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CENTRO UNIVERSITÁRIO LUTERANO DE MANAUS HÉVILA CARVALHO ALMEIDA ARREMESSO DE ANÃO: À LUZ DO DIREITO BRASILEIRO Manaus, dezembro de 2017.

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CENTRO UNIVERSITÁRIO LUTERANO DE MANAUS

HÉVILA CARVALHO ALMEIDA

ARREMESSO DE ANÃO: À LUZ DO DIREITO BRASILEIRO

Manaus, dezembro de 2017.

HÉVILA CARVALHO ALMEIDA

ARREMESSO DE ANÃO: À LUZ DO DIREITO BRASILEIRO

Monografia (TCC II) apresentada ao Curso de Direito do Centro Universitário Luterano de Manaus, Amazonas, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientador: Me. Rubens Alves da Silva.

Manaus, 07 de dezembro de 2017.

ARREMESSO DE ANÃO: À LUZ DO DIREITO BRASILEIRO

HÉVILA CARVALHO ALMEIDA

Monografia defendida e aprovada no dia 07 de dezembro de 2017, pela banca examinadora composta pelos professores:

RUBENS ALVES DA SILVA Professor Mestre Orientador

______________________________ Professor Avaliador

______________________________ Professor Avaliador

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho primeiramente а Deus, pоr ser essencial еm minha vida, autor dе mеυ destino, mеυ guia, socorro presente nа hora dа angústia, ао mеυs pais, аоs meus irmãos e ao meu esposo, pela compreensão e amor incondicional.

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, por me permitir lograr êxito a cada dia desta jornada.

Aos meus Professores, os quais compartilharam brilhantemente seu conhecimento.

EPÍGRAFE

“Não aspiro às galas de inovador, pois que em Direito as

construções vão-se alteando umas sobre as outras, sempre

com amparo no que foi dito, explicado, legislado e decidido.

Ninguém se abalança a efetuar um estudo qualquer, sem

humildemente reportar-se ao que foi exposto pelos doutos e

melhor dotados.” (Caio Mário)

RESUMO

O objetivo deste estudo é promover uma reflexão acerca da aplicação da

dignidade da pessoa humana frente à autonomia privada. Como forma de alicerce para

o estudo, foi feita uma análise histórico-conceitual dos direitos fundamentais. Por ser

um dos temas centrais da pesquisa, buscou-se um conceito que demonstre de forma

mais fidedigna o princípio da dignidade da pessoa humana, demonstrando assim as

minúcias que envolvem sua aplicação e seu entendimento. A partir da premissa que

esta dignidade deve balizar a ordem jurídica, também buscou-se encontrar seu

fundamento de forma a caracterizar o que de mais importante deve-se proteger nela,

para que desta forma se tenha a sua real dimensão. Assim, encontrou-se como

fundamento da dignidade da pessoa humana a autonomia privada, ou seja, a liberdade

que o particular tem de conduzir sua vida segundo seus planos. Desta forma, apenas o

indivíduo autônomo é livre, e somente assim irá alcançar sua dignidade. Diante disso,

procurou-se encontrar as formas e as medidas em que se dá a eficácia (vinculativa)

dos direitos fundamentais nas relações privadas. Por fim, apresenta-se um caso

concreto “arremesso de anões” onde se funda o estudo, e a seguir breves contornos

acerca do poder de polícia do Estado (poder público) chegou-se a estas conclusões

Palavras Chave : Direitos fundamentais. Dignidade da pessoa humana. Autonomia privada

.

ABSTRACT

The objective of this study is to promote a reflection about the application of the

dignity of the human person in front of the private autonomy. As a basis for the study, a

conceptual-historical analysis of fundamental rights was made. Being one of the central

themes of the research, we sought a concept that demonstrates in a more reliable way

the principle of the dignity of the human person, thus demonstrating the minutiae that

involve its application and its understanding. From the premise that this dignity should

be the legal order, it was also sought to find its foundation in order to characterize what

is most important to protect in it, so that it has its real dimension. Thus, private

autonomy, that is, the freedom that the individual has to conduct his life according to his

plans, was found as the foundation of the dignity of the human person. In this way, only

the autonomous individual is free, and only thus will he attain his dignity. The aim was

to find the forms and measures in which the (binding) effectiveness of the fundamental

rights in private relations is given. Finally, a concrete case is presented of "dwarf

throwing", where the study is based, and then brief contours about the police power of

the State (public power) came to these conclusions

Key words: Fundamental rights. Dignity of human person. Private autonomy

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

1 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO DIREITO CONSTITUCIONAL

CONTEMPORÂNEO ..................................................................................................... 12

1.1 Origem e evolução .......................................................................................... 12

1.2 A dignidade da l pessoa humana no direito comparado ................................. 12

1.3 Natureza jurídica, conteúdo mínimo e critérios de aplicação .......................... 16

1.3.1 Natureza jurídica da dignidade humana .................................................. 16

1.3.2 Conteúdo mínimo da ideia de dignidade humana.................................... 21

1.3.2.1 A influencia do pensamento Kantiano .............................................. 21

1.3.2.2 Plasticidade e universalidade ........................................................... 24

1.3.2.3 Três elementos essenciais à dignidade ............................................ 26

1.3.2.3.1 Valor intrínseco da pessoa humana ................................... 27

1.3.2.3.2 Autonomia da vontade ........................................................ 29

1.3.2.3.3 Valor comunitário ................................................................ 32

2 HORIZONTALIZAÇÃO E VERTICALIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS .. 35

2.1 Teorias da horizontalização dos direitos fundamentais .................................. 35

2.1.1 Teoria da negação da eficácia dos direitos fundamentais – doutrina da

state action .................................................................................................................... 38

2.1.2 Teoria da aplicação indireta ou mediata .................................................. 43

2.1.3 Teoria da aplicação imediata e direta dos direitos fundamentais ............ 48

3 O DIREITO AO TRABALHO E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA FRENTE AO

CASO CONCRETO ...................................................................................................... 54

3.1 O caso do arremesso de anões ...................................................................... 54

3.2 A exposição de anões a situações degradantes no humor brasileiro ............. 61

CONCLUSAO ................................................................................................................. 4

REFERENCIAS ............................................................................................................... 4

INTRODUÇÃO

O estudo dos direitos fundamentais é fascinante, e devido às constantes

modificações que ocorrem no seu entendimento, devem ser constantemente alvo de

pesquisas que visam aprimorar sua interpretação. Com o passar dos tempos, a

sociedade muda e cria novas exigências, com a evolução desta sociedade, os direitos

fundamentais precisam se moldar de forma compreender todas as necessidades que

deles são exigidas.

O caso em estudo trata-se de uma situação que é mais intensa do que parece,

pois além de estarmos falando do único meio de sobrevivência de uma pessoa, a

autonomia privada também foi ignorada pelas autoridades sob o argumento de que

afrontava a dignidade da pessoa humana do anão. Este fato ocorreu na cidade de

Morsang-sur-Orge na França, onde a prefeitura munida do poder de polícia, a ela

conferida, interditou o espetáculo. Ocorre que o próprio anão (Sr. Wackenheim), junto

com o dono do bar entraram na justiça pugnando pelos seus direitos, ou seja, liberação

do espetáculo e o direito de ser arremessado.

A Corte Suprema da França manteve a decisão do prefeito da cidade de

Morsang-surOrge de interditar a atração, mesmo sob os argumentos do anão de que

seria sua única forma de sustento e de que com base na sua autonomia, tinha o direito

de decidir como ganhar sua vida. Porém, o direito de ser arremessado não foi

concedido e fora mantida a decisão.

O anão ainda inconformado com a decisão tida como justa pelo judiciário

francês, ingressou perante o Comitê de Direitos Humanos da ONU. Mas o Comitê

também entendeu que o arremesso de anão era atentatório à dignidade da pessoa

humana e pugnou pela proibição do ato.

Este tema mostra-se atual simplesmente pelas datas em que foram proferidas

tais decisões, a decisão da Corte máxima da França foi proferida em 1995. Já a

decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU data de 2002. Um dos casos mais

recentes de briga judicial se deu nos Estados Unidos, chegou a ser tema da

programação do SBT, onde o principal argumento para a proibição era médica, onde

argumentou-se que a estrutura óssea ofereceria risco à saúde.

O problema que envolve o caso do arremesso de anão mostra-se presente em

outros casos também. Um exemplo era o “peep-show”, no qual uma mulher dança nua

atrás de um pano, projetando apenas sua sombra. Este caso também fora proíbido na

Alemanha sob os mesmos argumentos do arremesso de anão, pelo simples fato de se

esconder atrás do pano, sendo que outras atividades semelhantes são aceitas. Outro

bom exemplo, é encontrado no nosso cotidiano, pois no programa Pânico na TV que

expõe suas dançarinas a situações que, sob a ótica que foi empregada em Morsang-

sur-Orge, deveria igualmente ser proibido aqui no Brasil.

Pretendemos ao final desta pesquisa demonstrar que por trás deste fato

esdrúxulo, se apresenta um intrigante jogo de supremacia de um princípio

constitucional sobre o outro. Entendemos que a autonomia privada pressupõe outras

especificidades que parece não terem sido levadas em conta nas decisões já

proferidas, o que poderia levar a situação para outra interpretação, de forma a

demonstrar não ser exequível a supremacia da dignidade da pessoa humana sobre a

autonomia privada nas relações entre particulares.

Por fim, é de se registrar que a discussão sob temas constitucionais está longe

de encerrar, pois encontra-se em constante desenvolvimento. Com o passar dos

tempos, os direitos constitucionais necessitam ser reinterpretados de forma a atender

melhor os anseios da sociedade, o que torna o assunto sempre atual. Assim, este

trabalho não tem qualquer pretensão de demonstrar que o entendimento sobre os

direitos fundamentais está equivocado, mas ousa contribuir com ideias inovadoras que

possibilitem fazer uma interpretação sobre o caso concreto a partir de outro ângulo.

1 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO DIREITO CONSTITUCIONAL

CONTEMPORÂNEO

1.1 Origem e evolução

A dignidade da pessoa humana, na sua acepção contemporânea, tem origem

religiosa, bíblica: o homem feito à imagem e semelhança de Deus. Com o Iluminismo e

a centralidade do homem, ela migra para a filosofia, tendo por fundamento a razão, a

capacidade de valoração moral e autodeterminação do indivíduo. Ao longo do século

XX, ela se torna um objetivo político, um fim a ser buscado pelo Estado e pela

sociedade. Após a 2ª. Guerra Mundial, a idéia de dignidade da pessoa humana migra

paulatinamente para o mundo jurídico, em razão de dois movimentos. O primeiro foi o

surgimento de uma cultura pós-positivista, que reaproximou o Direito da filosofia moral

e da filosofia política, atenuando a separação radical imposta pelo positivismo

normativista.

O segundo consistiu na inclusão da dignidade da pessoa humana em diferentes

documentos internacionais e Constituições de Estados democráticos. Convertida em

um conceito jurídico, a dificuldade presente está em dar a ela um conteúdo mínimo,

que a torne uma categoria operacional e útil, tanto na prática doméstica de cada país

quanto no discurso transnacional.

1.2 A dignidade da pessoa humana no direito comparado e no discurso

transnacional

A despeito de sua relativa proeminência na história das ideias, foi somente no

final da segunda década do século XX que a dignidade humana passou a figurar em

documentos jurídicos, a começar pelas Constituições do México (1917) e da Alemanha

de Weimar (1919)1. Antes de viver sua apoteose como símbolo humanista, esteve

presente em textos com pouco pedigree democrático, como o Projeto de Constituição

do Marechal Pétain (1940), na França, durante o período de colaboração com os

1 Cristopher McGrudden, Human dignity and judicial interpretation of human rights, The European Journal of International

Law, p. 664.

nazistas2, e em Lei Constitucional decretada por Francisco Franco (1945), durante a

longa ditadura espanhola3.

Após a Segunda Guerra Mundial, a dignidade humana foi incorporada aos

principais documentos internacionais, como a Carta da ONU (1945), a Declaração

Universal dos Direitos do Homem (1948) e inúmeros outros tratados e pactos

internacionais, passando a desempenhar um papel central no discurso sobre direitos

humanos. Mais recentemente, recebeu especial destaque na Carta Europeia de

Direitos Fundamentais, de 2000, e no Projeto de Constituição Europeia, de 2004.

No âmbito do direito constitucional, a partir do segundo pós-guerra, inúmeras

Constituições incluíram a proteção da dignidade humana em seus textos. A primazia,

no particular, tocou à Constituição alemã (Lei Fundamental de Bonn, 1949), que previu,

em seu art. 1º, a inviolabilidade da dignidade humana, dando lugar a uma ampla

jurisprudência, desenvolvida pelo Tribunal Constitucional Federal, que a alçou ao

status de valor fundamental e centro axiológico de todo o sistema constitucional.

Diversas outras Constituições contêm referência expressa à dignidade em seu

texto – Japão, Itália, Portugal, Espanha, África do Sul, Brasil, Israel, Hungria e Suécia,

em meio a muitas outras – ou em seu preâmbulo, como a do Canadá. E mesmo em

países nos quais não há qualquer menção expressa à dignidade na Constituição, como

Estados Unidos4 e França5, a jurisprudência tem invocado sua força jurídica e

argumentativa, em decisões importantes.

A partir daí, as cortes constitucionais de diferentes países iniciaram um diálogo

transnacional, pelo qual se valem de precedentes e argumentos utilizados pelas outras

cortes, compartilhando um sentido comum para a dignidade. Trata-se de uma

integração em que os atores nacionais, internacionais e estrangeiros se somam6.

No plano do direito comparado, merece destaque, em primeiro lugar, a atuação

do Tribunal Constitucional Federal alemão, cujas decisões são citadas em diferentes

jurisdições. Na prática da Corte, a dignidade humana sempre esteve no centro das

discussões de inúmeros casos como, por exemplo, a declaração de 2 Lei Constitucional de 10 de julho de 1940. In: Les Constitutions de France depuis 1789, p. 34. 3 Trata-se do “Fuero de los Españoles”, uma das leis fundamentais aprovadas ao longo do governo franquista. V. http://www.e-

torredebabel.com/leyes/constituciones/fuero-espanoles-1945.htm. Sobre este e outros aspectos da experiência constitucional

espanhola, v. Francisco Fernandez Segado, El sistema constitucional español, 1992, p. 39 e s. No Brasil, o Ato Institucional nº 5,

de 13.12.1968, outorgado pelo Presidente Costa e Silva, que deu início à escalada ditatorial e à violência estatal contra os

adversários politicos, fez referência expressa à dignidade da pessoa humana. 4 Maxime D. Goodman, Human dignity in Supreme Court constitutional jurisprudence. Nebraska Law Review 84:740, 2005-

2006. 5 Dominique Rousseau, Les libertes individuelles et la dignité de la personne humaine, 1998, p. 62-70. 6 Sem embargo da existência de muitas dificuldades teóricas. Sobre o tema, v. Sir Basil Markesinis & Jörg Fedtke, Judicial

recourse to foreign Law: a new source of inspiration?, 2006.

inconstitucionalidade da descriminalização do aborto (Aborto I)7, a flexibilização dessa

mesma decisão (Aborto II)8, a proibição de derrubada de aviões seqüestrados por

terroristas9 e a vedação do uso de diário pessoal como meio de prova10, dentre muitos

outros. A jurisprudência alemã na matéria é abundante. Também nos Estados Unidos,

embora com menor intensidade, diluída em outros fundamentos e sob intensa

polêmica11, a dignidade humana vem sendo crescentemente utilizada na

argumentação jurídica dos tribunais12.

Em decisão mais antiga, envolvendo a constitucionalidade da pena de morte, a

Suprema Corte decidiu que os objetivos sociais de retribuição e prevenção superavam

as preocupações com a dignidade13. Todavia, considerou violadora da dignidade

humana a execução de deficientes mentais14 e de menores de dezessete anos15. Em

tema de interrupção da gestação, houve referência expressa na decisão que reafirmou,

com reservas, o direito da mulher ao aborto16. No julgado que deu maior ênfase à

dignidade humana, a Corte considerou inconstitucional a criminalização de relações

sexuais entre pessoas do mesmo sexo17.

Pelo mundo afora, cortes constitucionais e internacionais têm apreciado casos

de grande complexidade moral envolvendo o sentido e o alcance da dignidade da

pessoa humana. Na França, além do célebre caso do arremesso de anão, que será

comentado adiante, outras decisões suscitaram acirrada controvérsia. No affaire

Perruche, a Corte de Cassação, em decisão duramente criticada, reconheceu o direito

7 Em decisão de 1975, a Corte entendeu que o direito à vida e os deveres de proteção que o Estado tem em relação a tal direito

impõem a criminalização do aborto. 8 Uma lei de 1992, que teve sua argüição de inconstitucionalidade rejeitada, torna o aborto não punível até o terceiro mês, desde

que a mulher se submeta, previamente, a aconselhamento obrigatório, no qual ela será informada de que o feto em

desenvolvimento constitui uma vida independente. Ela deverá aguardar 72 horas após o aconselhamento e a realização do

procedimento. 9 Em decisão de 2006, considerou inconstitucional a previsão legal que dava ao Ministro da Defesa poder para ordenar o abate

de aviões em circunstâncias nas quais fosse possível assumir que ele seria utilizado contra vidas humanas. V.

http://www.transnationalterrorism.eu/tekst/publications/Germany.pdf. Acesso em 20 ago. 2017. 10 Trata-se de decisão do Tribunal Federal de Justiça no sentido de que a leitura de registros em diário pessoal viola a dignidade e

a privacidade. V.Cristoph Enders, The right to have rights: the concept of human dignity in German Basic Law. Revista de

Estudos Constitucionais, Hermenêtuica e Teoria do Direito. p. 5. 11 Nos Estados Unidos, a referência a decisões estrangeiras que faziam menção à dignidade humana, por parte de Justices da

Suprema Corte, provocou forte reação em setores jurídicos e políticos. Sobre o tema, v. Jeremy Waldron, Foreign law and the

modern ius gentium, Harvard Law Review. Em debate na Universidade de Brasília, em 2009, o Juiz da Suprema Corte

Americana, Justice Antonin Scalia, afirmou que a cláusula da dignidade da pessoa humana não consta da Constituição dos

Estados Unidos e que, por essa razão, não pode ser invocada por juízes e tribunais. 12 Para um levantamento amplo e detalhado da matéria na jurisprudência norteamericana, v. Maxime D. Goodman, Human

dignity in Supreme Court constitutional jurisprudence. Nebraska Law Review, 2005-2006. 13 Gregg v. Georgia. 428 U.S. 153 (1976). 14 Atkins v. Virginia. 536 U.S. 304 (2002). A decisão emprega a expressão retartados mentais, que já não é mais aceita. Utiliza-

se, correntemente, apenas deficiência, ou deficiência intelectiva ou psíquica. 15 Roper v. Simmons. 543 U.S. 551 (2005). 16 Planned Parenthood v. Casey. 505 U.S. 833 (1992). A decisão mantida foi Roe v. Wade, 410 U.S. 113 (1973), que foi o

primeiro grande precedente na matéria. 17 Lawrence v Texas. 539 U.S. 558 (2003).

de não nascer, ao assegurar a uma criança, representada por seus pais, uma

indenização pelo fato de ter nascido cega, surda e com transtorno mental severo.

Um erro de diagnóstico no teste de rubéola realizado na mãe deixou de detectar

o risco de anomalia fetal grave, impedindo-a de interromper voluntariamente a

gestação, como era de seu desejo declarado caso o problema fosse detectado no

exame pré-natal18. Em outro caso que ganhou notoriedade, Corinne Parpalaix viu

reconhecido o seu direito de proceder à inseminação artificial com o esperma de seu

falecido marido, que o havia depositado em um banco de sêmen antes de se submeter

a uma cirurgia de alto risco19.

Outra questão interessante, envolvendo inseminação artificial, foi julgada no

Reino Unido. Natalie Evans, antes de ter seus ovários retirados em razão de um tumor,

colheu óvulos e teve-os fecundados em laboratório com o sêmen de seu parceiro,

Howard Johnson. Os embriões congelados permaneceram em uma clínica

especializada. Após o rompimento da relação conjugal, a mulher desejou implantar em

seu útero os embriões armazenados, ao que se opôs o antigo parceiro.

Diante disso, a clínica recusou-se a fornecer o material, saindo-se vencedora na

demanda que lhe foi proposta20. No Canadá, em meio ao complexo debate acerca da

descriminalização de drogas leves, a Suprema Corte rejeitou a tese de que o uso de

maconha constituiria a escolha de um estilo de vida, alegando que a proibição protegia

grupos vulneráveis, incluindo adolescentes e mulheres grávidas21. A mesma Corte

considerou legítima a proibição da prostituição22, a exemplo da Suprema Corte da

África do Sul23. Em sentido diverso pronunciou-se a Corte Constitucional da Colômbia,

como se comenta mais à frente. A Corte Europeia de Direitos Humanos considerou

18 Decisão disponível em http://www.courdecassation.fr/publications_cour_26. Sobre o tema, v. Olivier Cayla et Yan Thomas,

Du droit de ne pas naître — A propos de l’Affaire Perruche, 2002. Em língua portuguesa, v. Gabriel Gualano de Godoy,

Acórdão Perruche e o direito de não nascer. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação da

Universidade Federal do Paraná. Disponível em http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream. Acesso em 27 ago. 2017. 19 Affaire Parpalaix, Tribunal de Grande Instance de Créteil, 1º ago. 1984. 20 Evans v. Amicus Healthcare Ltd., EWCA Civ. 727. A decisão da England and Wales Court of Appeal (Civil Divison)

encontra-se disponível em http://www.bailii.org/ew/cases/EWCA/Civ/2004/727.html. Acesso em 27 ago. 2017. A decisão foi

confirmada pela Corte Europeia de Direitos Humanos. V. Evans v. United Kingdom, disponível em 27 ago. 2017 21 R. v. Malmo-Levine; R. v. Caine [2003] 3 S.C.R. 571, 2003 SCC 74. A Corte rejeitou a arguição de inconstitucionalidade da

criminalização da maconha. 22 Reference re ss. 193 & 195.1(1)(c) of Criminal Code (Canada), (the Prostitution Reference), [1990] 1 S.C.R. 1123. Para

comentários sobre esta decisão e a anterior, v. R. James Fyfe, Dignity as theory: competing conceptions of human dignity at the

Supreme Court of Canada, Saskatchewan Law Review 70:1, 2017, p. 5-6. 23 State v. Jordan and Others (Sex Workers Education and Advocacy Task Force and Others as Amici Curiae (CCT31/01)

[2002] ZACC 22; 2002 (6) SA 642; 2002 (11) BCLR 1117 (9 October 2002). V. decisão em

http://www.saflii.org/za/cases/ZACC/2002/22.html.

que o Reino Unido violou o direito de uma mulher transsexual ao negar

reconhecimento legal a sua operação de mudança de sexo24.

Há julgados nos mais distintos países, incluindo Espanha, Israel, Argentina e

muitos outros. No entanto, as decisões referidas já são suficientemente representativas

e não é o caso de se proceder a um levantamento exaustivo. O último registro

relevante a fazer é que muitas decisões se referem a julgados de tribunais de outros

países, dando uma dimensão verdadeiramente transnacional ao discurso da dignidade

humana25.

1.3 Natureza jurídica, conteúdo mínimo e critérios de aplicação

1.3.1 Natureza jurídica da dignidade humana

A dignidade humana tem seu berço secular na filosofia. Constitui, assim, em

primeiro lugar, um valor, que é conceito axiológico26, ligado à ideia de bom, justo,

virtuoso. Nessa condição, ela se situa ao lado de outros valores centrais para o Direito,

como justiça, segurança e solidariedade27. É nesse plano ético que a dignidade se

torna, para muitos autores, a justificação moral dos direitos humanos e dos direitos

fundamentais28-29. Em plano diverso, já com o batismo da política, ela passa a integrar

documentos internacionais e constitucionais, vindo a ser considerada um dos principais

fundamentos dos Estados democráticos.

Em um primeiro momento, contudo, sua concretização foi vista como tarefa

exclusiva dos Poderes Legislativo e Executivo. Somente nas décadas finais do século

XX é que a dignidade se aproxima do Direito, tornando-se um conceito jurídico,

24 V. Cedh, Goodwin v. the United Kingdom, julgado em 11 jul. 2002. Decisão disponível em http://www.pfc.org.uk/node/350.

Acesso em 27 ago. 2017. 25 Decisões americanas, canadenses, sul-africanas, colombianas, brasileiras e de diversos outros países invocam os precedentes

de tribunais superiores ou cortes constitucionais de outras jurisdições, como argumento doutrinário, naturalmente, e não

jurisprudencial. 26 Citando von Wright, Robert Alexy registra que os conceitos práticos dividem-se em três categorias: axiológicos, deontológicos

e antropológicos. Os conceitos axiológicos têm por base a ideia de bom. Os deontológicos, a de dever ser. Já os conceitos

antropológicos estão associados a noções como vontade, interesse e necessidade. V. Robert Alexy, Teoria dos direitos

fundamentais, 2008, p. 145-6. 27 V. Ricardo Lobo Torres, Tratado de direito constitucional, financeiro e tributário: valores e princípios constitucionais

tributários, 2005, p. 41. 28 V. Jürgen Habermas, The concept of human dignity and the realistic utopia of human rights, Metaphilosophy, p. 466. É o que

prevê, igualmente, a Constituição da Saxônia, de 1989. 29 A doutrina tem convencionado a utilização da locução direitos fundamentais para os direitos humanos positivados em

determinado sistema constitucional, ao passo que a expressão direitos humanos tem sido empregada para identificar posições

jurídicas decorrentes de documentos internacionais, sem vínculo com qualquer ordenamento interno específico e com pretensão

de validade universal. V. por todos, Ingo Wolfgang Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos

fundamentais na perspectiva constitucional, 2009, p. 29.

deontológico – expressão de um dever-ser normativo, e não apenas moral ou politico.

E, como conseqüência, sindicável perante o Poder Judiciário. Ao viajar da filosofia para

o Direito, a dignidade humana, sem deixar de ser um valor moral fundamental30, ganha

também status de princípio jurídico31.

Em sua trajetória rumo ao Direito, a dignidade beneficiou-se do advento de uma

cultura jurídica pós-positivista. A locução identifica a reaproximação entre o Direito e a

ética, tornando o ordenamento jurídico permeável aos valores morais32. Ao longo do

tempo, consolidou-se a convicção de que nos casos difíceis, para os quais não há

solução pré-pronta no direito posto, a construção da solução constitucionalmente

adequada precisa recorrer a elementos extrajurídicos, como a filosofia moral e a

filosofia política33.

E, dentre eles, avulta em importância a dignidade humana. Portanto, antes

mesmo de ingressar no universo jurídico, positivada em textos normativos ou

consagrada pela jurisprudência34, a dignidade já desempenhava papel relevante, vista

como valor pré e extrajurídico35, capaz de influenciar o processo interpretativo. É fora

de dúvida, todavia, que sua materialização em documentos constitucionais e

internacionais sacramentou o processo de juridicização da dignidade, afastando o

argumento de que o Judiciário estaria criando normas sem legitimidade democrática

para tanto36.

A dignidade humana, então, é um valor fundamental que se viu convertido em

princípio jurídico de estatura constitucional, seja por sua positivação em norma

expressa seja por sua aceitação como um mandamento jurídico extraído do sistema37.

30 Sobre o caráter suprapositivo da dignidade humana, v., dentre muitos, José Afonso da Silva, A dignidade da pessoa humana

como valor supremo da democracia, Revista de Direito Administrativo, 1998, p. 91; e Francisco Fernández Segado, La dignité de

la personne en tant que valeur suprême de l´ordre juridique espagnol et en tant que source de tous les droits. In: Die Ordnung der

Freiheit: Festchrift fur Christian Starck zum siebzigsten Geburtstag, 2017, p. 742. 31 É bem de ver que, embora valor e princípio sejam categorias distintas no plano teórico, como apontado, eles estão intimamente

relacionados e não se diferenciam de maneira relevante do ponto de vista prático, bastando que se reconheça a comunicação

entre os planos axiológico e deontológico, isto é, entre a moral e o Direito. 32 Sobre o pós-positivismo como uma terceira via entre as concepções positivista e jusnaturalista, e sobre a entronização dos

valores na argumentação jurídica, v. Luís Roberto Barroso, Curso de direito constitucional contemporâneo, 2010, p. 247-50. 33 Sobre a ideia de leitura moral da Constituição, v. Ronald Dworkin, Freedom´s Law: the moral reading of the American

constitution, 1996, p. 7-12. 34 Este foi o caso da França, por exemplo, onde o princípio da dignidade da pessoa humana foi descoberto pelo Conselho

Constitucional, em decisão proferida em 27 de julho de 1994. V. Decisão nº 94-343-344 DC. In: L.Favoreu e L.Philip, Les

grandes décisions Du Conseil Constitutionnel, 2003, p. 852 e s. 35 V., por muitos, Ingo Wolfgang Sarlet, Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, 2010, p. 50: [A] dignidade

evidentemente não existe apenas onde é reconhecida pelo Direito e na medida que este a reconhece. 36 Este argumento foi utilizado pelo juiz da Suprema Corte americana Antonin Scalia, em debate com o autor deste artigo na

Universidade de Brasília – UnB, em maio de 2009. Sua posição é contrária ao uso da dignidade humana na interpretação

constitucional nos Estados Unidos, pois ela não consta do texto ou de suas emendas. 37 Sobre a dimensão moral e jurídica da dignidade, v., dentre muitos, Jeremy Waldron, Digntity, rank, and rights: The 2009

Tanner Lectures at UC Berckley. Public Law & Legal Theory Research Paper Series, Working Paper n. 09-50, September 2009,

p. 1.

Serve, assim, tanto como justificação moral quanto como fundamento normativo para

os direitos fundamentais. Não é o caso de se aprofundar o debate acerca da distinção

qualitativa entre princípios e regras. Adota-se aqui a elaboração teórica que se tornou

dominante em diferentes países, inclusive no Brasil38.

Princípios são normas jurídicas que não se aplicam na modalidade tudo ou

nada, como as regras, possuindo uma dimensão de peso ou importância, a ser

determinada diante dos elementos do caso concreto39. São eles mandados de

otimização, devendo sua realização se dar na maior medida possível, levando-se em

conta outros princípios, bem como a realidade fática subjacente40. Vale dizer: princípios

estão sujeitos à ponderação41 e à proporcionalidade42, e sua pretensão normativa pode

ceder, conforme as circunstâncias, a elementos contrapostos.

A identificação da dignidade humana como um princípio jurídico produz

conseqüências relevantes no que diz respeito à determinação de seu conteúdo e

estrutura normativa, seu modo de aplicação e seu papel no sistema constitucional.

Princípios são normas jurídicas com certa carga axiológica, que consagram valores ou

indicam fins a serem realizados, sem explicitar comportamentos específicos. Sua

aplicação poderá se dar por subsunção, mediante extração de uma regra concreta de

seu enunciado abstrato, mas também mediante ponderação, em caso de colisão com

outras normas de igual hierarquia.

Além disso, seu papel no sistema jurídico difere do das regras, na medida em

que eles se irradiam por outras normas, condicionando seu sentido e alcance. Para fins

didáticos, é possível sistematizar as modalidades de eficácia dos princípios em geral, e

da dignidade da pessoa humana em particular, em três grandes categorias: direta,

interpretativa e negativa.

Pela eficácia direta, um princípio incide sobre a realidade à semelhança de uma

regra. Embora tenha por traço característico a vagueza, todo princípio terá um núcleo,

do qual se poderá extrair um comando concreto43. Para citar dois exemplos na

jurisprudência do STF dos último anos: do princípio da moralidade (e da 38 Para uma visão crítica da posição dominante na literatura nacional, v., por todos, Humberto Ávila, Teoria dos princípios, 2009.

Em meio a outros aspectos, Humberto sustenta que uma mesma norma pode funcionar tanto como princípio quanto como regra,

e que também as regras estão sujeitas a ponderação. 39 V. Ronald Dworkin, Taking rights seriously, 1978, p. 22-28. 40 V. Robert Alexy, Teoría de los Derechos Fundamentales, 1997, p. 86. 41 Na literatura nacional mais recente, v. Ana Paula de Barcellos, Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, 2005. 42 Sobre o conceito de proporcionalidade, na literatura mais recente, v. David M. Beatty, The Ultimate Rule of Law, 2004; e

Mark Tushnet, Comparative Constitutional Law, in Mathias Reimann & Reinhard Zimmermann, The Oxford Handbook of

Comparative Law, p. 1249-52, 2006. 43 Sobre este ponto, com reflexão analítica acerca do fato de que princípios têm um núcleo essencial de sentido, com natureza de

regra, v. Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídica dos princípios: o princípio da dignidade da pessoa humana, 2008, p. 67-70.

impessoalidade), a Corte extraiu a regra da vedação do nepotismo44; do princípio

democrático, deduziu que o parlamentar que mude de partido após o pleito perde o

cargo45.

Do princípio da dignidade humana, em acepção compartilhada em diferentes

partes do mundo, retiram-se regras específicas e objetivas, como as que vedam a

tortura, o trabalho escravo ou as penas cruéis. Em muitos sistemas, inclusive o

brasileiro, há normas expressas interditando tais condutas, o que significa que o

princípio da dignidade humana foi densificado pelo constituinte ou pelo legislador.

Nesses casos, como intuitivo, o intérprete aplicará a regra específica, sem

necessidade de recondução ao valor ou princípio mais elevado. Mas, por exemplo, à

falta de uma norma específica que discipline a revista íntima em presídio, será possível

extrair da dignidade humana a exigência de que mulheres não sejam revistadas por

agentes penitenciários masculinos.

A eficácia interpretativa dos princípios constitucionais significa que os valores e

fins neles abrigados condicionam o sentido e o alcance das normas jurídicas em geral.

A dignidade, assim, será critério para valoração de situações e atribuição de pesos em

casos que envolvam ponderação. Por exemplo: o mínimo existencial desfruta de

precedência prima facie diante de outros interesses46; algemas devem ser utilizadas

apenas em situações que envolvam risco, e não abusivamente47; a liberdade de

expressão, como regra, não deve ser cerceada previamente48.

Merece registro, nesse tópico, o papel integrativo desempenhado pelos

princípios constitucionais, que permite à dignidade ser fonte de direitos não-

enumerados e critério de preenchimento de lacunas normativas. Como o direito de

privacidade ou a liberdade de orientação sexual, onde não tenham previsão

expressa49. No Brasil, direta ou indiretamente, a dignidade esteve subjacente a

inúmeras decisões criativas, em temas como fornecimento gratuito de medicamentos

fora das hipóteses previstas na normatização própria50, não-compulsoriedade do

44 ADC nº 12, Rel. Min. Carlos Ayres Britto; RE nº 579.951-RN, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, tb., Súmula Vinculante nº 13. 45 MS nº 26.602, Rel. Min. Eros Grau; MS nº 26.603, Rel. Min. Celso de Mello; e MS nº 26.604, Rel. Min. Carmen Lúcia. 46 STJ, DJ 7 mai. 2010, AgRg no Ag 1265900-RS, Rel. Min. Sidnei Beneti. 47 STF, Súmula Vinculante nº 11. 48 STF, InformativoSTF 598, 30 ago. - 3 set. 2010, ADI nº 4451, Rel. Min. Carlos Britto. 49 Nos Estados Unidos, por exemplo, o reconhecimento do direito de privacidade, à falta de norma constitucional expressa, se

deu em sede jurisprudencial, no caso Griswold v. Connecticut, julgado em 1965; e somente com a decisão em Lawrence v.

Texas, de 2004, deixou de ser legítima a criminalização das relações homossexuais. Diversos países, nos últimos anos,

legalizaram as uniões e casamentos homoafetivos, como, por exemplo, Dinamarca, Noruega, Suécia, Reino Unido, França,

Bélgica, Alemanha e Portugal, em meio a muitos outros. 50 STF, DJE 30 abr. 2010, STA 424-SC, Rel. Min. Gilmar Mendes (Presidente).

exame de DNA em investigação de paternidade51, bem como em hipóteses de

redesignação sexual52.

A eficácia negativa, por fim, implica na paralisação da aplicação de qualquer

norma ou ato jurídico que seja incompatível com o princípio constitucional em questão.

Dela pode resultar a declaração de inconstitucionalidade do ato, seja em ação direta ou

em controle incidental. Por vezes, um princípio constitucional pode apenas paralisar a

incidência da norma em uma situação específica, porque naquela hipótese concreta se

produziria uma conseqüência inaceitável pela Constituição53.

Pois bem: a dignidade da pessoa humana foi um dos fundamentos para a

mudança jurisprudencial do STF em tema de prisão por dívida, passando-se a

considerar ilegítima sua aplicação no caso do depositário infiel54. Foi ela, igualmente,

um dos argumentos centrais pelos quais se negou aplicação, em inúmeros

precedentes, a dispositivo da Lei de Entorpecentes que proibia, peremptoriamente, a

liberdade provisória55. Não apenas atos estatais, mas também condutas privadas

podem ser consideradas violadoras da dignidade humana e, consequentemente,

ilícitas. Em uma das raras ocasiões em que se dispôs a limitar a liberdade de

expressão, o STF considerou ilegítima a manifestação de ódio racial e religioso56.

Três observações finais relevantes. A primeira: a dignidade da pessoa humana é

parte do conteúdo dos direitos materialmente fundamentais, mas não se confunde com

qualquer deles57. Nem tampouco é a dignidade um direito fundamental em si,

ponderável com os demais58. Justamente ao contrário, ela é o parâmetro da

ponderação, em caso de concorrência entre direitos fundamentais. Em segundo lugar,

51 STF, RTJ 165:902, HC nº 71.373-RS, Rel. Min. Marco Aurélio. 52 STJ, DJ 18 nov. 2009, REsp. 1008398, Rel. Minª. Nancy Andrighi. 53 Na ADPF nº 54, em que se pede o reconhecimento do direito de as mulheres interromperem a gestação no caso de fetos

anencefálicos, este é um dos fundamentos. Pede-se ao STF, não que declare a inconstitucionalidade dos artigos do Código Penal

que criminalizam o aborto, mas que reconheça que eles não devem incidir nessa hipótese, pois obrigar uma mulher a levar a

termo uma gestação inviável viola a dignidade da pessoa humana. 54 O entendimento que ao final prevaleceu é o de que o Pacto de São José da Costa Rica, tratado sobre direitos humanos, tem

estatura supralegal e prevalece sobre a legislação interna brasileira que a autorizava. No âmbito do STF, a dignidade humana foi

invocada pelo Ministro Ilmar Galvão, relator do RE nº 349.703-RS, ao justificar sua mudança de opinião. No STJ, esteve

igualmente presente no voto do relator, Min. Luiz Fux, no HC nº 123.755-SP. Sobre o tema, v. o comentário de Carmen

Tiburcio, Os tratados internacionais no Brasil: a prisão civil nos casos de alienação fiduciária e depósito, Revista de Direito do

Estado 12:421, 2008. 55 STF, DJ 09.ABR.2010, HC 100953/RS, Rel. Minª Ellen Gracie. No mesmo sentido, v.: STF, DJ 30.abr.2010, HC 100872/MG,

Rel. Min. Eros Grau; STF, DJ 30.abr.2010, HC 98966/SC, Rel. Min. Eros Grau; STF, DJ 14.mai.2010, HC 97579/MT, Rel. Min.

Eros Grau; STF, Rel. Min. 12.fev.2010, HC 101505/SC, Rel. Min. Eros Grau. 56 Trata-se do Caso Elwanger, em que o STF decidiu que a liberdade de expressão não protege a incitação de racismo antisemita.

DJU, 19 mar. 2003, HC nº 82.424-RS, Rel. p o acórdão Min. Maurício Corrêa. 57 Imaginando os direitos fundamentais como uma circunferência, a dignidade estará mais perto do núcleo do que das

extremidades. 58 Dominique Rousseau, Les libertes individuelles et la dignité de la personne humaine, 1998. Em sentido contrário, v. Krystian

Complak, Cinco teses sobre a dignidade da pessoa humana como conceito jurídico, Revista da ESMEC 21:107, 2008, p. 117.

embora seja qualificada como um valor ou princípio fundamental, a dignidade da

pessoa humana não tem caráter absoluto59.

É certo que ela deverá ter precedência na maior parte das situações em que

entre em rota de colisão com outros princípios60, mas, em determinados contextos,

aspectos especialmente relevantes da dignidade poderão ser sacrificados em prol de

outros valores individuais ou sociais, como na pena de prisão, na expulsão do

estrangeiro ou na proibição de certas formas de expressão. Uma última anotação: a

dignidade da pessoa humana, conforme assinalado acima, se aplica tanto nas relações

entre indivíduo e Estado como nas relações privadas61.

1.3.2 Conteúdo mínimo da idéia de dignidade humana

1.3.2.1 A influência do pensamento kantiano62

Immunuel Kant (1724-1804) foi um dos mais influentes filósofos do Iluminismo e

seu pensamento se irradiou pelos séculos subseqüentes63, sendo ainda hoje referência

central na filosofia moral e jurídica, inclusive e especialmente na temática da dignidade

humana64. A filosofia kantiana foi integralmente construída sobre as noções de razão e

de dever, e sobre a capacidade do indivíduo de dominar suas paixões e de identificar,

dentro de si, a conduta correta a ser seguida65.

Sem embargo de sua influência dominante, tal visão sofreu a critica de

contemporâneos e de pósteros, que apontavam ora para os limites da razão – em

59 Em sentido contrário, há decisões do Tribunal Constitucional Federal alemão. V. Donald P. Kommers, The constitutional

jurisprudence of the Federal Republic of Germany, 1997, p. 32. 60 Robert Alexy, Teoría de los derechos fundamentales, 1997, p. 105-109. 61 Sobre o tema, v. decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão no caso Lüth, in Donald P. Kommers, The constitutional

jurisprudence of the Federal Republic of Germany, 1997, p. 361-68. Em língua portuguesa, v. Daniel Sarmento, Direitos

fundamentais e relações privadas, 2004, p. 141 e s.; Jane Reis Gonçalves Pereira, Direitos fundamentais e interpretação

constitucional: uma contribuição ao estudo das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios, p.

416 e s.; e Wilson Steinmetz, A vinculação dos particulares a direitos fundamentais, 2004, p. 105 e s. V. tb. , em espanhol, Juan

Maria Bilbao Ubillos, La eficácia de los derechos fundamentales frente a particulares, 1997; em inglês, v. Mark Tushnet,

Comparative constitutional law, in Mathias Reimann & Reinhard Zimmermann, The Oxford Handbook of Comparative Law, p.

1252-53, 2006. 62 V. Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, 2004; Peter Singer (ed.), Ethics, 1994, p. 113-17; Ted

Honderich (ed.), The Oxford companion to philosophy, 1995, p. 435-39; Roger Scruton, Kant: a very short introduction, 2001;

Bruce Waller, Consider ethics, 2005, 18-46. 63 Segundo o Oxford companion to philosophy, 1993, p. 434, Kant é provavelmente o maior filósofo europeu moderno. 64 Autores utilizam a expressão virada kantiana para se referirem à renovada influência de Kant no debate jurídico

contemporâneo. V., e.g., Ricardo Lobo Torres, A cidadania multidimensional na era dos direitos. In: Teoria dos direitos

fundamentais, 1999, p. 249, onde faz referência, igualmente, a Otfried Hoffe, Kategorische Rechtsprinzipien. Ein Kontrapunkt

der Moderne, 1990, p. 135. 65 A ética kantiana encontra-se desenvolvida, sobretudo, em sua obra Fundamentação da metafísica dos costumes, publicada em

1785. Utiliza-se aqui a tradução portuguesa feita por Paulo Quintela, edição de 2004.

contraste com os sentimentos, as emoções e os desejos66 – ora para o papel

desempenhado pela comunidade em que o indivíduo está inserido na determinação de

seus valores éticos67.

É certo que não se deve subestimar o poder da razão e a capacidade de o

indivíduo se orientar por uma racionalidade prática. Mas não existe uma razão

plenamente objetiva, livre da subjetividade e dos diferentes pontos de observação.

Ademais, a vontade e a conduta das pessoas são indissociáveis de múltiplos aspectos

da condição humana, tanto os da afetividade e da solidariedade quanto os que estão

ligados às ambições de poder e riqueza.

Sem prejuízo do registro feito acima, as formulações de Kant acerca de temas

como imperativo categórico, autonomia e dignidade continuam a ser ponto obrigatório

de passagem no debate da matéria. Aliás, curiosamente, algumas das idéias do

grande filósofo desprenderam-se do sistema de pensamento kantiano e adquiriram

significado próprio, por vezes contrastantes com as visões do seu formulador68.

Confira-se uma síntese sumária – e arriscada, naturalmente – de seus conceitos

essenciais. A Física expressa as leis da natureza e descreve as coisas tal como

acontecem. A Ética, por sua vez, tem por objeto a vontade do homem, e prescreve leis

destinadas a reger condutas69. Estas leis exprimem um dever-ser, um imperativo, que

pode ser hipotético ou categórico70.

O imperativo categórico, que diz respeito a condutas necessárias e boas em si

mesmas – independentemente do resultado que venham a produzir –,pode ser assim

enunciado: age de tal modo que a máxima da tua vontade (i.e., o princípio que a

66 V. David Hume, A treatise of human nature, 1738. Hume foi contemporâneo de Kant, mas baseou sua filosofia em

pressupostos diametralmente opostos, defendendo a primazia dos sentimentos e emoções sobre a razão. Quanto ao ponto, v.

Bruce N. Waller, Consider ethics, 2005, p. 32-44. 67 Este era o caso de Hegel, cuja obra clássica Elementos de filosofia do Direito, publicada em 1822, em sua parte II, é

largamente dedicada a combater aspectos da ética kantiana. Para Hegel, a moralidade do dever, de Kant, era excessivamente

abstrata e sem conteúdo, e precisava ser reconciliada com os padrões éticos da comunidade. Sobre o ponto, v. duas obras de

Peter Singer: Ethics, 1994, p. 113-17; e Hegel: a very short history, 2001, p. 39-48. 68 De fato, algumas invocações contemporâneas da dignidade como fundamento contra a pena de morte ou para o direito de

participação política contrastam com posições pessoais de Kant, que era favorável à pena captial e a larga restrição ao sufrágio

popular (dele excluindo todos os que não fossem independentes, como empregados e mulheres). V. R. James Fyfe, Dignity as

theory: competing conceptions of human dignity at the Supreme Court of Canadá, Saskatchewan Law Review 70:1, 2017, p. 9,

quanto ao primeiro ponto; e Roger Scruton, Kant: a very short introduction, 2001, p. 121, quanto ao segundo. 69 Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, 2004, p. 13. Kant se reporta à velha filosofia grega, que se

dividia em Física, Ética e Lógica. 70 O imperativo hipotético identifica uma ação que é necessária para se alcançar determinado fim. O imperativo categórico

expressa uma ação que é necessária em si, sem relação com qualquer outro fim. V. Immanuel Kant, Fundamentação da

metafísica dos costumes, 2004, p. 50: No caso de a ação ser apenas boa como meio para qualquer outra coisa, o imperativo é

hipotético; se a ação é representada como boa em si, por conseguinte como necessária numa vontade em si conforme à razão

como princípio dessa vontade, então o imperativo é categórico.

inspira e move) possa se transformar em uma lei universal71. Em lugar de apresentar

um catálogo de virtudes específicas, uma lista do que fazer e do que não fazer, Kant

concebeu uma fórmula, uma forma de determinar a ação ética72.

Os dois outros conceitos imprescindíveis são os de autonomia e dignidade. A

autonomia expressa a vontade livre, a capacidade do indivíduo de se autodeterminar,

em conformidade com a representação de certas leis. Note-se bem aqui, todavia, a

singularidade da filosofia kantiana: a lei referida não é uma imposição externa

(heterônoma), mas a que cada indivíduo dá a si mesmo. O indivíduo é compreendido

como um ser moral, no qual o dever deve suplantar os instintos e os interesses. A

moralidade, a conduta ética consiste em não se afastar do imperativo categórico, isto

é, não praticar ações senão de acordo com uma máxima que possa desejar seja uma

lei universal73. A dignidade, na visão kantiana, tem por fundamento a autonomia74.

Em um mundo no qual todos pautem a sua conduta pelo imperativo categórico –

no reino dos fins, como escreveu –, tudo tem um preço ou uma dignidade. As coisas

que têm preço podem ser substituídas por outras equivalentes. Mas quando uma coisa

está acima de todo o preço, e não pode ser substituída por outra equivalente, ela tem

dignidade75.

Tal é a situação singular da pessoa humana. Portanto, as coisas têm preço, mas

as pessoas têm dignidade. Como consectário desse raciocínio, é possível formular

uma outra enunciação do imperativo categórico: toda pessoa, todo ser racional existe

como um fim em si mesmo, e não como meio para o uso arbitrário pela vontade

alheia76.

71 Nas palavras literais do autor: O imperativo categórico é portanto só um único, que é este: Age apenas segundo uma máxima

tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal. V. Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos

costumes, 2004, p. 59. A imagem aqui relevante é a de todo indivíduo como um legislador universal, isto é, com capacidade de

estabelecer, pelo uso da razão prática, a regra de conduta ética extensível a todas as pessoas. 72 V. Marilena Chauí, Convite à filosofia, 1999, p. 346: O dever (em Kant) não é um catálogo de virtudes nem uma lista de ´faça

isto´ e ´não faça aquilo´. O dever é uma forma que deve valer para toda e qualquer ação moral. Há quem veja no imperativo

categórico kantiano a versão laica da regra de outro, de fundo religioso: ‘’Faz aos outros o que desejas que te façam’’. A regra

de prata envolveria pequena inversão na atuação do sujeito: ‘’Não faças aos outros o que não desejas que lhe seja feito’’. Já a

regra de bronze, ou lei de talião, incapaz de romper o ciclo de violência quando ela se instaure, é: ‘’Faz aos outros o que tem

fazem’’. Sobre o ponto, v. Maria Celina Bodin de Moraes, O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo

normativo’’. In: Ingo Wolfgang Sarlet (org.), Constituição, direitos fundamentais e direito privado, 2003, p. 139. 73 V. Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, 2004, p. 67, 75-76. 74 V. Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, 2004, p. 79. 75 V. Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, 2004, p. 77: No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma

dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se por em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa

está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então ela tem dignidade. 76 Este princípio do indivíduo como fim em si mesmo é a condição suprema que limita a liberdade das ações de cada homem.

Na formulação mais analítica do autor: Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza,

têm contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres

racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer como algo que não pode

O tratamento contemporâneo da dignidade da pessoa humana incorporou e

refinou boa parte das idéias expostas acima que, condensadas em uma única

proposição, podem ser assim enunciadas: a conduta ética consiste em agir inspirado

por uma máxima que possa ser convertida em lei universal; todo homem é um fim em

si mesmo, não devendo ser funcionalizado a projetos alheios; as pessoas humanas

não têm preço nem podem ser substituídas, possuindo um valor absoluto, ao qual se

dá o nome de dignidade.

1.3.2.2 Plasticidade e universalidade

Atores jurídicos, sobretudo na tradição romano-germânica, são ávidos por

definições abrangentes e detalhadas. Tal ambição, todavia, no que diz respeito à

dignidade humana, é impossível de se realizar. A dignidade deve ser pensada como

um conceito aberto, plástico, plural. Revivificada no mundo do segundo pós-guerra, foi

ela a ideia unificadora da reação contra o nazismo e tudo o que ele representava.

Pouco a pouco, consolidou-se o consenso de ser ela o grande fundamento dos direitos

humanos77, ideia-símbolo do valor inerente da pessoa humana e da igualdade de

todos, inclusive de homens e mulheres78.

A verdade, porém, para bem e para mal, é que a dignidade humana, no mundo

contemporâneo, passou a ser invocada em cenários distintos e complexos, que vão da

bioética à proteção do meio ambiente, passando pela liberdade sexual, de trabalho e

de expressão. Além disso, a pretensão de produzir um conceito transnacional de

dignidade precisa lidar com circunstâncias históricas, religiosas e políticas de

diferentes países, dificultando a construção de uma concepção unitária.

Nada obstante, na medida em que a dignidade humana se tornou uma categoria

jurídica, é preciso dotá-la de conteúdos mínimos, que deem unidade e objetividade à

sua interpretação e aplicação. Do contrário, ela se transformaria em uma embalagem

para qualquer produto, um mero artifício retórico, sujeito a manipulações diversas. A

ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio. V. Immanuel Kant,

Fundamentação da metafísica dos costumes, 2004, p. 71 e 68. 77 Nesse sentido existem diversos documentos internacionais, dentre os quais, exemplificativamente, a Declaração de Vienna,

produto da Conferencia Mundial sobre Direitos Humanos, de 1993, na qual se inscreveu que todos os direitos humanos têm

origem na dignidade e valor inerente à pessoa humana. V. íntegra da declaração em

http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/viena/viena.html. 78 É certo, por outro lado, que nunca qualquer documento jurídico internacional ou domestico procurou explicitar o seu

significado, que foi deixado à compreensão intuitiva dos intérpretes. V. Oscar Schachter, Editorial comment: Human dignity as

a normative concept, International Journal of Comparative Law, 1983, p. 849.

primeira tarefa que se impõe é afastá-la de doutrinas abrangentes79, totalizadoras, que

expressem uma visão unitária do mundo, como as religiões ou as ideologias cerradas.

A perdição da ideia de dignidade seria sua utilização para legitimar posições moralistas

ou perfeccionistas, com sua intolerância e seu autoritarismo.

Como conseqüência, na determinação dos conteúdos mínimos da dignidade,

deve-se fazer uma opção, em primeiro lugar, pela laicidade. O foco, portanto, não pode

ser uma visão judaica, cristã, muçulmana, hindu ou confucionista. Salvo, naturalmente,

quanto aos pontos em que todas as grandes religiões compartilhem valores comuns80.

Em segundo lugar, a dignidade deve ser delineada com o máximo de

neutralidade política possível, com elementos que possam ser compartilhado por

liberais, conservadores ou socialistas81. Por certo, é importante, em relação a múltiplas

implicações da dignidade, a existência de um regime democrático. Por fim, o ideal é

que esses conteúdos básicos da dignidade sejam universalizáveis, multiculturais, de

modo a poderem ser compartilhados e desejados por toda a família humana. Aqui,

será inevitável algum grau de ambição civilizatória, para reformar práticas e costumes

de violência, opressão sexual e tirania. Conquistas a serem feitas, naturalmente, no

plano das idéias e do espírito, com paciência e perseverança. Sem o envio de tropas.

Para tais propósitos – definir conteúdos laicos, politicamente neutros e

universalizáveis –, há um manancial de documentos internacionais que podem servir

de base, a começar pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). Note-se

o emprego do termo universal, e não internacional. Trata-se de documento aprovado

pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10.12.1948, por 48 votos a zero, com

oito abstenções. Nela se condensa o que passou a ser considerado como o mínimo

ético a ser assegurado para a preservação da dignidade humana82.

79 Sobre o ponto, v. o pensamento de John Rawls, desenvolvido em obras como: Justice as fairness: a restatement, 2001, p. 89 e

s.; O direito dos povos, 2004, p. 173 e s.; e Political liberalism, 2005, p. xiii-xxxiv. Conceito essencial ao pensamento de Rawls

é o de razão pública, do qual exclui as denominadas doutrinas abrangentes. Nas sociedades democráticas, cuja característica

básica é o pluralismo razoável, não pode prevalecer qualquer doutrina religiosa ou filosófica que traga em si a pretensão de

conter toda a verdade ou todo o direito. Isso não impede, todavia, que pessoas que compartilhem tais doutrinas possam chegar a

determinados consensos acerca de uma concepção política de justiça (overlapping consensus). Tais consensos, afirma Jack

Donelly, Human dignity and human rights, http://www.udhr60.ch/research.html, 2009, p. 6, materializaram-se nos direitos

desenvolvidos na Declaração Universal de Direitos Humanos. No mesmo sentido, no tocante ao consenso sobreposto, v. V.

Jürgen Habermas, The concept of human dignity and the realistic utopia of human rights, Metaphilosophy 41:464, 2010, p. 467. 80 V. Jack Donelly, Human dignity and human rights, http://www.udhr60.ch/research.html, 2009, p. 7. Segundo este autor,

pessoas aderentes a doutrinas abrangentes como cristianismo, islamismo, budismo, assim como kantianos, utilitaristas e

pragmáticos, em meio a muitos outros, vieram a endossar os direitos humanos como sua concepção política de justiça. 81 Sobre as complexidades envolvendo a ideia de neutralidade, seus limites e possibilidades, v. Luís Roberto Barroso,

Interpretação e aplicação da Constituição, 2009, p. 288 e s. 82 V. breve comentário à DUDH e anotações a diversos documentos internacionais em Flávia Piovesan (coord. geral), Código de

Direito Internacional dos Direitos Humanos Anotado, 2008, p. 16 e s.

Seu conteúdo foi densificado em outros atos internacionais, indiscutivelmente

vinculantes do ponto de vista jurídico – ao contrario da DUDH, tradicionalmente vista

como um documento meramente programático, soft Law –, como o Pacto Internacional

dos Direitos Civis e Políticos83 e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,

Sociais e Culturais, ambos de 16.12.196684. A eles se somam outros tratados e

convenções internacionais da ONU85, bem como documentos regionais relevantes,

americanos86, europeus87 e africanos88.

1.3.2.3 Três elementos essenciais à dignidade humana

A dignidade, como assinalado, é um conceito cujo sentido e alcance sofrem

influências históricas, religiosas e políticas, sendo suscetível de variação nas diferentes

jurisdições. Nada obstante, a ambição do presente estudo é a de dar a ela um sentido

mínimo universalizável, aplicável a qualquer ser humano, onde quer que se encontre.

Um esforço em busca de um conteúdo humanista, transnacional e transcultural89.

Ao longo do texto, ficou clara a conexão estreita entre a dignidade da pessoa

humana e os direitos humanos (ou fundamentais). Em verdade, dignidade humana e

direitos humanos são duas faces de uma só moeda, ou, na imagem corrente, as duas

faces de Jano: uma, voltada para a filosofia, expressa os valores morais que

singularizam todas as pessoas, tornando-as merecedoras de igual respeito e

consideração; a outra, voltada para o Direito, traduz posições jurídicas titularizadas

pelos indivíduos, tuteladas por normas coercitivas e pela atuação judicial. Em suma: a

moral sob a forma de Direito90. Confiram-se, a seguir, aspectos dos três conteúdos

essenciais da dignidade: valor intrínseco, autonomia e valor social da pessoa humana.

83 O pacto foi ratificado pelo Brasil em 24.01.1992 e em outubro de 2010 contava com 166 ratificações. V.

http://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=IV-4&chapter=4&lang=en. 84 O pacto foi ratificado pelo Brasil em 24.01.1992 e em outubro de 2010 contava com 160 ratificações. V.

http://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=IV-3&chapter=4&lang=en. 85 Como, por exemplo, a Convenção para Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (1948), Convenção contra a Tortura e

outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984), Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de

Discriminação Contra a Mulher (1979), Convenção sobre a Eliminação de Todas as formas de Discriminação Racial (1985),

Convenção sobre os Direitos das Crianças (1989), Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os

Trabalhadores Migrantes e seus Familiares (1990). 86 V. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969) – Pacto de San Jose da Costa Rica. Ratificada pelo Brasil em

25.09.1992. 87 V. Convenção Européia de Direitos Humanos, de 1950, revisada com o Protocolo n. 11, de 1.11.1998. 88 V. Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos – Carta de Banjul, 1979, adotada em 27.07.1981. 89 Cristopher McGrudden, Human dignity and judicial interpretation of human rights, The European Journal of International

Law 19:655, 2008, p. 723, observou a necessidade e a importância de se desenvolver uma concepção de dignidade humana que

seja transnacional, tanscultural, não-ideológica, humanista, não-positivista, individualista-embora-comunitarista. 90 Veja-se, nesse sentido, inspirada passagem de Jürgen Habermas, The concept of human dignity and the realistic utopia of

human rights, Metaphilosophy 41:464, 2010, p. 470: Em razão da promessa moral de igual respeito por todos dever ser

1.3.2.3.1 Valor intrínseco da pessoa humana

No plano filosófico, trata-se do elemento ontológico da dignidade, ligado à

natureza do ser, ao que é comum e inerente a todos os seres humanos91. O valor

intrínseco ou inerente da pessoa humana é reconhecido por múltiplos autores92 e em

diferentes documentos internacionais93. Trata-se da afirmação de sua posição especial

no mundo, que a distingue dos outros seres vivos e das coisas. Um valor que não tem

preço94. A inteligência, a sensibilidade e a comunicação (pela palavra, pela arte) são

atributos únicos que servem de justificação para esta condição singular.

Trata-se de um valor objetivo, que independe das circunstâncias pessoais de

cada um95, embora se venha dando crescente importância aos sentimento de auto-

valor e de auto-respeito que resulta do reconhecimento social. Do valor intrínseco da

pessoa humana decorre um postulado anti-utilitarista e outro anti-autoritário.

O primeiro se manifesta no imperativo categórico kantiano do homem como um

fim em si mesmo, e não como um meio para a realização de metas coletivas ou de

projetos sociais de outros96; o segundo, na ideia de que é o Estado que existe para o

indivíduo, e não o contrário97. É por ter o valor intrínseco da pessoa humana como

conteúdo essencial que a dignidade não depende de concessão, não pode ser retirada

e não é perdida mesmo diante da conduta individual indigna do seu titular. Ela

descontada em moeda legal, os direitos humanos exibem uma face de Janus, voltada simultaneamente para a moralidade e para o

Direito. Nada obstante seu conteúdo exclusivamente moral, eles têm a forma de um direito subjetivo exigível. 91 A ontologia é um ramo da metafísica que estuda os caracteres fundamentais do ser, o que todo ser tem e não pode deixar de

ter. Nela se incluem questões como a natureza da existência e a estrutura da realidade. V. Nicola Abbagnano, Dicionário de

filosofia, 1998, p. 662; e Ted Honderich, The Oxford Companion to philosophy, 1995, p. 634. 92 V., por todos, Cristopher McGrudden, Human dignity and judicial interpretation of human rights, The European Journal of

International Law 19:655, 2008, p. 679. 93 V., e.g., a Carta da ONU, de 1945, em seu preâmbulo, que reafirma a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e

no valor do ser humano. A referência é reproduzida na Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, de 1948, e na

Declaração de Viena, de 1993, elaborada durante a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos. 94 V. Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, 2004, p. 77; e, tb., Stephen Darwall, The second-person

standpoint: morality, respect and accountability, 2006, p. 119: (a) worth that has no price. 95 V. Ronald Dworkin, Is democracy possible here: principles for a new political debate, 2006, p. 9-10: Toda vida humana tem

um tipo especial de valor objetivo. (...) O sucesso ou fracasso de qualquer vida humana é importante em si (...). Todos

deveríamos lamentar uma vida desperdiçada como algo ruim em si, seja nossa própria vida ou a de qualquer outra pessoa.

(Texto ligeiramente editado). 96 Rememore-se, ainda uma vez, Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, 2004, p. 69: Age de tal maneira

que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca

simplesmente como meio. 97 Vejam-se, por todos, Jorge Reis Novais, Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa, 2004, p. 52; e

Ingo Wolfgang Sarlet, Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, 2010, p. 76.

independe até mesmo da própria razão, estando presente em bebês recém-nascidos e

em pessoas senis ou com qualquer grau de incapacidade mental98.

No plano jurídico, o valor intrínseco da pessoa humana impõe a inviolabilidade

de sua dignidade e está na origem de uma série de direitos fundamentais. O primeiro

deles, em uma ordem natural, é o direito à vida99. Em torno dele se estabelecem

debates de grande complexidade jurídica e moral, como a pena de morte, o aborto e a

morte digna. Em segundo lugar, o direito à igualdade100. Todas as pessoas têm o

mesmo valor intrínseco e, portanto, merecem igual respeito e consideração,

independente de raça, cor, sexo, religião, origem nacional ou social ou qualquer outra

condição. Aqui se inclui o tratamento não-discriminatório na lei e perante a lei

(igualdade formal), bem como o respeito à diversidade e à identidade de grupos sociais

minoritários, como condição para a dignidade individual (igualdade como

reconhecimento)101.

Do valor intrínseco resulta, também, o direito à integridade física102, aí incluídos

a proibição da tortura, do trabalho escravo ou forçado, as penas cruéis e o tráfico de

pessoas. Em torno desse direito se desenvolvem discussões e controvérsias

envolvendo prisão perpétua, técnicas de interrogatório e regime prisional. E,

igualmente, algumas questões situadas no âmbito da bioética, compreendendo

pesquisas clínicas, eugenia, comércio de órgãos e clonagem humana.

E, por fim, o direito à integridade moral ou psíquica103, domínio no qual estão

abrangidos o direito de ser reconhecido como pessoa, assim como os direitos ao

nome, à privacidade, à honra e à imagem104. É também em razão do valor intrínseco

98 Por essa razão, não se está aqui de acordo com a afirmação contida em Kant de que a dignidade tem por fundamento a

autonomia. V. Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, 2004, p. 79. 99 Vejam-se, a propósito do direito à vida, os seguintes documentos internacionais: Declaração Universal dos Direitos Humanos

(DUDH), 1948, art. III; Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (Pacto ONU), 1961, art. 6º, onde há a admissão da

pena de morte; Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Convenção Americana), 1969, art. 4º, onde tampouco há a

proscrição da pena de morte; Carta Européia de Direitos Fundamentais (Carta Européia), 2000, art. 2º, que expressamente proíbe

a pena de morte; Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (Carta Africana), 1979, art. 4º, sem referencia à pena de

morte. A Carta Européia foi republicada no Jornal Oficial da União Européia, 30 mar. 2010. 100 V. Dudh, arts. II e VII; Pacto ONU, arts. 26 e 27; Convenção Americana, art. 24; Carta Européia, art. 20-23; e Carta Africana,

art. 3º. 101 Sobre o tema, em língua portuguesa, v. Charles Taylor, A política do reconhecimento. In: Argumentos filosóficos, 2000 e

Axel Honneth, Reconhecimento ou redistribuição? A mudança de perspectivas na ordem moral da sociedade. In: Jessé Souza e

Patrícia Mattos (orgs.), Teoria crítica no século XXI, 2017. Para uma perspectiva diversa, v. Nancy Fraser, Reconhecimento sem

ética? In: Jessé Souza e Patrícia Mattos (orgs.), Teoria crítica no século XXI, 2017. 102 V. Dudh, arts. IV e V; Pacto ONU, arts. 7º e 8º; Convenção americana, arts. 5º e 6º; Carta Européia, arts. 3º a 5º; Carta

Africana, arts. 4º e 5º. 103 V. Dudh, arts. VI e XII; Pacto ONU, arts. 16 e 17; Convenção Americana, arts. 11 e 18; Carta Européia, art. 3º; Carta

Africana, art. 4º. 104 Para um diálogo transnacional pleno, as categorias aqui utilizadas – direito à vida, à igualdade e à integridade física e psíquica

– precisam ser harmonizadas com o tratamento dado pela jurisprudência dos Estados Unidos aos direitos fundamentais, com

remissão às doutrinas subjacentes às diferentes emendas que compõem o Bill of Rights. Sobre esta concepção americana e sua

que em diversas situações se protege a pessoa contra si mesma, para impedir

condutas auto-referentes lesivas à sua dignidade.

1.3.2.3.2 Autonomia da vontade

A autonomia é o elemento ético da dignidade, ligado à razão e ao exercício da

vontade na conformidade de determinadas normas105. A dignidade como autonomia

envolve, em primeiro lugar, a capacidade de autodeterminação, o direito do indivíduo

de decidir os rumos da própria vida e de desenvolver livremente sua personalidade.

Significa o poder de fazer valorações morais e escolhas existenciais sem imposições

externas indevidas.

Decisões sobre religião, vida afetiva, trabalho, ideologia e outras opções

personalíssimas não podem ser subtraídas do indivíduo sem violar sua dignidade. Por

trás da ideia de autonomia está a de pessoa, de um ser moral consciente, dotado de

vontade, livre e responsável106. Ademais, a autodeterminação pressupõe determinadas

condições pessoais e sociais para o seu exercício, para a adequada representação da

realidade, que incluem informação e ausência de privações essenciais.

Na sua dimensão jurídica, a autonomia, como elemento da dignidade, é a

principal ideia subjacente às declarações de direitos em geral, tanto as internacionais

quanto as do constitucionalismo doméstico. A autonomia tem uma dimensão privada e

outra pública. No plano dos direitos individuais, a dignidade se manifesta, sobretudo,

como autonomia privada, presente no conteúdo essencial da liberdade, no direito de

autodeterminação sem interferências externas ilegítimas.

É preciso que também estejam presentes, todavia, as condições para a

autodeterminação, as possibilidades objetivas de decisão e escolha, o que traz para

esse domínio, também, o direito à igualdade, em sua dimensão material107, ponto que

será retomado logo abaixo.

relação com a dingidade, v. Maxine D. Goodman, Human dignity in Supreme Court constitutional jurisprudence, Nebraska Law

Review 84:740, 2005-2006. 105 Relembre-se que na concepção kantiana, estas seriam normas que o próprio indivíduo se imporia. No mundo jurídico, porém,

como intuitivo, as normas são heterônomas, ditadas sobretudo pelo Estado. 106 Marilena Chauí, Convite à filosofia, 1999, p. 337-38, onde assinalou: Para que haja conduta ética é preciso que exista o

agente consciente, isto é, aquele que conhece a diferença entre bem e mal, certo e errado, permitido e proibido, virtude e vicio. A

consciência moral não só conhece tais diferenças, mas também reconhece-se como capaz de julgar o valor dos atos e das

condutas e de agir em conformidade com os valores morais, sendo por isso responsável por suas ações e seus sentimentos e pelas

conseqüências do que faz e sente. 107Trata-se, aqui, de aspecto relevante da igualdade material. A igualdade formal e a igualdade como reconhecimento situam-se

no âmbito do valor intrínseco.

No plano dos direitos políticos, a dignidade se expressa como autonomia

pública, identificando o direito de cada um participar no processo democrático.

Entendida a democracia como uma parceria de todos em um projeto de

autogoverno108, cada pessoa tem o direito de participar politicamente e de influenciar o

processo de tomada de decisões, não apenas do ponto de vista eleitoral, mas também

através do debate público e da organização social.

Por fim, a dignidade está subjacente aos direitos sociais materialmente

fundamentais, em cujo âmbito merece destaque o conceito de mínimo existencial109.

Para ser livre, igual e capaz de exercer sua cidadania, todo indivíduo precisa ter

satisfeitas as necessidades indispensáveis à sua existência física e psíquica. Vale

dizer: tem direito a determinadas prestações e utilidades elementares110. O direito ao

mínimo existencial não é, como regra, referido expressamente em documentos

constitucionais ou internacionais111, mas sua estatura constitucional tem sido

amplamente reconhecida112.

E nem poderia ser diferente. O mínimo existencial constitui o núcleo essencial

dos direitos fundamentais em geral e seu conteúdo corresponde às pré-condições para

o exercício dos direitos individuais e políticos, da autonomia privada e pública113.

Não é possível captar esse conteúdo em um elenco exaustivo, até porque ele

variará no tempo e no espaço. Mas, utilizando a Constituição brasileira como

108 Ronald Dworkin, Is democracy possible here, 2006, p. xii. 109 A ideia de mínimo existencial foi cunhada na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão, em decisões

diversas. V., e.g., BVerfGE 40:121, 1975 (In: Jürgen Schwabe, Cincuenta años de jurisprudencia del Tribunal Constitucional

Federal alemã, 2003, p. 349-500); e BVerfGE 33:303 (In: Donald P. Kommers, The constitutional jurisprudence of the Federal

Republic of Germany, 1997, p. 282). No Brasil, o tema foi desenvolvido especialmente por Ricardo Lobo Torres, que consolidou

seus diversos escritos em O direito ao mínimo existencial, 2009. Também dedicaram atenção ao tema, em meio a muitos outros,

Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana, p. 223 e

s.; Ingo Wolfgang Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva

constitucional, 2009, p. 299 e s.; e Eurico Bitencourt Neto, O direito ao mínimo para uma existência digna, 2010. Na doutrina

estrangeira, o conceito é utilizado, igualmente, por John Rawls, Political liberalism, 2005, p. 228-9, que se refere a mínimo

social (social minimum); e por Jürgen Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 1997, v. 1, p. 160, que

utiliza a expressão direitos fundamentais a condições de vida, na medida em que necessários ao desfrute, em igualdade de

chances, dos demais direitos fundamentais. 110 Esse direito pode ser satisfeito quer pelo atendimento individual, quer pela oferta de serviços públicos adequados. 111 Observe-se, todavia, que Constituições como a do Canadá, por exemplo, fazem menção à promoção de igualdade de

oportunidades para o bem estar dos canadenses (art. 36). Já a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, prevê, em

seu art. XXV, 1: Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar,

inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso

de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle. O

Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, proclama o direito de todas as pessoas a um nível de

vida suficiente para si e para as suas famílias, incluindo alimentação, vestuário e alojamento suficientes, bem como a um

melhoramento constante das suas condições de existência (art. 11.1) e, também, o direito fundamental de toda pessoa de estar

protegida contra a fome (art. 11.2). 112 V. STF, RTJ 200:191, ADPF nº 45, Rel. Min. Celso de Mello. Em celebrada decisão monocrática, o relator afirmou a

necessidade da presevação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do mínimo existencial, que não fica ao

arbítrio estatal. 113 Alem disso, o discurso ético e jurídico contemporâneo incorporou a noção de mínimo ecológico como parte do mínimo

existencial. V. Ricardo Lobo Torres, O direito ao mínimo existencial, 2009, p. 11.

parâmetro, é possível incluir no seu âmbito, como já feito na doutrina114, o direito à

educação básica115, à saúde essencial116, à assistência aos desamparados117 e ao

acesso à justiça118. Por integrar o núcleo essencial dos direitos fundamentais, o mínimo

existencial tem eficácia direta e imediata, operando tal qual uma regra, não

dependendo de prévio desenvolvimento pelo legislador.

Na jurisprudência de diversos países é possível encontrar decisões fundadas na

autonomia como conteúdo da dignidade. No julgamento do caso Rodriguez, a Suprema

Corte canadense fez expressa menção à “habilidade individual de fazer escolhas

autônomas”, embora, no caso concreto, tenha impedido o suicídio assistido119. Na

Suprema Corte americana, o mesmo conceito foi invocado em decisões como

Lawrence v. Texas, a propósito da legitimidade das relações homoafetivas120.

Na mesma linha da dignidade como autonomia foi a decisão da Corte

Constitucional da Colômbia ao decidir pela inconstitucionalidade da proibição da

eutanásia. O julgado fez expressa menção a uma perspectiva secular e pluralista, que

deve respeitar a autonomia moral do indivíduo121. A mesma Corte, ao julgar o caso

114 A nomenclatura adotada é baseada em Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio

da dignidade da pessoa humana, 2008, p. 289 e s., que inclui no mínimo existencial os direitos à educação fundamental, à saúde

básica, à assistência aos necessitados e ao acesso à justiça. Já os conteúdos por mim propostos são em alguma medida mais

amplos, como se expõe nas notas a seguir. 115 Em lugar de educação fundamental, faz-se referencia à educação básica, que inclui a educação infantil, o ensino fundamental

e o médio. O próprio texto constitucional passou a prever, apos a EC nº 59, de 11.11.2009, que deu nova redação ao art. 208, I,

educação básica obrigatória e gratuita dos quatro aos dezessete anos de idade. 116 No conceito de saúde essencial estão incluídos acesso à água potável e ao esgotamento sanitário (i.e. o saneamento básico –

CF, art. 23, IX), atendimento materno-infantil (CF, art. 227, § 1º), ações de medicina preventiva (CF, art. 198, II), ações de

prevenção epidemiológica (CF, art. 200, II) e algumas prestações de medicina curativa, em interpretação razoável do art. 196 da

Constituição, que assegura o direito à saúde. 117 A assistência aos desamparados inclui alimentação, abrigo, vestuário, renda mínima, aspectos da previdência social e lazer. A

Lei nº 10.835, de 8.01.2004, instituiu a renda básica da cidadania, programa ainda não implementado de maneira abrangente. A

Lei nº 10.836, de 9.01.2004, criou o programa bolsa família. 118 O acesso à justiça, como intuitivo, é instrumental à obtenção das prestações correspondentes ao mínimo existencial quando

não tenham sido entregues espontaneamente. 119 Canadá. Rodriguez v. British Columbia (Attorney General), [1993] 3 S.C.R 519. Data: 30 de setembro de 1993. Disponível

em: http://scc.lexum.umontreal.ca/en/1993/1993rcs3-519/1993rcs3-519.html. Acesso em maio de 2017. Com efeito, a Corte

validou a distinção feita pela legislação canadense entre recusa de tratamento – reconhecida como direito do paciente – e o

suicídio assistido, que é proibido. Por 5 votos a 4, negou o direito de uma mulher com esclerose lateral – enfermidade

degenerativa irreversível – de controlar o modo e o momento da própria morte, com assistência de um profissional de medicina.

Na decisão restou lavrado: “O que a revisão precedente demonstra é que o Canadá e outras democracias ocidentais reconhecem e

aplicam o princípio da santidade da vida como um princípio geral que é sujeito a limitadas e estreitas exceções em situações nas

quais as noções de autonomia pessoal e dignidade devem prevalecer. Todavia, essas mesmas sociedades continuam a traçar

distinções entre formas ativas e passivas de intervenção no processo de morrer, e, com pouquíssimas exceções, proíbem o

suicídio assistido em situações semelhantes à da apelante. A tarefa então se torna a de identificar as razões sobre as quais essas

diferenças são baseadas e determinar se elas são suportáveis constitucionalmente”. 120 Estados Unidos. Lawrence v. Texas, 539 U.S. 558 (2003). Em Lawrence, reverteu-se a decisão da década de 1980, proferida

no caso Bowers v. Harwick, na qual havia sido considerada constitucional lei que criminalizava as relações sexuais entre pessoas

do mesmo sexo. Firmou-se, assim, o entendimento de que conduta sexual íntima era parte da liberdade protegida pela cláusula do

devido processo legal substantivo, nos termos da 14a. Emenda. 121 Colômbia. Sentencia C-239/97. Demanda de Inconstitucionalidad contra el artículo 326 del decreto 100 de 1980 – Código

Penal. Magistrado Ponente: dr. Carlos Gaiviria Diaz. 20 de mayo de 1997. Disponível em: Acesso em agosto de 2017.

Magistrado Ponente: Eduardo Cifuentes Muñoz: “En Colombia, a la luz de la Constitución de 1991, es preciso resolver esta

cuestión desde una perspectiva secular y pluralista, que respete la autonomía moral del individuo y las libertades y derechos que

inspiran nuestro ordenamiento superior. La decisión, entonces, no puede darse al margen de los postulados superiores. El artículo

Lais versus Pandemo, reconheceu não apenas a licitude da prostituição voluntária,

como expressão da autodeterminação individual, como assegurou aos trabalhadores

do sexo direitos trabalhistas122.

1.3.2.3.3 Valor comunitário

O terceiro e último conteúdo – a dignidade como valor comunitário, também

referida como dignidade como heteronomia – abriga o seu elemento social. O indivíduo

em relação ao grupo. Ela traduz uma concepção ligada a valores compartilhados pela

comunidade, segundo seus padrões civilizatórios ou seus ideais de vida boa123.

O que está em questão não são escolhas individuais, mas as responsabilidades

e deveres a elas associados124. Como intuitivo, o conceito de dignidade como valor

comunitário funciona muito mais como uma constrição externa à liberdade individual do

que como um meio de promovê-la. Em outras palavras: a dignidade, por essa vertente,

não tem na liberdade seu componente central, mas, ao revés, é a dignidade que molda

o conteúdo e o limite da liberdade125.

A dignidade como valor comunitário destina-se a promover objetivos diversos,

dentre os quais se destacam: a) a proteção do próprio indivíduo contra atos

autorreferentes; b) a proteção de direitos de terceiros; e c) a proteção de valores

sociais, inclusive a solidariedade. É aqui que se situa a dimensão ecológica da

dignidade, que tem sido objeto de crescente interesse, abrangendo diferentes aspectos

da proteção ambiental e dos animais não-humanos126.

Em relação à dignidade como valor comunitário, é preciso ter especial cuidado

para alguns graves riscos envolvidos, que incluem: a) o emprego da expressão como

1 de la Constitución, por ejemplo, establece que el Estado colombiano está fundado en el respeto a la dignidad de la persona

humana; esto significa que, como valor supremo, la dignidad irradia el conjunto de derechos fundamentales reconocidos, los

cuales encuentran en el libre desarrollo de la personalidad su máxima expresión. (…). Este principio atiende necesariamente a

la superación de la persona, respetando en todo momento su autonomía e identidad”. 122 Colômbia. Sentencia T-62910. Acción de tutela instaurada por LAIS contra el Bar Discoteca PANDEMO. Magistrado

Ponente: Dr. Juan Carlos Heao Pérez. V. http://www.corteconstitucional.gov.co. Acesso em julho de 2017. 123 V. Letícia de Campos Velho Martel, Direitos fundamentais indisponíveis: os limites e os padrões do consentimento para a

autolimitação do direito fundamental à vida. Mimeografado. Tese de doutorado aprovada no âmbito do Programa de Pós-

Graduação da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2010, p. 172-3. 124 Essa dualidade dignidade como autonomia e como heteronomia, isto é, como fundamento de direitos ou como restrição a

comportamentes individuais, encontra-se presente em diversos autores. Merece destaque a obra de Deryck Beyleveld e Roger

Brownsword Human dignity in bioethics and biolaw, 2004, p. 29. 125 V. Letícia de Campos Velho Martel, Direitos fundamentais indisponíveis: os limites e os padrões do consentimento para a

autolimitação do direito fundamental à vida. Mimeografado, 2010, p. . V. tb. Oscar Vieira Vilhena, Direitos fundamentais: uma

leitura da jurisprudência do STF, 2006, p. 365. 126 Ingo Wofgang Sarlet e Tiago Fensterseifer, Algumas notas sobre a dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana e

sobre a dignidade da vida em geral. In: http://www.direitopublico.idp.edu.br/ . V., tb., Fábio Corrêa Souza de Oliveira e Daniel

Braga Lourenço, Em prol do direito dos animais: inventário, titularidade e categorias, 2010.

um rótulo justificador de políticas paternalistas127; b) o enfraquecimento de direitos

fundamentais em seu embate com as razões de Estado128; e c) problemas práticos e

institucionais na definição dos valores compartilhados pela comunidade, com os

perigos do moralismo e da tirania da maioria129.

Ainda que seja possível discutir o acerto dessas decisões concretas, elas

chamam a atenção para a possibilidade teórica de se legitimar restrições à liberdade

com fundamento na proteção à dignidade do próprio sujeito, definida com base em

valores socialmente compartilhados. Da mesma forma, em algumas circunstâncias

será legítima a restrição à autonomia privada para proteção dos direitos de terceiros.

ou para a imposição de determinados valores sociais. Isso vale para situações como

defesa da vida, repressão à pedofilia ou cerceamento da liberdade de expressão em

casos de calúnia ou hate speech130.

A imposição coercitiva de valores sociais, em nome dessa dimensão comunitária

da dignidade, nunca será uma providência banal, exigindo fundamentação racional

consistente. Em qualquer caso, deverá levar seriamente em conta: a) a existência ou

não de um direito fundamental em questão; b) a existência de consenso social forte em

relação ao tema; e c) a existência de risco efetivo para o direito de outras pessoas. A

dignidade de um indivíduo jamais poderá ser suprimida, seja por ação própria ou de

terceiros. Mas aspectos relevantes da dignidade poderão ser paralisados em

determinadas situações. É o que ocorre, por exemplo, nos casos de prisão legítima de

um condenado criminalmente.

127 Sobre paternalismo, v.Joel Feinberg, Legal paternalism. In: Rolf Sartorius (ed.), Paternalism, 1987, p. 3-18; Gerald Dworkin,

Paternalism: some second thoughts. In: Rolf Sartorius (ed.), Paternalism, 1987, p.105-112; Manuel Atienza, Discutamos sobre

paternalismo, Doxa: Cuadernos de Filosofía del Derecho, nº 5, 1988, p.203. 128 A dignidade como valor comunitário, imposto heteronomamente, é frequentemente associada a conceito jurídicos

indeterminados, como ordem pública, interesse público, moralidade pública, portas pelas quais ingressam, em concepções

autoritárias ou não plurais, as razões de Estado. Como observou Letícia Martel em Direitos fundamentais indisponíveis: os

limites e os padrões do consentimento para a autolimitação do direito fundamental à vida, 2010, p. 174: [O]s objetivos que

amparam o conceito de dignidade como heteronomia são similares aos do paternalismo, aos do moralismo jurídico e aos do

perfeccionismo.... 129 A expressão é utilizada tanto por John Stuart Mill (Da liberdade) como por Alexis de Tocqueville (Democracia na America).

V. Norberto Bobbio, Liberalismo e democracia, 1988, p. 55 e s. 130 Sobre a proibição dos discursos do ódio para a proteção da dignidade humana, há decisões de tribunais diversos, incluindo a

Suprema Corte de Israel, a Comissão Europeia de Direitos Humanos, as Supremas Cortes do Canadá e da África do Sul, bem

como o Tribunal Constitucional da Hungria. V. levantamento em Cristopher McGrudden, Human dignity and judicial

interpretation of human rights, The European Journal of International Law 19:655, 2008, p. 699 e s. No Brasil, um dos

fundamentos utilizados pelo STF para a proibição dos discursos do ódio foi justamente a dignidade humana. V. STF, DJU, 19

mar. 2003, HC nº 82.424/RS, Rel. p acórdão Min. Moreira Alves. Sobre o tema da liberdade de expressão nesse contexto e para

uma análise comparativa entre Estados Unidos e Europa, v. Guy E. Carmy, Dignity – The enemy from within: A theoretical and

comparative analysis of human dignity as a free speech justification, University of Pennsylvania Journal of Constitutional Law

9:957, 2006-2017.

2 HORIZONTALIZAÇÃO E VERTICALIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

2.1 Teorias da horizontalização dos direitos fundamentais

A problemática sobre a aplicação dos direitos fundamentais não tem em seu imo

o respeito ou não destes nas relações privadas, ao passo que a maior parte da

doutrina mundial entende pela sua eficácia além das relações entre particulares e

Estado, sendo poucos os doutrinadores que ainda persistem em rechaçar a

Drittwirkung. A questão centra-se na intensidade e forma que as normas

constitucionais consagradoras desses direitos irão atuar na esfera particular.

A dialética envolve diversos fatores e institutos, como as características dos

direitos fundamentais, seu efeito irradiante sobre o ordenamento, a vinculação direita

ou indireta frente a particulares e as negativas de sua aplicação em face do

conservadorismo de alguns ordenamentos jurídicos.

A historicidade, universalidade, limitabilidade, concorrência, irrenunciabilidade,

inalienabilidade e imprescritibilidade são as características determinantes dos direitos

fundamentais. Dentre elas, frisa-se a importância da irrenunciabilidade nas relações

entre particulares.131

131 Lenza, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 9ª Edição. São Paulo: Editora Método. 2005, p.518 e 519.

Os direitos fundamentais podem não ser exercidos, em razão da autonomia

privada, todavia, nunca podem ser renunciados. Quando do confronto, entre titulares

destes direitos, caberá ao intérprete ou ao aplicador, a ponderação dos interesses,

zelando pela mínima restrição de sua eficácia.

Essas e tantas outras questões serão trabalhadas na medida em que sua

relevância far-se-á imperiosa, insertas nas explicações singulares da Teoria Americana

da State Action, Teoria Mediata ou Indireta e da Teoria Imediata ou Direta dos Direitos

Fundamentais.

Todavia, o que se torna imprescindível, neste ponto, é a visualização das duas

dimensões dos Direitos Fundamentais: dimensão objetiva e subjetiva.

Os direitos fundamentais, na teoria liberal, impunham-se como limites ao poder

estatal, delimitando as pretensões e esferas de proteção que o indivíduo poderia exigir

do Estado, pela positivação desses direitos na ordem jurídica. Tratava-se, puramente,

da dimensão subjetiva dos direitos fundamentais.

O fim da segunda guerra mundial transladou a faceta simplória de que os

direitos fundamentais eram apenas faculdades ou poderes singulares, consagrando a

visão comunitária e objetiva destes, ou seja, valores e fins da atuação dos poderes

públicos, irradiando seu conteúdo por todo o ordenamento jurídico.

Não obstante esta explicação, pergunta-se o que faz da dimensão objetiva fator

primordial na aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas? Qual a

conseqüência deste efeito irradiante?

A resposta para essas perguntas liga-se diretamente à origem e

constitucionalização dos direitos fundamentais.

Invertendo a ordem, Juan María Bilbao Ubillos determina esse efeito irradiante

como “la incontenible vocación expansiva de los derechos fundamentales”

explicando:O protagonismo ou sucesso dos direitos fundamentais na cultura jurídica

atual é que as regras que os reconhecem são de aplicação direta e imediata, mas têm

um conteúdo principal, um substrato muito aberto, pelo que tendem a expandir-se,

penetrar e preencher todos os interstícios da ordem impetuosamente.132

Para a primeira pergunta, Daniel Sarmento esclarece:

No mesmo diapasão, afirma-se que a dimensão objetiva expande os direitos fundamentais para o âmbito das relações privadas, permitindo que estes transcendam o domínio das relações entre cidadão e Estado, às quais estavam

132 Ubillos, Juan María Bilbao. ¿En qué medida vinculan a los particulares los derechos privados? – Constituição, Direitos

Fundamentais e Direito Privado. Organizador: Ingo Wolfgang Sarlet. 2ª Edição. Rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do

Advogado Ed. 2006, p.308.

confinados pela teoria liberal clássica. Reconhece-se então que tais direitos limitam a autonomia dos atores privados e protegem a pessoa humana da opressão exercida pelos poderes sociais não estatais, difusamente presentes

na sociedade contemporânea.133

Paulo Bonavides analisando a Nova Hermenêutica Constitucional, inspirada pela

teoria material de valores, e a chamada “hipertrofia dos direitos fundamentais”134 afirma

sobre a dimensão objetiva dos direitos fundamentais: Com efeito, os direitos

fundamentais, ao extrapolarem aquela relação cidadão-Estado, adquirem, segundo

Böckenförde, uma dimensão até então ignorada – a de norma objetiva, de validade

universal, de conteúdo indeterminado e aberto, e que não pertence nem ao Direito

Público, nem ao Direito Privado, mas compõe a abóbada de todo o ordenamento

jurídico enquanto direito constitucional de cúpula.135

Essa Nova Hermenêutica de concretização, oriunda do princípio da unidade da

Constituição136 possibilita que os direitos fundamentais exprimam sua efetividade e

irradiação em todo ordenamento jurídico, e este ganha eficácia em razão daqueles.137

Lembramos que, os direitos fundamentais formam um muro de contenção

contra as arbitrariedades do poder político instaurado – instituem a eficácia da

Constituição (Revolução Copérnica Constitucional138). Sem embargo, vale ressaltar

que o direito privado também conhece o fenômeno do poder e da autoridade para

condicionar suas relações, não sendo apenas do poder público o ataque contra a

liberdade de manifestação do indivíduo e a dignidade da pessoa humana. Ocorre uma

progressiva multiplicação dos centros privados de poder e da atuação destes no

desenvolvimento e prestação de atividades e serviços originalmente públicos.

Daniel Sarmento fundamenta: [...] a extensão dos direitos fundamentais às

relações privadas é indispensável no contexto de uma sociedade desigual, na qual a

opressão pode provir não apenas do Estado, mas de uma multiplicidade de atores

privados, presentes em esferas como o mercado, a família, a sociedade civil e a

empresa.139

133 Sarmento, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Lumen Júris. 2006, p.107. 134 Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13 ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2003, p.587. 135 Ibidem, p.588. 136 A Corte de Karlsruhe sentenciou “Não se pode considerar insuladamente uma estipulação singular da Constituição nem

pode ser ela interpretada ‘em si mesma’, senão que deve manter ‘conexao’ de sentido com as demais prescrições da

Constituição, formando uma unidade interna”. Apud. BONAVIDES, op. cit. p.595. 137 Ibidem, p.596. 138 Streck, Lenio Luiz. La jurisdicción constitucional y las posibilidades de concretización de los derechos

fundamentales- Disponível em: http://www.leniostreck.com.br/index.php?option=com. Acesso em: 09 julho. 2017. 139 Sarmnto, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Lumen Júris. 2006, p.185.

As decisões e manifestações destes centros são, por muitas vezes, tão

imperativas e executória, que muito se assemelham às de um órgão administrativo

estatal, gerando uma aproximação substancial das formas de dominação.

Fica evidente que no estado social presente, a constante dependência

econômica, a disparidade subjetiva desenvolvida pela Lex Mercatoria140 transforma a

desigualdade entre as partes, aceitável em uma economia capitalista, em falta de

liberdade individual, incitando a proteção constitucional na esfera da autonomia

privada.

Segundo Bobbio não importa o quão livre seja o indivíduo frente ao Estado se

depois não é livre na sociedade, tampouco a existência de um Estado Liberal se vive

em uma sociedade despótica.141

Entretanto, ao afirmar a necessidade de proteção na esfera cível, não

negamos à autonomia privada fundamental base para as relações particulares, pois

esta se verifica como instrumento indispensável para a manifestação da liberdade.

A autonomia privada é o poder que o indivíduo possui para auto-regulamentar

suas decisões, relações e abstenções. Delimita-se como a capacidade de

autogovernar sua vida, dentro da sua esfera de interesses jurídicos.

Notadamente, não poderíamos entender um Estado Democrático sem a

proteção constitucional da autonomia privada. A Constituição assim consagra, em seu

artigo 5° caput, a liberdade como base dos direitos individuais. Fortalece tal vontade

quando elege a dignidade da pessoa humana como fundamento da República

Federativa do Brasil – artigo 1°, inciso III.

Com efeito, a autonomia privada e, por conseguinte, a liberdade de

autogoverno, são elementos fundamentais do princípio da dignidade da pessoal

humana em sua dimensão formal.

Não significa, porém, que esta liberdade fundamental e capacidade de

autogoverno do indivíduo não sofram limitações. É possível que, em certos casos, a

proteção dessa autonomia importe em lesão a outros direitos fundamentais nas

relações entre particulares, o que possibilita sua restrição ou limitação.

Em contrapartida, há situações em que essa autonomia privada é tão relevante

para a consagração da dignidade do indivíduo, que se faz necessário sua proteção na

esfera estatal como na particular. 140 Cf. Fiorati, Jete Jane. A Lex mercatoria como ordenamento jurídico autônomo e os Estados em desenvolvimento. Disponível

em: <http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_164/R164-02.pdf>. Acesso em: 02 ago. 2017. 141 Bobbio, Norberto. Igualdad y libertad. Tradução Pedro Aragón Rincón. Barcelona: Ediciones Paidós. 1993, p. 143.

Essa altercação sobre o choque de direitos fundamentais, de um lado a

autonomia privada – base estrutural do Direito Civil – de outro os demais direitos

consagrados no ordenamento constitucional, levou ao surgimento de várias teorias

sobre a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, as quais serão

demonstradas a seguir.

2.1.1 Teoria da negação da eficácia dos direitos fundamentais – doutrina da

State Action

Uma teoria contrária à horizontalização dos direitos fundamentais é a adotada

nos Estados Unidos da América, denominada state action.

Por essa teoria, enraizada na própria concepção do Estado Liberal Clássico, os

direitos fundamentais estabelecem limites apenas à atuação do Estado. São incapazes

de regular as relações entre particulares, e suas condutas encontram-se fora do

alcance do globo de garantias por aqueles emanado.

Destarte, no direito americano a doutrina da state action estabelece uma não-

vinculação dos particulares pelos direitos fundamentais – as primeiras dez emendas à

Constituição Americana, conhecidas como Bill of Rights –, salvo a norma constante da

13ª Emenda, oponível erga omnes: Nem a escravidão nem a servidão involuntária,

exceto como uma punição por crime da qual a parte deve ter sido devidamente

condenada, deve existir nos Estados Unidos, ou qualquer lugar sujeito à sua

jurisdição.142

As discussões sobre as emendas à Constituição Americana sugiram em um

contexto estritamente inicial da historicidade dos direitos fundamentais. O temor de um

texto constitucional aberto, possibilitando uma tirania estatal, levou a instauração de

várias convenções de Estados para elaboração e votação de imunidades para o

indivíduo frente ao poder – liberdades negativas.

Assim estabelece o preâmbulo da Bill of Rights: As convenções de vários

Estados, tendo no momento de adotar a Constituição, manifestaram vontade, a fim de

evitar a má interpretação ou o abuso de seus poderes, que fossem adicionadas outras

142 Constitution of the United States – Amendment XIII, section 1. “Note: A portion of Article IV, section 2, of the Constitution

was superseded by the 13th amendment”. Disponível em:<http://www.archives.gov/exhibits _11-27.html>. Acesso em: 25 jul.

2017.

cláusulas declarativas e restritivas: e como extensão do terreno de Confiança pública

no governo, melhor assegurará os fins benéficos de sua instituição143

Totalmente consolidada na doutrina americana, essa teoria defende uma

liberdade individual ampla, permitindo a regulação das atividades privadas pelo livre

exercício da autonomia dos contratantes. Permitir que a Constituição atuasse nas

relações interpessoais seria atingir diretamente essa liberdade e a base do direito

privado.

Outro fundamento relevante para a adoção dessa doutrina é o princípio do pacto

federativo americano. Diversamente do que ocorre no Brasil, compete aos Estados, e

não à União, legislar sobre assuntos de direito privado, salvo questões comerciais

interestaduais e internacionais.

Admite-se, todavia, a competência da União para legislar sobre direitos

humanos, entendimento oriundo de evoluções jurisprudenciais e principalmente, dos

movimentos civis durante a década de 60 – Civil Rights Act de 1964.

Embora não tenha acompanhada a evolução subjetiva e objetiva dos direitos

fundamentais, a Suprema Corte Americana desenvolveu uma nova interpretação para

a doutrina do State Action. Elaborou a public function theory, segundo a qual, estarão

igualmente sujeitos as diretrizes dos direitos fundamentais os particulares que

promovam atividades de natureza tipicamente estatal.

Sobre a teoria ora apresentada, Juan Ubillos simplifica: Os casos em que esta

doutrina jurisprudencial foi aplicada podem ser classificados, apesar de sua

disparidade tipológica, em duas grandes seções: por um lado, as relacionadas a

atividades que envolvem o exercício de uma "função pública" e, por outro lado, as em

que um estado significativo "conexão" ou "envolvimento" é detectado na ação

contestada pelo queixoso.144

Segundo maior parte da doutrina, a interpretação de poder público e função

pública deve ser realizada de modo extensivo, buscando cobrir com amplitude as

atividades com aparência relativamente privadas.

143 Bill of Rights. “During the debates on the adoption of the Constitution, its opponents repeatedly charged that the constitution

as drafted would open the way to tyranny by the central government. Fresh in their minds was the memory of the British

violation of civil rights before and during the Revolution. They demanded a "bill of rights" that would spell out the immunities of

individual citizens”. Disponível em: < ttp://www.archives.gov/exhibits/. Acesso em: 05 ago. 2017. 144 Ubillos, Juan María Bilbao. En qué medida vinculan a los particulares los derechos privados? – Constituição, Direitos

Fundamentais e Direito Privado. Organizador: Ingo Wolfgang Sarlet. 2ª Edição. Rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do

Advogado Ed. 2006, p.320.

A problemática paira sobre essas atividades exercidas e os limites de

vinculação. Deve-se verificar se o poder público está suficientemente envolvido nessa

atividade.

A Suprema Corte em 1946 – Marshal v. Alabama – defendeu seu

posicionamento, tornando o caso emblemático:

[...] Neste caso, somos convidados a decidir se o Estado, de acordo com a Primeira e Décima Quarta Emendas, pode impor punição criminal a uma pessoa que se compromete a distribuir literatura religiosa nas instalações de uma cidade pertencente à empresa, contrariando os desejos da administração da cidade. A cidade, um subúrbio de Mobile, Alabama, conhecido como Chickasaw, pertence à Gulf Shipbuilding Corporation. Exceto por isso, tem todas as características de qualquer outra cidade americana. A propriedade consiste em edifícios residenciais, ruas, um sistema de esgotos, instalações de disposição de esgoto e o "bloco de negócios" em que se situam os locais de negócios. Deputado do xerife do condado de Mobile, pago pela empresa, serve como policial da cidade. Um Estado não pode, de forma consistente com a liberdade de religião e a imprensa garantida pela Primeira e Décima Quarta Emendas, impor punição criminal a uma pessoa por distribuir literatura religiosa na calçada de uma cidade pertencente à empresa, contrariando os regulamentos da administração da cidade, onde a cidade e o seu distrito comercial são livremente acessíveis e usados publicamente em geral, mesmo que a punição seja tentada a ser estatutária, tornando-se um crime para qualquer pessoa entrar ou permanecer nas instalações de outro depois de ter sido avisado não apenas.145

Em decisões posteriores, a Suprema Corte Americana seguiu o entendimento

do mínino de função estatal para vinculação dos particulares pelas normas

consagradas na Constituição – Norwood v. Harrison, Gilmore v. City of Montgomery,

Edmonson v. Leesville Concrete Co. Inc.

Verifica-se que a public function doctrine, na verdade, traz à tona a dicotomia

público – privada.

É possível falar em dicotomia quando analisamos duas esferas excludentes, no

caso – Estado v. Sociedade146 ou Sociedade in public function v. Sociedade.

Analisando os casos violadores das elementares constitucionais a U.S.

Supreme Court vislumbrou a aproximação entre o público e o privado, determinou uma

ponte, um liame subjetivo entre as duas esferas.

Notoriamente, presencia-se essa ligação e aproximação desde a concepção do

contratualismo, onde o cidadão abre mão de seu autogoverno e adiciona a

obrigatoriedade de proteção de sua esfera privada ao poder público.

145 U.S. Supreme Court. Marshal v. Alabama. 326. U.S. 501 (1946). Disponível em: <http://supreme.justia.. Acesso em: 02 jul

2017. 146 Cf. Bobbio, Norberto. Estado, Governo, sociedade: para uma teoria geral da política. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra

S/A. 1997.

Expandindo a terminologia de ação estatal ou função pública, a Corte Suprema

aumentou os laços entre o Estado e a Sociedade, e demonstrou que essa linha de

divisão doutrinária – Público/Privado – está cada vez mais tênue, singularizando os

atos e legitimando as atuações privadas, dotadas de manifestações programáticas

funcionais, através dos diretos fundamentais.

O que ocorre, entretanto, é uma forma supérflua de solucionar a incidência dos

direitos humanos nas relações privadas. A exacerbada protection of liberty na cultura

americana permite que os juízes e tribunais não alcancem o cerne problemático,

encerrando falsamente os distúrbios sociais.

Erwin Chemerinsky147 critica veementemente as bases cristalizadoras da state

action. Afirmadas supra, essas bases seriam: a proteção da liberdade individual e a

preservação da autonomia dos Estados.

Quanto à liberdade individual, instituidora de um escudo protetivo contra os

efeitos vinculantes da Constituição, Erwin rebate tal tese asseverando que a liberdade

protegida não é da vítima, mas sim de seu violador, firmando, dessa forma, os

sacrifícios dos direitos daquela:

A doutrina de ação estatal protege a liberdade de violadores privados de sanções constitucionais. Ele sacrifica completamente os direitos das vítimas, mesmo nos casos em que não há absolutamente nenhuma justificativa para fazê-lo. Portanto, eliminar a doutrina da ação estadual aumentaria a liberdade ao acabar com o favoritismo arbitrário dos infratores sobre as vítimas. Sem um requisito de estado, os casos seriam decididos de forma a maximizar a liberdade.148

Insta que, Erwin traduz uma forma de resolução com base no judicial

balancing149 e uma discussão articulada pela corte em definir os conflitos de liberdade

e a ponderação de interesses: A liberdade seria melhor protegida se os tribunais

abertamente articulassem os interesses concorrentes que estavam equilibrando. Isso

forçaria os tribunais a identificar e definir claramente as liberdades conflitantes,

melhorando a compreensão de cada um dos direitos em jogo.150

Outra falha na teoria é a argüição da necessidade da state action para criar a

esfera de proteção pessoal da autonomia. Essa esfera poderia ser alcançada pela lei e

147 Professor: Duke University School of law. C.V.: <http://www.law.duke.edu/fac/chemerinsky/cv>. 148 Chemerinsky, Erwin. Rethinking State Action. Northwestern University Law Review - Volume 80. 1985, p.540. Cf. Modern

Cosntitutional Theory: A Reader. Disponível em: <http://eprints.law.duke.edu/ (1985-1986).pdf>. Acesso em: 01 jul. 2017. 149 “…judicial balancing conceives of law as an instrument to achieve human purposes, not as an end into itself… however,

remains primitive in its analysis of facts. Too many instances of constitutional interpretation--especially ones under a balancing

approach--fail to adequately explore and develop the facts. Judicial balancing often is not a detailed exploration into a problem,

but an attempt by overworked judges to guess, hypothesize, and make policy from untested assumptions about the facts.”

SOLOVE, J. Daniel. The Darkest Domain: Deference, Judicial Review, and the Bill of Rights. 84 IOWA L. REV. 941 (1999).

Disponível em: < http://papers.ssrn.com. Acesso em: 05 jul. 2017. 150 Chemerinsky, loc. cit.

doutrina legal, com a instituição de cláusulas gerais de direitos, norteadoras das

decisões judiciais.

No que tange a autonomia dos Estados, Erwin esclarece que embora fossem

compelidos a proteger os direitos fundamentais, os mesmos teriam grande flexibilidade

para determinar os meios e extensão na aplicação desses direitos.

Sem embargo, no instante em que os Estados estabelecem normas protetivas

dos indivíduos em suas relações particulares, tornar-se-á desnecessária uma atuação

federal supervisora.

Outrossim, conclui Erwin: A conclusão é clara: a soberania do Estado não pode

ser usada como uma desculpa para justificar violações dos direitos constitucionais. Os

Estados não têm o poder de evitar a reparação das negativas de liberdade e igualdade.

Assim, o conceito de ação estadual não é necessário para proteger o federalismo.151

Apesar das falhas e críticas à doutrina da “Ação Estatal”, ou em sua forma

menos acentuada a “Função Pública”, o que notamos é uma aplicação direta dos

direitos fundamentais constitucionalizados ainda que de forma mitigada, condicionada

e insegura.

Um desempenho mais ativo dos Estados Americanos na positivação de

institutos de proteção dos direitos fundamentais seria uma alternativa válida para

atenuar a aplicação da state action. Não obstante essa medida, a adoção do sistema

de ponderação de interesses pelos órgãos julgadores poderia trazer maior segurança

ao ordenamento norte-americano.

2.1.2. Teoria da aplicação indireta ou mediata

A partir da década de 50, na Alemanha, iniciaram-se rumores sobre a

Drittwirkung – Aplicação Horizontal dos Direitos Fundamentais – com modalidades e

intensidade diferentes de aplicação.

A evolução da teoria tem como base a eficácia da lei em “função dos direitos

fundamentais”152, substituindo a eficácia formal clássica dos direitos civis pela real

eficácia daqueles.

Nipperdey, presidente do Tribunal Federal do Trabalho, foi o primeiro a formular

essa doutrina em um julgamento no ano de 1954, reconhecendo que os direitos 151 Ibidem, p. 546-547. 152 Vislumbra-se uma nova legitimação eficacial da lege, ou seja, as normas estruturadoras do ordenamento jurídico retiram seu

grau de eficácia e limitações implícitas dos direitos fundamentais, constitucionalmente positivados.

fundamentais são princípios ordenadores da vida social, com relevância direta nas

relações interprivados.153

Tal entendimento, de início, foi rechaçado por boa parte da doutrina alemã,

sendo desenvolvido por autores como Dürig e Leisner.

Precisamente em 1956, com a obra Grundrechte und Zivilrechtsprechung de

Günter Dürig, e em 1960 com Leisner154, houve grande adequação e desenvolvimento

das teorias de vinculação dos direitos fundamentais em todas as esferas, sendo, desde

a época, adotada por grande parte da doutrina e tribunais alemães.

Juan Ubillos, explicando o entendimento de Leisner, afirma: Para este autor, no

se puede seguir sosteniendo que los derechos fundamentales significa tudo em direito

público ", com uma" omnipresença intensiva ", e" nada em direito privado ". Nas duas

esferas "eles significam algo": a proteção final do conteúdo nuclear da liberdade.155

A teoria da eficácia mediata dos direitos fundamentais, conhecida como

Mittelbare Drittwirkung, tem como fundamento uma aplicação indireta destes nas

relações privadas, ou seja, não ingressariam como direitos subjetivos.

Haveria possibilidade de que os particulares renunciassem a certos direitos

fundamentais no âmbito das relações privadas, o que não seria possível na relação

desses com o Estado.

Segundo adeptos desta teoria156 a grande ameaça da aplicação direta dos

direitos constitucionalizados seria a desfiguração da base do direito privado pelo

extermínio da autonomia privada.

Konrad Hesse argumenta essa possível violação: [...] o princípio fundamental do

nosso Direito Privado, autonomia privada, se as pessoas em suas relações não

pudessem renunciar às normas de direitos fundamentais que não estão disponíveis

para a ação do Estado157

A aplicação direta dos direitos positivados na Constituição geraria um hipertrofia

normativa constitucional e, conseqüentemente, um poder incomensurável aos

magistrados, em vista do grau de indeterminação das normas definidoras dos direitos

constitucionais.

153 Ubillos, Juan María Bilbao. ¿En qué medida vinculan a los particulares los derechos privados? – Constituição, Direitos

Fundamentais e Direito Privado. Organizador: Ingo Wolfgang Sarlet. 2ª Edição. Rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do

Advogado Ed. 2006, p.309. 154 Cf. Leisner, Walter. Grundrechte und Privatrecht. München: C.H. Beck. 1960. 155 Ubillos, loc. cit. 156 Günter Dürig, Claus-Wilhelm Canaris, José Joaquim Gomes Canotilho. 157 Hesse, Konrad. Derecho Constitucional y Derecho Privado, 1995 apud SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e

Relações Privadas. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Lumen Júris. 2006, p.199.

Canotilho afirma que a idéia de aplicabilidade direta representa um reforço para

a normatividade. Todavia, deixa claro que não se pode recorrer a uma proteção de um

conteúdo jurídico-constitucional quando a indeterminação da norma é evidente: O

raciocínio é portanto este: as normas garantidoras de direitos, liberdades e garantias

são directamente aplicáveis desde que possuam suficiente determinabilidade. Temos

aqui duas questões dogmáticas: (1) aplicabilidade de normas; (2) determinabilidade de

normas.158

Para o doutrinador, as normas devem possuir um grau máximo ou mínimo de

juridicidade, dependendo do que se dispõe a abranger. Contudo, o grau de

determinabilidade é imprescindível, no instante que rege normas de comportamento

para os particulares sob pena de invalidade.

A segurança jurídica é alcançada pela determinabilidade nos ditames de uma

norma precisa e previsível, capaz de traduzir orientação e eficácia, assim como a

feitura de lei infraconstitucional se coloca como necessidade para exprimir maior

precisão e clareza. Nesse passo, a determinabilidade figura como “princípio

heterovinculante”159 da entidade legiferante.

Vislumbra-se que essa teoria nega uma força normativa vinculante da

Constituição, não investindo os particulares em direitos subjetivos privados, tendo o

condão, simplesmente, de irradiar suas limitações e ditames à legislação civil, a qual

regularia diretamente as relações interprivadas.

Prega, nesse diapasão, a aplicação dos direitos fundamentais por intermédio de

um órgão do Estado. Assim explica Ubillos:

A teoria da eficácia direta ou direta, que favorece uma boa parte da doutrina, é uma solução intermediária que tenta superar as armadilhas de uma ordem dogmática que impediu o reconhecimento geral do Drittwirkung em sua versão pura. Isto é conseguido condicionando o funcionamento dos direitos fundamentais no campo das relações privadas para a mediação de um órgão estadual, que, além de estar diretamente vinculado a esses direitos, deve ser consistente com o dever de proteção que deriva da dimensão objetivo dos direitos fundamentais. É especificamente exigido a intervenção do legislador ou recepção através do juiz, no momento da interpretação da regra aplicável ao caso.160

Evidencia-se que essa teoria mediata coloca-se como intermédio entre os

defensores da aplicação imediata e dos que negam qualquer vinculação dos

158 Canotilho, José Joaquim Gomes. Estudos Sobre Direitos Fundamentais – Coimbra Editora. 2004, p.147. 159 Ibidem, p. 149. 160 Ubillos, Juan María Bilbao. ¿En qué medida vinculan a los particulares los derechos privados? – Constituição, Direitos

Fundamentais e Direito Privado. Organizador: Ingo Wolfgang Sarlet. 2ª Edição. Rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do

Advogado Ed. 2006, p.311.

particulares aos direitos fundamentais. Conforme Daniel Sarmento: A diferença

essencial consiste no reconhecimento, pelos primeiros, de que os direitos

fundamentais exprimem uma ordem de valores que se irradia por todos os campos do

ordenamento, inclusive sobre o direito privado, cujas normas têm de ser interpretadas

ao seu lume.161

Essa ordem de valores irradiante é o que vincula o legislador e o juiz à aplicação

da legislação privada. Os particulares são protegidos em suas relações por

instrumentos típicos do direito privado. Primeiramente pelo legislador

infraconstitucional, e nas soluções das lides, pelo juiz.

Como soldado principal dessa intervenção estatal está o legislador ordinário,

com o dever funcional de concretizar o alcance das normas constitucionais nas

relações privadas.

Essa concretização se dá através da delimitação do conteúdo das normas,

trazendo maior determinabilidade e condição de exercício das mesmas. O principal

instrumento para essa atuação é a lei, oferecendo garantia e segurança jurídica.

Entretanto, uma interpretação radical da teoria mediata, levaria o exegeta a

concluir que a atuação legislativa seria condição sine qua non para o exercício dos

direitos fundamentais frente a particulares. Wolfang Böckenförd explica que a sua

realização “no puede depender de una configuración infraconstitucional suficiente del

ordenamiento jurídico-privado”162.

Insta que, quando houver possibilidade de aplicação constitucional através da

legislação cível e de suas clásulas gerais, fica fundada a teoria da aplicação mediata

dos direitos fundamentais. A inexistência de norma regulamentadora, por sua vez, não

pode gerar a inaplicabilidade de tais direitos, sob pena de violar o espírito e a eficácia

normativa da Constituição.

Para solucionar essa omissão legal, o juiz atuaria como soldado de reserva,

resolvendo as infinidades de conflitos que o legislador é incapaz de imaginar,

tampouco positivar.

Essa atuação judicante restritiva, marcante característica dos adeptos dessa

teoria, manifestar-se-ía pela interpretação conforme da legislação civil pelo magistrado,

161 Sarmento, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Lumen Júris. 2006, p.199. 162 Bockenford, Ernst-Wolfang, 1993 apud UBILLOS, Juan María Bilbao. ¿En qué medida vinculan a los particulares los

derechos privados? – Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Organizador: Ingo Wolfgang Sarlet. 2ª Edição.

Rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed. 2006, p.312.

permitindo que os valores dos direitos fundamentais impregnem as cláusulas gerais e

as situações-tipo nas decisões dos juízes e tribunais.

A aplicação mediata dos direitos fundamentais por intervenção do juiz foi

acolhida, primeiramente pelo Tribunal Constitucional Alemão

(Bundesverfassungsgericht) na conhecida sentença Lüth, transformando-se em um

marco para a Mittelbare Drittwirkung.

Nesse passo, o artigo Lüth’s 50th Anniversary: Some Comparative

Observations on the German Foundations of Judicial Balancing publicado no German

Law Journal:

A decisão Lüth pode ser vista como um momento fundamental para pelo menos dois desenvolvimentos pós-guerra transformadores no pensamento constitucional que continuam a influenciar os sistemas legais em todo o mundo. O julgamento, em primeiro lugar, está na origem da disseminação fenomenal na aceitação de doutrinas sobre o "efeito horizontal" das normas constitucionais. Com a sua resposta de princípio e afirmativa à "questão fundamental de saber se as normas constitucionais afetam o direito privado", a FCC iniciou uma expansão da esfera de influência de direitos que atravessou países tão diversos como a África do Sul e o Canadá, e isso tem provavelmente culminou com a decisão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias do ano passado sobre o "efeito horizontal" das regras comunitárias em matéria de livre circulação. Em segundo lugar, e, se possível, ainda mais importante, a decisão Lüth pode ser considerada como a base do que se chamou de "Paradigma pós-guerra" da adjudicação de direitos constitucionais. Com a Lüth - e com a decisão Apotheken de alguns meses depois - um movimento começou por um número crescente de tribunais em todo o mundo para adotar o idioma do equilíbrio

judicial para justificar suas decisões sobre os direitos constitucionais.163

O FCC (Bundesverfassungsgericht)164 em diversas decisões posteriores

consolida seu entendimento na defesa dos direitos fundamentais pela intervenção

estatal. Teoria adotada também por países como a Áustria e França, ainda que neste,

de modo tímido.

Esses dois modos de intervenção estatal seriam necessários devido à

incapacidade das disposições constitucionais de solucionarem os problemas concretos

das relações entre particulares.

Em crítica exemplar à teoria de eficácia mediata ou indireta dos direitos

fundamentais, Ubillos afirma:

Um direito cujo reconhecimento, cuja existência, depende do legislador, não é um direito fundamental. É um direito de classificação legal, simplesmente. O direito fundamental é precisamente definido pela indisponibilidade do seu conteúdo pelo legislador. Não parece compatível com essa caracterização a afirmação de que os direitos fundamentais só operam (contra indivíduos)

163 Bomhoff. Jacco. Lüth’s 50th Anniversary: Some Comparative Observations on the German Foundations of Judicial

Balancing. Disponível em: < http://www.germanlawjournal.com/article.php?id=900>. Acesso em: 04 ago. 2017. 164 Cf. FCC <http://www.bundesverfassungsgericht.de>.

quando o legislador assim o decide. Daí o termo "eficácia mediada" parece-nos equívoco. Aqueles que defendem a necessidade de mediação legal como um passo obrigatório para o reconhecimento do direito estão de fato negando a eficácia "horizontal" dos direitos fundamentais, como tal.165

Torna-se evidente que a teoria, ora demonstrada, é insuficiente para atender a

Nova Hermenêutica Constitucional. Se for necessária a atuação legislativa para que as

disposições constitucionais tenham aplicabilidade, não haverá fundamento para a

existência da Constituição. Negar-se-ía toda eficácia normativa e todo estudo

anteriormente proposto.

A vontade do direito deve ser interpretada em sua efetiva aplicação

constitucional e, por sua vez, a constituição não deve carecer de uma “porta de

entrada” legislativa ou de uma mediação judicial para sua incidência no Direto Privado,

daí surge a debilidade da teoria da eficácia mediata dos direitos fundamentais.

Como explicado por Ubillos, quem defende a atuação do legislador ordinário

para efetivar a integral tutela dos direitos fundamentais, ou a simples aplicação

interpretativa do juiz, na verdade, nega a horizontalização dos direitos fundamentais, e

sedimenta apenas a teoria da interpretação conforme à Constituição.

2.1.3 Teoria da aplicação imediata e direta dos direitos fundamentais.

A drittwirkung nasce na Alemanha na década de 50, explicado anteriormente,

pela tese de Hans Carl Nipperdey.

Desse desenvolvimento, verifica-se que a adoção do Estado Constitucional

Social e Democrático de Direitos leva, inexoravelmente, ao reconhecimento da eficácia

imediata frente a terceiros dos direitos fundamentais e sua respectiva potencialidade

direta decorrente de seu caráter subjetivo garantido constitucionalmente.

Dentro da atual conjuntura político-jurídica, muito mais do que dar efetividade às

normas constitucionais, adotar a teoria da aplicação imediata é transparecer a

dissolúvel dicotomia público-privada.

Não se pode conceber o direito privado como um sistema independente,

desconjuntado das premissas majoritárias do Estado Social e da constitucionalização

dos direitos sociais e da personalidade.

165 Ubillos, Juan María Bilbao. ¿En qué medida vinculan a los particulares los derechos privados? – Constituição, Direitos

Fundamentais e Direito Privado. Organizador: Ingo Wolfgang Sarlet. 2ª Edição. Rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do

Advogado Ed. 2006, p.315.

Essa concepção teórica tem por objetivo a aplicação direita e imediata dos

direitos fundamentais nas relações privadas, ressalvando os métodos de incidência.

Necessário aclarar que é impossível transplantar o particular para a posição de

sujeito passivo na relação eficacial dos direitos fundamentais nos mesmo moldes que

se faz com os poderes públicos.

Com efeito, os particulares são titulares de direitos fundamentais, e contra eles

não seria possível atribuir toda a esfera restritiva que essas normas possuem em face

do Estado, ao passo que, são imbuídos da proteção constitucional de

autodeterminação de seus atos, preservando sua autonomia e autogoverno.

Ao analisarmos os dois planos eficaciais dos direitos fundamentais,

vislumbramos várias formas de violações desses direitos por dois agentes distintos. O

primeiro deles é o Estado, que tanto por ação como omissão pode violá-los; como

segundo agente, o particular.

Nesse diapasão, ao trabalhar o Estado como agente, pode-se introduzir a Teoria

dos Deveres de Proteção (Schutzpflicht) desenvolvida por Claus Canaris e Klaus

Stern166. Para esses doutrinadores os direitos fundamentais vinculam diretamente os

poderes públicos, e nessa esfera instituem a “proibição de intervenção”

(Eingriffsverbote) e o “imperativo de tutela” (Schutzgebote).

Nestes termos, determina a Bundesverfassung em seu artigo 1°, n°3: Die

nachfolgenden Grundrechte binden Gesetzgebung, vollziehende Gewalt und

Rechtsprechung als unmittelbar geltendes Recht.

Pela vinculação direta do executivo, legislativo e judiciário depreende-se essa

teoria defensiva e protetiva dos direitos fundamentais pelo Estado.

Em um primeiro plano, o legislador infraconstitucional deve não apenas respeitar

os direitos fundamentais (defensivo), mas também desenvolver proteção adequada

desses na esfera privada (protetivo).

Nesse ínterim, vislumbra-se estreita ligação do defendido por Canaris com a

teoria indireta por mediação do legislador, por assim dizer, a dimensão objetiva dos

direitos fundamentais.

Com efeito, a proteção judicial vincular-se-ía, igualmente, negativa e

positivamente aos direitos fundamentais. O magistrado, em suas decisões estaria

obrigado a efetivar o núcleo determinativo dos direitos fundamentais e evitar sua

restrição baldada. 166 Apud Sarmento, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Lumen Júris. 2006, p.216.

Sem embargo, a teoria dos deveres de proteção estaria vinculada à mediação

pelo legislador ordinário e pelo juiz que devem assumir postura temerária na efetivação

dos direitos fundamentais nas condutas particulares.

A explanação sobre a Teoria de Claus Canaris é primordial para desfazer o

equívoco daqueles que criticam a teoria da eficácia imediata dos direitos fundamentais.

Os adeptos desta não negam especificidades de aplicação, tampouco os poderes de

irradiação – vocación expansiva – desses direitos através da lei. Segundo Ubillos:

Dada a confusão em torno deste assunto, é importante esclarecer algumas idéias para ajudar a desfazer um mal-entendido perturbador, que é o resultado da contraposição usual entre eficácia média e imediata, como se estivessem excluindo conceitos. É um falso dilema: admitir a possibilidade de uma validade imediata dos direitos fundamentais nas relações inter-privadas em certos casos, não significa negar ou subestimar o efeito da irradiação desses direitos através da lei. Ambas as modalidades são perfeitamente compatíveis: o que é normal (e mais conveniente também) é que o legislador especifique o alcance dos diferentes direitos nas relações de direito privado, mas quando tal mediação não existe, na ausência de lei, normas disposições constitucionais

podem ser aplicadas diretamente.167

Insta que, a atuação legislativa ordinária é fundamental para determinar os

métodos e a graduação eficacial das normas constitucionais nas relações privadas.

Entretanto, a ausência legislativa não deve ser obstáculo para o exercício desses

direitos.

A atuação direta dos direitos constitucionais nas decisões judiciais não seria

simples regra hermenêutica ou de interpretação, mas o reconhecimento delas como

normas comportamentais, razão primária e justificadora da atuação jurisdicional.

Entretanto, a Constituição pode demonstrar sua eficácia de forma dúplice ou

binária. Esse método concretiza-se quando o judiciário, em sua atuação típica, resolve

o caso concreto utilizando-se da legislação ordinária, mas como esta não é a única

razão da fundamentação da decisão, pois, compõe-se também de princípios

constitucionais, a aquela atua de forma binária. Primeiramente, pode ser aplicada

direta ao caso, em razão de sua normatividade, de uma inconstitucionalidade chapada

ou do princípio da dignidade da pessoa humana; de modo secundário, uma eficácia

através da legislação privada – em um sistema de cláusulas gerais – pela sua

dimensão objetiva.168

167 Ubillos, Juan María Bilbao. ¿En qué medida vinculan a los particulares los derechos privados? – Constituição, Direitos

Fundamentais e Direito Privado. Organizador: Ingo Wolfgang Sarlet. 2ª Edição. Rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do

Advogado Ed. 2006, p.319. 168 Cf. Tartuce, Flávio. Tendências do Novo Direito Civil: Uma Codificação para o 3° Milênio. Compreendendo a Nova

Codificação. Neste artigo o professor abrange a codificação do direito privado e o sistema de cláusulas abertas do Novo Código

Civil. Disponível em: < http://www.flaviotartuce.adv.br/ >. Acesso em: 20 jul. 2017.

A Constituição Federal em seu artigo 5°, §1° determina que “as normas

definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”169. Isto

significa que, o constituinte, abarcando todos esses direitos, topograficamente

espalhados no diploma referido, decidiu dar eficácia plena e aplicação imediata para o

exercício desses, e que a omissão legislativa não interferirá no seu exercício,

atribuindo garantias constitucionais – Ação Direita de Inconstitucionalidade por

omissão e Mandado de Injunção.

Ingo Wolfgang Sarlet explica:

Se, portanto, todas as normas constitucionais sempre são dotadas de um mínimo de eficácia, no caso dos direitos fundamentais, à luz do significado outorgado ao art.5°, §1°, de nossa Lei Fundamental, pode afirmar-se que aos poderes públicos incumbem a tarefa e o dever de extrair das normas que os consagram (os direitos fundamentais) a maior eficácia possível, outorgando-lhes, neste sentido, efeitos reforçados relativamente às demais normas constitucionais, já que não há como desconsiderar a circunstância de que a presunção da aplicabilidade imediata e plena eficácia que milita em favor dos direitos fundamentais constitui, em verdade, um dos esteios de sua

fundamentalidade formal no âmbito da Constituição.170

O constituinte brasileiro diferentemente do que ocorreu em Portugal, foi omisso

quanto à vinculação dos particulares pelos direitos fundamentais, o que consagra,

segundo alguns, dúvida quanto a aplicabilidade dos direitos fundamentais.

A Constituição da República Portuguesa assevera em seu artigo 18 o alcance

dos direitos, liberdades e garantias constitucionais, assim como a possibilidade de

restrição pelo legislador infraconstitucional:

Artigo 18.º (Força jurídica)

1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. 2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente

protegidos.171

O mesmo entendimento segue-se na Constituição da República do Uruguai:

Artigo 332.- As disposições desta Constituição que reconheçam direitos a indivíduos, bem como aqueles que conferem poderes e impondo direitos a autoridades públicas, não deixarão de ser aplicadas por falta de

169 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Artigo 5°, §1°. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em: 10 jul. 2017. 170 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 7ª Edição. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017,

p.285. 171 Constituição da República Portuguesa. Sétima revisão constitucional – 2005. Disponível em:

<http://www.portugal.gov.pt/Portal/PT/Portugal/Sistema_Politico/Constituicao/>. Acesso em: 11 jul. 2017.

regulamentação, mas serão complementadas, usando os fundamentos das leis

análogas, os princípios gerais do direito e as doutrinas geralmente aceitas.172

A Constituição Espanhola não vincula expressamente os particulares em seu

Título I – De direitos e deveres fundamentais. No entanto, numa análise sistemática, o

artigo 9º estabelece que "os cidadãos e as autoridades públicas estão sujeitos à

Constituição e ao resto do sistema legal”173, por conseguinte demonstra a eficácia

imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas.

Ainda que a Diploma Fundamental brasileira não tenha expressado a vinculação

direta dos particulares, essa intenção é clara no texto constitucional, pois elenca

diversos direitos oponíveis nas relações privadas independentemente de legislação

ordinária, por exemplo: artigo 5°, incisos I, II, IV, V, VI, IX, X, XI primeira parte, XIII,

XVII, XX, artigo 7°, incisos I, VI, VII, VIII, VIII, IX, X, XI e outros tantos de primeira,

segunda e terceira dimensão dos direitos fundamentais.

Nesse sentido, esclarece Daniel Sarmento:

Com efeito, qualquer posição que se adota em relação à controvérsia em questão não pode se descurar da moldura axiológica delineada pela Constituição de 1988, e do sistema de direitos fundamentais por ela hospedado. Não há dúvida, neste ponto, que a Carta de 88 é intervencionista e social, como o seu generoso elenco de direitos sociais e econômicos (arts. 6° e 7°, CF) revela com eloqüência. Trata-se de uma Constituição que indica, como primeiro objetivo fundamental da República, “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3°, I, CF) e que não se ilude com a miragem liberal de

que é o Estado o único adversário dos direitos humanos.174

A adoção da teoria da aplicação imediata e direta dos direitos fundamentais não

é posição isolada da doutrina brasileira, mas também foi abraçada pela nossa

jurisprudência

O Supremo Tribunal Federal, em diversas decisões175 demonstrou límpida

aceitação pela incidência dos direitos fundamentais de forma direta nas relações

privadas, por exemplo: o Recurso Extraordinário n° 201819/RJ – Rio de Janeiro, onde

a União Brasileira de Compositores desrespeitou o direito constitucional de ampla

defesa no momento de exclusão de sócio. Tendo como relator o Ministro Gilmar

Mendes, ficou assim decidido:

EMENTA: SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA

172 Constitución de la República. Constitución 1967 con las modificaciones plebiscitadas el 26 de noviembre de 1989, el 26 de

noviembre de 1994, el 8 de diciembre de 1996 y el 31 de octubre de 2004 Disponível em: <

http://www.parlamento.gub.uy/constituciones/const004.htm>. Acesso em: 13 ago. 2017. 173 Constitución Española. Disponível em: <http://www.senado.es/constitu/index.html>. Acesso em: 17 jul. 2017. 174 Sarmento, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Lumen Júris. 2006, p.237. 175 Cf. RE 161.243-6/DF, RE 158215-4/RS.

DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de

liberdades fundamentais.176

Na Itália, apesar de alguns doutrinadores entenderem que o texto constitucional

não é claro quanto à vinculação, é valido posicionar-se em discordância, pois a

Constituição Republicana estabelece o reconhecimento e a garantia dos direitos do

homem como indivíduo ou no seio da sociedade, notadamente, nas relações

particulares: Art. 2. A República assegurará e garantirá ao homem inviolável, ambos

solteiros e ambos a formação social do seu pessoal e rico no desenvolvimento da

solidariedade econômica, social e econômica177

Sem embargo, a jurisprudência italiana caminha no sentido de oponibilidade dos

direitos fundamentais frente aos particulares.

Quanto ao direito português, não se institui uma posição formada pela corte

constitucional, porém, a vinculação dos direitos fundamentais pelos particulares é

expressa no Texto Magno português. Canotilho faz algumas observações sobre o

tema: Se o direito privado deve recolher os princípios básicos dos direitos e garantias

fundamentais, também os direitos fundamentais devem reconhecer um espaço de

176 RE 201819 / RJ – Rio de Janeiro. STF. Relator para acórdão - Ministro Gilmar Mendes Disponível em:

<http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=RE.SCLA.%20E%20201819.NUME.&base=baseAcor

daos>. Acesso em: 15 jul. 2017. 177 Constituzione della Repubblica Italiana. Principi Fondamentali, art. 2. Disponível em:

<http://www.senato.it/documenti/repository/costituzione.pdf>. Acesso em: 13 ago. 2017.

auto-regulação civil, evitando transformar-se em “direito de não-liberdade” do direito

privado.178

Apesar de indubitável a vinculação dos particulares no ordenamento lusitano, a

divergência paira sobre a omissão quanto ao modo e abrangência dessa atuabilidade.

Claramente, a inação legislativa imprime uma atuação mais positiva do

judiciário, através de uma aplicação mais dinâmica e elástica do direito – hoje mais

principiológica do que positiva –, o que se paga um preço à segurança jurídica.

No Brasil, a adoção de um sistema privado baseado em cláusulas gerais,

norteado por questões principiológicas e um arquétipo difuso e concentrado de

constitucionalidade, faz com que judiciário depara-se com ponderações normativas

diuturnamente, instituindo um ambiente propício para eficácia horizontal dos direitos

fundamentais, adotando primordialmente, a determinação constitucional dos

fundamentos constitutivos da República Federativa.

3 O DIREITO AO TRABALHO E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA FRENTE AO

CASO CONCRETO

O Direito do Trabalho surgiu com o objetivo de nivelar as desigualdades

existentes no labor, melhorar a condição social do trabalhador, bem como consagrar o

princípio da dignidade da pessoa humana. Atualmente vem crescendo a valorização

deste princípio (protetor do Direito do Trabalho) como medida de efetividade da

proteção dos direitos fundamentais. Para que ocorra referida efetividade, necessário se

faz assegurar um mínimo de direitos ao trabalhador.

A Constituição Federal prevê em seu artigo 1º, incisos III e IV, a dignidade da

pessoa humana e os valores sociais do trabalho como fundamentos do Estado

Democrático de Direito. Assim, pode-se dizer que a preservação dos valores sociais do

trabalho é uma maneira de se garantir a dignidade humana daquele que presta seu

serviço de forma pessoal, qual seja o trabalhador, com vistas à efetiva justiça social.

“[...] A aplicação dos direitos fundamentais no âmbito da relação de emprego não concerne a indivíduos abstratos, mas a pessoas, isto é, a seres humanos em situação determinada pelo meio social em que vivem. Ela só se justifica quando considera os seres concretos, vale dizer, as pessoas encaradas em sua diversidade e levando em conta suas peculiaridades e sua particularidade. A fórmula que preside à aplicação dos direitos fundamentais é a que eles concernem ao ‘homem situado’. A pessoa em causa deve ser considerada em

178 Apud. SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Lumen Júris. 2006,

p.210.

sua integralidade, não somente do ponto de vista profissional, mas também em sua vida privada”179.

Veja-se, a partir dos casos a seguir, como o conceito de dignidade humana pode

conter variadas determinações.

3.1 O caso do arremesso de anões

A prática do arremesso de anões, até onde se tem notícia, não é realizada no

Brasil, contudo, em diversos outros locais é conhecida e bastante utilizada. Temos

notícias da sua utilização cotidiana nos Estados Unidos, onde em 1985, mesmo ano

em que o arremesso de anões se popularizou no pais, o prefeito de Chicago Harold

Washington proibiu a prática por considerá-la "degradante e malévola"180. Por um

tempo o arremesso era praticado em bares por todo o país, até que associações de

portadores de nanismo e políticos passaram a protestar, conseguindo aprovar novas

proibições181

Em 1989, Robert e Angela Van Etten, membros de uma organização chamada

Little People of America, convenceram os legisladores do estado da Flórida de que o

arremesso de anões era ilegal. Um decreto proibindo a prática foi aprovado com ampla

margem de votos, e o exemplo foi seguido posteriormente pelo estado de Nova

York.182

A proibição foi contestada em 2001 por Dave Flood, apresentador de um talk

show de rádio e conhecido como Dave the Dwarf (Dave o Anão). Ele entrou com um

processo contra Jeb Bush e o chefe da agência estadual que fiscaliza a lei de 1989,

alegando que "não gosta que o governo lhe diga o que pode ou não fazer"183.

Em 2011, Ritch Workman, deputado pela Flórida, entrou com um projeto de lei

que pretendia legalizar o arremesso de anões, afirmando que a proibição era "um

exemplo de governo Big Brother" que impedia a criação de empregos para os

portadores de nanismo.184 Após ser pressionado por diversos cidadãos e associações,

Workman retirou o projeto da pauta em abril de 2012185.

179 Romita, Arion Sayão. Direitos Fundamentais nas Relações de Trabalho, São Paulo, LTR, 2005, pág. 195 180 Gettysburg Times,.Mayor outlaws dwarf tossing. NY.1985.pag 209. 181 The Pittsburgh Press , Growing dwarf-tossing problem throw legal experts for loss, NY.1989. pag. 45 182 Los Angeles Times, Cuomo Signs Bill to Ban Dwarf Tossing. NY. 1990. pag 35. 183 Ludington Daily News, Florida Radio Personality Files Suit To Allow Return Of 'dwarf tossing. 2001.pag 98. 184 The Palm Beach Post, Cerabino: Lawmaker wants state to reinstate dwarf tossing. NY. 2011. pag 80. 185 Huffington Post, Florida Dwarf Tossing Ban Repeal Dropped By Bill Sponsor Ritch Workman", 2012. pag. 76

No Canadá, em Ontário, Canadá, a lei Dwarf Tossing Ban Act foi proposta pela

integrante do parlamento provincial Sandra Pupatello em 2003. Ela não foi além de sua

segunda e terceira leituras e nem recebeu consentimento real, sendo desta forma

rejeitada ao encerramento da legislatura daquele ano.186 A lei propunha uma multa de

não mais do que 5,000 dólares, prisão de não mais que seis meses, ou ambos187. O

projeto havia sido reunido às pressas em resposta a um concurso de arremesso de

anões realizado na casa noturna Leopard's Lounge em Windsor, Ontário, com um anão

chamado Tripod.188

Na Austrália e na Nova Zelândia tal prática é inclusive legalizada, assim como

em outros países, já na França essa pratica foi inicialmente protestada, fato que

trataremos em um caso em concreto.

Trata-se de uma competição, ou, para alguns, de um esporte competitivo, onde

um portador de nanismo é arremessado por outras pessoas de maior estatura,

sagrando-se vencedor aquele competidor que conseguir lançar “o objeto”, no caso o

anão, a uma distância mais longa.

Tal “esporte” contém regras simples. Inicialmente as pessoas que ali estão,

sejam os lançadores ou o próprio lançado, o fazem de livre e consciente vontade. O

anão normalmente utiliza roupas e acessórios com alças, o que facilita serem pegos e

assim, também, ser lançados. O local em que o anão cai, geralmente um colchão, é de

tal forma macio que o protege quando da sua queda. E por fim, o anão recebe uma

gratificação em dinheiro por seu “trabalho”.

O caso que ganhou notoriedade mundial ocorreu na França, na cidade de

Morsangsur-Orge, situada a apenas 30 quilômetros ao sul de Paris. Naquela cidade,

algumas casas noturnas (bares e boates) estavam oferecendo aos seus clientes como

prática de lazer o arremesso de anões.

Em novembro de 1991, o Ministério do Interior da França emitiu uma circular

instruindo os prefeitos a ficarem atentos quanto ao policiamento dos eventos públicos

em que anões eram lançados, de forma a proibir tais eventos com base no artigo 3º da

Convenção Europeia para a proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades

Fundamentais189.

186 http://www.ontla.on.ca/web/bills/bills_detail.do?locale=en&BillID=1128. Consulta em 11/09/2017 187 http://www.ontla.on.ca/web/bills/bills_detail.do?locale=en&BillID=1128. Consulta em 11/09/2017 188 http://www.theglobeandmail.com/servlet/story/RTGAM.20030612.wtoss0 Consulta em 11/09/2017. 189 Artigo 3.º Ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes. Disponível em

http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh. Acesso em 13/09/2017

O prefeito da cidade, em atenção à circular, determinou a proibição da prática do

arremesso de anões em seu município, apoiando-se em regras que normalmente eram

aplicadas para garantir a segurança e a ordem públicas. Contudo, no caso específico

dos anões, o prefeito proibiu a prática fundamentando também que a mesma violava o

respeito à dignidade da pessoa humana, conforme a circular do Ministério do Interior,

amparado também pela referida Convenção Europeia supra citada.

Os proprietários de uma das casas noturnas e um dos anões que era lançado na

prática esportiva, Sr. Manuel Wackenheim, recorreram da decisão ao Tribunal

Administrativo de Versailles argumentando que a atividade não violava a ordem pública

e ainda, que a mesma era necessária à sobrevivência do anão, já que este era seu

trabalho. O tribunal de Versailles, entendendo que a decisão do prefeito excedia o seu

poder de polícia, anulou a decisão de forma a permitir o lançamento dos anões. Assim,

em novo recurso, o prefeito levou a questão ao mais alto tribunal administrativo da

França, o Conselho de Estado.

Em sua decisão, o Conselho de Estado francês reconheceu que o exercício do

poder de polícia municipal gira em torno dos conceitos de ordem, paz e segurança

públicas. Contudo, este poder de polícia poderia se estender além desta trilogia

tradicional, notadamente quando estava em jogo a moralidade pública.

Na decisão que julgou o mérito da questão, entendeu o Conselho de Estado que

a dignidade da pessoa humana é um componente da ordem pública, e assim, o

prefeito teria agido corretamente quando proibiu a prática das casas noturnas.

Par sa décision du 27 octobre 1995, le Conseil d’État a, pour la première fois, explicitement reconnu que le respect de la dignité de la personne humaine est une des composantes de l’ordre public. La sauvegarde de la dignité de la personne humaine contre toute forme d’asservissement ou de dégradation avait déjà été élevée au rang de principe à valeur constitutionnelle par le

Conseil constitutionnel (Décision n° 94-343/344 DC, 27 juillet 1994, p. 100)190.

A decisão do Tribunal Francês é importante pois “é considerada um marco na

proteção dos direitos fundamentais, porque ela afirma que o respeito à dignidade da

pessoa humana é parte da ordem pública que o poder de polícia tem a finalidade de

assegurar”191.

190 Em tradução livre: “Por decisão de 27 de outubro de 1995, o Conselho de Estado, pela primeira vez, reconheceu

expressamente que o respeito pela dignidade da pessoa humana é um componente da ordem pública. A salvaguarda da dignidade

da pessoa humana, contra qualquer forma de escravidão e degradação tinha sido levada à categoria de princípio constitucional

pelo Conselho Constitucional (Decisão n.º 94-343/344 DC, 27 de julho de 1994, p.100).” Disponível em http://www.conseil-

etat.fr/fr/presentation-des-grands-arrets/27-octobre- 1995-commune-de-morsang-sur-orge.html. Acesso em 02/09/2017. 191 Tabora, Maren Guimarães. A afirmação do princípio da proteção à dignidade humana como componente da ordem pública.

Revista Direitos Fundamentais e Justiça, n.º 05, p. 186- 203, out/dez

C.E., Ass., 27 octobre 1995, Commune192 de Morsang-sur-Orge (Rec., p. 372) (Assemblée. - Req. n° 136727 - Mlle Laigneau, rapp. ; M. Frydman, c. du g. ; Mes Baraduc-Bénabent, Bertrand, av.) Requête de la commune de Morsang-sur-Orge, qui demande au Conseil d'Etat: 1° d'annuler le jugement du 25 février 1992 par lequel le tribunal administratif de Versailles a, à la demande de la société Fun Production et de M. Wackenheim, d'une part, annulé l'arrêté du 25 octobre 1991 par lequel son maire a interdit le spectacle de « lancer de nains » prévu le 25 octobre 1991 à la discothèque de l'Embassy Club, d'autre part, l'a condamnée à verser à ladite société et à M. Wackenheim la somme de 10 000 F en réparation du préjudice résultant dudit arrêté; 2° de condamner la société Fun Production et M. Wackenheim à lui verser la somme de 10 000 F au titre de l'article 75-I de la loi n 91-647 du 10 juillet 1991; Vu le code des communes et notamment son article L. 131-2 ; la Convention européenne de sauvegarde des droits de l'homme et des libertés fondamentales ; le code des tribunaux administratifs et des cours administratives d'appel ; l'ordonnance n 45-1708 du 31 juillet 1945, le décret n 53-934 du 30 septembre 1953 et la loi n 87-1127 du 31 décembre 1987; Sans qu'il soit besoin d'examiner les autres moyens de la requête: *1* Considérant, qu'aux termes de l'article L. 131-2 du code des communes : « La police municipale a pour objet d'assurer le bon ordre, la sûreté, la sécurité et la salubrité publique »; *2* Cons. qu'il appartient à l'autorité investie du pouvoir de police municipale de prendre toute mesure pour prévenir une atteinte à l'ordre public ; que le respect de la dignité de la personne humaine est une des composantes de l'ordre public ; que l'autorité investie du pouvoir de police municipale peut, même en l'absence de circonstances locales particulières, interdire une attraction qui porte atteinte au respect de la dignité de la personne humaine ; *3* Cons. que l'attraction de « lancer de nain » consistant à faire lancer un nain par des spectateurs conduit à utiliser comme un projectile une personne affectée d'un handicap physique et présentée comme telle ; que, par son objet même, une telle attraction porte atteinte à la dignité de la personne humaine ; que l'autorité investie du pouvoir de police municipale pouvait, dès lors, l'interdire même en l'absence de circonstances locales particulières et alors même que des mesures de protection avaient été prises pour assurer la sécurité de la personne en cause et que celle-ci se prêtait librement à cette exhibition, contre rémunération; *4* Cons. que, pour annuler l'arrêté du 25 octobre 1991 du maire de Morsang-sur-Orge interdisant le spectacle de « lancer de nains » prévu le même jour dans une discothèque de la ville, le tribunal administratif de Versailles s'est fondé sur le fait qu'à supposer même que le spectacle ait porté atteinte à la dignité de la personne humaine, son interdiction ne pouvait être légalement prononcée en l'absence de circonstances locales particulières ; qu'il résulte de ce qui précède qu'un tel motif est erroné en droit; *5* Cons. qu'il appartient au Conseil d'Etat saisi par l'effet dévolutif de l'appel, d'examiner les autres moyens invoqués par la société Fun Production et M. Wackenheim tant devant le tribunal administratif que devant le Conseil d'Etat; *6* Cons. que le respect du principe de la liberté du travail et de celui de la liberté du commerce et de l'industrie ne fait pas obstacle à ce que l'autorité investie du pouvoir de police municipale interdise une activité même licite si une telle mesure est seule de nature à prévenir ou faire cesser un trouble à l'ordre public ; que tel est le cas en l'espèce, eu égard à la nature de l'attraction en cause; *7* Cons. que le maire de Morsang-sur-Orge ayant fondé sa décision sur les dispositions précitées de l'article L. 131-2 du code des communes qui justifiaient, à elles seules, une mesure d'interdiction du spectacle, le moyen tiré

192 A Comuna de Paris foi a primeira tentativa da história de criação e implantação de um governo socialista. Teve inicio com a

revolução proletária na capital francesa, durando de 18 de março a 28 de maio de 1871.

de ce que cette décision ne pouvait trouver sa base légale ni dans l'article 3 de la Convention européenne de sauvegarde des droits de l'homme et des libertés fondamentales, ni dans une circulaire du ministre de l'intérieur, du 27 novembre 1991, est inopérant; *8* Cons. qu'il résulte de tout ce qui précède que c'est à tort que, par le jugement attaqué, le tribunal administratif de Versailles a prononcé l'annulation de l'arrêté du maire de Morsang-sur-Orge en date du 25 octobre 1991 et a condamné la commune de Morsang-sur-Orge à verser aux demandeurs la somme de 10 000 F ; que, par voie de conséquence, il y a lieu de rejeter leurs conclusions tendant à l'augmentation du montant de cette indemnité ; Sur les conclusions de la société Fun Production et de M. Wackenheim tendant à ce que la commune de Morsang-sur-Orge soit condamnée à une amende pour recours abusif: *9* Cons. que de telles conclusions ne sont pas recevables ; Sur les conclusions tendant à l'application des dispositions de l'article 75-I de la loi du 10 juillet 1991: *10* Cons. qu'aux termes de l'article 75-I de la loi du 10 juillet 1991 : « Dans toutes les instances, le juge condamne la partie tenue aux dépens ou, à défaut, la partie perdante à payer à l'autre partie la somme qu'il détermine, au titre des frais exposés et non compris dans les dépens. Le juge tient compte de l'équité ou de la situation économique de la partie condamnée. Il peut même d'office, pour des raisons tirées de ces mêmes considérations, dire qu'il n'y a pas lieu à cette condamnation »; *11* Cons., d'une part, que ces dispositions font obstacle à ce que la commune de Morsang-sur-Orge, qui n'est pas dans la présente instance la partie perdante, soit condamnée à payer à la société Fun Production et M. Wackenheim la somme qu'ils demandent au titre des frais exposés par eux et non compris dans les dépens ; qu'il n'y a pas lieu, dans les circonstances de l'espèce, de faire application de ces dispositions au profit de la commune de Morsang-sur-Orge et de condamner M. Wackenheim à payer à cette commune la somme de 10 000 F au titre des frais exposés par elle et non compris dans les dépens ; qu'il y a lieu, en revanche, de condamner la société Fun Production à payer à la commune de Morsangsur-Orge la somme de 10 000 F au titre des frais exposés par elle et non compris dans les dépens ; ... (annulation du jugement attaqué ; rejet des demandes de la société Fun Production et de M. Wackenheim présentées devant le tribunal administratif de Versailles, ainsi que de l'appel incident de la société Fun Production et de M. Wackenheim ; condamnation de la société Fun Production à payer à la commune de Morsang-sur-Orge la somme d 10 000 F en application des dispositions de l'article 75-I de la loi du 10 juillet 1991 ; rejet des conclusions de la société Fun-Production et de M. Wackenheim tendant à l'application de l'article 75-I de la loi du 10 juillet 1991)193

193 Em tradução livre: “C.E., Ass., 27 de outubro de 1995, Comuna de Morsang-sur-Orge

(Rec., P. 372)

(Assembeia.) - No. 136727 - Miss Laigneau, relator, Sr. Frydman, do G. Baraduc-Bénabent, Bertrand, av.

Aplicação pelo município de Morsang-sur-Orge, que solicita ao Conselho de Estado:

(1) anular o acórdão de 25 de Fevereiro de 1992 pelo qual o tribunal administrativo de Versalhes, a pedido da Fun Production e

do Sr. Wackenheim, anulou o decreto de 25 de Outubro de 1991, o prefeito proibiu o show "dwarf throwing" agendado para 25

de outubro de 1991 na discoteca do Embassy Club e ordenou que pague a empresa e o Sr. Wackenheim a soma de 10 000 F em

compensação pelo dano resultante dessa ordem;

2 ° para pedir à Fun Production e ao Sr. Wackenheim que lhe paguem o montante de 10 000 F nos termos do artigo 75-I da Lei n.

° 91-647, de 10 de julho de 1991;

Tendo em conta o Código das comunas e, em especial, o artigo L. 131-2; a Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do

Homem e das Liberdades Fundamentais; o Código dos Tribunais Administrativos e os Tribunais Administrativos de Recurso;

Despacho n.º 45-1708, de 31 de julho de 1945, Decreto nº 53-934, de 30 de setembro de 1953, e Lei nº 87-1127, de 31 de

dezembro de 1987;

Sem que seja necessário examinar os outros fundamentos do pedido:

Considerando que, nos termos do artigo L. 131-2 do Código de Municípios: "O objetivo da polícia municipal é assegurar a boa

ordem, a segurança e a saúde pública";

* 2 * Contras. que é para a autoridade da polícia municipal tomar quaisquer medidas para evitar uma violação da ordem pública;

que o respeito pela dignidade da pessoa humana é um dos componentes da ordem pública; que a autoridade da polícia municipal

O Sr. Manuel Wackenheim que havia ingressado com o recurso face à decisão

do prefeito, insatisfeito com a decisão da corte francesa, levou o caso à análise da

Comissão de Direitos Humanos da ONU, alegando que a decisão francesa seria

discriminatória e que violava o seu direito ao trabalho.

Os argumentos utilizados pelo recorrente eram consideráveis, e versavam

basicamente sobre a suposta existência de discriminação por parte do Estado francês

e ainda, que a atividade não violava sua dignidade:

The author affirms that banning him from working has had an adverse effect on his life and represents an affront to his dignity. He claims to be the victim of a violation by France of his right to freedom, employment, respect for private life and an adequate standard of living, and of an act of discrimination. He further states that there is no work for dwarves in France and that his job does not

constitute an affront to human dignity since dignity consists in having a job194 .

pode, mesmo na ausência de circunstâncias locais especiais, proibir uma atração que prejudique o respeito pela dignidade da

pessoa humana;

* 3 * Contras. que a atração do "lançamento anão" de ter um anão lançado pelos espectadores leva a usar como projétil uma

pessoa com deficiência física e apresentada como tal; que, por seu próprio objetivo, essa atração afeta a dignidade da pessoa

humana; que a autoridade policial municipal poderia, portanto, proibi-lo mesmo na ausência de circunstâncias locais especiais e

mesmo que tenham sido tomadas medidas de proteção para assegurar a segurança da pessoa em questão e que Ele se emprestou

livremente a esta exposição por remuneração;

* 4 * Contras. que, para anular o despacho de 25 de outubro de 1991 do prefeito de Morsang-sur-Orge que proíbe o

"adiantamento anão" previsto no mesmo dia em uma discoteca da cidade, o Tribunal Administrativo de Versalhes se baseou no

que mesmo que o espetáculo tivesse violado a dignidade da pessoa humana, sua proibição não poderia ser legalmente

pronunciada na ausência de circunstâncias locais particulares; que resulta do exposto que tal fundamento é de direito errado;

* 5 * Contras. que os outros fundamentos invocados pela Fun Production e pelo Sr. Wackenheim tanto perante o Tribunal

Administrativo como antes do Conseil d'Etat devem ser examinados pelo Conseil d'Etat que lhe foi submetido pelo efeito

devolutivo do recurso;

* 6 * Contras. Considerando que o respeito pelo princípio da liberdade de trabalho e da liberdade de comércio e indústria não

impede a autoridade policial municipal de proibir até mesmo a atividade legal se essa medida estiver sozinha de uma natureza

para prevenir ou pôr fim a uma perturbação da ordem pública; Considerando que, no caso em apreço, é o caso, tendo em conta a

natureza da atração em causa;

* 7 * Contras. que o prefeito de Morsang-sur-Orge baseou sua decisão nas disposições acima mencionadas do artigo L. 131-2 do

Código das comunas, que por sua própria iniciativa justificavam uma medida que proíbe a execução, o fundamento alegando que

que esta decisão não pôde encontrar a sua base jurídica, quer no artigo 3.º da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos

do Homem e das Liberdades Fundamentais, quer numa circular do Ministro do Interior de 27 de Novembro de 1991 é inoperante

;

* 8 * Contras. Resulta de tudo o que precede que o Tribunal de Primeira Instância de Versalhes, no seu acórdão, cometeu o erro

de anular o despacho do prefeito de Morsang-sur-Orge de 25 de Outubro de 1991 e ordenou à comuna de Morsang-sur-Orge que

pagasse aos requerentes o montante de 10 000 F; que, como resultado, as suas alegações devem ser rejeitadas pelo aumento do

montante do subsídio; Nas conclusões de Fun Production e do Sr. Wackenheim, o município de Morsang-sur-Orge deve ser

multado por abuso:

* 10 * Contras. que, nos termos do artigo 75-I da Lei de 10 de julho de 1991: "Em todos os processos, o juiz deve condenar a

parte no pagamento das custas ou, na sua falta, a parte perdedora a pagar à outra parte a soma que determina, em relação aos

custos incorridos e não incluídos nos custos. O juiz deve ter em conta a equidade ou a situação econômica da parte sentenciada.

Pode até, por razões decorrentes das mesmas considerações, declarar de ofício que não há necessidade de tal condenação "

* 11* Por um lado, estas disposições impedem o município de Morsang-sur-Orge, que não é a parte perdedora neste caso, de ser

obrigado a pagar a Fun Production e o Sr. Wackenheim o montante que estão reclamando pelos custos incorridos por eles e não

incluídos nos custos; que não é necessário, nas circunstâncias do caso em apreço, aplicar essas disposições à Comuna de

Morsang-sur-Orge e ordenar ao senhor deputado Wackenheim que pague a essa comuna o montante de 10 000 F em relação aos

custos incorridos por ele e não incluídos nos custos; Considerando que, por outro lado, a empresa Fun Production deve ser

condenada a pagar à comuna de Morsangsur-Orge o montante de 10 000 F em relação aos custos incorridos por ele e não

incluídos nos custos; ... (anulação do acórdão impugnado, destituição dos pedidos da Fun Production e do Sr. Wackenheim

perante o tribunal administrativo de Versalhes e do recurso cruzado da Fun Production e do Sr. Wackenheim; a empresa Fun

Production pagou à comuna de Morsang-sur-Orge o montante de 10 000 F nos termos do artigo 75-I da Lei de 10 de julho de

1991; de Wackenheim para a aplicação do artigo 75-I da Lei de 10 de Julho de 1991)”. 194 Em tradução livre: O autor afirma que a proibição dele de trabalho teve um efeito adverso sobre a sua vida e representa uma

afronta à sua dignidade. Ele afirma ser vítima de uma violação pela França de seu direito à liberdade, o emprego, o respeito pela

vida privada e um padrão de vida adequado, e de um ato de discriminação. Ele afirma ainda que não há trabalho para os anões na

Em decisão de 15 de julho de 2002, o órgão das Nações Unidas, julgando o

recurso interposto por Manuel Wackenheim, decidiu que não havia qualquer

discriminação por parte do Estado francês na proibição do arremesso de anões, não

tendo, desta maneira, o recorrente sofrido qualquer violação195 .

Assim, tanto o maior Tribunal Administrativo da França quanto o órgão de

Direitos Humanos da ONU decidiram que a prática de arremesso de anões deveria ser

banida, não havendo que se falar em concordância por parte do anão na prática

indigna. Mesmo diante dos argumentos apresentados pelo Sr. Wackenheim, tanto o

próprio Conselho de Estado francês como o Comitê de Direitos Humanos da ONU,

reconheceram que o lançamento de anão ofende a dignidade humana, a despeito de

sua autonomia privada, ou seja, de sua liberdade em consentir com aquela

“profissão”196.

O caso do arremesso de anões, além da importância de o Conselho de Estado

francês reconhecer que a interpretação do conceito de “ordem pública” passa pela

análise do conceito da dignidade da pessoa humana, é importante também eis que a

decisão prestigiou a dignidade de todos os seres humanos. Mesmo que haja quem

concorde com eventual afronta, essa concordância não tornará a conduta digna e

tolerada, devendo ser reprimida uma vez que fere não apenas aquele indivíduo, mas

toda a humanidade.

3. 2 A exposição de anões a situações degradantes no humor brasileiro.

Estreando na televisão aberta brasileira no ano de 2003, o programa Pânico na

TV inaugurou uma nova forma de humor. Exibido no canal Rede TV! de 2003 a 2011,

mudou para a Rede Bandeirantes em abril de 2012, onde vem sendo exibido

semanalmente no horário mais nobre da televisão aberta, nas noites de domingo e

reprisando nas segundas feiras. Talvez sob a influência do programa televisivo

França e que seu trabalho não constitui uma afronta à dignidade humana uma vez que dignidade consiste em ter um emprego.

disponível em http://www.wfrt.org/humanrts/845-1999.html e também em http://www.Manuel, Wackenheim. Acesso em

14/08/2017 195 Decisão no idoma inglês, disponível em http://www.wfrt.org/humanrts/845-1999.html e também em

http://www.equalrightstrust.org/ertdocumentbank/Microsoft%20Word%20. Acesso em 14/08/2017

196Madeira, Germano Leão Hitzschky. A Dignidade Humana como Núcleo Axiológico da Constituição Federal: discussão

acerca da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. 2011. 53 f. Monografia de Especialização em Direito Público. Escola

Superior da Magistratura do Estado do Ceará – ESMEC. Fortaleza, 2011. Disponível em

http://bdjur.tjce.jus.br/jspui/bitstream/123456789/585/1/Germano.

americano Jackass, com alguma roupagem nacional, o programa vem despertando

interesses contrapostos, seja daqueles que admiram o humor produzido, seja daqueles

que consideram referida forma de humor ultrajante e indigna.

Inegável que o programa vem obtendo números expressivos de audiência, o que

se verifica inclusive pelo grande número de bons anunciantes, entre os quais uma

grande empresa nacional de bebidas, uma respeitável empresa multinacional suíça,

uma operadora de telefonia, além de lojas de varejo e montadora de veículos.

Contudo, questiona-se a qualidade do conteúdo do programa, em especial a maneira

como são tratados os integrantes e os terceiros envolvidos.

Diversas são as formas de se fazer humor, mas para que os telespectadores

sejam entretidos não é admissível que pessoas sejam colocadas em situações

humilhantes e indignas. Necessário que sejam citados alguns casos ocorridos no

programa para que, após, sejam analisados sob a ótica da dignidade da pessoa

humana.

A exemplo do programa que foi ao ar no dia 12/10/2015, o quadro Aretuza kids

game, onde três anões, além do apresentador Charles Henrique e do diretor Bolinha

participam vestidos de empregada, branca de neve e os anões, que por sua vez,

passam por situações humilhantes, vestidos de bebes, são obrigados a simular trocas

de roupas, permitindo que a sua baba (Bolinha) passe talco e pomada nas suas partes

intimas quando ainda se encontram sem roupas. Em seguida ingerem farta quantidade

de feijoada para depois seguirem para brinquedos que giram para ali verificar quem

vomita primeiro.

No quadro “tornado” apresentado em 26/05/2013 a apresentadora Babi e o anão

Pedrinho se expõem em frente a turbina de um avião para simular um tornado. No

inicio da apresentação Babi logo sai do quadro após as primeiras ventanias, mas

Pedrinho permanece até ser jogado a uma distancia não alcançada pelas câmeras. O

quadro não continua e em seguida seu apresentador informa que o participante passa

bem e nada pior aconteceu, pois ali encontrava-se um boneco.

No dia 2/6/2013 o programa estreou o quadro UFC de anões197 onde os

participantes enfrentam-se e o vencedor aguarda o próximo desafiante. As batalhas no

octógono provocam risos intermináveis na plateia que deleita com os golpes desferidos

contra o oponente.

197 Disponivel em:https://www.youtube.com/watch?v=gZ59WTguzM8. Consulta em 08/09/2017

Porém essa exposição levada ao ar pelo programa, eleva seus índices de

audiência chegando a liderança no horário. Segundo seus diretores, todos os

participantes assinam um prévio acordo e estão livres para deixar o quadro a qualquer

momento se for de sua vontade, “ninguém fica no quadro se não quiser, está livre para

deixar o programa se não concordar com algo”, afirma o diretor Marcelo Picon dos

Santos Gancho mais conhecido como Bolinha.

As oportunidades no brasil são poucas porem alguns desse portadores de

nanismo se destacam nesse senário, pois, nos anos 70, Nelson Ned, dono de um

vozeirão inversamente proporcional ao seu tamanho (1,12 metro), estourou com

músicas românticas como a autorreferente Tamanho Não É Documento. O “pequeno

gigante da canção”, como ficou conhecido, vendeu mais de 40 milhões de álbuns, virou

ídolo na América Latina e apresentou-se algumas vezes no prestigiado Carnegie Hall,

em Nova York. Hoje, aos 66 anos de idade, enfrenta problemas de saúde e vive em

uma clínica de repouso na cidade de São Roque, a 62 quilômetros de São Paulo. “Meu

pai teve de viajar para o exterior para galgar sua própria história”, diz um de seus três

filhos, Nelson Ned Junior, cuja estatura de 1,08 metro não o impediu de se tornar um

baterista profissional. Ele estudou em uma escola de jazz na Suíça, tocou com artistas

internacionais do porte de Cesaria Évora e Tito Puente Jr. e vive no México desde

2011. “No Brasil, anão só se destaca no programa Pânico”, desabafa198.

198 https://vejasp.abril.com.br/cidades/anoes-conquistam-mercado-trabalho. Consulta em 11/09/2017

CONCLUSÃO

Diante da diversidade de valores existentes na sociedade não é possível tecer

de forma genérica e abstrata a definição do que seja dignidade da pessoa humana, já

que o referido termo possui conceito amplo, abstrato, indeterminado e, portanto,

mutável.

Pode-se dizer, pelo grau de generalidade do princípio da dignidade da pessoa

humana, que ele pode até abarcar variadas definições, de acordo com as

peculiaridades do caso concreto. Mesmo sendo um princípio fundamental e

estruturante, deve-se efetuar uma ponderação caso a caso, sob o risco de ter sua força

normativa banalizada.

O princípio da dignidade da pessoa humana estabelece limites à ação do Estado

e protege a liberdade humana contra eventuais violações, exatamente para que a

pessoa (sujeito de direito) não seja objeto de injustiças.

Em virtude da opressão e degradação sofridas pelos trabalhadores, os direitos

fundamentais de liberdade e igualdade conquistados pelos próprios constituem

exigência para a concretização da dignidade da pessoa humana, mesmo que, ainda

hoje, em grande parte dos Estados essa situação indigna não tenha sido superada.

Prepondera respeitar, proteger e promover a igual dignidade de todas as

pessoas, o que será conquistado, unicamente, quando do exame de situações

concretas, as quais oferecerão os elementos para uma solução constitucionalmente

adequada.

Luís Roberto Barroso falando sobre o principio da dignidade da pessoa humana

concluiu que “ele representa a superação da intolerância, da discriminação, da

exclusão social, da violência, da incapacidade de aceitar o outro, o diferente, na

plenitude de sua liberdade de ser, pensar e criar.” Não deve ser aceito em qualquer

sociedade, sobretudo na brasileira, qualquer forma de humor que não leve em

consideração os aspectos levantados por Barroso. Não é possível que a obesidade, a

estética fora dos padrões ocidentais, o impingimento de sofrimento físico e psicológico,

sejam tratados como piada, como forma de fazer humor. Apesar da altíssima qualidade

de alguns humoristas, o programa Pânico, por vezes opta por descartar as habilidades

de seus integrantes, que são capazes de excelentes quadros de humor, para utilizá-los

como objetos, instrumentos das brincadeiras de seus quadros, de forma que estes não

atuam como atores, não atuam como sujeitos ativos em suas peças cômicas, mas sim

são utilizados apenas como meio para que o riso surja. O bom comediante se

transforma em um ‘ser inominado’, que necessita tolerar todas e quaisquer

provocações; a qualidade inerente ao bom humorista é substituída pela necessidade

de aceitação das prendas, ou seja, não importa mais se aquele integrante tem a

capacidade cômica para entreter o telespectador, o importante naquele momento é que

seja utilizado como objeto da brincadeira, a qual, na maioria das vezes, é visível que

aceita por não ter outra alternativa.

O ser humano não deve e não pode ser tratado como objeto, como meio de se

alcançar uma determinada finalidade. A dignidade do homem precisa ser respeitada.

As autoridades francesas intervieram no caso do Sr. Manuel Wackenheim,

considerando que a atividade de lançamento de anões, apesar de ser segura, com

regras estabelecidas e contar com o consentimento do anão, afrontavam a dignidade

humana, de forma que a proibiram. O argumento para tanto foi simples, a atividade

degradava a sua condição como ser humano, portanto, violava o princípio da dignidade

da pessoa humana. Cá no Brasil basta assistir semanalmente a televisão aberta aos

domingos e verificar se as condutas perpetradas pelo Programa Pânico respeitam a

dignidade dos integrantes e dos demais participantes.

Às autoridades competentes deveria competir a análise dos quadros do

programa, confrontando-os com um dos fundamentos da República Federativa do

Brasil – o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana – de forma a verificar

se as condutas praticas encontram guarida no nosso sistema constitucional

Enfim, pode-se afirmar que em havendo respeito ao ser humano, assegurando-

se condições mínimas para a sua existência, com ênfase na tutela e efetividade dos

direitos fundamentais de liberdade e igualdade, pode-se falar em respeito ao princípio

da dignidade da pessoa humana.

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