história do paraná - xv encontro regional de história da … · 2016-07-15 · apresentada pelo...
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Discursos Identitários na obra História do Paraná de Romário Martins
Raiane C. Ramirez dos Santos1 UNIOESTE
Resumo: O objetivo desta comunicação é apresentar uma análise da obra História do Paraná, escrita pelo historiador Romário Martins, publicada pela primeira vez em 1899. Nela são construídos discursos a respeito do Paraná e de sua população. Nosso intuito é realizar uma reflexão sobre as práticas discursivas e intencionalidades de seu autor. Para nortear esta análise, partimos das concepções expressas por Stuart Hall acerca do conceito de identidade. Portanto, entendemos que as identidades são construídas dentro de discursos que ao serem produzidos e divulgados, atendem a determinados interesses e, assim, não são neutros. A comunicação é resultado parcial de minha pesquisa de mestrado intitulada “Mosaico Étnico”: uma análise de discursos que constroem uma identidade para o Paraná (1948-2015), em andamento no Programa de Pós Graduação da UNIOESTE, financiada pela CAPES. O objetivo geral da pesquisa é problematizar discursos que constroem uma identidade para o Paraná como um “mosaico de etnias”, “terra de todas as gentes”. Palavras – Chave: História do Paraná; Historiografia; Identidades; Romário Martins. Financiamento: CAPES
“A presença em território paranaense de grupos étnicos tão numerosos e das mais diversas procedências, deu ao Estado uma característica toda especial. Provavelmente, o Paraná é o maior laboratório étnico do Brasil. Esses imigrantes representados pelas novas gerações, praticamente integraram-se à sociedade brasileira, uns mais, outros menos, todos, porém dando sua colaboração para transformação da cultura original luso-brasileira”2.
O objetivo deste artigo é apresentar uma análise de discursos que
constroem uma identidade para o Paraná como um “mosaico de etnias”. Para
tanto, abordaremos uma obra de referência para o estudo de História do
Paraná: História do Paraná, do historiador Romário Martins, publicada pela
primeira vez em 1899.
Esta análise é um dos resultados de minha pesquisa de mestrado
intitulada “Mosaico Étnico”: uma análise de discursos que constroem uma
1 Cursa mestrado em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Bolsista da CAPES. Orientador: Prof. Dr. Marcos Stein. E-mail: [email protected]. 2 WACHOWICZ, R. C. História do Paraná. Curitiba: Vicentina, 1995.p.151.
identidade para o Paraná (1948-2015), desenvolvida no Programa de Pós
Graduação em História da UNIOESTE. Nela, pretendo por meio da análise de
diferentes fontes – documentos escritos, jornais, entrevistas, obras
historiográficas – investigar e problematizar narrativas que, em diferentes
contextos, constroem identificações étnicas para grupos de nacionais e
estrangeiros que se fixaram no território paranaense a partir da segunda
metade do século XIX. Estes discursos emergem em diferentes contextos, com
determinados objetivos e são utilizados, em datas e festivais comemorativos,
para fixar uma identidade para o Paraná como sendo um “mosaico de etnias”,
uma “terra de todas as gentes”.
Em diferentes momentos e suportes verifica-se a produção e reprodução
de um discurso que afirma que o Paraná recebeu “contribuições” de grupos de
imigrantes alemães, poloneses, ucranianos, holandeses, dentre outros
europeus e, em menor número, asiáticos, classificados como etnias, e que
formariam o chamado “mosaico de étnico do Paraná”. Este discurso marca a
diferença da (re)ocupação do Paraná com relação a do restante do Brasil e cria
a ideia de um Paraná “europeizado”, “branco” e “civilizado”.
Cada grupo, classificado como “etnia”, é apresentado como portador de
características fixas, peculiaridades, especificidades que marcam a diferença
entre eles por meio de suas “qualidades”. Contudo, apesar dessas diferenças,
o discurso também marca a semelhança entre estes grupos: todos são
apresentados como “desbravadores de uma nova terra”, “perseverantes” e
“prósperos”.
Narrativas com este caráter emergem em vários momentos da história
paranaense em diversos meios, como em jornais, revistas, falas de políticos,
documentos oficiais, materiais e eventos comemorativos, livros didáticos, em
sites de órgãos oficiais do Estado e, também, em produções acadêmicas. A
constante produção e reprodução destes discursos causa “efeitos de verdade”3
que cristalizam uma identidade para o Estado e marcam sua diferença com
relação ao restante do Brasil.
3 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 2°ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.
Para esta análise nos apoiaremos nas reflexões de Eni Orlandi4, ou seja,
trataremos o discurso da obra selecionada como uma produção de sentidos,
como construtor dos objetos ou fatos sobre os quais fala. Em suas palavras:
(...) a análise de discurso trabalha com a materialidade da linguagem, considerando-a em seu duplo aspecto: o linguístico e o histórico, enquanto indissociáveis no processo de produção do sujeito do discurso e dos sentidos que (o) significam5.
Em consonância com as reflexões do filósofo Michel Foucault,6
consideramos o discurso como uma construção de características sociais que
buscam legitimação de um poder ou ideologia. Discurso, de acordo com
Foucault, é a produção e reprodução de conhecimento, fruto de relações de
poder que definem o que é posto como norma e o que a transgride. A memória
sobre a participação dos imigrantes na constituição da população paranaense
não é construída por acaso, mas fruto de uma série de processos históricos e
respaldada por uma série de discursos.
A forma como entendemos os conceitos de Identidade e Etnia são de
extrema relevância para a realização deste trabalho. Sobre o conceito
Identidade nos apoiaremos nas reflexões de Stuart Hall. Este autor critica as
afirmações essencialistas ou fixas a respeito da composição da identidade dos
sujeitos, defende, assim, a "existência de um 'eu' inevitavelmente
performativo”7. Ou seja, segundo Hall, a rapidez da modernidade tardia causa
uma "crise de identidade" nos sujeitos, pois além de fragmentar "paisagens
culturais", como gênero, classe, etnia, estas rápidas transformações da
sociedade também mudam nossas identidades pessoais, o que caracteriza a
"perda do sentido de si".
Desta forma, entendemos que os discursos de identificação presentes
na obra historiográfica selecionada para esta análise, ao serem produzidos e
divulgados, atendem a determinados interesses e apresentam uma
determinada visão de mundo, portanto não são neutros. É sob este prisma que
4 ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1999. 5ORLANDI, E. P. Discurso: Fato, dado, exterioridade. Interpretação: Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996, p. 36 e 37. 6 FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 1996 7 HALL. S. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
surgem políticas de identidade nacional, por exemplo. De acordo com Stuart
Hall:
É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora dos discursos que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas8.
Nessa perspectiva, as narrativas sobre cada um dos grupos de
migrantes e imigrantes presentes na obra remetem a um passado comum, que
dá embasamento para a construção de suas identidades culturais, garantindo
sua manutenção e continuidade, bem como acaba por fixar uma identidade
para o Paraná como um lugar de convivência harmoniosa entre todos os
grupos.
Articulado a este conceito não essencialista de Identidade, abordaremos
o conceito de Etnia a partir da perspectiva apresentada pelo antropólogo e
etnólogo Fredrik Barth. Seus estudos questionam a naturalidade com que se
trata este termo, geralmente utilizado como algo estático que classifica as
pessoas em função da sua origem suposta, por meio de signos culturais
socialmente diferenciadores. Os sociólogos Philippe Poutignat e Jocelyne
Streiff-Fenart9 sintetizam a ideia de Barth da seguinte maneira:
Há de convir, com Barth, que a etnicidade é uma forma de organização social, baseada na atribuição categorial que classifica as pessoas em função de sua origem suposta, que se acha validada na interação social pela ativação de signos culturais socialmente diferenciadores10.
Esta “atribuição categorial que classifica as pessoas” é marcada pela
diferença que é construída dentro de discursos. É isto que faz com que uma
pessoa afirme ser “alemão” e não “argentino”. Dessa forma, visamos
apresentar diferentes contextos em que são empreendidas políticas em prol da
valorização de elementos que dariam caráter identitário ao Paraná.
8HALL, Stuart. Quem precisa da identidade?. In: Identidade de Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Tomaz Tadeu da Silva (org.). Petrópolis, RJ: Vozes, 2000 9 POUTIGNAT, P.; STREIFF-FENART, J. Teorias da Etnicidade. Seguido de grupos étnicos e suas Fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: Fundação editora da UNESP, 1998.
A obra História do Paraná, de autoria do historiador e jornalista Alfredo
Romário Martins, teve sua primeira publicação em 1899 e foi reeditada outras
três vezes: 1937, 1953 e 1995. Considerada uma obra canônica, foi a primeira
compilação que pretendia apresentar “toda” a História do Paraná em volume
único11. Este livro foi resultado de uma monografia apresentada ao Ginásio
Paranaense, publicada em 1899 e adotada nas escolas como obra oficial,
durante muito tempo foi principal referência sobre o tema.
De acordo com o historiador José Erondi Iurkiv12, a diferença entre a
primeira e a segunda edição desta obra é significativa. Sua primeira edição
contava com 250 páginas, passou por correções e acréscimos e foi reeditada
em 1937 com aproximadamente 500 páginas. Todas as edições contam com
investimentos do governo. Para esta análise utilizaremos trechos referentes a
edição de 1995, composta por 471 páginas.
Antes de apresentar análise de alguns trechos desta obra é necessário
contextualizar quem foi este autor, de que lugares ele falava e quem ele
representava. Alfredo Romário Martins nasceu em 1874, seu pai era militar e
sua família abastada13. Construiu uma carreira política, foi deputado estadual
por oito vezes, entre os anos de 1904 e 1928. Em 1900 atuou como
Superintendente do Ensino Público. Participou da fundação do Instituto
Histórico e Geográfico do Paraná (IHGP), presidido por ele cerca de 20 anos14.
Participou ativamente do movimento que buscava a fundação da Universidade
Federal do Paraná. Na década de 1920 dirigiu o Museu Paranaense. Envolveu-
se também com instituições culturais internacionais como a Sociedade
Geográfica de Lisboa e a Sociedade de História Internacional de Paris. Além
disso, trabalhou nos jornais Diário do Comércio, A República, na revista
Ilustração Paranaense, dentre outros. Enquanto deputado estadual foi autor de
11 GAZETA DO POVO. Reportagem publicada online em 08 de fevereiro de 2014. Disponível
em:http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/com-romario-martins-surge-o-registro-historico-do-parana-emk8gu7nwdlkuhngaimmj2ury. Acessado em 11 de fevereiro de 2016. 12 IURKIV, J.E. Romário Martins e a historiografia paranaense. Educare, UNIPAR, vol.2 n.2, 2002. 13 Idem. 14 Idem.
várias leis dentre as quais estabeleceram símbolos como a bandeira e o brasão
de armas do Paraná. Este autor faleceu no ano de 194815.
A concepção de história e o projeto político defendido por este intelectual
pode ser percebida por meio de seu vínculo com o Instituto Histórico e
Geográfico. O primeiro Instituto Histórico Geográfico do Brasil (IHGB) foi
fundado em 1839, no Rio de Janeiro, com o objetivo de construir uma história
para a nação brasileira fundada em um passado comum e em elementos
homogeneizadores deste vasto território. Os primeiros institutos eram mantidos
financeiramente pelo imperador ou pelos próprios sócios. De acordo com a
historiadora Lilia Schwarcz, estas instituições pretendiam: “(..) unificar a nação
significava a construção de um passado que se pretendia singular (...)16”, a
autora também afirma que “os diferentes centros produziram falas
marcadamente regionais, apesar da sua pretensão totalizante”17.
A concepção adotada como “história oficial” do Brasil pelo IHGB é a
apresentada pelo alemão Carl Friedrich Phillip von Martius, em seu texto
premiado pelo instituto em 1847, chamado “Como se deve escrever a história
do Brasil”. Neste texto, a questão étnica passa a ser o eixo para a construção
identitária brasileira. Segundo von Martius, a população brasileira seria
constituída pelos indígenas, pelos negros e pelos brancos de origem
europeia18. Podemos perceber uma concepção muito semelhante a esta no
texto de Romário Martins que será apresentado abaixo.
No Paraná, o Instituto Histórico Geográfico foi fundado já no período
republicano. O historiador Ernando Brito Gonçalves Junior realizou estudo
sobre esta instituição para sua dissertação defendida em 2011. De acordo com
ele:
O Instituto Paranaense foi fundado no dia 24 de maio de 1900, em meio às comemorações do quarto centenário do descobrimento do Brasil‖ promovidas pelo Estado do Paraná.
15 MARTINS, Romário. História do Paraná. Curitiba: Travessa dos Editores, 1995. 16 SCHWARCZ, L. O espetáculo das raças: cientistas instituições e questão racial no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 2002.p.99 17 Idem. 18 GUIMARÃES, M.L.S. História e Natureza em von Martius: esquadrinhando o Brasil para
construir a nação. História, Ciências e Saúde – Manguinhos, vol.VII, jul.- out. 2000, p. 389-410.
Tinha como principal finalidade, de acordo com seu estatuto de fundação, ―Coligir, estudar, publicar e arquivar os documentos que sirvam à historiografia do Paraná, promovendo a difusão de seu conhecimento pela imprensa e pela tribuna‖ (BIHGP, 1917, p. 22). Essa passagem do estatuto da instituição paranaense assemelha-se bastante ao estatuto do IHGB já citado acima, mostrando que o IHGB era o modelo a ser
seguido pelos institutos regionais19.
No interior do instituto foram fomentadas discussões que visavam
estabelecer e valorizar elementos característicos de uma “regionalidade”
paranaense. O Paranismo, um movimento intelectual que tem como precursor
Romário Martins, entre outros, nasce da valorização das regionalidades
paranaenses, pode, desta forma, estar relacionado a participação de Martins
no instituto (IHGP). Este movimento procurava enaltecer elementos como terra,
clima e homem. Em 1927, Martins define este movimento da seguinte forma:
Paranista é aquele que em terras do Paraná lavrou o campo, vadeou uma floresta, lançou uma ponte, construiu uma máquina, dirigiu uma fábrica, compôs uma estrofe, pintou um quadro, esculpiu uma estátua, redigiu uma lei liberal, praticou a bondade, iluminou um cérebro, evitou uma injustiça, educou um sentimento, formou um perverso, escreveu um livro, plantou uma árvore20.
A partir deste trecho, podemos perceber o esforço realizado por
Romário Martins para definir o que é o sentimento de orgulho em se fazer parte
do Estado do Paraná. Nele vemos representado um ideal de paranaense
morigerado – “Praticou bondade” – laborioso – “lavrou o campo, vadeou uma
floresta (...)” – e letrado – “escreveu um livro”.
Cabe também, a esta discussão informarmos brevemente os contextos
de publicação e republicação da obra em questão. Em 1899, ano da primeira
edição desta obra, havia se passado dez anos da proclamação da república.
Nesta data, como indica Gonçalves Junior, aproximavam-se também as
comemorações dos 400 anos do “descobrimento” do Brasil. Datas
19 GONÇALVES JUNIOR, E. B. O impresso como estratégia de intervenção social: educação e história na perspectiva de Dario Vellozo (1885-1937). Curitiba, UFPR, 2011. Dissertação de mestrado. 20 MARTINS, R. Mensagem do Centro Paranista ao Presidente do estado Dr. Affonso Camargo, 1927. Apud TRINDADE, E. M. C.; ANDREAZZA, M. L. Cultura e Educação no Paraná. Curitiba: SEED, 2001.
comemorativas são ótimos momentos para se fabricar mitos de origem e
conferir sensação de continuidade histórica, para que o povo se reconheça
como parte de um todo, que no caso são o Paraná e o Brasil.
Em 1937, outra data em que História do Paraná foi reimpresso, o Brasil
passava pelo primeiro governo de Getúlio Vargas. Este governante se
comprometeu com a criação um “sentimento de brasilidade”, unívoco, que
visava impor o “espírito nacional” aos imigrantes estrangeiros. Giralda
Seyferth, em seus estudos sobre imigração, afirma que grupos de diferentes
origens são classificados como “alienígenas”, termo pejorativo como apresenta:
Entre 1937 e 1945 uma parcela significativa da população brasileira sofreu interferências na vida cotidiana produzidas por uma “campanha de nacionalização” que visava ao caldeamento de todos os alienígenas em nome da unidade nacional. A categoria “alienígena” — preponderante no jargão oficial — englobava imigrantes e descendentes de imigrantes classificados como “não-assimilados”, portadores de culturas incompatíveis com os princípios da brasilidade21.
A campanha de nacionalização teve forte expressão nos estados do sul
do Brasil (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul), locais onde a
imigração estrangeira foi significativa. Podemos supor que a reedição de
História do Paraná neste período visava mostrar as contribuições dos
estrangeiros para a construção da nação brasileira, de modo a mostrar a
oposição da intelectualidade paranaense à política de nacionalização varguista.
No ano de 1953, que marca o centenário da emancipação política do
Estado do Paraná, esta obra foi republicada e novamente adotada pelas
escolas do Estado como sendo a obra oficial da história paranaenses22. Houve,
desta forma, grande dispersão do discurso presente neste livro por toda a
sociedade.
Esta obra contém um projeto de modernidade das elites locais, centrada
na ideia de um Paraná “branco”, que seria grande promessa para o futuro do
Brasil. Procuramos mostrar acima, como que o interesse em repetir tantas
21 SEYFERTH,G. A assimilação dos imigrantes como questão nacional. Mana vol.3 n.1 Rio de Janeiro Apr. 1997. 22 GILLIES, A. M. R. Identidade, cultura, relações étnico-raciais e representações no Paraná. Anais do II Congresso Internacional de História UEPG-UNICENTRO. 2015.
vezes o discurso desta obra ocorreu em momentos de redefinição
populacional, articulado com o cenário nacional, ora reafirmando, ora
discordando de suas políticas. De acordo com Zygmunt Bauman, a questão da
identidade só é debatida no momento em que o “pertencimento” sai da zona de
conforto.
Quando a identidade perde as âncoras sociais que a faziam parecer “natural”, predeterminada e inegociável, a “identificação” se torna cada vez mais importante para os indivíduos que buscam desesperadamente um “nós” a que possam pedir acesso23.
Os momentos de reedição da obra configuram momentos de busca por
“âncoras sociais” que naturalizem uma identidade para a população
paranaense. Isso ocorre devido a uma crise de “pertencimento” de uma
população que não se enquadra mais no discurso de identidade fixa, imutável.
Contextualizado isto, partiremos para a descrição e análise de alguns
trechos desta obra. Extremamente densa, descritiva e informativa, esta obra
divide-se em vinte subcapítulos: Introdução, Meio Físico, Distribuição
geográfica das tribos indígenas, A posse da terra, Província índio – cristã de
Guaíra, Caminhos Históricos, Fatores Étnicos Fundamentais, Bandeiras e
Bandeirantes, Origens da Administração Pública, Ciclo da Mineração de Ouro,
Povoamento do Litoral e do Planalto, Origens da Economia Rural, Militária,
Elevação da Comarca a Província, Novos Fatores étnicos, A campanha
abolicionista, A propaganda republicana, A organização da província,
Organização do Estado, Definição Territorial do Estado, Administradores
Públicos.
Os primeiros doze subcapítulos tratam do século XVI até o início do
século XIX. Aborda o período de começo da colonização do Brasil pelos
portugueses, em que este território se dividia em capitanias hereditárias. Trata
também sobre a chegada dos bandeirantes e sobre a descoberta do ouro
próximo ao litoral do território posteriormente denominado Paraná. Nos séculos
XVIII e início do XIX, o Paraná não existia enquanto província, ainda fazia parte
23BAUMANN, Z. Identidade: Entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.P. 30.
da província de São Paulo. Para Romário Martins, nesse período a “formação
étnica” da região era constituída por “Povoadores Fundamentais”24, “o índio”, “o
colonizador ibérico” e “o africano escravo”, o que nos remete a concepção
presente no texto de von Martius, já exposta acima, consagrado pelo IHGB.
Devido ao engajamento de Martins no Instituto Histórico Geográfico do Paraná,
podemos supor que ele tenha tido contato com o texto de von Martius e,
portanto, incorporado esta concepção. Também podemos encarar como uma
tentativa do autor de aproximar a história do Paraná da considerada “história
oficial” do Brasil.
A partir do subcapitulo XIII, Romário Martins contextualiza o período pós
emancipação política do Estado do Paraná, ocorrida em 1853. No subcapítulo
XIV, o autor introduz “Novos Fatores Étnicos” ao seu estudo sobre a formação
da população. Martins trata sobre a chegada de imigrantes da Europa central e
oriental, e seus descendentes. O ufanismo e a busca constante por firmar uma
identidade para o Estado que o destaque perante aos outros são
características marcantes na escrita de Romário Martins. O trecho a seguir é o
que melhor sintetiza o discurso de um “Paraná de todos os povos”:
Em todas as zonas povoadoras do Estado, os elementos étnicos da segunda fase do nosso povoamento estão representados por imigrantes ou por seus descendentes de origem alemã, austríaca, italiana, polonesa, russa, ucraniana, holandesa, sírio – libanesa, em grande número, e por várias outras etnias de menor vulto. Conjuntamente com os descendentes dos outros povoadores fundamentais, essa população por toda a parte aí está construindo uma Babel de todas as raças, irmandadas na mesma obra colonizadora, integrada ao espírito novo de cooperação e de fraternidade, com que marchamos para o futuro25. (grifo nosso).
O Paraná é apresentado como um lugar de convivência harmoniosa
entre os vários povos que se fixaram em seu território. Os imigrantes são
tratados como possuidores de “espírito novo de cooperação” de
“fraternindade”.
24 Estes são apresentados no subcapitulo VI “Fatores étnicos Fundamentais”. MARTINS, Romário. História do Paraná. Curitiba: Travessa dos Editores, 1995. 25 MARTINS, Romário. História do Paraná. Curitiba: Travessa dos Editores, 1995.p. 352.
O termo “Babel de todas as raças”, denota certa contradição do autor.
Babel remete à passagem bíblica que diz respeito à comunicação entre os
povos. Nesta passagem bíblica, os homens tentam edificar uma torre que
alcance o céu. É então que Deus cria uma confusão, ou desorganização que
faz os homens falarem línguas diferentes e, assim, não poderem concluir a
torre. No entanto, para Romário Martins esta “babel” não irá desorganizar os
imigrantes, mas sim irá os “irmandar” em prol da “obra colonizadora” que
direciona para um “futuro”.
Há, ainda, outra reflexão que podemos fazer sobre este termo. Romário
Martins faz uma referência a uma “cooperação” entre diferentes povos, que
com “fraternidade” construirão um novo futuro, uma nova organização, cada um
fazendo sua parte. Assim, é constituída a memória de um lugar onde não há
conflitos.
Nas profissões liberais, nas artes e ciências especializadas, já se salientam paranaenses descendentes de alemães, italianos, poloneses, sírios e judeus. Nas sociedades e centros culturais, beneficentes, educativos, econômicos, esportivos, etc., colaboraram profusamente para o surto de nossas civilizações, valiosos elementos dessas mesmas origens. Diversas são as antigas colônias que se transformaram em vilas e cidades de origem alemã, italiana, polonesa e ucraniana26.
É possível perceber no trecho acima que para Romário Martins, os
imigrantes chegados, no que ele denomina, “2° fase do povoamento” trouxeram
o progresso comercial, industrial, cultural e “colaboraram profusamente para o
surto de nossas civilizações”.
Na obra História do Paraná, Romário Martins apresenta uma história de
governantes, grandes feitos e que pretende abarcar toda a história do Paraná
vivida até ali. Utilizando elementos geográficos e antropológicos visava
demarcar o território e ressaltar a formação da sua população com relação à do
restante do Brasil, bem como mostrar o potencial do Estado para um progresso
futuro.
O discurso presente na obra de Romário Martins foi e, de certa forma,
ainda é grande referência para os estudos de história do Paraná. A
26 Idem
caracterização da população paranaense baseada em sua origem étnica foi
repetida e/ou influenciou muitas produções historiográficas, sociológicas e
antropológicas posteriores. De acordo com Joseli Maria Nunes Mendonça27, no
final da década de 1950 e ao longo de toda década de 1960, um grupo de
pesquisadores ligados a Universidade Federal do Paraná desenvolveu uma
agenda de pesquisas demográficas que tratavam das “transformações
ocorridas com a entrada de novos contingentes étnicos” no Paraná, bem como
sobre as dinâmicas de auto preservação estabelecidas no interior de cada
grupo (alemães, ucranianos, poloneses, etc.).
A obra analisada colabora para que se constitua fronteiras que são
usadas para estabelecer uma identidade para o Paraná, criar um sentimento de
pertencimento e amor a este Estado. Podemos notar, também, a intenção de
legitimar um projeto de sociedade para o Paraná vinculado a uma elite
intelectual.
Romário Martins produziu saberes sobre o Paraná, ocupou espaços de
saber como o instituto Histórico geográfico paranaense (IHGP) entre outras
instituições nacionais e internacionais. Além disto, tinha vínculo com as elites
políticas, tendo em vista que constituiu por cerca de 30 anos o cargo de
Deputado, e com a imprensa, que facilitavam a veiculação dos seus modos de
vista.
Vale retomarmos as considerações de Foucault a respeito de discurso,
feitas no início deste texto. O discurso é construído dentro de relações de
poder para um poder ou ideologia. Tal legitimação, de acordo com Foucault,
ocorre por meio de mecanismos de saber, de lugares de fala que
delimitam/classificam o discurso como sendo verdadeiro. As narrativas a
respeito da identidade do Paraná produzidas por este intelectual, diferenciam e
classificam uma realidade social ao cristalizar uma memória sobre a população
paranaense.
Narrativas como as que estão presentes no livro História do Paraná, ao
enaltecer e celebrar as diferenças e a harmonia entre os grupos,
27 MENDONÇA, J. M. N. Revisitando a história da imigração e da colonização no Paraná
provincial. Revista Antíteses. v.8, n.16, p.204-226, jul./dez. 2015.
apagam/silenciam o dissenso, os conflitos políticos, de classe, de gênero, de
organização social entre descendentes de imigrantes e migrantes. Assim, é
criando um sentimento de unidade harmonia que compõe o chamado “mosaico
étnico do Paraná”.
Fontes: MARTINS, Romário. História do Paraná. Curitiba: Travessa dos Editores, 1995. MARTINS, R. Mensagem do Centro Paranista ao Presidente do estado Dr. Affonso Camargo, 1927.
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