história do tempo presente: quando o jornalismo se ... · pdf filehistória do...
TRANSCRIPT
História do Tempo Presente: Quando o jornalismo se aproxima da historia1
BRUMANA, Luiz Fernando da Silva (mestrando)2
Universidade Federal do Espírito Santo /ES
Resumo: Durante anos, Jornalismo e História mantiveram um distanciamento recíproco, mesmo ambos
compartilhando um mesmo objetivo de análise: o acontecimento. Enquanto aquele analisava um
determinado fato com a pressão do deadline diário, o segundo dispunha de maior tempo de análise e
pesquisa. Mantiveram-se, assim, reservados cada qual a seu campo por anos. Porém, um movimento de
aproximação entre os dois campos ocorreu na segunda metade do século XX. Ocorriam as primeiras
discussões sobre a História do Tempo Presente, motivadas pelo advento dos meios de comunicação de
massa e pela proposta de rediscussão dos preceitos históricos por meio do resgate da História Política e
da História Cultural. Este artigo pretende debater a chamada “história imediata” discutindo também a
relação entre os dois campos acadêmicos – a partir de conceitos compartilhada pelas duas áreas, como
os estudos de Junger Habermas sobre as esferas pública e privada – e os questionamentos decorrentes
dela, como a utilização de jornais e periódicos como fontes históricas e como potenciais mecanismos de
resgaste da memória de uma sociedade
Palavras-chave: História, Jornalismo, Habermas, Tempo Presente
“Está começando o Repórter Esso: a testemunha ocular da história”. Era esse o slogan de um dos
programas de rádio mais emblemáticos da história do jornalismo brasileiro. Transmitido pelas
Rádios Record, Tupi e Nacional, o programa Repórter Esso cumpriu a função de informar aos
brasileiros as últimas notícias durante três décadas. Mas a tão famosa frase, dita ao vivo tantas
vezes por jornalistas como Heron Domingues e Roberto Figueiredo, nos leva a uma reflexão:
seria realmente o jornalista uma testemunha dos acontecimentos históricos?
No convívio dos grandes líderes populares, a par das coberturas econômicas, acompanhando as
articulações políticas e na busca por cumprir a missão profissional de informar à população, é
inquestionável que o jornalista acaba por vivenciar, muitas vezes, acontecimentos importantes
para uma geração ou para a história de um povo. Afinal, ele busca, por meio do seu olhar, levar
1 Trabalho apresentado no GT de História do Jornalismo, integrante do IV Encontro Regional Sudeste de
História da Mídia – Alcar Sudeste, 2016.
2 Jornalista, graduado em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade de Vila Velha (UVV/2010),
colunista de Política do jornal A Tribuna, licenciado em Língua Portuguesa e Literatura (Centro Universitário
São Camilo–ES/2012), mestrando em História Social das Relações Políticas pela Universidade Federal do
Espírito Santo (UFES). E-mail:[email protected]
ao leitor, ouvinte ou telespectador uma noção ou até mesmo uma explicação sobre determinado
fato. Isso, não é muito diferente das atribuições de um historiador. Afinal, este também tem no
acontecimento seu principal objetivo de análise.
Na busca pela apuração de um fato, podendo tanto ser pelo historiador quanto pelo jornalista,
algumas ferramentas são de uso comum. Uma delas é a entrevista ou a história oral. Esta aposta
na memória de um indivíduo para recapitular um determinado período ou um acontecimento,
que pode, inclusive, ser recém-ocorrido. Neste ponto que se estabelece a intercessão entre
História e Jornalismo por meio da História do Tempo Presente.
Le Goff (2014) conceitualiza a memória, ferramenta de ambas as áreas, como sendo “um
conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou
informações passadas, ou que ele representa como passado”3. O historiador francês frisa que
antes mesmo da linguagem falada ou da escrita, há uma linguagem do armazenamento de
informações na memória, que pode ser tanto individual quanto coletivo.
Porém, o historiador também atribui à escrita uma profunda transformação no conceito da
própria memória, dividindo-a em duas formas. A primeira delas é a comemoração, quando
ocorre, por exemplo, as celebrações anuais pela Independência do Brasil. A segunda é o
documento escrito, que tem a função de “armazenar informações através do tempo e do espaço”.
É neste ponto que memória, história e jornalismo se cruzam.
A imprensa revoluciona, embora lentamente, a memória ocidental.
Revoluciona-se ainda mais lentamente na China, onde, apesar de a imprensa
ter sido descoberta no século IX da nossa era, ignoraram-se os caracteres
móveis, a tipografia; até à introdução, no século XIX, dos processos mecânicos
ocidentais, a China limitou-se à xilografia, impressão de pranchas gravadas em
relevo. A imprensa não pôde agir de forma massiva na China, mas os seus
efeitos sobre a memória, pelo menos entre as camadas das cultas, foram
importantes, pois imprimiram-se sobretudo tratados científicos e técnicos que
aceleram e alargaram a memória do saber (LE GOFF, 2012, pag. 438)
O estabelecimento da imprensa amplia o leque de textos publicados e, com isso, há um aumento
das memórias individuais que se exteriorizam. A partir daí, há uma evolução na prática da
memória até o apogeu da fotografia, que consistiu em um novo marco. Afinal, a memória passou
a ser guardada dentro de uma gaveta.
Alicerce do jornalismo ao lado da escrita, a fotografia teve sua adesão completa pela população
de forma gradativa. De início, as pessoas não ousavam olhar diretamente para as imagens que
3 LE GOFF, 2012, pag. 405
retratavam a presença humana, temiam poder ser vistas por aqueles pequenos rostos, devido à
tamanha qualidade e nitidez das fisionomias no processo daguerreotipo4. Após esse período de
temor, a fotografia assumiu um posicionamento diferente dentro da sociedade, sendo vista como
memória visual de uma pessoa ou uma família, perpetuando um momento, um indivíduo ou
uma fase da vida.
Fotografia é memória enquanto registro da aparência dos cenários,
personagens, objetos, fatos, documentando vivos ou mortos, é sempre memória
daquele preciso tema, num dado instante de sua existência/ocorrência. É o
assunto ilusoriamente retirado de seu contexto espacial e temporal, codificado
em forma de imagem (KOSSOY, 2007).
Assim, fotografia e escrita, serviram e servem ao jornalismo como ferramenta de sua
composição. Este, por sua vez, desempenha uma relação direta com a história e a memória
coletiva de uma sociedade, registrando em tempo presente a percepção inicial de determinados
acontecimentos.
O advento da história do tempo presente e o jornal como fonte
Além de algumas vezes compartilharem o mesmo objetivo de análise, o Jornalismo e a História
desenvolveram pontos de interseção que abrangem também a análise teórica dos dois campos
acadêmicos. Um exemplo são os estudos do filosofo alemão Jürgen Habermas5, membro da
Escola de Frankfurt, pilar do conceito de indústria cultural e do jornalismo moderno, que ao
mesmo tempo refletiu em sua obra “Mudança estrutural da esfera pública”, conceitos
imprescindíveis aos historiadores.
Sendo um dos principais pensadores da segunda fase da escola de Frankfurt – a qual teve sua
primeira fase marcada pelos estudos de Theodor Adorno, Max Horkheimer, Erick Fromm e
Herbert Marcuse – o filósofo se debruçou sobre a instituição imprensa, e as gradativas
mudanças desde a criação até a mercantilização, para balizar alguns dos seus principais
conceitos, como o da “esfera pública”, pessoas privadas relacionando-se como público.
A esfera pública burguesa pode ser entendida inicialmente como a esfera das
pessoas privadas reunidas em um público; elas reivindicam esta esfera pública
regulamentada pela autoridade, mas diretamente contra a própria autoridade
4 Desenvolvido em 1837 por Louis Jacques Mandé Daguerre, foi apresentado publicamente em 1839. O governo
francês declarou o invento como domínio público. É um equipamento responsável pela produção de uma
imagem fotográfica sem negativo. 5 Nasceu na cidade de Dusseldor, Alemanha, em 1929, durante a crise econômica de Nova York e se dedicou a
estudar o homem em sociedade, abordando temas como direito, política, história, ética e comunicação.
(HABERMAS, 2003, pag. 42)
Segundo Habermas (2003)6, a separação entre o “público” e o “privado” passou a ocorrer nas
sociedades inglesas, francesas e alemãs, graças à pressão exercida pelo capitalismo burguês
sobre as respectivas monarquias e parlamentos. O setor público limita-se ao poder público e a
corte. O setor privado abrange a “esfera pública” propriamente dita, afinal ela é a esfera pública
de pessoas privadas.
Em termos mais palpáveis, as esferas privadas, que o filósofo define, são aquelas de convívio
familiar, de troca de mercadorias ou do trabalho social. A título de exemplificação, Habermas
chega a citar o “status do homem privado” que “combina o papel de dono de mercadorias com
o pai de família, o de proprietário com o de ‘homem’ simplesmente”7.
Já a esfera pública tem entre suas facetas os herdeiros da aristocracia em contato com a camada
intelectual da própria burguesia. O cenário desses encontros eram os cafés entre 1680 a 1730 e
os salões posteriormente. Esses locais assumiam, gradativamente, funções sociais. Eram onde
poderiam ter acesso mais fácil aos círculos da moda, mas, acima de tudo, promover a interação
entre as camadas mais amplas da classe média e até mesmo artesãos. Damas da aristocracia e
da burguesia circulavam com príncipes, condes, bem como relojoeiros. A sociedade pretendia
“encontrar, assim, uma igualdade e sensibilidade entre pessoas de classes desiguais”8.
Por mais que se diferenciam entre si comunidade de comensais, salões e cafés,
no tamanho e na composição de seu público, no estilo de seu comportamento,
no clima de raciocínio e na orientação temática, todos tendem sempre a
organizar a discussão permanente entre pessoas privadas (HABERMAS, 2003,
pag.51)
Nos salões e cafés havia regras e critérios. O primeiro deles seria uma espécie de sociabilidade
que pressupunha algo como a igualdade de status; o segundo, questionamento a setores que até
então eram considerados inquestionáveis; e o terceiro seria o não fechamento ao público. Nesse
ambiente, propício à interação social, também se tornaram mais acessíveis obras filosóficas e
literárias que antes eram restritas apenas à intelectualidade.
As revistas logo aumentaram sua periodicidade e encontraram nestes cenários uma função
efetiva: divulgar para aquele público dos salões e cafés as críticas de arte, música e literatura.
6 HABERMAS, Jurgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigação quanto à uma
categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiros, 2003 7 Idem 15, pág. 44 8 Idem 15, pág. 50
Habermas (2003) considera como um fenômeno chave os hebdomadários9 moralistas, que
também eram distribuídos nos ambientes de esfera pública e pautavam discussões. Com o
aumento na quantidade de cafés, a eficiência das revistas mensais como forma de manter a
coesão entre os grupos passou a ser questionada, o que abriu precedente para a instauração dos
jornais. Os artigos publicados nestes periódicos passaram a manter uma interação com os
frequentadores dos cafés, estabelecendo uma forma de diálogo muito próxima da palavra falada.
Essa reflexão de Habermas (2003) sobre a imprensa introduziria uma maior análise sobre o
papel desempenhado por ela na esfera social. Segundo Rudiger (2001), Habermas mostrou que
uma parcela importante de conquistas e liberdades que desfrutamos hoje se deveu a formação
de uma esfera pública, em que sujeitos em princípio livres se reuniam para discutir e deliberar
sobre interesses comuns. A reflexão se faz indispensável principalmente quando se trata da
trajetória da mídia na dualidade entre ferramenta de cidadania e arma de consumo (jornalismo
x publicidade). Nesta vertente, o filósofo alemão também toca em um ponto sensível da
imprensa: as pressões exercidas tanto pelo mercado quanto pelo Estado.
Em comparação com a imprensa da era liberal, os meios de comunicação de
massa alcançaram, por um lado, uma extensão e uma eficácia
incomparavelmente superiores e, com isso, a própria esfera pública se
expandiu. Por outro lado, assim, eles também foram cada vez mais desalojados
dessa esfera e reinseridos na esfera, outrora privada, do intercâmbio de
mercadorias, quando maior se tornou sua eficácia jornalístico-publicitária,
tanto mais vulnerável eles se tornaram à pressão de determinados interesses
privados, sejam individuais, sejam coletivos. (HABERMAS, 1984, p.221)
Recorrendo constantemente à mídia para conceitualizar seu estudo sobre os limites do público
e do privado, Habermas frisa sobre a prática do jornalismo: “Mesmo o jornalismo político deve,
como todas as instituições que exercem uma influência privilegiada de modo demonstrativo ou
manipulativo, na esfera pública, por sua vez estar subordinada ao mandamento democrático de
ser abertamente público”10. Com toda essa capacidade de influência, a media passa a exercer
um papel importante sobre a memória coletiva, pois:
Toda a evolução do mundo contemporâneo, sob a pressão da história imediata
em grande parte fabricada ao acaso pela media, caminha em direção a um
mundo de memórias coletivas, e a história estaria, muito mais que antes ou
recentemente sob a pressão dessas memórias coletivas (LE GOFF, pag.453,
2012).
Na passagem acima, Le Goff (2012) ainda toca em um tema imprescindível quando se analisa
9 Periódicos publicados semanal ou mensalmente. 10 Idem 15, pág. 244-245
História e Jornalismo: a história do tempo presente. Mais do que um modismo, este ramo de
análise dos fatos mais contemporâneos se fortaleceu nos últimos anos ao ritmo da popularização
dos meios de comunicação de massa. Rioux (2011) atribui a um movimento do final da década
de 1970 na França os primeiros avanços acadêmicos da História do Tempo Presente, por meio
da criação do Institut d’Histoire du Temps Présent (IHTP)11, que conduziu pesquisas específicas
sobre esse esboço.
Bédarida (2002) classificou como penoso o “parto” da História do Tempo Presente, assim como
“agitada” a sua “primeira infância”. O motivo era a desconfia do ramo histórico perante nova
proposta, o que pesava principalmente sob os ombros de quem se arriscava no HTP. Apenas
com o passar dos anos, o navio, “afastando-se das zonas tempestuosa, ingressou em águas mais
tranquilas”, como pontua Bédarida (2002).
Duas questões se fazem necessárias quando se reflete o presente sob a ótica da História: como
distinguir a fronteira cronológica que separa uma história do presente e uma história do
passado? E mais: pode o presente ser objeto de análise da História?
Sobre a primeira, Bernestein e Milz a (2011) elucidam que “a fronteira é mutável e não há uma
separação porque não há entre elas nenhuma solução de continuidade”12. O que não significa
que não tenha especificidade. Ela se situa na “emergência do fenômeno” no “seio do presente”.
Bédarida (2002) frisa que a HTP é uma história inacabada, ou seja, em constante movimento e
sendo renovada constantemente, o que reforça a percepção de fronteira mutável.
Já sobre a segunda indagação, autores como Jean Lacouturer e Charles Albert Ageron, aquele
jornalista-historiador e este historiador-jornalista, sustentaram o intercâmbio ou a
interdisciplinaridade da História com outras áreas de conhecimento e em uma “mestiçagem
ideológica” na tentativa de ampliar os horizontes historiográficos e da própria História do
Tempo Presente.
Jean Laccouturer (2005) se debruça sobre essa nova área historiográfica e registra a
convergência entre as duas disciplinas, que nem sempre foi amigável, mas trabalham, de formas
11 Liderado desde 2014 por Christian Delage, a Institut d’Histoire du Temps Présent é uma unidade própria do
Centre National de la Recherche Scientifique CNRS, cujas linhas de pesquisa da história cultural da guerra
no século XX principal para o estudo dos sistemas autoritários, totalitários e coloniais de dominação através
da história de produções culturais nas sociedades do século XX (site: http://www.ihtp.cnrs.fr/ acessado em 05
de novembro de 2011) 12 Bernestein e Milza, 2011, pag. 128
diferentes, com a mesma ferramenta: o acontecimento. “O jornalista-camundongo rói
gulosamente suas avelãs. O historiador-esquilo as acumula. ‘O imediatista’ acumula roendo”,
exemplifica, diferenciando o historiador tradicional do historiador imediatista.
Resende (2011) elucida a reflexão do autor. “O jornalismo faz uma escuta mais localizada, o
historiador mais abrangente. O primeiro capta o momento. O segundo, a duração”13. Laccouture
(2005), ao analisar a história imediata, ainda mira suas críticas na escola de Annales14. Segundo
ele, após o estabelecimento dos meios de comunicação de massa – imprensa, rádio e televisão
– e o desencadeamento de “acontecimentos monstros”, a escola de Annales se posicionou
contrária à ditadura do factual. Chauveau e Tétart (2011) classificaram a História Imediata
como um “gênero híbrido” devido à interdisciplinaridade já citado, e pontuaram a quase
inexistência de citações do ramo nas principais obras de sustentação da Escola da Annales.
Por sua vez, Bédarida (2002) recorrer a dois dos criadores da mesma Escola de Annales, Lucien
Febvre e Marc Bloch, para elucidar a necessidade de intercâmbio entre o presente e passado na
busca da verdade histórica e reforçar seus argumentos sobre a necessidade do aprofundamento
das pesquisas sobre a História do Tempo Presente.
De fato da união e a interação do presente e do passado constituem a principal
inovação trazida pelo projeto IHTP. A bem dizer, o CNRS (Centre National de
la Recherche Scientifique) estava assim reatando laços com instituições
fecundas como havia sido as dos fundadores dos Annales, Lucien Febvre e
Marc Bloch. É famosa a palavra de ordem do primeiro ‘compreender o
presente por meio do passado e sobretudo o passado por meio do presente’.
Para o segundo, “a solidariedade do presente e do passado é a justificativa da
história (BÉDARIDA, 2002, pag.221)
Seguindo na mesma vertente de defesa da HPT e da intercessão entre Jornalismo e História, em
sua dissertação de doutorado, Kushnir (2001) cita os estudos de Jean-Pierre Rioux para salientar
os dois olhares sobre o presente exercidos pelas duas atividades acadêmicas e aponta que
“jornalistas e historiadores estão lado a lado na construção dessa história do tempo presente”.
A diferença estaria no tempo exercido por cada função. Enquanto os profissionais da notícia
têm que lidar com a “angústia da pequena morte diária”, o que os obriga a reunir fatos sem
tempo de tratar as fontes; os historiadores, por sua vez, “inserem o acontecimento na cadeia de
um tempo significativo”, pontuou Rioux (2011).
13 Resende, 2011, pag.74 14 Movimento historiográfico que emergiu na França, na primeira metade do século XX. Em suas diversas fases,
contou com historiadores como Marc Bloch, Jacques Le Goff e Pierre Nora.
Ao citar as diferenças das pesquisas jornalísticas e históricas, Rioux (2011) pondera que o
diálogo entre as áreas é essencial, mesmo com uma trajetória de indiferença recíproca que
marcou a relação entre as duas em âmbito acadêmico.
A visão cotidiana (do jornalista) consiste em forçar a atenção do leitor ou do ouvinte
para o ‘papel’, em mergulhar sem enfado na torrente ininterrupta de acontecimentos
confusos que faz a atualidade, em vencer a angústia da pequena morte diária. (RIOUX,
2011, pag.120)
Ele (o historiador) mantém uma discussão permanente com seus confrades em ciências
sociais, constrói e erige a distância seu objetivo de estudo e lhe dá assim um estatuto
cientifico, procura sempre inserir o acontecimento singular na cadeia do tempo
significativo, tenta distinguir o perdurável do efêmero, relata os fatos sem ser
perseguido pela hora do ‘fechamento”. (RIOUX, 2011, pag.120)
A tênue linha que separava drasticamente a trajetória acadêmica das duas áreas começou a ceder
de forma gradativa, porém respeitando a independência de cada uma. Vozes acadêmicas, como
o próprio Laccouturer (2001), passaram a registrar em seus artigos que os jornalistas “não se
contentariam em registrar apenas o eco da atualidade, que saberia utilizar material elaborado e
exercer seu olhar crítico”. Para alcançar essa ambição, os meios de comunicação de massa
tiveram papel determinante, principalmente na “representação e produção de acontecimentos e,
portanto, na respiração da História, depois na implantação de uma cultura de massa”, assim
como estudou Harbermas.
De qualquer forma, as duas áreas estabeleceram uma intercessão frutífera a partir da história
imediata. Laccouturer (2001) chega a pontuar que ela não se configura como uma futilidade do
século atual, mas como uma tendência. Afinal, a sociedade, alucinada por informação, tem
exigido cada vez mais ficar a par dos fatos. Jeanneney (1996) pontuava: “Na vida cotidiana de
um jornal, de uma rádio, de uma televisão, se reflete constantemente a vida política de um
País”15.
Porém, ainda há outras questões no debate sobre a HPT que merecem reflexões, principalmente
quando se elege produtos midiáticos como objetos e fontes. Algumas delas são: tendo
conhecimento dos interesses provenientes das empresas midiáticas, as notícias devem ser
tratadas como pura verdade dos fatos? Os jornais e seus conteúdos efetivamente podem ser
utilizados como fontes históricas?
Conte (2004), recorrendo a Lage (2001)16, pontua o que seria o conceito de notícias jornalísticas
15 Jeanneney, 1996, pag. 225 16 LAGE, Nilson. Ideologia e Técnica da Notícia. Florianópolis: EdUFSC, 2001.
reforçando a ideia que são formas de informar sobre um determinado fato de interesse público
àqueles que não o presenciaram.
A notícia é ‘a articulação simbólica que transporta a consciência do fato a quem
não o presenciou’ e que ela é composta de uma organização relativamente
estável que vem a constituir seu componente lógico e componentes
ideológicos, que são representados pelos elementos escolhidos segundo
critérios de valor essencialmente cambiáveis que se organizam na notícia
(CONTE, 2004,
https://periodicos.ufsc.br/index.php/jornalismo/article/viewFile/2079/1822)
Ao discutir a notícia, a pesquisadora toca em um ponto importância que mais uma vez abarca
o ramo do Jornalismo e da História: o “Mito da Objetividade”. Conte (2004) destaca que, entre
os pensadores da mídia, este conceito vem sendo discutido desde o século XIX, embalado por
questões como isenção e imparcialidade nas informações.
Segundo ela, aqueles que defendem a subjetividade da cobertura jornalística alegam que o
profissional da notícia sofre pressão do cotidiano da profissão, dos interesses da empresa, da
falta de tempo e espaço, das ideologias próprias e de seus empregadores e que a simples escolha
das fontes já se configura como obstáculo à objetividade.
Bédarida (2002), ao tratar da busca da verdade nas apurações históricas, também cita o difícil
empecilho da objetividade. “Certamente todos reconhecem que a objetividade absoluta não
existe”, pondera. Mesmo se referindo às pesquisas históricas, tal afirmação poderia facilmente
ser utilizada para ilustrar o motivo pelo qual os historiadores receavam em utilizar jornais como
fonte, ou seja, a falta de objetividade da cobertura.
Luca (2011) faz coro reforçando que o motivo da resistência dos historiadores era devido à
influência de interesses, compromissos e paixões por parte daqueles que produziam os
periódicos. Outra alegação era que os jornais registram o presente de forma fragmentada, não
tendo espaço para análises mais amplas e aprofundadas.
Ao mesmo tempo que a desconfiança pesava, os jornais passavam a se firmar como principal
fonte de informação de vários grupos sociais, crescendo sua credibilidade. Capelato (1980)
destaque que era inegável a capacidade da imprensa de “modelar” dos pensamentos políticos e
estimular atitudes de seus leitores de acordo com valores impressos nas entrelinhas de suas
reportagens.
Apenas com as renovações das abordagens políticas na História, em especial a “revolução
documental”, e em seguida o retorno da História Política e Cultural, que a desconfiança para
com a imprensa escrita diminui. Sua utilização, entretanto, necessitava de precauções, não
diferentes do tratamento dos documentos na pesquisa histórica. Deveria, portanto, ser
submetida à crítica.
(...) para um tipo de utilização da imprensa periódica que não se limita a extrair
um ou outro texto de autores isolados, por mais representativos que sejam, mas
antes prescreve a análise circunstanciada do seu lugar de inserção e delineia
uma abordagem que faz dos impressos, a um só tempo, fonte e objeto de
pesquisa historiográfica, rigorosamente inseridos na crítica competente
(LUCA, 2011, pag.141)
O primeiro ponto destacado por Luca (2011) é considerar que a imprensa e consequentemente
a notícia sofrem influência de interesses políticos e de lucros. Isso ocorre no simples ato de
selecionar, ordenar, estruturar e narrar um acontecimento de determinada maneira. O segundo
está em definir o público para o qual aquela publicação se direciona. Por fim, o contexto
histórico e a estrutura social dos objetos analisados.
Vale destacar que, mesmo com todo o potencial de análise histórica, quanto se elege as
informações de um periódico para uma análise científica é necessário promover alguns
questionamentos, como: qual a motivação que levou àquela publicação? Quem era o grupo
responsável pela linha editorial? Quem eram os colaboradores? A qual público pretende atingir?
Qual a relação com os Poderes, os interesses financeiros e o caráter publicitário? Existe
interferência na autonomia para a veiculação de informações? Este último ponto se mostra de
expressa importância, afinal, na longa história da imprensa mundial não são raros os episódios
manchados pelas censura, um mal que vem maculando o intuito da imprensa a séculos.
Conclusão
O historiador Boris Fausto17 chegou a pontuar uma vez que o “presente para historiador, por
mais que se diga ao contrário, é sempre um terreno pantanoso”. Mas isso não significa que seja
um terreno impossível. Afinal, a História Imediata ou História do Tempo Presente vem
ganhando adeptos há cada ano e propõe uma análise do passado próximo por meio de uma
intercessão entre as atuações e métodos utilizados por jornalistas e historiadores. No âmbito
acadêmico são diversas as fontes sobre o tema. Jean-Pierre Rioux (1999) se debruçou sobre o
intercâmbio entre as áreas pra elaborar seu artigo “Entre História e Jornalismo”, Kushnir (2001)
17 Trecho retirado da epigrafe da obra “Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de
1988” de Beatriz Kushni
chegou a citá-lo para salientar os dois olhares sobre o presente exercidos pelas duas atividades
acadêmicas e apontar que “jornalistas e historiadores estão lado a lado na construção dessa
história do tempo presente”. Além disso, os estudos de Jean Laccouture também representam
um considerável avanço.
Ou seja, a História do Tempo Presente passou a galgar um espaço dentro dos estudos históricos
contando com uma impulso importantíssimo dos jornalistas. A intercessão foi mais do que
frutífera já que até mesmo os mecanismos próprios dos profissionais da comunicação foram
adotados pelos historiadores, a exemplo do gravador.
Uma das ferramentas para a construção da HTP é a história oral (pelo lado dos historiadores) e
a entrevista (jornalismo), que tem uma ligações intrínseca com a memória. Mesmo
representando risco – Kushnir (2001) chega a apontar o risco das “teias de memória”, que nada
mais é do que “possíveis armadilhas que a narrativa memorialistas podem construir” -, a
memória é fundamental para resguardar as percepções de acontecimentos recentes que
marcaram uma geração ou uma cidade e é alvo tanto dos jornalistas quanto dos historiadores,
que buscam registrar, divulgar a analisar os acontecimentos. Estes, inclusive, sempre foram
objetos de análise que aproximou as duas áreas acadêmicas.
Além disso, nas últimas décadas, os trabalhos históricos cada vez mais se debruçam sobre o
jornais tanto como fontes como também como objeto. De início, como ficou evidente, houve
certa resistência por parte dos historiadores, temendo que as influências políticas e econômicas
das empresas de comunicação e até as ideologias pessoais dos jornalistas influenciassem demais
na cobertura. Porém, com o advento dos novos estudos da historiografia, passou-se a adotar a
mesma técnica utilizada na crítica aos documentos para com os jornais. Algumas das questões
necessárias na análise de um periódico passaram a ser primordiais, como: qual o público
destinado a reportagem em análise, qual o veículo, quem são os colaboradores, entre outras.
Por fim, como ficou evidente, jornalistas e historiadores cresceram separados e mantiveram
uma “indiferença reciproca” por décadas. O que só veio a mudar a partir da década de 1960 a
partir da advento da História do Tempo Presente. Hoje este é um campo frutífero para
aprofundamento acadêmico tanto por parte de pesquisadores da área de comunicação quanto da
área da história.
Referências bibliográficas
BÉDARIDA, François. Tempo presente e presença da história. In: FERREIRA, Marieta de M.;
AMADO, Janaína. Usos e abusos da história oral. 5.ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2002
BERNSTEIN, Serge, MILZA, Pierre. Conclusão. In CHAUVEAU, Agnès. Questões para a História do
Presente. Bauru, SP: EDUSC, 1999
CAPELATO, Maria Helena. Imprensa e História do Brasil. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1988.
CHAUVEAU, Agnès. TÉTART, P. (orgs.) Questões para a História do Presente. Bauru, SP: EDUSC,
1999
CONTE (2004), A impossível pureza humana: um estudo da objetividade da notícia,
https://periodicos.ufsc.br/index.php/jornalismo/article/viewFile/2079/1822 - acessado
em 18 de maio de 2016
HABERMAS, Jurgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigação quanto à uma categoria
da sociedade burguesa. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiros, 2003
JEANNENEY, Jean-Noel, A Mídia. In: RÉMOND, R. Por uma história política.
KUSHNI, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. Tese de
Doutorado, Universidade Estadual de Campinas, 2001.
LACCOUTURE, Jean. A História imediata, In LE GOFF, Jacques. A história nova. São Paulo, Martins
Fontes, 2001
LE GOFF, Jacques. “História e Memória” – 6ª ed. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2012
LUCA, Tânia Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In. BASSANEZI, Carla Pinsky
(Org.). Fontes históricas. 3 ed. São Paulo: Contexto, 2011
RESENDE, Lino Geraldo, A Censura Contra a cidadania. Vitória: Editora
RUDIGER, Francisco. A escola de Frankfurt. In: HOHLFELDT, Antonio, MARTINO (org), Luiz C.,
FRANÇA, Vera Veiga. Teorias da comunicação: conceito, escolas e tendências. Petrópolis, RJ: Vozes,
2001
RIOUX, Jean-Pierre, “Entre História e Jornalismo” In CHAUVEAU, Agnès. TÉTART, P. (orgs.)
Questões para a História do Presente. Bauru, SP: EDUSC, 1999