história dos graficos de alagoas

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA MESTRADO EM HISTRIA

FILHOS DO TRABALHO, APSTOLOS DO SOCIALISMO: OS TIPGRAFOS E A CONSTRUO DE UMA IDENTIDADE DE CLASSE EM MACEI (1895/1905)

Osvaldo Batista Acioly Maciel

Recife 2004

2 UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA MESTRADO EM HISTRIA

FILHOS DO TRABALHO, APSTOLOS DO SOCIALISMO: OS TIPGRAFOS E A CONSTRUO DE UMA IDENTIDADE DE CLASSE EM MACEI (1895/1905)

Osvaldo Batista Acioly Maciel

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Histria, sob orientao da Prof. Dr Suzana Cavani Rosas.

Recife 2004

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA MESTRADO EM HISTRIA

FILHOS DO TRABALHO, APSTOLOS DO SOCIALISMO: OS TIPGRAFOS E A CONSTRUO DE UMA IDENTIDADE DE CLASSE EM MACEI (1895/1905)

Osvaldo Batista Acioly Maciel

Banca Examinadora: Prof Dr Suzana Cavani Rosas (orientadora) Prof. Dr. Carlos Alberto Cunha Miranda (examinador interno) Prof. Dr. Luiz Svio de Almeida (examinador externo)

Recife 2004

4 AGRADECIMENTOS

Os agradecimentos necessrios a quem fez uma dissertao circulam entre a compreenso pela ausncia aumentada, por parte de alguns, e a pacincia com a presena constante, por parte de outros. Pai, Me: no consigo falar da saudade que cada vez mais sinto do cotidiano de casa. Obrigado por aceitarem minha opo pelo estudo e pela docncia (em lugares cada vez mais distantes), mesmo sem entender porque ler tanto livro. Aos meus parentes mais prximos e amigos de adolescncia do interior: a turma de Colnia Leopoldina e de Ibateguara; aos meus tios Zequinha e Taninha, e aos seus filhos: tudo comeou junto com vocs! Aos meus colegas de trabalho: no esquecerei a acolhida do estranho no ninho e os perodos de reduo da carga horria. Os nomes de Genilda (Escola de Ensino Fundamental Ktia Pimentel Assuno), Flvio, Vera e Marcondes (Faculdade de Formao de Professores da Mata-Sul Palmares/PE) devem ser citados aqui. Aos meus alunos, agradeo pelo incentivo e pela oportunidade constantemente renovada de poder sempre melhorar o dilogo sobre idias e a comunicao de alguma coisa. Agradeo minha orientadora, Suzana, e ao Svio. Suzana, por ter confiado em mim, ter aceitado a empreitada e me encorajado principalmente na fase da redao. Ao Svio, que me uma referncia desde a graduao, por saber conjugar elogios e observaes crticas em proveitosas conversa. Ao Fernando, que me ajudou desde a escolha do que deveria estudar, e aos demais colegas da ANPUH-AL: Srgio, Arrisete, Lourdes, Ccero, Kleber, Luiz, Amaro, Barros, Marcus Swell (eu li teu texto), Luciano, Talvanes, Edson. Ao Luciano Barbosa; aos meus companheiros de mestrado: os meninos (Eh!) e as meninas (Ah!); e aos professores Marcus Carvalho, Antonio Paulo e Lourival Holanda; Marc Hooffnagel e Tnia Brando. Ao professor Carlos Miranda, agradeo a participao na banca. Sem a dedicao e a pacincia dos profissionais que trabalham nas instituies que preservam parte da nossa memria social este trabalho no seria possvel. Agradeo sem minimizar os dbitos Lindinalva (Arquivo Pblico do Estado de Pernambuco), Meire e Vnia (Instituto Histrico e Geogrfico de Alagoas), e ao Messias e ao Moacir SantAnna (Arquivo Pblico do Estado de Alagoas). O prof. Douglas Apratto Tenrio, atravs de um contato pessoal, tornou menos incerto o acesso dirio hemeroteca do IHGAL e possibilitou

5 verificar um material iconogrfico sobre a imprensa alagoana, existente na SECOM. L, agradeo ao acolhimento de Nielba, Arago e sua equipe (set/out de 2002). Ao C. A. de Histria da Universidade Federal de Alagoas devo a possibilidade de apresentar uma parte de meus estudos decorrentes desta pesquisa, na IV Semana de Histria da UFAL. L, pude contar com a leitura discordante e respeitosa de Marcus Ricardo. Creio que, to bom quanto saber que hoje existe um ncleo articulado da ANPUH no Estado para congregar os profissionais de histria, contar com a presena de um C. A. irrequieto e persistente como este. Agradeo Fundao de Amparo a Pesquisa do Estado de Alagoas FAPEAL, pela concesso da Bolsa de Mestrado. Cito, ainda, e com alegria, o GT Mundos do Trabalho da ANPUH. O contato com seus membros no XXII Simpsio Nacional de Histria e quelas tardes de discusso disseram-me que havia encontrado um timo ambiente acadmico. Atravs do GT, conheci virtualmente o Artur Vitorino que, alm de me enviar o seu livro sobre os grficos do Rio e de So Paulo, disponibilizou-me um texto indito. deveras agradvel saber que existem pessoas como ele. Iguaizinhas ao Ulisses Rafael, que apontou algumas questes relativas ao primeiro captulo deixei para outro momento aquele arquivo que voc me mandou! Por fim, agradecerei a trs mulheres. Sara e Kataline sofreram os abusos de compartilhar um apartamento comigo neste perodo. Tacitamente, elas combinaram que me iriam ajudar compreendendo ou minha ausncia ou minha falta extrema nos afazeres domsticos (juro que em maro em ajeito o que est quebrado no apartamento!). E Ktia, minha namorada: (lembra de quando comeamos a passar as tardes de domingo dentro do carro, estudando juntos textos diferentes, s pra dizer que estvamos juntos? Ou da presteza de sua me e do silencioso consentir de sua filha Letcia?) Agora que tudo passou, no foi fcil?

6 RESUMO

Esta dissertao discute a constituio de uma identidade coletiva dos trabalhadores de Macei atravs da atuao dos tipgrafos no perodo entre 1895 e 1905. Aliando os discursos de valorizao do trabalho com o do socialismo da II Internacional, na forma como so entendido no Brasil, estes trabalhadores estabelecem uma identidade de classe atravs da organizao de entidades representativas dos trabalhadores, da defesa e reivindicao de direitos, bem como atravs da crtica sociedade vigente e explorao burguesa.

7 ABSTRACT

This dissertation discuss the constitution (establishment) of a common identity for the laborers of Macei, by the typographer performance among 1895 end 1905. Joining the speech of increasing the work value with the socialism speech from the II International, as well as its comprehended in Brazil, these laborers establish an identity class by the representative entities organizations, of defense and revindication of rights, as well as by the criticism to the capitalist society and the social profiteer.

8 SUMRIO INTRODUO................................................................................................................... Trajetrias historiogrficas.................................................................................................. Novas perspectivas.............................................................................................................. Estudos regionais: Alagoas................................................................................................. O quadro atual..................................................................................................................... Consideraes tericas e metodolgicas............................................................................. CAPTULO I ESPAO URBANO, MUNDO DO TRABALHO................................... O mapa de Macei............................................................................................................... A populao......................................................................................................................... O porto e os estivadores...................................................................................................... Carroceiros e condutores..................................................................................................... Vendedores.......................................................................................................................... Iluminao............................................................................................................................ Marginalizao..................................................................................................................... Operrios da cidade.............................................................................................................. Higiene, abastecimento e moradia....................................................................................... Ferrovirios.......................................................................................................................... Os teceles das fbricas....................................................................................................... O processo de trabalho......................................................................................................... CAPTULO II OS TIPGRAFOS E A IMPRENSA DE MACEI............................... A composio dos trabalhadores grficos............................................................................ O processo de trabalho......................................................................................................... Protagonistas........................................................................................................................ Joo Ferro............................................................................................................................. Joaquim Moreno.................................................................................................................. Joo Ezequiel....................................................................................................................... Ladislau Rocha..................................................................................................................... 11 13 17 20 23 25 31 31 33 35 37 38 41 42 46 49 52 56 62 66 66 72 80 81 82 83 83

9 Outros tipgrafos................................................................................................................. Imprensa operria................................................................................................................. Os jornais............................................................................................................................. A insero da imprensa operria entre os trabalhadores...................................................... CAPTULO III OS TIPGRAFOS, O TRABALHO E A IDENTIDADE DE CLASSE............................................................................................................................... Mutualidades....................................................................................................................... A Associao Tipogrfica Alagoana................................................................................... O Centro Proletrio Alagoano............................................................................................. A Unio Operria Alagoana................................................................................................. A elite alagoana e o seu projeto de tica disciplinar do trabalho......................................... Os tipgrafos e a identidade coletiva dos trabalhadores...................................................... A tipografia: uma arte, um ofcio nobre............................................................................... CAPTULO IV O SOCIALISMO DOS TIPGRAFOS................................................. O socialismo de fim de sculo............................................................................................. Influncias e contatos........................................................................................................... Socialismo: cientificismo, evolucionismo, positivismo....................................................... Joaquim Moreno e a unidade dos trabalhadores.................................................................. Joo Ezequiel: socialismo e catolicismo.............................................................................. O socialismo de Joo Ferro.................................................................................................. CONCLUSO..................................................................................................................... FONTES.............................................................................................................................. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................................................................ ANEXO 95 95 98 105 106 109 112 114 119 116 122 127 129 132 135 143 145 146 84 85 88 90

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Um

historiador

deve

estar

decididamente interessado, muito alm do permitido pelos teleologistas, na qualidade de vida, nos sofrimentos e satisfaes daqueles que vivem e morrem em tempo no redimido

Edward Palmer Thompson

11 INTRODUO

Na virada para o sculo XX, os grficos de Macei elaboram um sentido positivo para o trabalho e uma identidade coletiva (classista) para os trabalhadores. Esta conscincia para si, de setores ativos da classe, articulada com o discurso socialista, e transparece de forma mais evidente na necessidade de associao e nas crticas ao projeto republicano e ordem social vigente, oligrquica e capitalista. O objetivo desta dissertao caracterizar e discutir este processo de articulao de uma identidade coletiva de trabalhadores com o socialismo na capital alagoana, entre 1895 e 1905. Quanto documentao utilizada, nos concentramos principalmente na imprensa alagoana, preferencialmente a engajada, e na imprensa operria do Recife que possusse vnculos diretos com os trabalhadores maceioenses. Discursos doutrinrios, artigos de opinio, notcias e notas relativas aos trabalhadores e ao socialismo no Estado constituram-se em nosso material preferencial. Utilizamo-nos, tambm, da historiografia sobre a classe trabalhadora produzida principalmente no Brasil e de estudos sobre a histria de Alagoas que se concentrassem no perodo estudado e/ou em temticas que tangenciassem nosso objeto. O primeiro captulo apresenta aspectos gerais acerca dos principais ofcios e ocupaes dos trabalhadores urbanos de Macei, e dos operrios das fbricas de tecidos que circunvizinham a cidade, destacando as condies e o processo de trabalho, bem como o modo disciplinar que se vai efetivando no ambiente da produo e da prestao de servios. A coero direta e difusa que se estabelece sobre os trabalhadores no se circunscreve ao ambiente de trabalho. Ela expande-se para a forma da sociabilidade acontecida nas ruas e nos lares proletrios. Neste sentido, destacamos alguns dos traos mais evidentes da formao do espao urbano de Macei no perodo estudado, que colaboram para a restrio do viver operrio, para a normatizao de condutas ligadas s classes subalternas. Explorar, mesmo que de modo sumrio, alguns aspectos ligados s condies materiais de existncia dos trabalhadores urbanos de Macei, ajuda-nos a entender as caractersticas assumidas pelos discursos da valorizao do trabalho e do socialismo, na medida em que tais discursos esto circunstanciados pelo contato direto com a vida dos trabalhadores e com o cotidiano das camadas mais pobres da cidade. basicamente atravs da imprensa operria que vislumbramos a circulao das idias socialistas em Macei. Os maiores responsveis tanto pela propagao deste ideal, quanto pelas principais tentativas de organizao de entidades classistas que representem os

12 trabalhadores, so os profissionais que atuam no setor grfico com nfase aos compositorestipogrficos. Desta forma, achamos necessrio estudar com mais detalhes esta categoria de trabalhadores, principalmente os que atuam nas oficinas tipogrficas da imprensa peridica e diria. Apresentamos as vrias atividades envolvidas no processo de confeco dos jornais e as condies de trabalho nestas oficinas, alm de breves notas biogrficas dos grficos mais engajados na organizao dos trabalhadores. Esta a tarefa empreendida no segundo captulo. O esclarecimento de aspectos relacionados ao trabalho dos grficos ajuda-nos a caracterizar estes profissionais como representantes legtimos dos trabalhadores, e a entender as condies de produo dos rgos que veicularam as idias socialistas. Ajuda-nos, tambm, a esclarecer as condies materiais da articulao da primeira experincia efetiva de associao de trabalhadores com carter eminentemente classista: a Associao Tipogrfica Alagoana, e da organizao posterior do Centro Proletrio Alagoano e da Unio Operria Alagoana.1 O terceiro captulo concentra-se em caracterizar traos da constituio de uma identidade coletiva dos filhos do trabalho e de sua valorizao, atravs da atuao dos profissionais grficos ora representados em sua entidade coletiva (a Associao Tipogrfica Alagoana, no perodo entre 1897 e 1898), ora individualmente. Desta forma, entendemos que era necessrio explorar dois aspectos relacionados a esta questo. Primeiro, necessitvamos reconstruir (mesmo que parcialmente) as principais caractersticas da tica disciplinar do trabalho veiculada pela elite local, de conformao da classe trabalhadora s normas de comportamento socioprofissionais condizentes com o projeto oligrquico e capitalista. Isto tendo em vista que a constituio de identidades coletivas assim como, de maneira anloga, acontece com as classes sociais se d de modo relacional. Assim, do mesmo modo que os trabalhadores so alvos de um projeto de disciplinamento e enquadramento do seu mundo do trabalho subordinado ao capital, eles forjam para si uma outra identidade de valorizao positiva de seu ofcio, de resistncia e oposio classista ao projeto dos grupos que se aliam ao capital. Em segundo lugar, tornava-se mister discutir as possveis formas de insero do discurso de uma verdadeira elite de operrios, ativos e engajados, no conjunto da classe trabalhadora como um todo. Isto considerando que uma identidade de classe ou de grupo social, mesmo sendo expressa em um contedo programtico e discursivo inteligvel, precisa atingir o mbito do cotidiano, dos hbitos e atitudes internalizados nas prticas sociais efetivadas na rotina do dia-a-dia.

Como no existe um consenso na bibliografia especializada em torno da forma de citao, resolvemos atualizar a grafia das denominaes das entidades associativas. O nome dos estabelecimentos comerciais e a transcrio de trechos dos documentos, no entanto, seguir o padro ortogrfico da poca. Inclusive, mantivemos eventuais erros de composio.

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13 O quarto e ltimo captulo destinado a apresentar as principais caractersticas do socialismo como era entendido pelos grficos. Portanto, discutimos o socialismo atravs dos reflexos oriundos da II Internacional, de seus autores e orientaes, e do imperialismo cultural francs. Por conta da documentao disponvel trabalhada, privilegiamos trs socialistas: Joaquim Moreno, Joo Ezequiel e Joo Ferro. Adeptos do socialismo ecltico e reformista, interpretamos que este discurso est circunscrito aos influxos tericos do perodo, cultura poltica da sua poca e s condies de efetivao das estratgias propugnadas. Assim, ele no entendido como uma deturpao da essncia do socialismo, como um discurso inconsciente, mas como um discurso situado em seu tempo, sofrendo das peculiaridades do contexto em que realizado. Antes de entrarmos nas consideraes tericas e metodolgicas, discutiremos em linhas gerais algumas das principais obras da historiografia da classe trabalhadora produzida no Brasil. Alm de um repasse histrico sobre o tratamento dado temtica, buscamos refletir acerca das implicaes tericas contidas no desenvolvimento desta rea de estudos. Para isto, utilizamos tambm algumas obras produzidas na literatura estrangeira sobre o tema que influenciaram os rumos das pesquisas no pas. Tendo em vista o recorte espacial da pesquisa, dedicamos um tpico aos estudos sobre esta temtica no Nordeste e, particularmente, em Alagoas.

I TRAJETRIAS HISTORIOGRFICAS

Num artigo intitulado Histria operria e ideologia, Eric Hobsbawm empreende uma anlise dos estudos sobre a histria dos trabalhadores feita de dentro do movimento, criticando-os por serem formal ou informalmente ortodoxos. Esta historiografia, dentre outras caractersticas, revelou tanto uma tendncia de identificar classes operrias com movimento operrio, ou mesmo com organizaes, ideologias ou partidos especficos, como tornou-se tanto um pouco arqueolgica quanto preocupada em atribuir aos movimentos operrios a importncia que ningum mais parecia conceder a eles.2 Cremos que esta seja uma tendncia muito forte no surgimento de uma histria do trabalho para qualquer pas, na medida em que este segmento da sociedade comumente tratado pelos intelectuaisHOBSBAWM, Eric. Histria operria e ideologia. In: Mundos do trabalho: novos estudos sobre Histria Operria. 2ed. Trad. de Waldea Barcellos e Sandra Bedran Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. (pp17-33).pp. 18-19.2

14 em um plano inferior. Da que os trabalhadores de modo geral s surgiam, enquanto objeto privilegiado de estudo, no interior de uma opo poltica clara ligada ao movimento operrio. Este fato explicava, em boa medida, a tendncia a salientar determinados aspectos positivos do movimento relacionado corrente poltica da pessoa ou grupo que escrevia tal histria. O caso brasileiro, no fugindo regra, exemplar deste posicionamento. Segundo Cludio Batalha,3 a produo militante, de no-acadmicos, que dar os primeiros estudos sobre a classe operria no Brasil, assumindo, entre outras, a forma das memrias. Como exemplo de testemunho de um dos primeiros militantes comunistas brasileiros, as memrias do militante alagoano Octavio Brando, contidas nos dois volumes de Combates e batalhas,4 inserem-se neste tipo de produo. Nelas vem-se recordaes familiares e defesas apaixonadas dos trabalhadores, discusses tericas e um rico conjunto de dados sobre os primeiros anos do movimento operrio brasileiro e de sua imprensa (principalmente para Alagoas, Pernambuco e Rio de Janeiro). Revelam-se, ainda, aspectos do pensar comunista dos primeiros anos da dcada de 1960 (anos em que as memrias foram escritas). J as primeiras iniciativas acadmicas de estudo desta temtica no Brasil advm da Sociologia marcadamente a da USP. Segundo Ismnia de Lima Martins,5 pesquisadores como Fernando Henrique Cardoso, Lencio Martins Rodrigues, Jos Albertino Rodrigues e Azis Simo, dentre outros, ou enfatizavam a relao dos trabalhadores com os sindicatos pelas origens regionais e culturais da classe operria ou ento investigavam a vinculao estrutural existente entre o sindicalismo populista e o Estado. Ainda segundo esta autora, pelo fato de ser tardiamente explorado pelos historiadores, este tema ressentia-se da falta de uma Histria Social que dialogasse com a Sociologia em seus esforos interdisciplinares.6 Com o auxlio de socilogos, mas tambm contando com historiadores, cria-se um espao acadmico de produo sobre o movimento operrio nos anos 1970. Enquanto brasilianistas como J. W. F. Dulles e Sheldon L. Maran, dentre outros, introduziram um uso muito mais vasto e rigoroso das fontes, particularmente da imprensa operria, Luiz Werneck Vianna e Boris Fausto, em conjunto com outros pesquisadores, consolidam esta rea de estudos em nossas universidades, criando programas e linhas de pesquisas.7

BATALHA, Cludio H. M. A historiografia da classe operria no Brasil: Trajetria e tendncias. In: FREITAS (de), Marcos Cezar (org.) Historiografia brasileira em perspectiva. 2ed. So Paulo: Contexto, 1998. pp. 146-147. 4 BRANDO, Octavio. Combates e batalhas memrias (2 vol.).So Paulo: Alfa-mega, 1978. 5 MARTINS, Ismnia de Lima. Anotaes sobre a Histria do Trabalho no Brasil. In: Revista Brasileira de Histria. So Paulo: Contexto/ANPUH, Vol. 15, N 30, 1995. (pp. 91-100). pp.92-93. 6 IDEM, IBIDEM. 7 BATALHA, Cludio. Op. cit., pp.150-151.

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15 Dois pesquisadores que iro influenciar decisivamente os rumos da pesquisa sobre a histria do trabalho neste perodo so Paulo Srgio Pinheiro e o citado Boris Fausto. O primeiro deve ser destacado no s pelas coletneas organizadas em colaborao com Michael Hall,8 que tiveram ampla repercusso no cenrio brasileiro e latino-americano, mas tambm pela sua tese de doutoramento, defendida em 1971.9 Apesar de ser um estudo de Cincia Poltica, ao fazer uma interrogao sobre a presena da classe operria na cena poltica durante os anos 1920, aborda de forma pioneira as relaes de poder estabelecidas entre os operrios organizados e o sistema poltico brasileiro da Primeira Repblica. No nosso entendimento, este estudo que anuncia as linhas gerais de interpretao sobre o movimento operrio no Brasil para o perodo de sua institucionalizao (enquanto temtica de estudos) nos anos 1970. Nas suas pesquisas do perodo, o autor encara o estudo da classe operria como sendo a chave para o entendimento da transio da histria do Brasil no sculo XX.10 Esta perspectiva despertou a importncia da temtica junto comunidade dos historiadores quele momento. Boris Fausto, por sua vez, possui uma importncia que em boa medida est relacionada influncia que seu Trabalho urbano e conflito social, de 1976, exercer na historiografia sobre questes sociais no Brasil.11 Originalmente tese de Livre-docncia, este estudo marcou poca, tanto por aliar uma metodologia apurada no trato histrico como por respaldar academicamente uma leitura do movimento operrio que condizia com o imaginrio das organizaes de esquerda do perodo (hegemonicamente comunistas). No entanto, cabe ressaltar que o autor defende no estudo alguns pontos polmicos, como as noes de um trabalhismo e reformismo para o movimento organizado do Rio de Janeiro, e de um sentido mais doutrinrio e classista para os operrios paulistas. H nele tambm uma tentativa bastante problemtica de distinguir a classe operria, a massa desorganizada, do ncleo minoritrio de quadros e da liderana de modo taxativo, salientando em conseqncia disto a pouca insero dos ideais anarquistas no seio desta massa de trabalhadores. Segundo Cludio

PINHEIRO, Paulo Srgio e HALL, Michael M. A classe operria no Brasil (1889-1930)- documentos (vol. 1 o movimento operrio). So Paulo: Alfa-mega, 1979; e (Vol. 2: condies de vida e de trabalho, relaes com os empresrios e estado). So Paulo: Brasiliense, 1981. 9 Anos depois o trabalho publicado, sob o ttulo de Poltica e trabalho no Brasil. 2ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. 10 PINHEIRO, Paulo Srgio. Op. cit., p.10. Como afirmava, poca, essa formulao se inspira em pesquisas em curso da professora Emilia Viotti da Costa, ento realizadas na Universidade de Yale. Em outro artigo ele faz a mesma afirmao.Cf.: O operariado industrial na Primeira Repblica. In: FAUSTO, Boris (dir.) Histria Geral da Civilizao Brasileira O Brasil Republicano. TOMO III, Vol. 2 Sociedade e Instituies (1889-1930). 2ed. Rio de Janeiro/ So Paulo: DIFEL, 1978, p.137. 11 Cf. FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito social (1890-1920). Rio de Janeiro / So Paulo: DIFEL, 1976.

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16 Batalha,12 este aspecto, dentre outros, levaria o autor a possuir uma tendncia a julgar negativamente o movimento operrio. Claro, mesmo neste perodo, alguns estudos refletem uma orientao contrria a esta, e tendencialmente favorvel aos anarquistas, como o caso dos escritos de Edgar Rodrigues13 e, um pouco depois, de Francisco Foot Hardman.14 A trajetria da pesquisa de Edgar Rodrigues, inclusive, sintomtica do carter poltico destes estudos. Em sua pesquisa sobre a histria da imprensa social no Brasil, por exemplo, apesar de deixar claro que sua investigao est distante de ser um trabalho completo, ele espera contribuir com outros estudos para o conhecimento de um dos perodos mais relevantes da construo do movimento operrio brasileiro.15 Mais adiante, de qualquer modo, ele reafirma sua posio anarquista, e faz uma severa crtica a estudiosos do operariado que s percebem o seu movimento quando ele de alguma forma comeou a ser domesticado pela burocracia do estado [sic] ou dirigido por essa vanguarda detentora da verdade histrica: o partido comunista.16 E conclui que tais pesquisadores

quando usam esse material fazem-no com esprito de mdico legista. Para eles, os jornais operrios so cadveres a dissecar para valorizar seus ttulos acadmicos [...] estes historiadores, invariavelmente, concluem o prconcebido: as idias anarquistas no estavam adequadas realidade brasileira17

Maria Nazareth Ferreira assume, em relao aos primrdios da imprensa operria, postura diferente da advogada por Edgar Rodrigues.18 Dois pontos nesse estudo nos interessam aqui. Primeiro, ela aponta para as relaes entre comunicao e processo de urbanizao, e segundo, para a posio de destaque dos operrios grficos no movimento operrio na medida em que eles eram os porta-vozes das idias e notcias que embalavam a ao operria. Esta posio gerava conflitos com trabalhadores de outros setores, em que muitas vezes os grficos foram acusados de tomar decises individualistas que prejudicavam o movimento operrio, j que qualquer atitude de seu sindicato refletia imediatamente nas

BATALHA, Cludio. Op. cit., p. 151. RODRIGUES, Edgar. Nacionalismo e cultura social (1913-1922). Rio de Janeiro: Laemmert, 1972; e Pequena histria da imprensa social no Brasil. Florianpolis: Insular, 1997. 14 HARDMAN, Francisco Foot. Nem ptria, nem patro!: memria operria, cultura e literatura no Brasil. 3ed. rev. e ampl. - So Paulo: Ed. UNESP, 2002. A primeira edio, ligeiramente diferente desta, de 1983. 15 RODRIGUES, Edgar. Pequena histria da imprensa social no Brasil. Op. cit., p. 12. 16 IDEM, IBIDEM. p. 34. 17 IDEM, IBIDEM. 18 FERREIRA, Maria Nazareth. A imprensa operria no Brasil (1880-1920). Petrpolis: Vozes, 1978. Uma outra posio at certo ponto coincidente com esta a de SODR, Nelson Werneck. Histria da imprensa no Brasil. 4ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1999.13

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17 outras categorias profissionais.19 Leila Blass, apesar de trabalhar com uma conjuntura posterior (a da crise dos anos 1920), interpreta de modo semelhante o tema.20 Estudos mais recentes, como os de Artur Vitorino e Lus Balkar Pinheiro,21 revelam um aprofundamento no tratamento da problemtica tanto da constituio de uma imprensa operria, como da relao estabelecida entre os tipgrafos e as demais categorias de trabalhadores. De modo geral, poderamos afirmar que tais estudos apontam para uma regionalizao da discusso e para o entendimento da classe dos tipgrafos como uma entre outras categorias de trabalhadores ativos. Mesmo levando-se em conta a ampliao dos tipos de fontes manejados nestas pesquisas, a importncia da imprensa operria como documentao excepcional para a reconstruo da histria do movimento operrio no pas no deixa de continuar sendo salientada.

II - NOVAS PERSPECTIVAS

Num outro momento histrico, no incio dos anos 1980, a conjuntura de reivindicaes sociais pela qual passava o Brasil faz surgir novos grupos de presso popular (as chamadas minorias) e o chamado novo sindicalismo. A discusso acerca dos movimentos sociais ser reconfigurada, pondo em questo o papel da classe operria. Em parte, estes questionamentos derivam, como reflexos tardios, das manifestaes estudantis de 1968. Eder Sader expressa com fora a novidade daquele momento:22

Eu no estava simplesmente diante de um momento de ruptura nos padres de legitimao da ordem [...] o fim dos anos 70 assistia emergncia de uma nova configurao de classe. Pelos lugares onde se constituam como sujeitos coletivos; pela sua linguagem, seus temas e valores; pelas caractersticas das aes sociais em que se moviam, anunciava-se o aparecimento de um novo tipo de expresso dos trabalhadores, que poderia ser contrastado com o libertrio , das primeiras dcadas do sculo, ou com o populista, aps 1945. (grifo nosso)

IDEM, IBIDEM. p. 121. BLASS, Leila Maria da Silva. Imprimindo a prpria histria: o movimento dos trabalhadores grficos de So Paulo no final dos anos 20. So Paulo: Loyola, 1986. 21 Cf. VITORINO, Artur Jos R. Mquinas e operrios: mudana tcnica e sindicalismo grfico (So Paulo e Rio de Janeiro, 1858-1912). So Paulo: Anablume/FAPESP, 2000; PINHEIRO, Lus Balkar. Imprensa e mundos do trabalho na Belle poque manauara. In: XXII Simpsio Nacional de Histria da ANPUH. Joo Pessoa, PB. Anais do ... Joo Pessoa: ANPUH-PB, 2003. 22 SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena: experincias, falas e lutas dos trabalhadores da Grande So Paulo. 1970-1980. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. pp. 36-37.20

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18 Do ponto de vista da produo historiogrfica, neste perodo tiveram forte impacto no Brasil as obras de trs historiadores europeus. Primeiramente, dois inovadores marxistas ingleses: Edward Thompson23 e Eric Hobsbawm,24 e logo depois as pesquisas de Michelle Perrot.25 Entre os efeitos advindos desta Histria Social podem ser enumerados a ampliao dos temas e enfoque, quando momentos de luta excepcionais cederam espao para as condies de existncia dirias; ocorre tambm uma ampliao da cronologia, alm da diversificao das fontes tradicionais, trazendo mudanas aos recortes geogrficos.26 Particularmente, um artigo de Thompson27 ter grande impacto, na medida em que questiona o carter coisificado que se imprime noo de classe social, possibilitando a recuperao da historicidade constitutiva dos grupos sociais.28 Deste contexto, so ilustrativas as obras de Maria Auxiliadora Guzzo de Decca,29 de Sidney Chalhoub30 e de Margareth Rago.31 Esta ltima constri uma nova problemtica para estudar os trabalhadores, aliando Edward Thompson e Michel Foucault,32 alm de romper com o paradigma de interpretao comunista:

Embora situados em campos tericos e metodolgicos diferenciados, Thompson e Foucault chamam a ateno para outros momentos do exerccio da dominao burguesa, possibilitando recuperar as prticas polticas noorganizadas do proletariado e desfazer o generalizado mito do atraso e do apoliticismo dos libertrios33

THOMPSON, Edward P. A formao da classe operria inglesa. Trad. de Denise Bootmann (vol I e III) e de Renato Busatto Neto e Claudia Rocha de Almeida (vol II) Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; e Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. Trad. de Rosaura Eichemberg; reviso tcnica de Antonio Negro, Cristina Meneguello e Paulo Fontes So Paulo: Cia. das Letras, 1998. 24 HOBSBAWM, Eric J. Os trabalhadores: estudos sobre a histria do Operariado. 2ed. Trad. de Marina Leo Teixeira Viriato de Medeiros - So Paulo: Paz e Terra, 2000; Mundos do trabalho: novos estudos sobre Histria Operria. 2ed. Op. cit.; e Pessoas extraordinrias: resistncia, rebelio e jazz. Trad. de Irene Hirsch e Llio Loureno de Oliveira - So Paulo: Paz e Terra, 1998. 25 PERROT, Michelle. Os excludos da histria: operrios, mulheres e prisioneiros. 2ed. Trad. de Denise Bottman - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. 26 Cf. BATALHA, Cludio. Op. cit., p.153-154. 27 Referimo-nos ao famoso artigo A sociedade inglesa no sculo XVII: luta de classes sem classes?, que circulou primeiramente no Brasil atravs de uma traduo em espanhol e que teve suas principais idias reelaboradas em uma verso mais recente nos artigos Introduo: costume e cultura e Patrcios e plebeus In: Costumes em comum. Op. cit. (pp. 13-85) 28 Esta mudana de perspectiva esteve fortemente atrelada ao Programa de Ps-Graduao em Histria Social do Trabalho, da Unicamp, ao longo da dcada de 1980. 29 DECCA, Maria Auxiliadora Guzzo de. A vida fora das fbricas: cotidiano operrio em So Paulo 19201934. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 30 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle poque. 2ed. Campinas: Ed. Unicamp, 2001. 31 RAGO, Margareth. Do cabar ao lar: a utopia da cidade disciplinar Brasil 1890-1930. 2ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. 32 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrpolis: Vozes, 1977. 33 RAGO, Margareth. 1985. Op. cit., p14.

23

19 Como decorrncia direta deste novo tratamento, percebemos um enriquecimento considervel nas formas de abordagem da Histria do Trabalho no Brasil desde ento. A ttulo de ilustrao, as novas pesquisas exploram, dentre outros aspectos, categorias como a de representao,34 recuam o perodo de estudo sobre a construo do mundo do trabalho para todo o sculo XIX,35 promovem interseces entre a temtica do trabalho e outras, como a educao.36 Em outra vertente, passa a ser explorada a construo de uma tica e de uma razo para a sociedade do trabalho capitalista que interiorize uma disciplina/submisso nos trabalhadores.37 E novas fontes so empregadas, como no caso das imagens na pesquisa de Maria Ciavatta.38 Por maiores que tenham sido as inovaes ocasionadas ao longo das dcadas de 1980 e 1990, necessrio ressaltar um trao em comum nestes estudos de historiadores sobre o tema mais amplo do Trabalho. Sua perspectiva a da Histria Social, do trato que no se desgarre por demais das evidncias. A partir deste entendimento, so poucos os estudos que encaram os trabalhadores e seu mundo atravs de uma tica culturalista extremada, como aponta o estudo de Jacques Racire.39 Um outro campo da Histria do movimento operrio que vem ganhando fora desde ento o da investigao das formas de recepo e elaborao das idias socialistas entre os primeiros militantes. Nesta perspectiva, o filsofo Leandro Konder procura compreender como se d a interpretao das idias de Marx no contexto histrico da Primeira Repblica, concluindo que o nascente marxismo brasileiro foi levado a se adaptar a um quadro caracterizado pelo esvaziamento sistemtico da reflexo.40 Com carter mais historiogrfico, os estudos de Marcus Vinicius Pansardi e de Cludio Batalha no julgam a deturpao das idias socialistas.41 Pelo contrrio, tentam compreender as condies e formas dePESAVENTO, Sandra Jatahy. Trabalhadores e mquinas: representaes do progresso (Brasil: 18801920). In: Anos 90 Revista do Programa de Ps-Graduao em Histria. Porto Alegre, Ed. UFRG, N 2, maio de 1994 (pp. 165-82). 35 BARREIRO, Jos Carlos. Instituies, trabalho e luta de classes no Brasil do sculo XIX In: Revista Brasileira de Histria. So Paulo, ANPUH/Marco Zero, Vol. 7, N 14. Mar/ago de 1987, (pp. 131-49); e SOARES, Luis Carlos. Os escravos de ganho no Rio de Janeiro do sculo XIX. In: Revista Brasileira de Histria. So Paulo, Vol. 8, N 16, mar-ago/1988, (pp. 107-42). 36 GITAHY, Maria Lcia Caira ET ALLI. Trabalhadores urbanos e ensino profissional. Campinas: Ed. Unicamp, 1986. 37 COLBARI, Antonia L. tica do Trabalho: a vida familiar na construo da identidade profissional. So Paulo: Letras e Letras/Ed. UFES, 1995; e CARMO, Paulo Srgio do. Histria e tica do trabalho no Brasil. So Paulo: Moderna, 1998. 38 CIAVATTA, Maria. O mundo do trabalho em imagens: a fotografia como fonte histrica (Rio de Janeiro, 1900-1930). Rio de Janeiro: DP&A, 2002. 39 RACIRE, Jacques. A noite dos proletrios: arquivos do sonho operrio. So Paulo: Cia das Letras, 1988. 40 KONDER, Leandro. A derrota da dialtica: a recepo das idias de Marx no Brasil, at o comeo dos anos trinta. Rio de Janeiro: Campus, 1988, p.199. 41 PANSARDI, Marcus Ricardo. O socialismo dos modernos e o socialismo dos antigos: a incorporao do vocabulrio ideolgico da II Internacional pelo movimento socialista brasileiro. In: Histria Social.34

20 circulao/divulgao destas idias, destacando o papel da II Internacional (1889), mas tambm a forte tradio cultural francesa no Brasil, que terminaria por explicar a importncia de pensadores naquela conjuntura, hoje verdadeiros desconhecidos. Este tipo de posicionamento nos ajudou sobremaneira a lanar um olhar menos preconceituoso s idias defendidas, leitura e escrita que se realizavam em torno do socialismo no perodo estudado.

III ESTUDOS REGIONAIS: ALAGOAS

Com a exceo do livro de Francisco Foot Hardman e Victor Leonardi,42 que traa um panorama geral da industrializao e do trabalho no Brasil, e de alguns textos paradidticos que fazem afirmaes de ordem mais geral, num esforo de sntese,43 quase no existem estudos que abordem a temtica das classes trabalhadoras em mbito efetivamente nacional. Mesmo obras que possuem ttulos abrangentes, como o caso de Anarquistas, imigrantes e o movimento operrio brasileiro (1890-1920), de Sheldon Leslie Maram, na verdade se configuram como pesquisas de carter regional. No prefcio desse livro, por exemplo, Maram indica que baseou sua anlise nas trs cidades que eram os centros da indstria, do comrcio e do sindicalismo: Rio de Janeiro, So Paulo e Santos.44 Ou seja, o ttulo da obra, de carter mais abrangente, se constitui na verdade como estratgia editorial, no refletindo a dimenso geogrfica dada ao objeto em questo. Na medida, ento, em que as condies apresentadas para o eixo Rio de Janeiro - So Paulo, por suas prprias especificidades, no so aplicveis para as outras regies do pas, precisa ser pensada com mais ateno a contribuio da histria regional histria do operariado no Brasil. Um bom exemplo desta proposta o que vem sendo realizado no Rio Grande do Sul.45

Campinas: UNICAMP, N 1, 1994, (pp. 65/94); e BATALHA, Cludio H. M. A difuso do marxismo e os socialistas brasileiros na virada do sculo XIX. In: MORAES, Joo Quartin de (org.) Histria do marxismo no Brasil vol II: os influxos tericos. Campinas: Ed. Unicamp, 1995, (pp. 11-44). 42 HARDMAN, Francisco Foot e LEONARDI, Victor. Histria da indstria e do trabalho no Brasil (das origens aos anos 20). 2ed. So Paulo: tica, 1991. 43 Cf. SEGATTO, Jos Antonio. A formao da classe operria. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987; e REZENDE, Antonio Paulo de M. Histria do movimento operrio no Brasil. 3ed. So Paulo: tica, 1994. 44 MARAN, Sheldon L. Anarquistas, imigrantes e o movimento operrio brasileiro (1890-1920) Traduo de Jos Eduardo Ribeiro Moretzsohn. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p.11. 45 Ver especialmente PETERSEN, Silvia Regina. Cruzando fronteiras: as pesquisas regionais e a histria operria brasileira. In: ARAUJO, ngela M. C. (org.) Trabalho, cultura e cidadania: um balano da histria social brasileira. So Paulo: Scritta, 1997. (pp. 85-103)

21 Para o Nordeste, especificamente, so poucos os estudos sistemticos que abordam a histria do trabalho. Alguns pesquisadores, quando falam sobre o desenvolvimento econmico da regio, terminam fazendo consideraes sobre a transio para o trabalho assalariado, sobre a formao do mercado de trabalho e a sua relao com o surgimento das grandes cidades.46 Outros se dedicaram esporadicamente temtica, produzindo artigos de circulao restrita.47 Alguns programas de Ps-Graduao, aos poucos, vm produzindo um material que comea a revelar as especificidades da histria da classe trabalhadora no Nordeste. Tendo em vista nosso recorte, analisaremos especificamente o caso de Alagoas, fazendo antes uma breve nota acerca da historiografia sobre o tema em Pernambuco. At onde conhecemos, para Pernambuco contamos com um artigo de Alusio Franco Moreira e com a coletnea sobre Manifestaes operrias e socialistas em Pernambuco.48 Junto com esta produo, destacam-se os estudos realizados pelo antroplogo Jos Srgio Leite Lopes49 e por Antonio Paulo Rezende.50 Este ltimo, em sua dissertao, reconstri a difcil trajetria do movimento operrio no Recife, destacando as disputas entre o sindicalismo cristo, o socialismo reformista e o anarco-sindicalismo pela hegemonia do movimento. Destaca ainda a problemtica da formao da classe trabalhadora em uma regio de capitalismo perifrico e a construo de sua identidade.51 Para o caso especfico de Alagoas, o estudo de Moacir Medeiros de SantAnna sobre as primeiras greves no Estado, e os de Luiz Svio de Almeida sobre aspectos do movimento operrio, inauguram, em forma de artigos, o estudo dos segmentos no vistosos nesta sociedade.52 O pioneirismo destes artigos lhes confere, por vezes, um carter descritivo. NesteCf. EISEMBERG, Peter G. Modernizao sem mudana a indstria aucareira em Pernambuco (18401910). Trad. de Joo Maia - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.; PERRUCI, Gadiel. A Repblica das usinas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978; e GAREIS, Maria da Guia Santos. Industrializao no Nordeste. Rio de Janeiro: Notrya, 1994. 47 o caso de Ibar Dantas, com o artigo indito Notcia da imprensa operria sergipana (1891-1935). Infelizmente, no obtivemos acesso a este texto. 48 MOREIRA, Alusio Franco. As idias socialistas e classes sociais em Pernambuco na Repblica Velha. In: SYMPOSIUM Revista da UNICAP. Recife, vol. 25, N 1, 1983, (pp.79-88); VV.AA. Manifestaes operrias e socialistas em Pernambuco. In: Cadernos de Histria Recife: UFPE/Dep. de Histria, 1987 (mimeo). 49 LOPES, Jos Srgio Leite. A tecelagem dos conflitos de classe na cidade das chamins. So Paulo/Braslia: Marco Zero/Ed. UNB, 1988. 50 REZENDE, Antonio Paulo. A classe operria em Pernambuco: cooptao e resistncia (1900-1922). Dissertao de mestrado. Campinas: UNICAMP, 1987 (mimeo); e A formao da classe operria em Pernambuco: algumas divagaes metodolgicas. In: CLIO Revista do curso de Mestrado em Histria da UFPE. Recife, Ed. UFPE, N 9, 1987, (pp. 8-19). 51 REZENDE, Antonio Paulo. A formao da classe operria em Pernambuco: algumas divagaes metodolgicas. Op. cit. 52 Cf. SANTANNA (de), Moacir Medeiros. Primeiros movimentos grevistas em Alagoas. In: Revista do CCHLA. N 4. Macei: EDUFAL, 1987 (pp. 56-60); e os artigos de ALMEIDA (de), Luiz Svio. A Repblica e o movimento operrio em Alagoas (A redeno dos filhos do trabalho). In: Anais do Simpsio Cem Anos de Repblica. Macei: EDUFAL, 1989 (pp. 38-88); A greve dos Ferrovirios em 1909. In: Revista do CCHLA. N 5. Macei EDUFAL, 1990 (pp. 7-13); Breve reflexo sobre a mulher na indstria txtil: Alagoas, 1920.46

22 sentido, apenas o texto A Repblica e o movimento operrio em Alagoas constri um quadro analtico mais amplo. De modo geral, o estudo da classe operria aqui circunscreve-se aos seus momentos fortes (greves, reivindicaes etc.) e ao clssico perodo dos seus primrdios na Primeira Repblica, alm de lanarem mo principalmente dos peridicos como fonte documental. Dentre as principais hipteses indicadas nestes escritos, destacamos: a) o regime republicano, pela igualdade jurdica, traz a oportunidade de reivindicaes para a classe operria;53 b) o socialismo um termo vago: mutualistas, cristos reformistas e socialistas se confundem em alguns momentos; c) o movimento s pode ser entendido tendo como pano de fundo, de um lado, o aprofundamento das relaes de produo capitalista, comandado em suas linhas gerais por uma elite conservadora, e, de outro, a formao de um operariado de pequena expresso numrica, visto como agulha no palheiro. Esta interpretao revelaria ento todo o herosmo da militncia, e apontaria tambm para o descompasso entre o propsito e a possibilidade.54 Apesar de tratarem a classe operria alagoana de maneira no central, gostaramos de destacar outros dois estudos. Um deles o j lembrado Histria da indstria e do trabalho no Brasil.55 A despeito de ser de carter geral, a obra tenta articular a formao da classe trabalhadora e o movimento operrio no Estado com o contexto nacional. Os autores reforam o papel do anarquismo na regio citando a participao de delegaes locais nos dois Congressos Operrios Brasileiros (1906 e 1913) que lanaram teses de carter predominantemente anarquistas, reforando indcios de uma tradio que perduraria at o fim da segunda dcada do sculo XX. Para os autores, em Alagoas, o anarquismo estava razoavelmente implantado, atravs de entidades como a Sociedade dos Irreverentes(1917) e a Congregao Libertadora da Terra e do Homem (1918).56 O outro texto Memria e omisso: anarquismo e Octavio Brando de Alice Anabuki Plancherel.57 A despeito de trabalhar com a histria de vida numa abordagem sociolgica e de quase no utilizar fontes primrias, a pesquisadora consegue traar um panorama acerca das origens do proletariado alagoano e da luta de classes aqui instalada. Para a autora, a formaoIn: Revista do CCHLA. N 6. Macei EDUFAL, 1991, (pp. 31-3); e Razes do comunismo em Alagoas. In: Debates de histria regional. Revista do Departamento de Histria da Universidade Federal de Alagoas UFAL. N 1. Macei, 1992 (pp. 117-137). A anlise empreendida aqui, tendo em vista o que nos interessa, desconsidera as marcantes diferenas historiogrficas existentes entre os dois autores. 53 SANTANA (de), Moacir Medeiros. Primeiros movimentos grevistas em Alagoas. Op. cit.p56. 54 ALMEIDA (de), Luiz Svio. Razes do comunismo em Alagoas. Op. cit. p 118. 55 HARDMAN, Francisco Foot e LEONARDI, Victor. Op. cit. 56 IDEM, IBIDEM, p. 321 - nota 118. 57 PLANCHEREL, Alice Anabuki. Memria e omisso: Anarquismo e Octavio Brando. Macei: EDUFAL, 1997.

23 do proletariado deve ser entendida como parte do processo de introduo de relaes capitalistas na regio, devendo-se destacar as especificidades de cada um dos setores produtivos (canavieiro, txtil, ferrovirio e naval). Neste sentido, as estratgias, hegemonia do movimento e condies de atuao estariam ligadas ao setor econmico em que trabalham os lderes do movimento operrio. A tese central do seu trabalho a de que Octavio Brando em suas memrias omitira o mximo possvel de sua fase de militncia anarquista. Desta forma, indiretamente, ele contribura para diminuir o entendimento da importncia do movimento libertrio em Alagoas e no Brasil. Assim, no s eles (os anarquistas) teriam um papel mais efetivo do que o que a historiografia local lhes concede, como proporiam a ampliao da questo poltica s condies de trabalho no campo e a outros grupos marginalizados.58

IV- O QUADRO ATUAL

Aps o advento da Nova Repblica (1985) e a conseqente democratizao do Estado brasileiro, gradativamente desaparece o horizonte da revoluo entre os historiadores, surgindo com mais nfase o interesse pelas pesquisas relacionadas com a construo da cidadania.59 Junto Histria Social do Trabalho, este interesse encarado de forma inovadora no livro Burguesia e trabalho: poltica e legislao social no Brasil, de ngela de Castro Gomes.60 Rediscutindo a legislao social no Brasil, a autora aponta 1917/8 como momento inicial de elaborao dos Direitos do Trabalho no Brasil, redimensionando inclusive o papel da Revoluo de 1930 e da Era Vargas quanto a este ponto. Constituindo-se em sugestiva linha de pesquisa, a legislao trabalhista e a construo da cidadania entre os trabalhadores o objeto de pesquisa de dois novos brasilianistas. Brbara Weistein traa um quadro da poltica de paz social existente nas estratgias de disciplinamento, de educao e de lazer encampadas pelo SESI e pelo SENAI entre 1920 e 1964, mostrando que neste projeto poltico os trabalhadores tambm obtiveram ganhos concretos, numa esfera de negociao que se abre entre estes, os empresrios e o Estado.61 Na mesma linha, John D. French retoma os estudos sobre a legislao trabalhista para, a partir daIDEM, IBIDEM, p. 68. Cf. DECCA (de), Edgar. A revoluo acabou. In: Revista Brasileira de Histria. Vol 10, N 20. So Paulo: ANPUH/Marco Zero, maro/agosto de 1990 (pp. 63-74). 60 GOMES, ngela de Castro. Burguesia e trabalho: poltica e legislao social no Brasil (1917-1937). Rio de Janeiro: Campus, 1979. 61 WESTEIN, Barbara. (Re)Formao da classe trabalhadora no Brasil (1920-1964). trad. de Luciano Vieira Machado.- So Paulo:Cortez: CDAPH-IFAN Universidade So Francisco, 2000.59 58

24 CLT, discutir at que ponto se d a realizao efetiva destes direitos, buscando o que ele chama de cultura poltica entre os trabalhadores brasileiros.62 Como estudioso da Histria do Trabalho na Amrica Latina, French se esfora para fazer uma releitura da bibliografia sobre o tema produzida no continente. No Ensaio Bibliogrfico contido no livro citado e num artigo de reflexo autocrtica, o historiador norte-americano critica a concentrao destas pesquisas na histria do trabalho moderno, assalariado, capitalista e industrial.63 Para o caso brasileiro, especificamente, critica tanto os historiadores que apontam para a ideologia da outorga dos direitos trabalhistas, como para a interpretao de artificialismo destas leis. Para ele, ambas as posturas possuem um fundo comum: o medo em se pensar a classe trabalhadora no Brasil atravs de sua prpria histria e caractersticas, sem recorrer a modelos idealizados europeus. Prosseguindo em sua crtica a esta historiografia, afirma que

As peculiaridades da formao da classe operria no Brasil exemplificam processos tpicos de muitos pases perifricos de industrializao recente, inclusive no que diz respeito ao papel do Estado na organizao jurdico-institucional da representao e do enquadramento das classes subalternas. Em termos da histria operria mundial do sculo XX, podemos afirmar sem temer contradio que a trajetria brasileira com a centralidade das iniciativas estatais de industrializao e o fomento da organizao operria est mais prxima do padro mundial do que os casos ingls e francs do sculo XIX, ainda hoje privilegiados em comparaes internacionais na histria do trabalho.64

Parece-nos, para concluir, que h em pleno curso um movimento de reviso sobre a histria do trabalho no Brasil. Esta reviso, como diria Francisco Foot Hardman, est atrelada moda de um certo liberalismo pseudo-anrquico.65 De qualquer forma, difcil detectar at que ponto esta produo menos comprometida politicamente, pois ento voltaramos ao debate estritamente ideolgico. Do mesmo modo, e pelo contrrio, seria empobrecedor diminuir o mrito dos primeiros historiadores desta temtica: afinal, eles lanaram as bases desta historiografia. S com este fato torna-se possvel o aprofundamento dos estudos na rea e o preenchimento de lacunas, reformulao de hipteses e correo de possveis equvocos,FRENCH, John D. Afogados em leis: a CLT e a cultura poltica dos trabalhadores brasileiros. Trad. de Paulo Fontes So Paulo: Ed. Fund. Perseu Abramo, 2001. 63 Para o ensaio, ver IBIDEM, pp. 75-93, e para o artigo, ver. A histria latino-americana do trabalho hoje: uma reflexo autocrtica. In: Histria - Revista do Programa de Ps-Graduao em Histria da UNISINOS. Vol. 6, N6, 2002 (pp. 11-28). 64 FRENCH, John D. Afogados em leis. Op. cit., p. 93. Daniel James, outro especialista em Histria do Trabalho na Amrica Latina, compartilha da mesma postura. Ver O que h de novo, o que h de velho? Os parmetros emergentes da histria do trabalho latino-americana. In: ARAUJO, ngela M. C. (org.) Trabalho, cultura e cidadania: um balano da histria social brasileira. Trad. de Antonio Luigi Negro - So Paulo: Scritta, 1997. (pp. 117-140). 65 HARDMAN, Francisco Foot. Nem ptria, nem patro! Op. cit. p. 237.62

25 como agora est acontecendo. Neste sentido, talvez seja mais sensato explicar este redirecionamento pelo avano e aprofundamento das pesquisas em Histria Social no pas. Em sua atual fase, para a Histria Social no basta mais determinar estruturas e sistemas, e sim perceber as formas particulares como historicamente as pessoas vivem e concretizam suas experincias em determinados contextos. Este aprofundamento, causado pela utilizao de novas fontes, tcnicas e mtodos, revela uma sofisticao pormenorizada que s vezes carece de um quadro mais amplo de interpretao. neste quadro, convm notar, que muitas vezes a historiografia da classe trabalhadora se esquece de seu fundamento prprio: a categoria de classe social. Se no possvel mais pensar esta categoria por si s como definidora da postura que os grupos sociais iro assumir na sociedade,66 tampouco podemos lhe negar a importncia enquanto construtora de vnculos substanciais. Utilizando as palavras de Emlia Viotti da Costa, cabe procurar, historicamente, em suas diversas formas de manifestao como a identidade de classe vem a prevalecer sobre outros tipos de identidade.67

V - CONSIDERAES TERICAS E METODOLGICAS

A partir da leitura desta bibliografia, tendo em vista os modestos objetivos de um historiador, gostaria de refletir acerca de questes tericas e metodolgicas que envolveram as etapas de nossa pesquisa ao longo destes dois anos. Inicialmente, pensvamos analisar as representaes polticas dos trabalhadores na imprensa operria alagoana entre 1885 e 1922. O contato e a manipulao da documentao disponvel revelou a impossibilidade de levarmos adiante tal projeto. Entre idas e vindas, ao sabor do material encontrado nos arquivos e dos embates tericos das leituras que realizamos, optamos por nos concentrar nos tipgrafos e no discurso socialista entre 1895 e 1905. Esta escolha deveu-se em grande medida preservao da coleo encadernada de O Trocista (1898-1902), na Hemeroteca do Instituto Histrico e Geogrfico de Alagoas, e existncia de alguns jornais operrios do Recife que possuam, no mesmo perodo estudado, relaes bastante prximas com a imprensa engajada de Macei (principalmente o Aurora Social, no perodo entre 1901-1905).Vide as reflexes de CASTORIADIS, Cornelius. A experincia do movimento operrio. So Paulo: Brasiliense, 1985. 67 Apud GONALVES, Regina Clia. Classe? Que classe? O debate terico sobre a formao das classes: estruturalistas versus culturalistas. In: SAECULUM Revista de Histria. Joo Pessoa, Ed. UFPB, N 4/5, dez. de 2000 (pp.33-51).66

26 Sem a pretenso de esgotar o objeto abordado, uma contradio tornava-se cada vez mais saliente em nossas anlises do tema: como trabalhar num nvel pertinente ao apontado pelo aprofundamento das pesquisas em histria regional e social, pelo aumento dos tipos de fontes utilizadas e das novas abordagens oferecidas, em um Estado que possui ainda uma produo historiogrfica acadmica, para o perodo estudado, incipiente? Como lanar um olhar pertinente com os rumos atuais seguidos pela historiografia em um perodo e sociedade que carece mesmo de olhares mais gerais? A sada utilizada a despeito dos perigos bvios que generalizaes (mesmo deste tipo) podem acarretar no entendimento do processo histrico foi a de utilizar a comparao entre ordens histricas semelhantes. Esta comparao serviu, por exemplo, na elaborao de um quadro mais amplo sobre a formao da classe trabalhadora e para o entendimento dos mecanismos disciplinares, dos quais a urbanizao das grandes cidades do Brasil lana mo neste perodo. Em outro nvel, tivemos de induzir alguns dos aspectos das condies de trabalho e de relacionamento entre categorias distintas de trabalhadores dentro das oficinas tipogrficas de Macei, a partir de dados encontrados para as oficinas do Recife. Acreditamos que tais encaminhamentos, dados questes desta natureza, resolveram satisfatoriamente as lacunas indicadas acima, inclusive no que se refere documentao disponvel. Um outro nvel de questionamentos surgiu na definio de categorias como as de classe trabalhadora e grupo social, por um lado, ou de conscincia, experincia, representao social, identidade coletiva e discurso, por outro. No caso das primeiras, o problema girava em torno das orientaes dos historiadores marxistas britnicos que indicavam ser a classe social um processo histrico, relacional (e no algo estanque), que dependia de condies objetivas (relaes de produo etc.) e subjetivas (conscincia de classe etc.).68 Como visto acima, o momento atual das pesquisas sobre histria da classe trabalhadora aponta para uma crise na rea, devido a sua disperso, ocasionada pela interseco com outras temticas (histria das mulheres, histria da educao etc.) e pelos variados enfoques metodolgicos (histria oral, utilizao de imagens etc.).69 Em outro sentido, no entanto, esta diversidade pode significar a riqueza dos caminhos a serem trilhados pelos pesquisadores que resolvam adentrar nas pesquisas sobre o mundo do trabalho. De qualquer forma, quando o objeto de estudo a

Apesar de algumas divergncias, com relao a estes aspectos gerais, Thompson e Hobsbawm esto de acordo. Cf. THOMPSON, Edward P. A formao da classe operria inglesa. Op. cit., especialmente o vol. I, e Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. Op. cit.; e HOBSBAWM, Eric J. Mundos do trabalho: novos estudos sobre Histria Operria. 2ed. Op. cit., especialmente os artigos Notas sobre conscincia de classe (pp. 35-55) e o fazer-se da classe operria britnica (pp. 273-297). 69 Ver BATALHA, Cludio M. H. A historiografia da classe operria no Brasil: Trajetria e tendncias. Op. cit.

68

27 classe trabalhadora, necessrio ter em vista em que medida a categoria classe ordenadora de todas essas fraturas identitrias. Como apontou Francisco Foot Hardman:70

A formao da classe operria no Brasil foi um processo complexo por sua prpria composio. Uma heterogeneidade bsica acompanha seu surgimento no cenrio da histria da sociedade brasileira. Desigual distribuio geogrfica (recai-se na configurao de uma classe operria descentralizada), composio tnica diversificada (predominncia de imigrantes estrangeiros de vrias nacionalidades), intensa variedade etria e sexual (presena expressiva de crianas e mulheres na fora de trabalho) e uma estrutura ocupacional das mais heterogneas (ofcios artesanais e profisses de tercirio entremeados a ocupaes produtivas propriamente industriais), sem contar a fronteira amplamente difusa entre trabalho urbano e rural, todos esses elementos perturbam o traado de limites de classe que informem ao mesmo tempo essas disparidades do ponto de vista econmico. a condio de classes subalternas dentro da sociedade e diante do Estado que aproxima essas mltiplas categorias de trabalhadores: no nvel do poltico e do ideolgico que se deve buscar a identidade. (grifo no original)

A classe trabalhadora no Brasil, na virada para o sculo XX, seria algo parecido com uma coleo de pequenos mundos.71 No perodo estudado, no h uma relao orgnica (e nacional) entre os assalariados aglutinados nos ncleos urbanos que permita inferir j esteja formada uma classe no pas. De posse destas reflexes, indicamos que os trabalhadores aos quais nos referimos devem ser entendidos em um sentido ampliado como classe-que-vivedo-trabalho,72 que se circunscreve em sua atividade ocupacional, ao ncleo da cidade de Macei e aos operrios das fbricas de tecido que circunvizinham a cidade. Como nosso estudo detm-se principalmente nas questes ligadas subjetividade deste processo de formao de classe, um dos conceitos que destacamos foi o de experincia. Edward Thompson encara tal conceito como sendo a influncia do ser social sobre a conscincia social.73 Apesar de consider-la uma categoria um tanto quanto imperfeita, o historiador britnico indica que esta fora a melhor sada encontrada para indicar uma srie de fenmenos que compreende as resposta mental e emocional, seja de um indivduo ou de um grupo social, a muitos acontecimentos inter-relacionados ou a muitas repeties do mesmo tipo de acontecimento.74 Ressaltando o carter contraditrio da teorizao deste conceito,HARDMAN, Francisco Foot. Nem ptria, nem patro!. Op. cit., p. 275. HOBSBAWM, Eric J. no artigo O fazer-se da classe operria britnica aponta esta condio para os trabalhadores ingleses no perodo pr-cartista. In: Mundos do trabalho: novos estudos sobre Histria Operria.Op. cit., p. 278. 72 ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmao e a negao do trabalho. 3ed. So Paulo: Boitempo, 2000. Ver especialmente o artigo VI A classe-que-vive-do-trabalho: a forma de ser da classe trabalhadora hoje (pp. 101-17). 73 THOMPSON, Edward. P. A misria da Teoria ou um planetrio de erros: uma crtica ao pensamento de Althusser. Trad. de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1981, p. 12. 74 IDEM, IBIDEM, p. 15.71 70

28 Artur Vitorino desdobra a reflexo em torno deste tema indicando que a experincia torna-se experincia de classe a partir do momento em que ela vai mediar relaes de produo (leiase: ser social) e conscincia de classe (leia-se conscincia social).75 Apesar dos questionamentos que so levantados sobre este conceito, cremos que ele nos levou a atentar mais s especificidades das condies subjetivas de formao de uma identidade coletiva para os trabalhadores urbanos de Macei, sem perder de vista os condicionamentos objetivos antepostos a esta realidade. Em outras palavras, a opo de enfocar em nosso estudo a subjetividade dos trabalhadores urbanos de Macei, especialmente dos grficos, deve-se disponibilidade maior de fontes que privilegiam este tipo de abordagem e ao estgio de desenvolvimento inicial para estudos acerca da economia e da industrializao alagoana do perodo. Por fim, como afirma Cludio Batalha, estudar aspectos subjetivos na constituio de uma identidade de classe no significa descuidar dos aspectos objetivos. Tal escolha

No quer dizer que o processo de trabalho, o tipo de estabelecimento industrial, o grau de mecanizao da produo, o nmero de trabalhadores por empresa fossem fatores irrelevantes na experincia dos trabalhadores. No entanto, isso no deve conduzir a estabelecer uma relao automtica entre a forma assumida pelo trabalho e a existncia da classe operria, que, mais que uma decorrncia da forma de trabalho, o modo como esses trabalhadores se percebem.76

Da chegamos ao conceito de identidade coletiva. Ele entra na rea de interesse dos historiadores atravs de contatos com outras reas das Cincias Sociais. Basicamente, tais identidades seriam entendidas como construes polticas e sociais que constroem subjetividades a partir da comunho de vivncias, interesses e/ou determinados objetivos em comum.77 As implicaes polticas da identidade forjada pelos grficos, ento, seriam contrapostas da elite burguesa e oligrquica local. Em outro sentido, ela objetivava representar os grficos como a liderana legtima diante de todos os outros trabalhadores. Entendida deste jeito, fica difcil distinguir identidade e representao. Deve-se deixar claro, ainda, que no pretendemos adentrar no campo da histria cultural.78 Apesar de explorarmos aqui pontos que possuam contato com esta rea de estudos,VITORINO, Artur Jos Renda. Notas sobre a teoria da formao de classe em E. P.Thompson. In: Histria Social. Revista da Ps-Graduao em Histria. N 4/5.Campinas, Unicamp, 1997/1998 (pp. 157-173) p.169. 76 BATALHA, Cludio. Formao da classe operria e projetos de identidade coletiva. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org. ). O Brasil Republicano, vol.I: o tempo do liberalismo excludente (da Proclamao da Repblica Revoluo de 1930). Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003 (pp. 161-189) p. 164. 77 SANTOS, Myrian Seplveda dos. Sobre a autonomia das novas identidades coletivas: alguns problemas tericos. In: Revista Brasileira de Cincias Sociais, vol. 13, N 38. So Paulo, outubro de 1998. 78 Para uma apresentao bastante polmica acerca da histria cultural, ver HUNT, Lynn (org.) A nova histria cultural. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1992.75

29 nosso ponto de partida o de que os agentes sociais apresentados aqui existiram e acreditaram nos mecanismos identitrios que forjaram para si. Com que princpio de autoridade poderamos interpretar que tudo no passava de representao, de simulacro, se tal identidade mobilizou as aes de tais agentes?79 Mesmo um autor como Roger Chartier reconhece a referencialidade de onde surge a possibilidade de criao destas representaes, na medida em que ela estaria vinculada a trs realidades maiores:

Primeiro, as representaes coletivas que incorporam nos indivduos as divises do mundo social e estruturam os esquemas de percepo e de apreciao a partir dos quais estes classificam, julgam e agem; em seguida as formas de exibio do ser social ou do poder poltico [...] finalmente, a presentificao em um representante (individual ou coletivo, concreto ou abstrato) de uma identidade ou de um poder, dotado assim de continuidade e estabilidade.80

Jurandir Malerba,81 por sua vez, ao perceber que as representaes decorrem da natureza social do ser humano, conclui que as representaes histricas no podem ser pensadas como discursos sem referente, mas inscrevem-se no processo da prpria constituio dos grupos sociais, na qualidade de mecanismo identitrio. Ora, esta noo conflui para a do j citado Chartier, pois ele identifica que as representaes, enquanto construo discursiva, remetem necessariamente s posies e s propriedades sociais objetivas, exteriores ao discurso, que caracterizam os diferentes grupos, comunidades ou classes que constituem o mundo social.82 Assim, pretendemos verificar de que forma os grficos, atravs de artigos de reflexo e doutrinamento e da organizao de entidades coletivas de trabalhadores, estabelecem uma prtica social (prtica que comporta, tambm, elementos discursivos) que sirva para identificar e diferenciar os sujeitos e aes da luta poltica estabelecida. Ou seja: s nos interessa construir a trajetria percorrida pelos grficos na constituio de uma identidade coletiva para os trabalhadores na medida em que esta identidade ilumine as formas do embate relativo luta de classes em Alagoas. Esta luta de classes s acontece tendo em vista as condies objetivas existentes na relao de produo. A formao da classe trabalhadora,

Cf. CORCUFF, Philippe. As novas sociologias: construes da realidade. Trad. de Viviane Ribeiro. Bauru, SP: EDUSC, 2001, (Coleo Hmus). 80 CHARTIER, Roger. A histria hoje: dvidas, desafios, propostas. In: Estudos histricos. Vol. 7, N 13, 1994 (pp. 100-113) p.108. 81 MALERBA, Jurandir. Para uma teoria simblica: conexes entre Elias e Bordieu. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e MALERBA, Jurandir. (orgs) Representaes: contribuio a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000 (pp. 199-225) p.222. 82 CHARTIER, Roger. Op. cit., p. 106.

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30 enquanto um resultado desta luta,83 um processo bem mais amplo, que implicaria uma gama de estudos, um recorte espacial e uma diversidade de fontes bem maiores do que os utilizados aqui. Muito ainda h por ser feito neste sentido. Esperamos, apenas, ter dado uma contribuio ao estudo desta questo, no que toca especificidade de Macei.

83

Cf. THOMPSON, Edward P. A formao da classe operria inglesa. Op. cit., vol. I. e A misria da Teoria. Op. cit., p. 121.

31 CAPTULO I: ESPAO URBANO, MUNDO DO TRABALHO

Neste primeiro captulo, procederemos a uma investigao preliminar acerca das formas, categorias e fazeres que se circunscrevem ao mundo do trabalho em sua relao direta com o espao urbano da Macei. Enfocando aspectos relacionados s condies e ao processo de trabalho, aos limites existentes entre trabalho e marginalizao, bem como higiene e salubridade da cidade, pretendemos contribuir para o esclarecimento acerca de quem o sujeito a que se refere o discurso de identificao coletiva dos trabalhadores e do socialismo no perodo. Na caracterizao da rea urbana de Macei, privilegiaremos espaos que estejam vinculados reproduo social destes trabalhadores, ora enquanto local de trabalho, ora enquanto moradia. Esta relao entre mundo do trabalho e espao urbano, para todo o Brasil e especificamente para Macei, no entanto, precisa ser problematizada na medida em que se verifica cada vez mais na historiografia especializada o estudo acerca da presena de indstrias de diversos tipos em ambientes rurais, suburbanos. Alm do carter descentralizado da industrializao brasileira, ressaltado por diversos autores, devemos levar em conta que at mesmo para a principal rea de industrializao do Brasil, So Paulo, a indstria nasceu disseminada por um espao amplo, urbano e rural.84 Deste modo, Macei, enquanto zona urbana, no esgota a rea de abrangncia de jornadas de trabalho assalariadas com atividades tipicamente operrias e artesanais. Estas se expandem na direo do povoado da Cachoeira, de Ferno Velho e de Pilar. A dificuldade de precisar a distino entre o urbano e o rural, de resto, serve para toda a economia do perodo. Como bem notou Antonio Barros de Castro, o universo rural se projeta, imprimindo caractersticas fundamentais no desenvolvimento urbano-industrial que ser, em boa medida, feito sua imagem e semelhana.85

O MAPA DE MACEI

MARTINS, Jos de Souza. Subrbio vida, cotidiano e histria no subrbio da cidade de So Paulo: So Caetano, do fim do Imprio ao fim da Repblica Velha. 2ed. So Paulo: Ed. Unesp/HUCITEC, 2002, p 176. 85 CASTRO (de), Antonio Barros. 7 ensaios sobre a economia nacional. Vol.1. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1977, p. 142/3.

84

32 O porto de Jaragu vem sendo referncia central da historiografia alagoana para o entendimento da mudana de capital em 1839 e do processo de urbanizao de Macei ao longo do sculo XIX.86 A transferncia (1839) da Tesouraria da Fazenda Geral da cidade de Alagoas (um dos antigos nome da atual Marechal Deodoro) para Macei reflete bem as melhores condies de embarque, desembarque e de segurana no armazenamento dos produtos, propiciadas pelo porto de Jaragu em relao ao da praia do Francs.87 Desde ento, alguns historiadores vm discutindo sobre o seu desenvolvimento. Douglas Apratto Tenrio88 indica como momento inicial de modernizao da cidade e, por extenso, do Estado a segunda metade do sculo XIX, com a chegada das ferrovias, o aumento dos jornais e dos divertimentos sociais. Craveiro Costa,89 por sua vez, apina que com o advento da Repblica que a cidade comea a tomar vulto e sair do marasmo de uma aldeia crescida ao abandono do poder pblico, pois s com o novo regime os municpios ganham certa autonomia administrativa e financeira. Manuel Diegues Junior,90 em seu ensaio sobre a Macei republicana, e Flix Lima Junior,91 em suas crnicas memorialsticas, acompanham, com um tom de saudosismo da velha cidade que se esvaa, a interpretao de Craveiro Costa. A cidade, em incios do sculo XX, possua quatro bairros:92 Macei, Jaragu e Levada, que ficavam na parte baixa da cidade, alm do Alto do Jacutinga. Indo na direo norte, arrastando-se preguiosamente ao nvel do mar, temos o arrabalde da Mangabeiras e os povoados de Ipioca, Mirim, Gara Torta e Riacho Doce.93 Em direo ao sul, temos na restinga entre o mar e as lagoas, o arrabalde do Trapiche e o povoado de Pontal da Barra. Ainda na rea mais ao sul, afastando-se do litoral, mas margeando ainda as lagoas, teramos os arrabaldes do Mutange, Bom Parto, Bebedouro. Neste sentido, saa-se da cidade em direo Fbrica de Ferno Velho e a outras trs, que j ficavam em reas pertencentes a outros municpios.94 Ao longo do captulo que segue, apresentaremos caractersticas dos

BARROS (de), Theodyr Augusto. O processo de mudana de capital (Alagoas Macei): Uma abordagem histrica (1819-1859). Macei: EDUFAL, 1991. 87 IBIDEM, p. 86. 88 TENRIO, Douglas Apratto. O incio da modernizao na provncia de Alagoas. In: Revista do CCHLA/UFAL. Macei: EDUFAL, ano II, n 4, jun/1987 (pp. 66-75). 89 COSTA, Craveiro. Macei. Macei: DAC, 1981, p. 176. 90 DIEGUES JR., Manuel. Evoluo urbana e social de Macei no perodo republicano. In: COSTA, Craveiro. Macei. Op. cit. (pp. 200/19). 91 LIMA JR., Flix. Macei de outrora- vol 1 (apresent. por Tho Brando). Macei: DAC-MEC/APA-SENEC. 1976; e Macei de outrora- vol 2 (org. e apresent. por Rachel Rocha). Macei: EDUFAL, 2001. 92 O panorama que segue foi baseado em JOBIM, Hugo. Geographia. [sic] In: Indicador Geral do Estado de Alagoas. Typ. Commercial M. J. Ramalho: Macei, 1902, pp. 9-48. 93 Uma possvel distino entre arrabaldes (ou subrbios) e povoados seria que aqueles se localizavam no continuum do permetro urbano propriamente dito, enquanto que para se chegar a estes, atravessavam-se matagais e reas desabitadas. 94 Falaremos sobre estas fbricas na parte final deste captulo.

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33 bairros de Jaragu, Macei e Levada, no que interessa aos propsitos delimitados em nossa pesquisa. Sobre o quarto bairro, o Alto do Jacutinga, localiza-se num tabuleiro elevado no sentido oeste da cidade. No incio do sculo XX, comeava-se o processo inicial de disputa pela posse de terrenos, que gradativamente se vo subdividindo em lotes menores. Contraditoriamente, o lugar representado na imprensa da poca ora como rea mal-assombrada, matagal que circunda a cidade, para onde corriam marginais, ora como novo bairro chique da gente abastada, que buscava paz e sossego em chcaras e stios.

A POPULAO

Para uma melhor visualizao do quadro populacional de Macei e de sua evoluo nesse perodo, elaboramos um quadro que compara a capital alagoana com as duas maiores capitais do Nordeste.95

ANO 1872 1880 1890 1900 1910 1920

SALVADOR 129.109 174.412 205.813 283.422

RECIFE 116.671 111.556 113.106 238.843

MACEI 27.703 31.498 36.427 45.000 74.166

Fontes: FIBGE Anurio Estatstico do Brasil apud GAREIS, Maria da Guia Santos. Industrializao no Nordeste. Rio de Janeiro: Notrya, 1994; SINGER, Paul. Desenvolvimento econmico e evoluo urbana: anlise da evoluo econmica de So Paulo, Blumenau, Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife. 2ed. So Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1977; e LIMA, Lcia Maria Cunha Alves de. Industrializao e organizao do espao urbano: o caso de Macei. Recife, Dissertao de Mestrado em Geografia, 1982, (mimeo); Macei [verbete] In: Encyclopedia e Dicionario Internacional, Vol II. W. M. Jackson Editor, s/l, s/d, p. 6816. Alguns autores, em especial Craveiro Costa, iro criticar tais dados reclamando das metodologias empregadas nos censos, e chegando a apontar nmeros diversos para o censo de 1900. Estes nmeros, no entanto, no alteram substancialmente o quadro apresentado acima. Cf. COSTA, Craveiro. Macei. Macei: DAC, 1981, pp. 191-4; e JOBIM, Hugo. Geographia. In: Indicador Geral do Estado de Alagoas. Op. cit., pp. 30-1. Apesar das diversas reservas indicadas, at onde conhecemos, estes censos so a fonte mais segura para se conseguir informaes mnimas acerca da populao de Macei e de seu crescimento no perodo estudado. No conseguimos dados para os espaos em branco.

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34 Embora Macei, em nmeros absolutos, esteja num patamar diferenciado em comparao com Salvador e Recife, entre 1872 e 1920, ela insere-se numa curva de crescimento populacional semelhante s destas duas capitais nordestinas. Aproximadamente, em 1872 a populao de Macei correspondia a quase 1/5 da populao soteropolitana e a cerca de 1/4 da populao recifense. At 1920, esta proporo chegar a aproximadamente menos de 1/4 em relao primeira e 1/3 em relao segunda. No que se refere s taxas de crescimento apresentadas aqui, no entanto, as trs capitais formam uma linha de crescimento muito lento numa primeira fase (1872 - 1900), enquanto que numa segunda fase (1900 1920) tal evoluo acentua-se, principalmente para os casos de Macei e Recife. No Estado, Macei era seguida de perto por Viosa, vindo logo depois Unio dos Palmares e Porto Calvo, alm obviamente de Penedo.96 Centro comercial e poltico desde a primeira metade do sculo XIX, para a cidade afluam desde comerciantes e representantes de firmas estrangeiras at pequenos agricultores e miserveis, expulsos das reas rurais pela ampliao dos canaviais, passando tambm pelos filhos de coronis que vinham em busca de uma melhor educao e de colocao no quadro do funcionalismo estadual. Parece-nos que nesse perodo que a populao da cidade comea a perder os laos de comunidade, caractersticos dos pequenos ncleos populacionais, incorporando facetas da modernidade. Nas ruas, novos transeuntes compem um quadro com elementos estranhos. Uma parte dos seus habitantes no mais se reconhece nem sabe de suas origens e vida. quela poca, nas maiores cidades do pas acontecia o que Olgria Matos chama de passagem do espao qualitativo, em que o homem pode se reconhecer pois a cidade ainda possui um valor de uso, para o espao quantitativo e abstrato, no qual o valor-de-troca determina um estranhamento por conta da onipresena do trabalho abstrato na sociedade.97 Em Macei, este processo estava em seu incio e ainda no se completara. A cidade, ento, mostrava-se com uma impresso singular de transio, resguardando-se uma certa urbanidade incipiente, na expresso de Rachel Rocha.98 Comearemos a expor a seguir as principais formas de ocupao dos trabalhadores no espao urbano de Macei na virada para o sculo XX, seus afazeres e principais tipos de servios prestados, discutindo aspectos desta construo do mundo do trabalho na cidade. Discutimos, tambm, as condies de vida e o processo de trabalho nas fbricas de tecidos que se localizam nas proximidades da capital alagoana. Relacionamos as principais categoriasLIMA JR., Flix. Macei de outrora- vol 1. Op. cit., p. 121. MATOS, Olgria. A cidade e o tempo: algumas reflexes sobre a funo social da lembrana. In: Histria viajante: notaes filosficas. So Paulo: Estdio Nobel, 1997, (pp. 118-127) p. 118. 98 ROCHA, Rachel. Apresentao. In: LIMA JR., Flix. Macei de outrora- vol 2. Macei: EDUFAL, 2001. p. 206.97 96

35 de trabalhadores que estiveram atreladas diretamente s relaes capitalistas, tanto no que se refere ao setor produtivo como ao setor de prestao de servios. Neste sentido, no tecemos maiores comentrios acerca de ocupaes importantes para a cidade, como a dos pescadores e dos lenhadores, tendo em vistas as delimitaes de nosso tema. Um outro impedimento, no que se refere ao tratamento dado a esta parte, o relativo documentao utilizada. Os jornais (mesmo a imprensa operria) no favorecem um entendimento mais claro sobre determinados aspectos da constituio deste mundo do trabalho urbano. Assim, por exemplo, tornou-se praticamente impossvel tratar com um mnimo de sistematicidade da situao da mulher e das crianas no ambiente de trabalho. Sujeitos a uma dupla carga de silenciamento, constatamos com certa frustrao que estes setores esto por merecer uma maior ateno dos historiadores locais.99

O PORTO E OS ESTIVADORES

Ponte de entrada do capitalismo, o porto de Jaragu reflete bem a condio primeira de Macei como alis de praticamente todas as principais cidades do pas de ser uma cidade comercial, ligada ao Atlntico, ao comrcio pelo mar. O bairro de Jaragu, ento,

a sede do grande commercio e de toda movimentao da capital; com alfandega, recebedoria central, trapiches alfandegados, armazens de depsito de generos de importao e exportao, agencias consulares, de seguros, de vapores, postal e telegraphica; associao commercial, bancos, shipchandlers, restaurants, pontes de embarque e desembarque, capitania do porto; fabricas, diversas fundies, refinaes etc.100

Indo em direo ao bairro de Macei, este comrcio de grosso trato desfila-se dos navios e barcos para os trapiches e armazns, e destes para as casas comerciais, no sentido dos trilhos de ferro. O porto de Jaragu tambm, sem dvida, a ponte de desembarque daJ h uma historiografia relativamente densa acerca da problemtica do gnero para outras reas do pas. Como exemplos, citamos PENA, Maria Valria Junho. Mulheres e trabalhadoras. Presena feminina na constituio do sistema fabril. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981; RAGO, Margareth. Do cabar ao lar: a utopia da cidade disciplinar Brasil 1890-1930. 2ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985; MATOS, Maria Izilda Santos. Cotidiano e Cultura: histria, cidade e trabalho. Bauru: EDUSC, 2002 - especialmente o captulo 4; para uma reflexo sobre esta historiografia, ver SOHIET, Rachel. Histria das mulheres. In: CARDOSO, Ciro Flamarion S. e VAINFAS, Ronaldo (orgs.) Domnios da Histria: ensaios de teoria e metodologia. 5ed. Rio de Janeiro: Campus, 1997, (pp. 275-296); para um exemplo da historiografia que se debruce sobre a criana, ver MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro. Infncia operria e acidente de trabalho em So Paulo IN: PRIORE, Mary Del. (org.) Histria da criana no Brasil. 4ed. So Paulo: Contexto, 1996 (pp. 112-128). 100 JOBIM, Hugo. Geographia. In: Indicador Geral do Estado de Alagoas. Op. cit., pp. 31-2.99

36 modernidade na cidade. Para fazer estas novidades chegarem ao principal bairro da cidade, a natureza transformada: surge o aterro do Jaragu, a racionalizao das guas do Salgadinho e a ponte dos Fonseca. Da a constncia do relato dos gastos e desventuras com estas intervenes, principalmente com a ponte dos Fonseca, entre os cronistas locais: elas so o smbolo de uma vitria que permitir consolidar a ordem capitalista na cidade. Em 1896 eram quatro os trapiches existentes em Jaragu, alm de mais um que se mantinha em p no outro lado da cidade, no Trapiche da Barra. Em 1902, este nmero sobe a sete.101 Aparentemente os trapiches serviam como ponto de apoio para embarques e desembarques. Apenas com a construo do cais, eles passam a servir simplesmente como depsitos. Uma srie de trabalhadores tirava seu sustento de atividades que giravam em torno do porto. Estivadores, doqueiros, lancheiros, carroceiros etc. O trabalho de estivadores e doqueiros conjugava fora e conhecimentos aprendidos pela experincia. Os navios eram de tipos diversos; alguns produtos exigiam empilhamentos diferentes; outros no podiam ser misturados com qualquer carga etc. Este saber era fonte de orgulho e identidade para os estivadores.102 Em regies porturias de menor movimento, como era o caso do Jaragu em relao a outros portos do mundo e do Brasil, o sistema de trabalho tradicional deste perodo era o free call ou shape up, que no Brasil recebeu o nome de parede. Era um sistema ocasional de trabalho em que, de acordo com o movimento do porto no dia, o encarregado de contrataes escolhe as turmas de doqueiros e estivadores que iro trabalhar naquele dia, ou mesmo por algumas horas.103 Este sistema, fica claro, favorece toda espcie de clientelismo e de patronagem, dificultando a unidade entre os trabalhadores. Ainda mais porque havia certas divergncias e rixas entre os que trabalhavam nos navios mais experientes e qualificados e por isto melhor remunerados, e os que trabalhavam nos trapiches. Neste ambiente de concorrncia, os porturios que pretendessem obter melhores possibilidades de trabalho necessitavam ser especializados. Em vez de se utilizar de diversos expedientes para conseguir bicos que lhe garantissem sustento nos dias de baixa movimentao do porto, era preciso estar por perto, demonstrar prontido nas horas em que aparecessem carregamentos, tornar-se conhecido e assduo.104 Morar prximo ao porto passou a ser uma das estratgias utilizadas por esses trabalhadores para conseguir uma melhor posio/condio no trabalho. Nestes termos, razovel pensar que a mocambaria existente

LIMA JR., Flix Lima. Macei de Outrora. vol 1, Op. cit., p. 134. GITAHY, Lcia, Trabalhadores do porto, movimento operrio e cultura urbana em Santos, 1889-1914. In: SZMRCSNYI, Tams e LAPA, Jos Robereto do Amaral (orgs.). Histria econmica da Primeira Repblica. So Paulo: HICITEC/FAPESP, 1996 (pp. 321-339) p. 331. 103 IDEM, IBIDEM. pp. 321/2. 104 IDEM, IBIDEM, p. 324.102

101

37 na Ponta da Terra, de que fala Manuel Diegues Junior, no se constitusse apenas de pescadores, mas tambm da famlia deste outro grupo de trabalhadores.105 Nesta categoria, os que no conseguiam uma melhor colocao, por certo comporiam aquele grupo de estivadores e trapicheiros que se dividiam em outros afazeres. Assim, uma forma de melhorar o ganho consistia em ir abaixo das pontes dos trapiches com acar, nas mars baixas, e colocar latas vazias de querosene ou de banha, para aparar o melao que escorria [... para depois vende-los] a donos de carroas e de vacarias, que preparavam tima garapa para os animais.106 Com ganhos parcos, estes trabalhadores necessitavam complementar a renda, mesmo que utilizassem de um artifcio que os desclassificaria mais ainda enquanto porturios.

CARROCEIROS E CONDUTORES

A boa convivncia entre os carroceiros e os porturios sempre foi apontada como fator de solidariedade entre as duas categorias, inclusive durante os momentos fortes, de greve e de reivindicaes organizadas.107 Deve pesar nisto a complementaridade de seus servios o de transportes. Um dos principais grupos dos carroceiros e, em parte, os condutores de bonds - levava e trazia diversos tipos de produtos entre o Jaragu, as casas comerciais e as residncias particulares. Os carroceiros possuam uma vida mais difcil. Usando camisas de tecido ordinrio, labutavam desde as primeiras horas da manh at o escurecer para conseguir alguns poucos cobres e levar a seus lares pauprrimos.108 Necessitavam cuidar tambm dos cavalos e burros. Alguns no possuam nem a carroa, tendo que alug-la. Concentravam-se nos cruzamentos mais movimentados, circulavam at os arrabaldes mais distantes e tentavam evitar os trilhos. Num belo folheto, o j citado memorialista Felix Lima Junior indica que no incio do sculo XX existiam mais de cem carroceiros na cidade pagando a dcima ao municpio.109 Entre os seus atributos era exigido possuir um nome na praa e a honestidade: sendo homens pobres, vivendo em dificuldades, a maioria, entretanto,

105 106

DIEGUES JR., Manuel. Evoluo urbana e social de Macei no perodo republicano. Op. cit., p. 202. LIMA JR., Flix. Macei de Outrora, vol 1. Op. cit., p. 134. 107 Cf. GITAHY. Trabalhadores do porto, ... . Op. cit. 108 LIMA JR, Flix. Macei de Outrora, vol 1. Op. cit. vol 1, pp. 107-9. 109 LIMA JR., Flix. Carroas e carroceiros. Macei: histria costumes. Macei: FUNTED, Sem identificao de data (folheto de divulgao).

38 entregavam [sic] intactos, valores que lhes eram confiados, objetos de alto preo, s vezes [...] objetos carssimos de cristal, de porcelana, etc.110 Nestes dois casos (carroceiros e estivadores) percebe-se uma das facetas do ordenamento da classe trabalhadora em Macei. Exige-se dos trabalhadores uma fidelidade e uma constncia ao trabalho para que meream a confiana de passar a ser mais bem requisitados para o servio. Esta espcie de investimento inicial na profisso, por parte do trabalhador, exige abnegao e constitui-se numa aposta no futuro: se as coisas caminharem como ele espera, conseguir condies mnimas de sobrevivncia; se no, partir para outra, de mos vazias, um pouco mais experiente e calejado. Este um dos aspectos cruis da construo do mundo do trabalho em cidades relativamente pequenas, onde muitos ainda se conhecem: a procedncia e a experincia de cada um os acompanha no nome, no rosto. Construir este nome de forma a lhe fazer permitir uma maior requisio de seus servios e melhores condies de trabalho exige a interiorizao de uma discipli