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HORIZONTES Revista Semestral do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco Volume 30 Número 2 Julho/Dezembro de 2012 ISSN 0103-7706 A revista Horizontes é um veículo de divulgação e debate da produção científica na área de Educação e está vinculada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco, Itatiba/SP. O propósito da revista é servir de fórum para a apresentação de pesquisas desenvolvidas, estudos teóricos e resenhas na área de Educação, em suas vertentes históricas, culturais e de práticas educativas. Com vistas a manter uma interlocução com pesquisadores nacionais e internacionais, a revista aceita publicações nas línguas portuguesa, inglesa, francesa e espanhola. Os textos publicados são submetidos a uma avaliação às cegas pelos pares, componentes do conselho editorial ou consultores ad hoc. Os conteúdos não refletem a posição, opinião ou filosofia, nem do Programa de Pós-Graduação nem da Universidade São Francisco. A revista é composta de dossiês com temática educacional coerente com a política editorial da mesma e/ou artigos de demanda espontânea encaminhados e aprovados para publicação. Os direitos autorais das publicações da Horizontes são da Universidade São Francisco, permitida apenas ao autor a reprodução do seu próprio material, previamente autorizado pelos editores da revista. As transcrições e traduções são permitidas, desde que no limite dos 500 vocábulos e mencionada a fonte. Dossiê: Currículo e práticas sociais Editores Alexandrina Monteiro Jackeline Rodrigues Mendes Paula Leonardi Conselho Editorial Ademir Donizeti Caldeira - UFScar Alfredo Veiga-Neto - UFRGS Beatriz Maria Eckert-Hoff - Unianchieta Carlos Alberto de Oliveira - Unitau Celi Espasandin Lopes - Unicsul Celina Ap. Garcia de Souza Nascimento - UFMS Daniel Clark Orey - UFOP Dario Fiorentini - Unicamp Décio Gatti Júnior - UFU Denise Silva Vilela - UFScar Elisabeth Ramos da Silva - Unitau Elizeu Clementino de Souza - UNEB Elzira Yoko Uyeno - Unitau Ernesto Sérgio Bertoldo - UFU Gelsa Knijnik - UNISINOS Juliana Santana Cavallari - Unitau Maria Ângela Borges Salvadori - USP Maria Auxiliadora Bueno Megid - Puccamp Maria Carolina Galzerani Boverio - Unicamp Maria Cristina Soares Gouveia - UFMG Maria Gorete Neto - UFMG Maria José Rodrigues Faria Coracini - Unicamp Maria Laura Magalhães Gomes - UFMG Maria Tereza Menezes Freitas - UFU Maura Corsini Lopes - UNISINOS Maurício Rosa - ULBRA Patrick Anderson - Université de Franche-Comté Rebecca Rogers - Université Paris Descartes Renata Prenstteter Gama - UFScar Rita de Cássia Galego USP Rosana Giaretta Sguerra Miskulin - UNESP/RC Samuel Edmundo López Bello - UFRGS Vera Lúcia Gaspar da Silva - UDESC Edição Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Educação Revisão Enid Polachini Abreu Projeto Gráfico, Revisão e Diagramação Samanta Mazzolini

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Page 1: HORIZONTES - Universidade São Francisco · HORIZONTES Revista Semestral do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco Volume 30 Número

HORIZONTES Revista Semestral do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco

Volume 30 Número 2 Julho/Dezembro de 2012

ISSN 0103-7706

A revista Horizontes é um veículo de divulgação e debate da produção científica na área de Educação e está

vinculada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco, Itatiba/SP.

O propósito da revista é servir de fórum para a apresentação de pesquisas desenvolvidas, estudos teóricos e

resenhas na área de Educação, em suas vertentes históricas, culturais e de práticas educativas. Com vistas a manter

uma interlocução com pesquisadores nacionais e internacionais, a revista aceita publicações nas línguas

portuguesa, inglesa, francesa e espanhola. Os textos publicados são submetidos a uma avaliação às cegas pelos

pares, componentes do conselho editorial ou consultores ad hoc. Os conteúdos não refletem a posição, opinião ou

filosofia, nem do Programa de Pós-Graduação nem da Universidade São Francisco.

A revista é composta de dossiês com temática educacional coerente com a política editorial da mesma e/ou artigos

de demanda espontânea encaminhados e aprovados para publicação. Os direitos autorais das publicações da

Horizontes são da Universidade São Francisco, permitida apenas ao autor a reprodução do seu próprio material,

previamente autorizado pelos editores da revista. As transcrições e traduções são permitidas, desde que no limite

dos 500 vocábulos e mencionada a fonte.

Dossiê: Currículo e práticas sociais

Editores

Alexandrina Monteiro

Jackeline Rodrigues Mendes

Paula Leonardi

Conselho Editorial

Ademir Donizeti Caldeira - UFScar

Alfredo Veiga-Neto - UFRGS

Beatriz Maria Eckert-Hoff - Unianchieta

Carlos Alberto de Oliveira - Unitau

Celi Espasandin Lopes - Unicsul

Celina Ap. Garcia de Souza Nascimento - UFMS

Daniel Clark Orey - UFOP

Dario Fiorentini - Unicamp

Décio Gatti Júnior - UFU

Denise Silva Vilela - UFScar

Elisabeth Ramos da Silva - Unitau

Elizeu Clementino de Souza - UNEB

Elzira Yoko Uyeno - Unitau

Ernesto Sérgio Bertoldo - UFU

Gelsa Knijnik - UNISINOS

Juliana Santana Cavallari - Unitau

Maria Ângela Borges Salvadori - USP

Maria Auxiliadora Bueno Megid - Puccamp

Maria Carolina Galzerani Boverio - Unicamp

Maria Cristina Soares Gouveia - UFMG

Maria Gorete Neto - UFMG

Maria José Rodrigues Faria Coracini - Unicamp

Maria Laura Magalhães Gomes - UFMG

Maria Tereza Menezes Freitas - UFU

Maura Corsini Lopes - UNISINOS

Maurício Rosa - ULBRA

Patrick Anderson - Université de Franche-Comté

Rebecca Rogers - Université Paris Descartes

Renata Prenstteter Gama - UFScar

Rita de Cássia Galego – USP

Rosana Giaretta Sguerra Miskulin - UNESP/RC

Samuel Edmundo López Bello - UFRGS

Vera Lúcia Gaspar da Silva - UDESC

Edição

Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Educação

Revisão

Enid Polachini Abreu

Projeto Gráfico, Revisão e Diagramação

Samanta Mazzolini

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Publicações:

Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação

Secretaria de Pós-Graduação

Apoio Executivo às Comissões de Pós-Graduação

Av. Alexandre Rodrigues Barbosa, 45 - Centro

CEP: 13251-900 Itatiba-SP

Tel: (11) 4534-8040/ 4534-8080 Fax: (11) 4524-1933

Homepage: http://www.saofrancisco.edu.br/itatiba/mestrado/educacao

Editora Universitária São Francisco - EDUSF

Av. Francisco de Assis, 218

CEP: 12916-900 Bragança Paulista - SP

Tel: (11) 4534-8040 Fax: (11) 4524-1933

Homepage: http://www.saofrancisco.edu.br/edusf

Ficha catalográfica elaborada pelas Bibliotecárias do Setor de

Processamento Técnico da Universidade São Francisco.

Pede-se permuta

Se pide canje

We ask for Exchange

On demande l’échange

Man bittet um Austausch

Si richiede lo scambio

Indexação em:

Psicodoc (Espanha); Clase (México); Francis

(França).

Horizontes / Universidade São Francisco. -- Vol. 14 (1996)-. -- Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 1996-

v. : il.

Anual, 1996-2003; semestral, 2004-

Continuação de: Revista das Faculdades Franciscanas (1983-1985); Revista da

Universidade São Francisco (1986-1989); Horizontes: revista de ciências humanas

(1990-1995)

Disponível on-line: http://www.usf.edu.br/revistas/horizontes

ISSN 0103-7706 (versão impressa)

ISSN 2317-109X (versão on-line)

1. Ciências humanas - Periódicos. 2. Linguagem - Periódicos. 3. Educação -

Periódicos. 4. Educação matemática - Periódicos 5. Historiografia - Periódicos.

I. Universidade São Francisco.

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3

Sumário

5 Editorial

Dossiê

7

19

31

43

59

69

81

95

Discursos curriculares da formação docente, projetos de trabalho e seus elos com a

racionalidade neoliberal

Jaqueline de Menezes Rosa

Maria Isabel Edelweiss Bujes

As práticas curriculares em Matemática que se produzem pelo governo do IDEB

Samuel Edmundo Lopez Bello

Currículo e gênero: produção e naturalização das diferenças na escola

Julia Mayra Duarte Alves

Laura Cristina Vieira Pizzi

Mídia e Juventudes: produzindo relações curriculares

Lisandra Veiga dos Santos

Elisabete Maria Garbin

A Concepção de Ensino Médio e de Currículo Expressa na Proposta de São Paulo

Dirce Djanira Pacheco e Zan

Corpo, comida e cultura: Discussão e problematização os padrões contemporâneos de

beleza/saúde no ensino de ciências

Tatiana Souza de Camargo

Nádia Geisa Silveira de Souza

Educação pública: currículo e formação de jovens alunas no Ensino Médio

Leny Cristina Soares Souza Azevedo

Ligia Karam Corrêa de Magalhães

Práticas sociais híbridas: contribuições para os estudos curriculares em Educação Matemática

Marcio Antonio da Silva

Artigos

103

115

119

121

IES – Uma experiência inclusiva no ensino superior

Lia Scholze

Iolanda Bezerra dos Santos Brandão

Resenha: Do governo dos Vivos – Curso no Cóllege de France, 1979-1980 (excertos)

Clarice Nunes Ferreira Costa

Relação das dissertações defendidas no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em

Educação da Universidade São Francisco no período de julho a dezembro de 2012

Normas para publicação

Publishing Norms

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4

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5

Editorial

A Revista Horizontes, iniciativa do

Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em

Educação da Universidade São Francisco, chega à

sua trigésima edição, consolidando-se como órgão

de divulgação de produções relacionadas a

Linguagem, Discurso e Práticas Educativas;

Matemática, Cultura e Práticas Pedagógicas, bem

como História, Historiografia e Idéias

Educacionais, linhas de pesquisa do programa.

Igualmente, mantém seu espaço aberto a

colaborações de pesquisadores do país e de outras

partes do mundo, fomentando diálogos

interdisciplinares, sempre necessários à pesquisa

educacional. Dossiê temático e contribuições

oriundas de demanda espontânea, ambos

submetidos à avaliação do comitê científico, em

conjunto com resenhas temáticas e os resumos das

dissertações defendidas no programa formam a

estrutura básica dos números da revista.

Neste número, a revista Horizontes

publica o dossiê Currículo e práticas sociais,

composto por 8 artigos, com contribuições de

diferentes pesquisadores que abordam a temática

do currículo relacionada a diversos campos como

os discursos curriculares sobre a formação de

professores, as práticas curriculares e os índices

do IDEB, as relações de gênero, a abordagem do

corpo no currículo escolar, os currículos e a

educação pública voltada para os jovens, a

produção de identidades juvenis na mídia e o

currículo de Matemática.

O primeiro artigo, intitulado Discursos

curriculares da formação docente, projetos de

trabalho e seus elos com a racionalidade

neoliberal, das autoras Jaqueline de Menezes

Rosa e Maria Isabel Edelweiss Bujes apresenta

uma análise discursiva que problematiza os

Projetos de Trabalhos nos currículos da formação

docente atual. Inspiradas em teorizações de cunho

pós-estruturalista de acento foucaultiano,

apresentam uma analítica que incide, inicialmente,

sobre a articulação entre a discursividade

pedagógica da Modernidade e os ideais liberais.

Ao longo da análise as autoras ressaltam a

associação dos Projetos de Trabalho a formas de

governamento dirigidas a sujeitos ideais nas

diversas expressões do liberalismo,

potencializando a governamentalização da

sociedade.

O artigo de Samuel Edmundo Lopez

Bello, As práticas curriculares em Matemática

que se produzem pelo governo do IDEB, traz um

questionamento sobre por que e de que maneira se

mobilizam determinadas práticas curriculares no

espaço escolar. O autor discute as ações de

governo produzidas pelos números do IDEB e

procura analisar de que forma e quais estratégias

são utilizadas para a produção/mobilização dessas

ações de governo. Para isso apresenta o conceito

de numeramentalização, de inspiração

foucaultiana, e ressalta sua operatividade nos

índices produzidos pelo IDEB como forma lógica

e sedutora da ciência de expressão de

racionalidade e razão. Finalmente, sinaliza para

uma postura ética na formação de professores que,

de posse desta analítica, constitua uma

singularidade das práticas curriculares como

contraponto às ações de governo da política

educacional.

O terceiro artigo, intitulado Currículo e

gênero: produção e naturalização das diferenças

na escola, de Julia Mayra Duarte Alves e Laura

Cristina Vieira Pizzi traz uma discussão sobre a

produção de subjetividades em uma escola de

ensino fundamental em um bairro de Maceió/AL.

O artigo problematiza a demarcação de gênero

constituída a partir de duas atividades econômicas

e culturais presentes no lugar, a produção da renda

filé e a pesca. A partir dos enunciados que

circulam na escola sobre essas atividades, com

base nas ferramentas teóricas fornecidas por

Foucault, a análise das autoras incide sobre os

discursos produtores de subjetividades que

operam predominantemente na escola com base

nessa divisão sexual do trabalho.

O artigo Mídia e Juventudes: produzindo

relações curriculares de Lisandra Veiga dos

Santos e Elisabete Maria Garbin analisa como os

discursos midiáticos sobre juventude podem se

constituir em um currículo paralelo ao escolar na

produção de identidades juvenis. Com

contribuições provenientes dos Estudos Culturais,

dos estudos sobre juventude e dos estudos

foucaultianos na Educação, o artigo analisa 20

exemplares do Jornal Mundo Jovem dos anos de

2009 a 2010 e discute como determinadas

identidades juvenis são produzidas pelos discursos

midiáticos e como podem ser associadas às

representações produzidas e colocadas em

circulação nesse meio.

O artigo de Dirce Djanira Pacheco e Zan,

A Concepção de Ensino Médio e de Currículo

Expressa na Proposta de São Paulo, retoma o

debate sobre a identidade do Ensino do Médio nos

documentos curriculares face à recente mudança

no currículo para esse nível, em 2008, promovida

pela Secretaria de Educação do Estado de São

Paulo. No artigo, a autora faz uma retomada

histórica desse debate, a partir dos documentos

divulgados desde a década de 90, e discute as

Page 6: HORIZONTES - Universidade São Francisco · HORIZONTES Revista Semestral do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco Volume 30 Número

6 noções concernentes a esse nível de ensino bem

como a concepção de currículo com foco nas

disciplinas de Ciências Humanas.

O sexto artigo, intitulado Educação

pública: currículo e formação de jovens alunas no

Ensino Médio, de Leny Cristina Soares Souza

Azevedo e Ligia Karam Corrêa de Magalhães,

investiga a configuração do currículo no curso de

formação de professores em nível médio, em uma

escola pública estadual. O texto dialoga com o

contexto do ensino médio modalidade normal,

com as políticas de formação docente, situando a

realidade específica da instituição. A discussão

proposta no artigo ressalta o divórcio existente

entre a formação oferecida ao futuro professor da

Educação Básica e as necessidades de

profissionalização da carreira docente e aponta a

necessidade de que seja conferido aos egressos o

protagonismo no exercício da profissão, a partir

de trabalhos que sejam pensados nos contextos

sócio/político/econômico/cultural em que esses

cursos de formação ocorrem.

O artigo CORPO, COMIDA E

CULTURA: Discussão e problematização dos

padrões contemporâneos de beleza/saúde no

ensino de ciências, de Tatiana Souza de Camargo

e Nádia Geisa Silveira de Souza, problematiza a

abordagem do corpo humano nos currículos

escolares como um fenômeno puramente

biológico, desconsiderando os aspectos

sócio/histórico/culturais que o inscrevem

constantemente. O texto propõe uma discussão em

torno das relações entre corpo, comida e cultura

na contemporaneidade como uma possibilidade

para o currículo escolar.

O oitavo e último artigo que compõe o

dossiê, intitulado Práticas sociais híbridas:

contribuições para os estudos curriculares em

Educação Matemática de Marcio Antonio da

Silva, apresenta uma problematização dos

currículos prescritivos no campo da Matemática,

ressaltando a impossibilidade de pensar em

práticas sociais universais que possam gerar

prescrições curriculares centralizadoras que

orientem ações a serem efetivadas nas escolas,

não considerando a incerteza e a diversidade das

práticas educativas, sociais e culturais.

Trabalhando com o conceito de hibridação, o

texto argumenta que as próprias prescrições

curriculares apresentam discursos híbridos que

necessitariam de uma maior investigação, pois

representam misturas e construções que defendem

correntes teóricas distintas, algumas até

antagônicas.

O artigo que finaliza o volume de Lia

Scholze e Iolanda Bezerra dos Santos Brandão,

com o título IES – uma experiência inclusiva no

Ensino Superior, discute a importância do

acolhimento, do desenvolvimento da linguagem

oral e escrita e da reflexão na trajetória de alunos

ingressantes no Ensino Superior, marcado, muitas

vezes, por dificuldades de leitura e escrita,

principalmente os oriundos de classe popular.

Esse processo é discutido a partir da disciplina

Introdução à Educação Superior (IES), criada com

o objetivo de possibilitar uma mediação

pedagógica que apóie os estudantes na construção

da competência acadêmica necessária para sua

formação, introduzindo-os à reflexão teórica e à

compreensão da universidade como espaço de

ensino, pesquisa e extensão.

O volume traz uma resenha do primeiro

livro organizado por Nildo Avelino com excertos

do curso ministrado por Michel Foucault Do

governo dos Vivos – Curso no Cóllege de France,

1979-1980, por Clarice Nunes Ferreira Costa.

Finalmente, é apresentada a relação das

dissertações defendidas no Programa de Pós-

Graduação Stricto Sensu em Educação da

Universidade São Francisco no período de agosto

a dezembro de 2012, através da publicação de

seus resumos.

Esperamos que a leitura seja prazerosa e

que estes artigos possam estimular o diálogo com

outros grupos e pesquisadores.

Alexandrina Monteiro

Jackeline Rodrigues Mendes

Paula Leonardi

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7

* Endereço eletrônico: [email protected]

** Endereço eletrônico: [email protected]

Discursos curriculares da formação docente, projetos de trabalho e seus elos com a

racionalidade neoliberal

Jaqueline de Menezes Rosa*

Maria Isabel Edelweiss Bujes**

Resumo

O estudo propôs-se a problematizar a centralidade dos Projetos de Trabalhos nos currículos da formação

docente atual. Submetendo o material empírico – um conjunto de textos dos livros mais utilizados nos cursos

de Pedagogia da região metropolitana de Porto Alegre – a uma análise discursiva, inspirada em teorizações

de cunho pós-estruturalista de acento foucaultiano, faz-se inicialmente uma articulação entre a discursividade

pedagógica da Modernidade e os ideais liberais. Adicionalmente tal discursividade é articulada a um

conjunto de estratégias pedagógicas do presente, vistas, a partir do referencial teórico como práticas de

administração das condutas, tanto de professores quanto de alunos. Ao longo da análise ressalta-se a

associação dos Projetos de Trabalho a formas de governamento dirigidas a sujeitos ideais nas diversas

expressões do liberalismo, potencializando a governamentalização da sociedade. Investir, nos cursos de

formação, na proposta dos Projetos pode ser visto também como investimento em capital humano, prática

esta que visa promover a maximização dos potenciais de cada um, sendo útil tanto para a constituição

subjetiva dos docentes, quanto para o alcance das metas do projeto neoliberal.

Palavras-chave: Projetos de Trabalho; currículo da formação docente; discursos; governamento;

(neo)liberalismo.

Teacher’s education curricular discourses, project methods and it’s links to a neoliberal rationality

Abstract

This investigation intends to problematize the centrality of project methods in current teacher’s education

curricula. Submiting empirical material – an array of texts from books largely used in Pedagogy courses in

the metropolitan region of Porto Alegre – to a discursive analysis, inspired on post-structuralist theories and

Michel Foucault’s ideas, an articulation is made between Modernity’s pedagogical discursivity and liberal

ideals. Aditionally such discursivity is articulated to a set of today pedagogical strategies seen, due to the

investigation theoretical framework, as practices to administrate teachers and pupils conducts. Along the

analysis the association of project methods to government practices is stressed showing that it is directed to

diversified expressions of ideal subjects under liberalism, thus contributing to potentialize society’s

governmentalization. The emphasis on project methods in teacher’s education can be seen as an investment

on human capital, practice that intends to maximize each one’s potential, promoting the subjective

constitution of teachers as well as the goals of the neoliberal project.

Keywords: Project methods; teacher’s education curricula; discourses; government; (neo)liberalism.

Apresentação

As questões educacionais estão, hoje, na

ordem do dia. Grande parte dos problemas sociais

trazidos à discussão aparecem de alguma forma

associados a discursos que pautam fragilidades

dos processos educativos. Num registro que oscila

da responsabilização da escola por inúmeros

insucessos sociais a posicionamentos

salvacionistas, que creditam a ela a superação dos

descaminhos de toda ordem, pode-se inferir o

papel crucial que a instituição escolar vem

representando para a manutenção da ordem

moderna. À inoperância dos sistemas formais de

ensino tanto se atribui a responsabilidade pelas

situações problemáticas atuais, as mais variadas,

quanto a culpa por não preparar de modo

satisfatório as crianças e jovens para ocupar

competentemente, no futuro, as posições políticas

e sociais e os postos de trabalho de que o país

estaria a precisar. Frente a esse quadro de

mazelas, proliferam sugestões de enfrentamento

para aquilo que vem sendo considerado

genericamente como um déficit de qualidade da

escola brasileira. Soluções que passam por

reformas do sistema educacional, implantação de

avaliações nacionais, projetos de formação e

aperfeiçoamento de professoras/es, reorganização

dos quadros docentes, recomposição de planos de

carreira e de matrizes salariais, entre tantas outras

que seria demasiado enumerar, são anunciadas

e/ou postas em execução neste afã de reformar a

educação e, por meio dela, dar conta de uma

miríade de problemas sociais que lhe seriam

correlatos.

Sem pretender empreender uma discussão

Page 8: HORIZONTES - Universidade São Francisco · HORIZONTES Revista Semestral do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco Volume 30 Número

8 Jaqueline de Menezes Rosa, Maria Isabel Edelweiss Bujes

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 7-18, jul./dez.2012

sobre o diagnóstico ou as perspectivas de

enfrentamento dos problemas enunciados

brevemente no parágrafo anterior, buscamos situar

o trabalho aqui apresentado numa perspectiva

muitissimamente mais modesta, atendo-nos ao

campo curricular e pedagógico (ainda que sem

desconhecer suas viscerais articulações com o

sistema político e social, como se verá mais

adiante). O que chama nossa atenção, e que

constituirá o foco do que nos propomos a discutir,

é o modo como ganha força no currículo de

formação de professoras a proposição de uma

estratégia pedagógica na qual parecem repousar

infinitas esperanças, capaz de fazer frente às

questões de aprendizagem, na busca de romper

com ciclo em que a figura docente é central. O

que nos instiga é a proposta amplamente

disseminada de preparação das docentes para a

adoção, nas instituições escolares de todos os

níveis, dos chamados Projetos de Trabalho. Os

Projetos de Trabalho, segundo os seus defensores,

seriam representativos de uma escolha racional e

de um compromisso em constituir uma sociedade

de aprendizagem, de “[...] um modo de viver pelo

uso da razão, como um processo contínuo de

resolução de problemas, no qual o indivíduo

est[aria] ligado ao bem coletivo da sociedade”

(POPKEWITZ; OLSSON; PETERSSON, 2009,

p.74).

Desafiadas, portanto, a compreender

como certas formas de intervenção pedagógica

tornam-se expressão de interesses que

correspondem a objetivos colocados no nível da

administração das populações, propomos neste

trabalho, que decorre de investigação que

detalharemos mais adiante: a) analisar como

determinadas propostas

metodológicas/tecnologias educativas envolvem

pensar e encontrar modos de agir e de intervir

sobre atitudes, disposições e comportamentos dos

alunos de forma a ajustar suas condutas a

objetivos sociais amplos, proclamados como de

interesse coletivo; b) discutir como a invenção de

certas práticas pedagógicas ganha relevo ao

articular-se a preocupações sociais correntes e por

corresponder a uma dinâmica global que lhes dá

sentido.

Para dar conta de tais propósitos, vamos

nos valer de algumas ferramentas teórico-

metodológicas oferecidas pela notável caixa de

ferramentas de Michel Foucault e, orientadas por

uma perspectiva pós-estruturalista, dialogaremos

com teorizações de autores que vêm atualizando

as análises por ele empreendidas. Nas discussões

sobre temas do presente, referentes ao campo

educativo, em geral, e ao da escolarização, em

particular, recorreremos a Alfredo Veiga-Neto,

Thomas Popkewitz, Jorge do Ó e muitos outros.

As ferramentas conceituais às quais nos referimos

são as noções de governamento e

governamentalidade e, adicionalmente, de

disciplinamento e biopoder/biopolítica.

A pretensão mais geral do trabalho é,

portanto, por em evidência o compromisso da

instituição escolar com a gestão da vida social,

tornando mais explícitos os compromissos entre

escolarização e relações de poder. Para atingir tal

propósito colocamos em destaque as relações

entre discursos curriculares da formação docente

e a racionalidade política que domina as práticas

sociais de nosso presente: o neoliberalismo.

O escopo da pesquisa

Tomamos como ponto de partida desta

seção, em que pretendemos apresentar o escopo

da pesquisa que dá origem a este texto, as palavras

com as quais Popkewitz problematiza a questão

das relações entre poder e saber nas práticas

sociais: “O poder se pratica menos pela força

bruta e mais pelos sistemas de saberes e da razão,

no interior dos quais os objetos da escola são

modelados, a fim de serem compreensíveis e

capazes de passar para a ação” (POPKEWITZ,

2008, p. 236).

Michel Foucault é bastante emblemático

em sua obra ao dizer que há uma relação entre

essas duas instâncias, o que não significa que

sejam idênticas. Distanciando-se das definições

tradicionais de poder e saber, inverte a articulação

de que o poder é apenas negativo. Em suas

palavras: “temos de deixar de descrever sempre os

efeitos de poder em termos negativos: ele ‘exclui’,

‘reprime’, ‘recalca’, ‘censura’, ‘abstrai’,

‘mascara’, ‘esconde’. Na verdade, o poder produz;

ele produz realidade; produz campos de objetos e

rituais de verdade” (FOUCAULT, 2008a, p.161).

A partir de uma teorização de inspiração

foucaultiana, para a qual saber e poder se

implicam mutuamente, interessamo-nos em

problematizar os jogos de verdade presentes nos

discursos de formação docente, sobretudo aqueles

que se referem ao fazer educativo, sem a

pretensão de interpretar o que estaria subjacente a

eles. Entendemos que tal material tem uma

constituição histórica e que a sua linguagem dá

sentido às práticas de escolarização.

Ao problematizarmos as pesquisas sobre a

formação docente, o enfoque dado aos saberes da

prática, o vínculo entre experiência e discurso

como centros do trabalho pedagógico, colocamos

em questão a noção de que o professor, segundo

uma visão hermenêutica, é a “[...] origem das

operações de discursos e não o seu produto”

Page 9: HORIZONTES - Universidade São Francisco · HORIZONTES Revista Semestral do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco Volume 30 Número

Discursos curriculares da formação docente, projetos de trabalho e seus elos com a racionalidade neoliberal 9

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 7-18, jul./dez.2012

(DÍAZ, 1999, p.19). A partir das análises

inspiradas nas leituras do filósofo francês Michel

Foucault, é possível discutir essa perspectiva. Os

atos discursivos individuais estão atravessados por

muitas “vozes”, em uma permanente reescritura,

expressão de campos discursivos

institucionalizados. Em outras palavras, o discurso

pedagógico não estaria relacionado a vontades ou

individualidades autônomas, mas às práticas que

organizam a realidade (FOUCAULT, 1996), a

procedimentos que controlam e regulam o fazer

pedagógico e ao que se diz sobre ele, frutos de

relações de poder.

Começamos, assim, a pensar os saberes da

Pedagogia e seus efeitos na conduta dos

professores em formação, pois é notável, entre

estes, o desenvolvimento de práticas que

partilham, de certa forma, um mesmo referencial a

respeito da escola e da aprendizagem. Há, a partir

de vocabulários profissionais compartilhados,

certos modelos de raciocínio que passam a ser

universalizados. Não se trata aqui apenas de uma

questão terminológica, como aponta Larrosa

(2002). As palavras, os vocabulários

compartilhados entre os profissionais da educação

exprimem “lutas em que se joga algo mais do que

simplesmente palavras, algo mais que somente

palavras” (p.21). Isso possibilita pensar que as

palavras vão adquirindo sentidos e significados

em diferentes práticas, nas quais determinados

grupos buscam impor seus modos de pensar o

mundo, as relações sociais, o papel da escola etc.

Assim, se a formação docente passa a ser

o nosso interesse primordial, os discursos em que

a docência está implicada tornam-se matéria-

prima para esta investigação. O foco deste

trabalho, portanto, direciona sua atenção para os

discursos da formação, para o modo como os

currículos dos cursos de Pedagogia, ao serem

vertidos em programas e reinterpretados pelos

seus atores, podem contribuir para nossa

compreensão das dinâmicas sociais do presente.

Nesse sentido, tomamos como corpus de

análise os livros que aparecem de forma

recorrente nas bibliografias básicas e

recomendadas de cursos de Pedagogia,

referenciados nas disciplinas de Didática ou

similares¹, de três universidades da região

metropolitana de Porto Alegre. Foi preciso, então,

selecionar os livros e tomar como critério de

escolha aqueles mais utilizados nas três

universidades. Com essa tarefa, foi possível

apontar títulos que são recorrentes na bibliografia

recomendada por essas instituições.

Os levantamentos iniciais apontaram

como mais utilizados os seguintes livros: 1)

HERNÁNDEZ, Fernando; VENTURA,

Montsserrat. A organização do currículo por

Projetos de Trabalho: o conhecimento é um

caleidoscópio. Porto Alegre: Artmed, 1998; 2)

HERNÁNDEZ, Fernando. Transgressão e

mudança na educação: os projetos de trabalho.

Porto Alegre: Artmed, 1998; 3) SACRISTÁN, J.

Gimeno. O currículo: uma reflexão sobre a

prática. Porto Alegre: Artmed, 2000; e 4)

SANTOMÉ, Jurjo Torres. Globalização e

interdisciplinaridade: o currículo integrado. Porto

Alegre: Artmed, 1998.

O interessante é perceber que tais obras,

apesar de suas características próprias e de várias

diferenças em suas proposições, permitem

entrever um conjunto de enunciados que, como

regras, se repetem nas teorizações dos autores.

Há, ao que tudo indica na leitura dos livros aqui

analisados, um tema comum que parece permear

de modo bastante particular o conjunto das

propostas dos autores. Trata-se do tema dos

Projetos de Trabalho, centralizador do discurso da

atividade docente, que aqui nos propomos a

problematizar. Este tema nos ofereceu

possibilidades de analisar algumas rupturas e

redefinições nos discursos que vêm produzindo o

sujeito professor na atualidade, bem como

questionar alguns significados da docência

presentes nas práticas históricas de formação não

apenas direcionadas às subjetividades docentes,

mas também a metas políticas mais amplas.

Nas seções a seguir, passamos a tratar da

densidade e da amplitude do problema, tomando a

Pedagogia e os discursos pedagógicos como

“produto[s] de um complexo processo de

definição [...], resultado[s] de um processo de

construção social [que] depende[ra]m de um

conjunto de possibilidades que se conjuga[ra]m

em determinado momento da história [...]”

(BUJES, 2001, p. 26). Isso significa que os

discursos sobre os “Projetos de Trabalho”, aqui

analisados, não são naturais ou dados: são aquilo

que pode ser dito dentro de certas matrizes ou

modelos orientados pelos saberes de uma

determinada época. E, ao adentrarmos um espaço

que vem constituindo determinadas formas de ser

professor, tratamos de buscamos perceber como

se articularam interesses e estratégias de poder

com os discursos que se servem dos ideais liberais

na produção da docência contemporânea.

O governamento da docência

Colocar sob análise alguns dos discursos

que circulam na formação de professores não

envolve apenas examinar as relações de tais

discursos com orientações para a prática futura,

tais como noções sobre o que fazer e o que

Page 10: HORIZONTES - Universidade São Francisco · HORIZONTES Revista Semestral do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco Volume 30 Número

10 Jaqueline de Menezes Rosa, Maria Isabel Edelweiss Bujes

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 7-18, jul./dez.2012

conhecer nos ambientes educativos. Envolve

também as disposições, consciência e

sensibilidade (POPKEWITZ, 1994) que eles

pretendem forjar nos docentes em relação ao

campo que está sendo descrito (atitudes

apropriadas, formas particulares de agir).

“A idéia do currículo corporifica uma

organização particular do conhecimento pela qual

os indivíduos devem regular e disciplinar a si

próprios [...], é uma imposição do conhecimento

do ‘eu’ e do mundo [...]” (POPKEWITZ, 1994,

p.186). Como um sistema de regulação, o

currículo orienta a forma como o futuro professor

deve compreender o ensino, a aprendizagem e sua

função social em prol da cidadania, categorizando

e classificando as questões educacionais a partir

de determinados enquadramentos que o docente

em formação passa a ver como os melhores

possíveis, sem questioná-los.

Os enunciados presentes na literatura

pedagógica estabelecem “[...] regras e padrões que

guiam os indivíduos ao produzir conhecimento

sobre o mundo” (POPKEWITZ, 1994, p.192) no

que se refere à formação de professores, regras e

padrões que guiam a docência, inscrevendo

atributos de subjetividade (LUKE apud

POPKEWITZ, 1994). Considerando isso, ao

examinar algumas das formulações discursivas

recorrentes na formação de professores, esta

análise problematiza o vínculo de determinados

discursos com práticas de governamento, isso é,

com “ações calculadas para agir tanto sobre os

indivíduos quanto sobre o conjunto da população

com a finalidade de potencializar a capacidade de

alguns para agirem sobre as condutas alheias –

suas forças, suas atividades, as relações que os

sujeitos constituem entre si, etc.” (BUJES, 2009,

p.270).

Tal vínculo foi sendo estabelecido à

medida que nos interrogávamos, mais

especificamente, com base em Veiga-Neto (2000),

Ó (2009) e muitos outros, como o campo

educativo entra em relação direta, em sintonia

com o sistema social. Percebendo o notável peso

dado à liberdade e à autonomia, que se expressa

desde as relações econômicas até a conduta dos

indivíduos particulares (Ó, 2009), entendemos que

também os discursos pedagógicos estão

submetidos a uma dada racionalidade política

mais ampla.

A fim de atingir os objetivos propostos

para este estudo, utilizamos algumas das

contribuições desenvolvidas por Foucault (2008b)

a respeito da noção de governamento. Apesar de

não ser a educação o objeto de exame do filósofo,

o estudo sobre os mecanismos disciplinares que

caracterizam as instituições (prisão, fábrica,

escola, quartel, hospital) e suas semelhanças

ajuda-nos a ampliar o campo de discussão sobre a

Pedagogia, sobretudo no que se refere aos

discursos sobre a formação. Porém, é preciso

advertir que essa noção de governamento, mais do

que se referir às instituições disciplinares, indica a

proliferação de lugares a partir dos quais se exerce

o poder.

Nesse sentido, consideramos importante

retomar algumas das discussões feitas por

Foucault a respeito do Estado Moderno. Veiga-

Neto (2000, p. 185) afirma que é especialmente no

curso Segurança, território, população que se

pode “[...] compreender a Modernidade como

resultado da combinação de duas superfícies de

emergência: o deslocamento das práticas pastorais

e o advento da Razão do Estado”. Tal

combinação, segundo o autor, estabelece dois

jogos antagônicos: o jogo da cidade e o jogo do

pastor, que, ao se complementarem, criam

condições de possibilidade para a existência do

Estado Moderno.

O jogo do pastor tem a disciplina como

elemento individualizador – o olhar do soberano

instala-se em cada indivíduo. Cada um é

governado, ou seja, sua conduta é conduzida para

torná-lo pessoa de certo tipo (MARSHALL,

1994). O poder do pastor não se exerce sobre um

território, mas sobre um rebanho em

deslocamento, sobre uma multiplicidade em

movimento (FOUCAULT, 2008b).

Nessa relação, são interessantes as

metáforas utilizadas: pastor e rebanho. É o pastor

o responsável pelo rebanho, é ele que cuida de

cada ovelha em particular. “Uma forma de poder

que não cuida apenas da comunidade como um

todo, mas de cada indivíduo em particular,

durante toda a sua vida” (FOUCAULT, 2008b,

p.173).

Para o autor, o poder pastoral pode ser

considerado o prelúdio do que vai se desenvolver

a partir do século XVI. Os movimentos da

Reforma e, depois, da Contra-Reforma geraram

novas relações entre o pastor e o rebanho,

ocasionando a problemática da pastoral católica e

protestante: “como se governar, como ser

governado, como governar os outros, por quem

devemos aceitar ser governados, como fazer para

ser o melhor governador possível?”

(FOUCAULT, 2008b, p.118). Intensificaram-se,

de um lado, o pastorado em suas dimensões

espirituais e, de outro, diferentes tipos de

condução dos seres humanos fora do ambiente

religioso.

As exigências do capitalismo

mercantilista, por sua vez, desafiavam a

constituição de um saber sobre o Estado,

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Discursos curriculares da formação docente, projetos de trabalho e seus elos com a racionalidade neoliberal 11

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 7-18, jul./dez.2012

implicando, um pouco mais adiante, a

estruturação de novos conhecimentos, referentes

primeiramente à Estatística, à Economia e à

Demografia, posteriormente, à Saúde Pública, à

Psiquiatria, à Psicologia e à Psicanálise (VEIGA-

NETO, 2000). Tratava-se de saberes associados à

instauração do jogo da cidade, um poder

totalizador voltado para o âmbito civil e da

população.

Novas maneiras de governar, mais

precisamente a partir do século XVIII, passaram a

ser instituídas em relação à população, a fim de

produzir mais riqueza, fornecer meios de

subsistência suficientes e favorecer o incremento

populacional (FOUCAULT, 2004). O Estado

passou a reorganizar a forma de utilizar o poder

pastoral, assumindo nesse contexto os cuidados

com a saúde, o bem-estar, a segurança e a

proteção contra acidentes como formas de

salvação a serem asseguradas neste mundo. Para

Foucault (1995, p. 238), “isto [implicou] que o

poder do tipo pastoral, que durante séculos – por

mais de um milênio – foi associado a uma

instituição religiosa definida, [se ampliasse]

subitamente por todo o corpo social;

[encontrando] apoio numa multiplicidade de

instituições”.

Portanto, é no âmbito das artes de

governar que se passa a destacar a existência de

muitas e diferentes formas de governo: de si, da

família e do Estado. Diferentes formas que

possuem uma continuidade essencial.

Ao diferenciar essas três formas de

governo e sua continuidade, Foucault

problematizou: “como introduzir a economia –

isto é, a maneira de administrar corretamente os

indivíduos, os bens, as riquezas no seio de uma

família [...] na gestão do Estado?” (2008b, p. 126).

A partir dessa problemática, o autor diz que a arte

de governar permaneceu bloqueada até quando se

tornou possível perceber os problemas específicos

da população isolados do quadro jurídico da

soberania. A população passa a ser o objeto final

do governo organizado, segundo uma

racionalidade planejada.

O gerenciamento familiar passa também a

interessar ao domínio político, e o Estado assume

parte das funções de manutenção da vida, antes

exclusivas da família. A economia em favor dos

fenômenos populacionais vai revelar pouco a

pouco que a população tem suas próprias

características, irredutíveis às da família

(FOUCAULT, 2004). Trata-se das características

próprias que passam a ser estudadas nas suas

regularidades por meio da medição estatística;

referem-se aos fenômenos associados com a

manutenção e a promoção da vida que ensejam o

que Foucault denominou de biopolítica. Os

índices de natalidade, mortalidade, de doenças, de

produção etc. são alvos dessa tecnologia de poder.

Talvez seja interessante lembrar que,

enquanto a disciplina exerce poder sobre o corpo,

com efeitos individualizantes, o biopoder se

exerce sobre o conjunto da população. Assim, nos

deslocamentos pelos quais passam as formas de

exercício do poder, não ocorre a substituição de

uma sociedade por outra, como observou Foucault

(2008b): da sociedade de soberania para a

disciplinar e desta para a sociedade de governo.

“Temos, de fato, um triângulo – soberania,

disciplina e gestão governamental –, uma gestão

governamental cujo alvo principal é a população e

cujos mecanismos essenciais são os dispositivos

de segurança” (p. 143).

A instituição escolar não fica imune aos

deslocamentos que ocorrem na sociedade, sendo

importante aqui destacar que há pelo menos duas

escolas modernas: uma posicionada na lógica

disciplinar2 e outra na da seguridade

(COUTINHO, 2008). “Ou então, melhor ainda:

considerando que a incorporação de novos

elementos não faz desaparecerem os anteriores,

mas os desloca e re-significa seu papel, pode-se

dizer que a própria escola foi também

governamentalizada” (id., 2008, p. 44). Nesse

deslocamento, o sentido dado à liberdade vai

significar novas possibilidades de movimento,

novas tecnologias, novos saberes e mecanismos

de segurança. A escola, como imensa maquinaria

cujas práticas sempre estiveram mais ou menos

ajustadas ao funcionamento do mundo, tem uma

articulação produtiva com a Modernidade

(VEIGA-NETO, 2000). E é a partir dos preceitos

pedagógicos que dão sustentação aos chamados

Projetos de Trabalho que procuramos mostrar

como a escola opera tal articulação, cujo principal

intuito é “preparar as massas a viverem num

Estado governamentalizado” (p. 190).

Sendo o campo pedagógico o cerne da

formação de professores, pensamos ser legítimo

que tanto um quanto outra possam ser

considerados como articulados a uma

problemática de governamento3, uma vez que

estão comprometidos em estruturar “o eventual

campo de ação dos outros” (FOUCAULT, 1995,

p. 244). Com base nessa premissa, percebemos os

professores enredados em práticas que

potencializam a conduta própria e alheia, práticas

estas que, fazendo parte de um currículo,

inscrevem nos sujeitos “certas disposições, modos

de pensar, modos de classificar e hierarquizar”

(BUJES, 2008, p.109). Em outras palavras, as

práticas discursivas dos currículos de formação

instrumentalizam a maneira como os futuros

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12 Jaqueline de Menezes Rosa, Maria Isabel Edelweiss Bujes

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 7-18, jul./dez.2012

docentes conduzem o seu trabalho, mas também

produzem modos de ver a si mesmos e aos demais

implicados no processo de escolarização.

Por tudo isso, mesmo quando os discursos

curriculares da formação governam as condutas

individuais dos professores, podemos pensar sua

conexão com a população, pois a prática dos

futuros professores estará voltada para a formação

dos alunos – dos cidadãos da sociedade.

A educação docente é, pois, um fenômeno

de interesse coletivo, e em alguns discursos que

examinamos podemos percebê-la associada à

biopolítica da população, o que nos leva à

discussão da noção de governamentalidade. Há

enlaces dos discursos pedagógicos com as formas,

os modos, as táticas de bem exercer o

governamento. São discursos que, no âmbito da

arte de governar, se valem da verdade produzida

pela ciência para potencializar o exercício de

poder (BUJES, 2008).

Talvez seja bom aqui lembrar que

Foucault (2004) concebe a governamentalidade

como um conjunto formado por instituições,

procedimentos, análises e reflexões, cálculos e

táticas. Composta por arranjos técnicos (notações,

computações, avaliações, etc.), por uma

conjugação de forças (legais, arquiteturais,

financeiras, etc.) e pela utilização de instrumentos

(levantamentos, pesquisas, sistemas de

treinamento, etc.), ela tem tornado possível, a

diferentes autoridades – das mais diversas

proveniências –, levar a efeito programas de

administração social que têm por finalidade

regular não só as decisões, mas as ações

individuais, grupais, institucionais.

A governamentalidade implicaria, assim,

que o poder, para ser exercido racionalmente e

tornar os sujeitos passíveis de serem governados,

precisaria se valer de uma série de

mecanismos/estratégias, e no seu âmbito

inventaram-se o que Foucault chamou de

tecnologias de poder, os meios que se valem as

autoridades (de todas as ordens) para

instrumentalizar e normalizar as condutas.

O termo governamentalidade, é associado

por Fymiar (2009) a novas formas de pensar o

exercício do poder com o paulatino processo de

governamentalização do Estado, correspondendo

a mutações que ocorreram na forma de pensar as

finalidades do Estado, o exercício do poder, a vida

econômica e, em especial, a população quando

esta passou a ser vista como um campo de

intervenção. A ampla escolarização das crianças

pode ser situada no âmbito destes deslocamentos

que alteram as formas como as relações de poder

atingem os indivíduos. No movimento de

organização dos Estados liberais na passagem dos

séc. XVIII para o XIX, estendendo-se por parte do

séc. XX, segundo Rose (1999), evidencia-se a

criação de uma nova matriz de racionalidade, que

orientou a invenção de uma série de tecnologias,

envolvendo cálculos e estratégias, para intervir em

novos campos que se ofereciam ao exercício do

poder: a economia, a saúde e os hábitos da

população, a civilidade das massas, a educação.

As tecnologias analisadas por Foucault

permitem-nos tematizar a constituição subjetiva

dos docentes por discursos, como os dos Projetos

de Trabalho, sustentados nos ideais de liberdade,

interesse e aprendizagem. Por meio de pretensões

de verdade dos discursos pedagógicos, operam-se

relações de poder-saber que atingem uma

população sob um Estado moderno liberal. É com

base em ideais como esses que a educação

escolarizada tem funcionado como uma estratégia

de governamento dos sujeitos.

A racionalidade neoliberal na constituição do

sujeito professor e a adoção dos Projetos de

Trabalho

De acordo com Coutinho (2008), a

segunda escola moderna, aquela com a qual

convivemos hoje, encontra-se numa relação

imanente, com acontecimentos da sociedade,

como a “revolução industrial, o Iluminismo, o

transcendental kantiano, a idéia de futuro como

progresso, a fisiocracia e o liberalismo”, (p.34)

entre outros. O poder disciplinar continua

operando em uma nova lógica, na qual a

mobilidade é o elemento diferencial em relação à

ordenação tipicamente disciplinar e às formas que

começam a se instituir no século XVIII (ibidem.).

Entre essas formas, no que se refere ao campo da

educação, estão as modificações em relação aos

espaços, rotinas e recursos da sala de aula. No

entanto, não são apenas modificações em termos

estruturais que podemos perceber nos discursos

pedagógicos do século XVIII: há a

problematização de alcançar a liberdade e a

autonomia, antes que coação, direção e

heteronomia (NOGUERA-RAMÍREZ, 2008).

Nessa perspectiva, em contraposição aos

métodos baseados na repetição e memorização

utilizados pela escola moderna numa lógica

disciplinar, destacam-se as ideias preconizadas

por Rousseau, filósofo suíço que defende as

experiências realizadas pelo próprio aluno.

Os pressupostos rousseaunianos não se

inseriram de imediato no campo da prática: foi

necessária toda a ‘revolução romântica’, toda a

imposição de uma visão positiva da ciência e mais

um século de intervalo para que eles revivessem

num núcleo ‘renovador’ da Pedagogia, no

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Discursos curriculares da formação docente, projetos de trabalho e seus elos com a racionalidade neoliberal 13

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 7-18, jul./dez.2012

alvorecer do século XX.

Trata-se do Movimento da Escola Nova,

que tomou proporções peculiares em diferentes

localidades. Acontecimentos sociais marcados

pelos efeitos da Revolução Industrial objetivavam

uma sociedade mais democrática, atribuindo à

escola um importante papel nessa tarefa. Isso pode

ser percebido, por exemplo, quando alguns

autores escolanovistas defendem a escola popular

e de massas, que, além de democrática, deve estar

preparada para o desenvolvimento tecnológico –

“o que a nutrição e a reprodução representam para

a vida fisiológica, a educação é para a vida social”

(DEWEY apud LOURENÇO FILHO, 1965, p.7).

As orientações didáticas, até então

voltadas à constituição de um indivíduo dócil e

obediente, deslocam agora o seu interesse em

direção a outro tipo de sujeito, autorregulado por

seu próprio interesse e desejo. Há, segundo

Noguera-Ramírez (2008), “[o] deslocamento da

preocupação pela instrução, o ensino, a disciplina,

para a ‘formação’, a ‘educação’” (p.11), uma vez

que se referem a este novo tipo de sujeito, “[...]

produto da ação individual para atingir a virtude, a

moralidade, no marco das novas ideias de

cidadania” (p.12).

Para Foucault (2008b), há uma sintonia

entre variados discursos e a forma de organização

política e econômica das sociedades, relacionada,

na época, com o liberalismo, representado pela

máxima: [...] deixar as pessoas fazerem, as coisas

passarem, as coisas andarem, laisser-faire,

laisser-passer e laisser-aller [...]”(p.62-63).

Nos discursos pedagógicos, percebe-se o

enfoque dado ao desenvolvimento das crianças,

que consistiria em deixá-las seguir um caminho

seu, pessoal, orientado por suas escolhas (mas, de

algum modo, dirigido pela natureza). O

Movimento da Escola Nova, por exemplo, desloca

o eixo da reflexão educativa em direção à criança.

A escola, como uma das instituições que se

encarrega de controlar e disseminar novas

tecnologias, vai sendo produzida no campo

político de discursividade liberal.

John Dewey foi o principal representante

deste Movimento e vai dar sustentação ao enfoque

dos Projetos, tendo em conta o aspecto inovador

dado à capacidade de pensar. As teorizações desse

autor articulam-se à racionalidade governamental

liberal, já que tratam o indivíduo como sujeito de

uma natureza em desenvolvimento que será

favorecida pela contínua reorganização e

reconstrução da experiência, para a qual a

liberdade é condição essencial (TEIXEIRA,

1965).

Nesse sentido, é possível estabelecer

relações entre uma orientação curricular que

privilegia os Projetos de Trabalho, principal

objeto de análise deste estudo, a formas de

governamento dirigidas aos sujeitos ideais no

liberalismo e no neoliberalismo. Nos discursos

dos livros dos cursos de Pedagogia aqui

analisados, os Projetos de Trabalho são

apresentados como a tentativa que melhor

responderia às exigências de reorganização da

informação no âmbito da escola para atender às

demandas da realidade social, econômica e

cultural contemporânea. Sua função, segundo

Hernández e Ventura (1998, p.61),

é favorecer a criação de estratégias de

organização dos conhecimentos escolares

em relação a: 1) o tratamento da

informação, e 2) a relação entre os

diferentes conteúdos em torno de

problemas ou hipóteses que facilitem aos

alunos a construção de seus

conhecimentos, a transformação da

informação procedentes dos diferentes

saberes disciplinares em conhecimento

próprio (grifos dos autores).

Nessa perspectiva, os Projetos são

apresentados como estratégias pedagógicas que

visam a transgredir, “explorar novos caminhos

que permitam que as escolas deixem de ser

formadas por compartimentos fechados, horários

fragmentados, arquipélagos de docentes e passem

a converter-se numa comunidade de

aprendizagem” (HERNÁNDEZ, 1998,

contracapa). Assim, essa metodologia apresenta-

se como diferenciada das demais, por pretender

construir intercâmbios de culturas e biografias em

sala de aula, “ultrapassar os limites das

disciplinas” (SANTOMÉ, 1998, p.25). Os

discursos pedagógicos da escola, no presente,

declaram a possibilidade de cada aluno se

autodesenvolver. O forte desejo de transformar o

aluno em um sujeito capaz de solucionar

problemas e responsável pelas suas escolhas,

insere-o numa comunidade de aprendizagem onde

se diz que – com o empenho necessário e a

orientação pedagógica adequada – ele será capaz

de exercer e cumprir seu papel de cidadão, de

constituir-se como sujeito moral e

intelectualmente autônomo, de preparar-se para

exercer determinadas funções na sociedade e de

tornar-se um trabalhador competente.

Apesar de os Projetos de Trabalho darem

sequência à defesa de uma prática de trabalho que

valoriza o papel decisório dos alunos desde

Dewey, analisar isso nos discursos vigentes não

significa falar da mesma coisa, uma vez que tais

discursos estiveram sujeitos a condições materiais

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14 Jaqueline de Menezes Rosa, Maria Isabel Edelweiss Bujes

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 7-18, jul./dez.2012

de enunciação muito distintas.

É preciso então compreender o

deslocamento da produção para o consumo, da

(re)significação da liberdade como algo natural e

espontâneo – no liberalismo – para um objeto de

consumo – no neoliberalismo. De uma lógica que

reproduz passamos a uma outra lógica, que cria,

inventa, inova. O trabalho ultrapassa a atividade

física. É preciso utilizar diferentes estratégias, ser

criativo e fazer diferença. A educação tem um

papel importante na orientação dessas mudanças.

E não é por acaso que na educação percebemos os

efeitos de atravessamento das ideias de

“consumir”, gerir informações, flexibilizar, criar e

desenvolver competências. A escola moderna não

dá mais conta de seu papel na formação do sujeito

para uma época neoliberal e passa a reorganizar e

reconfigurar seus processos educativos. A

organização curricular proposta por Sacristán

(2000) e Santomé (1998), bem como a retomada

dos Projetos de Trabalho proposta por Hernández

(1998) e Hernández e Ventura (1998), insere-se na

matriz discursiva associada a uma racionalidade

política neoliberal.

Os Projetos de Trabalho elevam a máxima

preconizada de levar o sujeito a reaprender a

aprender ao longo de sua vida. Cada um descobre

que tem responsabilidade na sua própria

aprendizagem – o sujeito empresário de si

(VEIGA-NETO; SARAIVA, 2009) –, sendo apto

a desenvolver suas capacidades na tentativa de

melhor solucionar os desafios e resolver

problemas de seu cotidiano. Aprender, nesse

contexto, significa ter cada vez mais liberdade

para gerir o próprio caminho, fazer escolhas,

responsabilizar-se por elas na busca de realização

pessoal, mas, sobretudo, inserir-se produtivamente

num mundo voltado para o consumo e para a

competição. Com o objetivo de produzir capital

humano, dotado de aptidões para os novos tipos

de trabalho, a educação teria reforçada sua

posição de grande empreendimento na produção

de novos sujeitos.

E aqui é preciso dar um destaque

especial, diante do objeto desta análise, ao

professor como figura emblemática do esforço

empreendedor: “[...] ‘serão os professores aqueles

que em definitivo, mudarão o mundo da escola,

entendendo-a” (HERNÁNDEZ; VENTURA,

1998, p.27).

Essa individualização, que implica a

responsabilização do professor, estimula cada vez

mais a sua procura de embasamento, de leituras na

busca de legitimação. Enfatiza-se a ele, de forma

significativa, um vocabulário composto de termos,

tais como: flexibilidade, espírito inovador,

trabalho em equipe, entusiasta, facilitador,

autonomia, aprender a aprender. Essas palavras

ou expressões funcionam como ideias-chave,

peças de uma narrativa, conjunto da mesma

natureza, para constituir a referência a partir da

qual cada professor deverá se examinar e fazer a

reflexão sobre os modos como exercerá a sua

docência.

Ser flexível, por exemplo, seria o traço

que possibilitaria ao professor relacionar as

questões desse tempo, os interesses dos alunos,

traduzindo-os na mudança da organização dos

conhecimentos escolares. Essa flexibilidade

aparece, tanto em Santomé como em Hernández,

de forma muito semelhante, como uma hipotética

sequência, alguns passos, não fixos, “mas [que]

serve[m] de fio condutor para a atuação docente

em relação aos alunos” (HERNÁNDEZ, 1998,

p.81):

Parte-se de um tema ou de um problema

negociado com a turma; inicia-se um

processo de pesquisa; buscam-se e

selecionam-se fontes de informação;

estabelecem-se critérios de ordenação e

de interpretação das fontes; recolhem-se

novas dúvidas e perguntas; estabelecem-

se relações com outros problemas;

representa-se o processo de elaboração

do conhecimento que foi seguido;

recapitula-se (avalia-se) o que se

aprendeu; conecta-se com um novo tema

ou problema (id., 1998, p.81).

Há, em contrapartida à flexibilidade,

prescrições que orientam o exame das ações dos

professores. E, assim, arriscamo-nos a dizer que

os discursos sobre os Projetos de Trabalho operam

no interior das práticas de formação de

professores, no sentido de criar sujeitos

governáveis através da utilização de várias

técnicas que têm por finalidade controlar,

normalizar e moldar a conduta desses futuros

profissionais. Há constante referência à relevância

da atuação do professor na construção de um

aluno, de um sujeito ideal capaz de analisar e

interpretar o mundo em que vive. De sujeitos

ideais que

são levad[os] a reconstituir em narrativas

e textos, as experiências vividas

reconhecendo-se como ‘protagonistas’

das mesmas. Nesse tipo de experiência há

um constante incitamento para que [eles]

se vejam, se narrem, se julguem, mas mais

do que isso, há uma recorrência tenaz e

oportunidades sempre reiteradas para

que ajam no sentido de transformar-se

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Discursos curriculares da formação docente, projetos de trabalho e seus elos com a racionalidade neoliberal 15

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 7-18, jul./dez.2012

(BUJES, 2009, p.280).

A elaboração do índice, por exemplo, tem

um forte papel nesse processo. Trata-se de um

instrumento que possibilita ao aluno antecipar o

desenvolvimento do Projeto, planejar as diferentes

atividades a serem realizadas, prevendo ações e o

envolvimento do grupo. São os alunos que

realizam as escolhas e tomam as iniciativas do

trabalho a ser realizado. No entanto, como

apontam Veiga-Neto e Saraiva (2009, p.198),

“[devem] encaixar-se dentro de um recorte

estabelecido pelo professor. A vinculação dos

Projetos ao currículo não permite uma escolha

assim tão livre, de modo que o interesse da

criança é produzido por intervenções do

professor”. De certa forma, o índice gerencia e

programa todas as ações feitas - a serem

realizadas e as que não foram realizadas – nesse

mecanismo de controle, automonitoramento e

confissão.

O portfólio é outra estratégia dos Projetos

a ser analisada. É neste que ficam reunidos os

registros das hipóteses, das construções

individuais ou coletivas feitas durante todo o

desenvolvimento do Projeto. É uma modalidade

de avaliação vinculada à evolução do processo de

aprendizagem. Trata-se de uma estratégia de

governo que afeta as aspirações e desejos pessoais

de forma indireta, maximizando as capacidades

intelectuais:

[...] acumulando registros contínuos do

progresso dos estudos [...] se pode

utilizar não só para manter os estudantes

ativamente implicados em seu próprio

progresso (e, portanto, comprometendo-

os em manter seus esforços para alcançar

o êxito), mas sim também para “deixar

frios” os estudantes que estão tendo

dificuldades com seus estudos, baixando

suas expectativas e tendo que assumir por

si mesmos, momento a momento,

fragmento a fragmento, a natureza e a

extensão de seus fracassos

(HERNÁNDEZ, 1998, p.98).

O portfólio possibilita indicar os

momentos-chave das aprendizagens conquistadas,

superadas e a superar de ambos os sujeitos

escolares: alunos e professores. O anseio de que

possam, juntos, reaprender a aprender vai

possibilitar trajetos e aspirações de próximos

desejos, traçando, segundo Rose (1998, p.44), “a

distância entre aquilo que somos e aquilo que

podemos nos tornar”.

Nesse sentido, poderia se dizer que a

análise dos Projetos de Trabalho, central nos

discursos curriculares de formação de professores,

articulada à governamentalidade neoliberal, incita

a constituição de novos sujeitos. É sobre estes que

está o grande investimento da contemporaneidade,

uma vez que empreender se associa aos processos

de ensino e aprendizagem. Investir na proposta

dos Projetos de Trabalho seria investir em capital

humano, promover a maximização dos potenciais

de cada um, não sendo apenas útil ao

desenvolvimento do trabalho, mas ao crescimento

pessoal ao longo da vida.

Por todas essas razões, ao nos

interessarmos pelos discursos curriculares da

formação docente, foi possível destacar a sua

estreita vinculação com as práticas de constituição

do sujeito professor na atualidade. Problematizar

tais discursos possibilitou que os percebêssemos

atravessados por relações de poder, em diferentes

momentos e contextos, e reforçou nossa

convicção de que fizeram e fazem parte dos

processos produtivos da sociedade, permitindo-

nos entender sob um prisma bem menos idealista

as aspirações da formação docente deste nosso

tempo.

E é nesse sentido que desejamos enfatizar

que não tivemos a pretensão de apresentar um

estudo que traçasse direções para a formação

docente nem demarcar um campo de convicções

ou soluções para os problemas educacionais.

Substituir um modo de pensar por outro não

garante a promoção de uma investigação mais

comprometida e arguta (BUJES, 2008). Nossos

propósitos são outros – talvez um tanto menos

ambiciosos, como cremos ter explicitado ao longo

deste texto –, uma vez que nos afastamos das

crenças dominantes acerca da verdade e do

progresso que ainda marcam o campo pedagógico.

Acreditamos ser produtivo pensar em como

chegamos a conceber a relevância dos Projetos na

atividade docente, para depois contestá-los e até

mesmo desconstruí-los, no sentido atribuído por

Veiga-Neto (2007) de abrir outros espaços,

espaços de liberdade, indagação e mudança.

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18 Jaqueline de Menezes Rosa, Maria Isabel Edelweiss Bujes

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 7-18, jul./dez.2012

Notas

1 Por similar, entendemos disciplinas que tratam dos temas didáticos, mas recebem denominações tais como:

Organização do Trabalho Pedagógico, Organização Escolar, Prática Pedagógica Interdisciplinar, Ação

Pedagógica na Educação Infantil e Anos Iniciais, Ação Pedagógica na Educação Básica, Projetos

Educativos Interdisciplinares, etc.

2 Nessa lógica, o enfoque no ensino e na instrução reforça a importância do mestre, centro da ação

pedagógica, sobre a conduta das crianças. O conjunto das ordens, da organização dos espaços, dos tempos,

da estrutura dos conteúdos, irá constituir uma rotina inflexível na obtenção da obediência e disciplina.

Modelo pedagógico que se sucede no ensino dos jesuítas e se generaliza a partir do século XVIII, através

da consolidação das idéias propagadas na Didática Magna de Comenius.

3 A fim de evitar problemas léxicos com a palavra governo, valemo-nos do termo utilizado por Bujes (2001)

e Veiga-Neto (2002): governamento. “Justifico a utilização do termo com a intenção de diferenciá-lo de

governo – como uma instância de controle político, como instituição a quem cabe o exercício de

autoridade –, do ato que se exerce sobre uma pessoa ou que ela exerce sobre si mesma, para controlar suas

ações” (BUJES, 2001, p.73).

Sobre as autoras:

Jaqueline de Menezes Rosa: Mestre em Educação, professora do Curso de Pedagogia da Universidade

Luterana do Brasil (Canoas/RS).

Maria Isabel Edelweiss Bujes: Doutora em Educação, professora do Programa de Pós-Graduação em

Educação da Universidade Luterana do Brasil (Canoas/RS) e pesquisadora da infância.

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19

* Endereço eletrônico: [email protected]

As práticas curriculares em Matemática que se produzem pelo governo do IDEB

Samuel Edmundo Lopez Bello*

Resumo

Este texto analisa por que e de que maneira se mobilizam determinadas práticas curriculares no espaço

escolar. Trata-se de mostrar como e por que se dá o Governo da instituição escolar pelos números do IDEB;

quais estratégias se utilizam para a produção/mobilização dessas ações de governo. A partir do conceito de

numeramentalização, de inspiração foucaultiana, é que se vê a operatividade do índice numa lógica sedutora

da ciência como expressão de racionalidade e razão, a qual encontra no imperativo da contextualização do

ensino a sua força impulsionadora. Sugere-se, por fim, uma postura ética na formação de professores que, de

posse desta analítica, constitua uma singularidade das práticas curriculares como contraponto às ações de

governo da política educacional.

Palavras-chave: Práticas curriculares – avaliação e desempenho em matemática – Educação Básica –

Governo dos números.

Curricula Practices of Mathematics and the government of IDEB

Abstract

This text aims to analyze why and how certain practices are mobilized in the school curriculum. Our goal is

to show how and why the government of the school by the numbers of IDEB, what strategies are those that

are used for the production / mobilization of these government actions. From the concept of Foucauldian

inspiration so-called “numeramentality”, we can realize the operativity of the index in a seductive logic of

science as an expression of rationality and reason, which takes the context of teaching as imperative of their

driving force. We suggest an ethical stance in teacher education which, from our analitical point of view,

institutes a singularity of curriculum practices as a counterpoint to the actions of government of education

policy.

Keywords: Curricula Practices – Evaluation and Performance in mathematics – Schooling – Government by

numbers.

Introdução

Tem sido cada vez mais recorrente sentir

a preocupação, nas diversas instâncias

institucionais (Universidades, Escolas, Secretarias

de Governo) e pelos mais diversos segmentos da

sociedade (Pais de Família, professores, meios de

comunicação), que o ensino na escola e o

aproveitamento dos nossos estudantes não andam

bem, em particular no ensino de Matemática.

Esses dizeres ganham fôlego e encontram uma

sustentação de caráter empírico-objetivo em

índices que são produzidos para essa finalidade, a

partir de avaliações em larga escala. Refiro-me,

neste caso particular, ao IDEB - Índice de

Desenvolvimento da Educação Básica, o qual tem

se tornado um dos principais indicadores de como

anda a “saúde” da Educação no Brasil. Como é

sabido, os índices para 2012 foram calculados

com base no desempenho dos estudantes em

avaliações de português e matemática

combinando-se com as taxas de aprovação,

reprovação e abandono escolar.1

No caso da “realidade educacional

revelada” por esses índices, a situação

caracterizada para o Estado do Rio Grande do Sul

tem sido considerada por diversos setores da

opinião pública como preocupante: 5,1 para o

IDEB ao final dos anos inicias; 3,8 para os anos

finais do Ensino Fundamental e 3,4 para o IDEB

Ensino Médio2.

Muitas críticas e ressalvas poderão ser

feitas à maneira como este índice é construído, em

particular, se considerarmos que:

Os resultados representam uma espécie

de “fotografia” do momento, não

revelando a complexidade do processo de

aprendizagem, em razão da qual, embora

seja um indicador importante, ele por si

só não explica as reais condições de

aquisição do conhecimento (RIO

GRANDE DO SUL, SEDUC/RS).3

Sob a questão: Por que o mau

desempenho dos jovens estudantes, em particular,

na disciplina de Matemática? Ou, por que 89%

chegam ao final do Ensino Médio sem aprender o

esperado? Tem sido muito insistente a procura,

por parte da Mídia, pelas causas da situação

educacional para o estado do RS que evidenciam

esses índices. Certamente, não podem ser

igualados os sentidos atribuídos aos termos

desempenho e aprendizado. Contudo, nós,

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20 Samuel Edmundo Lopez Bello

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 19-30, jul./dez.2012

professores universitários, temos uma percepção

ainda que intuitiva, de que alguma coisa não está

funcionando de modo adequado no processo de

ensino-aprendizagem. Podemos, inclusive, dizer

que cada vez mais alunos chegam ao ensino

Superior sem saber mobilizar minimamente

objetos matemáticos considerados básicos para

“resolver” situações-problema que são propostas.

De modo geral, a mídia tem apontado

como causa desse insucesso nos resultados

obtidos pelo IDEB ao processo de Formação de

professores, particularmente à formação

pedagógica dos professores em exercício na rede

pública de ensino, quando não referido situações

mais sistêmicas como baixos salários e falta de

infraestrutura. Em se tratando do Ensino Médio, a

essas causas poderiam se agregar a evasão escolar

e a infrequência às aulas por parte dos estudantes,

as quais, até alguns anos, eram facilmente

“naturalizadas” ao olhar de professores e das

equipes diretivas nas diferentes escolas públicas

estaduais da cidade de Porto Alegre, ao serem

visitadas quando da realização dos trabalhos de

orientação nas disciplinas de Prática de Ensino do

Curso de Licenciatura em Matemática da

UFRGS4.

No entanto, quando Poder público,

Pesquisadores, Profissionais do Centros de

Formação Universitária são desafiados e

tensionados a oferecer respostas, os

encaminhamentos podem ser outros. Poder-se-ia

dizer que os problemas da Educação Básica, em

geral, não respondem apenas às questões da

gestão escolar, mas há uma responsabilização dos

resultados no Ensino Médio a partir dos processos

de ensino-aprendizagem que ocorrem no Ensino

Fundamental, nos anos iniciais e, antes ainda, na

educação Infantil.

De modo geral, para as autoridades e

profissionais da educação, o problema da falta de

interesse e da indisciplina na escola Básica,

quando não se vincula diretamente às “lacunas”

na formação acadêmica dos estudantes, é porque

ora o professor não vincula o conteúdo

matemático às aplicações ou problemas do dia-a-

dia, ou porque a escola não investe em práticas de

culturização escolar. Sobre este ultimo aspecto,

Xavier (2008, p. 21) nos lembra que a categoria

aluno é uma categoria cultural e precisa ser

produzida pela escola contemporânea; posturas

devem ser ensinadas através de procedimentos

que componham as rotinas escolares. Da mesma

forma, “as áreas de conhecimento precisam ser

vistas como instrumentos para autoconhecimento,

conhecimento do outro, conhecimento do mundo

social e natural” (idem, ibidem, p. 27).

Do meu lugar de pesquisador e como

professor do Programa de Pós-graduação em

Educação da Universidade Federal do Rio Grande

do Sul, vinculado à linha de pesquisa das

filosofias da diferença, em meio a todas essas

possíveis causas do baixo desempenho, sinto-me

desafiado a (re)tomar a questão pelo lado da

análise curricular. Nesse sentido, tomarei o

Currículo como foco de experiência, no sentido

foucaultiano, isto é, como ponto de inflexão no

qual se articulam e se sobrepõem, primeiro, as

formas de saber possível, segundo, as matrizes

normativas de comportamento para os indivíduos;

para posteriormente se constituírem os modos de

existência virtuais para sujeitos possíveis de um

determinado tempo histórico (FOUCAULT, 2010,

p. 4).

Para tanto, deve-se tomar o Currículo

como objeto de pensamento e de reflexão;

pesquisá-lo, revisitá-lo, desconstruí-lo, reinventá-

lo, em outras palavras, tornar o Currículo um

acontecimento na pesquisa em Educação. Nesse

sentido, Corazza (2004, p. 10) lembra-nos que

pesquisar não quer dizer ultrapassar uma situação

de desconhecimento, superar uma condição de

ignorância ou uma passagem de um saber a um

não saber. Fazer do currículo um acontecimento

na pesquisa significa fazer “o choque com o já

feito, uma experimentação dos conceitos e das

imagens do pensamento que animam uma

Pesquisa do acontecimento” (idem, ibidem, p.

11); suspender os modos de pensar consagrados

pela instituição escolar; desarmar os modelos que

prescrevem as formas em que acontece ou não o

aprendizado, os princípios sobre os quais se

sustenta a seleção de conteúdos, o que se

consideram aprendizagens significativas, entre

outros.

Assim, esse pensar curricular não se

refere a uma reestruturação ou (re)acomodação

dos conteúdos escolares considerados esperados, e

sim a uma uma analítica sobre por que e de que

maneira se mobilizam determinadas práticas

curriculares no espaço escolar, como se

constituem os saberes que as compõem; mostrar

como e por que se dá o Governo da instituição

escolar pelos números do IDEB; que estratégias

são aquelas que se utilizam para a

produção/mobilização dessas ações de governo;

como atuam os princípios que orientam e

constituem as práticas curriculares com vistas à

melhoria da melhoria da qualidade de ensino. É

disto que trata este artigo.

Do Governo das práticas curriculares escolares

pelo IDEB

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As práticas curriculares em Matemática que se produzem pelo governo do IDEB 21

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 19-30, jul./dez.2012

O que impacta na reformulação de um

currículo? Alunos de graduação, professores em

exercício na educação básica consideram que as

disciplinas escolares, em particular a Matemática,

são mais ou menos as mesmas há muito tempo,

dada a tradição com que tem se apresentado o seu

ensino. No entanto, segundo Santos L. (1994),

uma análise cuidadosa nos revela que há uma

variação na forma e no conteúdo, isto é, nas

formas metodológicas a serem privilegiadas no

processo de ensino-aprendizagem quanto à

própria seleção de conteúdos. Para a autora, a

literatura mostra que na análise de tais mudanças

podem ser encontrados fatores diretamente

ligados ao contexto social (eventos sociais,

políticos e de natureza intelectual-cultural). Da

mesma forma, é importante destacar que questões

relacionadas à realização de políticas curriculares

envolvem poder, controle, coalisões, negociações

e compromissos entre grupos e indivíduos

operando dentro e fora do sistema escolar.

Da mesma forma a pesquisadora sustenta

que: “em decorrência disto, é importante verificar

quais são as propostas de ensino na área,

envolvendo conteúdo e método, bem como os

eventos que estariam propiciando a hegemonia de

determinada tendência em períodos e locais

definidos.” (idem, ibidem, pp. 159-160). Dessa

forma, a história das matérias ou disciplinas

escolares deve abranger não apenas os

conhecimentos incluídos em um curso de estudo,

mas também os excluídos, devendo ainda

analisarem-se os efeitos sociais dessa inclusão ou

exclusão.

Entre as causas apontadas por Santos

(1994) que influenciariam a organização

curricular, além dos estudos advindos da

psicologia do desenvolvimento, do controle

assumido por especialistas da comunicação pela

elaboração dos livros didáticos e os vestibulares,

aponta autora, deve se dar especial atenção aos

exames nacionais e a relação dos mesmos com as

políticas e os movimentos internacionais.

Tomar-se-á como ponto de partida esse

último aspecto apontado por Santos, isto é, o dos

Exames Nacionais e sua relação com os

movimentos internacionais, para tratar daquilo

referente ao “Governo da escola e das práticas

curriculares pelos números” para seguidamente

mostrar como o currículo, nessa ação de governo;

ou melhor, as práticas curriculares5 escolares em

matemática sofrem impactos a partir do que

denominaremos de “A Curricularização dos

descritores da avaliação”.

Para Sousa (2003) não se pode falar de

impactos de políticas de avaliação sem levar em

consideração o procedimento ou processo que é

tomado como referência. No caso da Educação

básica brasileira, o IDEB – índice de

desenvolvimento da educação Básica - assume

centralidade na política educacional do país, visto

que apontaria ao alcance dos objetivos de uma

melhoria da eficiência e da qualidade da

Educação. E pelos termos eficiência e melhoria

Sousa (idem, p. 177) expressa:

Melhoria da eficiência refere-se ao fluxo

escolar (taxas de conclusão, de evasão, de

repetência, estimulando-se por exemplo, a

implantação da progressão continuada,

classes de aceleração, organização

curricular em ciclos) [...] Quanto à

concepção de qualidade do ensino

adotada, será possível sua explicitação

[...] sob o pressuposto de se dar

visibilidade e controle público aos

produtos ou resultados educacionais,

disponibilizando aos usuários elementos

para escolha dos serviços ou para

pressão sobre as instituições ofertantes.

Porém, cabe perguntar: por que o IDEB

impactaria tanto nas práticas curriculares de

professores e escolas em Matemática?

Em princípio, poder-se-ia dizer que isso

ocorre porque o índice tem como parâmetro o

rendimento dos alunos na Prova Brasil nas

disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática,

combinando-se com indicadores de fluxo como

taxas de promoção, repetência, evasão, calculados

a partir do Censo Escolar6. Do ponto de vista das

mobilizações produzidas, estudos empíricos como

os desenvolvidos por LIMA e SILVA-NETO

(2010) mostram que no momento da divulgação

dos resultados do IDEB, os mesmos são assunto

de reuniões, conversas e indagações, entre

professores de Matemática, principalmente no

sentido de se decidir o que fazer para se atingirem

as metas em anos seguintes.

Por enquanto, se a proposta é entender o

porquê e como um índice propicia toda uma

possibilidade de mobilizar uma série de condutas

e procedimentos quanto à melhoria da eficiência

da Educação e do desempenho escolares, a

questão do poder parece ser central nessa

discussão. Segundo Foucault (1988), é pela

compreensão relacional do poder-saber e das

formas de Governo (FOUCAULT, 2008a), ou,

como nos sugere Veiga-neto (2005)

Governamento7, que se abre a possibilidade de

compreender artes, racionalidades, saberes,

regimes específicos de formas de pensar e agir

envolvidos na produção de práticas e tecnologias,

para a produção de condutas em si mesmo e nos

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22 Samuel Edmundo Lopez Bello

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 19-30, jul./dez.2012

outros. Essa definição de governo como condução

da conduta é importante para se entender o

funcionamento, controle ou direcionamento de

comportamentos e atitudes dentro de instituições

ou comunidades, na alteridade e na relação

consigo mesmo. É importante destacar que, no

entendimento relacional que Michel Foucault faz

do poder-saber, que utiliza o termo

governamentalidade (FOUCAULT, 2008b) para

se referir à disposição, organização, distribuição,

estudo, análise de práticas, racionalidades e

técnicas de governamento8 e na produção de

práticas e tecnologias específicas, ora no que se

refere à relação entre as tecnologias de

governamento dos outros (populações) e as

tecnologias próprias de governamento de si

(indivíduos). Gordon (1991) e Rose (1997), bem

como o próprio Foucault (idem), discutiram como

o liberalismo e o neoliberalismo se constituíram

contemporaneamente como racionalidades

políticas, princípios racionais de ação para a

orientação das condutas, dos modos de ser e de

agir. Nesse sentido, e tomando como referência a

noção foucaultiana de Governamentalidade

(Foucault, 2008a) e fazendo o embaralhamento de

suas possibilidades (processos de governo,

racionalidade, práticas, tecnologias), é que

utilizar-se-á a “Numeramentalidade” (Bello,

2011)9 . Essa noção é uma entre tantas outras

perspectivas analíticas para o estudo de

normatividades produtoras, orientadoras e

reguladoras de condutas, modos de pensar e agir

na contemporaneidade baseadas fortemente na

quantificação, na medição, no uso e registro de

números. A noção Foucaultiana de

Governamentalidade e/ou governamento, e aquilo

que ele denomina de “processos de

governamentalização” das artes e técnicas de

governar, serviu-me de base à invenção do

neologismo Numeramentalidade, em português,

que poderia ser melhor expresso como:

Numeramentalité, em francês, em analogia ao

termo Gouvernementalité, próprio da teorização

Foucaultiana10

.

Essa noção – a de Numeramentalidade,

ora também referida em vários momentos como

numeramentalização – será entendida como “a

combinação entre as artes de governar e as

práticas e as normatividades em torno do numerar,

do medir, do contabilizar, do seriar, as quais

orientam a produção enunciativa das práticas

sociais, em âmbitos institucionais – como o da

escola, por exemplo - e nos planos de

agenciamentos comportamentais contemporâneos

- como nos do currículo. Esses agenciamentos

tendem posicionar a Numeramentalidade não

apenas como um dispositivo, como referido por

Foucault, mas como um processo, no qual se

operam práticas, constituem-se discursos e

identidades, regulam-se condutas, incitando-se,

sempre que possível, a processos de subjetivação.

Neste caso, tanto a ferramenta

metodológica e conceitual da Governamentalidade

como a numeramentalização são aqui

consideradas não apenas como dispositivos de

uma época, modos e formas de se expressar uma

racionalidade de governo; elas são ferramentas

para se entender a produção de tecnologias de

governamento das instituições e da gestão

(escolas, práticas curriculares) com impactos na

tomada de decisão de caráter político.

Governamentalidade e Numeramentalização são

conceitos que operam como grades analíticas que

auxiliam no entendimento da produtividade e da

centralidade das quantidades, dos números

(medições, índices, taxas), seus registros e usos

como expressão da verdade nos modos de pensar

e se conduzir dos indivíduos de uma sociedade.

Se entendermos como tecnologia de

governamento aqueles meios a que, em

determinada época, autoridades de tipo diverso

utilizam para moldar, instrumentalizar e

normalizar as condutas de indivíduos e também

parcelas da população, então a estatística11

, por

exemplo, pode ser considerada uma tecnologia

para governar (Traversini e Bello, 2009, p. 143),

principalmente se a mesma serve normativamente

para o controle e a regulação de riscos sociais:

A estatística pode ser entendida como um

meio, composto por saberes e por

procedimentos técnicos específicos que é

utilizada por governos das diferentes

esferas públicas, para situar comunidades

[…] como sendo de risco social. Analisar

como se conduz a conduta desse conjunto

de indivíduos para sair da condição de

analfabetismo [por exemplo] é tomar a

prática da gestão do risco como uma

forma de governar que necessita do saber

estatístico para tomar decisões

(TRAVERSINI e BELLO, 2009, p. 143).

Segundo Popkewitz e Lindblad (2001, p

114), as estatísticas cumprem uma função prática

na governança educacional moderna. Isto porque

as estatísticas participam da lógica sedutora da

ciência num momento histórico de racionalidade e

razão. Segundo os autores, muitas das relações

entre governança, ações sociais e efeitos

educacionais em relação a inclusão social são

estatísticas. “A informação aparece como dados

que convidam a comparações entre categorias no

tempo e no espaço e podem ser utilizados em

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As práticas curriculares em Matemática que se produzem pelo governo do IDEB 23

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 19-30, jul./dez.2012

vários tipos de análises quantitativas, mais

particularmente quando a pesquisa lida com

política educacional” (idem, ibidem, p. 114).

O IDEB, para o caso da política

educacional brasileira, pode ser visto como um

exemplo disso. Em princípio porque o conceito de

comparação é constituinte do índice como produto

estatístico, as próprias medidas obtidas a partir

dos dados estatísticos são resultados de

comparação com unidades ou sistemas-padrão

consideradas desejáveis. Segundo Sousa (2003), a

avaliação realizada na produção dos dados que

comporão o IDEB predispõe a: uma ênfase nos

produtos e resultados; uma atribuição de mérito

tornando-se o mesmo individual para instituições

e alunos; uma classificação de desempenhos

escalonados; uma comparação a padrões externos

não articuladas à auto-avaliação12

. Vê-se também

que o trabalho desenvolvido por Lima e Silva-

neto (2010) conduziu a uma busca pela relação

entre o resultado da avaliação expressa pelo índice

com as condições socioeconômicas dos estudantes

e suas concepções sobre matemática. O índice não

apenas orienta políticas, mas também pesquisas.

Dessa maneira, o índice torna-se

propulsor de condutas e encaminhamentos a

serem adotados pelas escolas, cabendo ao Estado

um papel mais regulador, avaliador, fiscalizador,

do que propositor.

Diferente do que foi argumentado em

Traversini e Bello (2009, p. 147), a figura do

professor, nesse contexto, adquire centralidade

tanto quanto os índices, visto que o esforço do

professor estará em relação direta com o aumento

do indicador. No dizer de Popkewitz e Lindbland

(2001, p. 116-117), os indicadores educacionais

tornam-se “a linguagem que atravessa as

declarações do Estado, dos profissionais e das

fundações sobre os professores e suas práticas

educacionais […] nada é mais poderoso, para

influenciar os ganhos de realização dos alunos,

que a qualidade do professor”. Da mesma forma,

continua o autor, esses indicadores também

definem o problema das mudanças educacionais

em relação a números: números de professores

não licenciados, números de professores

ensinando na área de formação, porcentagem de

variância entre realização e experiência do

professor, e assim por diante. Portanto, conclui,

começamos nossa discussão sobre estatísticas com

uma observação a respeito das funções práticas

dos números; eles intervêm nos processos de

governo, uma vez que moldam nossa maneira de

ver as possibilidades de ação, de inovação e até a

nossa visão de nós mesmos. A produção de

estatísticas oficiais é, hoje, “um empreendimento

rotineiro que tem uma ampla infraestrutura em

programas de Estados e de Universidade cuja

escala e sofisticação se estende a campos mais

vastos da vida social e que se infiltra

profundamente no funcionamento da sociedade”

(Starr, apud POPKEWITZ e LINDBLAND, 2001,

p. 117).

Os efeitos da Curricularização dos descritores

da avaliação

A relação poder-saber ora constituída,

poder para produzir condutas - saberes/índices

estatísticos (como objetivação de uma condição,

expressão de uma verdade) - incide sobre os

viventes13

, tornando-os indivíduos para uma

determinada realidade histórica e social. Como

modeladores de conduta, as estatísticas não são

apenas meros sistemas lógicos, mas um campo de

práticas culturais que normaliza, individualiza,

divide. Os números governam não como números

em si, mas pela possibilidade que oferecem de

entrecruzar discursos outros que circulam

traçando perfis e inventariando/inventando

individualidades – daí o caráter tecnológico dos

índices estatísticos como o IDEB. Ao mesmo

tempo em que o uso de estatísticas é uma maneira

de construir classes humanas para abrir

possibilidades para o futuro, é também um modo

para que a individualidade seja descrita de novo e

que as pessoas possam experimentar a si mesmas.

Criar novas maneiras de classificar as pessoas é

também mudar a maneira do que podemos pensar

de nós mesmos, mudar nosso sentido de valor

próprio e, inclusive, mudar os modos de significar

nossas próprias experiências (POPKEWITZ e

LINDBLAND, 2001).

Em Bello e Traversini (2011), ao

discutirmos a inserção curricular do saber

estatístico no contexto dos PCN (Parâmetros

Curriculares Nacionais), consideramos que essa

Curricularização atendia muito mais a objetivos

políticos no que se refere à formação de um tipo

específico de sujeito/indivíduo aluno, do que

propriamente a preocupações epistêmicas.

Ao curricularizarem o saber estatístico,

os PCN trazem para si a expectativa de

formação de um determinado tipo de

sujeito que tome esse saber e,

consequentemente, a matemática numa

dimensão instrumental como auxílio para

suas atividades […] A conduta esperada,

a nosso ver, consiste no aluno saber

decidir, ter iniciativa e segurança para

utilizar os conhecimentos no momento

oportuno. Os conteúdos aprendidos têm

efeitos, e, na racionalidade neoliberal

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24 Samuel Edmundo Lopez Bello

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 19-30, jul./dez.2012

vigente, o pressuposto é que o aluno seja

capaz de posicionar-se como um sujeito

produtivo, a partir das diferentes

situações relacionadas à sua vida (Idem,

ibidem, p. 866-867).

Nesse sentido - e considerando o currículo

não apenas uma seleção de conteúdos, mas o

conjunto de experiências que a escola dispõe para

as aprendizagens escolares -, entender os

descritores em Matemática - organizadores das

matrizes de referência para a Prova Brasil/SAEB e

o ENEM14

- como saberes normativos das práticas

curriculares de professores de Matemática e em

resposta aos problemas de ensino-aprendizagem

supostamente revelados pelos índices do IDEB

implica também significar os comportamentos

docentes em termos de “boas” formas de ser-

professor.

Seguindo os rastos de Miguel et al (2008)

e Miguel (2010), em Bello (2010), Pinho e Bello

(2011) e recentemente em Bello (2012), temos

mostrado que uma concepção normativa de

“saber” nos possibilitaria investigar também como

os sujeitos operam e se constituem seguindo

regras de práticas sociais distintas. O

entendimento do que seria seguir uma regra para

discutirmos as práticas curriculares escolares

matemáticas, poria “em suspenso” as teorizações

construtivistas ou socioculturais do saber

matemático, que localizam nos objetos (pela via

da experimentação), nos sujeitos (pela via da

abstração) ou nas relações sociais (por um viés

sócio-histórico-cultural), a “construção” dos ditos

conhecimentos matemáticos, bem como o

convencimento sobre quais as ações que devem

ser realizadas para que isso ocorra. Desse modo,

as práticas curriculares, como práticas sociais

regradas, no âmbito institucional da escola,

conduzem-nos para um sentido normativo do

próprio fazer matemático forjado por linguagens

que não estão em um plano ideal ou funcionam

como uma irredutível máquina lógica (como na

visão platônica), mas encontram suas explicações

e razões de sua existência em suas próprias ações.

A referência sobre o que é seguir as regras desse

fazer matemático é dada pelas suas próprias

práticas e não fora delas.

Não me deterei na analítica da linguagem

que organiza as práticas curriculares matemáticas

e nem na enumeração enunciativa de cada um dos

descritores. O objetivo é mostrar como eles, ao

mesmo tempo que são parâmetros de avaliação,

tornam-se conteúdos escolares e constituintes

normativos das práticas curriculares escolares em

termos de condutas que deverão ser produzidas.

Afinal, espera-se que, a partir do IDEB e da média

obtida por cada escola na sua avaliação, proceda-

se a uma análise por parte das escolas e

professores, principalmente identificando-se as

habilidades já conquistadas, as que estão em

processo de construção e aquelas que precisam ser

retomadas e trabalhadas pedagogicamente. Para

isso,

é preciso identificar e descrever itens

acertados pelos alunos com nota no ponto

que se quer interpretar. Só com a

construção e a disseminação desse tipo de

interpretação pedagógica, a Prova Brasil

poderá influenciar mais decisivamente o

ensino (BRASIL, 2010, p. 8).

Em consonância com os PCN e PCNEM,

os descritores da matriz de Matemática se inserem

na perspectiva de um ensino-aprendizagem de

qualidade sustentados principalmente no

desenvolvimento de competências e habilidades

necessários para o convívio social, inserção e

participação do/no espaço público. Ainda sob os

pressupostos da psicologia cognitiva, espera-se

que o aluno alcance determinados níveis de

abstração para compreender o conhecimento

científico que o ajudariam nessa tarefa. A

expectativa que se sobrepõe a qualquer

justificativa do porquê este ou aquele descritor é

de ordem epistêmica. Assim, reconhecer15

e

identificar16

são verbos muito recorrentes nos

descritores para vincular as ações didáticas a

conceitos e procedimentos como tradicionalmente

trabalhados na instituição escolar.

Contudo, melhores resultados nas

avaliações, na esteira da política pública

educacional, são traduzidas como melhorias de

desempenho não apenas dos alunos, mas da

qualidade das práticas pedagógicas que realizam

professores, instituições - escolas e universidades

– e sistema como um todo. Nesse sentido, tomar,

por exemplo, comentários, sugestões de trabalho

evidenciados nos documentos oficiais das

Matrizes de Referência ou, até mesmo, questões

propostas nas provas sobre os temas matemáticos

e seus descritores - seja para o Ensino

Fundamental ou Ensino Médio - como normativas

para as práticas curriculares pode significar um

melhor desempenho nas avaliações. Considerando

o que dizem TRAVERSINI e BELLO, 2009, (p.

147) tomar os indicadores como normativos

constituintes de uma prática curricular e ensinar

os estudantes a ter um bom desempenho nas

provas poderia ser uma possibilidade de confronto

frente aos objetivos educacionais expressos numa

política de avaliação nacional. Confronto esse que

assume a forma contemporânea de investimento,

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As práticas curriculares em Matemática que se produzem pelo governo do IDEB 25

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 19-30, jul./dez.2012

visto existem politicas publicas que redistribuem

os recursos conforme a melhoria dos indicadores.

Entretanto, o sistema em conexão com a sua

racionalidade governamental neoliberal quer mais.

Sob a consigna de resolver problemas, espera

mudanças no tipo de respostas dadas pelos alunos,

bem como nos encaminhamentos curriculares

feitos pelos professores.

Utilizando-se este ou aquele conteúdo

com fins prático-aplicativos, deseja-se por parte

do aluno uma “compreensão do que está sendo

ensinado e, muitas vezes, de sua aplicação no

cotidiano, [para tanto] é preciso utilizar um tipo

de linguagem acessível e, também, delimitar o

nível de complexidade do conhecimento que será

abordado pelo professor (BELLO e

TRAVERSINI, 2011, p. 864 [grifo nosso]). Para

Ribeiro e Lise (2010, p. 334 - 335) os descritores

das Matrizes de referencia em consonância com

os PCN procuram

“reconectar os diferentes blocos de

conteúdos, ligar a Matemática com as

situações cotidianas e as outras áreas de

conhecimento; [...] o gosto pela

matemática, o incentivo à pesquisa,

desenvolvendo no aluno uma atitude

investigativa diante das situações-

problema proposta em sala de aula, são

alguns exemplo dessa compreensão mais

ampla do que é ensinar e aprender

Matemática segundo os PCNs.

Nessa esteira das situações-problema e da

aplicabilidade de conhecimentos, vemos os

saberes ligados à contextualização do ensino

constituirem-se como imperativo de boas práticas

pedagógicas, consequentemente da fabricação de

certas identidades-aluno, bem como de

identidades “bons – professores” de Matemática.

As críticas à contextualização e ao uso da

realidade para o ensino de matemática não são

recentes. Trabalhos como os de Bampi (1999),

Santos C, (2008) e Knijnik et al (2006) e Santos

S. (2009) e, de um modo mais amplo, em se

tratando da Interdisciplinaridade, os trabalhos de

Veiga-Neto (1995,1997) questionam, sob um viés

analítico pós-estruturalista, que esses temas estão

longe de se constituírem em remédios ou soluções

para os problemas do ensino. Essa seria apenas

uma política de verdade da Educação Matemática,

na teia do poder-saber, para se produzirem

determinados tipos de identidades-sujeito

(BELLO, 2010). Sujeito aqui entendido não

como aquele que do ponto de vista cognitivo

apreende conhecimentos, mas como aquele que se

assujeita, se governa, se gerencia, se analisa, se

julga, em último caso, produz-se, segundo as

relações que estabelece com as verdades do seu

tempo. Se os saberes estatísticos, por exemplo,

desenham e regulam os sujeitos produtivos,

criativos, que buscam segurança, que se

responsabilizam por si mesmos (BELLO e

TRAVERSINI, 2011, p. 867); da mesma forma,

vemos a contextualização tornar-se um imperativo

para a constituição do EU – sujeito - bom

professor, o qual produz boas práticas

curriculares, visto que essa contextualização opera

- para além da teoria e da cientificidade da

produção acadêmica em Educação Matemática -

como regra de conduta.

O que se quer dizer com isso é que a

contextualização mobiliza e produz a busca pela

sua objetivação, sua realização não pela

cientificidade que a produziu, mas pela

moralidade que lhe dá sustentação. Se se entende

por moral um conjunto de valores e regras de ação

propostas aos indivíduos e às comunidades por

intermédio de aparelhos prescritivos diversos -

como podem ser as instituições educativas, as

associações científicas, instancias públicas de

gestão -, observa-se um dizer da educação

matemática prescrevendo a contextualização do

ensino como regra constituinte das práticas

escolares. Se por moral entende-se a avaliação e

medição das nossas ações pelo código prescrito,

ter-se-á, pois, a contextualização como regra ou

princípio de conduta desejável à constituição do

bom professor. Aquele que quiser ser visto como

bom professor contextualizará e incitará seu

colega a fazê-lo. Afinal, a conjuntura normativa,

que opera como verdade, captura esse seu sentido

desde os tempos do platonismo na aproximação

do homem ao que possa existir de mais puro,

inteligível, virtuoso, justo.

É importante destacar que esses aspectos

morais são propostos e sustentados desde o

engendramento da modernidade como maneiras

de se dirigir não apenas a finitude do homem, sua

humanização por meio da razão, mas também para

que se produza o estatuto metafísico da verdade e

das regras constituintes das boas ações do agir dos

indivíduos acima de seus contextos e finalidades.

Nessa moral moderna, da qual está muito

impregnada a escola, as boas razões para agir

devem valer para todos os sujeitos escolares; por

isso a moralidade possui um caráter normativo:

trata-se de uma lei válida para todos na exata

medida da sua racionalidade.

Contextualizar passa assim a ser

entendido como um dever que gerará obrigação de

uma determinada conduta escolar e uma culpa

caso não se atinjam as finalidades educacionais, já

que, o que parece, não realizamos nossa tarefa de

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26 Samuel Edmundo Lopez Bello

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 19-30, jul./dez.2012

bons professores – e o IDEB está ai para revelar

essa nossa falta ao dever17

. A contextualização

opera nessa linha de pensamento: um dever que

conjugado a outras boas ações produzirá práticas

pedagógicas de sucesso. Assim, tornar a

contextualização um imperativo significa dotá-la

de uma unidade e de um caráter verdadeiro

constituinte de toda prática curricular.

Algumas considerações

Até o momento verificou-se que, mesmo

sendo ainda muito tímidas as teorizações em torno

da noção de Numeramentalização, a partir da

noção foucaultiana de Governamentalidade, a

ferramenta analítica proposta mostra-se bastante

produtiva para se discutir o caráter normativo dos

saberes em torno dos índices de desempenho para

se governar e se conduzir as condutas dos sujeitos

escolares, como uma questão de verdade que

orienta modos de pensar e agir pelas práticas

curriculares que institui e as posições identitárias

que produz.

Ao se trabalhar com a

numeramentalização como conceito, extrapola-se

o âmbito da Educação matemática, uma vez que

se amplia a discussão da operatividade discursiva

das formas e modos de subjetivação individuais e

coletivos por diferentes espaços socialmente

institucionalizados. Assim, não falamos de uma

educação disciplinada ou disciplinar, mas de uma

educação que diz respeito à produção de

imperativos tomados mais como compromissos

constitutivos de práticas e de individualidades

num determinado momento histórico.

A analítica em torno do IDEB, como

índice contemporâneo de produção de conduta,

mostra-se mais como um compromisso moral e

político do que epistemológico. E nesse sentido a

resposta a ser dada deverá circular antes pelo

plano da ética, para não se assumirem os

descritores como constituintes de currículo, mas

como ponto de partida para as ressignificações das

práticas curriculares. A reflexão em termos éticos

não deverá desconsiderar o caráter científico-

normativo dos discursos, nem os valores

contemporâneos sobre o que se consideram boas

práticas pedagógicas, boas práticas de ensino-

aprendizagem. A ética, como sugerida por

Foucault (2007, 2009), refere-se à constituição de

si mesmo como sujeito moral na sua relação com

o outro; isso então poderia ser lido, em se tratando

da nossa discussão sobre a constituição normativa

de identidades escolares e de práticas curriculares,

como a maneira de ser e de conduzir-se

singularmente como professores. E isso deve ter

também impactos na formação.

Como enunciamos no início deste

trabalho, tomar o currículo ou as práticas

curriculares como foco de experiência quer dizer

conhecer as formas de saber construídas e

constituídas, para o próprio currículo e suas

práticas; para a educação; para a pedagogia; para a

escola. Da mesma forma, conhecer as matrizes

normativas prescritas para as formas de

comportamento possíveis no espaço institucional

escolar, sua gestão, seus princípios, suas

estratégias, suas tecnologias de governo, sua

disciplina, seu ordenamento. Nesse sentido, a

formação teórico-acadêmica é importante, mas

insuficiente para se fazer frente aos desafios que

na contemporaneidade se oferecem no espaço

institucional escolar. Não se podem ignorar os

estudos do currículo e de suas práticas construídas

pela história dos educadores. Porém, como nos

lembra Corazza (2002, p.111-112), ao falar do que

denomina de um currículo da diferença:

A ética de nossa ação educacional [...]

está aliançada com culturas e políticas de

muitos mundos, grupos, racionalidades,

línguas, inteligências, grandezas,

sensibilidades, histórias, realidades.

Pluraliza nossas ações, ideias, palavras,

relações, sujeitos, ver e ser visto, dizer e

ser dito, representar e ser representado.

Coloca-nos no fluxo de educar todos os

que vêm se reinventando, os que estão em

metamorfose, os não-idênticos [...]

Estimula diferentes formas de formular e

de viver práticas educacionais

alternativas ao projeto neoliberal e

positiva meios de divulgar tais práticas,

fazê-las circular e serem debatidas, de

maneira a inspirar outras tantas.

Uma prática curricular contemporânea

deverá agir inventando e reinventando sujeitos

escolares com base em temáticas culturais que

rejeitem estrategicamente currículos, provas,

avaliações, desempenhos para todos e cada um.

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As práticas curriculares em Matemática que se produzem pelo governo do IDEB 29

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 19-30, jul./dez.2012

Notas

1 A Prova Brasil/Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), cujos resultados estão sendo

divulgados pelo IDEB 2012, foi realizada em novembro de 2011, de forma censitária na 4ª série/5º ano e

na 8ª séries/9º ano do Ensino Fundamental das escolas públicas das redes municipais e estaduais, e por

amostragem no Ensino Médio, neste caso envolvendo apenas os alunos do 3º ano que realizam o ENEM.

c.f. http://www.educacao.rs.gov.br/pse/html/noticias_det.jsp?ID=9560 Acessado em 01 de outubro de

2012.

2 A meta brasileira de um IDEB nacional igual a 6,0 para 2022 tem como referência a qualidade dos

sistemas em países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico.

3 Nota de esclarecimento da Secretaria de Educação do RS (SEDUC), disponível em: http://www.educacao.

rs.gov.br/pse/html/noticias_det.jsp?ID=9560 Acesso em 01 de novembro de 2012.

4 Essas visitas faziam parte do trabalho que era realizado como Professor de Prática de Ensino nos anos de

2007 a 2010.

5 Não é o intuito deste artigo desenvolver ou discutir uma noção de Prática. Para tanto, será tomado o

sentido do termo dado por Miguel et al (2010), como sendo um conjunto articulado de ações já produzidas,

significadas, realizadas, reconhecidas, legitimadas nos processos relacionais que envolve, parcial ou

totalmente, os integrantes de uma comunidade social, política ou cultural. A rigor, as práticas não

precisariam ser adjetivadas, pois as mesmas, seja em qualquer um desses âmbitos envolvem sempre uma

produção simbólica. Contudo, permitir-me-ei adjetivar as mesmas de curriculares para situá-las no campo

de forças que incidem na instituição escolar, tendo sua forma-objeto simbólico o Currículo.

6 Essas informações referem-se basicamente ao cálculo do índice para o ensino fundamental uma vez que

para o Ensino Médio é utilizado o ENEM e a coleta de outros dados é feito por amostragem e não com um

caráter censitário.

7 Segundo Veiga-Neto o termo Governamento, para falar de Governo, traduziria melhor aquilo que Michel

Foucault na língua francesa denominaria de Governamentalité (Governamentalidade) para falar tanto das

práticas de governo, como conjunto de saberes que institui uma racionalidade própria de Estado, quanto

aos saberes necessários à maneira de se dirigir a conduta dos indivíduos ou de comunidades, instituições.

8 Utilizaremos o termo Governamento, ao invés de governo, para distingui-lo do sentido capturado e

atribuído pela ciência política nos séculos XVII e XVIII.

9 Trabalho apresentado no 63 CIEAEM (Barcelona, Spain) e publicado no QUADERNI DI RICERCA IN

DIDATTICA / Mathematics (QRDM). Quaderno n.22, Supplemento n.1 - PALERMO 2012, p. 114-118.

10 Para uma discussão sobre o termo ver também Bello (2012) no prelo.

11 A palavra estatística tem mais de um sentido: seu emprego no plural se refere às estatísticas descritivas

como os dados colecionados, mas no singular se refere à teoria estatística e ao método pelo qual os dados

são analisados. Assim, o termo podemos aplicá-lo tanto à interpretação de uma série de números como aos

próprios números.

12 Essa desarticulação remete ao que em Traversini e Bello (2009) referimos como a auditabilidade de

políticas e processos de avaliação, isto é, ao assumirem uma forma de auditoria por se tratarem de provas

elaboradas por especialistas externos ao processo escolar desencadeado, as práticas pedagógicas tornam-se

comparáveis umas às outras evidenciando assim seus resultados. Desta forma, a maquinaria avaliativa

institui a evidência de práticas e estilos pedagógicos de sucesso, sugerindo fortemente a sua replicação

independente de situação ou contexto de produção, advertência e destinação de recursos para as

instituições que muito abaixo dos índices são vistas como problemáticas.

13 De janeiro a março de 1980, M. Foucault ofereceu no Collège de France o curso intitulado: Du

gouvernement des vivants, traduzido para o português como o governo dos vivos. Um curso anterior a um

outro intitulado o Governo de si e dos outros, oferecido de janeiro a março de 1983, para tratar da forma de

constituição dos sujeitos pelos atos e práticas do dizer-verdadeiro. Neste texto preferimos traduzir o termo

Vivants por viventes, por acreditarmos dar todavia um caráter mais provisório e em constituição à

existência de um ser. O termo vivo pode nos remeter a um dito ”ser vivo” e nos posicionar na grade de

leitura das Ciências Biologias.

14 No que se refere à Matemática na Prova Brasil/SAEB e no ENEM, são elaboradas com base na Matriz de

Referência de avaliação dessa disciplina para os Ensinos Fundamental e Médio, respectivamente. Essa

Matriz é constituída a partir dos blocos de conteúdos propostos pelos PCN e pelos PCNEM e pelas

habilidades e competências consideradas básicas para o final de cada um desses níveis de ensino. A

relação conteúdos-habilidades/competências é expressa na matriz a partir de 37 descritores, em se tratando

do ensino fundamental e 35 descritores para o Ensino Médio.

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30 Samuel Edmundo Lopez Bello

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 19-30, jul./dez.2012

15 Reconhecer que as imagens de uma figura construída por uma transformação homotética são semelhantes,

identificando propriedades e/ou medidas que se modificam ou não se alteram. (D7 – Espaço e forma –

Matriz de referencia – EF)

16 Identificar a representação algébrica e/ou gráfica de uma função exponencial (D27 – Números e

Operações – Matriz de referencia – EM)

17 Em 15 de agosto de 2012, o programa Conversas Cruzadas exibido pela TVCOM/Rio Grande do Sul do

grupo RBS, trouxe como tema: RS tem os piores números da educação no sul do país, naquela ocasião

insistia-se na contextualização e na aplicabilidade dos saberes escolares, bem como questionava-se a

formação do professor para levar adiante este trabalho. http://mediacenter.clicrbs.com.br/tvcom-rs-

player/131/player/264251/conversas-cruzadas-15-08-2012-bloco-1/1/index.htm

Sobre o autor:

Samuel Edmundo Lopez Bello: Professor do Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Rio

Grande do Sul. Porto Alegre.

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31

*Endereço eletrônico: [email protected]

**Endereço eletrônico: [email protected]

Currículo e gênero: produção e naturalização das diferenças na escola

Julia Mayra Duarte Alves*

Laura Cristina Vieira Pizzi**

Resumo

Este artigo apresenta uma pesquisa no qual se analisou a produção de subjetividades em uma escola de

ensino fundamental em um bairro de Maceió/AL. A pesquisa problematizou a demarcação de gênero

constituída a partir de duas atividades econômicas e culturais presentes no lugar, a produção da renda filé e a

pesca. A partir dos enunciados que circulam na escola sobre essas atividades, com base nas ferramentas

teóricas fornecidas por Foucault, a pesquisa analisou os discursos produtores de subjetividades que estão

operando predominantemente na escola com base nessa divisão sexual do trabalho. As estratégias

metodológicas utilizadas foram observações, entrevistas e grupos de discussão com estudantes. Observamos

que os modos de ser dos sujeitos são resultados de técnicas de governo das relações de gênero que objetivam

determinar as possibilidades de ser e viver, estabelecendo fronteiras fortemente demarcadas entre o que é

feminino e o que é masculino.

Palavras-chave: Currículo; Gênero; Subjetividade; Ensino fundamental.

Curriculum and gender: production and naturalization of differences in school

Abstract

This article presents a research intended to analyze the production of subjectivities in an elementary school

in a neighburhood area of Maceió/AL. It also aimed at a discussion about the demarcation of gender formed

by two economic and cultural activities taking place there, the production of lace of file and fishing. From

the statements circulating in school about these activities, based on theoretical tools provided by Foucault,

the research examined the discourses producing subjectivities in terms of gender, which goes on

predominantly in school as to the sexual division of labor in the community. The methodological strategies

used were observations, interviews and discussion groups with students. We noticed that the children’s ways

of being are the result of techniques of ruling gender relations in order to determine the possibilities of being

and living, establishing borders sharply demarcated between what is feminine and what is masculine.

Keywords: Curriculum; Gender, Subjectivitie, Elementary School.

Considerações iniciais

Este artigo apresenta resultados de uma

pesquisa de mestrado que buscou entender como

determinadas subjetividades são produzidas a

partir dos enunciados que circulam no currículo

de uma escola localizada em um bairro periférico

e turístico de Maceió. A pesquisa problematizou a

demarcação de gênero constituída com base em

duas atividades econômicas e culturais presentes

nesse bairro que instituem a pesca como uma

atividade masculina e a produção da renda do filé1

como feminina.

No bairro, a pesca (atividade

tradicionalmente considerada masculina) foi

durante muito tempo a principal fonte de renda,

mas desde o final da década de 1980 vem se

tornando pouco lucrativa e viável devido à

degradação ambiental da lagoa que margeia a

comunidade. Ao mesmo tempo, a produção e

comercialização do filé (realizada,

tradicionalmente, pelas chamadas rendeiras), vêm

se consolidando como uma interessante

possibilidade de renda em decorrência da

atividade turística na região.

Essas reconfigurações econômicas locais

chamaram nossa atenção e foram um convite para

estudar as relações de gênero na única escola do

bairro, a partir dos enunciados discursivos sobre

essas atividades que, ao mesmo tempo em que

demarcam, se constituem por uma forte divisão de

gênero.

O filé e a pesca se apresentam, então,

como elementos estratégicos para se pensar a

subjetivação dos/as meninos/as que estudam na

escola pesquisada e que são moradoras do bairro.

Desde o nascimento, as crianças

acompanham a confecção do filé. Toda produção

dessa renda acontece no ambiente doméstico. Por

volta dos cinco ou seis anos de idade, as crianças

começam a participar da confecção da renda, seja

dentro de suas casas ou nas calçadas do bairro, à

vista dos turistas e da comunidade. No cotidiano,

elas começam a se interessar pela renda como

atividade, observando e fazendo os primeiros

pontos (MESQUITA et al, 2011).

A aprendizagem do filé na infância indica

que essa atividade é parte crucial do processo de

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32 Julia Mayra Duarte Alves, Laura Cristina Vieira Pizzi

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 31-41, jul./dez.2012

socialização das crianças na família e no bairro.

Elas aprendem a técnica observando, em geral, as

mulheres adultas (mães, tias, avós e vizinhas), que

se organizam para tecer em pequenos grupos ou

sozinhas em casa.

Mesquita et al (2011) apontam que, na

fase incial da infância, pelo fato de o filé estar

associado ao ambiente doméstico, todas as

crianças aprendem e fazem a renda; no entanto, as

meninas são mais incentivadas e cobradas pelo

trabalho. Estas prosseguem na atividade por toda a

sua vida, ou, pelo menos, por um período maior

que os meninos, que, na maioria das vezes,

abandonam a atividade em função da

discriminação associada à feitura da renda por

homens. Esse momento em que os meninos se

afastam do filé coincide com a passagem pelo

ensino fundamental, em especial nas séries finais,

o que tornou esse período interessante para

pesquisar os modos de subjetivação de gênero na

escola do bairro.

A pesquisa aqui relatada buscou destacar

que, além do aspecto econômico, essas atividades

são centrais na produção de subjetividades das

crianças que lá moram, mais especificamente, nos

modos como elas vivenciam as demarcações de

gênero.

Currículo e subjetividade

Nas análises sobre currículo, a pesquisa

baseou-se em autores pós-estruturalistas como

Silva (2006) que compreende o currículo como

um campo cultural, como uma instância de

produção e circulação de discursos, na qual se

estabelecem lutas em torno da significação sobre

os sujeitos e o mundo, impregnado de valores e

práticas.

O currículo, nessa perspectiva, é

entendido como um lugar de produção discursiva

que forja subjetividades e que vai além do

conjunto dos conteúdos escolares, sendo

composto também pelas formas de organização do

espaço, do tempo e pelos discursos que circulam

na escola.

Na perspectiva pós-estruturalista, o

currículo constitui regulações sociais no nível do

conhecimento e da subjetividade (POPKEWITZ,

1994), ou seja, quando falamos em currículo

colocamos em jogo o que deve ser conhecido,

qual conhecimento é válido e autorizado a circular

na escola. Ademais, o currículo não apenas

informa como também guia as pessoas a pensarem

de determinadas formas o seu eu no mundo,

moldando/ as nossas subjetividades.

A perspectiva pós-estruturalista rejeita a

hipótese de uma consciência centrada, unitária,

coerente. Nesse sentido, não há um núcleo

subjetivo pré-social no pensamento pós-

estruturalista (SILVA, 2005). Nossas

subjetividades são forjadas a partir de processos

sociais, de dispositivos de subjetivação. O

currículo, desse modo, não pode mais ser visto

como o “primo pobre” (SILVA, 1995) das

análises pedagógicas, uma vez que ele direciona o

processo educativo e a produção de subjetividades

na escola.

A noção de subjetividade que norteou a

pesquisa é diferente daquela que se relaciona com

a versão individualizada dos sujeitos. Essa

perspectiva fortemente influenciada pelo projeto

da Psicologia enquanto ciência sustentou vertentes

teóricas que se baseavam em uma concepção de

subjetividade correspondente a um sujeito

psicológico universalizado, particularizado e

finalizado, como se tivesse uma essência. A noção

de subjetividade utilizada aqui é baseada no

pensamento de Foucault (2006b) e a entende

como um efeito de modos de subjetivação, como

“a maneira pela qual o sujeito faz a experiência de

si mesmo em um jogo de verdade, no qual ele se

relaciona consigo mesmo” (FOUCAULT, 2006b,

p. 236).

Ao afirmar que “não é o poder, mas o

sujeito, que constitui o tema geral de minha

pesquisa” (1995, p. 232), Foucault procurou

refutar a ideia de um sujeito transcendental, sem

história, estável, centrado e individualizado. Para

ele, não existe sujeito fora dos processos sociais,

fora de um discurso que o produz como tal.

Foucault desloca o sujeito antes relacionado a

uma posição de origem para uma posição de

efeito.

Nesse sentido, a subjetividade pode ser

entendida como resultado de modos de

subjetivação, ou seja, como parte de um “processo

pelo qual se obtém a constituição de um sujeito,

mais precisamente de uma subjetividade, que

evidentemente não passa de uma das

possibilidades dadas de organização de uma

consciência de si” (FOUCAULT, 2006a, p. 262).

Rose (2001) traz elementos que ajudam a

entender por que uma subjetividade é apenas uma

possibilidade, e não a única. Ele aponta que as

formas pelas quais os seres humanos atribuem

sentido as suas experiências têm um sistema

próprio, ou seja, “os dispositivos de produção de

sentidos – grades de visualização, vocabulários,

normas e sistemas de julgamento, não são

produzidos pela experiência; eles produzem a

experiência” (ROSE, 2001, p. 36).

Existem, portanto, práticas que localizam

e limitam nossas experiências e sentidos. Estas

práticas, segundo Rose, são disseminadas em

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Currículo e gênero: produção e naturalização das diferenças na escola 33

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 31-41, jul./dez.2012

diferentes locais e através de diferentes formas:

escolas, famílias, ruas, locais de trabalho,

tribunais. Nesta direção, Rose utiliza o termo

tecnologias humanas para se referir a “montagens

híbridas de saberes, instrumentos, pessoas,

sistemas de julgamento, edifícios e espaços,

orientados no nível programático, por certos

pressupostos e objetivos sobre os seres humanos”

(ROSE, 2001, p.38). Para ele, a escola, assim

como a prisão e o hospício, faz parte dessas

tecnologias que buscam moldar os sujeitos a partir

do controle de suas condutas.

Larrosa (1994) aponta que a obra de

Foucault é útil para questionar as concepções

inertes de subjetividade antes exclusivas e válidas,

sem que isto implique que o sujeito não seja capaz

de refletir sobre si, mas sim “porque mostra como

a pessoa humana se fabrica no interior de certos

aparatos (pedagógicos, terapêuticos,...) de

subjetivação” (LARROSA, 1994, p. 37). Isto

implica que a subjetividade, facilmente remetida a

uma interioridade ou identidade, passa a ser

entendida como produto provisório das formas de

experiência de si, atravessadas pelas relações de

poder e de saber. A divisão pensada outrora entre

o corpo e a subjetividade é desfeita uma vez que o

corpo longe de ser o outro da subjetividade é o

lugar onde ela se inscreve. O corpo, portanto, é

um dos objetos mais importantes do controle.

Para Foucault (1996), é o discurso que

fornece as condições de possibilidade para a

produção de determinados tipos de subjetividade.

É nele que podem ser encontrados os mecanismos

de subjetivação, junto às táticas das relações de

poder que excluem outras possibilidades

discursivas seja interditando, rejeitando ou

separando o verdadeiro do falso, ou fazendo tudo

isso de uma só vez.

O pensamento de Foucault é o território

no qual podemos pensar a subjetivação, não

mergulhando e se afogando em uma suposta

interioridade do sujeito. Com ele, é possível

captarmos esse processo pelo discurso, pela

história, pelo que, de fato, é possível acessar: a

exterioridade. O currículo faz parte desta

exterioridade. Mais que isso, ele está localizado

em uma posição estratégica. É ele quem dá o

contorno de nossas experiências, produz as nossas

experiências quando cerca nosso terreno de

sentidos. Ele é a condição de possibilidade de

sermos o que somos, ou melhor, de estarmos

como estamos.

Currículo, gênero e subjetividade

Na pesquisa, gênero é entendido como um

“mecanismo através do qual se produzem e se

naturalizam as noções de masculino e feminino”

(BUTLER, 2006, p. 70). Para além das diferenças

sexuais, compreendemos gênero como um

conjunto de normas, como um efeito performático

de subjetivação, que adquire estabilidade em

função da repetição e reiteração de normas. Essa

noção de gênero mostra que é possível pensá-lo

não apenas em termos das diferenças sexuais, mas

como um conjunto de normas, de discursos e de

práticas, como uma tecnologia2 social que envolve

relações de poder que participa diretamente no

processo de subjetivação.

Butler (2006) coloca que é justamente

pela confirmação das normas de gênero que os

corpos sexuados vão passar a ser pensados como

diferentes e naturais. Ou seja, antes de ser apenas

aquela categoria que dá sentido social às formas

pretensamente naturais dos sexos, gênero é

também responsável por reiterar este caráter

natural dos sexos.

A autora traz a noção de gênero como

norma, que tanto pode naturalizar como subverter

as noções estabelecidas de masculino e de

feminino. Nesse sentido, ela aponta que gênero

pode ser entendido também como mecanismo que

pode desconstruir e desnaturalizar padrões. Ela

afirma ainda que a generificação é construída,

dentre outras coisas, pelas relações que buscam

diferenciar os sujeitos. Com isso, “submetido ao

gênero, mas subjetivado pelo gênero, o ‘eu’ não

precede nem segue o processo dessa

generificação, mas emerge apenas no interior das

próprias relações de gênero e como matriz dessas

relações” (BUTLER, 2007, p. 160).

Conforme já pontuamos, o currículo

direciona o processo educativo, produz

subjetividades e, portanto, enquadra pessoas em

determinados modelos. A noção de gênero aqui

utilizada ajuda na compreensão e na visualização

das tecnologias e normas de gênero presentes no

currículo. Alambert (2008) coloca que a escola é

uma instituição que “ocupa um lugar

preponderante quanto à educação diferenciada,

reforçando de modo formal a postura assumida

pela família no processo discriminatório; filas de

meninos e meninas, brincadeiras e esportes

diferenciados, orientação profissional distinta para

ambos os sexos” (ALAMBERT, 2008, p. 317).

Sendo uma instituição moderna, a escola vem se

caracterizando ainda hoje como disciplinadora

(ALVES, 2010) e diferenciadora (LOURO,

2007a).

Desde seus inícios, a instituição escolar

exerceu uma ação distintiva. Ela se

incumbiu de separar os sujeitos –

tornando aqueles que nela entravam

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34 Julia Mayra Duarte Alves, Laura Cristina Vieira Pizzi

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 31-41, jul./dez.2012

distintos dos outros, os que a ela não

tinham acesso. Ela dividiu também,

internamente, os que lá estavam, através

de múltiplos mecanismos de classificação,

ordenamento e hierarquização. A escola

que nos foi legada pela sociedade

ocidental moderna começou por separar

adultos de crianças, católicos de

protestantes. Ela também se fez diferente

para ricos e para os pobres e ela

imediatamente separou os meninos das

meninas (LOURO, 2007a, p. 57).

Negando esse interesse pelas questões de

gênero, de maneira silenciosa, a escola normaliza

e disciplina os sujeitos com padrões estabelecidos,

regulamentos e legislações que separam, ordenam

e normalizam os/as alunos/as.

Segundo Britzman (2007), a escola

tradicionalmente tem feito com que se esperem

respostas estáveis, uma vez que esse lugar é

povoado por modos autoritários de interação

social, o que impede o desenvolvimento de uma

curiosidade que poderia levar professores/as e

estudantes a multiplicar as possibilidades dos

modos de viver as relações de gênero e as

sexualidades. Para a autora, o lugar do

conhecimento mantém as problematizações de

gênero e sexualidade no campo da ignorância.

Nesse sentido, a escola busca normalizar

as condutas, reduzindo as possibilidades das

formas de ser e viver. Podemos fazer essa

afirmação porque, conforme observaram Meyer e

Soares (2004), “os espaços e os processos

pedagógicos estão atravessados de mecanismos e

estratégias de vigilância, controle, correção e

moldagem dos corpos dos indivíduos – estudantes

e docentes – que povoam as instituições

escolares” (p. 7 - 8).

É via currículo que ocorre a produção das

diferenças e que meninos e meninas são

interpelados, por meio de regimes de verdade que

ditam modos de vidas diferenciados. Nas filas,

nos desenhos, nas danças, nas vestimentas, nas

cores, nos gestos, no modo de falar, nos planos em

que projetam as futuras profissões, em todos esses

elementos e em outros incontáveis, meninos e

meninas são diferenciados e colocados em

determinadas posições. Nas práticas cotidianas, os

processos de subjetivação que incluem as

tecnologias e as normas de gênero operam e

tentam captar, padronizar, governar e produzir

determinados tipos de subjetividades na escola.

Para Louro (2000), mesmo que estas

ações estejam mais sutis, mais refinadas, ainda há

uma vigilância constante quando se trata de

gênero nas escolas e no currículo, uma vez que

“expectativas distintas são projetadas para o

desempenho intelectual e físico; critérios

implícitos de avaliação insinuam-se na apreciação

de comportamentos e resultados escolares;

aptidões ou tendências são ‘identificadas’ e

sugerem orientações profissionais diferentes” (p.

49-50).

Segundo Novelino (2008), ser homem ou

ser mulher constituem traços que compõem a

subjetividade, delimitando padrões apropriados de

conduta. Assim como Butler, a autora entende a

subjetividade não como algo particular ao sujeito

relacionada apenas ao aspecto psicológico, mas

sim como produto de tecnologias que operam a

partir de diversos artefatos culturais. Nesse

sentido, ela coloca que “A entrada nos códigos da

masculinidade e feminilidade começa nos

primeiros momentos de vida com roupas, cores,

brinquedos, gestos adequados” (NOVELINO,

2008, p. 311) que depois, como sugere Butler

(2007), são reiterados durante toda a vida a partir

das relações de poder exercidas pela família,

escola, televisão, cinema, especialmente, pela

própria pessoa, que, devidamente subjetivada, vai

atuar no governo de si.

As subjetividades generificadas são

efeitos dessas normas e não condições naturais.

Os sujeitos estão cercados de processos de

naturalização, de subjetivação que tentam

demarcar diferenças de gênero e que ocorrem de

maneira privilegiada na escola e no currículo.

A escola e o currículo estão longe de ser

meros reflexos das condições sociais. A

partir de múltiplas práticas cotidianas

banais, a partir de gestos e expressões

pouco perceptíveis, pelo silêncio, pelo

ocultamento ou pela fala, constroem-se,

no espaço propriamente escolar, lugares

e destinos sociais. Talvez essa dinâmica

nos escape, tal a “naturalização” de que

esses processos estão revestidos. Talvez

sejam muito sutis os jogos de poder que

tecem os currículos, os programas, as

normas ou as avaliações escolares

(LOURO, 2005, p. 91-92).

A escola exerce uma pedagogia de gênero

e coloca em ação as tecnologias de governo,

processos que se completam com o autogoverno.

Por outro lado, ela abre possibilidades para as

resistências. Por isso, o currículo pode ser

entendido como “prática subjetivadora”

(CORAZZA, 2001, p. 57) que proporciona

reações múltiplas, incluindo as de resistências aos

padrões de gênero.

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Currículo e gênero: produção e naturalização das diferenças na escola 35

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 31-41, jul./dez.2012

Aspectos metodológicos da pesquisa

A partir dos enunciados sobre o filé e a

pesca veiculados na comunidade escolar, pelas/os

alunas/os, pelos/as professores, pela direção e

pelos/as funcionários/as, a pesquisa concentrou-se

em como os meninos são interpelados por esses

enunciados, ou seja, nas técnicas de subjetivação

em termos de gênero que estão operando na

escola. As análises se desenvolveram com base

nas ferramentas teóricas fornecidas por Foucault,

principalmente a noção de discurso como produtor

de verdades, de normalidades e anormalidades,

enfim, de formas de ser e de viver (FOUCAULT,

1996), representadas no currículo.

O recorte que direcionou a realização da

investigação para as turmas dos anos finais do

ensino fundamental e também para os processos

de subjetivação dos meninos foi sugerido pelas

indicações de outra pesquisa (MESQUITA et al,

2011), onde se observou que no bairro os meninos

são afastados da confecção do filé logo que vão

crescendo, com aproximadamente onze, doze

anos, em um momento que coincide com a

passagem deles nos anos finais do ensino

fundamental.

Foram realizadas observações nos

diversos ambientes da escola, entrevistas e grupos

de discussão como meios de acesso aos

enunciados sobre o filé e a pesca, que permitiram

pensar os processos de subjetivação em termos de

gênero na escola. Tanto as entrevistas como as

discussões dos grupos foram registrados por meio

de gravador de voz, após o prévio acordo com

os/as participantes/responsáveis3. As observações

foram registradas em diário de campo, estas quase

sempre foram atravessadas por conversas

informais, também registradas neste instrumento

de pesquisa.

Nas análises da pesquisa foram utilizadas

algumas atitudes metodológicas sugeridas por

Fischer (2003) com base nas contribuições de

Foucault. Partimos, então, dos seguintes aspectos:

a linguagem e o discurso são lugares de lutas

permanentes; os enunciados são raros e não são,

portanto, únicos e óbvios; é preciso atentar às

práticas discursivas e não discursivas; é preciso

manter uma atitude de distanciamento e de dúvida

diante dos aspectos investigados.

Partir da noção de que o discurso é um

lugar de luta permanente é considerar, assim como

Foucault, que o discurso não pode ser visto apenas

como um conteúdo representado por um sistema

de signos, mas sim como “práticas que formam

sistematicamente os objetos de que fala”

(FOUCAULT, 2012, p. 60). Para Foucault, as

palavras e as coisas se relacionam de maneira

complexa, porque essa relação é histórica, estando

repleta de construções e interpretações, sendo

perpassada por relações de poder, produzindo

sujeitos, subjetividades e compondo modos de

subjetivação.

Para analisar esses modos de subjetivação,

é preciso, então, descrever a dispersão dos

acontecimentos discursivos “através dos quais,

graças aos quais e contra os quais” (GREGOLIN,

2007) se estabelecem os regimes de verdade que

atravessam e constituem os sujeitos. Considerar

que os enunciados são raridades é pensá-los com

base em suas condições de existência, é

problematizá-los e localizar seus efeitos de

verdade, é questionar sua aparição mostrando, por

exemplo, como eles surgem em detrimento de

outros que são excluídos, rejeitados e tidos como

falsos em determinados momentos e lugares.

Nesse sentido, descrever enunciados é

entender como as coisas ditas são acontecimentos

que ocorrem em contornos muito específicos “no

interior de uma certa formação discursiva – esse

feixe complexo de relações que ‘faz’ com que

certas coisas possam ser ditas (e serem recebidas

como verdadeiras), num certo momento e lugar”

(FISCHER, 2003, p. 373).

Atentar para as práticas discursivas e não

discursivas é investigar e tornar visíveis os efeitos

dessas práticas, que podem tanto ser exercidas a

partir daquilo que é “propriamente discursivo

(linguagem, discurso, enunciado) como também

podem ser observadas em práticas institucionais

(exercícios, rituais, definição de lugares e

posições, distribuição espacial dos sujeitos, etc.) –

práticas que jamais “vivem” isoladamente”

(FISCHER, 2003, p. 387).

É interessante, nessa perspectiva, observar

essas práticas produzidas nas relações de

saber/poder de determinada época e descrever os

enunciados considerados verdadeiros, que estão

presentes no cotidiano, interpelando os sujeitos e

produzindo determinadas formas de viver. Desse

modo, buscamos “ampliar o leque das práticas a

descrever no que se refere a uma temática e a um

problema levantado, entendendo que há uma força

nas práticas institucionais e que há igualmente

uma força considerável nas construções

discursivas correspondentes” (FISCHER, 2003, p.

382).

Nesse sentido, a noção de discurso de

Foucault mostrou-se bastante interessante para as

análises desta pesquisa, uma vez que o a

investigação buscou entender como ocorre a

produção de subjetividades na escola a partir dos

enunciados sobre o filé e a pesca.

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36 Julia Mayra Duarte Alves, Laura Cristina Vieira Pizzi

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 31-41, jul./dez.2012

Produção e naturalização das diferenças na

escola

O pensamento de Foucault vem servindo

de ferramenta para diversos estudos que buscam

entender como nos tornamos sujeitos, mais

precisamente como se constituem nossas

subjetividades, como se dão os processos de

subjetivação em diferentes contextos.

Determinados modos de agir, de viver, de

se vestir, de se divertir, de falar, de se comportar,

de se conduzir são amplamente divulgados, por

exemplo, por meio do cinema (LAURETIS, 1994;

GIROUX, 1996), dos programas televisivos

(FISCHER, 2007), da mídia (PARAISO, 2007),

dos periódicos científicos, jornais e internet

(HÜNING, 2008). Neste trabalho,

especificamente, buscamos analisar como nos

tornamos sujeitos de gênero. Dito de outra forma,

buscamos analisar as tecnologias de subjetivação

que atuam na vida dos meninos a partir dos

enunciados que circulam na escola em que

estudam, sobre uma determinada norma de

gênero, que amarra o filé ao feminino e a pesca ao

masculino.

Esta norma pode ser entendida como um

elemento a partir do qual “certo exercício do

poder se acha fundado e legitimado”

(FOUCAULT, 2002, p. 62). Nesse sentido, ela

atua nos processos de subjetivação na escola

estudada, qualificando condutas e, principalmente,

corrigindo as consideradas inadequadas.

A frequência diária na escola, a

convivência com os professores, com os demais

colegas, com a direção, com os que ali trabalham

em outras diversas funções, aliada às experiências

vividas para além do espaço escolar configura-se

como um campo de possibilidades de subjetivação

composto por manifestações e propagação de

supostas verdades.

Rose (2001) coloca que as formas pelas

quais atribuímos sentido às nossas experiências

têm um funcionamento específico, composto por

dispositivos de produção de sentidos, grades de

visualização, vocabulários, normas e sistemas de

julgamento tidos como verdadeiros e que moldam

as nossas vivências através de práticas que ditam

as condições de nossas experiências e que operam

em diferentes locais: escolas, famílias, ruas,

ambiente de trabalho, por exemplo.

Uma dessas verdades, dessas grades de

visualização, dessas normas, ou seja, um desses

dispositivos de produção de sentidos presente nas

vidas dos sujeitos que participaram da pesquisa

aqui apresentada é a de que homens pescam e

mulheres fazem filé. O propósito da pesquisa foi

utilizar estes dois elementos, presentes no

cotidiano dos alunos, para pensar as relações de

gênero e tentar captar as tecnologias de

subjetivação que atuam na escola.

Partimos do pressuposto de que o que

falamos não está descolado das nossas

experiências, do que ouvimos. As nossas palavras

propagam discursos produzidos e envolvidos

numa rede de supostas verdades e de relações de

poder e que estamos sempre obedecendo a um

conjunto de regras dadas historicamente e tidas

como verdadeiras (FISCHER, 2001). Ou seja,

partimos do pressuposto de que os enunciados

das/os alunas/os, dos/ professores/as, dos/as

funcionários/as trazem indícios dos discursos que

circulam na escola.

Desse modo, quando um aluno diz “Oxe,

eu sou macho, professor! Eu sou espada! E eu sou

mulher pra fazer filé?”4, seu enunciado põe em

jogo um conjunto de elementos referente às

possibilidades de aparecimento, às normas de

gênero do lugar em que vive, faz parte de uma

formação discursiva relacionada, principalmente,

à divisão sexual do trabalho.

Dizer que não faz filé, nesse caso,

significa mais do que dizer que não tem vontade,

que não tem interesse, que não gosta dessa

atividade artesanal. Significa dizer que não é

mulher para fazer filé.

Foucault observou, ao investigar a história

da sexualidade, que existem técnicas que fazem

com que os indivíduos efetuem “operações sobre

os seus corpos, sobre as suas almas, sobre o seu

próprio pensamento, sobre a sua própria conduta,

e isso de tal maneira a transformarem-se a eles

próprios, a modificarem-se” (FOUCAULT, 1993,

p. 201). Essas operações foram por ele nomeadas

de tecnologias ou técnicas do eu. Para Foucault, a

partir daí, tornou-se interessante levar em conta as

técnicas do eu além das de dominação nas análises

genealógicas do sujeito nas sociedades ocidentais,

ou seja, quando se buscar investigar as formas de

constituição das subjetividades.

Digamos que se tem de levar em conta a

interação entre estes dois tipos de

técnicas, os pontos em que as tecnologias

de dominação dos indivíduos uns sobre os

outros recorrem a processos pelos quais o

indivíduo age sobre si próprio e, em

contrapartida, os pontos em que as

técnicas do eu são integradas em

estruturas de coerção (FOUCAULT,

1993, p. 207).

Nesse sentido, o modo como os sujeitos

são conhecidos relaciona-se ao modo como se

conhecem a si próprios. É nessa relação que

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Currículo e gênero: produção e naturalização das diferenças na escola 37

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 31-41, jul./dez.2012

Foucault vai colocar que o governo não é “uma

maneira de forçar as pessoas a fazer o que o

governador quer. O governo é sempre um difícil e

versátil equilíbrio de complementaridade e

conflito entre técnicas que asseguram a coerção e

processos por meio dos quais o eu é construído e

modificado por si próprio” (FOUCAULT, 1993,

p. 207).

Nos enunciados que circulam na escola

sobre o filé e a pesca estão presentes algumas

tecnologias de subjetivação de gênero que

funcionam regulando, organizando, moldando,

enfim, demarcando os modos de ser dos sujeitos

que lá estudam. O principal propósito dessas

tecnologias é naturalizar crenças, fazendo com

que elas passem a operar como verdades para os

sujeitos e produzindo, então, maneira de ser e

viver. Esses discursos, essas tecnologias estão no

currículo e visam ao governo das condutas,

buscam subjetivar.

São estabelecidos modos considerados

corretos de brincar, de estudar, de falar, de se

relacionar com o filé e com a pesca, modos de

viver que acabam se tornando conhecidos e tidos

como naturais pelos sujeitos. Um conjunto de

condutas que busca parecer o mais correto, o mais

viável, o mais conveniente, em última análise, o

único possível para os sujeitos. Os enunciados dos

próprios/as alunos/as, dos/as professores/as,

dos/as funcionários/as convidam os meninos a

viverem de determinadas formas, como “meninos

de verdade”, “cabra macho mesmo”, a não fazer

filé.

As análises empreendidas na pesquisa

buscaram localizar os acasos dos discursos que

camuflam os processos de naturalização e que

apresentam verdades como inquestionáveis.

Buscaram analisar as relações de poder que fazem

com que determinadas formas de ser e viver sejam

contempladas nestes discursos ao mesmo tempo

em que outras são desqualificadas, colocadas no

campo da impossibilidade. O masculino e o

feminino são divulgados nos enunciados como

características inatas e universais e, portanto, são

as bases para a padronização das formas de viver

a feminilidade e a masculinidade.

Louro (2005) aponta que “há uma

obrigatoriedade de ‘preferir’ determinados

interesses, de desenvolver habilidades ou saberes

compatíveis com as referências socialmente

admitidas para masculinidade e para

feminilidade” (p. 91). Isso resulta no desconforto

dos meninos, quando diante de atividades ou

práticas tidas como não naturais para o gênero

masculino e também quando não possuem

habilidades em atividades que tidas como próprias

ao masculino.

Desse modo, observamos alguns

enunciados através dos quais os meninos buscam

mostrar na escola que não fazem filé e, portanto,

que não se envolvem com o que é feminino: “de

filé, eu não sei nada não”5, “eu não quis

aprender”6, “não gosto”

7.

Rose (1998) coloca que, mesmo que

pareça que “pensamentos, sentimentos e ações

constituem o próprio tecido e constituição do mais

íntimo eu, eles são socialmente organizados e

administrados nos mínimos detalhes” (p. 31).

Nesse sentido, esses enunciados, longe de

expressarem as mais íntimas vontades dos

meninos, atuam na relação do sujeito consigo,

como técnicas de si que:

Permitem aos indivíduos efetuarem um

certo número de operações sobre seus

corpos, sobre suas almas, sobre seu

próprio pensamento, sobre sua própria

conduta, e isso de tal maneira a

transformarem-se a eles próprios, a

modificarem-se, ou a agirem num certo

estado de perfeição, de felicidade, de

pureza, de poder sobrenatural e assim por

diante (FOUCAULT, 1993, p. 207).

Nesses enunciados, os meninos avaliam-

se e posicionam-se como aqueles que não fazem

filé. Eles produzem um saber sobre si mesmo,

amparados na normatividade da demarcação de

gênero entre o filé e a pesca. Nesse mesmo

movimento eles produzem também um saber

sobre outros, que são posicionados de diferentes

formas caso estejam ou não envolvidos com o filé,

eles pensam e avaliam uns aos outros, conforme o

enunciado a seguir “Eu acho bom, mas não sei, os

meus colegas, eles acham meio esquisito homem

que faz filé”8.

São essas estratégias de governo de si e

dos outros que dão sentido ao caráter performático

de gênero, ao produzir subjetividades

generificadas, uma vez que a performatividade “é

sempre uma reiteração de uma norma ou conjunto

de normas” (BUTLER, 2007, p. 167). As normas

de gênero “expressam-se por meio de

recomendações repetidas e observadas

cotidianamente, que servem de referência a todos”

(LOURO, 2008, p. 22). Quem aceita as sugestões

é considerado “normal”, quem se posiciona fora

delas é tido como “anormal”.

Por meio dos enunciados e dos seus

efeitos de verdade, de maneira exaustiva e

contínua, os meninos produzem verdade sobre

eles mesmos. Para isso, utilizam as técnicas de si

que não são inventadas por eles. De acordo com

Corazza (2001), essas técnicas são “esquemas que

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38 Julia Mayra Duarte Alves, Laura Cristina Vieira Pizzi

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 31-41, jul./dez.2012

eles encontram em sua cultura e que lhes são

propostos, sugeridos, impostos pela sociedade e

grupos sociais” (p. 61).

Na escola investigada, os meninos são

discriminados, caso haja indícios de que

participam de alguma forma do processo de

confecção do filé, sendo chamados publicamente

de “mulherzinhas” e “gayzinhos” quando são

vistos fazendo ou vendendo filé. Sales (2010)

observa que as técnicas de zuação, ou seja,

aquelas que funcionam apontando publicamente

os sujeitos de forma a ironizar ou ridicularizar

seus comportamentos tidos como desviantes das

normas atuam com fins de governo e de maneira

bastante eficiente. A pesquisadora mostra que, em

sua investigação, além dos alunos, os profissionais

também acionam estas técnicas na escola com

objetivos considerados pedagógicos.

Na pesquisa realizada por Sales, a

professora observada usa essa técnica quando diz

publicamente na sala de aula que irá obrigar

alguns alunos a usarem rosa em uma atividade

com o objetivo de fazer com que eles parassem de

atrapalhar a aula, ou seja, como castigo.

De maneira semelhante, na escola aqui

analisada, o funcionário responsável por observar

os/as alunos/as no pátio também utiliza esta

técnica para chamar a atenção dos meninos. Com

a pergunta “E aí, já fez um filezinho hoje?” feita

estrategicamente quando os meninos estão muito

agitados, ele objetiva colocar estes sujeitos em

uma situação constrangedora e assim deixá-los

mais calmos e pensativos. A técnica da zuaçao,

apontada por Sales (2010) e observada também

nesta pesquisa visa governar o comportamento

dos meninos, moldando uma conduta considerada

adequada a um verdadeiro menino e fazendo

também com que eles fiquem quietos.

Há, nos enunciados que circulam na

escola, um interessante processo de naturalização,

uma recorrente tentativa de mostrar que é natural

a mulher gostar de fazer filé, ter mais jeito, mais

habilidades motoras finas, mais paciência, senso

estético e que os homens são naturalmente bons

pescadores porque são mais fortes fisicamente,

mais corajosos: “Filé é mais pra feminino e pesca

é mais pra masculino”9; “Oxe, se brincar menina

já nasce sabendo fazer filé10

” “Filé é mais para

mulher mesmo, pesca é pro homem, todo mundo

diz isso aqui, o pessoal do bairro, as mulheres

também”11

.

Desse modo, notamos que “Nossas

personalidades, subjetividades e

‘relacionamentos’ não são questões privadas, se

isso significa dizer que elas não são objeto de

poder. Ao contrário, elas são intensivamente

governadas” (ROSE, 1998, p. 30).

Considerações finais

O fato de grande parte dos meninos não

demonstrarem interesse pelo filé, conforme

observamos nesta pesquisa, é resultado do

investimento de um processo de governo das

relações de gênero que objetiva determinar as

possibilidades de ser e viver como um menino,

estabelecendo fronteiras claras entre o que é

feminino e o que é masculino. As técnicas de si e

as técnicas de dominação parecem atuar

conjuntamente na escola analisada, buscando

desqualificar aqueles meninos que fazem filé.

Estas técnicas produzem efeitos, fazem um nó

cego entre ser homem e pescar e ser mulher e

fazer filé, levando os sujeitos a desacreditarem na

possibilidade de ser menino e ser rendeiro.

Essas técnicas fazem muitos meninos

desistirem de qualquer aproximação com o filé

mesmo que essa seja uma possibilidade de se

ganhar dinheiro, mesmo que eles gostem de fazer

e achem bonito o artesanato. Estas técnicas

governam, demarcam a conduta dos meninos que

passam a se autogovernar e a governar os outros.

As demarcações de gênero estão

fortemente enraizadas na comunidade onde a

escola está situada e definem como norma a

divisão social e sexual do trabalho em torno do

filé e da pesca. As técnicas de governo na escola

propagam discursos sobre os modos de ser com

base em uma política de verdade, que divulga o

conhecimento sobre certas noções particulares de

gênero, em especial, de que fazer filé é coisa de

mulher.

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Notas

1 O filé é uma renda artesanal de origem desconhecida cujo processo de confecção não deixa dúvida de que

surgiu a partir da rede de pesca, a tarrafa, tendo também múltiplas influências européias. A confecção do

filé passa, inicialmente, pela preparação de uma rede, também chamada de malha que é esticada em um

tear, Posteriormente, esta rede é preenchida com diversos pontos e formas, na maioria das vezes, bastante

coloridas dando forma as peças (marcadores de páginas, toalhas de mesa, blusas, vestidos, saias, dentre

outras), que ficam prontas para serem utilizadas ou comercializadas.

2 O termo tecnologia é aqui utilizado como a articulação de certas técnicas e de certos tipos de discursos

acerca de gênero, de maneira semelhante à sugerida por Foucault (1993), quando ele trata da genealogia do

sujeito.

3 O projeto desta pesquisa foi aprovado pelo Comitê de ética em Pesquisa do Centro Universitário Cesmac,

com o nº de protocolo 1274/2012.

4 Trecho da fala de um aluno do 6º ano durante uma observação no pátio da escola ao responder a pergunta:

“E aí, já fez um filezinho hoje?” feita por um funcionário, chamado de professor pelo aluno.

5 Trecho da fala de um aluno do 8º ano durante o grupo de discussão.

6 Trecho da fala de um aluno do 9º ano durante entrevista.

7 Trecho da fala de um aluno do 7º ano durante entrevista

8 Trecho da fala de um aluno do 7º ano, durante entrevista.

9 Trecho da fala de um aluno do 9º ano durante entrevista.

10 Trecho da fala de uma aluna do 8º ano durante entrevista.

11 Trecho da fala de um aluno do 8º ano durante entrevista.

Sobre as autoras:

Julia Mayra Duarte Alves: Universidade Federal de Alagoas (Maceió).

Laura Cristina Vieira Pizzi: Universidade Federal de Alagoas (Maceió).

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* Endereço eletrônico: [email protected]

** Endereço eletrônico: [email protected]

Mídia e Juventudes: produzindo relações curriculares

Lisandra Veiga dos Santos*

Elisabete Maria Garbin**

Resumo

É objetivo deste artigo perceber como estes discursos podem operar na constituição de um currículo paralelo

na escola ou como se dão suas relações no cenário escolar, bem como na construção de identidades juvenis.

Com base no campo dos Estudos Culturais, Estudos sobre Juventudes e algumas ferramentas foucaultianas,

bem como de discussões sobre currículo de Silva, foram analisados 20 exemplares do Jornal Mundo Jovem

dos anos de 2009 a 2010. As análises permitiram inferir que há um investimento na formação do jovem

voltando-se para a ênfase religiosa. Bem como prescrições sobre o modo “verdadeiro” de ministra aulas e as

formas mais corretas de fazê-lo. Com este artigo pode-se pensar como determinadas identidades juvenis são

produzidas por discursos midiáticos e como podem ser associadas às representações produzidas e colocadas

em circulação pelo Jornal Mundo Jovem.

Palavras – Chave: Juventudes – Mídia - Currículo – Práticas Pedagógicas

Media and Youth: producing relations curriculum

Abstract

It is the aim of this article to see how these discourses can operate in the formation of a parallel curriculum in

school or build their relationships in a school setting as well as in the construction of youth identities. From

the field of Cultural Studies, Youth Studies and some tools Foucault, as well as discussions about curriculum

Silva, were analyzed 20 copies of the Official World Youth the years 2009 to 2010. The analysis allows to

infer that there is an investment in the education of youth turning to the religious emphasis. And

prescriptions on how "true" minister of classes and more accurate ways of doing it. With this article can be

thought of as certain juvenile identities are produced by media discourses and how they can be associated to

the representations produced and put into circulation by the Official World Youth.

Keywords: Youth - Media - Curriculum - Pedagogical Practices

[...] em outras palavras, eu diria que a

mídia "caça" o jovem principalmente

naquilo que o ‘incrimina’, tornando-o

visível no seu poder de juventude, sexo e

beleza, resistência e agressividade, ao

mesmo tem que na sua condição de

miséria física e existencial. Assim, para

além de objetivamente informarem sobre

fatos, esses textos também afirmam e

constroem um modo de diferentes vidas

jovens existirem e serem expostas.

(Fischer, 1996, p.249).

A epígrafe que inicia este artigo visa a

introduzir a forma como irei abordar o tema da

mídia, das juventudes e do currículo e de como

pretendo tomar a mídia como produtora e

produzida nessas relações. Esse incriminar, que

Fischer cita, não é no sentido pejorativo, mas no

sentido de que a mídia localiza as culturas juvenis

para que possa “encaixotar, enquadrar, etiquetar,

categorizar a juventude” (Garbin, 2000, p.10) e

utilizá-la nos processos de adequação aos

comportamentos socialmente aceitos, como se a

produção de uma juventude ‘normal’ partisse de

aspectos das juventudes denominadas pela

sociedade como transgressoras para se instituir.

Um exemplo da forma de ‘pedagogização’ das

juventudes

Também é intento deste artigo discutir os

discursos culturais que produzem os sujeitos e

suas práticas escolares, atentando para o fato de

que a mídia produz os sujeitos e suas relações

com o entorno. Não quero afirmar nesse artigo

que a mídia apenas produz; esse efeito de

produção é uma via dupla, na qual a mídia produz

e é produzida por discursos localizados em uma

determinada época, por determinados sujeitos e

suas relações de poder. É nessa relação de

processo que pretendo desenvolver a linha de

discussão desse artigo, não pensando em

dominados ou ‘alienados’, mas sim em sujeitos

que buscam um sentimento de pertença, um

sentimento de segurança frente a um tempo – pós-

modernidade- em que tudo se liquefaz, e se

questiona e as estruturas fixas desmoronam.

Este artigo é um recorte de estudo maior

pertencente a uma dissertação de mestrado,

intitulada “Juventudes Contadas no Jornal Mundo

Jovem: Modos de Pensar o sujeito jovem

contemporâneo”, e objetiva discutir, através dos

exemplares de um jornal de grande circulação no

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44 Lisandra Veiga dos Santos, Elisabete Maria Garbin

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 43-57, jul./dez.2012

Brasil, a saber Jornal Mundo Jovem, as produções

dos sujeitos jovens e das práticas pedagógicas

ligadas a eles operando no currículos.

A metodologia constitui-se na análise de

20 exemplares dos anos de 2010 e 2011 através da

leitura atenta e posterior debate em grupo de

pesquisa. Os conceitos utilizados, a saber:

discursos (Foucault, 2009), juventudes (Feixa,

2004; Garbin, 2002), currículo (Silva, 2007)

foram um forma de “iluminar” as discussões

dessas análises.

Na primeira seção, intitulada Inventário

da mídia – percorrendo outras produções de

sujeitos e espaços escolares, faço um breve

levantamento de estudos que tomaram a mídia e

suas relações – pedagogizantes ou não - e a

juventude. Na segunda seção, Juventudes

produzidas e/ou em processo de produção – dos

discursos culturais que constituem os sujeitos

jovens, analiso alguns discursos do jornal e suas

produções de sujeitos contemporâneos jovens,

bem como seus grupos culturais e o papel do

pertencimento nesses grupos. Já na terceira seção,

O currículo – da constituição e transversalidade

das diferenças, apresento algumas discussões

acerca das concepções de currículo, bem como

alguns trechos de análise dos discursos do Jornal

Mundo Jovens que prescrevem modos e práticas

pedagógicas. E na seção Da incompletude das

discussõe, apresento as conclusões ainda que

breves e parciais, tendo em vista que, se fossem

analisadas sob outra ótica epistemológica, teriam

outros encaminhamentos possíveis.

Inventário da mídia – percorrendo outras

produções de sujeitos e espaços escolares

Apresento estudos já realizados sobre os

temas mídia e juventude, os quais foram

encontrados no Banco de Teses e Dissertações da

CAPES e no repositório digital da Universidade

Federal do Rio Grande do Sul (LUME/UFRGS).

A saber: Neuman (1989) em sua dissertação de

mestrado estudou a empresa que produz o Jornal

Mundo Jovem, analisou como estava a situação da

comunicação de massa no Brasil e no Rio Grande

do Sul e a possibilidade dos indivíduos trilharem

seus caminhos independentes desse meio. Fischer

(1996) abordou em seu estudo a adolescência e a

produção de sua subjetividade mediante a mídia.

Garbin (2000) trabalhou com jovens e a sua

relação com chats da internet, apontando os vários

pertencimentos que estes jovens produzem e se

identificam na internet. Schmidt (2006) lançou

mão da Revista da MTV para explorar o termo

“ter atitude” amplamente conhecida pelos jovens.

Marques (2007) problematizou as culturas juvenis

no Jornal Kzuka - um complemento do Jornal

Zero Hora, do Rio Grande do Sul. Rossi (2007), a

qual foi integrante do grupo de pesquisa do qual

faço parte - investigou as culturas juvenis nas

páginas do caderno Patrola, suplemento também

do jornal Zero Hora. Souza (2008) analisou as

formas pelas quais o Jornal Mundo Jovem

comunica os paradigmas educacionais adotados

no país desde a década de 1960, com o propósito

de formar pessoas autônomas, criativas, críticas e

solidárias, capazes de explorar o universo de suas

construções intelectuais.

Em outros estudos, Gobbi (1999) analisou

o jornalismo para teens e os espaços

disponibilizados pelos jornais do Brasil para este

público específico, também inventariou o perfil

dos suplementos veiculados nas regiões Centro-

oeste, Nordeste, Norte, Sudeste e Sul, localizados

na Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e

O Globo para compreender como se dá a

participação dos leitores juvenis, bem como os

objetivos da manutenção destas publicações pelas

empresas jornalísticas nacionais. Gumes (2004)

também trabalhou com o jornal Folha de São

Paulo, mas analisando a identificação das culturas

juvenis representadas no Folhateen, suplemento

jovem e buscou também revelar como as

identidades se configuram nos textos do jornal.

Silva dos Santos (2005) analisou a imprensa de

Fortaleza operando na construção das juventudes

leitoras na década de 50. Nascimento (2008)

direcionou seu olhar para a revista Veja e o jornal

Folha de São Paulo dos anos de 1970 e 1980 e o

modo como ela interfere nas produções da

juventude e de suas estratégias. Pedrosa (2008)

em seu estudo objetivou analisar o discurso da

mídia, com destaque aos jornais impressos, sobre

atos e fatos envolvendo jovens infratores, de

forma mais específica na periferia de Natal.

Oliveira (2009) analisou o discurso sobre a

adolescente negra veiculado nas páginas da revista

Atrevida. Stein (2011) focalizou seu trabalho na

participação de jovens em um grupo religioso de

orientação católica, o ONDA, pertencente a uma

pastoral de paróquia da região do Vale do Rio dos

Sinos. Com base na forma como vinte jovens

participantes constroem o referente ONDA, em

oficinas e entrevistas, a pesquisa investiga que

representações os jovens constroem do trabalho

realizado no grupo e quais as possíveis

repercussões desse trabalho em relação à

estruturação da vida em sociedade.

Tais trabalhos contribuem grandemente

para o desenvolvimento deste artigo. Junto a eles

agregamos discussões obtidas no grupo de

pesquisa do qual faço parte, com essa combinação

de concepções apresentadas, as quais produzem

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Mídia e Juventudes: produzindo relações curriculares 45

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 43-57, jul./dez.2012

sujeitos jovens transitórios, com marcas culturais.

Tais sujeitos se constituem de inúmeras formas e

se utilizam de discursos midiáticos para

comporem suas identidades.

Os discursos veiculados nesses estudos

operam na lógica de outros artefatos culturais

(revistas, internet, televisão, etc), mostrando

juventudes, conscientes, disciplinadas, enfim,

identidades juvenis. Este artigo analisa a mídia

escrita de um jornal de uma determinada época,

com discursos próprios, mas que de forma produz

a juventude e seu modo se relacionar com as

práticas pedagógicas contemporâneas. Segundo

Foucault (2009), as práticas são resultados dos

discursos e acabam de certa forma produzindo-os,

nesse caso os discursos que produzem as

juventudes também acabam por produzir práticas

pedagógica, midiáticas, comportamentais

específicas a conter ou desenvolver as culturas

juvenis.

Necessita-se pensar que a mídia não é

uma via de mão única e muito menos as pessoas

são “coagidas” ou deixam-se levar pelos

discursos, mas sim por que fora desses discursos

nada faz sentido. Por anos a juventude foi vista

como rebelde, soaria estranho comportamentos

“adequados” ou jovens que não protestariam por

nada. A barreira do adequado, do rebelde é a

normalidade, ou seja, o que a sociedade espera do

jovem como o seu “verdadeiro”, o seu “normal”

modo de se portar. Pode-se inclusive ampliar esse

pensamento ao cotidiano da sala de aula, isto é,

existem práticas que são legitimadas e tornadas

verdadeiras, “normais” pelo currículo. As práticas

pedagógicas também são produzidas pelos

discursos contidos nos currículos, os quais

expressam uma forma epistemológica de se

conceber o sujeito e seus processos de

aprendizagem.

Logo, pode-se conceber que a mídia tenha

um papel de grande relevância na produção de

discursos e que ela legitima modos de ser e de se

conduzir o trabalho docente, seja em revistas ou

programas destinados à exibir práticas

pedagógicas, seja nos pareceres e diretrizes que

veiculam, por meio de discursos inclusive, o

modelo de sujeito que a escola Moderna busca

formar.

Nessa concepção precisa-se sempre

considerar o tempo histórico e seus processos nas

construções dos discursos. Um exemplo dessa

historicidade é pensarmos que o Jornal Mundo

Jovem surgiu inicialmente no Seminário1 Maior

de Viamão-RS, mas ainda não com esta

denominação e com tal público. Em setembro de

1963 foi lançada a Revista "S.O.S. Vocações",

(editada em português e espanhol) com o objetivo

de atrair público para os seminários católicos.

Servia basicamente de subsídio para as equipes

vocacionais3. Em agosto de 1964, trocou sua

nomenclatura para "Lançai as Redes", ainda com

objetivos especificamente vocacionais, porém

ampliando a abrangência. Destinava-se também

aos trabalhos vocacionais nas paróquias e escolas.

Em outubro-novembro de 1967, ainda no

Seminário Maior de Viamão, o Jornal deu início a

sua aproximação com público jovem, abordando e

refletindo “suas inquietações, suas ansiedades e

esperanças” (Jornal Mundo Jovem, 20112). Foi

neste período que adotou o atual nome de Jornal

Mundo Jovem. Em janeiro de 1972 o Jornal

Mundo Jovem passou do Seminário Maior de

Viamão para a Pontifícia Universidade Católica

do Rio Grande do Sul, sob a responsabilidade da

Faculdade de Teologia, onde se mantém até hoje.

Vale ressaltar também nesse contexto que,

em 1972, foi criado pela Igreja Católica, o

primeiro Curso de Liderança Juvenil (CLJ) em

Porto Alegre, organizado pela Igreja São Pedro4.

Tais Cursos são pautados nos princípios do

catolicismo, articulados aos discursos de

liderança, autonomia, cidadania e

responsabilização por decisões e escolhas. São

culminados pelos chamados Retiros – espaços

para reflexão e oração, organizados, em geral,

locais afastados do centro urbano, para onde os

jovens são levados e lá permanecem por alguns

dias –, para reflexão, convidados a construir um

mundo a parte, possível, ‘melhor’, dentro do

cenário católico. Nesse cenário foi se constituindo

o Jornal Mundo Jovem – um artefato que ensina

modos de ser/estar jovem, professor, mulher,

homem, cristão baseado nos preceitos da crença.

O jornal é composto por 21 seções, a

saber, Espiritualidade, dos Leitores, Língua e

Literatura, Projetos Pedagógicos, Educação,

Ciências Naturais, Geografia, Ecologia,

Sociologia, Arte e Cultura, Realidade brasileira,

Filosofia, Ensino Religioso, Psicologia,

Juventudes, Política e Cidadania, História, Vida

saudável, Sexualidade, Pais e Filhos, Curtas e

dicas, têm modos de endereçamentos distintos e

formas de ‘ensinamentos’ sobre diferente, modos

de pensar a docência. Separei para efeitos de

visualização, as seções em três grandes vieses a

partir das leituras das mesas, como por exemplo,

as seções Espiritualidade, Filosofia, Ensino

Religioso, Bíblia5, as quais tratam do aspecto

religioso tendo contribuições de padres, irmãos,

estudiosos de teologia que apontam para os

benefícios de se fazer parte de um grupo de jovens

da Igreja, as reflexões proporcionadas pela

campanha da fraternidade, passagens bíblicas,

valores éticos segundo a religião católica. Já nas

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46 Lisandra Veiga dos Santos, Elisabete Maria Garbin

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 43-57, jul./dez.2012

seções: Projetos Pedagógicos, Educação, Ciências

Naturais, História, Geografia, Ecologia, Língua e

Literatura, podem se observar modos de

endereçamento a professores, com discussões e

materiais de apoio ao pé da página, como

perguntas sugeridas para debate em grupo. Um

vocabulário mais complexo e com professores de

cada área que dão contribuições de artigos àquelas

seções.

Para analisar este artefato cultural, do qual

constitui-se o jornal Mundo Jovem, lancei mão do

campo dos Estudos Culturais para analisar os

discursos do referido jornal. Os Estudos Culturais

propõem um conjunto de abordagens,

problematizações e reflexões situadas na

confluência de vários campos já estabelecidos,

buscando inspiração em diferentes conceitos,

rompendo com lógicas cristalizadas. Esses estudos

têm início nas análises das sociedades industriais

modernas (Nelson; Treichler; Grossberg, 2009),

de suas práticas e de seus sujeitos. Com o passar

do tempo e das rupturas político-históricas, os

Estudos Culturais tiveram suas direções ampliadas

para outras discussões, tais como: a educação, a

tecnologia, gênero, etnia, juventudes, sociologia,

etc.

No entanto, sempre mantiveram seu

objeto de observação: a cultura. Inicialmente a

cultura foi pensada por três modos conforme

Williams citado por Costa

No primeiro, [modo] diz ele, há o “ideal”

– a cultura como tomada como um

processo de aperfeiçoamento, direção a

valores universais e absolutos. O segundo

se refere a cultura como “o

documentário”, o conjunto da produção,

do trabalho intelectual e criativo. Em

terceiro lugar está uma definição social

de cultura – a cultura como descrição de

um modo de vida. É esta última definição

que inspirou e orientou os Estudos

Culturais. (WILLIAMS apud

COSTA,2004, p.24).

Este primeiro conceito de cultura cunhado

por Williams (1965) foi se transformando ao

longo de tempo, como outros autores, outras áreas

de estudo envolvidas e foi inevitável o

deslocamento para uma outra forma de pensar a

cultura. Para os Estudos Culturais, tal

deslocamento é algo importante pelo próprio

campo considerar os processos de ressignificação

ou até mesmo o borramento de determinadas

metanarrativas. Podemos conceber a cultura e

suas inúmeras relações com outros campos como

formas de articulação desses estudos, como sendo

a possibilidade de integração e de modos de

concepção diferenciados da vida social, sem

necessariamente restringi-las a classe social. A

educação vista sob a perspectiva dos Estudos

Culturais, por exemplo, apontam para uma

parceria produtiva para discussão,

É possível dizer que os estudos

conduzidos na direção apontada tem

facilitado a não circunscrição da

pesquisa em educação, bem como das

ações educativas, às tradições tomadas

como prevalentes às compreensões

definidas como hegemônicas, às histórias

de progressos cumulativos e as análises

interpretativas que buscam o sentido

oculto das coisas, ou que reduzem a

crítica e a denúncia” (Wortmann, 2005,

p. 174).

A autora aponta a elasticidade que os

Estudos Culturais proporcionam ao utilizá-los em

pesquisas no campo da educação, o quanto tais

estudos podem contribuir para pensar sobre

escola, aluno, relação professor-aluno, etc.

Discutir a educação do ponto de vista dos Estudos

Culturais, além de incitar outras formas de olhar,

não restringe o sujeito ou suas práticas a

determinismos sociais. Hall (2003) ainda destaca

que os Estudos Culturais abarcam discursos com

múltiplos saberes veiculados através práticas

sociais cotidianas e que o campo de estudo

procura não organizar o conhecimento em

disciplinas, mas sim misturá-los, borrar suas

fronteiras. Esse ‘borramento’ se daria de maneira

que se possa entender, de múltiplos modos,

questões que muitas vezes ficariam na esteira de

discussões localizadas e perderiam outras

possibilidades de análise se não inscritas no

campo dos Estudos Culturais. Tal campo tem

ressignificado e tornado dinâmicas as discussões

acerca de identidade, discurso e representação

(Costa, Silveira, Sommer, 2003).

Nas seções Projetos Pedagógicos,

Educação e Psicologia explicitam-se tais

discursos acerca de como concebemos a cultura

do bom aluno, como podemos observar no excerto

a seguir, da edição de Março de 2009

Na escola foi possível perceber que houve

melhora no desempenho dos alunos, bem

como uma maior integração entre eles.

Também foi possível identificar que a

experiência do diálogo entre as

disiciplinas [...] contribui para o aumento

da responsabilidade e do interesse dos

alunos pelas aulas, assim como sua

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Mídia e Juventudes: produzindo relações curriculares 47

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 43-57, jul./dez.2012

atuação como cidadãos, para além do

espaço escolar. (Neves, 2009, p.21).

A melhora à qual o excerto se refere tem a

ver com o “aumento da responsabilidade e do

interesse dos alunos pelas aulas (Neves, 2009)”,

ou seja, o modo de ser aluno que contribuiria com

o bom andamento das aulas seria o responsável e

interessado. Não se questiona se tal excerto é

adequado ou não, nem se emitem opiniões acerca

da publicação, mas sim problematizam-se os tipos

de discursos que percorrem, inclusive o currículo,

as práticas pedagógicas. O sujeito aluno precisa

ser incentivado a ter determinados

comportamentos que auxiliariam na melhora da

escola.

No excerto da seção Educação, da edição

de Maio de 2009, em uma reportagem acerca da

escrita, pode-se observar algumas prescrições e

modos de ser que seriam adequados a boa prática

da escrita, “O texto como um espaço em que o

aluno possa ser leitor e também autor, utilizando

suas experiências de vida, seu conhecimento

prévio como fonte de produção.” (Cargnin, 2009,

p.5) Também visualizamos as mesmas prescrições

no excerto retirado da Seção Educação, da edição

de Abril de 2010, que “exige dos estudantes uma

atitude investigativa, na qual o confronto com o

que se sabe e o que deseja saber resulte no

questionamento da realidade. (Jucá, 2010, p.18)”.

O referido trecho faz parte de uma reportagem que

trata da importância de uma postura de

pesquisador cientifico. Ao longo da reportagem a

autora busca atentar para a importância de se

estimular a pesquisa desde cedo nas escolas.

Inclusive, a pesquisa que também é um elemento

que faz parte do currículo, é produzida como uma

forma de se “aproximar o mercado e trabalho da

formação como seu produto (Jucá, 2010, p. 18)”.

Em se tratando de trabalho por projetos,

pode-se observar que o comportamento sugerido

ao aluno, retirado da Seção Projeto Pedagógico,

da edição de Julho de 2009, é o de desenvolver

“competências e habilidades como observação,

trabalho em equipe, criatividade, organização,

registro de situações de aprendizagens. [...]

(Pereira, 2009, p.19)”. Tais habilidades estão

ligadas a uma concepção de sujeito

contemporâneo, o qual deve-se investir no capital

cognitivo (Foucault, 2009) do sujeito como forma

de desenvolvimento da sociedade do

conhecimento, a qual se desenha com as

tendências atuais na educação. A escola na

percepção dessa sociedade não mais atua como

formadora única, mas estimula o sujeito a se auto-

gerir na perspectiva do trabalho em equipe e por

projetos. Existem relatos de algumas escolas

públicas trabalhando nessa perspectiva.

Também, no sentido de produzir discursos

acerca do currículo, observou-se modos de se

conceber as práticas do cotidiano como sendo

encaminhadas e prescritas, como no excerto

retirado da seção Educação, da edição de 2009

O conselho deve ser um espaço de

decisão coletiva. Desta forma permite

enfrentar o desafio de construir um novo

projeto para escola. Tem como um dos

objetivos refletir sobre a aprendizagem,

proporcionando um espaço de reflexão

coletiva sobre o trabalho pedagógico.

(Edição Outubro, p.12).

Segundo, Steinberg (1997), a mídia

produz no sujeito e em suas relações uma

pedagogia cultural, na qual ensina modos de ser

que são considerados aceitáveis na sociedade em

que vive. Corroborando tal ideia, Foucault (2009)

nos diz que a produção desse sujeito e do modo de

ser é datada de cada época, a qual possui um

conjunto de discursos específicos, o que o autor

chama de episteme. À cada momento história as

relações e os sujeitos são produzidos e produzem

relações de poder através das epistemes que

regem a sociedade. No excerto anterior, o jornal

coloca as funcionalidades e objetivos de um

Conselho de Classe, uma prática típica na escola

moderna, sugerindo ao leitor outro modo de

condução e concepção do mesmo.

Juventudes produzidas e/ou em processo de

produção – dos discursos culturais que

constituem os sujeitos jovens

Dentro de nós há identidades

contraditórias, empurrando em diferentes

direções, de tal modo que nossas

identificações estão sendo

continuadamente deslocadas. Se sentimos

que temos uma identidade unificada desde

o nascimento é porque construímos uma

cômoda estória sobre nós mesmos ou uma

confortadora ‘ narrativa do eu’. (Hall

citando Hall, 2006, p.13).

Ao analisar o Jornal Mundo Jovem a

partir do campo dos Estudos Culturais, tornou-se

possível depreendê-lo como um artefato que, por

meio da linguagem, dos discursos, produz

compreensões sobre ser/estar jovem.

Considerando as múltiplas possibilidades que se

produzem na contemporaneidade, perpassando a

constituição de identidades efêmeras, fluidas e,

por vezes, contraditórias como afirma Hall (2006),

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48 Lisandra Veiga dos Santos, Elisabete Maria Garbin

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 43-57, jul./dez.2012

analisei nesta seção os modos, os discursos nos

quais o jornal procura produzir as identidades das

juventudes contemporâneas. Por se tratar de um

jornal que possui em sua trajetória as fortes

marcas da própria história do catolicismo, passo

também a ‘tensionar’ em que medida também não

estaria produzindo identidades católicas.

Partindo da compreensão de que as

identidades podem ser múltiplas e cambiantes,

essas convocam o sujeito simultaneamente a

diversos pertencimentos. Nosso tempo líquido faz

com que as experiências que temos sejam mais

valorizadas quando em grupo, o grupo seria o

porto seguro, a garantia que foi levada com a

Modernidade.

O jovem pode ser católico, no entanto

gostar de roupas de marca, de rock n’ roll,

frequentar bate-papos virtuais, andar de skate, ou

vir hip-hop sem, no entanto, romper com sua

identidade católica. Esta seção dará visibilidade a

alguns discursos acerca das juventudes, dentre

tantos que habitam a mídia e o próprio jovem de

modo simultâneo.

Conforme Ellsworth (2001, p.20) sugere,

o filme, com seus modos de endereçamento,

espera que o espectador aja “como se ele fosse

aquele alguém que o filme quer que ele seja, que o

filme pensa que ele é, ou ambas as coisas.”, essa é

a maneira de funcionamento dos modos de

endereçamento. Descrever detalhadamente um

sentimento, atribuir uma característica que chame

a atenção do espectador. No caso do jornal,

atribui-se a juventude um caráter de dinâmica,

“que sabe lidar com novos meios eletrônicos”, que

devemos aprender com essa juventude. No

entanto, mais do que isso o artigo que destaco a

seguir chama a importância de se aprender com as

gerações, tendo em vista que parece endereçado a

outra geração que não a da juventude. É esse

endereçamento que produz a identidade, ou os

processos de identificação (Hall, 2006), pelos

quais as juventudes se reconhecem no jornal e

pelos quais os professores e a escola também se

reconhecem como sujeitos da ação e da reflexão.

O sentimento de que temos uma

identidade apenas e que vivemos eternamente sob

os parâmetros dela é uma visão comumente

confundida com a ética e a moral, as quais pautam

nossas ações desde que a aprendemos para o resto

da vida. Em parte essa ética é formada pela

religião e pelos discursos sobre o que é

certo/errado de se agir. No jornal encontramos os

modos de endereçamento aos jovens para que

estes pautem suas ações pela religião, que implica

a moral e ética, mas que é construída sob maneira

através dos processos de identificação desses

jovens com o catolicismo sob o viés dos discursos

presentes no jornal, como nos mostra os excertos

a seguir

Para captar toda a riqueza de vida

presente na Bíblia, é importante de um

lado olhá-la como produto literário que

pode e deve ser analisado à luz da

história e da crítica textual. Essa leitura

responde às nossas buscas no

entendimento da palavra, pois queremos

compreender o seu sentido. Isso é bom,

mas não suficiente. É que a Bíblia não é

um conjunto de conhecimentos teóricos

como as demais ciências. Não é um livro

de biologia ou de astronomia, de física ou

de história, mas é um livro de teologia,

um livro de fé, escrito por pessoas de fé

para comunidades também de fé. (Uma

palavra para a nossa vida, Edição de

Fevereiro, p.15, 2009).

A palavra de Deus deve ser o nosso

alimento cada dia e nela precisamos

buscar o sustento para nossa vida. (Bíblia

(ainda não) é um livro ecumênico, Edição

de Setembro, p.9, 2010).

Mas atenção!Ao lado de toda a sede de

poder, fama e dinheiro existe uma

necessidade ou exclusão correspondentes.

(Consumismo quem é vencedor?, Edição

de Março,p.16, 2009).

Os excertos apresentados procuram

ressignificar as identidades juvenis, as quais são

produzidas através dos modos de endereçamento

sugeridos nos excertos. Não basta ser católico,

tem que seguir uma série de práticas, de modos de

se conduzir para pertencer ao grupo. Podemos

transpor tais conclusões às práticas pedagógicas,

as quais buscam trabalhar com o grupo ao sujeito,

homogeneizar ao ver a heterogeneidade do

cotidiano escolar. Esses modos de endereçamento

também estão presentes no currículo, tendo em

vista que eles são endereçados a certas classes

sociais e modos de se produzir sujeitos na escola

Moderna.

Essas verdades, ao endereçar-se ao

público juvenil, o Jornal produz como estratégia

de interpelação a aproximação de seus temas a

assuntos que a equipe editorial julga presente

neste “Mundo Jovem”. Cito os seguintes

exemplos pela sua recorrência

Vale ressaltar o uso do graffiti em escolas

e instituições como forma de socialização

e expressão cultural, bem como a

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Mídia e Juventudes: produzindo relações curriculares 49

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 43-57, jul./dez.2012

abertura de espaços cada vez mais

significativos em galerias de artes de arte

e museus. (Graffiti: outros olhares para a

escrita das ruas, Edição de Maio, p.2,

2009).

Também seria legal convidar alguns

grafiteiros para um debate na escola a

fim de conhecer essa expressão da cultura

juvenil. (Graffiti: outros olhares para a

escrita das ruas, Edição de Maio,

p.2,2009).

Conhecer para entender (Funk:

embalando as comunidades e a escola,

Edição de Setembro, p.5, 2009).

É possível aproveitar as culturas juvenis

para enriquecer a relação entre professor

e aluno?

Ela (a escola) precisa compreender como

se dá essa escrita e utilizá-la a favor do

ensino de língua principalmente. (A

(nova) escrita digital, Edição de Março,

p.22, 2010).

Portanto, é notório o movimento do

Jornal em debater temas articulados a culturas

juvenis, tanto pela sua recorrência na análise do

artefato como pela sua referência conforme a

narrativa da equipe editorial.

As juventudes que são retratadas no

Jornal Mundo Jovem não são apenas católicas ou

de orientação cristã; são exibidas nas páginas do

Jornal as juventudes rurais, as juventudes em

condições economicamente desfavoráveis, bem

como suas culturas, como podemos observar nos

títulos do artigos a seguir: Graffiti: outros olhares

para a escrita das ruas; Corpos jovens: espaços de

comunicação de si; Sites de Relacionamento: uma

mania mundial, Vida Urbana e Vida Rural -

desafios ao jovem agricultor; Formação Integral

do Jovem; Funk embalando as comunidades e a

escola; Mitos e Preconceitos em torno da

homossexualidade; Hip-Hop: um grito por

liberdade.

As juventudes descritas no jornal são

produzidas a partir de seus estilos (Feixa, 2004)

musicais, artísticos, etc, assim como modos de

ser. Jovens que fogem ao padrão de

comportamento também são tema das publicações

no sentido de servirem de exemplificação de

modos de ser adequados ou não. Se pensarmos

nessa lógica, a mídia também produz o aluno

indisciplinado, mas não modo passivo e unilateral,

e sim inserido no contexto da escola (Xavier,

2003), onde se espera desse sujeito determinados

comportamentos, amplamente tratados na mídia.

Para tanto, quando se fogem desses modos de ser,

logo produz-se o sujeito indisciplinado, aquele

cujo modo de ser extrapola a normalidade e

“atrapalha” o andamento da aula. O jornal

trabalha numa perspectiva combativista de

comportamentos que vem de encontro ao que a

escola preconiza, tais como bullying, violência,

consumismo, relações pessoais e relações nas

redes sociais.

Sabe-se que o modo como a mídia conduz

suas relações tem muito a ver com o que se espera

do sujeito. Nesse sentido o sujeito aluno é

produzido por um currículo Moderno que tem no

modo contemporâneo o referencial de

comportamento do alunado. Aceita-se que o

sujeito aluno jovem tenha muitas distrações e

mesmo assim aprenda, não aceita-se é o seu não

aprendizado, sua dificuldade. Logo, problematiza-

se na mídia e no dia-a-dia mais a incapacidade e

dificuldade, que os avanços e do que tal sujeito é

capaz de aprender.

O currículo – da constituição e

transversalidade das diferenças

O currículo tem significados que vão

muito além daqueles os quais as teorias

tradicionais nos confinaram. O currículo

é lugar, espaço, território. O currículo é

relação de poder. O currículo é trajetória,

viagem, percurso. O currículo é

autobiografia, nossa vida, curriculum

vitae: no currículo se forja nossa

identidade. O currículo é texto, discurso,

documento. O currículo é documento de

identidade. (Silva, 2007, p.150).

A partir do excerto do autor Tomaz Tadeu

da Silva podemos refletir acerca do papel do

currículo na escola e como este produz e é

produzido através das diferenças veiculadas pela

mídia. A mídia, longe de ser vilã, atua, conforme

referendei anteriormente, na constituição dos

sujeitos e também na constituição das práticas

vividas por esses sujeitos em seu cotidiano. Além

do Ministério da Educação que produz

legislações, currículos e diretrizes, a mídia

impressa e televisiva também expõe modelos do

que uma educação “precisa”, até propõe em

alguns casos “respostas à educação”6. Algumas

revistas especializadas no assunto propõem

conteúdos, sequências didáticas e modos de se

abordar temas do currículo. Esse currículo é a

vida do aluno, do professor, da escola, conforme

pudemos observar na epígrafe. Seria a vida da

escola também produzida? Produzida sob quais

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50 Lisandra Veiga dos Santos, Elisabete Maria Garbin

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 43-57, jul./dez.2012

perspectivas na mídia? Faz-se importante pensar

acerca dessa produção.

Se os sujeitos e suas relações são

produzidos através dos discursos midiáticos

também, e tomo como assertivo o enunciado que

os sujeitos também produzem os discursos,

podemos pensar no Silva (2007, p.148) apresenta

“através das relações sociais de currículo, as

diferentes classe aprendem quais são seus

respectivos papéis nas relações sociais mais

amplas.”. Longe de empreendermos uma

discussão materialista ou até mesmo na teoria da

ideologia proposta por Althusser, o currículo tem

esse papel de constituir a subjetividade dos

sujeitos e os sujeitos a criarem situações de

resistências7 ao currículo num jogo dinâmico de

poder. O que se deve aprender e como se deve

estão intimamente ligados às relações culturais e

às funções que determinado público irá tomar

parte na sociedade.

As relações culturais implicam o currículo

sob uma perspectiva de discussão do sujeito

enquanto partícipe de uma determinada época, de

um determinado cenário cultural e trabalhar com

essas questões parecem mais fundamentais à

mídia que as pessoas responsáveis pela construção

do currículo. É nesse encontro de culturas e

conhecimentos formais que Silva (2007, p.136)

propõe pensar no “[...] conhecimento como um

objeto cultural, uma concepção do currículo

inspirada nos Estudos Culturais equipararia, de

certa forma, o conhecimento propriamente escolar

com, por exemplo, o conhecimento explicíta ou

implicitamente transmitido através de anúncio

publicitário.”, ou seja, a possível trégua ou

vivência simultânea da mídia, das culturas e dos

conhecimentos escolares poderia ser uma das

possibilidades de se trabalhar a constituição do

sujeito e transformar sua condição, de sujeito

passivo receptor, para ativo e produtor.

Propõe-se pensar na relação dialógica que

o cenário contemporâneo tem na escola, ignorar o

que os sujeitos fazem fora da sala de aula é

ignorar sua constituição cultural. As juventudes

culturais que se formam fora da escola trazem

seus pertencimentos para dentro dela, continuam

vivenciando-os, ainda que separadamente do que

é considerado conhecimento escolar formal. A

maioria dos docentes propagam a ideia de que as

juventudes contemporâneas são diferentes das que

eles viveram, mas o discurso para por aí. Ao invés

de se pensar nessas juventudes enquanto

comparativo, deveríamos mesclar os seus

conhecimentos culturais ao currículo, torná-lo

flexível dentro de um sistema Moderno e rígido.

Desafiar os jovens a compreenderem o tempo em

que vivem pelas experiências que têm, dentro e

fora da escola. Desacreditar em enunciados como

“essa juventude está perdida!”, “é isso que serão

os adultos de amanhã?” e ajustar o foco ao

dinamismo, ao convívio pacífico com as

diferenças e a possibilidade infinita de adaptação.

Pensando nesse modo de conceber o

currículo, analisei as 21 seções do jornal e por

motivos de recorrência, escolhi dois temas de duas

seções: Educação e Projetos Pedagógicos, pois

notei regularidades nessas duas grandes seções, as

quais permeiam em grande parte o Jornal –

modos de ser professor e modos de se conduzir o

trabalho docente. Não podemos deixar de

conceber o currículo sem as relações de docência

que também estão implicados neles e também são

produzidos e produtores

Na seção Projetos Pedagógicos dos anos

de 2009 e 2010, podemos observar o seu

endereçamento aos docentes, principalmente a

realização do trabalho docente. São artigos que

sugerem práticas pedagógicas ao professor de

acordo com assunto do mês da capa. É possível

notar algumas correntes de pensamento

pedagógico sobre educação, como no excerto a

seguir do artigo Ensinar é aprender

Os estudantes estão abastecidos por uma

carga de informações cuja capacidade de

assimilação nem comporta. O ser humano

tem potência de semideus, com emoções

de mortal. O avanço da era espacial em

que vive se tornou o ser humano

angustiado pela consciência de sua

fragilidade para absorver e superar os

desafios a sua volta. (Edição de

Fevereiro, p.6, 2009).

Excetuando o caráter poético do trecho

anterior, podemos inferir uma concepção

construtivista do aprender, que vê nos processos

de assimilação um de seus principais elementos de

desenvolvimento. No entanto, o excerto destaca

também o sentimento que possivelmente habita os

seres da pós-modernidade, a angústia pela

“consciência de sua fragilidade para absorver e

superar os desafios a sua volta.” (p.6, Fevereiro,

2009), mas que o excerto traz como uma

característica do desenvolvimento do ser humano,

numa provável referência a sua evolução.

Há também presentes nos artigos do

Jornal prescrições sobre como se deve

empreender o projeto, o papel do professor e da

escola. Poderíamos inferir que tais indicações para

o desenvolvimento do trabalho docente seriam

uma forma de conduzir a conduta desses docentes;

seria uma forma de explicitar os modos certos,

verdadeiros de ser professor. O excerto a seguir,

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Mídia e Juventudes: produzindo relações curriculares 51

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retirado do artigo Educar para a cidadania

Educar para a cidadania é aspirar uma

escola que prepare pessoas não apenas

para o trabalho, mas para participar no

mundo globalizado de forma crítica,

reflexiva e emancipatória. (Edição de

Abril,p.15, 2009).

É interessante observar que conceitos

complexos como participação crítica, reflexiva e

emancipatória aparecem como de comum acordo

sobre seus significados, e que isso levante a

questão sobre que referenciais o Jornal ou a

escritora do texto concebe a crítica. Por exemplo,

numa perspectiva foucaultiana, a crítica vai além

de se levantar os pontos negativos, interpretar

possíveis relações de causa e conseqüência, mas

atentar para que jogos estratégicos essa crítica põe

em circulação e quais verdades ela movimenta.

Também podemos observar que a

estrutura da seção aparece, quase sempre, da

mesma forma, apresentando um quadro abaixo do

texto principal, no qual há a descrição do projeto,

intitulado Acontecendo na prática ou ainda Passo

a passo, com base na fala de outros docentes que

já o realizaram e obtiveram sucesso. Já em uma

outra coluna dentro do texto há a subseção

Avaliação e Objetivos, que prescreve de que

forma pode se dar a avaliação do projeto e dos

sujeitos envolvidos nele. Também há uma

estrutura à esquerda da página denominada Ficha

Técnica, com dados dos objetivos do projeto, tais

como turmas envolvidas, equipe envolvida,

duração, recursos materiais, avaliação e

premiação.

Podemos inferir também diferentes modos

de se conceber o mundo contemporâneo que

acabam por permear as escritas dos artigos, por

exemplo as oposições de “moderno e antigo”, ou

das práticas que tínhamos com as que temos

agora, como se nossa linha do tempo fosse de fato

uma linha linear e que nos levasse à evolução,

como no trecho a seguir extraído do artigo

Atividade Física e Qualidade de Vida

Convém lembrar que a vida moderna tem

vantagens e desvantagens que podem

levar o ser humano a se tornar inativo.

Automóvel, computador, telefone,

televisor e CD são excelentes

instrumentos para locomoção,

comunicação, educação e lazer. No

entanto, toda essa tecnologia contribui

para o atual estilo de vida: sedentarismo,

alimentação inadequada e hábitos

nocivos. Por outro lado a missão das

pessoas é manter-se saudável. (Edição de

Agosto, p.7, 2009).

O provável objetivo do artigo é incentivar

a prática de esportes e dar ênfase aos projetos

ligados a ele; no entanto, para atender ao publico

leitor, que além de professores também é

composto por jovens, ou seja, aproxima-se esse

artigo com o que a contemporaneidade oferece

para dar maior valor a prática de esportes, isto é,

com uma vida “moderna” sedentária, precisamos

realizar esportes.

Os artigos que estão presentes nessa

seção, ao contrário da seção Projetos

Pedagógicos, são escritos por especialistas em

educação, psicólogos. e não por professores com

seus relatos de experiência; logo, seu modo de

endereçamento é diferente no que tange à

legitimidade do discurso, pois são especialistas

que conferem o código de verdade necessário ao

texto.

As temáticas abordadas são múltiplas,

mas na maioria das vezes apresentando

posicionamentos firmes e delineados, como

podemos observar no excerto a seguir, retirado do

artigo Aprendizagem para Todos

Discutir a educação de alunos com

necessidades especiais implica resgatar o

sentido da educação especial, ainda que

isso possa desagradar aos que se colocam

à frente das discussões sobre educação

inclusiva. Diante de necessidades

educacionais especiais, a educação

escolar deve promover situações de

ensino e aprendizagem diferentes das

organizadas para a maioria dos

educandos. (Edição de Março,p.15,

2009).

O autor defende que a inclusão deve ser

pensada de forma mais cuidadosa, mas ainda sob

a égide de incluir a todas as necessidades. Não é

objetivo deste artigo discutir este posicionamento,

nem fazer juízo de valor acerca dos assuntos

tratados pelo Jornal, mas sim propor outros

olhares a leitura desse artefato cultural, que

possibilita pedagogizar as discussões acerca da

educação e do trabalho docente. Os artefatos não

possuem poder de influência sobre seus leitores,

mas sim de sedução aos processos de subjetivação

e encontram na prescrição a sua sustentabilidade.

Ao oferecer modos de ser docente, de se conceber

a educação, essas verdades subsidiam técnicas de

si, atuam diretamente no governo de si, como

podemos visualizar no trecho a seguir extraído do

artigo Educação Infantil, muito mais do que

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Horizontes, v. 30, n. 2, p. 43-57, jul./dez.2012

cuidar

Com o passar do tempo, a

responsabilidade do educador é de

desenvolver uma educação que promova

o amadurecimento da autonomia,

direcionando suas ações, sem esquecer-se

dos limites essenciais do ambiente e o que

ela tem internamente, como afetividade,

conhecimento, sociabilidade entre outros

fatores. (Edição de Maio, p.6, 2009).

Essas concepções de educação nos dão

pistas de como o trabalho docente está implicado

no discurso do campo pedagógico. Apesar de ser

um artigo voltado à Educação Infantil, podemos

depreender daí toda uma rede discursiva que visa

a produzir verdades disponíveis aos sujeitos que

empreendem a carreira docente. Podemos

observar nos excertos que se seguem a força

desses discursos prescritivos nas concepções de

educação vigentes na nossa sociedade

Educar, portanto, significa propiciar

situações de cuidado, brincadeiras e

aprendizagem, orientadas de forma

integrada visando ao desenvolvimento das

capacidades de relação com o outro,

atitudes de aceitação, respeito, confiança

e também possibilitar o acesso ao

conhecimento da realidade social e

cultural. (Edição de Maio, p.6, 2009).

Educar envolve, ainda, o desenvolvimento

das capacidades de conhecimento e das

potencialidades corporais, afetivas,

emocionais, estéticas e éticas. (Edição de

Maio, p.6, 2009).

A Educação deve ser um instrumento que

possibilite a emancipação social do ser

humano, capacitando para a sua vida

para a vivência coletiva e a conquista da

dignidade. (Edição de Maio, p.6, 2009).

Podemos inferir, ainda que parcialmente,

que as prescrições não são ideológicas ou

coercitivas, mas agem de tal modo que, fora dessa

rede discursiva, a educação, o trabalho docente

não tem sentido. Não é uma rede que age

silenciosamente, mas que se tornar parte do que é

considerado verdadeiro no trabalho docente.

Da incompletude das discussões

Neste artigo busquei trabalhar com a

noção de currículo aliada a discursos do Jornal

Mundo Jovem, debatendo e problematizando a

produção da mídia de sujeitos e das relações

desses com o currículo. A cultura, as juventudes, a

mídia agem de forma cíclica no currículo

evidenciando assim um sujeito totalmente

contraditório e ‘silenciado’ em sua cultura.

No entanto, se tomarmos o Jornal Mundo

Jovem como artefato cultural, também pode

significar tratá-lo como uma prática que constitui

discursos sociais próprios da cultura referida,

como exemplificam Costa; Silveira & Sommer

um noticiário de televisão, as imagens, os

gráficos, etc. de um livro didático ou as

músicas de um grupo de rock, por

exemplo, não são apenas manifestações

culturais. Eles são artefatos produtivos,

são práticas de representação, inventam

sentidos que circulam e operam nas

arenas culturais onde o significado é

negociado e as hierarquias são

estabelecidas. (Costa; Silveira & Sommer,

2003, p.38).

Os artefatos são os objetos concretos, são

as práticas culturais que acabam por veicular

‘ensinamentos’ a sociedade, tais como o Jornal

Mundo Jovem, que busca endereçar à comunidade

jovem modos de pensar a sua juventude, modos

de propor pautas para o debate da condição

juvenil. De um modo geral, este estudo concebe o

Jornal, que será material de análise, como um

artefato, o qual Bujes (2000).

Refere-se a qualquer objeto que possui

um conjunto de significados construídos

sobre si. ‘Produtos’ de culturas que dão

visibilidade a determinadas

representações sobre as coisas. Tais

representações atuam nos processos de

significação que produzem sentidos na

vida da cada sujeito. Estes significados só

podem ser construídos através da

linguagem. É no âmbito das práticas

discursivas que se dão tais construções.

Ao mesmo tempo em que um artefato

cultural se caracteriza por ter sobre si

determinados significados, ele é também

um produtor de significados. Muitos deles

criam realidades e verdades sobre as

coisas, as quais são postas em circulação

para serem consumidos. (Bujes, 2000, p.

205-228).

Du Gay (1997) assinala que “para estudar

os artefatos culturais precisamos não apenas

explorar como são representados, que identidades

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Mídia e Juventudes: produzindo relações curriculares 53

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 43-57, jul./dez.2012

sociais estão a eles associadas, mas também como

são produzidos, consumidos e que mecanismos

regulam sua distribuição e uso”. Os artefatos são

resultados de uma produção cultural específica

datada historicamente e constituída por sujeitos

sociais. Estudando artefatos culturais também

podemos depreender inúmeros modos de pensar e

de ser sujeito. Du Gay et. all,(1997), estudando o

walkman, assim argumentam,

[...] nós não estamos apenas tratando do

modo no qual um artefato cultural é

representado (como uma coisa na

propaganda e nas fotografias), mas

também tratando como os processos que

tem produzido esse artefato tem sido

representado. Nós precisamos pensar

sobre como os vários processos de

produção são entendidos e recebem

significados ao serem rotulados e

categorizados de vários modos (inovador

japonês, trabalho em equipe etc..). (Du

Gay et all, 1997, p.8).

O presente artigo utilizou-se desse

artefato cultural para problematizar os discursos

que veiculam por ela sobre juventudes, currículo e

práticas pedagógicas. Após as análises já

apresentadas, pode-se inferir, ainda que

parcialmente, que o Jornal Mundo Jovem, o qual

possui artigos localizados numa racionalidade

contemporânea, prescrevem modos de ser aluno,

jovem, docente e de conduzir seus trabalhos por

finalidades, como a de promover a autonomia do

aluno, de desenvolver valores éticos cristãos

aliados as suas metodologias e de estar ligado a

temas que necessariamente passem pela

metodologia de projetos. Podemos considerar que

os discursos sugerem o consumo de determinadas

culturas, que adotem seus modos de ser, que se

constituam em determinadas práticas docentes.

Outra forma de pensar os pertencimentos que o

jornal oferece aos professores é observar que, nos

artigos que seguem, ele tenta exibir a

representação de juventude que está ou não

presente na sala de aula. Ao interpelarmos esses

discursos presentes no Jornal Mundo Jovem a fim

de delinear as identidades e os trabalhos docentes

que aparecem nele, podemos observar um

movimento que o Jornal realiza, o de buscar

conhecer a juventude e dar informações sobre ela

aos professores que, em sala de aula, procuram

governá-los.

O currículo não é mais centro de poder,

mas sim distribuição de práticas culturais,

norteamento das práticas pedagógicas. A mídia

teria seu espaço garantido na escola mediante a

construção de sujeitos culturais, pergunto-me.

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Mídia e Juventudes: produzindo relações curriculares 57

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 43-57, jul./dez.2012

Notas

1 O Seminário Maior de Viamão é um local de preparação cristã para a vida no sacerdócio. Foi criado em

1955 e é vinculado à Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul através de alguns cursos de

graduação acadêmica e formações religiosas.

2 Equipe vocacional é constituída por pessoas que orientam e prestam serviços pedagógicos aos Seminários

na preparação de futuros padres.

3 Esta informação foi retirada do site www.pucrs.mundojovem.br

4 Igreja Católica situada na Avenida Cristóvão Colombo, nº 1629, Bairro Floresta. Porto Alegre, Rio Grande

do sul.

5 Em determinadas edições se observou a presença dessa nova seção.

6 Campanha de uma emissora de televisão do Rio Grande do Sul que visa debater o cenário da educação

gaúcha apresentando, para tanto, especialistas de diversas áreas comentando sobre a educação.

7 Ver mais sobre processos de resistências em Foucault (2010).

Sobre as autoras:

Lisandra Veiga dos Santos: Mestra em Educação e Estudos Culturais (PPGEDU/UFRGS) e Professora

Anos Iniciais da Rede Marista no Rio Grande do Sul.

Elisabete Maria Garbin: Doutora em Educação e Estudos Culturais (PPGEDU/UFRGS) e Professora na

Faculdade de Educação/UFRGS).

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59

* Endereço eletrônico: [email protected]

A concepção de Ensino Médio e de currículo expressa na proposta de São Paulo

Dirce Djanira Pacheco e Zan*

Resumo

Recentemente a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo promoveu mudanças no currículo para o

Ensino Médio das escolas da rede pública. Esse processo teve início no ano de 2008 com a publicação dos

primeiros documentos voltados para os ensinos Fundamental (II Ciclo) e Médio. Neste texto apresento - a

partir de retomada histórica do debate acerca da identidade do Ensino Médio no país e dos documentos

curriculares do governo federal divulgados desde os anos de 1990 - uma análise inicial dos documentos

curriculares de São Paulo no que se refere à concepção deste nível de ensino e de currículo focando, em

especial, as disciplinas de Ciências Humanas.

Palavras-chave: currículo, Ensino Médio, Estado de São Paulo.

High School and curriculum conceptions in the official document of São Paulo State

Abstract Recently the Department of Education of São Paulo promoted changes in the curriculum for high school

public level. This process began in 2008 with publication of the first documents to basic education (period II)

and high school. This paper point out – from a historical perspective about the discussion about the school

identity in the country and the federal government curriculum documents published since 1990´s – an initial

analysis of the curriculum documents of São Paulo State, focusing this scholar level, particularly, the

disciplines of Humanities.

Key-words: curriculum, high school, São Paulo State.

Durante os anos de 1980 o país viveu

ampla mobilização social em território nacional na

luta pela democratização e a ampliação de direitos

sociais dos brasileiros. A década se encerrou com

a aprovação de uma nova Constituição Federal

(1988), que selou o ciclo de lutas sociais e

políticas de resistência ao regime ditatorial-militar

iniciado em 1964. No texto constitucional

aprovado, no capítulo referente à Educação,

dentre outras novidades, é explicitado o

reconhecimento do Ensino Médio como direito de

todo cidadão brasileiro.

Alguns anos depois, na LDB (Lei de

Diretrizes e Bases da Educação) de 1996, este

direito foi reafirmado. O Ensino Médio passou a

ser compreendido como etapa final da Educação

Básica, implicando uma expansão dos anos de

escolaridade desejáveis para todo cidadão. É

importante ressaltar que a ampliação da Educação

Básica é uma mudança significativa que, até certo

ponto, reflete também a luta histórica de setores

da sociedade brasileira pela sua entrada e

permanência na escola até níveis mais elevados de

ensino.

Mas a conquista do direito ao Ensino

Médio não se deu de forma consensual. O

governo brasileiro levou certo tempo para assumi-

lo, o que, de certo modo, aponta para possíveis

tensões existentes, interna ou externamente ao

governo, que retardou a incorporação deste como

direito dos brasileiros. Exemplo de possíveis

dificuldades pode ser percebido quando da

participação do Brasil em seminário promovido

pela UNICEF (Fundo das Nações Unidas para

Infância) na cidade de Buenos Aires em setembro

de 2008. Naquele evento o governo brasileiro foi

cobrado para adotar o Ensino Médio como etapa

final de escolarização obrigatória no país. Frente à

pressão de lideranças políticas, a secretária de

Educação Básica do MEC, profa. Maria do Pilar

Lacerda, manifestou-se da seguinte forma: “Não

existe mais possibilidade de inserção no mercado

de trabalho sem o ensino médio. Isso força essa

discussão e não podemos fugir dela. Mas será um

tema polêmico.” (Disponível em http//e-

educador.com, acessado em 20/02/2009).

Mas no que consiste o Ensino Médio no

Brasil? Segundo a legislação vigente esse nível de

ensino tem como finalidades o aprofundamento

dos conhecimentos adquiridos no Ensino

Fundamental, a possibilidade de articulação entre

os conhecimentos teóricos e práticos de cada uma

das disciplinas, o aprimoramento do educando

como pessoa humana e a preparação básica para o

trabalho. Pode-se, até certo ponto, afirmar que a

LDB de 1996 definiu o Ensino Médio como etapa

final da Educação Básica, cujo objetivo maior

seria a formação geral dos estudantes.

Durante os últimos anos, foram

elaborados e divulgados diferentes documentos

curriculares e em 2006, sob a orientação do

governo Lula, o MEC novamente se manifestou

lançando as Orientações Curriculares Nacionais

para o Ensino Médio. Algo que era cobrado desde

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60 Dirce Djanira Pacheco e Zan

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 59-68, jul./dez.2012

o início do primeiro mandato do então presidente.

Em artigo publicado no ano de 2004, Lopes

(2004) posiciona-se veemente neste sentido. A

autora reconhece as dificuldades enfrentadas pelo

governo em desmontar dispositivos de regulação

das práticas curriculares estabelecidas em oito

anos (p. 109) do governo anterior, mas cobra a

necessidade de nova orientação da política

educacional de forma mais ampla.

É possível notarmos que o olhar para o

Ensino Médio vem se modificando nas últimas

décadas e que essa mudança pode ser entendida

como ressonância no âmbito do Estado das lutas e

reivindicações de diferentes setores. Se por um

lado existe a demanda por ampliação da

escolarização enquanto direito social, por outro

surgem mudanças no processo produtivo que

apontam para a necessidade de um trabalhador

mais flexível e com habilidades e competências

até então pouco exigidas.

A expansão do Ensino Médio, associada à

sua reorganização curricular, passou a ser vista

desde a última década, como fundamental para a

integração e a “sustentabilidade” do país no

mercado global. Em parte esse argumento é

reforçado por documentos de organismos

internacionais voltados para a política educacional

na América Latina e que, até certo ponto,

inspiraram os documentos curriculares brasileiros.

A preocupação em oferecer um Ensino

Médio que também promova a adaptação do aluno

às novas formas de organização do trabalho está

presente nos documentos curriculares nacionais

desde os anos de 1990. O documento de 19981,

por exemplo, expressa a orientação política

fundamentada nos princípios do neoliberalismo e

a preocupação com a constituição de um modelo

de Ensino Médio que proporcione a adaptação dos

jovens às atuais condições de trabalho. Segundo o

referido texto

...nas condições contemporâneas de

produção de bens, serviços e

conhecimentos, a preparação de recursos

humanos para um desenvolvimento

sustentável supõe desenvolver capacidade

de assimilar mudanças tecnológicas e

adaptar-se a novas formas de

organização do trabalho... (p. 18).

Nesse mesmo período, criou-se no país o

nível da Educação Profissional, que ocorreria

concomitante ou posteriormente ao Ensino Médio

e que teria por objetivo maior a

profissionalização, podendo ser oferecido em

instituições de ensino regular ou por diferentes

modalidades de educação continuada tanto em

instituições especializadas como no próprio local

de trabalho (LDB 1996, art. 40).

Cerca de uma década depois, o debate

sobre a finalidade formativa do Ensino Médio está

posta novamente. Em julho de 2008, o governo

federal divulgou documento intitulado

Reestruturação e Expansão do Ensino Médio no

Brasil que objetiva viabilizar a concretização de

um Ensino Médio integrado. Busca-se no texto

explicitar a identidade deste nível de ensino, ou

seja, ...configurar uma identidade do ensino

médio, como etapa da educação básica,

construída com base em uma concepção

curricular unitária, com diversidade de formas,

cujo princípio é a unidade entre trabalho, cultura,

ciência e tecnologia (BRASIL, 2008, p. 8).

É evidente, nos últimos anos, a ampliação

do interesse por parte de governos, seja federal ou

estadual, para com o nível médio de ensino. Os

jovens passaram a ser uma preocupação recorrente

nas políticas públicas mais recentes. Podemos

afirmar que desde a LDB de 1996 iniciou-se uma

corrida com a finalidade de ampliação e até

mesmo universalização desse nível de ensino.

Junto a esse processo de expansão, novas

diretrizes e orientações curriculares são

divulgadas, reafirmando o que Arroyo (1999)

apontava em outro momento, ou seja, o sentido

estratégico de se rever currículos e centrar neles o

foco em tempos de mudanças educacionais.

Neste contexto de retomada do debate

acerca da identidade do Ensino Médio e da

necessária articulação entre formação para o

trabalho e formação geral, o estado de São Paulo

dá início a uma nova empreitada na formulação de

documentos curriculares que passaram a nortear o

trabalho nas escolas públicas paulistas.

O Movimento em São Paulo

O ano letivo de 2008 iniciou com a

chegada nas escolas estaduais do que se tornou

conhecido como o Jornalzinho do Estado. Sob o

título São Paulo faz Escola, foi distribuído nas

escolas estaduais um Jornal impresso que trazia

notícias, curiosidades e sugestões de atividades2 a

serem desenvolvidas pelos professores de cada

uma das disciplinas do II ciclo do Ensino

Fundamental (5ª a 8ª séries) e do Ensino Médio

durante os 42 primeiros dias de trabalho.

O Jornal, escrito em uma linguagem

direta e focada no aluno, apresenta o conteúdo das

diferentes disciplinas, distribuído pela quantidade

de aulas de cada uma e destinado às várias séries.

Com temas atuais e partindo de questões

contemporâneas, estabelece, nos textos curtos que

apresenta, uma relação com conceitos e temas que

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A Concepção de Ensino Médio e de Currículo Expressa na Proposta de São Paulo 61

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 59-68, jul./dez.2012

deverão ser ampliados pelo professor em sala de

aula. Sugere ainda atividades a serem realizadas

pelos alunos individual ou coletivamente. A opção

pela centralidade do texto como foco do trabalho

em sala de aula é enfatizada durante o material.

Segundo a Revista do Professor, distribuída na

rede posteriormente, o Jornal foi construído

levando em consideração os resultados do

SARESP3 (Sistema de Avaliação de Rendimento

Escolar do Estado de São Paulo) de 2005.

Para o Ensino Médio foram produzidas

cinco revistas contemplando as disciplinas:

Língua Portuguesa; Matemática;

Física/Química/Biologia;

Geografia/História/Filosofia e Arte/Língua

Estrangeira Moderna/Educação Física. Os textos

nelas apresentados são dirigidos aos professores

de cada uma das disciplinas e em cada uma das

três séries do Ensino Médio, com o objetivo de

detalhar as possibilidades de “aplicação” e de

avaliação das atividades propostas para o aluno no

Jornal (São Paulo, 2008, p. 11). Além desse

material impresso, Jornal e Revista para o

professor, a equipe gestora e os professores

receberam orientações por meio de vídeos

tutoriais que apresentavam princípios da

organização do material.

Nessa estratégia do governo paulista é

possível vislumbrarmos uma concepção de

divisão do trabalho pedagógico, já analisada por

outros autores e presente em diferentes momentos

de nossa história, ou seja, cabe à burocracia estatal

pensar e planejar o trabalho que será “aplicado”

pelo professor em sala de aula4. De certo modo,

essa concepção curricular, expressa no material

divulgado pela Secretaria de Educação de São

Paulo, reafirma o que Hypólito (1991) sinaliza ao

analisar o contexto das reformas curriculares do

final do século XX: a opção por um modelo

técnico-burocrático, caracterizado pela redução da

autonomia do professor em relação ao ensino e à

organização da escola.

São anunciadas, nessas Revistas, as

habilidades e competências que necessitam ser

recuperadas ou consolidadas pelos alunos em cada

uma das disciplinas durante o período de 42 dias.

São habilidades voltadas principalmente para o

raciocínio lógico-matemático, além de leitura e

escrita. A Revista do Professor reconhece o grave

problema enfrentado nos ensinos Fundamental e

Médio do estado que conta com a presença de

alunos que ainda não dominam a base alfabética

da escrita – entendida no referido documento

como a capacidade de compreender como se

representa a escrita no sistema alfabético,

realizando uma ação de ordem cognitiva - e que,

portanto, não conseguirão de forma plena

acompanhar as ações propostas. (2008, p. 17) O

documento define ainda como meta para o final

do ano de 2008 a alfabetização de todos esses

alunos.

No caso específico das disciplinas de

Ciências Humanas, revelou-se naquele momento

uma preocupação em iniciar o trabalho em cada

uma delas a partir da reflexão acerca das suas

respectivas “utilidades” na formação do jovem

estudante. Por que estudar História? Mas, afinal,

por que e para que estudar História? E o que

você tem com isso? São essas, por exemplo,

algumas das indagações iniciais do texto referente

à disciplina de História. Na Revista do Professor,

há orientações para que o ensino dessa disciplina

suscite em classe discussões sobre as questões,

procurando aprofundar a reflexão e superar

respostas superficiais e repetitivas. O material

propõe que o aluno entre em contato com uma

História que representa a própria identidade das

formações sociais (Jornal do Aluno, p. 19). A

disciplina é considerada importante para a

formação de cidadãos críticos por promover a

percepção da identidade social e da necessidade

de preservação da memória individual e coletiva.

Na Revista das disciplinas de Ciências

Humanas, ficam mais claras as habilidades que se

espera que os alunos adquiram. Elas estão

divididas entre aquelas voltadas para a leitura e

produção de texto e as relacionadas

especificamente com os conhecimentos

disciplinares.

Para a disciplina de Geografia, destaca-se

a importância de garantir, ao longo da Educação

Básica, que o aluno saiba interpretar e fazer uso

de conhecimentos geográficos tais como o da

cartografia. Diz a Revista do Professor:

considerando a leitura de mapas e

gráficos, instrumento indispensável para

a compreensão do espaço em todas as

suas dimensões, as atividades deste

caderno foram elaboradas retomando,

inicialmente, os referenciais de

orientação e localização, para

posteriormente se trabalhar com as

formas de representação do espaço em

sua dimensão gráfica e cartográfica. Os

conteúdos aqui trabalhados estão a

serviço da habilidade e, portanto, também

devem ser recolocados de forma a fazer

com que os alunos retomem conceitos

significativos para a sua formação geral

(SÃO PAULO, 2008, p. 18).

Tecendo críticas a um ensino de

Geografia centrado na descrição de paisagens ou

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62 Dirce Djanira Pacheco e Zan

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 59-68, jul./dez.2012

no manuseio de uma cartografia obsoleta que não

leva em consideração os novos recursos

tecnológicos, representativos de uma Geografia

descritiva e mnemônica (p. 29), propõem-se

ensinar aos alunos os procedimentos que lhes

possibilite tirar informações e sensações dessas

novas expressões de comunicação resultantes da

junção dos diversos saberes e da disponibilidade

de novas formas de expressão do conhecimento.

(p. 29) Tal orientação para o ensino de Geografia

visa não apenas a garantia da aprendizagem de

habilidades importantes para a disciplina como

também contribuir para desenvolver habilidades

de síntese e ordenamento de informações além de

ampliar a capacidade do estudante de argumentar

e aprimorar o seu senso crítico (p. 29).

Ao final das orientações, enfatiza-se a

preocupação dos autores em garantir a

oportunidade aos alunos do Ensino Médio de

reverem conteúdos conceituais, procedimentais e

atitudinais indispensáveis à sua formação.

É possível notar aqui uma retomada do

discurso presente nos primeiros documentos

curriculares lançados pelo governo federal nos

anos de 1990. Segundo documento introdutório

dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino

Fundamental (BRASIL, 1997), os conteúdos

conceituais referem-se à construção ativa das

capacidades intelectuais dos indivíduos para

operar com símbolos, idéias, imagens e

representações que permitem organizar a realidade

(p. 74), enquanto que os conteúdos

procedimentais referem-se, de certo modo, à

capacidade de continuar aprendendo, de buscar

informações e de investigar. Nesse sentido, está

implícito que, ao se ensinar procedimentos,

também se ensina um certo modo de pensar e

produzir conhecimento. Os conteúdos atitudinais

permeiam todo o conhecimento escolar (p. 76) e

se referem às atitudes aprendidas pelos alunos

durante sua vida escolar, isto é, atitudes em

relação ao conhecimento, ao professor, aos

colegas, às disciplinas e à sociedade.

Essa forma de conceber os conteúdos está

fortemente marcada pela teoria cognitivista, que,

como já analisado por diferentes autores,

fundamentou os documentos nacionais naquele

momento, principalmente sob a influência do

pensamento de César Coll. Para Moreira (1997),

por exemplo, a perspectiva psicológica defendida

por esse autor manifesta-se de forma contundente

nos documentos de 1990. Nessa perspectiva,

qualidade de ensino é compreendida de forma

restrita às necessidade e interesses

individualmente considerados (p. 96). Há,

segundo Moreira (1997), uma desconsideração do

caráter político inerente a essa discussão. Da

mesma forma, a análise dos documentos paulistas

nos remete a essa compreensão individualizada da

aprendizagem e da qualidade de ensino.

De uma forma ampliada foi publicada,

alguns meses depois, a Proposta Curricular do

Estado de São Paulo com orientações curriculares

explícitas para cada uma das disciplinas. É

importante ressaltar a opção do Estado em

publicar cadernos organizados por disciplinas e

não pelas três grandes áreas definidas desde os

primeiros documentos curriculares nacionais

voltados para o Ensino Médio e divulgados pelo

MEC, ou seja: Linguagem, Código e suas

tecnologias; Ciências da Natureza, Matemática e

suas tecnológicas e Ciências Humanas e suas

tecnologias. Mas, diferentemente dos documentos

federais, parece haver uma estratégia de

valorização dos conteúdos, pois, apesar de

centrar-se no desenvolvimento de competências e

habilidades, enfatiza-se a necessária garantia de

conteúdos disciplinares que serão definidos nos

documentos específicos das disciplinas.

O documento de apresentação da

proposta5 afirma que esta é resultado de

conhecimentos e práticas acumuladas, de síntese,

revisão e recuperação de documentos já

publicados sobre currículo no Ensino Médio, bem

como de diagnósticos feitos acerca da condição

das escolas. Afirma que a Secretaria de Educação

do Estado atuará a partir de amplo levantamento

do acervo documental e técnico pedagógico

existente e consultará escolas e professores,

visando a identificar, sistematizar e divulgar “boas

práticas existentes nas escolas”. De acordo com o

texto, essa proposta visa a proporcionar a todos os

estudantes da rede pública estadual paulista uma

base comum de conhecimentos e competências

para que as escolas funcionem como rede, e elege

como prioridade desta reforma a garantia da

competência da leitura e escrita na formação

desses alunos.

A partir de então, é possível observarmos

algumas concepções que são elucidadas no

documento curricular introdutório. A escola é

definida como espaço de cultura e de articulação

de competências e conteúdos disciplinares. Nesse

sentido, o documento anuncia uma compreensão

no mínimo ambígua ao afirmar que é possível e

desejável um currículo padrão para toda a rede,

uma vez que “alunos e professores são únicos”.

Dessa forma, explicita uma noção a-crítica acerca

da cultura ao não considerar os conflitos e

interesses distintos que permeiam os processos

culturais e a diversidade cultural que se manifesta

nas diferentes regiões do estado de São Paulo.

O adolescente, aluno por excelência dessa

etapa da Educação Básica, é entendido como

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A Concepção de Ensino Médio e de Currículo Expressa na Proposta de São Paulo 63

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 59-68, jul./dez.2012

aquele que deixou de ser criança e se prepara para

a vida adulta, ou seja, um sujeito em

transformação. Ao assumir a adolescência nessa

perspectiva, o documento desconsidera o

adolescente enquanto sujeito no processo

educacional e social. Segundo Calligaris (2000),

essa concepção do adolescente tem criado uma

situação problemática para os jovens na

contemporaneidade, pois, ao mesmo tempo em

que são reconhecidos como aqueles que

necessitam ainda da tutela dos adultos, eles são

instigados a se tornarem indivíduos

independentes. Isso torna ainda mais penoso o

hiato que a adolescência instaura entre aparente

maturação dos corpos e ingresso na vida adulta.

Apesar da maturação dos corpos, a autonomia

reverenciada, idealizada por todos como valor

supremo, é reprimida, deixada para mais tarde (p.

17).

Como parte ainda do diagnóstico relatado

no documento, discorre-se sobre uma precocidade

da adolescência articulada com uma inserção

tardia no mercado de trabalho. Neste momento

não há nenhuma discussão mais aprofundada

acerca da afirmação feita, ou seja, pesquisas na

área do trabalho têm apontado para a expressiva

presença dos jovens entre os desempregados no

país. Segundo dados do Instituto de Pesquisa

Econômica Aplicada (IPEA), em 2005, época

próxima à produção e divulgação da referida

proposta, o desemprego da população entre 15 e

24 anos era 3,5 vezes maior do que o medido

entre os trabalhadores que haviam ultrapassado

essa faixa etária6. Nesse sentido, torna-se

superficial a afirmação acerca da tardia inserção

no mercado de trabalho, pois ela parece resultar

muito mais de questões estruturais vividas pelo

país naquele momento do que de uma opção dos

jovens estudantes. Além disso, pesquisadores

como Dayrell, têm apontado em seus estudos que,

para muitos jovens brasileiros, trabalhar é

condição imprescindível para viver sua condição

juvenil.

O Governo do Estado apresenta, a partir

desta proposta curricular, sua concepção acerca da

educação que julga necessária para o contexto

atual, ou seja, uma educação geral, articuladora,

que transite entre o local e o mundial (São Paulo,

2008). Construir identidade, agir com autonomia

e em relação com o outro, e incorporar a

diversidade são as bases para a construção de

valores de pertencimento e responsabilidade,

essenciais para a inserção cidadã nas dimensões

sociais e produtivas. Preparar indivíduos para

manter o equilíbrio da produção cultural, num

tempo em que a duração se caracteriza não pela

permanência, mas pela constante mudança –

quando o inusitado, o incerto e o urgente

constituem a regra e não a exceção -, é mais um

desafio contemporâneo para a educação escolar

(p. 6).

O documento defende princípios que

norteiem um currículo comprometido em garantir

uma formação que atenda às demandas e

modificações do mundo contemporâneo. Aponta

para a necessidade de se compreender a escola

como espaço de aprendizagem e no qual a

convivência passa a ser encarada de forma

intencional, ou seja, como situação de

aprendizagem. Fundamentando-se na LDB

9394/96, o texto afirma que foi a partir da referida

lei que se passou a conceber a aprendizagem

enquanto direito (p. 9).

O currículo é definido como espaço de

cultura. Currículo, diz o texto oficial, é a

expressão de tudo o que existe na cultura

científica, artística e humanista, transposto para

uma situação de ensino e aprendizagem (p. 8).

Essa afirmação desconsidera o caráter seletivo do

currículo, ignora a ampla produção acadêmica que

tem se intensificado desde os anos de 1990 no

país e que apresenta o currículo como espaço de

luta e embates sociais, culturais e políticos. Ao

defender que se parta das competências como

referência, isto é, ao aceitar o desafio de promover

os conhecimentos próprios de cada disciplina

articuladamente às competências e habilidades do

aluno... (p. 8), assume-as como aquelas que

caracterizam os modos de ser, raciocinar e

interagir que podem ser depreendidos das ações e

das tomadas de decisão em contextos de

problemas, tarefas ou atividades... (p. 9).

Essa opção do currículo por competência

está relacionada, segundo o próprio documento,

com o compromisso por uma escola democrática.

No momento em que se conclui o processo de

universalização do Ensino Fundamental e se

incorpora toda a heterogeneidade que caracteriza

o povo brasileiro – afirma o documento – a

escola, para ser democrática, tem de ser

igualmente acessível a todos, diversa no

tratamento de cada um e unitária nos resultados.

(p. 10). Para a construção da unidade, é portanto

necessário se enfatizar o que é indispensável: que

todos tenham aprendido no final do processo,

visando a ...garantir igualdade de oportunidades,

diversidade de tratamento e unidade de

resultados... (p. 10). A justificativa para um

currículo centrado nas competências aparece

posteriormente no documento ao afirmar-se que

as competências são mais gerais e constantes, e

os conteúdos, mais específicos e variáveis... (p.

13).

As competências adotadas pela proposta

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64 Dirce Djanira Pacheco e Zan

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 59-68, jul./dez.2012

curricular são definidas a partir do referencial

teórico do Exame Nacional do Ensino Médio

(ENEM): dominar a norma culta da Língua

Portuguesa e fazer uso da Linguagem Matemática;

construir e aplicar conceitos das várias áreas do

conhecimento para a compreensão de fenômenos

naturais, de processos histórico-geográficos, da

produção tecnológica e das manifestações

artísticas; selecionar, organizar, relacionar,

interpretar dados e informações representadas de

diferentes formas, para tomar decisões e enfrentar

situações-problema; relacionar informações,

representadas em diferentes formas, e

conhecimentos disponíveis em situações

concretas, para construir argumentação

consistente; e recorrer aos conhecimentos

desenvolvidos na escola para elaborar propostas e

intervenção solidária na realidade, respeitando os

valores humanos e considerando a diversidade

sociocultural - todas elas convergindo para a

competência maior da leitura e escrita, que deve

ser assumida como objetivo da formação no

Ensino Médio, pois é na adolescência que a

linguagem adquire essa qualidade de instrumento

para compreender e agir sobre o mundo real (p.

11) (grifos da autora), afirma o texto oficial.

A proposta compreende a leitura como a

capacidade do estudante de interpretar, atribuir

sentido ou significado; compreender, assimilar

experiências ou conteúdos disciplinares; antecipar

ação para intervir no fenômeno e resolver

problemas dele decorrentes; sintetizar a

capacidade de escutar, supor, informar-se,

relacionar, comparar, etc; e descrever,

compreender, argumentar a respeito de um

fenômeno. Da mesma forma a escrita tem seu

sentido ampliado e é assim definida pelo

documento: assumir autoria individual ou

coletiva; expressar sua construção ou reconstrução

com sentido, aluno por aluno; dominar os muitos

formatos que a solução do problema comporta;

dominar os códigos que expressam a defesa ou

reconstrução de argumentos, além de construir um

plano para essa intervenção.

Diferentes autores têm se posicionado

criticamente acerca do currículo por

competências, que ganha destaque desde os

primeiros documentos brasileiros dos anos de

1990. Segundo Zibas (2005), as primeiras críticas

a essa concepção “apontaram a origem do

conceito no modelo de competências

desenvolvido na área empresarial para a seleção e

treinamento de trabalhadores (p. 27).

Posteriormente, o aporte psicológico da pedagogia

das competências foi criticado por visar à

construção do novo profissionalismo” (p. 28), ou

seja, é um modelo que enfatiza os aspectos

subjetivos dos alunos e que, de certo modo, está

em sintonia com as mudanças do processo

produtivo atual, que visa a uma melhor adequação

do trabalhador às novas formas de organização do

mundo do trabalho.

A proposta curricular visa a atingir

também a gestão da escola. Chama à

responsabilidade os gestores - considerados no

documento de apresentação da proposta como os

responsáveis pela formação continuada dos

professores - para proporcionarem o

desenvolvimento das capacidades de leitura e

escrita também nos professores, ou seja, criar

oportunidades para que os docentes desenvolvam

essas competências.

A proposta retoma, de certo modo, a

orientação presente nos documentos de uma

década atrás, ou seja, a necessidade de se garantir

a relação entre o que se aprende na escola com a

vida cotidiana dos estudantes. Defendendo que se

a educação básica é para a vida, a quantidade e a

qualidade do conhecimento têm de ser

determinadas por sua relevância para a vida de

hoje e do futuro, além dos limites da escola. (p.

13) Porém, como naqueles primeiros documentos,

apresenta uma compreensão acrítica da vida

contemporânea, há uma nítida intenção de que a

escola instrumentalize seus alunos para se

adaptarem a realidade atual sem levantar qualquer

tipo de questionamento acerca desta realidade.

É no contexto do trabalho que se pretende

efetivar a contextualização desta reforma

curricular. Retomando os Parâmetros Curriculares

Nacionais para o Ensino Médio e assumindo-os

como também balisadores para o Ciclo II do

Ensino Fundamental. O trabalho é assumido como

tema e como valor na proposta aqui apresentada.

Segundo o documento de apresentação da

proposta, as Diretrizes Curriculares Nacionais

para o Ensino Médio abriram a possibilidade para

que os sistemas de ensino ou as escolas tenham

ênfases curriculares diferentes, ...com autonomia

para eleger as disciplinas específicas e suas

respectivas cargas horárias dentro das 3 grandes

áreas instituídas pelas DCN´s, desde que

garantida a presença das três áreas...(p. 19). No

entendimento da Secretaria de Educação de São

Paulo, isto permite que escolas de Ensino Médio

articulem seu projeto pedagógico a cursos de

educação profissional de nível técnico e/ou que

possam oferecer disciplinas que depois serão

aproveitadas no curso profissionalizante. Aponta-

se, portanto, que o currículo do Ensino Médio seja

definido com base em conteúdos disciplinares

constituintes de competências básicas que sejam

também pré-requisitos de formação profissional.

Talvez este seja o caso, por exemplo, da ênfase na

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A Concepção de Ensino Médio e de Currículo Expressa na Proposta de São Paulo 65

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 59-68, jul./dez.2012

tecnologia.

A presença da tecnologia como norteador

desta proposta é então compreendida como

educação tecnológica básica e como fundamento

necessário à compreensão do desenvolvimento

científico e tecnológico da produção. Aponta-se

para a necessidade de se garantir durante a

Educação Básica a alfabetização tecnológica

básica, ou seja, entender as tecnologias da história

humana como elementos da cultura.

Posteriormente, num processo de educação

tecnológica básica, visa à preparação dos

estudantes para viverem neste mundo

tecnologizado.

Há a defesa da diversificação do Ensino

Médio, que, até certo ponto, materializa-se na

flexibilização do currículo e na ênfase cada vez

maior em proporcionar uma formação

profissionalizante dos jovens estudantes desse

nível de ensino. Várias têm sido as iniciativas do

Estado neste sentido7 que merecem ser estudadas

e acompanhadas por pesquisadores da área.

Essa concepção de certo modo mostra-se

inspirada em documentos de organismos

internacionais divulgados no início dos anos 2000.

Documento publicado pela UNESCO em 20028

apontava para a necessidade de que os países

latinos oferecessem a cada jovem entre 16 e 18

anos uma educação básica de 12 anos, além de

diversificar a oferta do que é ali chamado de

“Educação Secundária”. Tal diversificação

possibilitaria atender às necessidades de uma

população estudantil muito exigente, segundo o

referido documento, permitindo assim que cada

um pudesse explorar seus interesses e aptidões

visando a uma inserção positiva e criativa no

mundo dos adultos. ...O mais importante (hoje) –

afirmam Caillods e Hutchinson – é dispor de uma

força de trabalho formada competitiva e flexível

(p. 24).

Desse modo se justifica, até certo ponto, a

ênfase dos documentos curriculares dos últimos

anos, na garantia do desenvolvimento de

competências e habilidades. Segundo Caillods e

Hutchinson (2002), as novas tecnologias

transformaram profundamente a organização do

trabalho e, portanto, são necessárias agora

competências transversais, como capacidade de

ser criativo, solucionar problemas concretos,

tomar decisões de maneira autônoma, trabalhar

em equipe e saber aprender... (p. 26).

No caso específico das Ciências

Humanas, o documento de apresentação da

proposta curricular paulista reconhece como

disciplinas que compõem essa área as de História,

Geografia, Filosofia, Sociologia e Psicologia,

além de outras como Política, Antropologia e

Economia. Enfatiza-se o caráter interdisciplinar da

área e a importância da mesma no auxílio dos

jovens para a compreensão de questões que os

afetam, além de contribuir para as tomadas de

decisões diante dos problemas que se apresentam

no início do século XXI. Aparentemente

poderíamos entender que há uma preocupação e

se atribui papel relevante para esta área, mesmo

em um currículo comprometido com a formação

para o mercado de trabalho. Entretanto, ao

analisarmos, por exemplo, o caso da disciplina de

Sociologia, fica evidente a contradição no

discurso expresso no documento. Vejamos o caso

dessa disciplina no currículo paulista.

O retorno da Sociologia ao currículo do

Ensino Médio no estado se deu a partir do ano de

2009. Apesar de resolução do Conselho Nacional

de Educação (CNE) datada de 2006, que tornava

as disciplinas de Filosofia e Sociologia

obrigatórias no currículo do Ensino Médio, esta

última não foi incorporada à matriz curricular das

escolas paulistas naquele momento. Com a

aprovação da Lei 11.684/2008 pelo MEC, que

torna obrigatória a presença das duas disciplinas,

o Governo de São Paulo anunciou a inserção da

Sociologia a partir do ano letivo de 2009. No

entanto, a forma como ela retorna ao currículo

tem causado discussões e debates.

Segundo o jornal Folha de São Paulo9, a

entrada da disciplina de Sociologia representaria a

supressão de aulas de História no currículo do

Ensino Médio. Em matéria intitulada Aluno de

Escola Estadual terá 80 aulas de História a

menos, a reportagem diz que o governo estadual

afirma não ser possível ampliar a jornada diária de

estudantes e professores do Ensino Médio, sendo

assim, para acatar a lei federal que inclui a

disciplina de Sociologia e amplia a carga horária

da disciplina de Filosofia, a única saída foi reduzir

aulas das disciplinas de História, Educação Física

e Geografia no período diurno, além da disciplina

de língua estrangeira (em geral, inglês ou

espanhol) no período noturno. Tal opção do

governo para inclusão da disciplina possivelmente

provocou resistência de colegas no interior da

escola, que viram suas disciplinas terem a carga

horária reduzida ou assumiram, mesmo sem

formação específica, as aulas de Sociologia como

forma de não perderem aulas e terem seus salários

reduzidos.

Reações Iniciais

Em matéria intitulada “Reforma

Curricular em São Paulo: a contra-mão do

progresso”, disponível no site “professor

temporario.wordpress.com”, um grupo de

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66 Dirce Djanira Pacheco e Zan

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 59-68, jul./dez.2012

professores se manifesta contrário à proposta

curricular do estado, principalmente no que se

refere ao que chamam de semi-profissionalização

do Ensino Médio. Além disso, criticam a proposta

por restringir o conteúdo a ser disponibilizado aos

alunos paulistas, limitando-os ao conhecimento

básico da leitura e dos fundamentos da

Matemática.

Em maio de 2008, o Fórum da Graduação

promovido pela ANPUH (Associação Nacional de

História) – Seção São Paulo teve como objetivo

discutir a proposta curricular da disciplina de

História do Estado de São Paulo, implantada na

rede pública paulista a partir do ano letivo de

2008. Nessa reunião, ocorrida na USP, estiveram

presentes representante da Secretaria Estadual da

Educação - professor Paulo Miceli, autor do

documento de História - professores das

Universidades paulistas, públicas e particulares,

membros do GT (Grupo de Trabalho) de Ensino

da referida Associação, do Conselho Consultivo e

da Diretoria da Seção São Paulo da Anpuh, além

de professores dos ensinos fundamental e médio.

Dessa reunião resultou uma moção

publicada no site da entidade com o objetivo de

registrar contradições e inconsistências relativas

a esta Proposta Curricular de História. São

destacadas principalmente a concepção de

currículo implícita na proposta e o seu processo de

implantação, que reduz o professor a mero

executor de propostas elaboradas a priori, de

maneira unidimensional, desconsiderando

projetos em desenvolvimento nas escolas, bem

como as discussões acumuladas nos últimos trinta

anos, envolvendo pesquisas sobre a história das

disciplinas escolares, saberes históricos

escolares, culturas escolares e saberes docentes,

dentre outras.

O documento aponta para a dubiedade do

texto curricular, pois, apesar de nas proposições

mais gerais e nos princípios da Proposta

Curricular ser mencionada concepção curricular e

educacional pautadas por uma perspectiva sócio-

histórica, esta não é de fato incorporada. Pelo

contrário, o conjunto de documentos

apresentados, apesar de referir-se à autonomia,

ao pensar crítico, como metas educacionais a

serem colocadas em práticas por docentes e

discentes, acaba, ambiguamente, negando-os. A

lógica que prevalece é a de um sistema

interessado numa produtividade mensurável,

politicamente controlada, por meio de

procedimentos avaliativos padronizados e

mecanicamente colocados em ação.

Outra reação organizada foi a da

APEOESP (Associação de Professores do Ensino

Oficial de São Paulo), que, após reunião com

pesquisadores, manifestou-se no Boletim

intitulado “Proposta Curricular do Estado de São

Paulo: uma análise crítica”. Dentre as principais

críticas estão a maneira como a proposta foi

inserida na rede, ou seja, sem a necessária

participação de todos os envolvidos direta ou

indiretamente no processo educacional escolar; a

desconsideração acerca da diversidade cultural do

estado presente na proposta e a posição de

“aplicador de currículo” que é atribuída aos

professores da rede. O documento afirma que o

currículo apresentado no documento é restrito e

retira a autoria do trabalho didático e a autonomia

docente. Nesse sentido, a entidade analisa que

essa proposta está alinhada com as diretrizes

sociais e econômicas do chamado capitalismo

globalizado. E aponta que esta concepção social e

econômica tem demonstrado não ser eficiente na

resposta às necessidades da sociedade em relação

ao trabalho, saúde, educação, lazer...

Na análise apresentada pela entidade há

uma confluência no que tenho apresentado neste

texto, ou seja, uma compreensão de que a

proposta curricular paulista se aproxima das

orientações curriculares difundidas pelos

organismos internacionais a partir dos anos de

1990. Da forma como estão organizados, os

Cadernos podem ser vinculados aos famosos

guias didáticos expressamente orientados pelas

políticas educacionais do Banco Mundial, afirma

o Boletim.

O documento termina por conclamar os

professores a se organizarem e posicionarem

criticamente frente a esta proposta no momento do

planejamento que se iniciava no ano de 2009. A

forma como os professores têm se manifestado

acerca destes documentos carece ainda de estudos.

Algumas Considerações

É possível observarmos uma aproximação

do discurso curricular da proposta paulista com o

presente nos documentos curriculares publicados

nos anos de 1990, tendo como ênfase o objetivo

de promover o desenvolvimento de competências

e habilidades, principalmente aquelas voltadas

para a leitura e escrita.

Apresenta-se uma concepção do professor

como “aplicador da proposta”. É também

retomada uma noção de padronização da

aprendizagem, desconsiderando tantas pesquisas

que apontam para esta como uma atividade de

apropriação do conhecimento que é cultural,

histórica, social e singular.

Na busca de garantir a implementação da

proposta curricular, há um envolvimento da

equipe gestora que passa a ser estratégica no

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A Concepção de Ensino Médio e de Currículo Expressa na Proposta de São Paulo 67

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 59-68, jul./dez.2012

processo atual.

São necessários estudos que aprofundem a

análise sobre os documentos apresentados pelo

estudo, bem como aqueles que se voltem para o

cotidiano escolar com o objetivo de analisar esse

processo.

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Page 68: HORIZONTES - Universidade São Francisco · HORIZONTES Revista Semestral do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco Volume 30 Número

68 Dirce Djanira Pacheco e Zan

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 59-68, jul./dez.2012

Notas

1 Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM).

2 Texto que compõe a apresentação escrita pela Coordenadora do Projeto, profa. Maria Inês Fini.

3 Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (SARESP) tem por objetivo avaliar

o Ensino Básico nas escolas públicas do estado. Desde 1996 é aplicado anualmente.

4 Uma leitura importante sobre o tema é a do artigo Neotecnicismo e Formação de Professores de Luiz

Carlos de Freitas, publicado no livro Formação de Professores: pensar e fazer organizado por Nilda Alves

e editado pela Cortez em 1992.

5 SÃO PAULO. Proposta Curricular para Ensino Fundamental (Ciclo II) e Ensino Médio. Documento de

Apresentação. 2008. Disponível em www.fazendoescola.sp.gov.br

6 www.ipea.gov.br

7 Quanto à diversificação do Ensino Médio, em conferência proferida pela profa. Maria Inês Fini –

coordenadora da proposta curricular do estado de São Paulo - no Seminário Os Desafios do Ensino Médio,

ocorrido na Unicamp em 07 de novembro de 2008, se informou que o estado em parceria com o município

de Indaiatuba, por exemplo, ofereceu naquele ano 2.600 vagas para estudantes matriculados no ensino

médio estadual frequentarem gratuitamente um dos cursos técnicos oferecidos pela Fundação Indaiatubana

de Educação e Cultura (Fiec).

8 BRASLAVSKY, Cecília (org.) Educação Secundária: mudança ou imutabilidade? Brasília: UNESCO,

2002.

9 Matéria publicada em 06 de dezembro de 2008 no Caderno Cotidiano.

Sobre a autora:

Dirce Djanira Pacheco e Zan: Docente do Programa de Pós Graduação em Educação da Faculdade de

Educação- Unicamp.

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69

*Endereço eletrônico: [email protected]

** Endereço eletrônico: [email protected]

Corpo, comida e cultura: Discussão e problematização os padrões contemporâneos de

beleza/saúde no ensino de ciências1

Tatiana Souza de Camargo*

Nádia Geisa Silveira de Souza**

Resumo

A educação escolarizada tem abordado o corpo humano como fenômeno puramente biológico, um conjunto

de sistemas e órgãos do qual se estudam características e funcionamentos, sem abordar aspectos

sócio/histórico/culturais que o inscrevem constantemente. Atualmente, os meios de comunicação divulgam

muitas informações a respeito do corpo. Elas propõem padrões de aparência que investem na magreza e

juventude como sinônimos de saúde, responsabilizando o indivíduo pela administração de seu corpo.

Entendendo a escola como um espaço privilegiado no aprendizado de conhecimentos sobre o corpo e seus

cuidados, discutimos a necessidade de nela pensarmos o corpo em contínua construção, trazendo neste artigo

o relato da experiência realizada em oficinas para estudantes de Pedagogia, cujo objetivo foi desenvolver

abordagens complexas à temática da alimentação. Sem a intenção de prescrever novos modelos para o ensino

de ciências, acreditamos que com esse tipo de estudo, talvez, possamos contribuir com outras formas de

compreensão do corpo, não como acontecimento inevitável e estabilizado na história, mas como efeito das

circunstâncias vividas e que pode, portanto, ser criticado e recriado de outras maneiras.

Palavras-chave: ensino de ciências – corpo – alimentação.

Body, food and culture: Discussion and problematization of the contemporary beauty/health standards

in science education

Abstract

School education has been teaching the human body as purely biological phenomenon, a set of systems and

organs, concerning about its characteristics and functioning, without addressing its socio/historical/cultural.

Currently, the media shows a lot of information about the body. Its propose standards of appearance that

invest in thinness and youth as synonymous of health, blaming the individual for the administration of

his/her body. Understanding the school as a privileged space of learning of knowledges about the body and

its care, we discussed the need to consider the continuous body construction, bringing in this article the story

of experience held in workshops for students of pedagogy, whose goal was to develop complex thematic

approaches to food. Without the intent to prescribe new models for the science education, we believe that this

type of study may be able to contribute with other forms of understanding the body, not as an event

inevitable and stabilized in history, but the effect of circumstances lived and which can, therefore, be

criticized and recreated in other ways.

Keywords: science education – body – alimentation.

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70 Tatiana Souza de Camargo, Nádia Geisa Silveira de Souza

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 69-79, jul./dez.2012

Introdução

Exageros à parte, o humor desta história

em quadrinhos se constrói com base num conjunto

de valores e sentimentos partilhados por muitas

pessoas, na atualidade – especialmente as

mulheres. Nas sociedades como a brasileira

contemporânea, os conceitos de saúde e de

cuidados com o corpo tornaram-se centrais no

processo de construção das subjetividades

(CAMARGO, 2012). Nesse sentido, o corpo ideal

passou a ser o corpo civilizado, controlado

racionalmente; na mesma medida em que os seus

cuidados passaram a ter o objetivo de manter a

boa saúde e aumentar a longevidade, sem muitos

questionamentos sobre as condições e demandas

dessa manutenção. Dessa forma, os cuidados de si

despendidos a esse corpo passaram a estruturar-se

a partir da tríplice “exercício = boa forma =

saúde” (LUPTON, 1995: 71). E possuir esta saúde

– espécie de bem cuja posse necessita ser

constantemente reafirmada; que é tornada visível

através do corpo magro, firme e exercitado –

parece ser uma questão de bom gosto, de

autonomia, de desenvolvimento pessoal.

Tal modelo de cuidados corporais

contribuíram /para que, em 2006, o Brasil fosse

considerado o maior consumidor per capita de

medicamentos para emagrecer (9,1 doses diárias

por mil habitantes), sendo seguido pelos Estados

Unidos (7,7) e a Argentina (6,7), de acordo com

um relatório elaborado pela Organização Mundial

da Saúde, divulgado pelo Instituto Brasileiro de

Opinião Pública e Estatística (IBOPE, 2007).

Ainda nesse sentido, na pesquisa global realizada

pela Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica,

relativa aos dados do ano de 2009, o Brasil ficou

em segundo lugar no número de procedimentos

cosméticos cirúrgicos e não cirúrgicos, e foi o país

que realizou o maior número de lipoaspirações

(ISAPS, 2010). Nesta direção, um estudo

realizado em Porto Alegre, com mulheres de 12 a

29 anos, mostrou que somente um terço das que

desejavam emagrecer apresentavam IMC2

compatível com excesso de peso (NUNES et al,

2003). Por outro lado, pesquisas realizadas em

diferentes cidades brasileiras, incluindo capitais e

cidades do interior, com crianças e adolescentes

em idade escolar, apresentaram altos percentuais

de entrevistados insatisfeitos com seu corpo

(FERNANDES, 2007; TRICHES, GIUGLIANI,

2007; PINHEIRO, GIUGLIANI, 2006;

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Corpo, comida e cultura: Discussão e problematização os padrões contemporâneos de beleza/saúde no ensino 71

de ciências

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 69-79, jul./dez.2012

PINHEIRO, GIUGLIANI, 2006b).

Com base nestes dados, entendemos que,

mais do que a supervalorização da magreza, o que

acontece na sociedade brasileira atual é a aversão

à gordura, ao gordo – uma lipofobia. Em meus

trabalhos venho utilizando o conceito de lipofobia

como a atitude de busca incessante pela magreza

e, ao mesmo tempo, de rejeição quase maníaca à

obesidade e ao obeso, num sentido próximo ao

proposto por Fischler (1995).

Diante disso, acreditamos que a

problematização de tais padrões de

beleza/saúde/magreza aliada a discussão dos

modelos de cuidados corporais da atualidade

apresentam-se como um assunto de relevância

política para a área da educação e da promoção da

saúde no Brasil, considerando que discursos

contemporâneos em torno de um corpo padrão de

beleza/saúde vêm gerando, de modo crescente,

sentimentos de insatisfação das pessoas em

relação ao próprio corpo.

A escola, como um espaço privilegiado no

aprendizado de conhecimentos sobre o corpo e

seus cuidados, pode contribuir bastante para que

se estabeleça tal espaço de problematização e

discussão, desde que sejam incorporadas outras

abordagens e temáticas ao currículo escolar

tradicional. No sentido de se pensar um ensino de

ciências que trabalhe com uma noção mais

complexa deste fenômeno biossocial que é o

corpo, trazemos, nesse artigo, um relato e algumas

discussões relevantes acerca de um conjunto de

atividades, organizadas em uma oficina, que

temos realizado com alunos do curso de

graduação em Pedagogia, da Faculdade de

Educação da UFRGS, voltada à problematização e

desnaturalização dos modelos e prescrições de

cuidados com a alimentação e com o corpo na

atualidade – o que passamos a narrar e discutir.

O corpo como uma construção biossocial:

discutindo algumas estratégias para o ensino

escolar

Esse foi o título atribuído a atividade, na

modalidade de oficina, que realizamos com os

alunos do curso de Pedagogia, sendo que alguns

deles já atuavam como professores.

Nessa oficina, a temática da alimentação,

compreendida como uma atividade cotidiana,

contínua e universal, que alia aspectos biológicos

da nutrição a componentes culturais e simbólicos,

ao atuar na constituição dos corpos (FISCHLER,

1990; MACIEL, 1996), foi escolhida como eixo

orientador de diferentes atividades. Tínhamos

como principais propósitos pensar sobre a

possibilidade de outras abordagens para a

temática da alimentação, que tratem dos hábitos

alimentares como construção, dos gostos como

aprendizagens e suas influências nos processos

fisiológicos da digestão, dos cuidados com a

alimentação e o corpo, presentes na mídia, como

práticas a serem debatidas e questionadas.

O ponto de partida foi uma discussão

breve de como os temas alimentação e corpo são

mostrados nos Parâmetros Curriculares Nacionais

do Ensino Fundamental (Ciências Naturais, Meio

Ambiente e Saúde Séries Iniciais e Finais), com o

propósito de analisar os discursos presentes nessas

proposições curriculares e apontar as possíveis e

necessárias articulações com as culturas, as

sociedades e o consumo.

Discutimos que, especialmente nos

Parâmetros Curriculares voltados ao ensino nas

Séries Iniciais, a abordagem feita ao tema da

alimentação restringe-se aos seus aspectos

nutricionais (componentes nutricionais, dieta

saudável, etc.), às suas ligações com a higiene e

prevenção de doenças, e ao seu significado

ecológico (teia alimentar). Nos Parâmetros

Curriculares voltados para as Séries Finais, apesar

de a abordagem concentrar-se nos mesmo temas

indicados para as Séries Iniciais, são traçadas

algumas relações com aspectos sócio-culturais da

alimentação, chamando a atenção principalmente

para as questões de consumo e a influência do

marketing no desenvolvimento de hábitos

alimentares considerados “inadequados”.

Dessa forma, os Parâmetros Curriculares

Nacionais do Ensino Fundamental, sejam os das

Séries Iniciais ou os das Finais, ao trabalharem as

relações entre alimentação e corpo, ainda

centram-se na idéia do organismo biológico e

deixam de problematizar as múltiplas e cotidianas

interpelações sofridas pelos corpos dos

estudantes, dos professores, dos pais, como os

enunciados de corpo magro/jovem/saudável

mostrados em revistas, rótulos de alimentos,

propagandas, e que propõem uma gama de

práticas das quais os indivíduos devem lançar mão

na busca por sua adequação corporal e identitária;

o que supostamente o levaria à integração ao

grupo socialmente mais valorizado e feliz; a

constituir-se como o sujeito que tem consigo

próprio o cuidado adequado; que gosta de si

mesmo, que se cuida e que está sempre alerta

(MISKOLCI, 2006).

Após essas discussões passamos à

realização de atividades em grupos. As oficinas

foram filmadas, e os materiais produzidos pelos

participantes foram fotocopiados ou fotografados.

Gostar dos alimentos

Page 72: HORIZONTES - Universidade São Francisco · HORIZONTES Revista Semestral do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco Volume 30 Número

72 Tatiana Souza de Camargo, Nádia Geisa Silveira de Souza

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 69-79, jul./dez.2012

Esse foi o nome dado à primeira

atividade. Nela o grupo deveria discutir por que

comemos. Após a discussão, cada componente do

grupo, individualmente, fecharia os olhos e

procuraria lembrar-se de um alimento de que

gosta, anotando o alimento, as lembranças e as

sensações que teve.

A seguir, ao olhar para os alimentos

oferecidos – chocolate, barra de cereais, copo de

água e fruta – cada componente do grupo prestaria

atenção em alterações ocorridas em seu corpo,

anotando as percepções. Em seguida, cada um/a

morderia e mastigaria os alimentos e tomaria

água, prestando atenção ao que ocorre e deveria

contar aos demais componentes do grupo o que

percebeu daquilo que ocorreu na boca e no trajeto

dos alimentos ao serem deglutidos, anotando o

que estava sendo dito.

O grupo deveria, ainda, discutir sobre o

trajeto que os alimentos fazem no corpo para

serem utilizados na nutrição e depois eliminados.

Por fim, deveriam produzir um cartaz mostrando

o trajeto do alimento para ser utilizado e

eliminado pelo corpo, para posterior explicação

no grande grupo.

Nas discussões sobre por que comemos,

os integrantes do grupo enfatizaram o aspecto da

comensalidade, da convivialidade. Reportaram

memórias de família, as lembrança do gosto

inesquecível da comida da avó. Além disso,

ressaltaram a refeição como uma oportunidade de

reunião com a família. Alguns integrantes

comentaram que podemos comer também por

ansiedade e para suprir “carências emocionais” –

neste caso, dando preferência para comidas

específicas que parecem oferecer uma sensação de

conforto, como o chocolate. O prazer também foi

apontado como um dos motivos pelos quais

comemos, mas estando sempre ligado com uma

idéia de culpa – caso do leite condensado, narrado

como um alimento bastante calórico, que na

infância era uma comida muito prazerosa e que,

para os integrantes do grupo, tem agora um

sentido de “pecado”.

Cabe destacar que, embora todos os

participantes tivessem escolarização em nível

superior e atuassem como professores, a maioria

teve dificuldades em dizer o que acontece com o

alimento até o nível do estômago, poucos falaram

sobre os processos acontecidos nos intestinos e

menos ainda foram os que conseguiram relacionar

a absorção de nutrientes com circulação e

respiração celular. Isso mostra, em certa medida,

que as abordagens escolarizadas do corpo pouco

contribuem para que as pessoas conheçam tanto

os processos que ocorrem nos seus corpos, quanto

as relações existentes entre eles e também com o

meio.

Page 73: HORIZONTES - Universidade São Francisco · HORIZONTES Revista Semestral do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco Volume 30 Número

Corpo, comida e cultura: Discussão e problematização os padrões contemporâneos de beleza/saúde no ensino 73

de ciências

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 69-79, jul./dez.2012

Essa atividade visava gerar discussões a

respeito da construção do hábito alimentar, dos

gostos (por exemplo, não gostar de verduras

associado a seu uso na alimentação de animais),

os comportamentos, os horários, os modelos, os

motivos – nos âmbitos da cultura, da família, da

mídia, da tradição regional, enfim, num processo

histórico-social. A alimentação geralmente

abordada na sala de aula a partir do discurso

biomédico da nutrição e da saúde considera

apenas aspectos da dieta equilibrada e da

anatomo-fisiologia do sistema digestivo,

megligenciando esses outros saberes construídos

em outras vivências sociais.

Outro aspecto tratado nesta atividade

refere-se às percepções de que as manifestações

fisiológicas do corpo - por exemplo, as

modificações no sistema digestivo - encontram-se

em interrelação com o meio e outros órgãos – os

olhos (o visual), o nariz (o olfato), o cérebro (a

memória, as lembranças, a identificação de

sensações). Ou seja, as modificações no sistema

digestivo iniciam antes de comermos os

alimentos, integrando não só o funcionamento do

corpo, mas também elementos aprendidos nas

práticas culturais. Essa atividade visava, ainda, a

discutir as noções dos participantes sobre os

motivos pelos quais comemos: saciar a fome,

prazer, ansiedade, suprir necessidades energéticas

e funcionais, crescimento, entre outros citados.

Escolhas alimentares

Este foi o nome dado à segunda atividade,

que se dividia em três etapas. Em uma primeira

etapa, os integrantes do grupo deveriam imaginar

que estavam na hora do almoço. Deveriam então,

montar um prato (desenho, figuras, palavras) com

aqueles alimentos que geralmente compõem o

almoço de cada um deles durante a semana. Após

a montagem do prato, eles deveriam explicar as

escolhas dos alimentos a serem ingeridos.

Na segunda etapa, os integrantes do grupo

deveriam imaginar que estavam encarregados da

organização de uma festa, em que cada um/a

ficaria responsável por levar um prato. Deveriam,

então, imaginar qual prato cada um dos

integrantes do grupo levaria. Em seguida,

montariam um cardápio para a festa a ser

apresentado no grande grupo, explicando os

motivos da escolha desses pratos.

Na terceira etapa, o grupo deveria

examinar rótulos de alimentos, buscando observar

como essas produções midiáticas abordam os

temas da alimentação e do corpo.

Na discussão sobre a montagem dos

pratos cotidianos, o critério saúde foi ressaltado

pelos integrantes do grupo como o principal

definidor de suas escolhas alimentares. Cabe

salientar que, no entanto, nenhum dos pratos por

eles montados seguia as normas de prescrição

nutricional – tinham, por exemplo, carboidratos

em excesso e poucos incluíam legumes e/ou

verduras.

Na definição do cardápio da festa, a

lógica da escolha dos alimentos pareceu

modificar-se. Se na alimentação diária a saúde é

narrada como principal preocupação, na festa o

prazer é o critério privilegiado.

Ao analisarem as embalagens, os

integrantes do grupo apontaram o discurso

apelativo presente em embalagens de salgadinhos,

biscoitos recheados (as ditas “porcarias”), que

incitaria, principalmente as crianças e

adolescentes, ao seu consumo. No entanto, não

reconheceram que nos rótulos de alimentos ditos

“saudáveis” – como cereal matinal light, pão

integral – está presente outro tipo de discurso que,

apelando para a exigência da saúde/beleza do

corpo, busca construir o alimento como uma

espécie de “remédio”.

Nessa atividade nosso propósito era

discutir os aspectos sociais implicados nas nossas

escolhas alimentares, tais como as rotinas de

trabalho – que em alguns casos (estudantes que

moravam e trabalhavam em uma cidade pequena)

ofereciam a possibilidade de realizar um almoço

do tipo refeição, até mesmo em casa, e em outros

casos só possibilitavam a realização de um

almoço do tipo fast-food (estudantes que

moravam e trabalhavam em cidades grandes); a

necessidade da praticidade; a disponibilidade da

região, da estação do ano e de poder aquisitivo; os

gostos aprendidos no âmbito da família.

Figuras 1-4: Atividade “Gostar dos alimentos"

Figuras 1 e 2 (acima): Consumindo os alimentos oferecidos.

Figuras 3 e 4: Cartazes produzidos na atividade.

Page 74: HORIZONTES - Universidade São Francisco · HORIZONTES Revista Semestral do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco Volume 30 Número

74 Tatiana Souza de Camargo, Nádia Geisa Silveira de Souza

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 69-79, jul./dez.2012

Olhando o corpo

Esse foi o nome dado à terceira atividade,

composta também por três etapas. Na primeira

etapa, os integrantes do grupo deveriam observar

as imagens de corpo veiculadas em revistas

feminina – Boa Forma, Corpo e Beleza, Celulite,

Saúde da Mulher, Capricho – e em seguida

discutir como tais imagens levam cada um/a a

pensar sobre seu corpo e a se sentir . Deveriam

anotar pensamentos e sentimentos que lhes

ocorreram ao olhar as imagens de corpo e as

“receitas” de saúde e beleza presentes nestas

revistas.

Em seguida, na segunda etapa, deveriam

dizer se, caso pudessem, gostariam de modificar

algo no seu corpo ou no modo de cuidar de si.

Cada um deveria anotar o que mudaria no seu

corpo.

Na terceira etapa, deveriam discutir sobre

qual seria a idéia de corpo “ideal” para o grupo.

Em seguida, deveriam produzir um cartaz

construindo o modelo de corpo ideal com recortes

de revistas que mostrem partes do corpo que

atendam a tal modelo.

Neste grupo, todas as integrantes eram

mulheres. Todas elas disseram não se identificar

de nenhuma forma com as figuras femininas

mostradas nas revistas. Disseram sentir-se

enganadas ao olhar as promessas de dietas e

Figuras 5 – 10: Atividade “Escolhas alimentares”

Figuras 5, 6, 7 e 8 (acima): Montagem do prato de almoço.

Figuras 9 e 10: Observação e discussão dos rótulos de alimentos.

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Corpo, comida e cultura: Discussão e problematização os padrões contemporâneos de beleza/saúde no ensino 75

de ciências

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 69-79, jul./dez.2012

relatos presentes nas revistas. Além disso,

relataram não ter vontade e condições financeiras

para buscar o “corpo perfeito”, e que para elas

isso não representava um objeto de preocupação.

Apesar disso, quando questionadas a

respeito das modificações que fariam em seus

corpos e nos cuidados consigo, elas buscam

aproximar-se do padrão de saudável/belo. Relatam

que gostariam de ter hábitos alimentares mais

saudáveis, que gostariam de poder comer de tudo

sem engordar e de que gostariam de ter mais

disciplina para praticar atividades físicas.

Nosso principal objetivo com essa

atividade era o de tornar visíveis os padrões

veiculados pela mídia, especialmente em revistas

femininas, que cotidianamente nos interpelam

produzindo sentimentos, atitudes, valores, modos

de pensar acerca do nosso corpo, direcionando em

certa medida o modo como pensamos e agimos

em relação ao nosso corpo.

Além disso, ao mostrar as implicações

dos padrões de beleza e saúde relacionados ao

cuidado do corpo, pretendíamos chamar a atenção

para e problematizar os efeitos de tais discursos,

os quais muitas vezes geram excessos de

exercícios físicos, de cirurgias plásticas, de

Figuras 11 – 13: Atividade “Olhando o corpo”

Figura 12: Observação, leitura e discussão das revistas.

Figuras 11 (acima à esquerda) e 13 (abaixo): Cartazes

“Corpo Ideal” produzidos na atividade.

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76 Tatiana Souza de Camargo, Nádia Geisa Silveira de Souza

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 69-79, jul./dez.2012

consumo de medicamentos emagrecedores, de

restrições alimentares, e de sentimentos de

insatisfação consigo, que também acarretam

efeitos de âmbito biológico. Nesse sentido, cabe

citar que existem autores da área da Medicina e

Bioquímica cujas pesquisas apontam que boa

parte dos efeitos comumente associados ao

excesso de peso, como a hipertensão e o diabetes,

podem ter relações causais com o estresse gerado

pela insatisfação corporal – que ativa no

organismo uma cadeia de reações prejudiciais

(MUENNIG et al, 2008).

Essa atividade nos permitiu, ainda,

discutir sobre como a beleza, velhice, juventude,

saúde, feminino/masculino, estilo de vida, estética

(Cosmetologia, Medicina Estética) aparecem

nesses materiais pedagógicos. Dessa forma, tal

atividade visou a mostrar as profundas relações

entre as práticas sociais e a constituição e

funcionamento do corpo, assim como trazer a

necessidade de serem realizadas leituras críticas

de imagens e anúncios publicitários e reportagens

nas práticas escolares, uma vez que tais materiais

interpelam e ensinam modos de pensar, agir e

sentir com relação ao corpo e a si mesmo.

Considerações Finais

Nesse artigo buscamos problematizar a

maneira tradicional como o corpo é ensinado na

educação escolarizada – como um organismo

biológico. Nele relatamos nossa experiência na

realização de oficinas para estudantes de

pedagogia, nas quais buscamos mostrar a

importância de trabalhar o corpo como uma

construção biossocial em constante

transformação. As atividades desenvolvidas nestas

oficinas tinham como temáticas a alimentação e

suas relações com a constituição dos corpos,

discutidas sob vários aspectos, como a construção

dos gostos, o aprendizado de hábitos alimentares,

as dietas emagrecedoras, entre outros.

Salientamos que, apesar de desapercebida,

a insatisfação corporal é experimentada desde a

infância; e, na escola, parece ter efeitos

amplificados (CAMARGO, 2012). Neste sentido,

Wann (2009) cita que, segundo um relatório da

Associação Educacional Nacional norte-

americana, a vida escolar para os estudantes com

excesso de peso é uma experiência de preconceito

contínuo, de discriminação desapercebida, e de

assédio quase constante. Desde o jardim de

infância até o colégio, os estudantes com excesso

de peso experienciam o ostracismo, o

desencorajamento e às vezes a violência.

“Frequentemente ridicularizados por seus pares e

desencorajados até mesmo por bem intencionados

profissionais da educação, os estudantes com

excesso de peso desenvolvem baixa autoestima e

têm horizontes limitados.” (WANN, 2009: XIX).

Ainda neste sentido, Weinstock e Krehbiel (2009:

124), afirmam que, “apesar de muitos sistemas de

discriminação terem sido elucidados e desafiados

nas últimas décadas, a aceitação social da

discriminação com relação ao excesso de peso

continua forte”.

Sendo assim, entendemos que a educação

escolarizada é um espaço privilegiado no

aprendizado de conhecimentos sobre o corpo e os

cuidados de si. No entanto, as práticas escolares,

especialmente aquelas relacionadas ao ensino de

ciências e de biologia, ao centrarem suas

abordagens na visão biológica de corpo – presente

nos livros didáticos e nos Programas escolares,

regida pelas disciplinas acadêmicas –, deixam de

incluir em suas discussões os saberes e

“conteúdos” produzidos por pedagogias que

ensinam “fora” do ambiente escolar. Essa tradição

escolar vem impedindo a produção de um outro

saber crítico e relevante para a vida das pessoas,

capaz de fazer frente às múltiplas “verdades” que

inscrevem e regulam os seus corpos.

Em virtude disso, percebemos a

necessidade de problematizar as noções

biologicistas de corpo e de contribuir para que se

pensem outras práticas escolares, capazes de dar

voz aos estudantes e de olhar criticamente os

efeitos das práticas sociais no modo de pensar das

pessoas. Para tanto, entendemos que se torna

necessário introduzir na sala de aula a concepção

de um corpo marcado pelas práticas, visto que é

nelas se adquirimos os sentidos atribuídos aos

gestos, aos sentimentos, aos objetos, às pessoas e

a si mesmos.

Todavia, isso exige o movimento de

interrogarmos sobre a possibilidade de produzir

outras formas de nos relacionarmos com os

alunos, os saberes, as matérias escolares. O que

talvez crie condições para construirmos outras

estratégias de ensino relacionadas às vidas das

pessoas, ou seja, o que se apresenta como uma

questão política para nós, professores.

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e controle do excesso de peso realizadas por

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Page 77: HORIZONTES - Universidade São Francisco · HORIZONTES Revista Semestral do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco Volume 30 Número

Corpo, comida e cultura: Discussão e problematização os padrões contemporâneos de beleza/saúde no ensino 77

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78 Tatiana Souza de Camargo, Nádia Geisa Silveira de Souza

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Corpo, comida e cultura: Discussão e problematização os padrões contemporâneos de beleza/saúde no ensino 79

de ciências

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 69-79, jul./dez.2012

Notas

1 Agradecemos aos professores e alunos que, gentilmente, participaram das oficinas e cederam suas imagens

para a construção deste artigo.

2 Índice de Massa Corporal (IMC), eleito em 1994, pela Força-Tarefa Internacional sobre Obesidade, como

o índice mais adequado para o diagnóstico de sobrepeso e obesidade entre adultos, tendo seus valores

posteriormente adaptados para o uso em indivíduos a partir dos dois anos de idade. O IMC é calculado

dividindo o peso do indivíduo (em quilogramas) por sua altura ao quadrado (em metros). A partir do

resultado numérico obtido com esse cálculo, são definidas as seguintes categorias: IMC < 18.5 = baixo-

peso; 18, 5,< IMC < 24,9 = peso normal; 25 < IMC < 29,9 = sobrepeso; 30 < IMC< 34,9 = obesidade grau

I; 35 < IMC < 39,9 = obesidade grau II; 40 < IMC = obesidade grau III, a chamada obesidade mórbida.

Tais categorias foram definidas a partir dos resultados numéricos obtidos do estudo de uma população

referência internacional (DUNCAN et al, 2004).

Sobre as autoras:

Tatiana Souza de Camargo: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

Nádia Geisa Silveira de Souza: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

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80

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81

*Endereço eletrônico: [email protected].

**Endereço eletrônico: [email protected].

Educação pública: currículo e formação de jovens alunas no Ensino Médio1

Leny Cristina Soares Souza Azevedo*

Ligia Karam Corrêa de Magalhães**

Resumo

Este artigo investiga a configuração do currículo no curso de formação de professores em nível médio, em

uma escola pública estadual. Os dados foram coletados em 2010, 2011 e 2012, por meio de questionários e

entrevistas, com 52 jovens. A partir dos depoimentos, foi possível identificar as expectativas em relação à

ampliação dos estudos, a introdução no mundo do trabalho, a cultura escolar vivenciada e as lacunas e

impasses desse processo de formação. O texto dialoga com o contexto do ensino médio modalidade normal,

com as políticas de formação docente, situando a realidade específica da instituição. Evidencia o divórcio

entre a formação oferecida ao futuro professor da Educação Básica e as necessidades de profissionalização

da carreira docente, em que seja conferido aos egressos o propalado protagonismo no exercício da profissão,

onde os trabalhos sejam pensados em contextos sócio/político/econômico/cultural em que acontecem.

Palavras-chave: currículo; ensino médio; formação de professores, trabalho docente.

Public Education: curriculum and female students education in the high school

Abstract

This article discusses research conducted with female students in the city of Rio de Janeiro about the way the

mid-level curriculum has been setting a public school in a training course for teachers. The data were

collected in 2010, 2011 and 2012, through questionnaires and interviews with 52 young people. From the

interviews, it was possible to identify and engage with the expectations for expansion studies, introducing at

work, school culture experienced and gaps and bottlenecks in this process. The text speaks to the high school

level normal mode, with training policies, locating the specific reality of the institution, highlighting the

divorce between the needs of the school and the professionalization of youth and an educational system that

does not offer the possibilities that enable the young, of fully, to cope with life's concrete work in public

schools.

Keywords: curriculum, high school, teacher training, teaching work.

Introdução

Este texto tem como objeto de estudo a

formação de professores no Ensino Médio Normal

no Rio de Janeiro. Acreditamos que a discussão

acerca do trabalho seja uma das grandes

preocupações no campo das políticas públicas

para a juventude, mostrando a necessidade de que

haja projetos e ações concretas, no presente, tendo

em vista a diminuição da exclusão desse grupo

social e da limitada oferta de oportunidades no

mundo do trabalho.

Assim, a proposta de formar professores

no Ensino Médio (EM), Modalidade Normal,

configura-se questão polêmica. A Resolução do

CNE/CEB n.1, de 20/08/2003, que, de acordo

com Brzezinski (2008), dispõe sobre os direitos

dos profissionais da educação com formação de

nível médio, é instrumento que reafirma e

complementa o prescrito no art. 62 da LDB, que

admite “como formação mínima para o exercício

do magistério na educação infantil e nas quatro

séries iniciais do ensino fundamental, a oferecida

em nível médio, na Modalidade Normal”.

A autora discute que, sob a ótica do

direito pessoal e intransferível, a resolução

representa avanço, considerando que resguarda,

por toda a vida, o direito do professor de ser

formado em curso profissionalizante do EM. Sob

a perspectiva do movimento que defende a

formação em nível superior do professor nas

séries iniciais do ensino, isso representa um

retrocesso. Esse nível de formação serve como

obstáculo à busca, pelos jovens, do curso de

Pedagogia. Diante dessas análises, interessa-nos

aprofundar as aspirações da juventude que escolhe

esse curso profissionalizante para apreendermos o

sentido dessa profissionalização. Para isso, faz-se

necessário recorrer aos elementos que determinam

as políticas de formação, entre estas as condições

históricas de sua produção, as correlações de força

em presença e as perspectivas teóricas partilhadas.

Moraes e Alavarse (2011) analisam a

importância do EM como uma “etapa da educação

básica que, de acordo com a Emenda

Constitucional (2009), tem sido objeto de um

amplo conjunto de trabalhos que revelam, [...]

toda a complexidade social, política e

pedagógica” (p.808).

Para empreender a discussão dessa

Page 82: HORIZONTES - Universidade São Francisco · HORIZONTES Revista Semestral do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco Volume 30 Número

82 Leny Cristina Soares Souza Azevedo, Ligia Karam Corrêa de Magalhães

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 81-93, jul./dez.2012

modalidade de ensino, analisamos os depoimentos

recolhidos em 2010, 2011 e 2012, em uma

pesquisa realizada numa instituição pública

estadual, envolvendo cinquenta e duas

entrevistadas. A discussão norteou as escolhas

feitas por um curso profissionalizante, as políticas

para o Ensino Médio, a cultura escolar vivenciada

através da organização curricular e as expectativas

e perspectivas das jovens alunas para se

desenvolverem no mundo do trabalho e dos

estudos. Destacam-se estudos realizados sobre

“ser jovem”, a legislação, a cultura escolar e a

formação das alunas na escola.

Ressaltamos, assim, que a opção de

realizar esse estudo com alunas concluintes do

Ensino Médio Modalidade Normal, nesta

instituição de ensino do Rio de Janeiro, situada na

região central, justifica-se por alguns motivos. O

primeiro pelo fato de esse momento se configurar

historicamente como profícuo para as discussões

acerca da retomada, no Estado do Rio de Janeiro,

do ensino médio para a formação de professores,

trazendo suas “velhas” limitações e perspectivas.

Outro motivo diz respeito às razões que levam

jovens alunas a optarem por realizar um curso de

profissionalização docente, pois é pertinente

conhecer algumas das expectativas e projetos que

direcionam essas jovens para o curso de formação

docente, e não o de EM regular.

Quanto à opção por jovens alunas do

terceiro ano do curso, explica-se como tentativa

de verificar as aspirações mais latejantes no que

tange à inserção no mundo do trabalho. Também

nos parece relevante trazer as observações, as

entrevistas e discussões feitas pelas alunas do EM,

no qual se registrou o contexto educacional da

instituição e a busca de compreensão do complexo

universo da cultura escolar, que abrange a

formação dos futuros profissionais da educação

articulada às analises sobre a necessidade de

construir alternativas pedagógicas para os

primeiros anos da Educação Básica, tendo em

vista a continuidade e as mudanças na carreira

docente.

Diante dessas ponderações,

desenvolvemos a análise dessa temática,

apontando para elementos constitutivos do cenário

sociopolítico e econômico no qual se desenvolve a

educação para jovens das camadas mais pobres da

população. Com esse entendimento, organizamos

o texto em partes que se integram e dão

organicidade à reflexão, enfocando alguns

movimentos: (1) a retomada das discussões, a

respeito de “ser jovem” reportando-se, aos estudos

no atual processo de debates sobre a necessidade

de procurar conhecer as realidades, práticas,

questões políticas sobre jovens que frequentam a

escola de EM; (2) o questionamento das políticas

para a formação dos professores, focando a

cultura escolar e a organização curricular para o

ensino médio na modalidade normal; e, (3) as

considerações finais: aproximações e

distanciamentos entre as contribuições oferecidas

pela instituição investigada e as expectativas das

jovens. Impõe-se, assim, a necessidade de

políticas educacionais consoantes com os

princípios democráticos constituintes das práticas

sociais emancipatórias e que ofereçam formação

docente de forma a potencializar a influência da

escola nas trajetórias sociais de pessoas jovens.

Jovens Alunas: escola, continuidade dos

estudos e trabalho

Que significa ser jovem no Brasil, hoje?

Quem são os jovens brasileiros? Quais são seus

modos de vida, gostos, projetos, sonhos? Que

esperam do futuro?

Falar e escrever sobre os jovens na

atualidade é tarefa desafiante. Em primeiro lugar,

porque estamos diante de uma população

composta por aproximadamente 54 milhões de

brasileiros2. Em segunda instância, caminhando

para além do contingente populacional, deparamo-

nos com uma enorme diversidade existente em

torno da juventude brasileira, diversidade que se

concretiza nas condições sociais e econômicas,

nas diferenças geográficas, de gênero, culturais,

religiosas, dentre inúmeras outras.

Para dar conta dessas discussões, esse

texto procura analisar as representações sociais de

jovens alunas que estudam numa escola pública

estadual, discutindo as trajetórias sociais e

escolares associadas à escolha de um curso

profissionalizante e as perspectivas de introdução

no mundo do trabalho, explorando os sentidos

atribuídos a educação, ao trabalho e a formação

As múltiplas transformações existentes

nos cenários econômico, político e social a partir

da década de 1970, intensificando-se nos anos de

1980 e 1990 até os dias atuais, vêm eclodir de

forma incisiva. Tais processos provocam inúmeras

mudanças no mundo do trabalho e repercutem

diretamente no âmbito educacional,

especificamente no Ensino Médio, visto que é

nessa etapa que diversos segmentos juvenis

concluem a chamada Educação Básica. A

educação, assim, volta-se às demandas do mundo

do trabalho, com a árdua tarefa de propiciar a

aproximação dos seus sistemas de ensino às

necessidades do mundo produtivo.

No que concerne as jovens do sexo

feminino, observamos a preocupação das mães

com a escolarização de suas filhas, o que se traduz

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Educação pública: currículo e formação de jovens alunas no Ensino Médio 83

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 81-93, jul./dez.2012

na mobilização para efetivar a matrícula numa

escola que tenha boa visibilidade, qualidade do

ensino ministrado e a segurança de seu público.

De acordo com as jovens entrevistadas essas são

as razões principais dos familiares que justificam

a opção pela “escola boa” como uma estratégia de

investimento futuro, na busca da

“empregabilidade”.

Para Moscovici (2009), pessoas e grupos

criam representações no decurso da comunicação

e da cooperação. Representações não são criadas

por um indivíduo isoladamente. Uma vez criadas,

elas “adquirem vida própria, circulam, se

encontram, se atraem e se repelem e dão

oportunidade ao nascimento de novas

representações, enquanto velhas representações

morrem” (p. 41). É nesse movimento que é

possível estudar as representações, suas

propriedades, suas origens e seu impacto.

A proposta epistemológica que aqui se

constrói entende a realidade como constructo

social, e a temática do trabalho docente se

constitui como objeto de diálogo entre

pesquisadoras e jovens que escolheram a escola

normal para completarem sua formação no Ensino

Médio.

A partir dessas considerações, surgem

alguns questionamentos:

Como se delineou a trajetória e as

vivências de jovens alunas no espaço

escolar?

Qual têm sido a influência e a

contribuição da instituição escolar para as

jovens alunas em relação à entrada no

mundo do trabalho?

Acredita-se que a discussão acerca do

trabalho seja uma das grandes preocupações no

campo das políticas públicas para a juventude,

mostrando a necessidade de que haja projetos e

ações concretas no presente, tendo em vista a

diminuição da exclusão desse grupo social e da

limitada oferta de oportunidades no mundo do

trabalho.

Os estudos realizados sobre a formação do

professor, de acordo com Gatti e Barreto (2009),

sugerem que,

[...] de um lado, a representação do

magistério como vocação, quando

evocada como substituta dos saberes

especializados que informam a

profissionalidade docente, tende a

minimizar a importância do avanço dos

conhecimentos e da pesquisa sobre os

saberes dos professores e sobre os

próprios conhecimentos das áreas de

referência do currículo da educação

básica. De outro, a persistência da

representação do trabalho docente como

vocação pode ser um indicativo de

recontextualização dos atributos que

acompanham o conceito, como a

afetividade, a intuição e a criatividade do

ato educativo (p.291).

Compreende-se, assim, a importância de

discutirmos as representações que ainda

permanecem subjacentes aos modelos de

formação com forte herança histórica: por

exemplo, as representações como “professora

primária” e como “professora polivalente”.

Certamente, formar significa articular identidade

pessoal e profissional, e é pertinente procurar

compreender os significados dos projetos de vida

dos jovens alunos em relação às representações

que vão sendo construídas a respeito de ser jovem,

ser estudante e o lugar do trabalho na sua vida

pessoal e profissional.

As pesquisas realizadas nos anos de 2010

a 2012 registram a criação e recriação das

representações que seguem desempenhando um

papel de reprodução social e cultural, o que pode

ser observado em dias de comemorações escolares

em que os alunos se vestem de saia azul marinho

com pregas, meias brancas, camisa branca e

sapato preto. Ao observar essas jovens vestidas

com uniforme, rememoramos as normalistas, que

marcaram com suas vestimentas o inicio do século

XX. Muitas dessas jovens eram provenientes das

classes médias e buscavam a formação de

“professoras primárias”, que foi objeto de sonhos

e de orgulho nas capitais importantes do país.

Assim, no imaginário da época foi-se construindo

a protagonização da escola como lugar digno da

instauração de uma nova ordem para efetuar o

Progresso – educar as crianças brasileiras.

Visualizamos a complexidade que

envolve as relações políticas, materiais e

educacionais no passado e que deixou vestígios

nas propostas, discursos, interesses, sonhos e

sociabilidades na concretização da formação

docente. Com toda a carga histórica, que motivos

desencadearam a escolha pela escola de

magistério na atualidade?

As jovens entrevistadas têm de 17 a 24

anos de idade e desenvolvem sua formação, como

já mencionado anteriormente, em escola pública

estadual que oferece o EM modalidade normal.

Nesta parte do texto, consideraremos três

dimensões para análise: a influência da família e

vizinhança na escolha da escola; os sentidos

atribuídos ao trabalho e a formação pedagógica na

escola.

Em entrevistas recolhidas no período

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84 Leny Cristina Soares Souza Azevedo, Ligia Karam Corrêa de Magalhães

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 81-93, jul./dez.2012

investigado constatamos que a escolha pela escola

teve como fator determinante as ponderações

feitas pelas mães que defenderam a continuidade

dos estudos, a terminalidade do EM e a

possibilidade de serem introduzidas num ambiente

de trabalho com maiores vantagens que nas

atividades que as jovens desenvolvem atualmente.

Nas entrevistas, constatamos que 21% das jovens

acreditam que será possível conciliar a vida

doméstica, a criação de filhos no futuro e a

carreira docente. Os exemplos mais comuns dessa

perspectiva de vida são da vizinhança ou dos

depoimentos das professoras durante as aulas.

Para essas jovens a vizinhança teve um

papel importante na escolha da escola por já terem

tido suas filhas estudado nessa instituição. A

escola está localizada no centro da cidade, onde

ônibus, trem, metrô facilitam o deslocamento. A

segurança é outro ponto importante mencionado.

Não existe registro de violência na instituição, e

as professoras trabalham há bastante tempo na

escola. Quanto aos gestores, apontam que eles se

comunicam com os alunos e famílias de forma

eficiente, pois são recebidos e ouvidos. Também

foi registrado que há poucas faltas de professores

e se prioriza o estudo e disciplina na escola.

Todos esses fatores motivam as famílias e

evidenciam o envolvimento da comunidade

escolar na instituição. As famílias participam das

festividades, formaturas e existe representação de

mães nos conselhos escolares. Com base nesses

dados, percebemos a atuação e influência das

mães e vizinhança no acompanhamento da

escolaridade das alunas. Segundo Ribeiro e

Koslinki (2010), adolescentes que residem em

vizinhanças em que a maior parte das pessoas

termina o EM e alcança o ensino superior se

sentirão compelidos a fazer o mesmo (p.126).

Outro dado importante diz respeito ao

sentido atribuído ao trabalho e a formação pelas

jovens, pelas famílias e escola. Os relatos abaixo

mostram esse reconhecimento:

(...) gosto de comprar roupas, sapatos,

maquiagem e só consigo isso

trabalhando. Estar estudando é porque

quero melhorar de vida, ter casa própria,

pode viajar? (Aluna 3ª série A/2011).

Todos na minha casa trabalham. Minha

mãe trabalha na zona sul do Rio há muito

tempo numa casa de família. Eu trabalhei

por lá um tempo ajudando a tomar conta

das crianças, mas hoje eu estou numa loja

vendendo roupas femininas. É puxado

porque tenho que trabalhar aos sábados,

então o estudo e o trabalho no futuro

como professora poderá garantir eu ter

folgas no sábado e domingo (Aluna 3ª

serie C/ 2010).

Minha mãe e meu pai estudaram pouco e

por isso repetem muito a importância de

eu estar estudando. A escola me cansa um

pouco, mas eu posso ter mais liberdade,

viajar, comprar o que quero com o

trabalho (Aluna 3ª serie B/ 2011).

Eu não sei se quero ser professora, mas

quem sabe consigo depois ir para uma

faculdade e vou melhorando e ter um

trabalho mais remunerado? (Aluna 3ª

série A/ 2010).

Não desejo seguir a carreira de

magistério. Vim para essa escola por

insistência dos meus pais, mas quero

fazer enfermagem. Na minha classe

poucas colegas pensam em ser

professoras. Vão fazer vestibular para

direito, administração de empresas,

psicologia (Aluna 3ª serie B/ 2011).

Para concluir o ensino médio é mais fácil

aqui porque as disciplinas matemática,

química, física e outras não fazem parte

do currículo do magistério. Essas

disciplinas eu e minhas colegas temos

mais dificuldades e nossas famílias acham

importante fazermos o ensino médio. Eu

quero arrumar um lugar melhor para

trabalhar e fazer faculdade de turismo

(Aluna 3ª serie B/ 2011).

Cheguei no colégio com duas amigas e já

formamos um grupo que se mantem até

hoje. O trabalho em grupo facilita para

quem trabalha e estuda (Aluna da 3ª serie

C/ 2012).

De acordo com Spósito (2003), haveria

nos dias atuais uma maior atração dos símbolos

juvenis – marcas, roupas, músicas etc, o que

corresponde ao primeiro “depoimento da aluna da

3ª serie A”. Também está presente a representação

de crescimento pessoal, de melhoria de vida e de

acesso aos bens de consumo por meio do trabalho,

nos demais registros. Ao mesmo tempo haveria

uma certa decepção em relação ao universo

escolar. Nos estudos de Madeira (1986) são

citados a importância do trabalho entre as

camadas populares como um valor cultural e das

famílias como transmissoras de uma ideologia do

trabalho, sendo este um provedor de status na

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Educação pública: currículo e formação de jovens alunas no Ensino Médio 85

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 81-93, jul./dez.2012

hierarquia familiar. O trabalho estaria no centro

dos projetos de vida e das estratégias de

socialização e reprodução das camadas mais

pobres.

Reconhecemos que o trabalho é

importante, e não apenas sob a perspectiva da

sobrevivência mas também por possibilitar outras

vivências da condição juvenil, tais como acesso ao

lazer, ao consumo e a realização pessoal em

muitas outras áreas. Assim, é necessário haver

pleno reconhecimento de que o trabalho é um

direito dos (as) jovens e um componente essencial

à sua formação como indivíduo e cidadão. Mas as

contradições e dilemas dessa oportunidade

educacional no EM precisam ser investigadas,

visando a ampliar a reflexão sobre as relações

entre juventude, trabalho e educação e, sobretudo,

sobre os princípios e fundamentos da formação

(FREITAS, 2007, p.150-152).

Na última década, constatamos a

importância da escola média em propiciar opções

para os estudantes, abrindo-se para a diversidade,

construindo uma escola que incorpore a cultura

própria da juventude que a compõe, quer pelas

possibilidades de “formação ética e profissional,

quer por ser idealizada como lócus especializado

de transmissão de conhecimentos, vale ouvir e

conhecer os jovens e saber o que pensam dela”

(ABRAMOVAY; CASTRO, 2003).

A escola pesquisada atende a 730 jovens

do ensino médio, sendo no turno da manhã 6

turmas de 1ª série e 6 turmas de 2ª serie e, no

turno da tarde, 6 turmas de 3ª serie e 6 turmas de

4ª serie. Cada classe de 3ª série têm em media 30

alunos, e em entrevistas feitas com os professores

e os coordenadores da instituição foi declarado

que boa parte das alunas são encaminhadas para a

escola pelas mães, por acreditarem que a

frequência ao ensino médio relacionada a uma

formação profissional representa uma

possibilidade concreta de inserir-se no mercado de

trabalho. O quadro de funcionários trabalhando

entre 2010 e 2012 constava de 99 professores, 3

funcionários de apoio, 13 funcionários

terceirizados para a limpeza, 1 diretora geral, 2

diretoras adjuntas e 2 coordenadores pedagógicos.

Quanto ao desenvolvimento de uma

profissionalização, entrevistamos 52 alunas.

destas, 26% revelam insegurança e

desconhecimento sobre os cursos oferecidos no

ensino superior e dizem “não gostar e não querer

ser professor”. Enquanto que, para 32% dos

jovens na 3ª serie, estudar no colégio pode ser

uma garantia para o ensino superior; 16% revelam

que pensam em investir no trabalho docente; 12%

querem investir num emprego melhor; 14% estão

no mercado de trabalho e esperam melhorias com

a conclusão do EM. Nos depoimentos aparece de

forma constante a crença de que poderão entrar

numa universidade e conseguir desenvolver uma

profissão. Outros revelam baixa autoestima e não

acreditam que o diploma do EM poderá contribuir

para o ingresso numa universidade ou profissão.

Os depoimentos abaixo ilustram esse contexto.

Eu vejo que toda minha formação na

escola pública não foi boa. Faltavam

professores e eu gostava mesmo era de

ficar conversando com meus amigos. Aqui

também tem professores que procuram

estimular, mas ainda sinto que não estou

pronta para um concurso, um vestibular.

Não me sinto capaz (Aluna 3ª série

A/2012).

Trabalho numa loja no meu bairro e

minha mãe quer que eu consiga um

trabalho melhor e ate consiga ir para

uma faculdade. Sempre estudei na escola

publica e o ensino é muito fraco, os

professores faltam muito e essa escola

tem uma preocupação com as notas, o

estudo. Eu não me interesso por ser

professora porque é um trabalho muito

desvalorizado e cansativo, mas posso

depois tentar fazer turismo,

administração, sei lá... menos ser

professora (Aluna da 3ª serie A/2010).

Eu estudo um pouco e quero ser

professora da educação infantil. Gosto de

crianças e no estagio me saio bem nas

atividades e brincadeiras com as crianças

(Aluna da 3ª serie C/2011).

Os depoimentos sintetizam que, no geral,

existe uma perspectiva dessas jovens em finalizar

o EM, conseguir ingressar no universo do trabalho

e dar continuidade aos estudos na universidade.

Também revela reconhecimento da precariedade

da escolaridade na sua trajetória escolar. Essas

expectativas vão ao encontro das pesquisas e

estudos realizados por Leão et al. (2011), ao

analisar os depoimentos de jovens pesquisados no

Estado do Pará que parecem indicar

[...] que a constituição da condição

juvenil vem ocorrendo de forma mais

complexa, com o jovem vivendo

experiências variadas e, às vezes,

contraditórias, expostos que estão a

universos sociais diferenciados, a laços

fragmentados, a espaços de socialização

múltiplos, heterogêneos e concorrentes.

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86 Leny Cristina Soares Souza Azevedo, Ligia Karam Corrêa de Magalhães

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 81-93, jul./dez.2012

Constitui-se como um ator plural, produto

de experiências de socialização em

contextos sociais múltiplos, expressando

os mais diferentes modos de ser jovem

(p.1079).

Seja como for, cabe a pergunta: Como a

escola responde a formação e expectativas desses

jovens? Em que medida a organização curricular

está comprometida com o ensino crítico?

O que foi possível perceber na pesquisa

realizada nessa Instituição é que parece ter-se

constituído um consenso entre os gestores e

professores quanto à ênfase excessiva as notas dos

alunos e o lugar alcançado pela escola nas provas

nacionais. Os murais em locais diversos da

instituição mostram os resultados alcançados e os

incentivos à melhoria nas avaliações internas e

externas. As propostas da gestão são sempre de

recomendações quanto ao estudo, elaboração dos

exercícios. e isso acaba acirrando a competição

entre as classes.

Os alunos são incentivados pelos

professores e coordenadores a elaborar murais

dentro e fora da sala de aula para exposição dos

trabalhos nas disciplinas e as medias alcançadas

nos exames. Essa confecção de murais ocorre

durante o período de aulas, o que causa dispersão,

pois os alunos conversam enquanto os professores

estão ministrando as aulas ou dedicam um número

grande de horas ao trabalho extra classe na

montagem dos murais, não participando das

atividades desenvolvidas tanto nas salas de aula,

quanto do estudo e atividades extraclasse.

De outro lado, o incentivo ao estudo e à

manutenção das médias foram consideradas como

um reforço na reprodução dos conteúdos e na

manutenção do status da escola, por ser

reconhecida, principalmente pelos pais, como uma

“escola forte quanto ao ensino e a tradição”,

preservando o controle e a disciplina entre os

alunos.

Nos murais da escola estão grandes

painéis e são exibidas faixas na entrada,

mostrando o resultado de vestibulares anteriores e

o número de alunos que ingressaram em

universidades públicas da cidade do Rio de

Janeiro. Nos relatórios dos pesquisadores foram

registrados o excessivo valor aos prêmios

recebidos pela Secretaria Estadual, exibindo e

reafirmado uma qualidade que é estimulada pela

gestão publica. A qualidade vai se legitimando

pelo horizonte restrito da competitividade, cuja

medida é a colocação no ranking das avaliações

externas.

A avaliação da qualidade por indicadores

de desempenho constitui-se em uma das

estratégias gerenciais de controle dos

resultados e obriga estados e municípios

a estabelecerem contratos de gestão,

pelos quais será analisada a sua

performance em relação aos objetivos

pretendidos no campo educacional

(Castro, 2009,p.32).

Com base em Castro (2009), é possível

constatar a lógica gerencialista adotada pela

Instituição, cuja perspectiva empresarial aponta

resultados para a educação, onde há o

deslocamento do foco da qualidade educacional

para o foco da eficácia do processo, ou seja, obter

o máximo de resultado com o mínimo de custo. A

exposição dos resultados, assim como as

atividades comemorativas para realçar as metas

alcançadas tem a ver com estratégias de gestão, na

qual os gestores divulgam os serviços do colégio.

Também de acordo com Castro (2009) essa

responsabilização dos gestores mostram os

resultados da logica gerencial de prestar contas

sobre os serviços prestados.

Esse modelo de gerenciamento está em

consonância com o modelo Estado- empresário,

que tem como meta promover condições

adequadas para a eficiência pública, sendo

possível perceber que há um modelo de

competências,

Foi possível perceber que há um modelo

de competências, que insere dentro do processo de

aprendizagem “alguns conhecimentos e

habilidades que propiciem a formação de alunas

adaptadas às “imprevisões e pretensos desafios do

processo produtivo” que, de acordo com Gabriel

(2008), reforçam dimensões cognitivo –

comportamentais, capazes de adequar as

subjetividades às características, tais como a

implicação, iniciativa, a concorrência.

Para fazer circular esse conhecimento que

está previsto no currículo, a escola organiza-se em

dois turnos, e cada um deles têm um coordenador

responsável pelas orientações pedagógicas e

administrativas aos alunos, professores e

funcionários. Nas pesquisas, foram registradas a

falta de comunicação entre os coordenadores dos

diferentes turnos, o que dificulta a coesão das

ações. Nesse cenário, a busca da “qualidade

educacional” pode ser identificada com a

permanência do aluno na escola e, as medidas

tomadas quanto ao processo de ensino

aprendizagem apontam para a preocupação com a

melhoria da eficiência e eficácia do sistema de

ensino (COSTA, 2009, p.47).

Há um grande investimento da escola nas

atividades esportivas, e os professores incentivam

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Educação pública: currículo e formação de jovens alunas no Ensino Médio 87

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 81-93, jul./dez.2012

a participação das alunas, apesar de os materiais

nem sempre estarem disponíveis no momento das

aulas, o que acarreta atrasos para o seu início.

Uma quadra poliesportiva aberta é utilizada para

as aulas, e outra quadra fechada, chamada de

“Multimeios”, é onde se realizam as festas,

apresentações dos discentes planejadas pelos

professores de artes como teatros, recitais ou de

outros projetos desenvolvidos durante o ano de

forma interdisciplinar ou não. Algumas peças

teatrais são ensaiadas pelos alunos sem a

mediação dos professores, e esses alunos

elaboram as coreografias e divulgam as

apresentações nos murais.

Observa-se, assim, que em geral as

práticas pedagógicas desenvolvidas na escola de

ensino médio se apresentam eivadas por um certo

pragmatismo, o que implica repensar a lógica de

organização e participação na escola, pois

evidencia-se a ampliação de “eventos”

esporádicos em detrimento de projetos com

práticas educacionais mais críticas.

Cultura escolar e organização curricular:

pendências políticas e pedagógicas

Reformas educacionais e especialmente as

relativas à formação de professores vêm sofrendo

profundas transformações desde a década de

1990, impulsionadas pelas recomendações dos

organismos internacionais aos países periféricos,

estabelecendo uma reestruturação em consonância

com o processo de um “novo capitalismo”, que,

por sua vez, institui a necessidade de um novo

perfil de trabalhador, a partir do qual se generaliza

o movimento de implantação de um novo modelo

de formação.

A concepção de educação é a de um

“novo homem”, cujo mote de sua formação será a

de ser capaz de: flexibilidade, empregabilidade,

multifuncionalidade e polivalência, bases para a

capacidade de adaptação do indivíduo à nova

morfologia do trabalho” (ANTUNES, 2005, p.13),

da abertura das economias, da mundialização do

capital. Nesse sentido, a educação profissional

promove a individualização da formação do

trabalhador, pelo qual se indica que cada um é

responsável na busca de competências a serem

alcançadas com o desenvolvimento de habilidades

básicas e específicas, na procura de inserção no

mercado de trabalho.

Nesse sentido, as mudanças educacionais

têm sido as palavras de ordem para o mundo

vivido, e um dos exemplos disso pode ser

constatado com o previsto na Lei n. 11.274/2006,

que é motivo de preocupação e perplexidade, em

face do despreparo do professor para atender às

exigências da reestruturação do ensino

fundamental para nove anos e das mudanças na

educação infantil instituídas formalmente em

2006 (BRZEZINSKI, 2008p. 180). Cabe alargar a

abordagem, considerando os problemas concretos

vivenciados pelas jovens que frequentam o ensino

médio e as reais possibilidades de inserção

profissional que estes podem vislumbrar.

Ainda que a Lei 11.274/2006 retrate a

intenção do MEC/SEB/DPE/COEF de construir

políticas indutoras de transformações

significativas na estrutura da escola, na

reorganização dos tempos e dos espaços escolares,

nas formas de ensinar, de aprender, de avaliar,

implicando a disseminação das novas concepções

de currículo, conhecimento, desenvolvimento

humano e aprendizado (BRASIL, 2006), é preciso

termos presente que a democratização do ensino

não se dá somente pela garantia do acesso, pois a

desigualdade e a exclusão ainda permanecem,

principalmente a exclusão gerada pelo não

aprendizado ou pelo aprendizado insuficiente.

Portanto a busca pela qualidade da

educação requer medidas para além do campo do

ingresso e da permanência, e ações capazes de

reverter a situação de baixa qualidade da

aprendizagem na educação básica.

Quando a Lei 11.274/2006 é promulgada,

instituindo o Ensino Fundamental com nove anos

de duração para atender crianças a partir dos seis

anos de idade, fica estabelecida uma política

pública afirmativa de equidade social

implementada pelo Governo Federal, com

intenção de: “oferecer maiores oportunidades de

aprendizagem no período da escolarização

obrigatória e assegurar que, ingressando mais

cedo no sistema de ensino, as crianças prossigam

nos estudos, alcançando maior nível de

escolaridade”. Essa política, que altera o Ensino

Fundamental de oito para nove anos, acirrou os

debates sobre o desenvolvimento dos currículos e

a defesa de se privilegiar as vivências das crianças

e sua cultura, criando condições para a

potencialização de valores democráticos.

Brzezinski (2008) aponta que há uma

crise na função da escola, uma vez que, ao longo

do século XX, estiveram presentes duas funções:

promover a apropriação do conhecimento

considerado socialmente relevante e formar para a

cidadania. Para a autora, as duas estão em crise,

seja pela dificuldade em realizá-las, seja pelo

anacronismo em relação aos tempos presentes.

Dessa forma, coloca-se em questão o

direito à educação e o posicionamento do Estado

frente à função da escola e a materialização de

políticas educacionais que garantam às jovens

alunas das camadas populares a ampliação, com

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88 Leny Cristina Soares Souza Azevedo, Ligia Karam Corrêa de Magalhães

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 81-93, jul./dez.2012

qualidade, da escolarização básica. Muitas

indagações emergem no que tange às jovens que

frequentam o Ensino Médio, modalidade Normal,

tais como: Quais seriam os interesses do Estado

em manter as jovens na escola? A quem

interessam as discussões sobre a escolarização

juvenil no Brasil? Não seria, até hoje, uma das

funções da escola ocupar o tempo livre dessas

jovens, para que não gerem problemas sociais,

como está presente no imaginário de muitos?

Para Mogarro (2005), a cultura escolar

apresenta uma natureza profunda e naturalmente

histórica. É constituída por um conjunto de

teorias, ideais e princípios, normas, regras, rituais,

rotinas, hábitos e práticas que nos remetem às

formas de fazer e pensar os comportamentos

sedimentados ao longo do tempo e que se

apresentam como tradições, regularidades e regras

partilhadas pelos atores educativos no seio das

instituições. (p. 105)

A produção dessa cultura e sua

compreensão exigem não só um trabalho de

elaboração e procura de fontes como também

segundo Felgueiras (2005) o recolhimento junto

às pessoas das simbolizações construídas, que

assumem processos dinâmicos de conflito e

mudança.

Refletir e propor uma cultura escolar mais

qualitativa exigirá adequação: na proposta

pedagógica, no material didático, na formação do

professor, bem como nas concepções de espaço-

tempo escolar, currículo, avaliação, infância,

aluno, professor, metodologias. Santos (2007),

contribui para o esclarecimento quanto ao papel

da cultura e do cotidiano frente aos compromissos

que a escola deve assumir. Assim, reflete a autora

“falar de currículo escolar coloca-nos diante de

um grande desafio. Como abordar essa temática

sem parecer um burocrata do sistema, disposto a

criar mais normas e regras, sem prestar atenção

em como elas funcionam ou não [...]” (p. 296).

Para a autora a participação dos estudos

culturais na alteração das políticas e das práticas

curriculares têm crescido no Brasil, pois

questiona-se a natureza dos currículos tradicionais

e cognitivistas, alertando para uma postura

acrítica que ocasiona o empobrecimento

curricular.

Para Dias e Lopes (2003), “a

recontextualização do currículo da formação de

professores baseada nas competências modifica o

foco da aprendizagem escolar, na qual os

conteúdos e as disciplinas passam a ter valor

apenas como meios para a constituição de

competências”.

Essa formação baseada em competências

traz consequências no/para o exercício do trabalho

docente, na medida em que são favorecidas e

reguladas as ações dos professores, através de

modelos de ensino e de avaliação a serem

seguidos. O centro do ensino deixa de ser o saber

do professor, que constitui a base para o

desenvolvimento de seu trabalho no processo de

ensino-aprendizagem, restringindo-se ao domínio

de competências. A esse respeito, Ramos (2001)

assinala que

A ideia que se difunde quanto à

pertinência do uso da noção de

competência pela escola é que tal noção

seria capaz de promover o encontro entre

trabalho e formação. No plano do

trabalho, verifica-se o deslocamento do

conceito de qualificação em direção à

noção de competência. No plano

pedagógico, testemunha-se a organização

e a legitimação da passagem de um

ensino centrado em saberes disciplinares

a um ensino definido pela produção de

competências verificáveis em situações

concretas e específicas. Essas

competências são definidas em relação

aos processos de trabalho que os sujeitos

deverão ser capazes de compreender e

dominar.

A organização pedagógica, as instituições

de ensino e formação têm-se organizado com base

em uma estrutura nuclear – classe, entendida

como um grupo de alunos que recebe em conjunto

e de forma simultânea o mesmo ensino. Trata-se

de um modo de organização que se consubstancia

no princípio de ensinar a muitos como se fosso a

um só (BARROSO, 2003). Essa solução

organizacional foi sendo naturalizada, e essas

contradições e dilemas marcam os antigos e novos

arranjos sociais e educacionais, que necessitam

ser observados e analisados para a contribuição

não somente do debate político, mas também para

dirigir algumas interrogações e reflexões, para

pensar os jovens e sua inserção no mundo do

trabalho docente. Sob a perspectiva do movimento

que defende a formação em nível superior do

professor nas séries iniciais do ensino, trata-se de

um retrocesso.

Observa-se que a organização curricular,

para o ensino médio modalidade normal,

compreende uma base comum e outra

diversificada, na qual a primeira busca a formação

geral, construindo competências e habilidades

básicas para a continuidade dos estudos e

preparação para o trabalho. A parte diversificada

está orientada para o atendimento as metodologias

do ensino, estágios e práticas didáticas bem como

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Educação pública: currículo e formação de jovens alunas no Ensino Médio 89

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 81-93, jul./dez.2012

procura atender as características regionais e

locais, permeando a cultura, a economia e a

política onde esta se insere, conforme

recomendações dos PCNs para o ensino médio.

Quanto ao Projeto Político Pedagógico, é de

responsabilidade da escola a construção.

De acordo com a pesquisa feita com os

gestores da instituição, o trabalho educativo tem

como objetivos desenvolver estratégias político

pedagógicas para a organização do ensino,

garantir a qualidade educativa e promover praticas

de gestão que visem estruturar a capacidade de

decisão quanto aos serviços essenciais da

educação. Esses propósitos estão registrados no

Projeto Politico Pedagógico construído em 2005

por parte dos professores e coordenadores e tem

sido avaliado e ampliado no inicio de cada ano

segundo depoimento da diretora. Esse PPP em

construção não permitiu uma consulta.

Com base nessas análises, interessa-nos

aprofundar as aspirações da juventude que escolhe

esse curso profissionalizante para apreendermos o

sentido dessa profissionalização e as políticas que

assinalam uma lógica que ambiciona promover

mudanças sociais através da educação, vinculando

expansão do ensino a discursos de valorização na

formação inicial docente. Para isso, faz-se

necessário recorrer aos elementos que determinam

as políticas de formação, entre estas as condições

históricas de sua produção, as correlações de força

em presença e as perspectivas teóricas partilhadas.

Consultando a Resolução SEEDUC n.

4.376 (18/12/2009), verifica-se que no corpo do

texto é mencionada a apreciação e aprovação da

adequação da Matriz Curricular do Curso para as

escolas de ensino médio da Rede Pública Estadual

de Ensino. Informa, ainda, que a Matriz Curricular

apresentada é o resultado do trabalho do Centro de

Estudos instituído em 2008 nas unidades

escolares, e que, durante a realização de encontros

na Secretaria de Educação, foram debatidos temas

voltados para a formação profissional do

professor, as tendências neste campo, a

organização do currículo, a base nacional comum,

a parte diversificada, a prática como espaço

formativo.

Acreditamos ser pertinente trazer o

trabalho educativo dessa instituição de Ensino

Médio modalidade Normal, no momento em

que se debate a formação e se questionam os

saberes dessa prática pedagógica. A

implementação da escola está amparada em um

conjunto de providências legais para a

ampliação da proposta para o Ensino Médio

Normal, de acordo com o Parecer n. 122, de 10 de

novembro de 2009, a Resolução SEEDUC

(Secretaria de Educação do Estado do Rio de

Janeiro) nº 4.376, de 18 de dezembro de 2009, e a

Portaria SEEDUC n. 91, de 29 de março de 2010.

Extinto o curso normal, em atendimento à

LDBEN n. 9.394 de 1996, tentativas pela

reafirmação de seu reconhecimento e permanência

foram assumidas, colocando em discussão as

contribuições da escola de ensino médio na

formação de parcela significativa de jovens. O Rio

de Janeiro é único estado da região sudeste que

oferece o curso de formação em Magistério –

Escola Normal, em Escolas de Ensino Médio.

Assim, ao focalizarmos a expansão, no

Rio de Janeiro, de cursos em nível médio normal,

para a formação de professores para a educação

infantil e para as primeiras séries do ensino

fundamental, pretendemos discutir a consolidação

da formação nesse nível de ensino como política

pública, não transitória. Nesse contexto, buscamos

explicitar os sentidos do acesso e permanência nos

cursos e a incorporação desses jovens alunos na

luta permanente pelas novas oportunidades à

educação.

Visamos, também, analisar a ação do

Estado nas políticas de formação que vêm se

caracterizando, de acordo com Freitas (2007), pela

fragmentação, consequentemente assegurando

diferenciadas dimensões de profissionalização.

Isso pode ser evidenciado quanto ao oferecimento

do ensino médio normal, já que a pressão da

juventude pela profissionalização após o ensino

fundamental coloca imenso contingente de jovens

no exercício do magistério e na expectativa de se

profissionalizarem. Essas iniciativas ocultam a

oferta diferenciada de cursos e programas,

apontando para a desigualdade da formação

oferecida nas instituições de ensino e nas

instituições de pesquisa, na formação de jovens

alunos que estudam e pesquisam e daqueles que

trabalham, produzindo condições diferentes de

exercício profissional e desigualdade educacional

(p.146).

São necessários mais de 230 mil

professores no ensino médio e cerca de 500 mil no

ensino fundamental, para atender ao número de

estudantes hoje existentes na rede pública.

Brzezinski (2008) ressalta que ações pontuais de

formação de professores pouco resolverão a falta

de docentes qualificados para a educação básica,

principalmente para o desenvolvimento

educacional nas séries iniciais do ensino.

Simultaneamente, a história comprovará o alcance

de indicadores de qualidade, já que os resultados

qualitativos divulgados nos dados oficiais sobre a

escola pública, infelizmente, apontam para a

desqualificação no ensino fundamental e, mais

ainda, a falência do ensino médio.

(BRZEZINSKI, 2008, p.169).

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90 Leny Cristina Soares Souza Azevedo, Ligia Karam Corrêa de Magalhães

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 81-93, jul./dez.2012

Considerações Finais

Diante desse breve panorama acerca da

situação de pessoas jovens frente ao mundo do

trabalho, é inegável que este se configura como de

suma importância para os segmentos juvenis.

Coloca-se em debate o fato de que a manutenção

do nível médio normal reafirma-se como política,

desconsiderando o Plano Nacional de Educação,

que estabelece metas para a formação superior dos

professores da educação básica.

Para Freitas (2007), com o oferecimento

desse curso evidencia-se o divórcio entre as

necessidades atuais da educação infantil e ensino

fundamental com a proposta de formação da

juventude no ensino médio para a docência. Daí a

relevância de discutir o trabalho que vem sendo

realizado para fazer frente ao trabalho concreto

para as séries iniciais do ensino.

Considerando os registros feitos pelas

jovens alunas, podemos questionar os elementos

que apontam substantivamente para o significado

do trabalho e da formação. As representações

acerca do trabalho para essas jovens direcionam-

se para a necessidade, fonte de independência,

crescimento e auto realização. Quanto à formação,

existe o forte ideal de continuar os estudos numa

universidade. Consultando as professoras e os

registros da escola dos egressos, as alunas

ingressam ao sair da escola de ensino médio

normal em instituições públicas e privadas de

ensino superior e a maioria acaba fazendo a opção

pelo ensino privado e conseguem bolsas de estudo

para esse fim. Seja como for, ao examinarmos os

depoimentos das jovens alunas, destacados ao

longo do texto, identificamos:

a) A escola precisa, de acordo com Moreira

(2010), “ampliar-se, abrir-se, aumentar as

oportunidades de acesso às ciências, às

artes, a novos e diferentes saberes, a

novas linguagens, a novas interações, a

outras lógicas, à capacidade de buscar

conhecimentos, ao aprofundamento, à

sistematização e ao rigor” (p.110);

b) A vida escolar representa para as famílias

como um lugar de crescimento pessoal e

profissional, podendo ter maiores chances

de ocupação no mercado de trabalho,

diferente da condição paterna que, de

acordo com os depoimentos, tiveram a

escolaridade inconclusa;

c) O entendimento de que o trabalho

relaciona-se a uma “fonte de

independência”, pois este significado é

praticamente universal e transparece em

todo o tipo de jovem, de acordo com as

análises de Branco (2008), que reflete

acerca da atração que o trabalho exerce

sobre o jovem.

d) O trabalho expressa-se pela metáfora

“crescimento” e “auto-realização”, que

envolvem as “transformações no aparato

produtivo e seus elos com a dinâmica do

mercado de trabalho” (GUIMARAES,

2008, p.169). São fatores que explicam

oportunidades preenchidas e percursos

desenvolvidos nos diversos ambientes de

trabalho.

e) O curso de formação docente no EM é

concebido com base nas “facilidades

curriculares”, seja pelas disciplinas

consideradas como de exigências

menores para a conclusão da escolaridade

de nível médio, seja pelas metodologias

de trabalho pedagógico que privilegiam

atividades em grupo.

f) “As práticas partem do pressuposto de que

as alunas necessitam de um currículo que

as leve a algo mais que a simples

memorização (...) assim, as contribuições

dos estudos culturais e das aplicações do

conceito de cultura no desenvolvimento

curricular vem sendo positiva e indicam

uma reivindicação antiga de segmentos e

setores da sociedade” (Santos, 2007, p.

301);

g) Pelas falas, podemos depreender que essas

experiências em grupo não têm sido

sólidas e reforçam a fragmentação, na

medida em que há o entendimento de

cada um possa cumprir tão somente a

“tarefa” solicitada pelo professor a cada

componente do grupo, ou seja, a

distribuição de diferentes funções entre

os componentes de cada grupo, permite

que uma das alunas digite o trabalho, a

outra faça a apresentação, uma terceira

realize a pesquisa e assim por diante.

Essas atitudes revelam pouco

investimento na autonomia intelectual e

aprendizado coletivo.

Retomando a questão da execução de

“tarefas”, cabe lembrar a discussão empreendida

por Kuenzer (1999), ao discutir que no processo

de formação docente tem sido privilegiado o

treinamento do professor, como se fosse esperado

o simples cumprimento de atividades já “dadas”

em modelos. Assim, ao professor “compete

realizar um conjunto de procedimentos

preestabelecidos” (p. 182), retirando de seu

trabalho a dimensão de cientista e pesquisador de

educação, e transformando-o em um profissional

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Educação pública: currículo e formação de jovens alunas no Ensino Médio 91

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 81-93, jul./dez.2012

que a autora denomina como “professor

tarefeiro”. Em outras palavras, é necessário que a

escola vislumbre constituir-se em possibilidade de

autonomia, de expansão dos horizontes, de novas

perspectivas, de novas condutas e conhecimentos

(MOREIRA; CANDAU, 2008).

Para De Rossi (2005), pensar sobre o

cotidiano das escolas, pela via da organização da

cultura escolar, significa reconhecer como o

Estado utiliza a escola como recurso de

convencimento e de emotividade bastante

mobilizadores para banir individualidades e para

fazer a conversão pela subjetividade, sem alterar

as condições materiais dos sujeitos envolvidos.

Dessa forma, a pesquisa realizada na instituição

revela a priorização do produto em detrimento do

processo.

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Educação pública: currículo e formação de jovens alunas no Ensino Médio 93

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 81-93, jul./dez.2012

Notas

1 Esse artigo toma por base a monografia premiada com o segundo lugar no Concurso “Prêmio Ministro

Gama Filho”, da Escola de Gestão e Contas do TCE/RJ, cujo tema do Edital 02/2012 versou sobre

“Políticas Públicas em Educação”.

2 De acordo com os dados da Pnad, 2006, que considerou jovens os sujeitos na faixa etária compreendida

entre 14 e 29 anos.

Sobre as autoras:

Leny Cristina Soares Souza Azevedo: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

Ligia Karam Corrêa de Magalhães: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

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95

* Endereço eletrônico: [email protected]

Práticas sociais híbridas: contribuições para os estudos curriculares em Educação

Matemática

Marcio Antonio da Silva*

Resumo

Neste artigo, discute-se, na perspectiva teórica curricular pós-crítica, a impossibilidade de pensar em práticas

sociais universais que possam gerar prescrições curriculares centralizadoras que orientem ações a serem

efetivadas nas escolas, não considerando a incerteza e a diversidade das práticas educativas, sociais e

culturais. Utiliza-se o conceito de hibridação para argumentar que as próprias prescrições curriculares

apresentam discursos híbridos que necessitariam de uma maior investigação, pois representam misturas e

construções que defendem correntes teóricas distintas, algumas até antagônicas. Por fim, são encaminhadas

considerações no sentido de buscar formas de atenuar esse imenso hiato entre as teorias contemporâneas e a

“prática” curricular.

Palavras-chave: Educação Matemática; Currículo de Matemática; Hibridação.

Hybrid social practices: contributions to curriculum studies in Mathematics Education

Abstract

In this paper, we discuss in theoretical perspective post-critical curricular theory, inability to think in

universal social practices that generate prescriptions centralized curriculum to guide actions to be effected in

schools, not considering the uncertainty and diversity of educational practices, socials and culturals. We use

the concept of hybridization to argue that curricular prescriptions have hybrid discourses that would require

further investigation because they represent mixtures and buildings that advocate different theoretical

currents, some even antagonistic. Finally, considerations are directed towards finding ways to mitigate this

huge gap between contemporary theories and "practical" curriculum.

Keywords: Mathematics Education; Mathematics Curriculum; Hybridization.

Introdução

O objetivo deste artigo é discutir, na

perspectiva teórica curricular pós-crítica, a

impossibilidade de pensar em práticas sociais

universais que possam ser descritas e,

consequentemente, possam gerar prescrições

curriculares centralizadoras que orientem ações a

serem efetivadas nas escolas.

Queremos contribuir para a reflexão

acerca da contradição existente entre as teorias

curriculares contemporâneas que apontam para a

direção da diversidade, do hibridismo e da

valorização da incerteza e as políticas curriculares

nacionais que determinam orientações e

avaliações universais e padronizadas.

No entanto, mostraremos que, tanto as

teorias pós-críticas, quanto os currículos prescritos

apresentam, ao menos, uma característica comum:

a presença de um discurso híbrido.

Para finalizar o artigo, encaminharemos

nossas considerações no sentido de buscar formas

de atenuar esse imenso hiato entre as teorias

contemporâneas e a “prática” curricular.

A centralização curricular no Brasil

No dia quinze de setembro deste ano, a

Folha de São Paulo, em seu painel Tendências e

Debates, propôs o debate em torno da seguinte

questão: o Brasil deve adotar um currículo

nacional único para a educação básica?

Respondendo afirmativamente à pergunta

proposta, Priscila Cruz, diretora-executiva do

movimento Todos Pela Educação, apresentou o

discurso meritocrático cristalizado das atuais

políticas neoliberais: é preciso padronizar os

processos educacionais para facilitar a avaliação

de alunos, professores e gestores.

Em oposição à perspectiva defendida por

Priscila, a professora Dalila Andrade Oliveira,

atual presidente da Associação Nacional de Pós-

Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd),

afirmou que a defesa de um currículo uniforme

representa a volta de um discurso da elite

republicana do início do século XX e que o

currículo deve levar em conta as diferenças

sociais, econômicas e culturais entre os

estudantes.

Portanto, no cenário delineado por Dalila,

o currículo deveria necessariamente ser

(re)formulado no âmbito de cada escola e até de

cada sala de aula, considerando as especificidades,

as necessidades, os valores, as culturas e as

práticas sociais da comunidade na qual a escola

está inserida.

Essa breve exposição das oposições de

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96 Marcio Antonio da Silva

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 95-102, jul./dez.2012

opiniões sobre a centralização curricular revela o

antagonismo existente nas diferentes visões sobre

a valorização do reconhecimento das diferentes

práticas sociais presentes em um território com

dimensões continentais, como é o caso brasileiro.

Hibridação

A partir daqui, faremos referência ao

conceito de hibridação, difundido pelo

antropólogo argentino Néstor García Canclini, e

que ganha diferentes interpretações, entre elas, a

defesa do reconhecimento da diversidade de

práticas sociais e a construção de discursos

híbridos para atender aos vários públicos para os

quais as prescrições curriculares são escritas, ou

seja, com a finalidade de agradar a muitos.

A obra Culturas Híbridas: estratégias

para entrar e sair da modernidade, de García

Canclini, foi publicada em 1989. Nela o

pesquisador argentino realçou os processos de

hibridação cultural ocorridos nos países latino-

americanos, sobretudo no período pós-colonial.

O autor se refere à mestiçagem, ao

sincretismo e à crioulização como hibridações que

se restringiam, respectivamente, ao processo de

combinação de raças, religiões (crenças) e línguas.

O que García Canclini argumenta é que

esses três tipos de “misturas culturais” são muito

restritos para levar em conta as inúmeras fusões

culturais que ocorrem entre estilos musicais, nas

fronteiras entre países, nos meios de difusão de

informação e, especialmente ligado ao nosso

interesse principal, nas teorias curriculares e nos

significados atribuídos ao currículo.

Por isso, García Canclini (2008) traz uma

primeira aproximação do conceito de hibridação

no prefácio da edição de 2001: “entendo por

hibridação processos socioculturais nos quais

estruturas ou práticas discretas, que existiam de

forma separada, se combinam para gerar novas

estruturas, objetos e práticas” (p. XIX).

É importante ressaltar que o conceito de

hibridação não é novo, não só pelos usos

antropológicos e linguísticos, para citar apenas

dois, mas também por seu uso original relativo à

Biologia, mais especificamente na genética,

botânica e zoologia.

Como exemplo, podemos citar a

hibridação entre espécies. No entanto, essas

“misturas” são frequentemente vinculadas à

esterilidade e ao exótico, provocando no

imaginário popular a sensação de algo que está

fora dos padrões.

O asno ou burro ou jumento é um

resultado de cruzamento de espécies (cavalo com

jumenta ou égua com jumento). O uso popular

desses três nomes para designar um indivíduo

desprovido de inteligência não é uma

coincidência, mas sim uma direta vinculação com

a esterilidade desse animal, condição resultante

dessa hibridação.

Do Modernismo ao Pós-Modernismo

Para compreender parte dessa intolerância

ao que é híbrido, é importante contextualizar os

embates teóricos entre as visões modernas e pós-

modernas.

O período histórico ou os movimentos

teóricos ligados ao modernismo valorizam a

estrutura hierárquica bem delimitada, as

definições rígidas e os binarismos classificatórios

antagônicos: bem versus mal, certo versus errado,

alta cultura versus baixa cultura, currículo

prescrito versus currículo em ação, branco versus

negro, entre outros. Essa configuração teórica

enaltece o purismo e considera a hibridação como

uma aberração.

Já o pós-modernismo surge, entre várias

outras críticas ao movimento antecedente,

questionando e rompendo os binarismos, por

intermédio da exposição de uma matiz de

possibilidades existentes entre polos opostos,

considerados como únicos pelo modernismo.

Como exemplos culturais de hibridismos,

podemos citar a banda californiana Linkin Park

que, não coincidentemente, deu o nome de Teoria

Híbrida (Hybrid Theory) ao seu primeiro álbum e

à própria banda, no final da década de 1990,

revelando a concepção dos integrantes da banda

possuem a respeito do cruzamento de gêneros que

envolvem a composição do seu repertório: hip-

hop, música eletrônica e rock pesado alternativo

(DUSSEL, 2010).

Outro retrato dessa hibridação musical

pode ser visto na produção do grupo de rap Brô

MC’s, formado por índios sul-mato-grossenses da

etnia Guarani-Kaiowá. Índios cantando rap em

Tupi e usando vestimentas como bonés, camisa de

seleções e times de futebol e cobrindo os rostos

com lenços que lembram os antigos caubóis de

filmes de faroeste, parece algo inusitado, mas é a

realidade desses jovens que já ganharam

notoriedade ao participarem de programas de

televisão transmitidos nacionalmente.

A partir desses exemplos, é quase

impossível imaginar algo que não seja híbrido. A

pureza é que ganha caráter exótico e gera

profunda desconfiança. Até o conceito de

fronteira, que na perspectiva modernista está

muito mais ligado à ideia de fronteira geográfica

e, portanto, matematicamente definida por uma

lógica aristotélica (pertence ou não pertence),

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Práticas sociais híbridas: contribuições para os estudos curriculares em Educação Matemática 97

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 95-102, jul./dez.2012

ganha nova configuração nas visões pós-modernas

ou pós-coloniais.

Para Bhabha (1998), Hall (2003) e García

Canclini (1998), a análise das fronteiras se dá na

dimensão cultural e, nesta perspectiva, não faz

sentido pensar em pertencimento ou não

pertencimento a uma ou a outra nação, mas sim

aos significados construídos, desconstruídos e

reconstruídos (não necessariamente seguindo esta

ordem) em espaços-tempos de fronteiras:

Penso nos currículos escolares como

espaço-tempo de fronteira e, portanto,

como híbridos culturais, ou seja, como

práticas ambivalentes que incluem o

mesmo e o outro num jogo em que nem a

vitória nem a derrota jamais serão

completas. Entendo-os como um espaço-

tempo em que estão mesclados os

discursos da ciência, da nação, do

mercado, os “saberes comuns”, as

religiosidades e tantos outros, todos

também híbridos em suas próprias

constituições. É um espaço-tempo em que

os bens simbólicos são

“descolecionados”,

“desterritorializados”, “impurificados”,

num processo que explicita a fluidez das

fronteiras entre as culturas do eu e do

outro e torna menos óbvias e estáticas as

relações de poder (García Canclini,

1998). Defendo que, nesse híbrido que é o

currículo, tramas oblíquas de poder tanto

fortalecem certos grupos como

potencializam resistências. Em um e outro

movimento, que são parte do mesmo,

permitem que a diferença apareça na

negociação “com as estruturas de

violência e violação que (as) produziram”

(Spivak, 1994, p. 199). (MACEDO, 2006,

p. 289-290).

Os comentários levantados por Macedo

no excerto supracitado, com os quais

concordamos, nos remetem a novas compreensões

para as questões de relações de poder, identidades

e diferenças.

No panorama vislumbrado a partir da

perspectiva pós-crítica, nunca será possível obter

um estado ideal de igualdade social, econômica e

política. Por isso, o discurso que objetiva qualquer

tipo de igualdade é ingênuo e idealista.

O conceito de classe social é

desconstruído em detrimento das relações entre os

subalternos marginalizados e a hegemonia cultural

dominante. O movimento e as tensões

direcionam-se das lutas pela igualdade social e

econômica, notadamente reivindicando igualdade,

para a valorização das diferenças e para o

reconhecimento de identidades culturais híbridas.

Nas atuais pesquisas que levam em conta

os estudos culturais não faz sentido investigar

oposições binárias, como Matemática do cotidiano

versus Matemática escolar, ou Matemática do

índio versus Matemática do branco, mas sim o

conjunto de identidades, subjetivações e

significados atribuídos por diferentes participantes

da pesquisa a um objeto prévia ou posteriormente

definido pelo pesquisador.

As definições e categorizações

rigorosamente descritas perdem sentido nesse

cenário “pós”. A lógica clássica e a consequente

adoção do “terceiro excluído” dá lugar a lógicas

heterodoxas que vão além dos binarismos,

permitindo múltiplas classificações.

A palavra “laranja” pode tanto significar

uma cor resultante de mistura das cores amarela e

vermelha, quanto um fruto híbrido obtido a partir

do cruzamento do pomelo com a tangerina. Para

uma criança pode representar o entardecer. Para

um político corrupto, um indivíduo cujo nome foi

usado por ele para fraudes financeiras e

comerciais.

Usamos esse exemplo simplesmente para

ilustrar o quanto uma palavra pode expressar

múltiplos significados, híbridos ou não. Outro

ponto a se destacar é que o híbrido não é sinônimo

de mistura, mas sim de algo que cria sua própria

identidade. Portanto, além de mistura, é ele

próprio. O fato de quase ninguém saber que o

fruto da laranjeira é um híbrido do pomelo e da

tangerina, revela o quanto esta identidade está

constituída e reconhecida.

Analogamente, a Matemática escolar pode

ser compreendida tanto como uma Matemática

própria e totalmente desvinculada da ciência de

referência, como André Chervel defendia, quanto

uma Matemática transposta do saber científico

que o originou, como na concepção de Yves

Chevallard. Pode ser uma coisa e outra, tanto

identidade construída, quanto mistura ou

adaptação.

A nosso ver, a relevância das pesquisas

curriculares sobre a Matemática escolar não está

na origem da mesma, se é construída no contexto

escolar ou transposta de um saber sábio, mas sim

as identidades que são valorizadas e omitidas por

esta Matemática, bem como quais são as

Matemáticas hegemônicas e as subalternas.

Hegemonia e Subalternidade

Não usamos as palavras “hegemonia” e

“subalternidade” no sentido de Gramsci, o qual

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ligava esses conceitos à ideia de oposição de

classes sociais e a consequente disputa pelo poder:

[...] a ênfase de Gramsci foi na

hegemonia. Também nisso residia seu

maior interesse. Seus conceitos de

“guerra de posições” e “guerra de

movimento” compõem o cerne de uma

conceituação da estratégia que implica o

deslocamento das classes, segundo uma

analogia com a guerra de trincheiras,

para melhores pontos de observação e

“posições”: daí a “guerra de posições”

ser a batalha pela conquista da

hegemonia política, pela obtenção do

consentimento, a luta pelos “corações e

mentes” do povo, e não meramente sua

obediência transitória ou seu apoio

eleitoral. A “guerra de movimento” (em

oposição direta à tradição leninista de

pensamento político) só pode ocorrer

numa situação em que a hegemonia já

tenha sido assegurada (BARRETT, 1996,

p. 239).

Várias oposições a essa teoria marxista de

hegemonia ganharam força após o

reconhecimento que a mesma ignorava questões

sociais ligadas às diferenças de gêneros, etnias,

raças, entre outras. Entre essas críticas, está a de

Ernesto Laclau (1978) que rejeita essa ligação

exclusiva entre as ideologias políticas e as de

classe, nomeando essa simplificação, feita por

Gramsci, de “reducionismo” (BARRET, 1996).

Nos referimos à hegemonia e à

subalternidade como relações essencialmente

culturais que estão em constante movimento,

catalisadas pelos avanços tecnológicos e,

sobretudo, pela difusão midiática global. Para

García Canclini:

Uma visão mais ampla permite ver outras

transformações econômicas e políticas,

apoiadas em transformações culturais de

longa duração, que estão dando uma

estrutura diferente aos conflitos. Os

cruzamentos entre o culto e o popular

tornam obsoleta a representação polar

entre ambas as modalidades de

desenvolvimento simbólico e relativizam,

portanto, a oposição política entre

hegemônicos e subalternos, concebida

como se se tratasse de conjuntos

totalmente diferentes e sempre

confrontados. O que sabemos hoje sobre

as operações interculturais dos meios

massivos e as novas tecnologias, sobre a

reapropriação que diversos receptores

fazem deles, afasta-nos das teses sobre a

manipulação onipotente dos grandes

conglomerados metropolitanos. Os

paradigmas clássicos segundo os quais

foi explicada a dominação são incapazes

de dar conta da disseminação dos

centros, da multipolaridade das

iniciativas sociais, da pluralidade de

referências – tomadas de diversos

territórios – com que os artistas, os

artesãos e os meios massivos montam

suas obras (GARCÍA CANCLINI, 2008, p.

346).

Além das características das relações

hegemônico-subalternas, explicitadas no excerto

supracitado, é fundamental acrescentar a isso o

fato de que esses vínculos são estabelecidos de

maneira múltipla e complexa, formando redes de

significações.

Algo ou alguém pode, em determinado

instante, agir tanto como hegemônico, quanto

como subalterno. Não há, portanto, classificação

única, pois os múltiplos olhares dependem das

“lentes” que utilizamos para examinar tal relação:

O incremento de processos de hibridação

torna evidente que captamos muito pouco

do poder se só registramos os confrontos

e as ações verticais. O poder não

funcionaria se fosse exercido unicamente

por burgueses sobre proletários, por

brancos sobre indígenas, por pais sobre

filhos, pela mídia sobre os receptores.

Porque todas essas relações se

entrelaçam umas com as outras, cada

uma consegue uma eficácia que sozinha

nunca alcançaria. Mas não se trata

simplesmente de que, ao se superpor

umas formas de dominação sobre as

outras, elas se potenciem. O que lhes dá

sua eficácia é a obliquidade que se

estabelece na trama. Como discernir onde

acaba o poder étnico e onde começa o

familiar ou as fronteiras entre o poder

político e o econômico? Às vezes é

possível, mas o que mais conta é a astúcia

com que os fios se mesclam, com que se

passam ordens secretas e são respondidas

afirmativamente (GARCÍA CANCLINI,

2008, p. 346).

Portanto, não faz sentido compreender os

currículos de Matemática na perspectiva das

classes sociais hegemônicas e subalternas, nem

como essas últimas podem ser consideradas e

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Práticas sociais híbridas: contribuições para os estudos curriculares em Educação Matemática 99

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 95-102, jul./dez.2012

conduzidas a uma posição de igualdade em

relação às primeiras, mas sim compreender os

significados, as relações estabelecidas, as

modificações ocorridas e os interesses que

emergem nessa teia complexa costurada

culturalmente, por intermédio da (re)construção

de identidades que são, simultaneamente,

expressivas e efêmeras.

Identidades Culturais

Temos como hipótese que a identidade da

Matemática hegemônica é masculina, europeia,

heterossexual e branca. Nossa hipótese é

reforçada a cada livro de História da Matemática

que lemos e a cada filme que assistimos, os quais

possuem personagens que têm a Matemática como

profissão ou como preferência de estudo.

Mesquita (2004) traz uma convergência

nos padrões identitários de professores de

Matemática, a partir da análise de quatro filmes

hollywoodianos. Como resultado, afirma que:

[...] Hollywod conduz os espectadores de

seus filmes para uma abreviação

identitária do professor de matemática –

homens, tímidos, obsessivos, arrogantes,

competitivos, indiferentes frente às

relações interpessoais, racionais,

patéticos, desajeitados, isolados,

problemáticos, exibicionistas perante o

conhecimento matemático, disciplinados e

reservados. (p. 6).

Provavelmente as conclusões não seriam

muito diferentes se analisássemos os matemáticos

mais citados em livros de História da Matemática

de autores tradicionais, como Eric Bell, Dirk

Struik, Carl Boyer, Howard Eves, Florian Cajori e

Victor Katz.

Quando o matemático escocês Eric

Temple Bell publicou os seus dois volumes de

Men of Mathematics, em 1937, ele não imaginava

(ou talvez imaginasse) o quanto sua infindável

lista de homens que contribuíram para o

desenvolvimento da Matemática, ao longo de

séculos, contribuiu para desenhar uma identidade

masculina a essa ciência.

Paulatinamente, esse cenário vem se

alterando, em parte devido à publicação de obras

que revelam o trabalho determinante de algumas

mulheres para a evolução da Matemática.

Dentre essas mulheres, podemos citar a

russa Sofia Kovalevskaya, que viveu no século

XIX, foi aluna de Weierstrass e trouxe várias

contribuições para a Matemática, notadamente

para as funções abelianas e equações diferenciais

parciais, incluindo a demonstração do Teorema

Cauchy–Kovalevskaya (AUDIN, 2011).

Interessante e curioso notar que Kovalevskaya é a

única mulher na lista dos “homens da

Matemática” de Bell.

Emmy Noether é outra grande matemática

do início do século passado, considerada a mãe da

Álgebra Moderna (TENT, 2008). Essas duas

mulheres e muitas outras também são citadas na

clássica obra de Olsen (1974) que provoca Bell

com o título Women in Mathematics.

Deslocando-se da tradição matemática

europeia, autores como Selati & Bangura (2011),

Plofker (2009) e Martzloff (1997) enaltecem,

respectivamente, a matemática africana, indiana e

chinesa.

A partir dessas hipóteses, defendemos a

tese de que a diversidade de práticas sociais,

incluindo as hegemônicas, deve ser valorizada no

contexto escolar, rompendo paradigmas da

excessiva valorização de alguns poucos

estereótipos culturais em detrimento de outros.

O que está em jogo é o reconhecimento,

no contexto escolar, de identidades sociais e

culturais que são tradicionalmente subjugadas.

Aliás, talvez não seja mais o caso de se pesquisar

as identidades, mas de “deslocar o objeto de

estudo da identidade para a heterogeneidade e a

hibridação interculturais (Goldberg)” (GARCÍA

CANCLINI, 2008, p. XXIII).

Esses processos de hibridações

interculturais são estimulados pelo crescente uso

de recursos tecnológicos para difusão de

informações, ideias e culturas:

A hibridação, de certo modo, tornou-se

mais fácil e multiplicou-se quando não

depende dos tempos longos, da paciência

artesanal ou erudita e, sim, da habilidade

para gerar hipertextos e rápidas edições

audiovisuais ou eletrônicas. Conhecer as

inovações de diferentes países e a

possibilidade de misturá-las requeria, há

dez anos [o autor escreveu este excerto

em 2001], viagens freqüentes, assinaturas

de revistas estrangeiras e pagar avultadas

contas telefônicas; agora se trata de

renovar periodicamente o equipamento de

computador e ter um bom servidor de

internet. (GARCÍA CANCLINI, 2008, p.

XXXVI).

No campo curricular, como veremos a

seguir, a facilidade de se propagar informações

por intermédio de novas mídias, também

possibilitou recontextualizações de discursos

diversos.

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Horizontes, v. 30, n. 2, p. 95-102, jul./dez.2012

Híbridos Curriculares

Atualmente, há uma relativa concordância

sobre a impossibilidade de se definir currículo,

dada a multiplicidade de elementos que envolvem

esse conceito, bem como uma gama complexa de

contextos abrangidos por ele.

Uma possibilidade, a nosso ver mais

coerente, é se referir ao próprio currículo como

um híbrido:

A própria noção de currículo pode ser

considerada como um híbrido, se a

pensamos como o resultado de uma

alquimia que seleciona a cultura e a

traduz a um ambiente e uma audiência

particulares (Bernstein, 1990; Popkewitz,

1998). Os discursos curriculares também

têm sido estudados como híbridos que

combinam distintas tradições e

movimentos disciplinares, construindo

coalizões que dão lugar a consensos

particulares (DUSSEL, 2010, p. 70).

As políticas curriculares, por sua vez,

também não estão imunes a essas influências

culturais caracterizadas pelas hibridações.

Nos textos que definem as diretrizes

curriculares pelo mundo afora, notamos aparentes

contradições em vários discursos possíveis:

Discursos como os de valorização das

competências, do currículo integrado, da

gestão escolar descentralizada, da

avaliação como garantia de qualidade

podem ser encontrados em diferentes

políticas no mundo e sua presença é

justificada pela ação do contexto de

influência (LOPES, 2004, p. 112).

Essas teorias supostamente divergentes

acabam por produzir um discurso híbrido que,

assim como todos os outros discursos curriculares,

não é neutro.

Em Silva (2009) identificamos, na análise

da Proposta Curricular de Matemática do Estado

de São Paulo de 2008, dois discursos curriculares

aparentemente antagônicos: o currículo por

competências e o currículo crítico.

Salientamos, na época, “o hibridismo

existente no próprio conceito de competências,

pois ora se utiliza o aspecto cognitivo-

construtivista da tradição francesa, ora se faz uso

da configuração comportamental, advinda da

tradição americana” (p. ??).

Lopes (2002) encontrou um discurso

curricular híbrido nos Parâmetros Curriculares

Nacionais para o Ensino Médio. Por intermédio da

análise do conceito de contextualização que

aparece em tal documento oficial, a autora

defende:

[...] que o discurso dos PCNEM

apresenta ambigüidades de forma a se

legitimar junto a diferentes grupos

sociais, sejam aqueles que trabalharam

em sua produção ou aqueles que

trabalham na sua implementação e

análise. Para produção de uma proposta

curricular como a dos PCNEM, são

apropriados e hibridizados discursos

acadêmicos, ressignificando-os de forma

a atender às finalidades educacionais

previstas no momento atual. Defendo,

igualmente, que as finalidades

educacionais dos PCNEM visam

especialmente formar para a inserção

social no mundo produtivo globalizado.

Em decorrência dessas finalidades é que

defendo uma postura crítica em relação a

esses parâmetros (LOPES, 2002, p. 389).

Essas ressignificações ou

recontextualizações, na expressão usada por

Bernstein (1996), hibridizam discursos

curriculares internacionais na tentativa de obter,

entre outras coisas, ampla legitimação discursiva.

Essa grande amplitude pode ser

justificada, em parte, pela empatia induzida ao se

ler algo que se defende, mesmo estando presente

em meio a várias outras teorias antagônicas a esta.

Assim, orientações curriculares

geralmente são genéricas e misturam discursos

defendidos por escolas teóricas distintas: o

desenvolvimento de competências, a eficiência, a

valorização dos objetivos, a educação para a

igualdade e para a justiça social, a celebração da

diversidade, entre outras.

Cabe aos pesquisadores de currículos não

mais apenas identificar ou “desmascarar” esses

discursos híbridos, mas também compreender suas

intenções ocultas. Para Lopes (2005):

Na investigação das políticas de

currículo, cabe entender os processos

materiais e discursivos que favorecem tais

consensos e finalidades, bem como as

zonas de escape que são favorecidas. Do

ponto de vista material, há investimentos

em certas linhas e não em outras,

discursivamente há a legitimação de

certos discursos e não outros, muitas

vezes favorecida pela associação desses

textos com matrizes de pensamento que

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Práticas sociais híbridas: contribuições para os estudos curriculares em Educação Matemática 101

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 95-102, jul./dez.2012

circulam em diferentes grupos sociais e

mesmo nos meios educacionais. Assim

como é necessário considerar como as

dimensões discursiva e material também

se associam (LOPES, 2005, p. 60).

Todas essas possibilidades de pesquisa

revelam uma crescente valorização de

procedimentos metodológicos relacionados à

análise de discurso e à bricolagem em detrimento

daqueles que utilizam categorizações definidas a

priori e análise de conteúdo.

Considerações finais

Como anunciado no início deste artigo,

nossa intenção foi elaborar uma construção

argumentativa contra a ideia de práticas sociais

universais. Ao contrário, podemos pensar em

práticas sociais híbridas, vivenciadas e

produzidas em contextos culturais plurais, nos

quais os conceitos de hegemonia, de nação com

fronteiras bem delimitadas e de ideologia são

relativizados e atenuados por tendências culturais

contemporâneas.

Nesse quadro que se delineia atualmente,

não é apropriado pensar em orientações

curriculares centralizadoras, as quais são

constituídas, em sua maioria, por listas infindáveis

de conteúdos rigidamente sequenciados e com

suas respectivas expectativas de aprendizagem

esperadas dos estudantes bem definidas, tudo

meticulosamente engendrado em função de

avaliações em larga escala.

Por outro lado, pela experiência que

obtivemos com o trabalho na formação inicial e

continuada de professores de Matemática,

sabemos que os docentes, muitas vezes, anseiam

por essas listas e por instruções diretivas. Então, o

que fazer?

É fundamental que haja uma aproximação

entre pesquisadores e professores, estreitando

relações e diminuindo as distâncias que separam

as “academias” das escolas. Essa distância não é

só física, mas também teórica. O hiato que há

entre a teoria curricular valorizada no campo

cientifico e as práticas educativas é enorme.

Há que se buscar meios para que cheguem

até os professores discussões como as feitas neste

artigo, valorizando a pluralidade social e cultural,

não como mera celebração das diferenças, mas

sim com uma visão crítica sobre a necessidade de

desenredar os fios que constituem essa complexa

e rica teia de significações que o currículo possui.

A nosso ver, o conceito de hibridação dos

estudos culturais, trazido para os estudos

curriculares, é uma possibilidade de compreender

criticamente os discursos subjacentes,

descortinando intenções ocultas, relações de poder

e planejamentos que valorizam excessivamente a

performance em detrimento do enaltecimento da

construção de valores humanos, os quais são

incomensuráveis.

O professor deve conhecer, debater,

questionar, e, porque não dizer, hibridizar essas e

outras perspectivas que podem enriquecer suas

práticas.

As teorias curriculares se desenvolveram

com rapidez exponencial no último século, porém

a escola continua reproduzindo padrões fabris da

época da Revolução Industrial.

É recomendável que aceleremos o ritmo

de formação de formadores de professores, pois só

assim poderemos democratizar o conhecimento

científico curricular, que hoje parece estar

reduzido a um grupo pequeno de pesquisadores

que avançam rapidamente sem olhar para trás,

ignorando a possibilidade de, um dia, ficarem

sozinhos e serem compreendidos apenas por seus

pares. Será que esse dia já chegou? Talvez.

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Sobre o autor:

Marcio Antonio da Silva é licenciado em Matemática (Universidade de São Paulo, 1998), mestre em

Educação Matemática (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2004) e doutor em Educação

Matemática (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2009). Atualmente é Professor Adjunto, lotado

no Centro de Ciências Exatas e Tecnologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (Campo Grande,

MS), professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática e do Programa de Pós-

Graduação em Educação, na mesma instituição. Também é líder do GP100 (GPCEM – Grupo de Pesquisa

Currículo e Educação Matemática), criado em agosto de 2012.

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103

* Endereço eletrônico: [email protected]

** Endereço eletrônico: [email protected]

IES – Uma experiência inclusiva no ensino superior1

Lia Scholze*

Iolanda Bezerra dos Santos Brandão**

Resumo

O presente artigo discute a importância do acolhimento, do desenvolvimento da linguagem oral e escrita e da

reflexão na trajetória de alunos ingressantes no Ensino Superior, marcado, muitas vezes, por dificuldades de

leitura e escrita, principalmente os oriundos de classe popular. Como uma das iniciativas de acolhimento aos

calouros, a Universidade Católica de Brasília instituiu a disciplina Introdução a Educação Superior (IES),

cujo paradigma metodológico se traduz em uma mediação pedagógica que apóia os estudantes na construção

da competência acadêmica necessária para uma eficiente formação, introduzindo-os na reflexão teórica e na

compreensão da universidade como espaço de ensino, pesquisa e extensão. A pesquisa2 desenvolvida ouviu

dos estudantes em que medida e como a disciplina foi percebida como importante na sua inclusão e

permanência no Ensino Superior e preparação de sua formação acadêmica. Aponta para o desafio das

instituições de Ensino Superior em oferecer condições de permanência e sucesso aos estudantes.

Palavras chave: Linguagem; Reflexão; Inclusão; Ensino Superior.

IUSE - An inclusive experience in the higher education

Abstract

The article discusses the importance of welcoming, of developing oral and written skills and of reflecting for

undergraduate students as they are admitted to College, often related to reading and writing skills, mostly for

those who belong to unprivileged social classes. A welcoming initiative devised by the Catholic University

of Brasilia consists of a subject named Introduction to Undergraduate Students Education (IUSE), consisting

of a pedagogical mediation to assist undergraduate students in their process of constructing the appropriate

academic competence they need to accomplish their goals. The subject offers the opportunity to develop

theoretical reflections that promote the understanding of the University as a learning, research and extension

institution. The research carried out with these students intended to listen to their evaluation in terms of their

perception of the importance of the IUSE for their inclusion and for not dropping out, as well as for an

efficient preparation to academic education. The article also points out to the challenge faced by College

Institutions in terms of offering the necessary conditions for these students to remain in the institutions and

have a successful outcome.

Keywords: language; reflection; inclusion; higher education; IUSE

Na educação superior do Brasil está

ocorrendo um novo fenômeno, que vem

democratizando o acesso de estudantes oriundos

da classe popular, geralmente provenientes de

escolas públicas. Na última década, a educação

superior cresceu mais que em 200 anos, atingindo

hoje seis milhões de alunos. Essa ampliação deve

ser comemorada, ainda que represente menos de

15% dos jovens entre 18 e 24 anos nesse nível de

ensino. Entretanto, a admissão não assegura a

inclusão efetiva desses estudantes no nível

superior e tampouco sua permanência. Este é um

objetivo ainda em construção.

Com a preocupação de atender aos novos

desafios impostos pela expansão do acesso à

Universidade e aos pressupostos institucionais, a

Universidade Católica de Brasília (UCB) criou no

primeiro semestre do ano de 2010 a disciplina

Introdução à Educação Superior (IES). Seu

principal objetivo é contribuir para o

desenvolvimento das condições necessárias ao

percurso acadêmico do estudante, especialmente

dos que, historicamente, tiveram sua trajetória

escolar caracterizada pela precariedade da

escolaridade das classes populares, e prepará-los

para enfrentar de forma ética e humana os

desafios profissionais.

Espera-se que os alunos desenvolvam de

forma integral tanto sua condição de sujeito, ou

seja, sua capacidade de reflexão, quanto a sua

inserção no universo científico e produzam

conhecimentos contendo visão crítica da realidade

e da comunidade científica, bem como postura

ética frente à sua aplicação em suas atividades

profissionais e cívicas.

A disciplina IES oferece aos estudantes

estratégias de ensino-aprendizagem, com especial

cuidado na acolhida, com base em propostas

metodológicas inovadoras de tratamento da

linguagem, prática de escrita e registro discente, a

partir da reflexão de conceitos relacionados à

comunidade científica e questões da

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104 Lia Scholze, Iolanda Bezerra dos Santos Brandão

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 103-114, jul./dez.2012

contemporaneidade.

Apresenta-se como pressuposto que a

formação dos estudantes da classe popular não

lhes permitiu desenvolver suas capacidades

cognitivas em nível suficiente para enfrentar e

vencer os diferentes tipos de desafios do ensino

superior. Um dos empecilhos reais no acesso ao

conhecimento científico está relacionado à falta de

domínio da linguagem oral e escrita. A par disso,

preconceitos e processos de exclusão perpetuam-

se no ensino superior quando não se acredita na

capacidade do estudante, e quando a sua situação

econômica é compreendida como definidora de

desempenho.

As recentes políticas públicas de inclusão

possibilitaram o ingresso de estudantes que há

bem pouco tempo não se permitiam se imaginar

na Universidade, principalmente em decorrência

de sua condição socioeconômica. Este ‘novo’

(Brito, 2008) aluno exige maior cuidado,

principalmente os beneficiários do Programa

Universidade para Todos - PROUNI e dos

Programas Sociais oferecidos pelos Institutos de

Educação Superior, uma vez que sua trajetória

cultural está em descompasso do ideal de aluno

esperado pela Universidade que, historicamente,

no Brasil, teve em seus bancos os filhos da elite.

Muitos deles também sofrem um processo

de ansiedade constituída da dualidade entre o luto

das perdas oriundas do seu passado e a

expectativa do novo que os aguarda. Percebe-se

que os primeiros contatos desses jovens com a

Universidade muitas vezes estão carregados de

um forte componente emocional, variando entre

entristecimento e euforia pelas perdas e ganhos de

sua nova condição.

Um estudante relata que “tudo aqui causa

medo e entusiasmo [...]”. Sua fala é ressonância

do sentimento de muitos, sustentada na quebra de

paradigmas entre o passado escolar por eles

conhecido e que os reconhecia e a nova realidade

vivenciada. A ansiedade instala-se.

Eles também sofrem com a dúvida em

relação a sua capacidade, como atesta a fala de um

jovem após a exibição do filme Escritores da

Liberdade (2006):

Este filme, diz respeito a minha própria

trajetória em uma escola pública [...]

quando eu disse que havia passado no

vestibular da Universidade Católica a

diretora da minha escola não acreditou

[...] na verdade apenas dois estudantes

neste ano passaram para o curso superior

eu na Católica e uma amiga na UNB.

O medo do não pertencimento eleva

significativamente a ansiedade provocada pelo

novo ambiente e os novos grupos sociais que

serão ou estão sendo estabelecidos, aumentando o

desejo de retornar ao ponto de conforto

vivenciado no passado recente, apesar das

condições da escola pública, cuja estrutura, na

maioria dos casos, apresenta diferentes níveis de

precariedade. Conforme relata Gardner (2000),

quando os indivíduos não conseguem alterar o que

está lhes trazendo ansiedade, tendem a evitar o

contato com os grupos que lhes provocam tais

emoções, ficando isolados e perdendo a

possibilidade de desenvolver sua linguagem, que

depende dessa interação, conforme o conceito de

mit-sein - ser com o outro, de Heidegger (1967).

Enfrentando desafios

O cuidado com a acolhida se faz

necessário, tendo-se em vista que parte

considerável dos estudantes manifesta experiência

de encanto e, ao mesmo tempo, intimidação nos

primeiros dias na Universidade. Tudo é novo,

diferente e, para muitos, grandioso demais. No

mínimo assustador. A obrigação de compreender

este momento e, principalmente, de propiciar

dentre as ações pedagógicas um trabalho de

acolhida é imprescindível, como forma de ajudar a

minimizar os impactos nocivos desses primeiros

contatos, considerando as expectativas dos

estudantes que acessam o espaço acadêmico

oriundos das mais diversas vertentes sociais,

econômicas e culturais.

A disciplina IES pretende propiciar um

olhar específico e, ao mesmo tempo, abrangente

do papel social do indivíduo-estudante, na

perspectiva de ele vir a se tornar transformador de

sua própria história e da sociedade.

A importância do processo de acolhida

por parte da Universidade reside em devolver-lhes

a palavra, desafiando sua autoria e autonomia

(FREIRE, 1978, 1996), ampliando sua habilidade

no uso da linguagem, provocando a linguagem

reflexiva. Pensar na transição do texto escolar

para a elaboração de um texto

argumentativo/reflexivo, com perspectiva de

iniciação na produção do texto científico, é um

desafio que precisa ser encarado. Na

Universidade, o esforço a ser feito é o de preparar

o estudante, independente de sua origem escolar,

para o uso da linguagem elaborada (FOUREZ,

1995). Porém, esse caminho exige estratégias a

serem seguidas, e a escrita de si, histórias de vida

ou autonarrativas (diferentes denominações para o

mesmo processo) se mostra como um bom

começo. De acordo com Arendt (1995), pela

escrita, o homem representa a vida, cria

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IES – Uma experiência inclusiva no ensino superior 105

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 103-114, jul./dez.2012

narrativas, interroga as ações dos outros homens;

dá sentido à sua própria vida através das histórias

que conta.

O sujeito estabelece a reflexão consigo

mesmo, sobre sua relação com os outros sujeitos e

também com o mundo, criando novas

possibilidades para sua existência, numa

permanente recriação da mesma. Como diz

Larrosa (1995), é transformado pela experiência.

O sujeito não só passa pela experiência, mas,

também a experiência passa por ele, provocando

uma mudança na sua sensibilidade, no seu nível

de conhecimento e na sua visão de mundo,

alargando sua experiência de sujeito (SCHOLZE,

2005).

Com base nas concepções heideggerianas

sobre a condição humana, passa-se a entender que

ela é atravessada pela compreensão da linguagem

como elemento fundamental e necessário, pois,

segundo o autor, somos “ser de linguagem”. A

reflexão e a escrita caminham juntas e fazem parte

da condição humana, ligando o ser humano à vida

como experiência vivida que irá se concretizar no

registro dos pensamentos e das reflexões

(ARENDT, 1995). Para Arfuch (2002), ao se

colocar ordem nas idéias, coloca-se também,

ordem no caos da existência.

A escrita como exercício constante,

abordando diferentes temas de interesse atual,

provocando reflexões sobre conceitos da

contemporaneidade, considerados fundamentais

para quem ingressa no ensino superior, traz

consigo desafios, como a cada vez maior

competência do estudante na produção de textos;

garantia de exposição clara, progressão de idéias,

proximidade com a norma culta, proximidade com

o texto acadêmico e/ou científico, uso das normas

da escrita científica.

Porém, esse esforço pode produzir efeito

contrário, pode parecer assustador. Refletir sobre

questões abstratas, ler, interpretar autores

reconhecidos academicamente, ser capaz de

utilizar os conceitos na sua própria escrita, é um

desafio que nem sempre é encarado com

tranquilidade.

Foucault (1994) afirma que o ato de

escrever serve para mudar a nós mesmos, e a não

pensar mais o mesmo que se pensava antes de ter

passado pela experiência da escrita. É necessário

compreender que os sentidos do discurso (texto)

são construídos tanto na relação subjetiva do

sujeito consigo mesmo, como intersubjetiva do

sujeito com outros sujeitos - mit-sein

(HEIDEGGER, 1967) ou dialogismo (BAKTHIN,

1995). Para tanto, é preciso que as relações no

grupo sejam amistosas e cooperativas; que haja

respeito pela trajetória do estudante,

compreendendo que ao longo da sua vida

estudantil ele foi instado a fazer silêncio.

É preciso criar estratégias significativas,

que façam sentido para eles e que não promovam

a auto-exclusão, resultante do sentimento de

incapacidade ou da certeza antecipada de fracasso

que tem o poder de imobilizar a ação. Ao

professor cabe a responsabilidade de ajudar o

estudante a vivenciar este novo universo. O

desafio proposto é de construir uma nova

narrativa de si através da certeza na capacidade de

alcançar um novo patamar de relação com o

conhecimento.

Ao serem introduzidos na Universidade e

terem acesso a atividades que requeiram

autonomia, visão crítica e autoria, rompem-se os

paradigmas construídos por mais ou menos dez

anos de vida escolar. É compreensível que haja

resistência. Porém, se não for explorada a prática

da reflexão oral e escrita, sonega-se ao estudante o

caminho seguro de sua autonomia intelectual.

Estamos diante de um desafio: as turmas

estão cada vez menos homogêneas. Nossos planos

de ensino precisam ser revistos, o que não

significa rebaixamento de qualidade, como

pensam alguns, e sim o delineamento de uma

nova abordagem.

O desejo é que o trabalho desenvolvido

contribua para a formação integral do estudante;

aumente suas chances de sucesso na vida

acadêmica; diminua os índices de evasão

resultantes da auto-exclusão diante da descrença

na possibilidade de vencer os desafios naturais

desta etapa de formação; que o estudante sinta-se

acolhido e apoiado no enfrentamento de eventuais

dificuldades e confiante na sua possibilidade de

superação; que esteja mais bem preparado para

seguir em frente, aceitando sempre novos

desafios.

Motivação da pesquisa

O desenvolvimento da disciplina IES

tornou-se objeto de interesse de um grupo de

pesquisadores da UCB interessados no

desenvolvimento pedagógico e, principalmente,

em como os estudantes percebem a proposta da

disciplina.

Após definição do marco teórico e da

metodologia, foram analisadas as avaliações

institucionais referentes ao primeiro ano da

disciplina, em 2010, constituídas de cartas

(relatos de estudantes, em linguagem coloquial, de

suas vivências na disciplina IES, a um amigo,

familiar ou estudante candidato a ingressar na

UCB) e memoriais (por meio dos quais, os

estudantes relatavam suas experiências de

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106 Lia Scholze, Iolanda Bezerra dos Santos Brandão

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 103-114, jul./dez.2012

aprendizagens acadêmicas focando,

especialmente, os conteúdos trabalhados no

semestre).

A disciplina é organizada através de dois

encontros semanais de quatro horas cada

perfazendo 120h/aula. A pesquisa foi intitulada:

Contribuições da disciplina Introdução à

Educação Superior no processo de inclusão

efetiva dos estudantes.

A principal questão que orienta o projeto

de pesquisareside na análise dos recursos

e métodos necessários ao esforço de

superação do que Bourdieu e Passeron

(2008) chamaram de “exclusão adiada”.

As classes populares têm menos

oportunidades materiais e educacionais a

oferecer aos seus membros e lidam com

dificuldades incessantes; por força desses

fatores, os estudantes, em sua maioria,

oriundos de escolas públicas, demonstram

propensão maior à eliminação; o sistema

assim se reproduz, legitimado pela escola.

Mesmo os ‘casos de sucesso’ de

estudantes provindos de classes populares

não testemunham o contrário dessa

constatação, uma vez que servem ao

intuito ideológico de retirar ao sistema

toda culpabilidade – sua retórica insiste

em que basta as pessoas se esforçarem, e

é certo que todos podem ser bem-

sucedidos” (Justificativa do Projeto de

Pesquisa, UCB, 2010).

O resultado da investigação desses

pensadores franceses auxilia-nos no melhor

entendimento da especificidade do caso brasileiro,

mormente no que tange a um risco em que pode

incorrer a nossa educação superior: o de haver no

crescimento do acesso ao ensino superior uma

possível dissimulação da exclusão mediante uma

inclusão aparente. Juntamente com o desafio e

necessidade do aumento de vagas no ensino

superior, faz-se necessária a busca por uma

inclusão efetiva desses estudantes, garantida por

políticas pedagógicas de permanência.

Assim, o projeto de pesquisa

desenvolvido procurou identificar em que medida

o conteúdo da disciplina IES contribui com o

engajamento dos estudantes ingressantes na

Universidade aos propósitos institucionais, através

da análise dos registros acadêmicos.

A pesquisa consiste na análise,

investigação e compreensão das falas dos

estudantes quanto à percepção das estratégias

pedagógicas envolvendo a acolhida, o cuidado

com a linguagem e a reflexão desenvolvidas no

interior da disciplina e o esforço da Direção do

Curso de Filosofia, Coordenação da disciplina e

do grupo de professores envolvidos em garantir a

efetiva inclusão e permanência dos estudantes na

Instituição e desenvolver neles o sentimento de

pertença ao mundo acadêmico, indo ao encontro

dos propósitos Institucionais apresentados na

missão pedagógica da UCB.

Assim, procedeu-se ao exame da

produção escrita, a forma como foram percebidas

as ações de recepção aos estudantes, escuta

sensível (BARBIER, 2002) das histórias de vida,

impacto da relação docente-estudante e estudante-

estudante, entendimento da Universidade como

espaço que privilegia a crítica, sedimentada a

partir do diálogo; atividades de aprimoramento da

reflexão dos estudantes com uma rotina

preocupada com registros e acompanhamento,

reescritura/reflexão crítica; a perspectiva dialógica

dada à linguagem na disciplina, aprimoramento da

competência linguística, capacidade de reflexão e

desenvolvimento de autoria.

Constituem-se como universo da

pesquisa, 115 estudantes, do total dos quase 3.000

ingressantes na Universidade em 2010, maiores de

18 anos, selecionados de forma aleatória nas

diversas turmas. Foram coletados os Termos de

Consentimento e Livre Esclarecido, com

assinatura de forma voluntária, conforme

exigência do Comitê de Ética em Pesquisa,

devidamente protocolados.

A pesquisa tem em sua natureza a

dimensão da compreensão do contexto sócio-

histórico, onde todos os sujeitos envolvidos no

processo são participantes ativos, ou seja, são

sujeitos do processo. Cabe, pois, a abordagem

metodológica a partir da hermenêutica.

A racionalidade hermenêutica trabalha

com a pertença do sujeito à história e a

constituição de sentido como obra de

subjetividade não isolada e separada da história.

Baseada na premissa de que somente é possível

compreender no horizonte do ser, justifica-se o

esforço em retomar a história do sujeito como

elemento chave do processo de acolhida e de

inclusão no lugar denominado mundo acadêmico,

ou ensino superior.

A hermenêutica argumenta que há outras

formas de conhecer a realidade, a partir, inclusive,

de outras experiências tais como as

proporcionadas pela arte e pela consciência

histórica (HERMANN, 2002). Ela é a arte de

compreender, derivada de nosso modo de estar no

mundo. Segundo Gadamer,

Compreender significa que eu posso

pensar e ponderar o que o outro pensa.

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IES – Uma experiência inclusiva no ensino superior 107

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 103-114, jul./dez.2012

[...]. Compreender é, portanto, uma

dominação do que nos está a frente, do

outro e, em geral, do mundo objetivo

(2000, p. 23).

Na perspectiva da investigação

hermenêutica (GADAMER, 2000) nas ciências

humanas e na filosofia, tudo se converte em texto.

O método de análise dos dados parte da

hermenêutica, que está diretamente ligada à

linguagem. É uma relação reflexiva entre o objeto,

os dados e o pesquisador. A atitude de abertura do

pesquisador é fundamental, visto que a própria

consciência hermenêutica aponta para a

experiência constante de construção. Não há,

portanto, certezas, mas a construção a partir da

interpretação da linguagem, dos símbolos, do dito

e do não-dito.

Gadamer (2000) sugere sete princípios

para a condução da pesquisa: compreensão através

de uma reflexão dialógica (os pesquisadores

dialogaram com os textos em análise, procurando

extrair deles as pistas que o conduziram à

compreensão dos elementos presentes);

contextualização – fundo social e histórico

(compreensão de que o texto foi produzido em um

determinado momento e em determinadas

circunstâncias); interação entre pesquisador e

participantes (os pesquisadores se colocaram

como elemento integrante, no caso, são todos

membros atuantes da disciplina); abstração e

generalização – as conclusões gerais são

abstraídas de seus detalhes ideográficos

(individuais) e aplicadas (os textos dos estudantes

formam o corpus, porém procurou-se resguardar

as especificidades de cada um dos discursos

analisados); raciocínio dialógico – diante das

contradições entre os preconceitos teóricos e as

conclusões emergentes dos dados (na primeira

leitura foi feito um esforço de percepção do que

os dados tinham a dizer, evitando uma visão pré-

formada a partir de eventuais expectativas que

tenham sido criadas); múltiplas interpretações –

múltiplas vozes oferecem diferentes e novas

interpretações (procurou-se perceber as

recorrências mas também as singularidades, o dito

e o não-dito, os silenciamentos, e o novo, o

diferente); suspeita e sensibilidade – em relação

aos preconceitos do próprio pesquisador (o

esforço foi feito no sentido de não dar ênfase à

nossa própria expectativa, e manter a postura de

abertura em relação ao que o texto nos mostra,

procurou-se prestar atenção aos nosso próprios

preconceitos, evitando deixar que eles orientassem

a leitura).

Em uma análise textual, procura-se

sistematizar respostas para as questões

formuladas, confirmar ou não as elaboradas para a

pesquisa. A outra função diz respeito à descoberta

do que está além da superfície do texto.

Pelos escritos dos estudantes, objetiva-se

compreender se os propósitos da disciplina estão

sendo alcançados, numa perspectiva de

compreensão dessas falas no contexto do ensino

superior, hoje.

Análise preliminar de dados

A expectativa inicial dos pesquisadores é

que as escritas dos estudantes possam ajudar na

reflexão a respeito das condutas pedagógicas dos

professores da IES e os demais cursos da

Instituição.

O enfrentamento das condições

acadêmicas dos estudantes pesquisados pode ser

observado nos escritos. Das 115 cartas analisadas,

50 relatam o importante processo de acolhimento

da IES, citando seu passado escolar, muitas vezes

carregado de dificuldades na leitura e na escrita e,

ao mesmo tempo, relatando o quanto a disciplina

favoreceu em sua inserção no ensino superior.

A apreciação das cartas foi realizada à luz

dos objetivos da disciplina: Cuidado com a

Acolhida; Cuidado com a Reflexão e Cuidado

com a Linguagem, tendo como basea

metodologia, os conteúdos e a rotina em sala de

aula desenvolvida pela IES.

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108 Lia Scholze, Iolanda Bezerra dos Santos Brandão

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 103-114, jul./dez.2012

Fonte das tabelas e gráficos: Relatório de Pesquisa 2011: Contribuições da disciplina Introdução à Educação Superior

no processo de inclusão efetiva dos estudantes.

Algumas falas chamam a atenção:

“Aprendi a me comportar como universitário e

como utilizar as ferramentas certas nessa nova

realidade que é a Universidade”, o que contribui

para a construção de um espaço pedagógico que

favoreça a pertença ao grupo. Outra fala chama a

atenção para os “[...] vários debates e várias

reflexões para desenvolver o senso crítico [...] e o

professor está sempre disposto a ajudar, aberto a

opiniões e ideias”3.

A recorrência deste aspecto deve-se à

própria natureza de acolhida da disciplina que

compreende o estudante como sujeito do processo

de construção do conhecimento na ressignificação

de tempos e espaços escolares e das relações e

tensões constitutivas da sala de aula.

Fonte das tabelas e gráficos: Relatório de Pesquisa 2011: Contribuições da disciplina Introdução à Educação Superior

no processo de inclusão efetiva dos estudantes.

Destacam-se citações positivas de 68

estudantes sobre a relação construída entre eles e

seus professores. Este item apresentou maior

número de ocorrências. Percebe-se que essa

relação é considerada como um elemento

importante do aprendizado. “A professora se

esforça em suas aulas, sempre montando aulas

dinâmicas com temas interessantes. Nas chamadas

ela tem seu ritual, conversa com cada um, uma

forma de testar o humor e ver como os alunos

estão presentes”.

Pode-se dizer que é algo que os

surpreende, tanto pela proximidade, pela abertura

ao diálogo, quanto pela atenção recebida.

Percebem, também, que as exigências têm como

finalidade garantir o aprendizado.

[...] quero te agradecer desde o momento

da chamada em que você sempre nos

perguntava como estávamos nos sentindo

naquele dia [...]. Com os registros

estimulei uma capacidade maior de

escrever, sua relação comigo e com os

outros estudantes foi muito agradável,

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IES – Uma experiência inclusiva no ensino superior 109

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 103-114, jul./dez.2012

quanto aos outros colegas, agora amigos.

A respeito das relações entre os

estudantes, considerando-se a diversidade de

alunos provenientes de vários cursos nas turmas

de IES, 60 alunos atribuem muitaimportância aos

laços de amizade e companheirismo entre os

colegas de turma. A troca nos debates e os

trabalhos em grupo são apontados como de grande

validade no crescimento das relações interpessoais

que são fortalecidas dentro da IES. “Meus colegas

de sala são participativos, gostam de debate, falam

o que acham sobre determinado assunto [...] posso

falar que aproveitei muito essa matéria aprendi

com as pessoas que caminharam comigo [...]”.

Também “Aqui como todos os lugares existem

aquelas “Panelinhas” mas qualquer pessoa pode

interagir com esses grupos, pois aqui existem

pessoas acolhedoras [...] elas, não vão te deixar

sozinho”.

Fonte das tabelas e gráficos: Relatório de Pesquisa 2011: Contribuições da disciplina Introdução à Educação Superior

no processo de inclusão efetiva dos estudantes.

Os estudantes reconhecem suas limitações

e admitem que a disciplina os auxilia no aumento

da qualificação de sua produção oral e escrita bem

como no aprofundamento dos níveis de leitura.

Apresentam ponderações a respeito da

reorganização do modo de pensar sobre os

conteúdos, metodologia de apresentação,

discussão, debate e reflexão. “[...] Eu aprendi

fazer resenha, lembra que o professor [...] passou

dois anos para tentar me ensinar, pois é, em

menos de seis meses eu aprendi a fazer resenha,

resumo, fichamento, registros e entre outros”.

Refletem sobre as exigências na leitura e

na escrita como forma de garantir o aprendizado.

Leitura e escrita é um fator muito

importante porque abre novos horizontes.

A leitura para nós é de grande valor quem

não lê, não fala, não escreve e não pensa.

[...] Escrever é transpor seus

pensamentos, suas opiniões para um

papel e aperfeiçoar a cada instante, a

cada dia [...].

Nessa disciplina deu para perceber que

tudo que estudamos faz parte do nosso

cotidiano, que forma nossa maneira de

viver e de pensar. [...] Então podemos

concluir que através de nossa linguagem

e nosso pensamento podemos construir o

mundo que somos e o mundo que

sonhamos.

As dificuldades advindas do baixo

rendimento escolar na rede pública de ensino

também são registradas pelos estudantes: “[...]

quando decidi fazer minha faculdade pensava eu

que seria muito difícil encarar essa nova

experiência, devido o ensino que tive em algumas

escolas públicas que estudei [...]”. Outro estudante

relata “O Senhor sabe que como sempre estudei

em escola pública, deixei de aprender muitas

coisas, só que aqui eu estou recuperando o tempo

perdido e aprendendo pra valer [...]”.

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110 Lia Scholze, Iolanda Bezerra dos Santos Brandão

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 103-114, jul./dez.2012

Fonte das tabelas e gráficos: Relatório de Pesquisa 2011: Contribuições da disciplina Introdução à Educação Superior

no processo de inclusão efetiva dos estudantes.

Análise dos memoriais

A leitura dos memoriais foi realizada de

forma livre, seguindo a perspectiva hermenêutica

de ouvir a voz do sujeito partindo da escuta livre

dos discursos produzidos pelos sujeitos

envolvidos na pesquisa.

Os memoriais mencionam a importância

de elementos como: metodologia (proposta da

disciplina permite relacionar diferentes temas e

conceitos); conteúdos (materiais

diversificados/atividades/temas – assuntos

variados/habilidades desenvolvidas) e o trabalho

com a leitura e escrita.

O aspecto mais importante a destacar é o

fato de que quase 100% dos estudantes expressam

uma percepção positiva – dos 115 memoriais

analisados, apenas três fazem algum tipo de

restrição à disciplina. Um deles apresenta um

texto contraditório pois afirma no final a

importância da IES para seu curso.

Com relação a sua vivência no espaço

universitário, os estudantes, na mesma perspectiva

já apresentada nas cartas, demonstram percepção

positiva e, ao mesmo tempo, grande expectativa

com relação ao seu ingresso na Universidade. Para

eles, a disciplina IES facilita o processo de

integração ao mundo acadêmico.

As abordagens desenvolvidas na

disciplina sobre Ética/Conhecimento e Ciência

foram destacadas pelos estudantes, quanto a sua

relevância na compreensão do sujeito crítico

frente à realidade de sua vida pessoal e

profissional. Permite pensar o futuro, ressignificar

seus sonhos e projetos.

Sei que a universidade será de grande

valia na minha formação, na

concretização de meus sonhos [...] quero

ser um profissional de sucesso, e sei que a

universidade vai me abrir caminhos, e vai

me capacitar para alcançar meus

objetivos e realizar meus sonhos.

A superação pessoal e familiar é um tema

abordado pelos estudantes, principalmente os

oriundos de escolas públicas. “outro fator

importante é que meus pais não tiveram a

oportunidade de cursar o ensino superior e isto me

dá razão para eu estar na universidade hoje [...]”.

Destaca-se a possibilidade encontrada na

disciplina de ampliação das relações de amizade

construídas além de seu próprio curso, uma vez

que as turmas da IES são constituídas de

estudantes de diversos cursos. “Aprendi a aceitar

[...] as outras pessoas como seres humanos [...]

com histórias e sonhos diferentes”. E, “[...]

podemos compartilhar experiências, ter contato

com pessoas de outros cursos”.

A relação estudante/docente, também, é

um dos elementos apontados como fator

preponderante no processo de aprendizagem dos

estudantes. “Concluo que o professor me

introduziu em mundo novo, nos proporcionou

novas experiências podendo assim, ter melhor

visão da realidade”.

A respeito dos conteúdos da IES, alguns

aparecem com mais evidência: o trabalho com

filmes; as Normas da Associação Brasileira de

Normas Técnicas – ABNT; a produção de

resumos, sínteses. Os temas abordados são

considerados atuais, variados e diversificados. Os

diferentes ambientes de aprendizagem, as

palestras, a visita à biblioteca, a apresentação de

filmes e documentários, as atividades ao ar livre,

compõe um conjunto de ações, visto como

favorável à motivação e ao envolvimento dos

estudantes.

Pode-se constatar a partir das falas: “[...]

os textos lidos, os vídeos assistidos e todas as

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IES – Uma experiência inclusiva no ensino superior 111

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 103-114, jul./dez.2012

dinâmicas feitas em sala de aula, podendo ter

comunicação com todos os colegas, tudo isto me

fez ter um reconhecimento diferente da disciplina

e tenho vivido isto a cada aula”. E “Na IES

aprendi outras questões além do meu curso,

aprender sobre políticas públicas. Aprender sobre

a universidade foi fundamental para me sentir

parte do espaço da universidade e deu segurança”.

Ou ainda,“[...] a minha evolução foi superior em

relação ao que eu esperava [...], hoje a minha

visão é outra, o interesse pela leitura de mundo

aumentou e tenho tido experiências a partir do que

eu tenho visto e vivido em sala a disciplina me

trouxe um despertamento [...]”.

A dificuldade de compreender e,

inicialmente, fazer uma correlação positiva da IES

com sua trajetória acadêmica é claramente

demonstrada pelos estudantes. A superação dessa

primeira percepção vai ser construída à medida

que compreendem o processo pedagógico da

disciplina e sua importância na sua formação

profissional. Como podemos constatar nos

excertos abaixo:

A IES no primeiro momento parece uma

pressão, porem é possível perceber que é

uma qualificação para o preparo para a

pesquisa e dedicação ao estudo. Aprender

a se desprender do senso comum foi um

ganho na IES e também aprender a

colocar o que a prendo no curso dentro

do contexto pesquisa e extensão.

Ou ainda, “[...] essa disciplina foi se

mostrando bem diferente com aulas mais

dinâmicas onde podemos expressar nosso ponto

de vista sobre os fatos e temas apresentados pelo

professor em sala de aula”.

A IES ensinou a enfrentar os desafios e a

melhorar as deficiências de

conhecimentos. A IES é o inicio de um

grande caminho de aprendizagem e de

conquistas. São muitos os desafios. Tem

cansaço, correria, desafios, desânimo,

mas a universidade é a oportunidade de

mudar de vida. O mercado de trabalho

precisa de pessoas boas, que busquem

soluções para os problemas sociais que

assolam o país. Os assuntos estudados em

IES tem tudo a ver com a realidade

vivenciada. A universidade nos possibilita

ver o mundo de forma diferente.

Como também, “[...] a IES foi bastante

importante na minha caminhada até aqui,

contribuindo sim para consolidar minha escolha,

posso dizer que tenho certeza do curso em que

quero me formar”. E,“IES, é desafio de que a

construção do conhecimento é gradativa e

constante [...]”. Ainda, “A IES ajudou na

construção do texto e na interpretação assim como

na exposição em público. IES colabora na

abertura das ideias e da visão de mundo”. Bem

como,“IES é uma matéria aparentemente sem

importância, mas que vai conquistando e

mostrando seu valor ao longo do semestre. Hoje

vejo que melhorei muito graças a essa matéria, e

sei que todos que passarem por ela também

crescerão muito com ela”. Também,“Esta

caminhada pela disciplina IES também vai ajudar

na minha carreira profissional [...] esse senso

crítico adquirido na graduação será de grande

valia [...]”.

Três aspectos também compõem os

escritos dos memoriais dos estudantes: o processo

de acolhida que recebem, desde os primeiros

encontros da IES, por parte dos docentes; o

processo de transição entre Ensino Médio e o

Ensino Superior e a utilização de materiais

diversificados como componente didático

pedagógico.

“[...] pude perceber a importância da

sensibilidade, a atenção as relações humanas fatos

todos apresentados pelo professor [...] e que é

essencial para o convívio na sociedade, o

respeito”. E,

[...] ansiosos por conhecer o novo mundo

universitário, somados a vontade de

ensinar da professora que ministrou a

disciplina, me fizeram olhar para trás e

perceber o que havia de certo e errado na

minha trajetória, bem como auxilio a

planejar o caminho que ainda virá que,

com conhecimento já adquirido pode ser

de sucesso.

Ainda, “Sempre estudei em escola

pública, na cidade onde vivo não existe recursos

que possam ajudar com êxito na formação de

grandes profissionais, com muito esforço consegui

chegar aonde estou”. Bem como,“IES apresenta o

papel da universidade para o estudante. O papel

da ciência e do conhecimento para o

desenvolvimento da sociedade. Conhecer sobre as

comunidades científicas e modelos de estudos”.

Ou ainda, “Universidade é SONHO”.

Sinto-me privilegiada por ter tido a

oportunidade de cursar a disciplina de

IES porque muito me acrescentou para

seguir minha carreira com disposição de

ajudar aos próximos. Sem contar que

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112 Lia Scholze, Iolanda Bezerra dos Santos Brandão

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 103-114, jul./dez.2012

superei o meu medo e receio de falar em

publico por me sentir tranquila nas aulas

devido a maneira como as mátrias foram

dadas (meio de diálogo, deixando aberto

espaço para reflexão de outras

possibilidades de pensamento).

“IES ajuda na argumentação e manter

ideias para a construção de pensamentos

diferenciados. IES ajuda no contraponto da média

que relata uma parte da realidade. Vários textos

utilizados foram importantes para a mudança e

construção de argumentos”. E, “[...] as aulas de

IES não contribuíram apenas na minha formação

de um ser humano melhor, mas flexível, mas

solidário, mas compreensível, mas humano. A

importância dessa matéria vai muito além da

formação de um profissional competente, mas

petiço e batalhador.”

Não há dúvida de que o processo de

construção e ressignificação da leitura, escrita e

oralidade por intermédio dos registros são

observados como positivos no desenvolvimento

acadêmico dos estudantes - firmar conteúdos

ressaltados na importância da escrita; textos lidos

e debates; importância da palavra; universo

simbólico; leitura, escrita e oralidade.

Exemplificamos com algumas falas dos

estudantes: “Não tinha tanta habilidade em

seminários, com a disciplina eu melhorei. Não só

neste aspecto mas também na escrita, na oralidade

do dia-a-dia e na defesa dos meus ideais [...]”.

Ou,“[...] a escrita nos diários nos proporciona uma

melhor escrita e a fixação do que temos estudado

desde o começo”. Também, “[...] quero ressaltar o

fato de que a leitura é sempre mencionada e muito

trabalhada em sala [...] o que proporciona maiores

chances de expor e debater com mais argumento e

consciência”.

Por fim, a importância de se discutir

ciência e as diversas compreensões dialógicas

entre globalização; comunidade científica;

construção do conhecimento científico; filosofia

da ciência; ciência moderna; paradigmas;

universidade e sociedade; realidade; globalização;

história de vida. Os estudantes fizeram

ponderações como: “[...] tenho tido a

oportunidade de ler de forma mais detalhada e

aprofundada várias questões relacionadas à

política, ao social, ao cultural que me fazem

refletir e criar minhas próprias críticas e

reflexões”. E, “[...] é muito bacana o fato de

termos estudado o consumo, a política, a

comunidade científica entre outros assuntos que

não fazem parte diretamente ao curso que

escolhi”. Ou ainda, “[...] formei um novo

paradigma com a minha nova realidade: sempre se

é preciso quebrar uma velha verdade absoluta e

estar aberto a uma nova; para se mudar a vida ao

mudar a nossa percepção de mundo”.

Considerações finais

As análises preliminares das cartas e dos

memoriais dos estudantes demonstram o quanto é

oportuna a proposta desenvolvida pela UCB. Os

estudantes reconhecem, de modo geral, os

diferentes níveis de crescimento que a disciplina

proporciona. Em relação aos docentes, houve um

trabalho fecundo de interação e aprimoramento a

partir da escuta dos seus alunos, oportunizando

que o processo, como um todo, sofresse um

contínuo aprimoramento, tanto em nível

metodológico, de seleção de materiais; de

aprofundamento das abordagens e de

enriquecimento das atividades; como atividades

de recepção inicial ou dos encontros temáticos.

De outro modo, nos ajuda a perceber o

quanto ainda se faz necessário trabalhar para

termos a compreensão de todo o processo que

envolve a construção e desenvolvimento desta

jovem disciplina em seus aspectos teórico, prático

e metodológico.

Pela sua própria natureza, muitas outras

questões ainda estão emergindo. Diversos

materiais produzidos pelos professores e

estudantes poderão ser objeto de análise nessa ou

em uma futura pesquisa. Hoje, após cinco

semestres de oferta da disciplina cabe uma nova

investigação para avaliar em que medida este

crescimento se deu.

Entretanto, uma constatação é claramente

observada nessas primeiras análises: a grande

responsabilidade social das instituições de ensino

superior que, alicerçadas nos diversos programas

do Governo Federal, acolhem este novo público.

O grande desafio destas instituições é

oferecer um ensino de qualidade com vista à

formação teórica, humana e social garantindo a

permanência e o sucesso dos estudantes que

acessam o espaço acadêmico, de modo que

possam, como profissionais, contribuir com a

construção de uma sociedade mais justa e

igualitária, utopia possível a partir da formação de

novos quadros nas diferentes áreas oriundos de

estratos sociais que trarão novas experiências para

suas futuras áreas de trabalho, lançando quem

sabe soluções mais éticas e mais socialmente

preocupadas com a maioria da população,

mudando, quiçá, o perfil dos profissionais em

diferentes áreas.

No cotejamento entre as Cartas e os

Memoriais observam-se manifestações positivas

em relação ao espaço universitário; as diversas

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IES – Uma experiência inclusiva no ensino superior 113

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 103-114, jul./dez.2012

vivências experimentadas e o desempenho

acadêmico dos estudantes, além das relações

interpessoais desenvolvidas em ambos os

materiais.

Em que pese os documentos terem sido

escritos pelos estudantes em situação de avaliação

em final de semestre, a recorrência em quase sua

totalidade de manifestações positivas em relação a

diferentes aspectos da disciplina nos permite

concluir que houve aceitação e compreensão da

proposta pedagógica da disciplina IES junto aos

estudantes.

A apresentação dos dados coletados em

reunião interna com o grupo de professores (entre

30 a 40 docentes por semestre, dependendo do

número de matrículas) junto com a Coordenação

da disciplina e direção do Curso de Filosofia,

permitiu a reflexão sobre a trajetória da disciplina

até o presente momento, que completa cinco

semestres desde a sua implantação, no primeiro

semestre de 2010. O detalhamento de cada um dos

aspectos analisados oportuniza que o trabalho seja

constantemente ressignificado e aprimorado,

buscando cada vez garantir melhores condições de

aprendizado aos estudantes, em coerência com a

missão institucional da Universidade Católica de

Brasília.

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114 Lia Scholze, Iolanda Bezerra dos Santos Brandão

Horizontes, v. 30, n. 2, p. 103-114, jul./dez.2012

Notas

1 O trabalho foi apresentado no XVI ENDIPE – Encontro Nacional de Didática e Práticas Pedagógicas.

Campinas, São Paulo, 2012.

2 A presente pesquisa é financiada pela Universidade Católica de Brasília.

3 As autoras optaram por manter os escritos dos alunos de acordo com o original.

Sobre as autoras:

Lia Scholze: Doutora em Educação (UFRGS), professora da Universidade Católica de Brasília (UCB),

coordenadora da pesquisa Contribuições da disciplina Introdução à Educação Superior no processo de

inclusão efetiva dos estudantes.

Iolanda Bezerra dos Santos Brandão: Doutora em Psicologia Social (PUC/SP), professora da

Universidade Católica de Brasília (UCB), membro do grupo de pesquisa Contribuições da disciplina

Introdução à Educação Superior no processo de inclusão efetiva dos estudantes.

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Para além da relação poder-saber: governo-verdade

Clarice Nunes Ferreira Costa*

FOUCAULT, Michel. Do governo dos Vivos – Curso no Cóllege de France, 1979-1980 (excertos).

Tradução, transcrição, notas e apresentação de Nildo Avelino, Rio de Janeiro Achiamé, 2010.

O livro ora resenhado é constituído por

um curso ministrado por Michel Foucault entre

1979 e 1980, sem edição ou verificação

acadêmica, mas que traz ao leitor a circulação de

ideias propostas pelo filósofo. Os editores do livro

afirmam que a edição oficial do curso virá a

público o mais breve possível e que por enquanto

podemos nos aventurar em excertos de Do

governo dos vivos.

Michel Foucault (1926 – 1984) é um dos

filósofos mais aclamados de seu tempo. Ao longo

de sua carreira desenvolveu o que para alguns

autores são chamadas de fases, para Veiga-Neto

são domínios foucaultianos. Levando em

consideração que a questão central da obra de

Foucault é o sujeito, o primeiro domínio é

chamado de Arqueologia, que se dedica a

descoberta do sujeito e do saber. O segundo

domínio, o filósofo desenvolve sobre o sujeito e o

poder, chamado, então, de Genealogia. No

terceiro domínio, Foucault dedica seu trabalho a

estudar o sujeito consigo mesmo. Esta é a fase da

ética, da estética e da história da sexualidade.

Do governo dos vivos é um curso dado

entre um domínio e outro; segundo Pasquale

Pasquino, colaborador de Foucault no Collège de

France, foi o inconveniente da guerra que levou o

filósofo perceber a dicotomia entre soberania,

entendida como forma jurídica, e um poder

disciplinador e normalizador, emergindo daí a

questão do governo. Por se tratar de um curso, a

leitura desta obra destoa da leitura dos livros do

autor, pois ele não se preocupa com a coerência

das palavras como ele o faz em seus livros.

A partir de 1980, Michel Foucault

introduz uma nova problematização nos

seus estudos sobre a relação de poder

através da qual ele renovou

consideravelmente seu “método” de

análise: trata-se da anarqueologia dos

saberes que consiste no deslocamento

analítico do eixo Poder-Saber para o eixo

“governo dos homens pela Verdade sob a

forma de Subjetividade” (AVELINO,

2010, p. 11-12).

O movimento que leva o autor ao cerne de

seu curso, ora resenhado, parte do abandono do

discurso da guerra como operador analítico de

poder e passa para um novo conceito de governo,

da analítica do poder à ética do sujeito.

Precisamos assim, partir do conceito de

govenamentalidade, pois

Foucault tom(a) por objeto de estudo os

modos de conceitualização das práticas

de governo com a finalidade de apreender

a maneira para qual essa

conceitualizaçao estabeleceu os objetos,

as regras gerais e os objetivos de

conjunto que são próprios ao seu

domínio. Trata-se em suma, de um estudo

da racionalização da prática

governamental no exercício da soberania

política (AVELINO, 2010, p. 17).

Sendo assim, Foucault aborda a

constituição histórica das nossas formas atuais de

obediência. Com sua genialidade, o autor conduz

suas aulas passando pela Antiguidade, a Idade

Média e a Era Moderna. Ainda, a verdade é a

desencadeadora da racionalidade neste percurso.

Na aula 1, Foucault conta a história do

Sétimo Severo, em que seu exercício de poder se

dá pela manifestação de uma verdade, revelando

que o Imperador Romano pronuncia uma sentença

de ordem num mundo estabelecido, isto é, ele

impõe uma sentença pela verdade já posta. O

poder não se manifesta sem a verdade. “(...)

Sétimo Severo rendia sua justiça e pronunciava

suas sentenças de maneira a inscrevê-las numa

ordem do mundo absolutamente visível fundada

em direito, fundada em necessidade, fundada em

verdade” (FOUCAULT, 2010, P. 31).

Foucault explica que a natureza entre o

ritual da manifestação da verdade e o exercício de

poder encontra-se

[n]um conjunto de procedimentos verbais

ou não, através dos quais é atualizada a

consciência individual do soberano e o

saber de seus conselheiros; um conjunto

de procedimentos verbais ou não através

dos quais atualiza-se qualquer coisa que

é afirmada, ou melhor, colocada como

verdadeiro, seja por oposição a um falso

que foi eliminado, discutido, refutado etc.,

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mas que é também colocado como

verdadeiro por revelação ou ocultação,

por dissipação disso que é esquecido, por

conjuração do imprevisível (FOUCAULT,

2010, p.35).

Sétimo Severo acreditava nos astros para

o exercício de seu poder e o exercia sob o céu

astral desenhado em sua cúpula que o conduzia;

esse céu presidia “sua justiça, seu destino, sua

fortuna; se ele quis que os homens lessem como

verdade aquilo que ele fazia como política, aquilo

que ele fazia em termos de poder, tudo isso não

passava do jogo de um imperador (...)”

(FOUCAULT, 2010, p. 32).

Para, além disso, no céu estrelado “(...)

vê-se uma espécie de manifestação pura do

verdadeiro, manifestação pura da ordem do

mundo em sua verdade, manifestação pura do

destino do imperador e da necessidade que lhe

preside, manifestação pura da verdade sobre a

qual, em última instância, se fundam as sentenças

do Príncipe” (FOUCAULT, 2010, p. 34).

A respeito do Príncipe da Renascença,

Foucault explicita que há em torno dele certo

número de atividades, saberes, conhecimentos,

práticas e, ainda, afirma que

(...) o fenômeno das cortes representa

também outra coisa e que havia nas

cortes, e nessa extraordinária

concentração de atividades culturais, uma

forma de dispêndio puro de verdade, uma

forma de manifestação da pura verdade:

lá existe poder, lá onde é preciso que

exista poder, lá onde se quer mostrar que

efetivamente reside o poder, e bem, é

preciso que exista o verdadeiro; (...) A

força do poder não é independente de

qualquer coisa como a manifestação do

verdadeiro entendido para além disso que

é simplesmente útil e necessário para bem

governar (FOUCAULT, 2010, p. 39).

Nos séculos XVI e XVII o poder

principesco se fortalece, constituindo-se de uma

série de conhecimentos que possibilitam a arte de

governar. As manifestações de saber se dão

através de bruxas, astrólogos, adivinhos etc. Mas

o caminho para a constituição da razão do Estado

faz com que essas figuras façam um movimento

que foi evidentemente a sua contrapartida

negativa, neste momento “(...) é preciso caçar o

adivinho do rei, é preciso substituir o astrólogo

por essa espécie de conselheiro que foi ao mesmo

tempo o detentor e o invocador da verdade e

substituí-lo por um verdadeiro ministro que seja

capaz de fornecer ao Príncipe um conhecimento

útil.” (FOUCAULT, 2010, p. 40). Esse

movimento foi marcado principalmente pela caça

às bruxas que, como resultado da Reforma e da

Contra-Reforma, mostrou que a cristianização

havia sido muito fraca durante o século

precedente.

A partir do termo aleturgia, que é a

expressão para o verdadeiro, Foucault nos leva a

entender que a exclusão do adivinho e a caça às

bruxas nas camadas populares é um fenômeno que

tem duas vertentes: na direção do Príncipe e na

direção popular. “Era preciso eliminar aquele tipo

de saber, aquele tipo de manifestação do

verdadeiro, aquele tipo de produção da verdade,

aquele tipo de aleturgia, tanto nas camadas

populares quanto, e com mais razão, do entorno

do Príncipe e da corte”. (FOUCAULT, 2010, p.

41). Portanto, a razão de Estado deveria tomar o

lugar daquilo que fazia presidir no governo, a

bruxaria, a astrologia e a adivinhação. A Idade

Média é regulada pela Bíblia, portanto deve-se

obediência ao Papa. Na Era Moderna o Papa é

substituído pelo Príncipe e o povo deve

obediência ao Rei.

Foucault dedica-se na aula IV a falar

sobre os Regimes de Verdade, pois é a partir daí

que ele propõe estudar o cristianismo. Nas

palavras do filósofo:

Por regimes de verdade eu gostaria de

entender aquilo que constrange os

indivíduos a um certo número de atos de

verdade (...) é, portanto, aquilo

constrange os indivíduos a esses atos de

verdade, aquilo que define, que determina

a forma desses atos; é aquilo que

estabelece para esses atos condições,

efetuações e efeitos específicos. (...) um

regime de verdade é aquilo que determina

as obrigações dos indivíduos quanto ao

procedimento de manifestação do

verdadeiro. Obrigação dos indivíduos

quanto ao procedimento de manifestação

do verdadeiro, quer dizer a junção dessa

noção de obrigação com relação à noção

de manifestação da verdade em que a

verdade obriga pelo fato dela ser

manifestada (FOUCAULT, 2010, p. 67).

A verdade só se dá em relação ao outro e,

portanto, só é verdade se o sujeito se declina a ela.

Para Foucault (2010, p. 71) a frase “É verdade,

portanto, eu estou vinculado”, carrega o sentido

de - você deve se inclinar - que é imanente à

manifestação da verdade e que “é um problema

histórico-cultural” (2010, p. 72).

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Para levantar as questões “Como tornar-se

o outro? Como, sendo o que é, tornar-se

inteiramente o outro? Como, estando, nesse

mundo, passar a um outro? Como, estando no

erro, passar à verdade etc?” Foucault faz uma

reflexão sobre o batismo, a ressurreição, a

mortificação e nos revela que o problema da

ruptura da identidade “gerou-se para nós o

problema da relação entre a subjetividade e a

verdade.” Ele, ainda, afirma que no cristianismo a

relação entre subjetividade e verdade “foi pensada

a partir da morte” (FOUCAULT, 2010, p. 82).

Se um ato de verdade são os rituais e os

procedimentos para entrar no regime de verdade,

então o batismo é um ato de verdade. Segundo

Foucault, é a mortificação o essencial sentido do

batismo. “É preciso morrer para poder viver, e

imediatamente as provas da verdade vão tomar

sentido nisso que trata de autenticar a

mortificação na qual deve constituir o caminho

para a verdade (...) ir à verdade que é a vida e vida

eterna por um caminho que é a mortificação” (p.

80).

A culpa também é um aspecto do batismo,

pois no cristianismo essa culpa manifesta desde

Adão até os dias de hoje. A culpa é o triunfo de

Satã. Foucault ressalta que no cristianismo há uma

luta incessante contra o outro que está em nós, no

fundo da alma e o caminho para a verdade é o

combate por essa expulsão do outro. Então, nos

submetemos aos rituais, aos atos de verdade para

a salvação. Passamos por provações e somos

tentados o tempo todo. “(...) a verdade não pode

produzir seus efeitos na subjetividade a não ser

com a condição de que exista a mortificação, na

condição de que ocorra luta e combate com o

outro, na condição de que se manifeste sem cessar

a si e aos outros a verdade disso que se é” (p.83).

Na aula VI, Foucault apresenta o bem e o

mal como um sistema de lei, pois pelo princípio

da separação “(...) incide sobre a ação e sobre os

elementos característicos da ação (...) por

definição a culpa como ação ruim é

indefinidamente repetível; é uma forma de ação

possível e a repetitividade da culpa está inscrita

ela mesma no funcionamento da lei” (p. 85).

Em função disso, o autor assegura que “o

esquema da salvação, o esquema da perfeição é

completamente diferente” (p.86). A qualidade do

sujeito determina a qualidade da ação; se o sujeito

é o do conhecimento, então implica

irreversibilidade, se o sujeito é o da vontade, ele

pode querer cessar tanto o bem quanto o mal,

novamente. Essa vontade, assim como a

submissão se faz num jogo na direção dos

indivíduos. Foucault assegura que “existe alguém

que guia a minha vontade, (...) mas querendo a

cada instante aquilo que o outro quer que eu

queira” (p. 88).

Na direção dos indivíduos não existe

estrutura, mas sim técnicas criando a relação de

uma vontade com outra, assim, conforme

Foucault “A fórmula da direção no fundo é: ‘Eu

obedeço livremente isso que tu queres para mim,

(...) que tu queres que eu queira, de maneira que

eu possa estabelecer uma certa relação de mim

comigo mesmo’.”

Nesse sentido de direção dos indivíduos

de Foucault, encontramos na aula VIII de seu

curso, o que a direção deve produzir: a

obediência. Foucault declara que “a obediência

produz obediência” e segue complementando que

“(...) obedece-se para poder tornar-se obediente,

para produzir um estado de obediência” (p. 99).

O autor, ainda, utiliza-se da obediência monástica

para exemplificar a estrutura da obediência

citando três características: “(...) a submissão que

diz ‘eu quero isso que quer o outro’; (...) a

paciência que diz ‘eu quero não querer outra coisa

do que quer o outro’; e humildade que consiste em

dizer ‘eu não quero querer’” (p. 102).

Observamos que o processo de obediência

é no fundo um processo de disciplinar a verdade.

Dessa maneira, podemos dizer que a noção poder-

saber desloca-se para a noção governo-verdade.

Outro pensamento a que este texto me

conduz é que na democracia que vivemos na

contemporaneidade devemos obediência a nós

mesmos, uma vez que o governo regulado pelo

povo deve obedecer a si mesmo, obedecendo às

suas regras e cumprindo suas obrigações de

cidadão.

Termino esta resenha destacando a

pergunta, lançada por Foucault, que me intrigou

durante a leitura de Do governo dos vivos e que a

cada vez que eu a leio abre-se um novo leque de

inquietações.

Por quê e como o exercício do poder

como governo dos homens, exige não

somente atos de obediência e de

submissão, mas atos de verdade nos quais

os indivíduos são sujeitos numa relação

de poder e o são igualmente sujeitos como

ator, espectador-testemunha, ou como

objeto no procedimento de manifestação

da verdade? (...) (FOUCAULT, 2010, p.

66)

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Sobre a autora:

Clarice Nunes Ferreira Costa: Professora da Faculdade Anhanguera e mestre em Educação pelo Programa

de Pós Graduação em Educação da Universidade São Francisco, Itatiba, São Paulo.

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Relação das dissertações defendidas no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em

Educação da Universidade São Francisco no período de julho a dezembro de 2012

GALLEGO, Eduardo Manuel Bartalini. Investigando as práticas de ensinar e aprender matemática nos anos

iniciais do ensino Fundamental em um grupo do PIBID. 2012. Dissertação (Mestrado em Educação),

Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação. Universidade São Francisco, Itatiba/SP.

Orientadora: Regina Célia Grando.

A presente pesquisa foi desenvolvida em um grupo constituído por estudantes do curso de Pedagogia de uma

universidade em uma cidade do interior do estado de São Paulo e professoras que atuam nos anos iniciais do

ensino fundamental em uma escola municipal dessa mesma cidade e que fazem parte do Programa de Bolsas

de Iniciação à Docência - PIBID. A pesquisa foi desenvolvida em uma abordagem qualitativa, a partir da

constituição de um grupo que, em alguns momentos, assumiu dimensões colaborativas. Buscamos responder

à seguinte questão: “Quais são as contribuições de uma parceria entre universidade e escola para as práticas

de ensino de matemática nos anos iniciais?”. Nosso objetivo é (1) “conhecer o movimento de resistências e

transformações nas culturas escolares de uma escola, decorrentes do trabalho compartilhado no grupo”; e (2)

“identificar as reflexões produzidas pelas professoras sobre os processos de aprender a ensinar matemática

quando compartilham suas práticas no grupo”. Para tanto, houve o acompanhamento do grupo em encontros

quinzenais nas oficinas de educação matemática, que foram audiogravadas e transcritas. Também foram

realizadas entrevistas individuais com as professoras que atuam nos anos iniciais e com os estudantes de

Pedagogia, futuros professores. Essas entrevistas foram textualizadas para que fossem apresentadas as

“vozes” dos atores envolvidos na pesquisa. Além das transcrições das audiogravações e das entrevistas,

foram utilizados como fonte de dados os relatórios anuais do projeto PIBID dos participantes do grupo As

análises e as sistematizações dos resultados foram discutidas em dois capítulos, um dedicado à discussão da

cultura escolar e cultura de aula de matemática, destacando as tensões e desafios enfrentados pelo grupo, e

outro com as reflexões das professoras, estudantes e as produzidas na interação do grupo. Como resultados

identificamos os processos reflexivos propiciados pelo grupo de discussão, bem como a carência dos

professores de um bom conhecimento epistemológico dos conceitos matemáticos. Também se evidenciou

que o PIBID proporcionou uma modificação nas metodologias utilizadas nas salas de aula em que o grupo

atuou, embora não se evidencie mudança de concepção enquanto à matemática e seu ensino nos anos iniciais

do ensino fundamental. Em relação às políticas públicas em formação de professores, o PIBID se destaca

como um espaço que contribui, em potencial, para a inserção do futuro professor nas práticas de ensinar e

aprender, nesse caso, a matemática, bem como possibilita reflexões às professoras da escola sobre suas

práticas pedagógicas. Com base nesse e em outros resultados, foram produzidas nossas considerações finais,

destacando a possibilidade do grupo como um espaço reflexivo e as apropriações dos conceitos matemáticos

pelas professoras.

Palavras-chave: Formação de professores, Estratégias formativas, PIBID, Educação Matemática.

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Normas para publicação

I. Tipos de colaborações aceitas pela revista Horizontes

Trabalhos originais relacionados à Educação em suas vertentes históricas, culturais e práticas

educativas que se enquadrem nas seguintes categorias:

1. Relatos de pesquisa, entre 20-25 laudas padrão, especificadas no item IV;

2. Estudos teóricos, entre 15-20 laudas padrão;

3. Entrevistas e/ou depoimentos de pesquisadores e estudiosos de reconhecida relevância no meio

acadêmico nacional e internacional, entre 10-15 laudas padrão;

4. Revisão crítica da literatura: análise de um corpo abrangente de investigação, relativa a assuntos

de interesse para o desenvolvimento da Educação nas vertentes assinaladas anteriormente,

limitada a 15-20 laudas padrão;

5. Resenha: revisão crítica de obra recém-publicada, orientando o leitor quanto a suas

características e usos potenciais, até 5 laudas padrão.

1. Seleção de artigos: originais que se enquadrem nas categorias 1 a 5 acima descritas serão avaliados

quanto à originalidade, relevância do tema, qualidade da produção, além da adequação às normas editoriais

adotadas pela revista. Serão aceitos para análise pressupondo-se que todas as pessoas listadas como autores

aprovaram o seu encaminhamento com vistas à publicação.

2. Critérios relevantes para publicação

a) Ineditismo do material: o conteúdo do material enviado para publicação não deverá ter sido

publicado anteriormente. Os conteúdos e declarações contidos nos trabalhos são de total

responsabilidade dos autores.

b) Revisão por pareceristas: os trabalhos enviados serão apreciados pelo Conselho Editorial, que

poderá fazer uso de consultores ad hoc, a seu critério. Os pareceres dos consultores comportam três

possibilidades: a) aceitação integral; b) aceitação com reformulação; c) recusa integral. Os autores

serão notificados da aceitação ou recusa de seus artigos, sempre que possível. Os originais, mesmo

quando recusados, não serão devolvidos. Revisão de linguagem poderá ser feita pelo Conselho

Editorial da revista. Quando este julgar necessárias modificações substanciais que possam alterar a

idéia do autor, este será notificado e encarregado de fazê-las, devolvendo o trabalho reformulado no

prazo máximo de um mês.

3. Direitos autorais: os direitos autorais dos artigos publicados pertencem à revista Horizontes. A

reprodução total dos artigos desta revista em outras publicações, ou para qualquer outra utilidade, está

condicionada à autorização escrita do(s) editor(es). Pessoas interessadas em reproduzir parcialmente os

artigos desta revista (partes do texto que excederem 500 palavras, tabelas, figuras e outras ilustrações)

deverão ter a permissão escrita do(s) autor(es).

Manuscritos submetidos que contiverem partes de texto extraídas de outras publicações deverão

obedecer aos limites especificados para garantir originalidade do trabalho submetido. Recomenda-se evitar a

reprodução de figuras, tabelas e desenhos extraídos de outras publicações e, se não for possível, o manuscrito

só será encaminhado para análise se vier acompanhado de permissão escrita do detentor do direito autoral do

trabalho original para a reprodução. Em nenhuma circunstância os autores citados nos trabalhos publicados

nesta revista repassarão direitos assim obtidos.

4. Língua: Os trabalhos serão aceitos em língua portuguesa, espanhola, francesa e inglesa.

5. Exemplares: Será oferecido 1 (um) exemplar da revista para cada autor ou co-autor da revista.

6. Notas sobre o(s) autor(es): incluir uma breve descrição (30-40 palavras) sobre as atividades atuais do(s)

autor(es) e sobre a sua formação.

II. Como enviar artigo aos editores

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O trabalho para publicação deverá ser enviado aos editores da Horizontes nos seguintes endereços

eletrônicos:

História, Historiografia e Idéias Educacionais

Profa. Dra. Paula Leonardi: [email protected]

Linguagem, Discurso e Práticas Educativas

Profa. Dra. Jackeline Rodrigues Mendes: [email protected]

Matemática, Cultura e Práticas Pedagógicas

Profa. Dra. Profª. Dra. Alexandrina Monteiro: [email protected]

III. Forma de apresentação dos manuscritos

Os manuscritos serão aceitos em língua portuguesa, espanhola, francesa e inglesa.

Normas de publicação: a revista adota normas de publicação da ABNT.

Formatação: os artigos devem ser digitados em espaço duplo em fonte tipo Times New Roman ou Arial,

tamanho 12.

3.1 Título completo na língua em que o manuscrito foi preparado.

3.2.Título completo em inglês, compatível com o título na língua em que o manuscrito foi preparado.

3.3. Nome de cada um dos autores.

3.4. Afiliação institucional de cada um dos autores (incluir apenas o nome da universidade e a cidade).

3.5. Nota de rodapé com agradecimentos dos autores e informação sobre apoio institucional ao projeto, se

necessário.

3.6. Nota de rodapé com endereço eletrônico.

3.7. Resumo na língua em que o manuscrito foi preparado e que deve ter no máximo 150 palavras.

3.8. Após o resumo, fornecer de 3 a 5 palavras-chave na língua do manuscrito, em letras iniciais minúsculas

e separadas com ponto-e-vírgula.

3.9. Resumo em inglês (abstract).

3.10. Keywords compatíveis com as palavras-chave.

Observação: A Horizontes tem, como procedimento padrão, fazer revisão final do abstract, reservando-se o

direito de corrigi-lo, se necessário. No entanto, recomenda-se que os autores solicitem a um colega bilíngüe

que revise o abstract, antes de submeter o manuscrito. Este é um item muito importante do trabalho, pois em

caso de publicação será disponibilizado em todos os indexadores da revista.

IV. Estrutura do texto

4.1. Notas. Devem ser evitadas sempre que possível. No entanto, se não houver outra possibilidade, devem

ser indicadas por algarismos arábicos no texto e listadas, após as referências, em página separada e intitulada

de Notas.

4.2 Citações dos autores. As citações de autores deverão ser feitas de acordo com as normas da ABNT

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Summary of the Instructions

Subscription of papers

Original papers related to Education in the following perspectives: historical, cultural and educative

practices.

Papers can be written in Portuguese, English, French or Spanish.

1. Format:

· Title;

· Name of the author(s) and affiliation;

· Abstract in the first language – around 150 words;

· Key-word;

· Abstract in another language – around 150 words;

· key-words in another language;

· The text should include: Introduction, Development, Conclusion, Endnotes, and References (according

to ABNT);

· Include at the end the author’s bio-data.

2. The length of the paper should be around 20 pages.

3. Double-spaced typewritten copy (12-point font, Times new Roman, Courier New or Arial).

Papers should be sent to:

Profa. Dra. Paula Leonardi: [email protected]

Profa. Dra. Jackeline Rodrigues Mendes: [email protected]

Profa. Dra. Alexandrina Monteiro: [email protected]

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