história da cantoria no brasil

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Livro: CANTORIA Flávio Tallarico 2ª edição 1981 esgotado Do Autor: POEMAS DO MOMENTO ANGUSTIADO 1963 - esgotado Capa: JORGE LUIZ PIEROBON Produtor e Editor: LUIZ CARLOS DE LIMA Revisão: VICENTE DE PAULO TALLARICO ADORNO Copyright © by: Flávio Tallarico Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução integral ou parcial da obra, sem autorização expressa do Autor. Tallarico, Flávio 1941 CANTORIA © Crônicas e Poemas 1- Crônicas e poesias brasileiras I- Título Editor: Luiz Carlos de Lima 1981 Descalvado SP

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Documento envolvendo história de cantorias de bares cantadas popularmente sem nenhum registro oficial.

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  • Livro:

    CANTORIA Flvio Tallarico

    2 edio 1981 esgotado

    Do Autor: POEMAS DO MOMENTO ANGUSTIADO 1963 - esgotado

    Capa: JORGE LUIZ PIEROBON

    Produtor e Editor: LUIZ CARLOS DE LIMA

    Reviso: VICENTE DE PAULO TALLARICO ADORNO

    Copyright by: Flvio Tallarico

    Todos os direitos reservados. Proibida a reproduo integral

    ou parcial da obra, sem autorizao expressa do Autor.

    Tallarico, Flvio 1941

    CANTORIA

    Crnicas e Poemas

    1- Crnicas e poesias brasileiras I- Ttulo

    Editor: Luiz Carlos de Lima 1981 Descalvado SP

  • O AUTOR

    Flvio Tallarico iniciou-se na literatura em 1963, com

    o lanamento do livro Poemas do Momento Angustiado, poca em que morava em So Paulo, Capital.

    Alm de escritor, dedicou-se tambm msica e,

    nesse campo, aps o lanamento do livro, teve atividade

    mais intensa.

    Participando de conjuntos musicais de So Paulo

    gravou seu primeiro disco LP em 1964, como integrante do

    grupo Os Berimbis. Apresentou-se com este conjunto

    durante seis anos na noite paulistana, em atividades como

    gravaes de discos, bailes e shows.

    Tendo a maior parte de seu tempo absorvido pela

    msica, que acabou se impondo atravs de uma carreira

    profissional, sua atividade literria ficou restrita aos

    pequenos intervalos que lhe permitiam sua ocupao

    musical.

    Uma nova fase em sua carreira de msico viria em

    1970, com a formao do conjunto Musical 5, como

    decorrncia do amadurecimento do antigo grupo Os Berimbis. Nesta fase, a carreira musical de Flvio Tallarico

    atingiu seu ponto mximo, sendo o grupo Musical 5 convidado a participar dos mais importantes eventos,

    dentro de sua especialidade, culminando com o lanamento

    do segundo LP.

    Com a invaso da msica aliengena e a proliferao

    do modismo Discoteque, atravs de gravaes em fitas

    cassete, a estrutura da msica ao vivo ficou seriamente

    abalada e, consequentemente, provocou a dissoluo de

    grande nmero de grupos musicais, criando dificuldade de

    subsistncia maioria dos profissionais.

    Diante desse quadro, a literatura volta a assumir papel

    importante na vida de Flvio Tallarico. Em 1976, j

    amadurecido, volta com a famlia para Descalvado e

    reencontra-se com a poesia.

  • Comea a trabalhar na imprensa descalvadense como

    reprter e redator do Jornal do Vale e, depois, jornal

    Tribuna de Descalvado, publicando em ambos suas

    crnicas e poesias.

    CANTORIA nada mais do que o resultado final

    da longa caminhada atravs da msica, traduzida em suas

    poesias e crnicas, que condensam o universo do homem e

    suas angstias.

    Luiz Carlos de Lima

    Nota do Autor

    O contedo deste caderno, como o anterior, procura a

    mesma proposta: o homem e suas angstias. A simplicidade da

    vida, hoje to complicada, se evocada em seu estado de pureza,

    faz renascer em cada universo razes aparentemente secas de sua

    infncia que, em realidade, agarradas de maneira profunda em

    cada subconsciente, sustenta o hoje homem-mquina, em sua

    maioria afastado da verdadeira viso de seu mundo.

    No cabe seno arte, despertar e libertar o homem de sua

    opresso. Isto a arte s o conseguir, se simples como a vida em

    sua origem bblica: E Deus fez o homem de barro sua imagem

    e semelhana, dando-lhe vida com um sopro divino. A prpria explicao divina da criao haveria de ser simples, para ser

    entendida por todos.

    Assim, creio eu, a poesia. Sem chaves, mistrios ou

    dogmas. Apenas o instante captado em sua pureza. Os exegetas

    viro depois, com os crticos, tentar encontrar a verdadeira

    mensagem que o homem comum h muito j entendeu.

  • A B E R T U R A

    C

    A

    N

    T

    O

    D

    A

    S

    O

    R

    I

    G

    E

    N

    S

  • CANTO DE EXALTAO E SAUDADE

    I

    Um poeta de 1941, nascido e registrado nesta Comarca,

    conforme certido de nascimento e assinatura de duas

    testemunhas, orgulhoso de c ter nascido e por vinte anos

    morado; um poeta de vinte e dois anos e um livro publicado; por

    muitos desconhecido mas por muitos estimado; um poeta que

    nasceu na nudez de tuas ruas, agora caladas; que jogou bolinha

    de gude, futebol, pedra nas vidraas: um poeta que um dia fez as

    malas e mudou-se; vem, aproveitando da data, trazer este

    simples canto, mais saudade que poesia, onde a tristeza e a

    alegria se fundem e se consolam.

    II

    Um pouco de tua histria:

    Jos e Tom Ferreira

    vieram l das Gerais.

    Meu av veio da Itlia.

    Eu vim de ti.

    ( minha histria tambm)

    III

    Como o tempo passa...

    Ainda ontem

    vinha gente das fazendas,

    amarrava os cavalos

    nos postes, perto da Igreja,

    e ia reza na missa.

    Eu que era coroinha

    mais por prazer que por f

    ajudava o Santo Ofcio

  • (trs missas cada domingo).

    Depois que o padre saia,

    depois que o povo saia,

    bebamos, inocentes,

    todo vinho que sobrava.

    Nossa Senhora sorria

    da ingnua profanao.

    Seu olhar nos compreendia.

    Seu sorrir nos perdoava.

    Como o tempo passa...

    IV

    O tempo passa e passou.

    Quando tive de ir embora

    deixei aqui minha infncia.

    Porm calaram as ruas

    (minha infncia se perdeu);

    trocaram a luz dos postes

    (minha infncia se perdeu);

    depois, pintaram a Igreja;

    (minha infncia se apagou).

    V

    Hoje, quando completas cento e trinta e um anos eu volto.

    A minha infncia, meus mortos, os parentes ainda vivos, o que

    me resta em ti.

    Por isso, trago estes versos

    mais saudade que poesia

    onde a tristeza e a alegria

    se fundem e se consolam.

    Principalmente se consolam.

    * * *

  • CATLOGO TURSTICO POTICO DA PROVNCIA

    I

    Jardim Velho

    Atrs de cada figueira, um fantasma

    esperando a noite.

    No outro dia, estrias

    de homens que se perderam

    e chegaram tarde em casa.

    Esposas ouvem caladas

    a explicao dos maridos

    e vo dormir sossegadas

    tradas por uma lenda.

    II

    Igreja

    Embaixo da torre a nave

    e sob a nave, ajoelhados,

    vo os homens de negcios

    todos juntos, irmanados,

    receber os sacramentos

    se livrar de seus pecados

    e depois do Santo Ofcio

    no bar, ao lado da Igreja,

    dissolvem a hstia em pinga

    sem que seu vigrio veja.

    Um fala alto, outro xinga,

    o mais valente esbraveja

    na lngua pura do povo

    e pr mostrar que so homens

    comeam a pecar de novo.

  • III

    Coreto

    Veio o domingo e a banda

    s sete e meia da noite

    atacou forte um dobrado

    e a moa na varanda

    do velho-antigo sobrado

    viu os pares que passavam

    apaixonados. Sentiu

    tamanha inveja que a hora

    passou depressa. Nem viu

    que a banda foi embora.

    Com o coreto vazio

    ficou to s na janela

    sem amor, sem namorado...

    Todas casaram; s ela

    que havia sobrado.

    IV

    Cemitrio

    Atrs dos bambus, os muros.

    atrs dos muros os mortos

    lembrando o dia em que a Santa

    foi trazida pr cidade.

    H procisso na cidade

    procisso no cemitrio.

    (s que a procisso dos mortos

    leva a Santa de verdade).

    V

    So Benedito

    Os rojes erguem os mastros

    e acendem a fogueira.

    dia de festa em So Benedito

    e so benditos aqueles que sambam.

  • Os pretos batucam e bebem cachaa:

    Corrida de pato, corrida de lebre

    cad essa pinga que nis num bebe? Ento h uma hora em que a cor no conta

    e unidos na mesma f e cachaa

    brancos e pretos pulam e cantam

    enquanto o Santo dorme satisfeito

    vendo os homens felizes e irmanados.

    VI

    Salto do Pntano

    Rio, que louco s, que valente

    saltando assim de to alto.

    Eu sei que na tua queda

    que est a tua grandeza.

    Mas os homens que morreram

    e os que vivem, no sabem

    a tua filosofia,

    porisso quedam calados.

    Mas tu na queda no quedas,

    antes ruges, esbravejas, espumas

    e mais que tudo isso lutas

    com tanta fora que as guas

    suam orvalho. vitria.

    Teu prmio? O arco-ris.

    VII

    Ribeiro Bonito

    As guas eram to limpas e havia muito peixe.

    Por isso ficvamos horas inteiras

    nas tuas margens.

    Mas a vida rola como as tuas guas

    e como as guas temos nossos destinos.

    Com eles nos vamos e nas tuas margens

    o que deixar de ns seno saudades?

    Deixamos tanta em tuas margens

    que as guas se turvaram.

  • VIII

    Trs horas da tarde.

    De janelinha aberta

    O morro espia a cidade

    espantado.

    Quanto tempo, meu Deus, j se passou

    desde Tom Ferreira.

    Esta janela que olha

    sabe contar uma histria

    mas no conta.

    S olha

    o trem que chega bufando

    s olha

    os que entram na matriz

    pela porta fronteiria

    s olha...

    isso no olha, feio,

    inda mais feito no mato.

    tarde. O sol se esconde

    E no se enxerga mais nada.

    O morro velho, cansado,

    Fecha a janela, cochila.

    De janelinha fechada

    a cidade dorme.

    IX

    Represa Roslia

    De teus brejos vinha o canto da saparia.

    por isso a noite era sonora

    e nostlgica.

    De tuas nascentes vinha a gua cristalina.

    Por isso a cidade era limpa

    e acolhedora.

    De tua lembrana vem uma vontade

    de ser menino.

  • Por isso agora sou poeta

    e triste.

    * * *

    INFANTOPATIA CRNICA

    O homem sempre busca consolo na infncia. Se tem razes

    slidas, alimenta o esprito com seiva que escorre de suas

    lembranas. Sorve, a cada dia, recordaes da casa, da rua, dos

    amigos. Uma fora misteriosa obriga-o a depositar ali suas

    sementes, nica seara de hmus frtil, nico osis de nosso

    prprio deserto.

    Mas acordamos toda manh para uma nova realidade. A

    nova realidade apaga o sonho. A nova realidade fecha o cinema e

    probe as cadeiras nas caladas, nas mornas tardes de domingo.

    Os mais velhos, aborrecidos, aos poucos vo se mudando l para

    cima. Cada vez mais sentimos que a verdadeira realidade a que

    se apaga a cada instante. Fecho os olhos. De olhos fechados,

    como o cinema, passo para mim o meu prprio filme. Tiro os

    sapatos. Ps no cho, infncia pura. Em minha superproduo

    sou heri e vilo, mocinho e bandido, homem e super-homem.

    Ando a cavalo nas ruas de pedregulho ao lado da matriz. Persigo

    rolinhas com o meu estilingue. Pesco no Ribeiro Bonito, hoje

    feio e arenoso. De manh, vou para o Grupo Escolar. Existe paz

    em tempo de guerra. Na festa da Padroeira sou coroinha e a

    procisso anda na rua arrastando povo. Vou crescendo. Descubro

    meninas no clube e penso coisas que ainda no ouso. Entro no

    ginsio. A vida toda uma s. Cabulo a aula. Uma noite houve

    festa no jardim velho. Arrisco sair com uma menina e vamos

    atrs do ginsio. Minhas pernas tremem e eu no falo nada. Ela

    sorri com a mo na boca. Vou me acertando com os meus erros.

    A melhor cena do filme a procisso do Divino. Colorida. Close

    no Imperador. Poderia ser eu. Tomada geral da Corte. CORTE.

    Eu mesmo me dirigindo. Mas isto apenas um trailler. O filme

    verdadeiro longo como minha rua. A tela da memria

    pequena para uma projeo to grande. Muitos atores j trocaram

    de papel. O retratista, hoje, um fotgrafo. O boticrio um

  • farmacutico. Os filhos so pais. O grupo escolar outro.

    Reformado. O ginsio vestiu muros e mudou de nome. A cidade

    mesmo outra. Provinciana com ares de cosmopolita.

    Prostituda? Quem sabe. Talvez o homem solitrio, de olhar

    perdido no horizonte, olhando a janelinha do morro. A esperana

    que ela se abra para minha infncia. Pelo menos hoje, no dia de

    seu aniversrio.

    * * *

    C

    A

    N

    T

    O

    D

    O

    S

    H

    E

    R

  • I

    S

    BENZIMENTO

    A faca na mo

    a reza na boca

    o gesto no brao

    em cruz sobre a testa.

    Na ponta punhal

    eu furo olho-gordo

    no gume do ao

    eu corto inveja

    no cabo de osso

    dou cabo ao quebranto.

    A reza inaudvel

    sai sopro-assovio:

    um sopro divino? A lmina fina

    brilha como um raio:

    um raio divino?

    Jesus te proteja. Isso eu entendia.

    Seu bocejo era quebranto sua preguia olho-gordo

    o seu atraso, inveja.

    De tudo j est curado

    em nome de Jesus Cristo.

    Dinheiro eu no aceito

    que ele tira a minha fora

    e o brilho de meu punhal.

    Aceito um copo de vinho

    Um vermute, um cinzaninho

    que isso no pagamento.

  • Ou ento um Deus lhe pague dito com sinceridade.

    A pa dessa santidade

    o lado do homem homem

    nos intervalo de rezas

    tinha l suas malcias:

    tanta mandioca madura tanta falta de farinha

    tanta menina bonita

    e a minha espada sem bainha. E ria, curvando o corpo

    o brao direito atrs

    numa mesura cabocla

    simples, de fazer inveja.

    Misteriosa dualidade

    convivia em harmonia

    naquela simples figura

    com uma alma e uma arma.

    Quando homem, um destino.

    Quando santo, um punhal.

    Levou consigo a faca

    e a fora de sua reza.

    Ficamos com nossa inveja

    quebranto e mau-olhado

    sem o santo protetor.

    Contam que benze anjos

    de asa cada e santos

    aborrecidos do cu.

    Aceita em pagamento

    Lacrima-Christi, orvalho,

    nctar e outro que tais.

    Talvez se lembre da gente

    em noites de tempestade

    no brilho de sua faca

    cortando nuvens no cu.

    Se lembra? Talvez se lembre

    de ns ainda crianas.

    No grandes, desamparados,

  • carentes de sua reza.

    Se lembra sim, todo o dia

    de cada um que padece

    de mal de amor, de inveja,

    de traio, de quebranto,

    perseguio, olho-gordo.

    Se lembra, e se lembra tanto

    quanto ns que o lembramos.

    E todos ns que vagamos

    perdidos por este atalho

    da vida, todos pedimos

    sua bno, Pedro Barbalho.

    ***

    CLEMENTE E O BURRO SOSSEGO

    Com sol, com frio, com chuva,

    no importava.

    Todas as manhs bem cedo

    puxando um burro magro

    que a carga no suportava

    l vinha o preto Clemente

    j com rugas, j sem dentes,

    vender um pouco de alface

    de mandioca ou rapadura

    que conseguia no stio

    onde estava empregado

    (ah, Deus, que vida to dura

    quantas rugas j na face).

    O burro magro arfava

    como se estivesse atado ao mundo.

    Os ossos saltavam das costas

    das ancas, de todos os lados, de tal forma que o varal

    da carroa parecia

    dois ossos acrescentados

    ao esqueleto ambulante

    que Clemente, por apego,

    que tinha besta pacata,

  • deu o nome de Sossego.

    Trabalhavam tanto juntos

    que do burro a humildade

    Clemente j transpirava;

    compreendiam-se tanto

    que de Clemente a cidade

    no burro j percebia

    alguma coisa de Santo.

    O homem e o animal

    suportavam dia a dia

    toda a carga, pouca ou muita,

    que na carroa havia.

    Levava num brao a cesta

    e a outra mo no varal

    forava ajudando a besta.

    Olha o alface, a rapadura, a mandioca mais gostosa,

    olha a banana madura.

    Seu Clemente, a vizinha

    disse que sua mandioca

    dura, que no cozinha.

    Minha senhora o fogo

    dela que fraco, carece

    cozinhar bem; eu lhe rogo,

    leve a mandioca. De sorte

    cozida como merece

    se o seu fogo for forte

    minha mandioca amolece.

    E longe estava a malcia

    do preto nesta resposta

    (o que fazia a delcia

    da vida que a gente gosta

    de lembrar, vida sadia

    do ar puro da cidade).

    Mas Sossego puxou tanto a carroa

    da roa pra cidade e da cidade pra roa

    que ficou velho, doente,

    com um andar meio torto.

  • Que tristeza do Clemente

    quando um dia achou-o morto.

    Manh sem sol. As velhas iam lentamente para a Igreja

    com vus pretos na cabea, rezar pela alma defunta dos maridos

    que acreditavam estar em algum lugar.

    As solteiras tambm iam lentamente com vus brancos na

    cabea rezar pelas almas dos noivos, que acreditavam estar em

    algum lugar.

    Na leiteria ao lado da Igreja, uma pequena fila j se

    insinuava: homens, mulheres e crianas aguardavam com

    vasilhas nas mos, a chegada do leite fresco. A cidade acordava

    depressa, e a rotina se precipitava montona como sempre e s

    no foi to igual, porque Clemente se atrasou. O encontro do

    animal morto tomou conta de tudo. Sentiu uma sensao de mal-

    estar que h muito desconhecia. A mesma sensao que

    experimentou quando fizeram mal sua filha mais nova. S que

    agora era diferente. No tinha sabor de vingana.

    Viu os urubus rondando a carcaa: quase compreendeu a

    necessidade da morte para outras vidas. Viu as crianas

    rondando a casa: quase compreendeu que todos os dias morria

    um pouco para que elas sobrevivessem. Misturou as crianas

    com os urubus. Sentiu os bicos famintos arrancando suas tripas.

    Arrepiou. Restava um cavalo solto no pasto. Atrelou-o carroa

    e partiu para a cidade.

    Olha o alface, a rapadura, a mandioca mais gostosa,

    olha a banana madura, garapa, a mais saborosa. A voz saa difcil.

    No era o mesmo prego

    que animava as senhoras compra

    e punha lombriga nos olhos da molecada.

    Quase gritou:

    Olha a tristeza do homem, fechem portas e janelas.

    Homens: deixem seu emprego.

    Crianas: morreu Sossego.

    Um homem forte no chora.

    (a mo passa disfarada nos olhos

    a cala rota enxuga).

  • Na sada da escola

    As crianas rodearam a carroa

    num barulho infernal:

    olhos abertos adivinhando

    a rapadura a rapadura gostosa.

    Lembrou-se dos urubus

    rodeando o Sossego:

    olhos de rapina adivinhando

    a tripa comprida, viscosa.

    Sentiu nuseas, mal-estar.

    Uma delas notando

    outro animal na carroa

    j foi logo perguntando:

    Clemente, cad Sossego?

    Sentiu a voz embargada

    novamente aquele aperto

    aquela dor diferente.

    Pensou: criana no entende

    tristeza de um burro morto

    criana quer alegria.

    E por ser bastante humano

    disse um verso que seria

    resumo um tanto pobre

    de sua filosofia:

    Sossego morreu

    e os urubu comeu

    mal sabendo que fazendo

    verso to simples, dodo,

    estava perpetuando

    a memria de Sossego

    entre toda a crianada,

    entre os adultos, a cidade,

    pois cada vez que chegava

    nas ruas onde passava

    ouvia esta pergunta

    na boca de todo o povo:

    Clemente, cad Sossego? J chegava a sorrir

    com superior ironia

    do povo. Como so pobres

    de esprito. Quem diria

    que h entre eles nobres

  • (pelo menos assim se julgam

    aqueles que as leis promulgam);

    que h entre eles gnios

    (pelo menos no conceito

    do vereador, do prefeito);

    que h entre eles todos,

    independente da cor,

    credo, profisso, amor,

    uma vontade insistente

    de ouvir a voz de Clemente

    dizer: Sossego morreu e os urubu comeu.

    Mas h que saber Clemente,

    que entre a molecada

    houve um que de repente

    mal a infncia acabada

    deixou a cidade quieta

    indo pra outra agitada

    e na bagagem de poeta

    trouxe uma alma madura

    e o gosto da rapadura

    que adoava a boca

    daquela moada louca.

    Trouxe como no podia

    deixar de acontecer

    aquela filosofia

    to simples, que resumia

    a morte, pesada cruz,

    morte que dentro trazia

    vida para os urubus.

    E, de lembrar, me aposso

    dos seus versos, e perdoe

    o plgio, porque no posso

    dizer o quanto me foi

    difcil de ter de aceitar,

    como voc aceitou,

    que o meu sossego morreu cidade grande comeu.

    * * *

  • MRIO CABEADA

    Quando comeou a funcionar a linha de nibus diretamente

    de Descalvado a So Paulo, era comum, de incio, juntar um

    punhado de gente no ponto, para esperar a chegada.

    Principalmente noite, l pelas dez horas, o grupo comeava a

    aumentar, no tanto pela curiosidade, mas para fazer alguma

    coisa que no fosse deitar-se cedo, como era de costume. E na

    mistura de homens e rapazes permaneciam alguns meninos

    escapados vigilncia paterna, metidos entre os adultos, ouvindo

    prosas e anedotas que sempre antecediam a chegada. Como eu

    morava quase em frente ao ponto de nibus, difcil era a noite

    em que me furtava a essa sagrada obrigao uma vez que, aps a

    descida dos passageiros, era-nos permitido adentrar o veculo e

    sentar gostosamente nas poltronas reclinveis, experimentando

    uma satisfao criana de viagens impossveis. Depois o nibus

    ia para a garagem e o grupo se desfazia em comentrios inteis.

    Uma noite, porm, a coisa foi outra. O grupo j estava

    reunido e o nibus estava para chegar, quando um movimento

    diferente estourou em frente cadeia com a chegada de um

    caminho trazendo dois guardas e um preso. Considerando-se o

    lugar comum do cotidiano, quebrado to somente pela chegada

    do nibus, que j se tornara montona pelo hbito, o vai-e-vem

    repentino soube-nos a diferentes emoes que j se adivinhavam

    pelos palavres do preso e os gritos dos soldados. O grupo

    abalou-se para a cadeia. As janelas das casas mais prximas j se

    abriam numa curiosidade coletiva de pijamas e camisolas.

    Naquela tarde, um dos caminhes que recolhiam o leite

    pelas fazendas dera no caminho com o Mrio Cabeada, um

    preto que valeu-se do apelido por ter a cabea dura que s pau-

    peroba e, por isso, nas ocasies que se faziam necessrias,

    resolvia o problema usando a cabea. Pediu uma beirada para o

    chofer tendo, ante a recusa, metido a cabea na porta do veculo,

    enfiando a lataria para dentro. Levado o caso ao conhecimento

    da polcia, saram os guardas no mesmo caminho procura do

    famigerado testa-de-ferro, encontrando-o, depois de muita busca,

    num trecho do caminho.

    Vencidas as dificuldades iniciais da priso, trouxeram-no

    at cidade onde, percebendo que ia entrar em cana, comeou a

    fazer um fuzu dos diabos com nomes, com gritos, com

    marradas, que faziam rir a assistncia, esquecida j do sagrado

  • dever de esperar o nibus, atenta a todos os movimentos.

    Amanh havia que se comentar o caso e seria necessrio a cada

    um dizer eu vi. O sargento, homem de metro e oitenta, ou noventa, saiu da

    cadeia j nervoso, e entre berros e tapas abraou o negro pela

    garganta em uma bem aplicada gravata, levando-o, ajudado por

    dois soldados, de arrasto para a cela. A que a coisa engrossou.

    Livre dentro da cela, o preto aplicou a sinagoga na pia, que

    arrebentou. Apanhou os cacos e comeou a atirar pelas grades

    conta quem se aventurasse a se aproximar. O delegado,

    levantado s pressas e alheio realidade da coisa, foi entrando

    pela cadeia at que um caco da pia passou assoviando pela sua

    orelha indo se arrebentar na parede. Ento, saiu mais rpido que

    entrou. Nova cabeada e o vaso da privada se foi, renovando o

    estoque de munio do negro. Por fim foram os vidros da

    janela. Quando no havia mais nada para arrebentar, o que

    arrebentou foi uma idia na cabea do sargento. Entrou numa

    cela vazia, apanhou um colcho de solteiro e, com ele frente

    maneira de escudo, foi at a porta da cela aparando os cacos at

    que, com a porta aberta, entrou rapidamente e agarrou-se ao

    preso. Da pr frente, tudo tornou-se mais fcil. Como tinha boa

    cabea, o Mrio j adivinhava o que lhe era reservado e

    maneirou. Colocaram-lhe uma camisa de fora entre violentas

    borrachadas e l se foi ele, modo, posto a dormir atado em outra

    cela. O delegado, que at ento permanecera orientando de longe

    os movimentos, rompeu cadeia adentro elogiando a ao do

    sargento, enquanto dois guardas nos convidavam a desfazer o

    aglomerado. Debandado o grupo e fechadas as janelas vizinhas, a

    paz reinou.

    E o heri denunciado

    por danos, por desacato,

    depredao e outros fatos,

    entre ofcios e despachos,

    vista e concluso,

    foi condenado priso;

    e por ser perigoso

    haveria de cumprir

    medida de segurana

    para a paz da sociedade,

    no s de nossa cidade,

    mas de cidades vizinhas

    cidades outras, no minhas,

  • mas que no tm um heri

    como esse dessa noitada,

    de nome Mrio Camargo,

    vulgo Mrio Cabeada.

    * * *

    CAIUBY (com psilon)

    Eu nasci dentro de um bar. Fui criado dentro de um bar. No

    entra-e-sai de todo o dia fiquei impregnado de razes. O homem

    da roa que vinha nos fins de semana plantou em mim a

    humildade. No copo do bomio solitrio bebi esta angstia que

    at hoje me embriaga e me deixa essa ressaca danada da vida.

    Com os caixeiros-viajantes aprendi o lado cnico: sorrir sempre,

    por profisso. Ainda pequeno, subia num canto do balco para

    admirar espantado os andarilhos, que de tempos em tempos

    apareciam para ensinar o verdadeiro sentido da liberdade. Mas

    havia o outro lado. O mais forte: a famlia, a escola, a sociedade,

    to certas e bem organizadas para me moldar a seu modo, com

    uma fina capa de cristal polido.

    Hoje, como uma estufa, trago dentro desta casca frgil e

    transparente toda a variedade de razes plantadas na infncia, que

    crescem e incomodam. Ento, qual jardineiro que cultiva suas

    flores, cultivo meus heris e meus poemas. Da o Mrio

    Cabeada, o preto Clemente e hoje, o Caiuby. Este demorou a

    frutificar em mim. Talvez porque no o tenha conhecido muito

    bem na remota infncia. Inexplicavelmente, sua imagem surgiu,

    nebulosa as dez da noite. Aparecia no bar raramente, uma ou

    duas vezes por ano, bastante sujo e faminto, as mos trmulas

    implorando um gole urgente. Aps a primeira cachaa, o tremor

    dava lugar ao literato. Discutia Jorge Amado, pouco conhecido

    por ns naquela poca, elogiava Euclides, criticava o

    modernismo de Drummond (se bem que o considerasse um

    grande poeta). Cheio de respeito, comeava a recitar Castro

    Alves e se perdia. Era a necessidade urgente de tomar mais uma,

    para surgir o jornalista, batalhador incansvel, defensor dos

    oprimidos. Tinha chegado agora de So Paulo, demissionrio do

    Estado aps violenta discusso com Jlio de Mesquita (filho)

    por divergncia de opinies. Eu arregalava os olhos e no

  • entendia nada.A esta altura, j havia gente suficiente em volta

    para ouvir e pagar mais uma. Ento, bem calibrado, nascia o

    poltico loquaz, que falava muito e no dizia nada. E pau no

    governo. De repente, a raiva de ser criana. Meu pai me

    mandava dormir e eu ficava sem saber o que o Caiuby discutira

    secretamente, na semana passada, com o Presidente da

    Repblica.

    Na manh seguinte sua chegada, j tinha emprego

    garantido. Sbrio era um bom tipgrafo, e o pessoal do jornal O Comrcio, por humanidade e respeito classe, abria-lhe suas portas. Durante uma ou duas semanas dava expediente de dia na

    grfica e noite no bar, onde j era esperado aps as cinco. At o

    dia em que no aparecia. Nem no jornal, nem no bar. Sem

    despedidas, sem agradecimentos, sem eu entender porque. Mas

    marcava. Tanto marcava que eu ficava ansioso por sua volta.

    Talvez por isso hoje ele tenha surgido as dez da noite, quase no

    meu sono, e por pouco eu no gritei como fazia:

    Pai, seu Caubi chegou.

    Caubi no, menino. Caiuby. Com psilon.

    * * *

    ENTRE O SONHO E A REALIDADE

    Humilde, meia estatura, pele rustida de sol e luta. O sorriso

    no; a gargalhada. Ironia? Escrnio? Loucura? Desprezo. De si

    prprio, dos outros, da vida.

    Um cavalo e uma sanfona velha, a lucidez e a loucura na

    hora certa. Tudo isso resumido, condensado, traduzido:

    Roquinho.

    Vagabundo? Assim o chamaram certa tarde, da janela do

    clube onde jogavam baralho. A resposta veio pronta e

    incontestvel: V se meu nome est na lista de scios. Louco? Bastava ouvi-lo tocar sanfona nos bailes de arrasta-

    ps para se convencer do contrrio.

    Quem ento? Apenas um homem marginalizado em seu

    prprio meio, por pensar e agir de acordo com sua vontade.

    Indiferente s convenes, alheio ao poder material, irreverente

    sociedade, o que quer dizer: livre. A o segredo de sua

    popularidade. Existem em cada um de ns momentos em que,

    por convenincia, fazemos concesses, mostramos um sorriso

    falso, vendemos a liberdade em troca de uma posio, de

  • dinheiro, de um nome. A vida um jogo, todos sabemos. O

    roquinho no era viciado. Ento era vagabundo. Ento era louco.

    Causava inveja, isto sabamos cada um de ns. Mas como

    admitir se a maioria vence? Vencemos realmente? Nossos

    sonhos caminham junto com a realidade? Temos a certeza de que

    no. H entre eles uma paralela infinita, uma quinta dimenso

    inacessvel da metafsica. L, viveu Roquinho. Entre o sonho e a

    realidade.L onde a lucidez e a loucura so sinnimos. L, onde

    a gargalhada sorriso. L, onde no preciso vender a alma para

    o diabo da vida.L, onde o cu e o inferno trocam cortesias. L,

    onde no cabemos ns, os loucos verdadeiros.

    * * *

    TARDE NO METR

    Depois da chuva, o sol voltou rseo-alaranjado. Mas a vida

    continuou negra para todos, principalmente no metr, onde

    cercaram a praa como se fosse guerra, e vieram homens

    fardados de terra com capacetes coloridos, armados de bombas

    mecnicas que faziam buraco sem explodir. O mundo

    subterrneo do futuro comeava a nascer de mos desconhecidas,

    que no assinavam contratos e nem freqentavam banquetes,

    mas faziam a verba oficial modelar-se em concreto. Estranho

    exrcito este dos operrios, a torcer os ferros com as mos, quais

    super-homens desnutridos de capacete vermelho e esperana

    branca. Quem traou teu destino suado na calma de uma sala

    refrigerada? A lama gruda em tuas botas e s feliz em poder

    limpa-las. Entretanto, os que te pisam morrero com os ps

    sujos. A poeira incomoda as narinas bem nascidas. Porm,

    trabalhas a terra com carinho e ela carinhosamente te receber.

    Na linguagem simples da obra tu voc ou vis, indiferentes s razes de Vossas Senhorias ou Excelncias.O

    cisco metlico no olho de teu irmo mais importante que o

    desvio de verbas. No entanto, os jornais se calam para ambos,

    enquanto ns, indiferentes, reclamamos do barulho, da sujeira,

    do trnsito parado para os nossos carros. No fim do dia, segues a

    p para a fila da conduo, sentindo vontade de o outro dia

    amanhecer para continuar, na esperana de que teus filhos um

    dia andem melhor. Por isso agora, aqui de minha janela, te

    sado, nesta tarde chuvosa rseo-alaranjada. E meu

    encantamento pelo seu trabalho tanto, que sinto duas gotas de

  • chuva a embaraar meus olhos, desfocando a imagem que me

    vem da rua. No. No foi o metro que eu vi. Foi o circo. O

    mgico, no o operrio, soltando fogo pelas mos. O domador de

    escavadeira, um bicho enorme que engole terra. O equilibrista de

    andaimes. O faquir que vive sem comer. O malabarista que faz o

    mximo com um salrio mnimo. E, em volta do picadeiro a

    platia, atnita como eu, olha o enorme buraco que a sua vida.

    C

    A

    N

    T

    O

    D

    O

    P

    O

    E

    T

    A

  • DOIS POEMAS DA VIDA

    Primeiro

    I

    O que eu sinto

    j nem sei.

    Meu desespero grande demais

    para minha poesia.

    Todas as explicaes buscadas

    conduzem a uma verdade:

    a vida inexplicvel.

    O caminho um s

    mas os homens no compreendem

    e lutam.

    (Amanh,

    talvez amanhea azul).

    Muitos tm f e rezam

    inutilmente:

    a paz s dada aos mortos.

    O relgio marca seguro

    a fuga do tempo

    e os dias arrancados do calendrio

    se perdem.

    Ns, porm, continuamos.

    Na parede branca do quarto

    as manchas atestam um tempo

    que no conhecemos

  • embora o tenhamos vivido.

    II

    A luta pela vida intensa.

    H milhes de coisas a serem feitas.

    O Presidente da Repblica

    fala em reformas de base. O povo pede comida. J no

    existe piedade.

    Numa cidade repleta

    de prostitutas e crimes

    respira-se um ar terrvel

    mistura de p e pecado

    e a alma se enegrece.

    III

    O poeta, inconsolvel

    ante a viso de tal mundo,

    em vo procura uma sombra.

    J no existem rvores.

    Segundo

    Eu sei que procuro

    o impossvel

    mas por procurar o impossvel

    que nada encontro

    e por nada encontrar

    que nada tenho.

    Este papel de que me vale este papel?

    Melhor seria fazer dele um barco,

    colocar nele meus melhores sonhos,

    no um poema.

    Um barco e uma enxurrada,

    as viagens que eu fiz,

    o mundo que no conquistei.

    Oh, dem-me um barco de papel;

    um barco de papel e uma enxurrada.

  • Preciso ser menino novamente.

    As solues

    eram mais simples.

    * * *

    KATSCH-KALK

    I

    O estmago do poeta j no aceitava tudo.

    Se a alma ruminava sonhos

    e no os realizava

    o estmago ruminava alimentos

    e no os digeria.

    Desde que o sofrimento era tolo

    (no inspirava poesia)

    havia de dar um jeito

    procurando o doutor.

    Consulta com hora marcada

    com enfermeiras amveis

    e o mdico sorridente.

    O que que o senhor sente?

    O estmago, doutor.

    Di aqui? Di ali?

    O que come? O que no come?

    O senhor mastiga bem? (Falava e anotava)

    No pode comer depressa.

    Mas doutor, esta vida. O nibus no espera,

    o emprego no espera,

    a namorada no espera.

    A vida, doutor. A vida no espera.

    (Novas anotaes).

    Precisamos de uns exames. Pensou, olhou, sentenciou:

    Parasitolgico,

    cultura de fezes,

  • Katsch-kalk.

    O poeta tremeu:

    Mas s estmago!

    II

    Decidido a ficar bom

    o poeta jejuou

    como mandava a receita.

    As sete e trinta o hospital

    tinha um cheiro esquisito

    mistura de vida-morte

    de pacincia-esperana

    de desespero, nem sei.

    Passavam mdicos sorrindo

    promessas de cura.

    Eu vou lhe introduzir esta sonda.

    No mexa a lngua. Engula devagar.

    E todos os pecados,

    redimidos em trs horas

    com a sonda no nariz,

    no esfago, estmago,

    e o suco gstrico saindo

    para o tubo de ensaio.

    Depois, purgante vontade

    e na avalanche de fezes

    o sofrimento do poeta

    revelado na anlise.

    Vai ter de fazer regime.

    Vai ter de tomar remdio.

    J no pode mais beber.

    III

    alegres enfermeiras

    que meus males conheceis

    preciso curar a alma

    preciso tratar da vida.

    Podem sondar minha alma

    e purgar os meus pecados.

  • Analisem meus poemas

    examinem a conscincia.

    Eu fao jejum de amor

    eu deixo de ser poeta

    fao at penitncia.

    O estmago, compreendam,

    o que menos interessa.

    deixem de lado as fezes,

    o katsch-kalk, o regime.

    Minha doena bem outra

    que simples dor de barriga

    que um dia a terra come

    sem sofrer indigesto.

    Receitem-me qualquer coisa

    mas que seja para a alma

    mas que seja para a vida.

    Posso deixar de amar

    deixo de fazer poesia

    rezarei, se necessrio.

    O que eu no quero e nem posso

    continuar assim.

    Preciso curar a alma

    preciso tratar da vida.

    * * *

    LUNTICO

    Homem no mais que homem

    de terra e barro

    meu rosto p e somem

    as minhas rugas no sarro

    de meu cachimbo

    e vejo o mundo, inferno e limbo,

    pela fumaa de meu foguete

    como astronauta, no mais joguete

    da sociedade que me consome.

    De barro e p, no p da lua,

    deixei meu nome

    lembrana tua.

    Marcas de fome

  • vieram nas botas.

    No sei meu nome.

    Homem no mais

    de barro e p

    e o meu rosto nos jornais.

    Sou um, sou mil

    e estou s

    incomunicvel

    impermevel

    para a tranqilidade

    da sociedade.

    * * *

    POST- MORTEM DE FINAL FELIZ

    Tendo a viva morrido

    muito depois do marido

    decidiram os parentes

    e os amantes descontentes

    fazer o que era normal:

    por a morta no local

    onde h tempos j fazia

    que o seu marido dormia.

    Mas decidiram primeiro

    ir avisar o coveiro

    para que abrisse a cova

    e contasse a boa nova

    ao extinto que, tranqilo,

    jamais pensava naquilo.

    E o coveiro incumbido

    pegou a p decidido

    a dar cabo da cabo da misso

    e toca cavar o cho.

    E a p, nos seus braos calmos,

    removeram sete palmos

    da terra daquele cho

    at que surgiu o caixo

    j sem forma, arrebentado,

    visto ter sido enterrado

    h muito tempo atrs.

    Na cova tudo era paz

  • mas uma paz to sadia

    que o esqueleto sorria.

    A custo abriu a carneira

    que tapava a caveira

    e quando tudo clareou

    uma voz rouca berrou:

    Que queres, homem do inferno, perturbar meu sono eterno?

    Disse o coveiro: Eu venho

    profanar o vosso lenho

    mas com boa inteno

    eis que sua solido

    vai agora ser quebrada

    (no sei se isto lhe agrada)

    mas eu cumpro o meu mister:

    vem a sua mulher.

    Meu Deus, que falta de sorte.

    coveiro, s de morte.

    Ento isto novidade

    para um defunto de idade?

    No fosse eu to robusto

    E morreria de susto.

    Mas se isto que me espera

    que venha l a megera

    E unidos os defuntos

    na cidade dos ps juntos

    breve silncio se fez.

    Ter durado um ms

    porque um ms, no se espante,

    na eternidade um instante,

    at que, aborrecida

    do silncio, decidida

    falou a mulher assim:

    Meu caro, agora que vim para a sua companhia

    para ns melhor seria

    revivermos novamente

    a paixo de antigamente.

    Que a nossa felicidade

    dure toda a eternidade.

    Antes de tudo, mulher, gostaria de saber

  • como foi a sua vida

    aps minha despedida.

    Foi to difcil, querido,

    e, creia-me, no duvido

    teria sido bastante

    terrvel, se um amante

    eu logo no conseguisse.

    O que? Repita o que disse.

    Um amante? Que transtorno.

    Alm de defunto, corno.

    Mas creia, tinha de ser, como ia eu viver?

    De brisa? Que esperana;

    se ao menos tivesse herana...

    certo, no deixei nada mas ter a honra manchada...

    Pensasse eu no seu nome

    e morreria de fome.

    Pelo menos me conforta saber que depois de morta

    retorna a mim novamente

    pois era precisamente

    o castigo que faltava:

    saber que a mulher que amava

    e que eu pensava me amar

    to logo viu me enterrar

    transformou sua conduta

    vivendo como uma puta

    e como melhor convinha:

    dando mais que uma galinha.

    Olha, no me julgue mal.

    Voc conhece afinal

    alguma viva jovem

    que possa viver sem homem?

    Por mais que no amor se pense

    a carne mais forte e vence.

    No fui jamais prostituta

    e se acha minha conduta

    errada, no o critico

    mas muito grata lhe fico

    se for perdoada agora

    que j no estou mais l fora.

  • Por outro lado, se estamos

    novamente unidos, vamos

    viver a morte em paz

    o que seria, alis,

    a coisa mais acertada

    j que a carne violada

    do meu corpo se liberta.

    To logo, tudo se acerta.

    E se tudo a morte cura

    Serei novamente pura.

    Pois bem, mulher, se o erro

    foi aps o meu enterro,

    sua desculpa aceito.

    O que est feito est feito,

    no vou prolongar o caso.

    E quando o sol no ocaso

    cobriu o cu de matizes

    abraaram-se felizes

    e unidos frente a frente

    amaram-se eternamente.

    * * *

    SPLICA

    Perdoa-me

    se no te soube dar

    o carinho que necessitavas.

    Perdoa-me

    se as palavras de amor que eu tinha

    morreram no meu peito.

    Perdoa-me

    se meus lbios eram frios

    quando os teus ardiam.

    Perdoa-me, sobretudo,

    se te deixei desejos insatisfeitos.

    Deus deu-me alma de poeta

    mas me negou amor.

    Vez:

    sou triste,

  • angustiado,

    sozinho.

    Imaginei momentos mais puros,

    imaginei carinhos mais ternos,

    imaginei teu grito ltimo de virgem

    nos meus braos.

    Perdoa-me porm

    se s soube imaginar.

    Se eu no fui sincero,

    se te abandonei,

    se te esqueci

    perdoa-me

    , por favor,

    perdoa-me.

    Perdoa-me que no sou culpado.

    Deus deu-me alma de poeta

    mas me negou amor.

    * * *

    POEMA AO DONO DA ADEGA

    Quisera estar com os homens na adega

    bebendo.

    Como eles riem...

    Quem os v assim to alegres

    como eu estou vendo

    inveja.

    Um pedreiro, o outro carregador.

    Talvez at haja um poeta entre eles

    e eu no saiba.

    Todas as tardes eles se renem.

    Bebem, jogam palitos

    e riem, como eles riem...

    Da sacada eu os olho e bendigo

    o dono da adega

    que lhes vende felicidade

    todos os dias.

    Bendito sois vs, dono da adega,

  • bendita vossa pacincia,

    bendita vossa adega.

    Se soubsseis como vos observo

    todos os dias;

    se soubsseis como necessito

    de vs, da alegria

    que tirais, msticos que sois,

    das garrafas;

    se soubsseis que nada me consola,

    nem a bebida

    (os poetas so diferentes

    dos homens),

    vireis, sei que vireis,

    vs que tendes o poder mstico

    da libertao das almas

    trazer-me de vossa adega

    o filtro que necessito

    e, livre, eu cantaria

    como os outros homens cantam.

    Mas ento ficareis triste,

    as mos tintas de um sangue

    com um rubor to intenso

    que nunca mais sairia

    pois libertando o homem

    matareis o poeta

    crime que no tem perdo.

    No vos importeis por mim.

    Continuai a alegrar os homens

    todos os dias,

    para poderes, quando morto,

    entra no reino do cu

    e receber do Senhor

    a chave de vossa adega

    igualzinha da terra

    onde, tarde, todos os anjos

    reunidos cantaro

    como os homens agora cantam.

    Compreendei, dono da adega,

    que os anjos so mais tristes

  • que os homens

    e eles precisam de vs

    mais do que eu.

    * * *

    MEU TEMPO, MATRIA PODRE

    Se eu um dia for velho

    e no tiver seno rugas

    e uns poucos cabelos brancos:

    o corpo magro, curvado, j voltado para a terra;

    a mo que treme, vacila,

    os olhos que j no vem

    seno atrs de uma lente;

    se eu um dia for velho

    de uma velhice tranqila

    com a paz to desejada

    e ainda for poeta

    no falarei do meu tempo.

    Meu tempo lembrar no posso

    triste e aborrecido

    demais para ser lembrado.

    Meu tempo matria podre,

    tempo de mos pedintes,

    crianas esfomeadas,

    irmo que mata irmo,

    Deus esquecido dos homens

    e de anjos revoltados.

    Meu tempo! Antes poder

    falar sobre outra coisa,

    mas outra coisa no tenho

    seno incompreenso.

    Quisera poder contar

    minha vida, meus amores,

    a luta v que lutei,

    falar sobre a minha infncia

    (preciso enterrar a infncia

    ela me faz muito triste).

  • Quisera falar de Deus

    de seu amor pelos homens

    (um tanto inexplicvel

    pela maneira de amar).

    Falarem boca-sorriso,

    em mos espalmadas, francas,

    para um aperto amigo.

    Quisera, quando bem velho,

    tomar pelas mos meu filho,

    dizer: Meu filho, eis meu mundo, sem que isso me doesse,

    sem que isso me humilhasse.

    Quisera, como eu quisera,

    poder, quando estiver velho,

    lembrar o tempo passado,

    falar do tempo passado.

    Quisera, mas eu no posso,

    porque quando eu for velho

    eu j estarei caduco;

    no vou lembrar-me de nada,

    no quero lembrar-me de nada,

    no posso lembrar-me de nada.

    * * *

    ROSAMOR

    Trago uma rosa. todo

    um uni-verso de amor

    tudo que une-verso

    de amor.

    Uma rosa rosada

    rosadada

    ( bastante complicada)

    com ptalacaulespinho

    que meu amor de mansinho

    encosta no corao.

    Quando recebe a rosa

    a rosada face transmuda

    no fala. Ela fica muda

    muda a cor de sua face

  • em rubraurorarosada.

    Ela fica deslumbrada.

    O poder da rosa tanto

    ela fica poderosa

    (eu digo: no pode-Rosa

    mas ela nunca me escuta encosta em mim suas ptalas

    enrolo-me em seu caule

    vou colher o seu boto.

    ela me afasta. O espinho

    espeta meu corao.

    Trago uma rosa. todo

    um uni-verso de amor

    tudo que une-verso

    de amor.

    Trago uma rosa

    amor.

    Rosamor.

    * * *

    MODERNA VISO, OU TENTATIVA DE

    DA ATUAL SOCIEDADE

    MECNICO-AUTOMTICA.

    Perdido entre homens e carros

    qual criatura chegada a um planeta estranho

    atravesso o viaduto e percebo

    que os homens no se olham

    Andam duros, apressados,

    seguindo estranho comando

    de um crebro invisvel.

    So todos robs ligados

    mquina do relgio.

    Sua misso: trabalhar,

    roubar, at esmagar

    o prximo, se preciso,

    para conseguir dinheiro,

  • o novo deus da moderna

    sociedade mecnico-automtica.

    Penso. Sou recm-chegado

    ainda posso pensar.

    Lembro. De onde vim

    era decerto outro mundo.

    Respiro o ar viciado.

    Esqueo: estou integrado.

    II

    Rob de um mundo moderno

    fumo cigarros americanos

    ao som de um disco importado

    e autmato esqueo

    que agora, em qualquer parte,

    um homem vagabundo

    apanha tocos de cigarros vagabundos

    s faltando o som de um tango argentino

    para completar sua desgraa.

    Dou leite pr minha filha

    do tipo A, integral,

    e autmato esqueo

    que agora, em qualquer parte,

    a me d o seio murcho

    para a filha desnutrida

    que chora e morre a mingua..

    Esqueo que existe gente

    morando embaixo da ponte

    morrendo aos poucos de frio;

    esqueo que existe gente

    bebendo usque escocs

    do legtimo, importado.

    De tanto esquecer me lembro

    dos polticos, deputados,

    que antes das eleies

    a barriga ainda murcha

    (emagreciam, talvez,

    nas lides eleioeiras)

    subiam para o palanque

    e l tanto se lembravam

    dos pobres infortunados

  • que muitos acreditavam

    votavam e os elegiam.

    D gosto v-los agora

    rindo, a barriga saltando

    fora das calas, indcio

    de uma prosperidade

    legada por esquecidos

    pois esquecer humano

    resqucio de divindade quando no fcil maneira

    de fugir aos compromissos.

    A Bblia j nos ensina:

    Deus esqueceu por instantes

    o homem no paraso

    que, escapado divina

    proteo, desesperou-se

    e cometeu o pecado

    (que Deus jamais esqueceu)

    e coube ao homem a culpa

    que paga com eternas penas

    distrao do Divino.

    Ento novamente esqueo

    que por falsa analogia

    herdada ao criador

    o ladro o culpado

    e nunca a sociedade.

    O homem produto divino

    o homem produto do meio.

    E a divindade e o meio

    produzem, depois esquecem.

    III

    Entre a divindade e o meio

    fica o poeta no meio:

    meio divino

    meio meio.

    A unio divino-meio

    faz o poeta inteiro

    esquecido.

  • Esquecido de que h uma fora

    de rebeldia incontida

    no esprito, incompatvel

    com a matria envolvente:

    a alma de um poeta

    em um corpo de burgus

    travando luta danada

    e o saldo da luta braba:

    todos os poemas mortos

    no campo de concentrao

    do corao.

    IV

    O burgus apareceu de repente.

    O salrio aumentou,

    constituiu-se famlia.

    Televiso, geladeira,

    apartamento bonito

    e a matria crescendo

    quilos a mais na barriga versos a menos na alma.

    Minha inspirao est virando banha.

    O esprito se transforma em matria

    rapidamente.

    Primeiro espcime de transio

    potico-burguesa

    coleciono moedas,

    no mais poemas.

    Por ser mais burgus esqueo.

    Por ser menos poeta no lembro.

    V

    Por isso meus irmos sofredores morrem esmagados.

    No s porque esquecemos

    mas porque como mecnicos componentes

    de um mundo automtico

    devolvemos a alma divindade.

  • J o corpo era difcil de se cuidar.

    H que deixar o esprito

    aos que entendem de esprito.

    A Csar o que de Csar.

    Ao criador a criatura.

    Ao rico sua fortuna.

    Ao pobre sua misria.

    VI

    Perdido em mim mesmo, podre criatura

    humano-potico-burguesa em luta desesperada,

    de tanto esquecer me lembro

    do pobre, do vagabundo,

    da me sem leite nos seios

    e choro coisa da alma

    quando no do corao

    e de chorar me entristeo

    e de me entristecer me alegro.

    Estranha certeza

    me traz o choro. Bendigo

    a lgrima que corre

    e me deixa confundido.

    A lgrima, certeza maior

    de que nem tudo est perdido.

    VII

    E que a matria domine tudo.

    No homem, no universo,

    por mais que Deus morra mingua

    de preces, de penitncia,

    restaro os olhos,

    e nos olhos uma lgrima

    que um dia,

    em algum lugar,

    por algum,

    c

    a

    i

  • r

    .

    * * *

    CONFUSO DE COISAS

    Esta cidade louca e cresce

    desesperadamente.

    As ruas esto cada vez mais compridas

    e os meus ps doem.

    Uma cidade to grande

    e eu no tenho automvel.

    Sinto-me infeliz.

    Na curva de uma esquina

    um homem se arrasta no cho.

    Sinto-me srdido

    por me sentir infeliz

    e ando.

    Iria, se preciso,

    a p para casa.

    So nesses instantes que a gente compreende

    que tudo na vida necessrio.

    Um homem se arrasta

    e nossos ps se valorizam: param de doer.

    E assim outras coisas.

    A fome uma s

    a carne uma s

    mas os pratos e as mulheres

    so vrios e, entre eles,

    nossos desejos balanam indecisos.

    No haveria muito que aprender no mundo

    se cada um olhasse para trs e compreendesse

    as coisas como elas so.

    Seria tudo to fcil

    que os homens, de mos dadas,

    iriam brincar felizes.

  • E aos que no tivessem ps

    emprestaramos o nosso;

    os que no tivessem olhos

    usariam os nossos

    e aos que no tivessem amor

    daramos o nosso.

    Jesus ressuscitaria novamente

    de alegria, mas no diria nada,

    pois suas palavras seriam desnecessrias.

    Existe outro mundo to perto

    e no podemos habita-lo.

    Falam-se tantos idiomas

    que a mensagem se trunca

    na sintaxe, no verbo.

    No h concordncia.

    So os homens tantos e to difceis

    que a palavra se perde

    no vazio, atrs de paredes indestrutveis.

    O barro da parede o barro do homem

    e o homem de barro est seco,

    duro, inquebrvel, incomunicvel.

    Como se no bastasse, construmos edifcios

    e nos escondemos no cimento

    ermites do asfalto amargando a derrota frente a uma televiso vazia e vulgar.

    E a vida no nunca.

    O dinheiro que falta, a vitrola que cala.

    As coisas quebram e carecem de conserto.

    A vida no quebra e no tem conserto.

    Num mundo em que o suicdio superado

    o que fazer para morrer na moda?

    Ser astronauta to seguro

    que no d vontade.

    Ser anjo, demnio, carro

    batido no poste, navio

    naufragado na baa.

    Ser alguma coisa que no homem.

    A cada dia que passa

  • cabelo vai se tornando

    palavra abstrata

    e a cabea despida de pelos

    mostra um falso brilho

    bastante para sugerir

    que o menino que fui

    est enterrado com os avs

    e no brinca mais.

    Busco palavras de consolo.

    Escuto o vento. No sopra.

    Pergunto pedra. No fala.

    Tudo silncio. Na rua

    os carros andam sem barulho

    e os bares fecharam

    sem avisar.

    Os poucos homens que restam

    comunicam-se por mmica.

    J no existem palavras

    e o relgio parou numa hora difcil.

    Sem palavra, voz ou hora

    fica a cama como soluo.

    Durma, meu filho. No pense.

    * * *

    MINHA FILHA DORME. NO CONTEM

    Minha filha que dorme com a boneca de pano

    me tira o sono.

    Parece que nasceu ontem

    j faz um ano.

    Que durma em paz. No contem

    o que a vida.

    Ela na entender.

    Haver de crescer e, crescida,

    saber, creio que saber

    compreender, se for compreendida.

    Para ela o mundo a boneca de pano

    inocente, macia, toda recheada

    de algodo, ou algo mais humano

  • que as crianas vem ns no vemos nada.

    O que ns vemos

    no a vida em si,

    mas o outro lado:

    o dinheiro que temos

    ou que no temos

    (o que eu tive e perdi).

    melhor ficar calado

    e no contar nada a ela.

    Digamos apenas:

    a vida bela.

    Deus nos ajudar a mentir

    e esta inocente mentira

    acalmar Sua ira

    e seremos perdoados

    de nossos pecados.

    No tentem dizer-lhe nada

    que ela no entender.

    No contem os crimes. Calada,

    ela apenas olhar

    pois o crime s pertence

    ao criminoso e polcia

    e a polcia sempre vence

    aos que matam sem malcia.

    Ela no entender.

    To difcil a malcia da vida

    to sem malcia a vida na infncia

    que, confundidos, s confundiremos

    tentando explicar qual a maior distncia:

    se aquela que nos leva morte

    ou a que nos conduz ao mundo da criana.

    No convm falar agora.

    O tempo chegar e, quando for chegado,

    h de pegar a boneca e jog-la fora

    num primeiro ato humano, brusco, inesperado,

    de desprezo ao que puro, de revolta oculta,

    de indignao, dio, maldade, nojo.

  • A ento contaremos. J ser adulta

    * * *

    NOITE MAIOR

    O que me aborrece no a noite

    mas o que ela traz em si.

    O seu silncio, a ausncia

    do canto triste do brejo.

    O que eu temo no a noite.

    So seus fantasmas

    sua mo escura,

    a morte, atrs do seu manto,

    o sono.

    Quanto tempo passara

    at que eu durma definitivamente?

    O dia no conta. A noite

    que d lies de morrer.

    Aprendemos a morrer a cada noite

    e tantas so as lies

    que o rosto no resiste

    e enruga;

    que a boca no resiste

    e murcha;

    que os ombros no resistem

    e caem;

    que o corpo no resiste

    e morre.

    a noite maior

    sem esperana de aurora.

    O que me aborrece no a noite

  • mas o que ela traz em si.

    * * *

    ANTI-CONCEPCIONAL-IDADE

    Anfertil,

    lindiol,

    progesterona.

    A humanidade

    controlada, reduzida,

    na plula.

    Maria, tome uma plula e vamos rosetar. A humanidade

    vida de sexo j perdeu o medo

    e faz porcaria tranqilamente.

    O cu

    est aborrecido com os mundanos

    e tristes

    os anjos tentam consolar a Deus

    que foi novamente trado

    pela cincia.

    Pacincia?

    Penitncia.

    A plula amedontra o cu.

    A plula to eficiente

    que Deus teme fracassar

    no outro filho

    e imagina nova maneira de redeno.

    O Papa se justifica

    condenando a plula

    e ela fica maior.

    tempo de fornicao

    sem conseqncias.

    Enquanto as mulheres abrem as pernas

  • as maternidades fecham as portas.

    O diabo

    ri gostosamente vendo

    a humanidade diluir-se em gozo

    e manda aumentar o inferno.

    * * *

    O HOMEM DO POSTO

    O homem do posto Shell

    bebe gasolina e queima leo 40.

    O petrleo jorra de suas entranhas

    e liso. Lubrificado

    escorrega por entre os carros

    auto-mecanica-mente

    como convm a uma mquina.

    O contato da mquina

    modelou o homem:

    j no tem nome.

    Sua graa virou graxa

    sua dor carburador,

    seu sapato vira-brequim

    seus olhos, faris na noite

    e a noite aceler-a-dor

    e ronca o velho motor

    que um dia foi corao.

    Saber, se preciso,

    andar em grande velocidade

    nessa grande e veloz-cidade.

    Conversa com automveis

    namora uma romiseta

    e dorme em uma garagem

    com um forde de bigode

    seu amigo e confidente.

    E j no fala:

    buzina

    quando chega em cada esquina.

    II

  • Mas tudo isso imaginao minha...

    Eu sei que ele meu semelhante

    e por baixo de toda a graxa

    esconde a aspereza do homem.

    Seus olhos no faris fascam de dio e raiva

    (como os olhos do patro

    fascam de satisfao)

    junto aos carros que no teve

    e que dia algum ter.

    Seu corao no motor bate de teimosia

    no de esperana.

    E no bebe gasolina

    nem queima leo 40

    porque o dinheiro no d;

    e no ama e no vive

    porque o dinheiro no d;

    no pede nem tem aumento

    porque o patro no d.

    Morrer sem saber

    que o petrleo no puro.

    Tem sangue, suor e lgrimas

    e negro.

    III

    No sei o seu nome

    no sabe de mim

    nem do instante

    em que os extremos se encontram

    na poesia.

    Removida a graxa

    no corpo fica um brilho

    que a alma inveja

    e o macaco dependurado

    atrs da porta anuncia a noite

    que vem escorregando como leo

  • negra como o petrleo

    pelo quarto onde limpo descansa

    o homem sujo do posto.

    * * *

    DOIS POEMAS DO MUNDO PARALELO

    I

    O mendigo

    Quem chega de madrugada

    de subrbio estao

    vai ver a face enrugada

    de um velho que estende a mo

    e pede por caridade

    ajuda em nome de Cristo.

    No se sabe sua idade.

    To sujo, parece um misto

    de velho e moo quem h de

    dar importncia a isto?

    Talvez esse velho sinta

    a idade que aparenta:

    se est sorrindo, tem trinta;

    se est srio, tem sessenta.

    Um dia subindo a escada

    pediu-me ajuda. Parei

    e disse: no tenho nada;

    mas depois eu me lembrei:

    eu trago minha marmita

    e a fome que me convm;

    se meu irmo necessita

    come comigo tambm.

    Dividimos tudo em dois:

    a alegria, a desgraa,

    o meu feijo com arroz,

    o seu litro de cachaa.

    Ento lhe falei da vida.

  • Admirou e achou graa,

    comeu de minha comida,

    bebi de sua cachaa.

    Depois me disse obrigado Deus lhe ajude e saiu

    como havia chegado.

    Pr onde foi, ningum viu.

    Fiquei sem saber seu nome

    sem saber onde vivia.

    S sei que se tinha fome

    no reclamava, sorria

    toda ternura do mundo.

    Trazia uns dentes brancos

    e um olhar to profundo

    to puro, feliz, to franco,

    que eu me senti imundo.

    II

    O andarilho

    Parado ao meio da vida

    com longas barbas de p,

    sem chegada, sem partida,

    um homem, um homem s,

    carrega s costas um saco

    como uma cruz to pesada

    que s vezes se sente fraco

    aps longa caminhada.

    No vive nem bem nem mal.

    Parece um imaginrio

    Papai Noel sem Natal,

    novo Cristo sem Calvrio.

    Vive de esmolas, de restos,

    virando latas de lixo

    sem reclamar, sem protestos,

    no mais um homem, um bicho.

    Mas fala bem. Certo dia

    agradecendo a comida

    que eu sempre lhe oferecia

    me disse Amigo, convida

  • um pobre pr tua mesa.

    Um po, um prato de sopa

    bastante, com certeza

    e, se tiver, uma roupa.

    A fome, o frio, o pobre,

    andam juntos, de mos dadas.

    S quem ajuda descobre

    que ser bom no custa nada.

    E foi-se embora contente

    carregando seu destino

    no saco de indigente

    que arrasta desde menino

    sem lamentar sua sorte.

    Sem passado, sem presente

    apenas um homem forte que a vida no derrotou.

    To certo, to consciente,

    to puro, que me deixou

    com vergonha de ser gente.

    * * *

    PASTO DE ASFALTO

    Tanta tinta gasta

    para pintar o amanhecer.

    Daria para colorir a vida

    de toda a cidade.

    Entretanto, o homem

    borrou o cu de cinza.

    O azul uma hiptese;

    o verde, uma utopia.

    A gua, antes clara,

    acabou virando cloro

    na pia.

    Na rua no pode.

    Quintal no tem.

    As crianas so tristes

    e j no brincam.

    O metr, ltima palavra

    em transporte coletivo,

  • apenas condensou os problemas

    em vages modernos.

    A morte to comum

    que a vida um milagre,

    no uma ddiva.

    Os pronto-socorros esto prontos e o INPS aprimora

    a capacidade de organizar filas.

    E eles pedem.

    So crianas, mas pedem.

    So sujos, mas pedem.

    Tm fome e pedem.

    Ns negamos ou no negamos,

    mas no resolvemos.

    Essa cidade um monstro

    parindo mendigos pelos bueiros.

    Ratos transformados em gente

    pela magia dos luminosos.

    II

    No entanto, insistimos

    e vamos em frente.

    Pagamos para estacionar

    pagamos para andar

    pagamos para viver.

    No fim compramos a morte

    pela tabela da SUNAB

    e com um pouco de sorte

    vem um desconto. Quem sabe.

    Compra-se um terno a prestao

    o terno acaba antes.

    E como a vida um jogo

    h os que morrem sem pagar o resto

    e sem terno para o enterro

    deixando como herana

    um ttulo no protesto

    a provar que o credirio

    no um bem, um erro.

    III

  • Mas continuamos comprando.

    Carne congelada

    sardinha enlatada

    fruta amassada

    alface estragada

    e como na vida nada

    se perde, a barriga incha.

    A soluo achada

    na campanha da pechincha..

    Por favor, senhor feirante

    vindo de um pas distante

    ser que eu no mereo

    uma reduo no preo

    eis que eu sou brasileiro?

    Chegamos aqui primeiro com nosso av portugus

    por isso somos feirantes

    e no um simples fregus.

    Quem mandou no chegar antes?

    IV

    E pensar que somos todos irmos,

    Em Cristo, bem verdade,

    mas irmos. (Como Caim e Abel.)

    S que mais civilizados,

    apenas roubamos o prximo

    como a ns mesmos.

    E tanto nos iludimos

    querendo vencer na vida

    que acabamos perdendo

    o conceito de humanidade

    para nossa grande

    e infeliz-cidade.

    V INCIDENTE PEGAJOSO

    Mas a goma do chicletes

    grudou em meu sapato

    e foi o bastante para eu lembrar

  • o quanto estou preso terra.

    Preso pelos ps, certo, mas preso.

    Todas as minhas preocupaes

    concentradas no sapato.

    Mas a vida assim:

    vai-se por uma rua cheia de gente

    com a cabea nas nuvens.

    Vem uma boca despreocupada

    cospe o chiclete na calada

    e nos traz de volta terra.

    A a gente percebe que no est sozinho

    e descobre o valor da goma de mascar

    no na boca, mas nos ps.

    VI

    Queria agradecer o irmo desconhecido

    que ruminou a goma e distrado

    cuspiu o que restou em meu caminho

    pois ele, sem saber, me fez de novo

    sentir-me humano no meio do povo

    fazendo uma coisa engraada:

    raspando a sola do sapato na calada.

    O incidente pegajoso toma forma

    e eu comeo a pensar

    que o gosto do homem pela goma de mascar

    seja talvez a nica afinidade e foi

    que restou do parentesco entre o homem e o boi.

    O homem hoje animal pensante;

    o boi apenas simples ruminante

    e entre os dois, a grande diferena:

    um rumina em paz o capim na invernada

    o outro rumina e cospe a sobra na calada.

    Acho engraado como de repente

    por qualquer motivo ou simples incidente

    uma palavra, idia ou v filosofia

    se juntam formando um todo

    com pretenso de poesia.

    VII

  • E logo o boi. Porque no o carneiro,

    o bfalo, o cavalo?

    o fazendeiro, no o filsofo

    natimorto no inconsciente.

    a idade grande, o pasto de asfalto.

    a manada de homens em eterno estouro

    mal amanhece o dia.

    So os boiadeiros de gabinete

    sem o cavalo e o gibo de couro

    to incapazes de conter o estouro

    que cruzam os braos e no fazem nada

    capaz de por em ordem a manada.

    Ento percebo novamente a rima

    voltar entre as palavra. poesia?

    No creio. A poesia pura

    e termina onde comea a censura.

    VIII

    Rs perdida na manada

    sem as cores da madrugada

    o poeta caminha com os ps livres

    de mos no bolso, a cabea baixa,

    deixando os olhos grudados no cho.

    Seu soluo triste, porm pequeno.

    No tem valia como soluo.

    * * *

    REFLEXES REFLETIDAS

    Inventei um riso falso

    para disfarar meus olhos tristes.

    Fiquei com aquela expresso

    de quem chora de tanto rir.

    Um rosto no apenas uma fisionomia

    ou simples objeto de fotografia.

    Muito menos a parte mais alta

    de um edifcio preste a desabar.

  • O rosto a alma no espelho

    no o espelho da alma.

    Ele traz as marcas

    no do dia-a-dia, mas do noite-e-dia

    e ficam em cada um de ns os sulcos

    em formas de caminhos sem sadas.

    Fazer a barba apenas um pretexto

    para avaliar o estado do terreno

    em que cada dia

    descobrimos uma nova topografia.

    Ver tudo isso funo dos olhos

    e chorar, coisa da alma.

    Se dissermos simplesmente:

    o que os olhos no vem

    o corao no sente estaremos negando aos cegos

    o direito de chorar.

    Em cima os olhos vem, analisam, choram.

    Em baixo a boca fala, beija, come, escarra.

    No meio, o nariz d um suspiro profundo.

    Tudo isso num rpido segundo

    quando eu fazia a barba frente ao espelho

    onde me descobri e sempre me aconselho.

    L, a realidade bem mais triste

    e todo disfarce que no rosto existe

    se dissolve em sabo e vemos uma

    verdadeira face surgir da espuma.

    * * *

    PELAS RUAS E AVENIDAS

    Seus passos foram lentos demais

    para a pressa necessria.

    Agora estava ali,

    coberto pelo prprio jornal,

    o mesmo que amanh

    dar a notcia de sua morte.

    Estava embriagado?

    Atravessou distrado?

  • Na multido curiosa

    a polcia procura testemunhas

    e o formulrio minucioso

    colhe detalhes pro arquivo.

    O corpo em diagonal

    prope uma indeciso:

    ele ia ou ele vinha?

    De nada vale saber.

    O certo que ele foi.

    Flor arrancada do asfalto

    com todas as suas razes

    e o vermelho no cho:

    sinal fechado pr vida.

    No centro do picadeiro

    um homem plido treme

    sentindo o peso da culpa.

    Foi ele. Milhes de dedos e outro tanto de olhos

    em volta de dois destinos

    que s hoje se cruzaram

    no duelo implacvel

    da luta de todo o dia.

    Na massa j dividida

    pela inocncia do morto

    um carro se mantm neutro..

    As providncias legais

    depressa removem o corpo

    e logo nos esquecemos

    caadores e caados

    que podemos ser manchete

    no jornal do outro dia.

    II

    Atravessar uma rua

    no centro desta cidade

    brincar de suicida.

    Mas como estarmos atentos

    se existem mulheres nuas

    promovendo os produtos

    em painis no censurados?

    Como deixar de olhar

  • uma morena que passa

    se elas, meu deus, so tantas

    para dois nicos olhos?

    Tudo isso mais as dvidas

    o aluguel j vencido

    acabou criando um tipo

    de transeunte areo

    comumente encontrado

    atravessado na rua

    embrulhado em jornal.

    III

    E o carro E o homem

    que passa que desce

    depressa depressa

    buzina olhando

    desvia o morto

    se breca se sente

    no pra esmagado.

    atropela Mas quem

    e mata. o culpado?

    IV

    Talvez uma lei da fsica, no do trnsito

    que no permite dois corpos

    ocuparem o mesmo lugar

    no espao.

    Quando isso acontece

    um deles vai ocupar

    um lugar no necrotrio

    reservado ao descanso

    do transeunte areo

    que, livre dos seus problemas,

    o corpo j congelado,

    mal disfara um sorriso

    guardado daquele instante

    quando olhava o painel

    do outro lado da rua

    em forma de mulher nua

  • que, finalmente, era sua.

    * * *

    REENCANAO

    Vamos ter de nascer de novo

    e habitar novos corpos

    para alcanar o perdo. Na esquina da minha rua

    o homem falava firme

    a bblia embaixo do brao

    e o dedo apontando o cu.

    Mas eu no desejo tanto.

    O paraso demais

    para a minha ambio.

    Meu esprito deseja apenas

    a paz que um corpo no d.

    J que os dois no combinam

    no sei porque vivem juntos.

    Um corpo tem seus mistrios

    que a gente vai decifrando

    entre carnes e desejos

    porm com uma certeza

    de um fim comum, onde o mistrio

    afinal revelado

    na terra do cemitrio.

    Mas alm da morte carnal o esprito sobrevive

    e renascer em outro corpo

    para a sua redeno.

    O homem de terno escuro

    passava o leno na testa

    sem saber que em meu quarto

    eu desejava o descanso

    bem mais que a redeno.

    O esprito, se existe,

  • dever ter seus mistrios

    guardados alm da ter

    entre anjos vingadores,

    dissimulado entre nuvens

    onde no chega a voz

    do pregador da esquina

    que como eu, com certeza,

    fala o que imagina.

    Embora de f oposta,

    vivemos o mesmo esquema

    querendo nos convencer

    que a morte no um fim.

    Apenas uma parada

    para troca de carcaa

    em busca da perfeio

    to longe e to distante

    que nos coloca em extremo

    dentro da mesma cidade:

    como o arroz e o feijo

    feitos na mesma panela

    para uma eterna fome

    de viver.

    A morte no nos d sossego.

    Ela est em ns, crdulos e ateus,

    como um secreto espinho

    que incomoda e machuca.

    Caminha ao nosso lado

    nos d bom dia e boa noite

    e quando menos se espera

    a noite ser to boa

    que nunca mais amanhece.

    Ou amanhece em outros olhos

    como diz o meu irmo

    de bblia e terno escuro

    parado na minha rua.

    Mas isto me faz pensar

    em qualquer ventre futuro

    onde outro corpo me espera.

    J nasceu uma mulher

    branca, preta ou chinesa,

  • que traz um eu projetado

    no vulo infecundo.

    E quando chegar a morte

    meu esprito liberto

    viajar o espao

    e no momento exato

    da unio de dois corpos

    descer de novo terra

    e na exploso de esperma

    penetrar entre o gozo

    nadando em desespero

    em busca de nova vida

    afinal recriada.

    S por isso fui dormir

    sentindo-me imortal.

    * * *

    LIO DE VIDA

    As bolas de vidro coloridas

    penduradas na rvore de plstico

    to falsas como o Natal.

    Meu filho vibra. fantstico

    como o mundo se torna real

    aos olhos de uma criana.

    Para ele Papai Noel j bate porta

    e, a qualquer momento,

    entrar pela janela

    do apartamento.

    E to real sua fantasia

    que eu fico pensando quanto no seria

    melhor a vida se a esperana

    fosse por ns olhada com olhos de criana.

    Isolado em meu mundo adulto,

    no mais um homem, um vulto,

    de repente me acho

    sentado sobre o capacho

    brincando com o meu filho

    livre do meu eterno exlio.

    II

  • Brincando com dois velhos amigos

    que um dia se encontram e os tempos antigos

    ficam a lembrar sem discusses ou medos

    no mundo de paz que h entre os brinquedos.

    S isso me bastou como lio de vida

    e a rvore de natal, a bola colorida,

    antes to irreais, cresceram tanto, tanto,

    que eu me enchi de lgrimas de espanto.

    A partir de ento, eu sempre volto cedo,

    corro depressa ao quarto de brinquedos

    onde, confundidos na mesma alegria

    vivemos o Natal a cada dia.

    * * *

    MADRUGADA

    Tarde da noite ao esquentar caf

    notei cheio de espanto que havia cinza

    junto ao fogo. Mas no havia lenha,

    apenas gs. De onde essa cinza?

    Quando queimou, j que estava fria?

    Tentei limpar, mas ela no saa.

    Diante do mistrio parei um instante

    e percebi que ela se movia

    como o meu corpo e no era cinza

    mas minha sombra a queimar no fogo

    cremando o meu passado e deixando restos

    de p da vida junto ao presente

    para se juntar no futuro ao p da morte

    num todo intil sem nenhum proveito.

    Luz vida

    corpo meio

    sombra iluso

    fogo verdade.

    Entre eles a alma perde o sentido.

    Como o gs do fogo que esquenta o caf

    tambm a alma s alma

    quando est no corpo e esquenta o amor.

    O mais suposio.

  • O que sabemos realmente

    que o caf, como o amor,

    pede um cigarro depois

    e tudo acaba em cinzas.

    II

    Deveramos ser mais felizes.

    Como renascer a cada dia,

    se a morte nos chega antes do amanhecer

    quando sonhamos ter no outro dia

    o carro novo, ou qualquer besteira

    anunciada na televiso?

    Compre, compre, compre.

    Pague, pague, pague.

    Morra, homem, morra.

    A sociedade no pede, exige,

    seu tributo se sangue.

    Ento aceitamos a tudo calados

    porque a voz do povo a voz de Deus

    e Deus h muito que no fala nada.

    III

    O caf ferveu e ficou imprestvel.

    O amor no ferveu e ficou impraticvel.

    O cigarro apagou e ficou infumvel.

    A rima empobreceu e ficou lamentvel.

    E a vida criada para ser notvel

    acabou se tornando insuportvel

    mesmo para um homem como o Capito Marvel.

    IV

    Nesta altura dos acontecimentos

    tudo est perdido. At a noite.

    Quantos, como eu, a esta hora,

    passam a mo na cabea

    como a apagar todos os pensamentos

    que chegam com a aurora.

    O dia pesado demais.

    Padaria, aougue, emprego, carto de ponto.

  • O senhor est despedido.

    Ficha para o caf.

    Sai um comercial. A fome vem de metr para o centro da cidade.

    Os olhos no vem seno o relgio.

    Em casa a mulher espera

    a hora da volta, que pode ser

    agora, nunca, ou quem sabe.

    V

    No fomos criados para isso.

    Criamos isso e de criar nos perdemos.

    No entanto, apenas uma deciso,

    e tudo poderia mudar de repente.

    Mas decidir ato de vontade

    enquanto somos apenas

    vontade de decidir.

    A vontade passa com o tempo

    e um corpo sem vontade no um corpo.

    to somente uma sombra

    na noite que o nosso dia.

    VI

    O sol j fere minhas vistas injetadas

    e o torpor da morte me convida ao sono.

    Reluto entre a cama e o poema

    e fico no sonho de ser mais feliz

    de olhos abertos para o amanh

    que j no amanh, hoje,

    como todos os amanhs que so ontem

    e, como ontem, nunca mais.

    Fecho o gs e a chama se apaga.

    Fecho os olhos e o pensamento acende.

    A cozinha amanhece e tudo toma forma.

    Minha sombra se recolheu em mim

    sonmbulo consciente

    feito uma besta com cara de sono

    de bule na mo e cabea vazia

    jogando fora o caf na pia.

  • Entre os dedos, o cigarro apagado.

    * * *

    AUTO-ELETRO-CARDIO-GRAMA

    O enfarte, se vier,

    ser por acaso.

    Preciso transmitir isto

    aos meus irmos.

    Mas como, se eles no tm tempo?

    Tempo. O que o tempo?

    Uma hora? Um dia? Uma vida?

    Apenas um relgio e um calendrio

    e entre eles um emprego,

    uma sociedade, e um corao amargurado

    prestes a estalar.

    Isto serve como receita

    de um homem moderno respeitvel.

    Sou apenas um homem

    o que j bastante difcil.

    Mas j fui um homem moderno respeitvel.

    Durante vinte anos tive um emprego

    e freqentei a sociedade.

    S que antes do meu corao amargurado estalar

    optei por viver.

    Viver. to simples

    que se tornou impossvel

    num mundo em que as coisas simples

    so complicadas.

    Isto eu aprendi com meus amigos velhos

    aqueles que ficam todas as tardes

    sentados no jardim com o diploma da vida na mo

    aguardando o dia da formatura.

    Ali eu aprendi que o tempo no conta

    pois um dia a mais de vida

    um de menos

    e to pequeno que nele no cabem

  • o orgulho e a vaidade.

    Ah, os amigos velhos.

    Entre um olhar humilde e uma cabea branca

    toda a sntese da vida.

    entre duas mos que tremem

    e pernas que j vacilam

    toda a sntese da matria.

    Entre a coragem da luta

    e o desprezo da morte

    toda a sntese do homem.

    Entre meus amigos velhos

    e os bancos do jardim

    a sntese de toda a filosofia.

    Isto sim eu queria transmitir

    aos meus irmos sem tempo.

    O valor de uma aula ao ar livre

    nesta faculdade aberta de canteiros verdes

    e cabeas brancas

    onde o reitor passeia, invisvel,

    de beca preta e foice na mo.

    L, entre canteiros e bancos,

    a flor e o mrmore marcam o limite.

    Transp-lo sublimar-se

    para o verdadeiro tempo

    onde reina o eterno nada.

    Terminada a aula

    o enfarte, se vier,

    ser por acaso.

    * * *

    FALNCIA

    Calma.

    Bastarei a todos.

    Minha liberdade j doei

    ao nascer.

    Minha vida

    ficar para a morte

  • por usucapio.

    Minha alma ser entregue

    para quitar meus pecados.

    No sobrar muito

    alm deste corpo

    para as dvidas.

    Mas deve bastar.

    Para isso cuido muito bem

    de mim.

    A cada dia

    falo menos.

    A cada dia

    poso menos.

    Com os juros dessa poupana

    pagarei o crime

    de estar vivo.

    Meus credores incrdulos

    tero de passar recibo

    sobre meu cadver.

    Minha honestidade

    ser cobrada em dobro.

    Meus filhos pagaro

    este credirio interminvel

    em favor dos deuses.

    E assim continuar o ciclo

    at estarmos insolventes

    como a prpria criao

    ora protestada.

    * * *

    HGIRA

    A fuga do fugaz

    o desespero

    de andar em volta.

    A incrvel persistncia

    de ir em frente.

  • Desviar das barreiras de muros

    e paredes.

    Saltar sobre dores.

    Aceitar o labirinto

    como uma reta.

    A esperana tocha

    levada em maratona.

    Chegaremos?

    Sem revezamento

    a olimpada diria

    distribui suas medalhas.

    Aos que perdem,

    um epitfio.

    Aos que vencem,

    uma lpide.

    No podium

    a terra prometida.

    * * *

    LABORATRIO

    Minha av estercava flores

    com bosta de vaca.

    O estrume cheirado

    no perfume da rosa

    era a vida.

    No banheiro o papel higinico

    aguarda pacientemente

    os nus passarem

    deixando suas marcas.

    Todos os dias jogvamos fora

    o papel usado na latrina

    onde a nossa real fotografia

    se imprimia.

    Nas razes do homem,

  • como na flor,

    o esterco.

    O mais subproduto

    de uma qumica celeste

    que nos extrai o perfume,

    o mau hlito,

    um peido

    * * *

    SENHA

    Xuxu apareceu naquele dia

    muito afoito dizendo:

    Burucutina na cagata du cududu.

    loco. Que quer dizer isso? Ele no soube explicar. S repetia:

    Burucutina na cagata du cuduco. Todos os meninos saram espantados

    mas eu guardei as palavras.

    Vai que o Xuxu, malando com era,

    aprendeu isso com seu anjo da guarda?

    No custa decorar.

    burucutina na cagata ducuduco.

    Tenho a certeza de que a senha

    para entrar no cu.

    * * *

    CONTRASTE

    No ladrilho branco da cozinha

    uma formiga preta passeia.

    Contraste simples e cotidiano.

    Um filsofo pensaria:

    que faz esse pedao nfimo da natureza

    sozinho a esta hora

  • to distante

    da vida coletiva

    do formigueiro?

    Que desgnios carregam

    em suas presas?

    Ter a mo de Deus traado

    o seu caminho

    ou move-a um desejo

    suicida

    de ser por ps humanos

    esmagada?.

    O mstico diria:

    forma informe na alma presa

    te desejei.

    Passeias no branco

    de meu deserto

    impura.

    Teu coletivo anseio

    de estar s

    comove.

    Busco na vida

    o segredo de viver

    enterrado

    pois enterrado vivo

    na minha forma informe.

    Eu que no sou filsofo nem mstico,

    no digo nada.

    Ou melhor, digo apenas

    que no ladrilho branco da cozinha

    uma formiga preta passeia.

    Contraste simples e cotidiano

    de uma realidade insofismvel

    mas bastante.

    * * *

    RQUIEM

    No enterro de meu amigo

  • era permitido sorrir.

    A morte era uma piada

    ele sabia

    tanto que, agonizando, j sorria.

    Os filhos, rostos de pedra

    onde no cabiam lgrimas.

    Os netos, ressurreio.

    O av retorna

    em pele fresca.

    Vamos brincar de roda.

    A alma criana

    no sabe o que fazer do corpo.

    Brinquedo velho abandonado

    entre flores de um jardim qualquer

    repousa.

    Os amigos de meu amigo

    trouxeram suas crianas.

    J no havia espao

    para brincar na sala.

    Meu amigo no sereno

    e o centro da sala livre

    para a vida.

    Nosso espao se reduzia

    no tempo e dentro da casa

    onde a cada minuto

    cabamos menos.

    J no quintal nos acotovelvamos

    em volta do meu amigo

    sereno.

    Mais crianas estavam nascendo

    na sala

    e exigiam espao

    l fora.

    Esmagados

    chorvamos de medo

    da vida.

  • Fomos postos na rua

    pela vida.

    Agarrados na ala da morte

    fugimos apressadamente

    com o nosso amigo.

    Enquanto nos enterrvamos

    nossas mulheres pariam

    prantos.

    * * *

    ENCONTRO DA POESIA

    Poesia povo

    e no charada.

    Devolv-la a quem pertence

    simples como a vida.

    O mundo dos humildes

    no dos msticos.

    Numa caixa de madeira

    de trinco frgil,

    entrega-la.

    No em um cofre forte

    de segredo obscuro

    s conhecido pelo gerente

    e seus lacaios.

    Antes da poesia

    o homem.

    Antes da palavra

    o homem.

    Antes do homem

    o povo.

    Do outro lado o muro

    proteo sem liberdade e atrs do muro o poeta.

    S entra quem tem a chave

    falsa.

    Cada chave diferente

    para uma s porta

  • que na verdade nunca se abre.

    Alma enferrujada

    pelo ofcio de esconder

    o que claro.

    Poesia diamante bruto lapidado na vitrine

    no em particulares cofres

    de poucos afortunados.

    Poesia a palavra tempo

    j foi escrita no muro.

    V-se pelas rachaduras

    que logo haver de inundar

    meu povo.

    * * *

    FARTURA

    o estmago

    maior que o corao

    prevalece.

    O po de cada dia

    menos nosso.

    Comeremos nuvens.

    s crescer

    e alcanar o cu.

    Quando acabarem as nuvens

    e o cu limpo

    comeremos estrelas.

    Seremos um dia deuses

    como estava escrito.

    * * *

    DOR UNIVERSAL

  • Doem as juntas

    de tanto esforo.

    Doem os ps

    de tanto andar.

    Doem os olhos

    de tanto ver.

    Di aqui, di ali.

    O coro universal de lamentos

    somado ao meu no muda nada.