceirizao ali. Atribuir poderes mgicos ao mercado e pensar que ele pode resolver todos os problemas. Quando o fundamentalismo de mercado est ligado ao autoritarismo ascendente, ele resulta no aumento da scalizao dos cidados e no monitoramento 25 Eu discuti essa questo em detalhes em Giroux (2003). 26 A construo do empobrecimento do outro tem uma longa histria na sociedade americana, incluindo as mais recentes manifestaes que se estendem desde o internamento dos nipo-americanos durante a Segunda Guerra Mundial at o crescente encarceramento de jovens pardos e negros em 2004. Obviamente, isto no pode ser explicado inteiramente por meio do discurso das relaes capitalistas. A combinao fatal de chauvinismo, militarismo e racismo tem produzido uma longa histria de imagens fotogr cas nas quais representaes depravadas, como os negros enforcados em rvores ou esqueletos de soldados japoneses esmagados sob um tanque exibidos como um trofu, descrevem uma

xenofobia muito alm daquela expressa nos ditames do consumismo rei cado. Ver Lucaites e McDaniel (2004), e Bauman (2004).206 Henry A. Giroux Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 de salas de aula em universidades e faculdades. Quando est ligado ao militarismo agressivo, temos no apenas invaso dos pases considerados ameaadores, mas tambm a presena militar em 132 pases, navios em todos os mares. Ns tambm temos exrcitos de mercenrios que assumem funes militares, desde cozinhar as refeies at interrogar prisioneiros. No Iraque, estima-se que para cada 10 soldados de tropas na regio [] h um funcionrio contratado. O que se traduz em 10.000 a 15.000 trabalhadores contratados, tornando-os o segundo maior contingente (entre Estados Unidos e Gr-Bretanha) da Coalizo Humanitria (HARTUNG, 2004, p.5). Empresas como Erinys e CACI International fornecem Rambos de aluguel, alguns do quais tm formao notria como mercenrios. Um incidente amplamente divulgado envolveu dois prestadores de servio que explodiram em um bombardeio suicida em Bagd no inverno de 2003. Ambos eram sul-africanos que pertenciam a uma organizao terrorista infame por matar negros, aterrorizar ativistas anti-apartheid e pagar recompensas pelos cadveres de ativistas negros (NAVAER, 2004). No Iraque, Steve Stefanowicz, um interrogador civil contratado pela CACI International, foi citado no relatrio de Taguba como tendo [...] permitido e/ou instrudo MPs (policiais militares) a abusar e humilhar os prisioneiros iraquianos e dado ordens que ele reconhecia como comparveis ao abuso fsico (SHORROK, 2004, p.21). Embora o Departamento de Justia tenha aberto uma investigao criminal sobre um prestador de servio civil annimo no Iraque, a CACI se recusou a tomar medidas contra Stefanowicz, o que esclarece a acusao de que prestadores de servio particulares no so monitorados to de perto quanto o pessoal do exrcito, e no esto sujeitos mesma scalizao e escrutnios parlamentares e pblicos. A falta de prestao de contas democrtica resulta em mais do que servios precrios e preos enganosos por Halliburton, Bechtel, Northrop Grumman e outras corporaes que tm se tornado notcia; tambm resulta nos abusos dos direitos humanos executados sob a lgica de racionalizao e da e cincia do mercado. O jornalista Tim Shorrock a rma que: O abuso militar dos prisioneiros iraquianos su cientemente ruim, mas a privatizao de tais prticas simplesmente intolervel (SHORROK, 2004, p.22). As implicaes pedaggicas da anlise de Adorno sobre a relao entre o autoritarismo e o capitalismo sugerem que qualquer projeto educacional vivel deve reconhecer como o fundamentalismo de mercado no apenas prejudicou instituies democrticas, mas tambm a habilidade das pessoas de identi car formaes sociais democrticas, investir no bem-estar pblico essencial, revigorar o conceito de compaixo como um antdoto para a viso mercantil das relaes humanas. Adorno compreendeu que apenas o conhecimento crtico no pode expressar adequadamente as deformaes da mente e do carter propiciados 207 O que pode signi car a educao aps Abu Ghraib:revisitando a poltica de educao de Adorno Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.177-219, 2010 pelos mecanismos subjetivos do capitalismo. Em vez disso, ele argumentou que o conhecimento crtico deve ser reproduzido e experincias sociais democrticas realizadas por meio de valores compartilhados, crenas e prticas que criem comunidades inclusivas e compassivas, que possibilitem uma poltica democrtica e que protejam o sujeito autnomo por meio da criao de necessidades noopressivas. Dentro dos limites da educao crtica, os estudantes tm de aprender

as habilidades e o conhecimento para contar suas prprias histrias, resistir fragmentao e seduo das ideologias de mercado e criar ambientes pedaggicos compartilhados que vo alm da poltica democrtica. As ideias ganham relevncia quando habilitam os estudantes a participar de ambos os mbitos da esfera mundial e da publicizao da vida cotidiana. Teoria e conhecimento, em outras palavras, tornam-se foras capazes de promover a autonomia e autodeterminao no engajamento com o espao pblico, e seu signi cado baseia-se menos em um ativismo autoproclamado do que na habilidade de fazer conexes crticas e profundas alm da teoria, no espao da poltica (COULDRY, 2004, p.15). O projeto educacional de Adorno para a autonomia reconhece a necessidade de um espao neste mundo no qual a liberdade permitida, um espao que seja a condio e o objeto da luta por qualquer forma vivel de pedagogia crtica. Tal projeto tambm compreende a necessidade da compaixo para lembrar s pessoas de todo o mundo do sofrimento dos outros, assim como da importncia da compaixo na construo da imaginao cvica (NUSSBAUM, 2003, p.11). Se Adorno est correto e eu acho que ele est sua convocao para reconstruir a educao a m de prevenir atos desumanos tem de considerar, atualmente, como uma das tarefas bsicas, a necessidade de entender como a ideologia de livre-mercado, privatizao, terceirizao e o rgido movimento por um espao pblico mercantilizado diminuem radicalmente os ambientes polticos e pedaggicos cruciais para manter identidades, valores e prticas democrticas. A crtica de Adorno ao nacionalismo parece to til hoje quanto era q