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    FRONTEIRAS ENTRE CINCIA E SABERES LOCAIS: ARQUITETURAS DO PENSAMENTO

    UTPICO

    Cssio Eduardo Viana HissaPrograma de Ps-Graduao em Geografia

    Universidade Federal de Minas Gerais

    Territrios da cincia

    A crise pela qual passa a cincia, representada pelos diversos territrios do conhecimento disciplinar,estimula rediscusses acerca dos seus significados. Sobre a referida crise, pode-se dizer que: a) estinserida no contexto de crise global, para que se faa especial referncia crise dos paradigmas ocidentaisde todas as naturezas; b) est incorporada prpria crise da modernidade ocidental, posto que a cincia compreendida como um dos seus pilares; c) est integrada prpria imagem espiral, tecida pelaspromessas da modernidade, cuja linha mestra constituda pela razo assim como pela sua crise epela idia de progresso cultivado pela racionalidade moderna que reproduz excluses. No entanto, acincia interrogada, rediscutida que aqui se focaliza , apresenta definies bastante rgidas, j

    convencionais, que, tambm a partir das caractersticas que rene, so tomadas como consensuais noambiente em que so desenvolvidas as suas prticas, especialmente na universidade moderna. Contudo, asdiscusses acerca dos significados da cincia, com o propsito de reinventar as suas trajetrias tornando-a mais comprometida com a transformao, com a justia e com a liberdade , sorelativamente obstrudas pelo seu conservadorismo constitutivo. A cincia se afirmou como a palavra quepretende se elevar sobre todas as demais; como o conhecimento hegemnico que, para existir comocincia e como hegemonia, exclui ou deslegitima todas as outras formas de saber. Sublinha-se, portanto, acincia moderna. O adjetivo j encaminha qualificaes para o referido exerccio.

    O nascimento da cincia moderna na Europa caracterizado, de forma expressiva, por Paolo Rossi(2001). Os movimentos do nascedouro esto mais fortemente concentrados no sculo XVII. Entretanto,h traos, menos ou mais fortes, marcantes e densos, que permitem, por diversos caminhos histricos efilosficos, a reconstituio desse exerccio que se deseja feito exclusivamente de razo[1]. No h, por

    sua vez, conforme o historiador, um lugar de origem do que se chama, na contemporaneidade, de cinciamoderna. Ela emerge em cantos distintos da Europa: Polnia, Inglaterra, Frana, Dinamarca, Alemanha,Itlia. Tampouco, a cincia teria nascido nos laboratrios de pesquisa, nos lugares da universidade que,mais adiante, incorporaria o adjetivo: moderna, a universidade. Sobre a ausncia das universidades nasorigens do exerccio cientfico, escreve o autor:

    A cincia moderna no nasceu na tranqilidade dos campus ou no clima um tanto artificial doslaboratrios de pesquisa ao redordos quais, mas no dentrodeles (como acontecia desde sculos e aindaacontece nos conventos) parece escorrer o rio ensangentado e lamacento da histria. E por isso umasimples razo: porque aquelas instituies (no que concerne quele saber que denominamos cientfico)no tinham nascido e porque aquelas torres de marfim, utilizadas com tanto proveito e to injustamenteinsultadas no decorrer do nosso sculo, no tinham sido ainda construdas pelo trabalho dos filsofosnaturalistas (ROSSI, 2001, p. 9).[2]

    A trajetria dos relatos trabalhados pelo historiador italiano, entrecortados por reflexes de naturezafilosfica, resultando na produo de um texto que assume, em determinadas circunstncias, o mais fortebrilho de carter literrio, conduz a leitura para os clssicos da filosofia da cincia e, seguramente, para osprprios pensadores, cientistas, fundantes da cincia moderna: Coprnico (1473-1543), atravs daproposio da teoria heliocntrica, subverte a ordem contida no universo aristotlico; Galileu (1564-1642), que lecionou nas universidades italianas de Pisa e de Pdua, marca, ainda, para muitos estudiososda filosofia, o incio da poca moderna, com a revoluo cientfica para alguns, marca o prprioadvento da concepo moderna de cincia; Francis Bacon (1561-1626) concede seqncia tradio doempirismo ingls, encaminhando uma leitura do raciocnio da induo que a aproxima da efetiva idia domtodo da criao; John Locke (1632-1704), considerado o propositor inicial de uma teoria doconhecimento moderno, desenvolvido, conforme o ingls, a partir da experincia sensvel empirismo

    de modo a atingir, mais adiante, as idias, o pensamento, a razo; Ren Descartes (1596-1650), quasesempre considerado o primeirofilsofo moderno, tomado como o fundador do racionalismo: a razo que

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    opera por si s, independentemente das sensaes; Newton (1642-1727), que desenvolve a teoria dagravitao universal.[3]

    Auguste Comte (1798-1857), por sua vez, organizador das referncias positivistas que norteariam aproduo do conhecimento durante importante momento da histria das cincias sociais da passagem dosculo XIX para o XX. Auguste Comte (1983) atribui, curiosamente, a Galileu Galilei, ao racionalismo

    francs, representado por Ren Descartes, e ao empirismo ingls, de Francis Bacon e John Locke, apaternidade positivista e o desenvolvimento dos alicerces da filosofia positiva, objetiva, cientfica. Detodos os paradigmas da modernidade, contudo, talvez seja mesmo o positivismo o mais conservador e oque mais bem expressa os movimentos da cincia moderna.

    Feita de desejos de objetividade, a cincia moderna produz, com os seus exerccios de razo, umatrajetria de movimentos que auxiliam a sua prpria compreenso. Isso significa que: com a razo emergea crise da razo; com a cincia moderna, emerge a crise da cincia. Em outros termos, observa-se que acrise da cincia , tambm, uma manifestao da prpria razo tateante, da sua crise e dos paradigmas quea referenciam.

    Os referidos desejos de objetividade, por seu turno, encaminham o problema para o prprio sujeito

    contraditoriamente, de modo a encaminhar leituras objetivas do mundo, apartado do objeto que procuraestudar. Ele dever, assim, conforme as orientaes do mtodo cientfico (como se o mtodo pudesse serreduzido unidade), se posicionar com objetividade diante do mundo sob leitura: isso pressupe umdesejo complementar de separao: entre o sujeito que l o mundo e o objeto de sua leitura. No entanto,quem osujeito que l o mundoseno o prpriosujeito do mundotornado intrprete, cientista, atravs daformao que empreendeu e das trajetrias que construiu? Para que faa referncia ampla questo doconhecimento, assim rediscutido, Edgar Morin retoma a reflexo acerca da presena/ausncia do sujeitona produo cientfica:

    Nesse fenmeno de concentrao em que os indivduos so despossudos do direito de pensar, cria-se umsobrepensamento que um subpensamento, porque lhe faltam algumas propriedades de reflexo e deconscincia prprias do esprito, do crebro humano. Como ressituar ento o problema do saber? Percebe-se que o paradigma que sustm o nosso conhecimento cientfico incapaz de responder, visto que a

    cincia se baseou na excluso do sujeito. certo que o sujeito existe pelo modo que tem de filtrar asmensagens do mundo exterior, enquanto ser que tem o crebro inscrito numa cultura, numa sociedadedada. Em nossas observaes mais objetivas entra sempre um componente subjetivo. (MORIN, 1999, p.136-137).

    Ora, como conceber observaes objetivas ao se considerar a inevitabilidade de inseres subjetivas? Noh leitura objetiva que no seja, sempre, uma leitura subjetiva. Toda insero subjetiva anula qualquerdesejo de objetividade. A cincia procurou permanentemente negar tal condio: a presena do sujeito naprpria leitura que desenvolve. Uma leitura, uma interpretao, uma anlise assptica, livre do sujeito,como se fosse possvel, a ele, livrar-se da sua prpria condio de leitor, de intrprete, de analista dosproblemas dos quais se ocupa: o objeto interpretado , tambm, a expresso do sujeito que interpreta, quel. Alm disso, como imaginar que a leitura no seja, tambm, sempre, leitura sobre leitura? Portanto, aleitura do mundo, empreendida pelo sujeito, sempre transtextual. No h como desconsiderar, nessas

    circunstncias, tambm, o carter coletivo da qual se reveste a leitura do sujeito do conhecimento, quedever ser sempre um sujeito do mundo para que possa produzir saber. Caso no seja assim o sujeito, o que pensar do conhecimento produzido, apartado que est do mundo? Um conhecimento esvaziadode mundo, de saber? Um conhecimento de objetos, esvaziado pelo prprio esvaziamento dos sujeitos? Oobjeto uma construo terica do sujeito e, mais adiante, uma interpretao empreendida por ele. Doisexerccios de apartheid, de dicotomias alheias prpria natureza do saber, constituram a cinciamoderna. O primeiro deles: a distino entre sujeito e objeto. O segundo: a delimitao dos territriosdisciplinares.

    O positivismo, talvez, tenha mesmo sido a referncia por meio da qual a cincia se expressa,progressivamente, atravs dos seus territrios disciplinares. Ao definir, para sua prpria utilizao, oscritrios que fazem a sua existncia, o exerccio cientfico, especialmente sob as orientaes positivistas,

    se expressou atravs das disciplinas, das especializaes, do conhecimento particularizado. Alm delegitimado pelo prprio contexto histrico e social que se refere modernidade, o conhecimentodisciplinar desenvolve a expectativa de que o exerccio cientfico vertical encaminharia anlises

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    progressivamente menos superficiais acerca dos objetos sob investigao. A cada territrio disciplinar,por sua vez, corresponderia: um objeto ou um conjunto de objetos, particulares disciplina; um mtodoou um conjunto de mtodos de pesquisa, prprios da disciplina.

    A definio dos campos disciplinares, portanto, no apenas de natureza tcnica, mas, tambm, decarter poltico, ideolgico. Os campos disciplinares so, de fato, territrios do saber limitados, cerceados

    em sua sabedoria, pelos prprios limites impostos pelo processo que os define. Os campos disciplinaresso territrios do conhecimento, feitos de limites e a partir deles, que encerram a sabedoria ao ponto delase tornar irreconhecvel sob a referncia do prprio saber.

    Os limites, assim, linhas imaginrias de defesa dos territrios disciplinares, voltados para dentro dosdiversos campos, desenvolvem a expectativa de autonomia do conhecimento. Nessas circunstncias, asdisciplinas, em seus exerccios epistemolgicos, tericos, metodolgicos, procuram delimitar os seusobjetos de estudo e seus mtodos de pesquisa. Com isso, tambm, constroem o discurso da autonomiadisciplinar: cada disciplina, portanto, supostamente, teria o seu discurso prprio, a sua particularlinguagem, os seus cdigos particularizados de carter tcnico e metodolgico. Entretanto, os limites queseparam os territrios disciplinares carregam consigo as fronteiras, que significam espaos de aberturapara o mundo exterior que diz respeito a cada campo especializado. Fronteiras interrogam limites.Aberturas borram limites que se transformam em territrios de contato.

    Para que seja cientfico, o saber expresso do exerccio crtico e reflexivo da cincia dever,sempre, ser transdisciplinar. Desde as suas origens, o saber cientfico transdisciplinar: por natureza, ele feito de fronteiras, zonas de contato, ambincias de transio, que ainda se expandem diante dapossibilidade de dilogo externo. Isso significa que o movimento de delimitao dos territriosdisciplinares , por diversas razes, algo que se aproxima da prpria negao da cincia que, de saber,progressivamente se transforma em conhecimento tcnico[4]. As anotaes devem, em parte, sercompreendidas como derivaes de exerccios reflexivos desenvolvidos por Edgar Morin:

    O desenvolvimento da cincia ocidental desde o sculo 17 no foi apenas disciplinar, mas tambm umdesenvolvimento transdisciplinar. H que dizer no s as cincias, mas tambm a cincia, porque huma unidade de mtodo, um certo nmero de postulados implcitos em todas as disciplinas, como o

    postulado da objetividade, a eliminao da questo do sujeito, a utilizao das matemticas como umalinguagem e um modo de explicao comum, a procura da formalizao etc. A cincia nunca teria sidocincia se no tivesse sido transdisciplinar. (MORIN, 1999, p. 135-136).

    As origens transdisciplinares do conhecimento cientfico estimulam a reflexo acerca de processos que sereferem s negaes e contradies da cincia. Atravs dos referidos processos, a cincia se estabelece eprogressivamente se moderniza atravs da tcnica e, sobretudo, se expressa por meio de domniosdisciplinares. Contradio essencial: negar a sua prpria origem de modo a se estabelecer como cincia.No entanto, os percursos contemporneos da modernidade explicitam contradies ainda mais densas;desejos estranhos s prprias referncias norteadoras da cincia: negar a negao. Ainda que atravs demovimentos tomados como alternativos, contra-hegemnicos, j no so incomuns as demandas pelasincurses transdisciplinares. Pelo contrrio, as imagens tericas que se referem transdisciplinaridade jse desgastam, pelo uso equivocado e inadvertido do conceito, pela insistncia recorrente marcada pela

    ausncia de uma formao transdisciplinar dos prprios sujeitos do conhecimento. De algum modo,tambm, pelo j incorporado poder que os legitima, prevalecem os discursos em prol das disciplinas,voltados para o fortalecimento dos limites dos territrios da cincia domnios poltico-disciplinares ,que estimulam, ainda, os papis de fortalecimento das corporaes que assumem, definitivamente, ocarter mercantil. Ainda assim, a manifestao em prol das incurses transdisciplinares significa, desdej, a expresso de uma cincia interrogada e da explicitao do desgaste do paradigma disciplinar.

    As anotaes j foram encaminhadas: o saber cientfico transdisciplinar, feito de limites, mas,especialmente, de fronteiras que procuram a sua expanso. Fronteiras moventes. A mobilidade dasfronteiras entre os saberes cientficos, por sua vez, faz o movimento dos territrios disciplinares:mobilidades transgressoras, que subvertem o conhecimento para, permanentemente, faz-lo buscar osaber. Assim, os territrios disciplinares, a despeito do discurso conservador que fortalece limites, tendem

    ao movimento, plasticidade e, no que interessa reflexo, constituio e extenso das zonas decontato entre os saberes. Tais espaos fronteirios, portanto, so constantemente povoados por conflitos epor dilogos que fazemsaberes moventes.

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    Saberes moventes, produzidos por dilogos processos de traduo , que povoam fronteiras. Por suavez, a prpria natureza da mobilidade dos saberes, que habitam fronteiras, faz com que o saber,transgressor, tenda, ainda, experincia que ultrapassa os limites da cincia. No se est mais, nessascircunstncias, no mbito da reflexo acerca dos movimentos internos cincia. No se est mais,tampouco, no mbito das experincias estritamente universitrias.

    Para alm das possibilidades de atravessamento envolvendo territrios disciplinares e, portanto, nombito exclusivo da cincia , saberes moventes, que expressam a arte da cincia que se reinventa nasua permanente transformao (atravs de dilogos de fronteira), tendem a se aproximar dos demaissaberes externos prpria cincia. Aproximam-se, assim, dos universos de existncia, dos saberescomuns, da experincia, da vida cotidiana dos lugares. Volta-se o pensamento, ainda, para o conceito detransdisciplinaridade, como o definiu Flix Guattari (1992), ou para a tessitura terica, epistemolgica,trabalhada por Boaventura de Sousa Santos (2006a): a ecologia de saberes: focalizando possibilidades dedilogo entre saberes hegemnicos (cientficos) e no-hegemnicos (saberes comuns, locais). J se estnoutro domnio: no das utopias que referenciam a reinveno da cincia reinveno do homem e dashumanidades e a valorizao dos lugares da existncia.

    Saber comum

    Comum: o que habitual, corriqueiro e que est presente nas rotinas, nos cotidianos dos indivduos, dosgrupos sociais. O comum abundante, ao contrrio do que raro e excepcional. Banal, vulgar, conhecido,o comum o exerccio da freqncia. Costumeiro, o comum o cho das coisas, rasteiro, simples,ordinrio, geral. O comum o corriqueiro, dirio, trivial. De usado, no dia-a-dia, o surrado, comum, soacomo o bvio. No entanto, ao que comum atribui-se, pelo uso, a sua condio prtica adquirida pelaexperincia, pelo experienciar: existir, experimentar o mundo, viver o mundo nos lugares feitos decotidiano.

    O saber comum, assim adjetivado, tem os seus territrios demarcados pela prpria cincia. A cincia:uma bssola progressivamente mais moderna, radical-conservadora, que intensifica a suamodernizao pela via do desenvolvimento das tcnicas das quais se serve que aponta, excludente,para os territrios do saber compreendidos como no cientficos. Assim, a prpria cincia define o que

    poder ser tomado como saber comum. Ao se definir, ela prpria, como cincia, a partir de critrios queestabelece para interpretar a si mesma, exclui dos seus territrios o que no se enquadra nesses mesmoscritrios que desenvolve para que possa ser delineada. Fora dos seus domnios, portanto, est o sabercomum, vulgar, senso comum, que apenas fazer porque sabe atravs da prpria rotina do fazer.

    Boaventura de Sousa Santos, contudo, ao refletir sobre distines entre cincia e senso comum, oferececaminhos interpretativos oportunos para a compreenso crtica de ambos. Se no define o que cincia, osenso comum saber comum legitima a distino que o separa, oprimido, do conhecimentocientfico. A imposio do preconceito, convencionalmente atribuda ao senso comum como uma de suascaractersticas, emerge, originria da cincia, como um reflexo inevitvel da distino:

    A distino entre cincia e senso comum pode ser feita tanto a partir da cincia como do senso comum,mas o sentido diferente em cada um dos casos. Quando feita pelo senso comum, significa distinguirentre conhecimento objectivo e mera opinio ou preconceito. Quando feita pelo senso comum, significadistinguir entre um conhecimento incompreensvel e prodigioso e um conhecimento bvio e obviamentetil. Por conseguinte, a distino est longe de ser simtrica. Alm disso, quando feita na perspectiva dacincia, essa distino tem um poder que excessivo face ao conhecimento que a torna possvel. Comoqualquer conhecimento especializado e institucionalizado, a cincia tem o poder de definir situaes queultrapassam o conhecimento que delas detm. por isso que a cincia pode impor, como ausncia depreconceito, o preconceito de pretender no ter preconceitos. (SANTOS, 2000, p. 107).

    As anotaes parecem sugerir que a cincia, ao se definir, desenvolve espaos de apartheid, edificalimites para alm dos quais so encaminhados os saberes comuns. No entanto, esses esto em todos oslugares porque lhes concede identidade. Se a cincia se expressa atravs dos seus territrios disciplinares,ainda que moventes, os saberes comuns se espraiam por todos os lugares: plancies feitas de rotina, do

    banal, do cotidiano dos lugares. Encontram-se, pois, em todas as comunidades, locais, estendem-seatravs dos guetos e das tribos, resistem invisibilidade que lhe deseja conferir a prpria cincia. A

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    observao de Clifford Geertz parece se aproximar da curiosidade e da crtica acerca da descoberta dainteligncia e da sabedoria na vida comum:

    Assim, Durkheim descobriu formas elementares de vida religiosa entre os aborgenes australianos; Boas,um talento espontneo para o desenho na costa do noroeste; Lvi-Strauss, uma cincia concreta noAmazonas; Griaule, uma ontologia simblica em uma tribo da frica Ocidental; e Gluckman, um jus

    communeimplcito em outra tribo da frica Oridental. No havia nada nos subrbios que no existisseantes na cidade antiga. [...] No entanto, embora todas essas descobertas tenham tido um certo sucesso,pois, hoje em dia, ningum acha que primitivos se que existe algum que ainda use este termo so pragmatistas simplrios que andam tateando em busca de conforto em meio a uma nvoa desupersties, elas no conseguiram fazer calar a pergunta essencial: onde exatamente est a diferena porque mesmo os defensores mais acirrados da proposio que qualquer povo tem seu prprio tipo deprofundidade (e eu sou um deles) admitem que existe uma diferena entre as formas j trabalhadas dacultura acadmica, e aquelas ainda toscas, da cultura coloquial? (GEERTZ, 2002, p. 113).

    Assim, os saberes comuns so definidos e deslegitimados pela cincia, sob a referncia do prprioconhecimento cientfico. O saber comum reduzido banal opinio. No explicativo. No metdico.No crtico. transmitido e absorvido atravs das geraes e, de um modo geral, atravs da prpriatradio oral. Assim, os saberes comuns so, em princpio, tpicos das naes grafas. Os saberesconstrudos pelas comunidades, sociedades e naes grafas, muitas vezes milenares, atravessamgeraes e marcam a histria dos povos. No mundo moderno, ocidental, contudo, em que a escrita umadas marcas da tradio, os saberes comuns tambm circulam atravs de canais semelhantes, atravs daoralidade e do fazer comum.

    Algumas caractersticas do saber comum marcam a prpria caracterizao do denominado senso comum,assim como dos saberes ditos locais, cotidianos. Sob a referncia da cincia definidora do que e doque no cientfico , os saberes comuns so caracterizados pela sua subjetividade, representativos queso dos indivduos (sujeitos), dos grupos, das comunidades. certo que esses saberes, portanto, deverovariar conforme o sujeito e de acordo com o contexto social, cultural, no qual se insere. Diante disso,encaminham-se as questes: qual saber, originrio do sujeito, no incorporar a subjetividade? Se oprprio conhecimento cientfico incorpora subjetividades originrias do sujeito do conhecimento ,

    como deslegitimar os saberes comuns em funo da sua natureza subjetiva?

    Saber comum, senso comum: no poder mesmo ser a cincia compreendida como a sua extenso, comoo resultado do seu progressivo aperfeioamento. O conhecimento cientfico edificado conforme odiscurso que procura desenvolver acerca do seu prprio esforo contra a trivial opinio, contra o choda vida cotidiana. reflexo, interessam as anotaes originrias da antropologia que tambm fornecem,atravs da leitura de Clifford Geertz, as possibilidades de compreenso das perdas da cincia que se do apartir do processo de deslegitimao do senso comum:

    A antropologia nos pode ser til aqui da mesma forma que til em outras situaes: ao fornecerexemplos extraordinrios, ajuda a situar exemplos mais prximos em um contexto diferente. Seobservarmos a opinio de pessoas que chegam a concluses diferentes das nossas devido vivnciaespecfica que tiveram, ou porque aprenderam lies diferentes com as surras que levaram na escola da

    vida, logo nos daremos conta de que o senso comum algo muito mais problemtico e profundo do queparece quando o ponto de observao um caf parisiense ou uma sala de professores em Oxford. Comoum dos subrbios mais antigos da cultura humana no muito regular, no muito uniforme, mas aindaassim ultrapassando o labirinto de ruelas e pequenas praas em busca de uma forma menos casual dehabitar o senso comum mostra muito claramente o impulso que serve de base para a construo dossubrbios: um desejo de tornar o mundo diferente. (GEERTZ, 2002, p. 117-118).

    O desejo de transformar o mundo e de torn-lo diferente: seguramente, aos olhos do saber crtico, areferida diferena assume significados valorativos especiais: o que poder haver de diferente no futuro,em um mundo a ser transformado no presente feito de rotina, de experincias, de fazeres e existncias de modo a atender as expectativas da vida local? De que consistiro tais desejos de transformao queno atravessem os sonhos de cidadania? Os saberes comuns so marcadamente locais, feitos de rotina, do

    conhecimento comum que circula pela vida cotidiana dos denominados homens comuns, cidados domundo nos lugares. Isso significa que os saberes comuns tm assento na ordem do cotidiano, na escalados lugares, da existncia. Saberes comuns, saberes locais, contra-hegemnicos pela sua natureza escalar,

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    local, que se contrape ao carter global, hegemnico, do qual se reveste a cincia moderna. MiltonSantos contribui para a organizao de argumentos, ao sublinhar o conceito de construo, nos lugares, deterritrios de solidariedade:

    A ordem global busca impor, a todos os lugares, uma nica racionalidade. E os lugares respondem aomundo segundo os diversos modos de sua prpria racionalidade [...]. A ordem global funda as escalas

    superiores ou externas escala do cotidiano. Seus parmetros so razo tcnica e operacional, o clculode funo, a linguagem matemtica. A ordem local funda a escala do cotidiano, e seus parmetros so aco-presena, a vizinhana, a intimidade, a emoo, a cooperao e a socializao com base nacontigidade [...]. O cotidiano imediato, localmente vivido, trao de unio de todos esses dados, agarantia da comunicao. (SANTOS, M., 2005, p. 170).

    O que, aqui, se denomina de territrios de solidariedade seria, tambm, uma expresso e um reflexo daextenso progressiva de dilogos entre cincia e saberes comuns, locais. Esses territrios de solidariedadeseriam uma resposta ao mundo e s lgicas globais, s ticas hegemnicas que estimulariam os desejos detransformao do mundo atravs, tambm, do dilogo entre a cincia e os saberes comuns.

    Limites e fronteiras entre cincia e saberes locais: dilogos transformadores

    Limites e fronteiras so conceitos que, aparentemente sinnimos, so aqui trabalhados de modo a fornecerinterpretaes acerca das zonas de contato, espaos de transio entre saberes, que tanto podem estimularconflitos como podem, atravs de processos de traduo, encaminhar dilogos:

    Fronteiras e limites, em princpio, fornecem imagens conceituais equivalentes. Entretanto, aproximaese distanciamentos podem ser percebidos entre fronteiras e limites. Focaliza-se o limite: ele parececonsistir de uma linha abstrata, fina o suficiente para ser incorporada pela fronteira. A fronteira, por suavez, parece ser feita de um espao abstrato, areal, por onde passa o limite. O marco de fronteira,reivindicando o carter de smbolo visual do limite, define por onde passa a linha imaginria que divideterritrios. Fronteiras e limites ainda parecem dar-se as costas. A fronteira coloca-se frente (front), comose ousasse representar o comeo de tudo onde exatamente parece terminar; o limite, de outra parte, parecesignificar o fim do que estabelece a coeso do territrio. O limite, visto do territrio, est voltado para

    dentro, enquanto a fronteira, imaginada do mesmo lugar, est voltada para foracomo se pretendesse aexpanso daquilo que lhe deu origem. O limite estimula a idia sobre a distncia e a separao, enquantoa fronteira movimenta a reflexo sobre o contato e a integrao. Entretanto, a linha que separa osconceitos espao vago e abstrato. (HISSA, 2006b, p. 34).

    A natureza movente das fronteiras, sempre transicionais, que decorre tambm do prprio carter moventedos territrios disciplinares, exigiria, por sua vez, no dilogo entre saberes, uma formao pedaggica docientista e uma capacidade tradutora dos sujeitos do mundo. Somente assim o povoamento das fronteiraspelos saberes poderia minimizar conflitos e potencializar encontros feitos de dilogos.

    [...] a transformao dos saberes locais ocorre com a transformao do saber cientfico e com esta ocorrea transformao do sujeito epistmico, do ser cientista. Porque a aplicao contextualizada tanto pelos

    meios como pelos fins e porque lhe preside o know-how tico, o cientista edificante tem de saber falarcomo cientista e como no cientista no mesmo discurso cientfico e, complementarmente, tem que saberfalar como cientista nos vrios discursos locais, prprios dos vrios contextos de aplicao. (SANTOS,2002, p. 184).

    Se o cientista, moderno, com uma formao originria das instituies universitrias modernas, no estimulado a cultivar o dilogo, e tampouco estimulado a aproveitar as experincias do mundo demodo a fazer, da sua palavra, uma extenso da leitura do mundo em que est inserido (FREIRE, 2000) ,os cidados, por outro lado, ao cultivar a sua existncia nos lugares, so tradutores por natureza[ 5]. Oexerccio da cidadania pressupe autonomia de modo a bem decidir, julgar, participar ativamente da vidaque envolve os indivduos: cultural, poltica, econmica e social. A cidadania no poder ser plena se no tradutora do mundo moderno codificado. A cidadania, portanto, pressupe a existncia no mundo,enquanto o fortalecimento da cidadania, por sua vez, exige mais saber circulante, mais capacidade de

    comunicao (dilogo) tambm originria da cincia que, apenas reinventada pela sua prpria subverso,poder viabilizar troca de linguagens e de discursos que a tornem prxima do mundo, prtica,

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    humanizada. O referido dilogo se desenvolve atravs de exerccios de traduo. Sobre tal trabalho, daforma como Boaventura de Sousa Santos aborda o processo:

    O trabalho de traduo tanto pode ocorrer entre saberes hegemnicos e saberes no-hegemnicos comopode ocorrer entre saberes no-hegemnicos. A importncia deste ltimo trabalho de traduo reside emque s atravs da inteligibilidade recproca e conseqente possibilidade de agregao entre saberes no-

    hegemnicos possvel construir a contra-hegemonia. (SANTOS, 2006, p. 126).

    Boaventura de Sousa Santos no aborda, intensivamente, as possibilidades de traduo entre sabereshegemnicos. Em primeiro lugar, pelo fato de que, quando se trata de avaliar processos interdisciplinares,no h como faz-lo sem focalizar os limites entre os prprios territrios do conhecimento. Isso significaque os processos interdisciplinares carregam, para o seu exerccio, os limites que lhes do a motivao deexistncia (HISSA, 2006b). Em outros termos, tal como observa Boaventura de Sousa Santos (2006a, p.147), a interdisciplinaridade seria [...] uma forma de colaborao que pressupe um respeito pelasfronteiras entre disciplinas tais como elas existem. Em segundo lugar, talvez mesmo pelo fato dainviabilidade de desenvolvimento de uma epistemologia geral da cincia, tal como acrescenta Boaventurade Sousa Santos, dada a sua prpria pluralidade interna:

    [...] hoje invivel uma epistemologia geral. Tal como tenho defendido no domnio terico, no domnioepistemolgico quando muito possvel uma epistemologia geral sobre a impossibilidade daepistemologia geral. Da a importncia de passar da pluralidade interna pluralidade externa, dadiferenciao interna das prticas cientficas diferenciao entre saberes cientficos e no cientficos.(SANTOS, 2006a, p. 152).

    Dilogos entre cincia e saberes locais: comunicao que se desenvolve no mbito externo prpriacincia e universidade. Os dilogos pressupem a troca de linguagens, discursos, teorias, mtodos,fazeres, experincias, desde que sejam motivados por processos de traduo entre os universos que sepem em contato. Entre a cincia, representada pela sua pluralidade de disciplinas, e os saberes locais(pluralidade externa), em suas diversas manifestaes, os dilogos favoreceriam um saber cientficofundamentado na experincia, na prpria existncia da vida nos lugares, mas, tambm, um saber comumque se desenvolveria, se transformaria, com base no saber cientfico. A transdisciplinaridade, tal como

    compreendida nos circuitos acadmicos, na universidade moderna, j estaria distante das solicitaes detransformao: do mundo, do homem, da cincia. Boaventura de Sousa Santos desenvolve um rico tecidoterico, por ele denominado de ecologia de saberes, que bem poderia incorporar o conceito detransdisciplinaridade, desde que esse contemple as possibilidades de traduo entre cincia e sabereslocais, assim como as necessidades de abertura da universidade em que se pratica a cincia. Sobre aecologia de saberes:

    Esta ecologa de saberes permite no solo superar la monocultura del saber cientfico, sino la idea de quelos saberes no cientficos son alternativos al saber cientfico. La idea de alternativa presupone la idea denormalidad, y sta la idea de norma; por lo que, sin ms especificaciones, la designacin de algo comoalternativo tiene una connotacin latente de subalternidad. Si tomamos como ejemplo la biomedicina y lamedicina tradicional en frica, no tiene sentido considerar esta ltima, prevaleciente desde hace muchotiempo, como alternativa a la primera. Lo importante es identificar los contextos y las prcticas en los que

    cada una opera y el modo como conciben salud y enfermedad y de qu modo superan la ignorancia (bajola forma de enfermedad no diagnosticada) en saber aplicado (bajo la forma de curacin). (SANTOS,2006, p. 79).

    A formao dos sujeitos do conhecimento que cultiva a sua transformao em sujeitos do saber maisplenos de sabedoria tradutora exigiria no apenas uma nova universidade, mas uma idia referencial deuniversidade em cujo centro estaria o seu prprio desaprender. Desaprender para aprender. Apenas assimpode-se conceber que se ensina. A partir do desaprender permanente construdo o rotineiro aprendizado.Somente assim possvel conceber uma formao capaz de produzir sujeitos do conhecimento, cientistas,capazes de dialogar com o mundo e de fazer com que a experincia seja incorporada ao saber queproduzem. A universidade moderna[6], contudo, est voltada para o atendimento de demandas domercado. Ela mesma se transformou, progressivamente, em um suposto qualificado mercado. Um

    negcio movido pela idia de competncia da qual emerge, com vitalidade, a supresso do saber pela viada competio:

    http://www.ub.es/geocrit/9porto/cahissa.htm#n6#n6http://www.ub.es/geocrit/9porto/cahissa.htm#n6#n6
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    A disponibilidade global de mo-de-obra qualificada fez com que o investimento na universidade pblicados pases centrais baixasse de prioridade e se tornasse mais selectivo em funo das necessidades domercado. Acontece que, neste domnio, emergiu uma outra contradio entre a rigidez da formaouniversitria e volatilidade das qualificaes exigidas pelo mercado. Essa contradio foi contornada, porum lado, pela criao de sistemas no-universitrios de formao por mdulos e, por outro lado, pelapresso para encurtar os perodos de formao universitria e tornar a formao mais flexvel e

    transversal e, finalmente, pela educao permanente. Apesar das solues ad hoc, estas contradiescontinuaram a agudizar-se enormemente na dcada de 1990 com o impacto desconcertante na educaosuperior: a universidade, de criadora de condies para a concorrncia e para o sucesso no mercado,transforma-se, ela prpria, gradualmente, num objecto de concorrncia, ou seja, num mercado. Para almde certo limite, esta presso produtivista desvirtua a universidade at porque certos objectivos que lhepoderiam estar mais prximos tm sido esvaziados de qualquer preocupao humanista ou cultural. ocaso da educao permanente, que tem sido reduzida educao para o mercado permanente. Do mesmomodo, a maior autonomia que foi concedida s universidades no teve por objectivo preservar a liberdadeacadmica, mas criar condies para as universidades se adaptarem s exigncias da economia.(SANTOS, 2004, p. 23-24).

    Alguns apelos idia de universidade livre ou idia de liberdade na universidade so comuns: eles jincorporam o senso comum, crtico, da prpria universidade, em seus espaos de resistncia. Outras

    leituras acerca do mundo moderno universitrio so indispensveis para a compreenso da ausncia deautonomia intelectual que, de forma insistente, invade amplos espaos do lugar do saber (tal como deveriasempre ser). o que pode ser sublinhado no exerccio reflexivo desenvolvido por Renato Janine Ribeiro(2003). Ainda que espaos de resistncia possam ser cultivados nos interiores da universidade, a imagemde autonomia intelectual ausente revela uma ausncia de cidadania intelectualque impossibilita o dilogonos interiores da universidade e obstrui, de modo decisivo, uma formao potencialmente voltada para odilogo transformador com o mundo. Diante disso, como imaginar a transformao a partir de novasarquiteturas conceituais, utpicas, plenas de esperana, se o desastre j se consuma como um objeto banalda vida cotidiana universitria, da vida formadora do sujeito da cincia moderna? Talvez seja mesmo odesastre no mais a ameaa do desastre, mas o exerccio rotineiro do desastre o componenteestruturador das utopias feitas de exerccios de existncia, de desejos de transformao do mundo.

    Novos desenhos do pensamento utpico: reinventando lugares

    Algumas anotaes e reflexes elaboradas por Paolo Rossi podem auxiliar o exerccio de pensar asutopias e as esperanas que, incorporadas ao saber cientfico, constroem possibilidades de reinveno daprpria cincia e de valorizao da existncia nos lugares. A primeira delas: O discurso sobre as razesde esperar, a ostensio spei, uma parte no secundria da preparao das mentes e daInstauratio Magna.Os leitores apressados esqueceram isso com freqncia (ROSSI, 2000, p. 31-32). A segunda delas:

    Os homens sempre temem que o tempo se tenha tornado velho e inadequado gerao. Antes que umacoisa seja realizada pensam que jamais poder ser realizada. To logo seja realizada, admiram-se que notivesse sido realizada antes. Aconteceu com Colombo o mesmo que com Alexandre, que primeiro foicriticado por querer tentar coisas impossveis e depois elogiado por Lvio s por ter desprezado as vs

    apreenses. Nas coisas intelectuais isso acontece com maior freqncia ainda: as proposies de Euclidesparecem estranhas e distantes do senso comum antes de demonstradas como verdadeiras; uma vezdemonstradas, a mente as acolhe por uma espcie de retroao (como a chamam os juristas), como se jtivessem sido conhecidas e esclarecidas desde antes.

    As esperanas no podero ser confundidas com a ao passiva da espera. Elas so fabricadas pelo desejode transformao. Esperar, portanto, no implicaria, necessariamente, no exerccio intelectual ou cidadoque se refere s esperanas. Em determinadas circunstncias, por sua vez, as esperanas so confundidascom as utopias. Ao definir um desejo como fantasioso, como de impossvel alcance, comum que a ele serefira como uma utopia e que dele se retire qualquer razo de esperana.

    As utopias so compreendidas, comumente, atravs da representao imaginria de sociedades

    idealizadas que, fundamentadas na justia, caminhariam sempre na direo da conquista do bem-estarcoletivo. Nesse sentido, as utopias so ilhas desgarradas da cartografia do mundo dito real. Conforme osseus significados convencionais, as utopias constituem projetos de natureza irrealizvel e, por tais razes,

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    se aproximam da fantasia distante da exeqibilidade. No marxismo, para que se faa referncia aosocialismo utpico, as utopias constituem um modelo imaginrio de sociedade ideal que emerge comoleitura crtica encaminhada s organizaes sociais existentes, em especial quelas desenvolvidas sob oparadigma do modo de produo capitalista. Contudo, por natureza, conforme os prprios significadosconvencionais encaminhados ao conceito, as utopias devero sempre se submeter sua condio deinexeqvel em funo do seu prprio vnculo com as estruturas poltico-econmicas vigentes na histria.

    Portanto, o conceito de utopia fornece imagens que so estrangeiras ao mundo da racionalidade, aoprprio universo da cincia. As utopias esto articuladas quilo que produto da imaginao recusadapelos critrios fundantes da cincia , da fantasia, do idealismo que, por definio, se afasta do mundoda realidade e se aproxima de sonhos quimricos. No entanto, as utopias esto prximas dos saberescomuns desejosos de transformao , da existncia, na ordem local e na escala do cotidiano.

    As arquiteturas do pensamento utpico, para que se concebam as possibilidades de expanso dasfronteiras do pensamento ilhado, devero estar fundamentadas muito mais na existncia do que na suafalta concretizada pela cincia que produz invisibilidades (SANTOS, 2006a) , muito mais no saberdo que na tecnocincia e, sobretudo, especialmente, no povoamento dialgico das fronteiras. Asarquiteturas do pensamento utpico esto referenciadas por uma crtica e movente epistemologia dafronteira, cuja referncia transcende a epistemologia da cincia e a sua pluralidade disciplinar. Opensamento que apreende feito do contnuo desaprender: nele, a pedagogia a pedagogia da existncia dos saberes comuns, locais que, atravs do dilogo, transformada pelos saberes cientficostambm reinventados de modo a cultivar sonhos de liberdade.

    Portanto, o redesenho das utopias no apenas um redesenho conceitual: no se trata apenas, pois, dereinventar arquiteturas conceituais que permaneceriam submetidas ao universo do desejo, dos sonhos edas referncias distantes da vida cotidiana. A reestruturao conceitual que se refere s utopias faz, dasmesmas, um conjunto de referncias que encontram no prprio mundo histrico as possibilidades deexistncia.

    As arquiteturas do pensamento reinventado, por sua vez, permitem a imaginao e a concepo dedesenhos de lugares, de cidades, a partir de novas ticas e lgicas. As referncias de justia social, ao

    serem atravessadas por processos dialgicos de natureza cognitiva, permitem a concepo de territriossocioespaciais de cidadania que reproduzem ambientes de utopia e lugares de esperana, valorizando aexperincia e a existncia.

    Redesenhar a esperana sob o norte das utopias: arquitetura do pensamento utpico, tal como concebida,atravessa o pensamento moderno, feito de uma excludente razo, e se estrutura a partir das possibilidadesde hibridizao, de transformao e articulada s humanidades. As arquiteturas do pensamento utpicoso vrias, mltiplas, diversificadas como o pensamento que no se quer nico, monoltico: para quepense no apenas a multiplicidade, mas a diversidade epistemolgica da fronteira entre saberes detodas as naturezas e do seu povoamento por saberes feitos de cincia e de experincia de mundo , assimcomo a prpria transformao engendrada, em meio a conflitos, por processos de dilogos eminentementetradutores.

    Diante da expectativa do naufrgio, derrota inevitvel que consola os apologistas da desesperanainarredvel, aps a superposio de promessas no cumpridas ao longo da modernidade, o que brilhacomo indicao de referncia utpica no processo de valorizao dos lugares? O referido processo subtraio valor mercantil da concepo globalizada de valor: em seu lugar se insere o valor da existncia doslugares, nos lugares.

    O referido processo, alicerado e fortalecido atravs dos dilogos entre cincia e saberes locais,encaminham valores libertrios e democrticos concepo poltica e moderna de cidado. Concede-seum novo conceito cidadania, a partir do encaminhamento de novos significados aos saberes locais. Avalorizao dos lugares implica, muito mais na contemporaneidade, a valorizao das cidades nas cidades(HISSA, 2006a). A despeito de que possa ser assim interpretada, a cidade no uma tessiturasocioespacial monoltica, feita de linhas mestras e de bordados macroestruturais que anulam a vida de

    esquinas, de ruelas e becos, de quintais que assombram modernidades, de vilas, bairros e subterrneos.

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    A cidade feita de cidades, metfora de lugar, de um lado, e, de outro, extenso coerente de bordadosperifricos que atravessam espaos nodais, ao se servir de linhas mestras.

    Cidades invisveis, fora do cran, lugares feitos da vida cotidiana e da cidadania que encontramsignificados, fortalecendo sua vocao para a transformao do mundo. Portanto, o processo derevalorizao dos lugares, pela via da mobilidade das fronteiras entre cincia e saberes locais, ao

    redesenhar as arquiteturas do pensamento utpico, concede voz e visibilidade emergncia scidades feitas de ruelas e de becos, de vilas e de quintais que, no interior das cidades de avenidasiluminadas, edificam espaos de esperana.

    Notas

    [1]No haveria uma razo pura, ensimesmada, a partir da qual seria feita a cincia moderna tal como eladeseja se perceber. Obras contemporneas fornecem consistentes e crticos argumentos de carter

    filosfico, terico, metodolgico e experimental que interrogam a razo e a desloca para a fronteiraconstituda pelos universos da emoo e da existncia. A razo, a partir das interpretaes contidas nessasobras, seria um produto de relaes estabelecidas com a emoo, com o mundo da experincia, daexistncia, das sensibilidades. Sugere-se, em particular, a leitura de Humberto Maturana (2002), AntnioDamsio (1996), Oliver Sacks (1998).

    [2] As anotaes do historiador da cincia, Paolo Rossi, em determinadas circunstncias, provocamdvidas e sugerem a ampliao de leituras. As clssicas universidades europias espanholas, italianas,francesas, portuguesas, inglesas so anteriores, quase todas, ao sculo XVII. Por sua vez, asuniversidades modernas, na contemporaneidade, lugar essencial da fabricao e da reproduo da cinciamoderna, assim como da disseminao das imagens, de todos os tipos, que lhes dizem respeito, passam,por intensos processos de modernizao radical de carter conservador. Atingidas amplamente peloprocesso de mercantilizao, as universidades j no podem ser compreendidas, de forma irrestrita, como

    o lugar do saber, da sapincia. O saber cientfico j se confunde com a cincia-tcnica, como umamercadoria cujos modelos de produo interferem na prpria qualidade do saber. Nos pases do sul, nospases perifricos e semiperifricos, contudo, a situao das universidades certamente mais grave.

    [3]Alguns outros filsofos e cientistas, precursores do exerccio intelectual que, mais adiante, viria a serdenominado de cincia moderna. Para uma leitura introdutria ainda mais aprofundada, sistemtica,acerca da histria e da filosofia da cincia moderna, recomenda-se no apenas a obra de Paolo Rossi(2001), mas o esforo sistemtico, de consulta, organizado por Giovani Reale e Dario Antiseri (1990), oexerccio de organizao de verbetes filosficos desenvolvido por Niccola Abbagnano (1982), assimcomo o realizado por Andr Lalande (1999).

    [4]Procura-se, aqui, ainda, encaminhar distines entre saber e conhecimento. Enquanto, na modernidade,

    o conhecimento caminha na direo do expert, do conhecedor, a sabedoria, prpria do saber, afasta-se domonlogo disciplinar e se movimenta na direo do dilogo que atravessa fronteiras do conhecimento. Osaber processo que aproxima a cincia da tica, da arte, da filosofia, das mltiplas possibilidades demultiplicao de encontros, de dilogos que resultam na sua prpria e permanente transformao. Oconhecimento, sempre particularizado, aproxima a cincia da tcnica, pouco reflexiva, menos crtica enada comprometida com a transformao.

    [5] Distinguem-se, aqui, os conceitos relativos ao indivduo, ao consumidor, ao cidado. Ao ltimo conferido, pelas caractersticas de sua insero na sociedade, o poder ampliado de decidir, de fazerescolhas acerca de sua prpria vida. A construo da cidadania atravessada pela idia de justia socialque, por sua vez, tributria da prpria democracia dos saberes.

    [6] [...] a universidade moderna deveria existir sem condio. Entende-se por universidade moderna

    aquela cujo modelo europeu, aps uma histria medieval rica e complexa, se tornou prevalente, ou sejaclssico, nos estados de tipo democrtico. Mais alm da chamada liberdade acadmica, esta

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    universidade exige, e deveria ser-lhe em princpio reconhecida, uma liberdade incondicional dequestionamento e proposio, e mesmo, o que mais, o direito de dizer publicamente quanto exigem umapesquisa, um saber, um pensamento da verdade. (DERRIDA, 2003, p. 9). Jaques Derrida fortalece osseus argumentos e a sua reflexo: Esta universidade sem condio no existe de facto, e por demais osabemos. Mas em princpio e conformemente sua vocao declarada, em virtude da sua essnciaprofessada, ela deveria permanecer um lugar ltimo de resistncia crtica e mais que crtica a todos

    os poderes de apropriao dogmticos e injustos [...]. Quando digo mais que crtica subentendodesconstrutiva [...]. Apelo ao direito de desconstruo como direito incondicional de colocar questescrticas no apenas histria do conceito de homem mas tambm prpria noo de crtica de crtica, forma e autoridade da questo, forma interrogativa do pensamento. (DERRIDA, 2003, p. 12).

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