huberman g. o que vemos, o que nos olha
TRANSCRIPT
5/13/2018 HUBERMAN G. O Que Vemos, o Que Nos Olha - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/huberman-g-o-que-vemos-o-que-nos-olha 1/11
¥ ~ ~ , ' e Ai,W v _ ) - + 1 0 D e !? ~~';JI G - - ,
: ? C(ve v-uJ c(~~
;J {_ v (2'). S ; " Q j 5 ~ . " . .l.0:-1 , '? 'J r
\;;
,"
o que vemos so vale - 56 vive- em nossos olhos pelo que nos
olha, Inelutavel porem e a cisaa que separa dentro de n6s 0 que ve-
mos daquilo que nos olha, Seria precise assirn partir de novo desse
paradoxo em que 0 ato de ver 5 6 se manifesta ao abrir-se em dois,
Inelutavel paradoxo- J oyee disse bem: "inelutavel modalidade do vi "
sivel", num famoso paragrafo do capitulo em que se abre a trama gi-
gantesca de Ulisses:
" In e lu tdu e ! m odal idade do vislvei (ineluctable modali-
ty of the visible): p e la m e no s isso s e n ii a mai s, p e ns ad o a tr a-
vi s do s meus olhos. Assinaturas de t od as as co is as e sto u a qu i
para ler.rnerissemen e maribodelba, a mare montante, ss-
t a s b o ti nasc arc om i da s . V e rdemuco , a z ul a rg e nt eo , c a rc oma :
s ignos eoloridos. Limi tes do d id fa no . Ma s e le a cr es ce nt a: n os
c or p o s. E nta o e le s e compenetraua d el es c or p os an te s d el es
c o lo r ido s. Como? Batendo c om s ua c ac ho la c on tr a e le s, c om
as diabos. Deuagar. Calvo ele er a e milionario, maestro di
color che sanno. Limite do didfano em . P ar que em ? Did-
fano , ad id fano . Se se pode po r as c in co d edo s a tr a ve s , Ii p a r . .
qu e e um a grade , se niio um a porta. P ec ha a s olbos e ve."l
Eis portanto proferido, trabalhado na lmgua, 0 que imporia a
nossos olhares a inelutavel modalidade do visivel: inelutavel e para"
doxal , paradoxal porque inelutavel, Joyce nos forneceo pensamento,
mas 0 que e pensado ai 56 surgira como urna travessia f fs i ca , a lg o que
passaatraves dos olhos (thought through my eyes) como uma ma o
passar ia atraves de uma grade. Joyce nos fornece s ignos a ler (signatures
o f a ll things I am h er e to r ea d ... c ol or ed signs)., mas rambem, e no
1 J . Joyce, Ulysses (1922), cf. t rad. de Anr6nio Houai ss, Rio de Jane iro, Ci -
v i l a < ; : a o Brasl leira, 1966, pp. 41. .2. .
o Q ue V em os, 0 Q ue Nos Olha 29
5/13/2018 HUBERMAN G. O Que Vemos, o Que Nos Olha - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/huberman-g-o-que-vemos-o-que-nos-olha 2/11
/
mesrno movirnento, mate.das sordidas ligadas a procr ia~a animal (ovas
de peixe, seaspaums, a rulna e aos de jetos marinhos (0 sargaco, sea-
wrack). H a earnbem, sob a auroridade quase infernal de Adst6teles2,
a evocacao filosofica do diafano, mas, imediatamente, de seus limites
(limits o f t he d ia ph an e) 3 - e, para rerminar, de sua propria negacso
(diaphane, adjaphane).
b que a visa.o se choca sempre com a Ineluravel volume dos cor-
pas h umanos, In bodies, escreve J oyce, sugerindo ja que as corp os, essesobj etos primeiros de todo conhecimento e de toda visibilidade, sao
coisas a tocar, a acariciar, obstaculos contra as quais "bater sua ca-
chola" (by knocking his sconce against them); mas tambem coisas de
onde sair e onde reentrar, volumes dotados de vazios, de cavidades au
de receptaculos organicos, bocas, sexes, talvez a proprio olho. E eis
que surge a obsedante quesrso. quando vemos 0que esta diante de nos,por que uma outra coisa s er np re n os olba, impondo ur n em , u rn den-
tro? "Por que em?" pergunta -se Joyce. Algumas linhas adiante, a ques-
tio sed conternplar (gaze) urn ventre rnaterno originario, . "Ventre sem
[aca, bojando-se ancho, broquel de velino reteso, nfio, alvicumulo tri-
rico, oriente e imortal, elevando-se de peretemidade em pereternidade.
Matriz do pecado";", infe rnal cadinho. E compreendemos entdo que
as corpos, especialmente os corpos feminines e maternos, impoem °inelutavel modo de sua visibilidade como outras tantas coisas onde
"passar - ou nao poder passar - seus cinco dedos", ta l como faze-
mos todo dia ao passar pelas grades ou pelas portas de nossas casas ..
"Fechemos os oIhos para vee" (shut your eyes and see) - esta sera
portanro a conclusao da famosa passagem,
Que significa ela? Duas coisas, pelo memos. Primeiro nos ensi-
na , ao reapresentar e i nv e rt er i ro n ic a rn en te v e lh ls s im a s proposieoes me -
2 E n o p ri me ir o c ir cu lo d o I nf er no (0 L im bo ) q ue D an te - te xtu alm en te
c ita do n a p as sa ge m d e J oy ce - ergue o s o lho s para pereeber Ar i s to teles , "0 mes-t re dos que sabem' (Poi ch ' i nnalzai un poco P iu le dgli«, / ! li di ' I m a e s tr o d i c o lo r
c h e s a nn o . .. ) . Dante, D i ui na C om id ia , I nf er no , I V , 1 30 ·1 3 1.
lOu seja , para Arist6te!es, 0 l ugar mesmo da co r e dovisfvel. Cf. Aristate-
les , D« a lm a , I I, 7 , 4 18 a, t ra d, J - Tricot, P ar is , V ri n, 1 97 2, p p. 1 05 ·1 06 . Idem, Do
sentido e dos senslueis, I ll , 4 3 9 a, . trad ..J. T ric ot , P a ri s, V ri n, 1 95 1, p. 14 . Idem,
De co l or i b us , m-IV, 792a -b , trad, W.S . H e tt , L o nd re s/ C amb ri dg e, L o eb Classical
Libra ry, 19J6 ,p . 8-2l.
4 J . J oy c e, op . cit., p . 4 3.
30 Georges Didi-Huberman
ou rnesmo mfsticas , quever 56 se pensae s6 se experimenta
ul tima instancia numa experienc ia do tocar. Joyce nao fazia aqui
pOI antecipadamente 0 dedo no que constituira 0.0fund 0 0 testa-
, , · . ' U " " ' · ' . V de toda fenomenologia da percepc jio. "Precisamos nos habi -
" , e sc r ev e Merleau-Ponty, "a pensar qu e rodo visivel e ralhado no
, todo ser tatH prornetido de cerro modo a visibi lidade, e que
sao,_ e!!:.~i!y.~:!gaips:.n_jQ.,l,1aopenas entre a tocado e q ue m toea,
··~mentre 0 tangivel e a vislvel que esta incrustado nele"s.se 0 aro de ver acabasse sempre pela experirnenracao tatil de
obst sculo erguido diante de nos, obsraculo talvez perfurado, fei to
vazios. "5e s;,fode passar as c inco d~dos atrave~, e uma grade, "
urna porta '" Mas esse texto admiravel propoe urn outre ensi-
entor devemos fechar os olhos para ver quando 0 aro de uer nos
· · T . " ' · ' , , ,, . . .. _ nos abre a um:Vq;· iQ·'que nos olha, nos conceroe e, em certo·
do , nos consnrui.
Que especie de vazio? A ficljao de Ulisses, nesse ponto da narra-
, ja forneceu sua exata configuracao: Stephen Dedalus, que leu
• . • , . , . c . , · · · , , _ , · . . _ · . . . te e Aristoteles, que produziu no labirinto do texto joyceano a
ssagem em primeira pessoa (my eyes) sobre a "ineiuravel modal i-
.dade do visi vel"- Stephen Deda! us acaba de ver com seus olhos as
:olhos de sua propria mae moribunda erguerem-se para ele, implora-
. : : : . : . : _ , r em algurna coisa, u m a genuflexao au uma prece , algo, em todo caso,
- .ao qua! ele tera se recusado, como que pettificado no lugar:
"Lembrancas assaitam-lhe 0 cerebro me di ta b un d o . ..
Seu corpo dela com a a gu a da bica da cozinha, para de-
pais qu e hoeuera comungado. (.... Seus olhos perscruta-
dores, [ixando-se-me da motte, para sacudir e dobrar mi-
n ha a lm a. E m m im s om en te . 0 c ir io d os m o tt os a a lu m ia r
sua agonia. Lume agonizante sobre face torturada. Seu
dspero respira« ruidoso estertorando-se de horror, enquan-
5 E e le c o nc lu i a: " T od a visiio e f et u a -s e a l gu r e s no espaco tatil" . M. Me rl ea u -
Ponty, L e v is ib le e t l'inuistble, P a ri s, G a ll im a rd , 1 9 64 , p. 17,,7.Cf., a esse respeiro ,
·6 recente estudo de 1.Richir, "La reversibilite c h ez Mer lea u -Po n ty " , L a P ar t d e
:;-N:EIl,n° 7, 1991, pp. 47-55.
G Alguma s p agi n as adiante, J oy c e v o l ta ao rnesmo tema: " Ch ao v ej0, pensa
en ta o em d i st a nd a ,p e rt o , l on g e, c h do v e j o. ( . . ..j To ea -me . O l ho s doces, Mao doce
d ac e d oc e. {. .. J Toea, t o ea -me. " J . Joyce, op. cit., p. 55 .
; r : ," '. 0 Que V ern os, 0 Que Nos O lha 31
5/13/2018 HUBERMAN G. O Que Vemos, o Que Nos Olha - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/huberman-g-o-que-vemos-o-que-nos-olha 3/11
· ,\
to todos rezauam a seus pes. Seus olhos sabre mim para
redobrar-me. ,,7
Depois, Stephen tenl vista e s se s o lh o s s e f ec h ar em definitivamente.
Desde entao 0 corpo mate rno inrei ro aparece-lhe em sonho, "devas-
tado, flu t ante", nao mais cessand a, dora van te, de fixd-lo8 . Como se
tivesse sido precis a fechar as olhos de sua ma e para qu e su a mae co-
rnecasse a olha-Io verdadei ramente . A "inelutave l modal idade do vi-
sivel " adqui re entao para Dedalus a forma de uma coercaoontoiogi-
ca, medusante, em que tudoo qu e S8 a pr es en ta a u er e o lh ad op el a p er da
de sua mile, a modalidade insistente e soberana dessa perda que Joyce
nomeia, nurna ponca de frase , simplesmente como: "as feridas aber-
tas em seu cora r;ao, ,9. Uma ferida cao definit ivamente aberta quanta
as palpebras de sua mae estao definidvamente fechadas. Enrao as es-
pelhos se racharn e cindem a imagem que Stephen quer ainda buscar
neles: "Quem escolheu esta ca ra para mim?" pergt !nta -se d iante da fen-
da 10. E, e claro, a mae a olh a aqui desde set! iimago de sernelhanca e
de cisao misturadas - seu <image de parco e de perda misturados,
Mas, a parti r dar, e rodo cespetscu lo do mundo e r n g e r al que val
mudar de cor e de ritrno .. Por que, em nossa passagem sabre a visivelem geral, essa insistencia tao. singular dirigida ao semen marinhoe ao
"sargaco que a onda traz"? Por que "a mare que sobe", e essaestra-
nha coloracao denorninada "verde-muco" (sltotgreen)? Porque Stephen,
em seus sonhos, via 0 mar esverdeado "como lima grande e doce mae"
que ele precisava encontrar e olhar (the snotgreen s ea ... S he i s o u r g re at
sweet mother, C or ne a nd l oo k) . Porque "a curva da baia e do horizon-
te cerca va l ima rnassa l iquida de urn verde fosco". Porq ue, na rea lida-
de, "urn vase de porcelana branca ficara ao Jado do seu leito de morte
0001a verde bile viscosa que ela devolvera do ffgs.do putrefeito nos seus
barulhentos acessos esterrorados de vomito" 11.Porq uesnres de cerrar
os olhos, sua mae havja aberto a boca num acesso de hurnores verdes
7 Id., ibid., pp. .11,12.
8 Id., ibid., pp. 6-7.
9 Id., ibid., p. 10.
10 ld., ibid., p, 7.
IIld., ihid., p ..6 ..
32 Georges Didi-Huberman
(pituitas). Assim Stephen nao via rnai s as olhos em gera ! senao como
rnanchas de mar gla u c o, e a proprio mar como uma "u m vasa de aguas
amargas" que.iam e vinham,. "mare sombria" ba tendo no espacoe , en -
fim, "batendo em seus olhos, turvando sua visao".n
Enrfio comecamos a cornpreender que cada coisa a vel', por mais
exposra , por mais neuera de aparenc ia que se ja , torna-se inelutdvel
quando. urna perda a suporta ~ ainda que pelo vies de urna simples
associa! j:ao de ideias, mas constrangedora, ou de urn jogo de I inguagern
-,e .g.e~~eponte nos olha, nos concerne, nos persegue, Quando Ste- .,.
phen Dedalus conternpla 0mar parade a sua frente, 0mar niio e sirn-
plesrnenre o objeto privi legiado de urna plenitude visual isolada, perfei-
to e "seperado", na.o se mostra a ele nem uni forrne, nem abst raeo , nem
"pu IO" em sua opticidade 13. 0 mar, para Dedalus, toma-se uma tigela
de humores e de morres pressentidas, urn mura horizontal ameacador
e sorra tei ro, uma superfic ie que so e plana para di ssimula r e 0.0. rnesmo
tempo indica; a pro·filnde~aque a habita, que a move, qual esse vent re
materna oferecido a sua imaginacao como urn "brcquel de velino es-
tieado", carregado de todas as gravidezes e de todas as mortes por vir.
o que e entao que indica no mar visivel, familiar , exposto a nos-
sa frente, esse poder ing.uie.tante do fun~o -senao0
jaga ritmico "que ~a onda rraz" ea" mare que sobe"? A passagern j oyceana sabre a inelu-
tave l rnodal idade do visfve l ted portando oferec ido,em sua .p reci sdo ,
.redos as componenres eeoricos que ~ ' , l " ~ - < : ! T Ideurn simples plana orico, ,....
'!~~:.~mos" ulTia.potencia visual que nos olha na medida rnesrno em que
poe em ayaa a jogo anadi6rneno14, rftmico, da superfi cie e do fundo,
do fluxo e do refluxc, do avanco e do reeuo, do aparecirnento e do
desaparecirnento 15. No movimento perpetuo, perpetuamen te acariciante
IlId., ibid.,p ..11. Cftambem pp. 7, 2.0,41, 43 etc.
1 30 que Rosalind Krau ss sugere de Ruskin , de Monet e do "modernisme"
em geral , Cf . R . Krauss , "Note sur l'inconscient opnque" , Cahiers du Muses Na-
t io n al d 'A r t . M od ems ,. n" 37, 1991, pp. 61·62.
14 Conforms 0 atributo dado a Venus anadibmena, que s igni f ies " sa ld a d as
a gu ll s" . ( N. do T.)
15 S ob re e as es d oi s mo ti ve s imbricados do pane e da ritrnicidade fllladi6msna
d o v i su a l, p e rr ni tc -me r em e re r 0 l ei ro r a dais t ra b al ho s r na is a n ti go s: La peinture
inc.arn~B,Pa r is , M in u it , 1985 ,e " La c ou le ur d ' ec um e, o u l e p ara do xe d ' Ap elle ",
Critiq.ue, n O 469.470, 1986, pp.606-629.
o Que Vemos,0 Que Nos Olha 33
5/13/2018 HUBERMAN G. O Que Vemos, o Que Nos Olha - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/huberman-g-o-que-vemos-o-que-nos-olha 4/11
/
e ameacador, da onda, da "mare que sobe", ha de fato esse arquejo ma-
} terno no qual se indica e se murmura, contra a temp ora de Stephen -
ou seja, exatamente entre seu olho e sua orelha - que uma morta .para
sempre 0 olha. Nas ovas de peixe e no sargaco que? mar arquejante
expele, d i an te d e Stephen, ha portanto toda a dor vornitada, esverdead~,
de alguern de onde de vern, que diante dele t~.aba~llPu - como se diz
do " trabalho de par to - seu propriodesaparecimf!ut_o. E este, par sua
vez, vern pulsar em Stephen, entre seu olho e sua ore lha, turvando sua
lingua materna e turvando sua visao. . A '.
Tal seria portanto a modal idade do vislvel quando sua msta,ncla.
se faz inelutavel: urn trabalho do sintoma no qua l 0 que vemos ~ s u-
portado por (e remetido a) uma obra d e pe r da; U : n t rabalh~ do sinto-
rna que a tinge 0 visivel em geral e nosso propr;o corpo vidente em
particular. Inelutavel como uma doenca. Inelutavel c_orno urn fecha-
mento definit ive de nossas palpebras. Mas a conclusao da passagem
joyceana - "fechemos os olhos para ver" - pod~ igualmente, e sem
ser rraida, penso, ser revirada como urna luva a fim de dar forma ao
trabalho visual que deveria ser ° nosso quando pousamos os olhos
sobre a mar, sob re alguem que morre au sob re urna obra de _art:, Abr~-
m as o s o lh os p ar a e xp e ri me nta r a q ue n ao vemos, a ~ue nao mars .veremos - au melhor, para experimentar que a que nao vemos com
toda a evidencia (a evidencia visivel ) nao obstante nos o.l~a ~omo ~~a ,
obra (uma obra visual) de perda. Sem duvida, a e~penencla familiar
do que vemos parece na maioria das vezes dar ensejo a um te~: ao ver
alguma coisa, temos em geral a impressao de ganhar a~guma coisa. Mas
a modalidade do visivel torna-se ineluravel- ou seja, votada a uma ,
questao de 5 8 r - quando ver e sentir que al?o ,inelutavelmente noS' .
escapa, isto e: quando ver e perder. Tudo esta : 1 . .Esta claro, alias , que essa modalidade nao e ne~ part,cula~me?te
arcaica, nem particularmente moderna, ou modermsta, o~ s~J~ la 0
que for. Essa moda lidade atravessa simplesmente a longa historia das
tenta tivas prati cas e te6ricas para dar form~ a~ ~aradoxo que a .con~-titui (ou sej a , essa modalidade tern urna historia, mas uma historia
sempre anacronica, sernpre a "contrape!o", para falar com Walter
Benj amin16). Ja se t ratava disso na Idade Media, por exemplo, quan-
. " . 1
':":.
16 wr B iarnin "Theses sur la philosoph ie de l'histcire" ( 1940), trad . M. de ..w , en) , ." h' 1971 188 "
GandiUac, L'homme, le iangage, ia culture, Pans, Denoel/Gont rer, , p. .
34Georges Didi-Huberman .
do os teologos sentiram a necessidade de distinguir db concei to de
imagem (imago) 0 de vestigium: 0 vestigio, 0 traco, a ruina. Eles ten-
tavam assim explicar que 0 que e visivel diante de n6s, em torno de
nos - a natureza, os corpos - s6 deveria ser visto como portando o
tra~ode uma semelhanca perdida, arruinada, a semelhan~;~~ Deus
perdida no pecado!".
Ainda era essa a questao - embora num contexte e tendo em
vista prop6sitos evidentemente distintos - quando urn dos grandesarti st as da vanguarda americana , nos anos SO , podia reivindicar pro-
duzir "urn objeto que fa lasse da perda, da destruicao, do desapareci -
rnenro dos objetos ,,18 . .. E ralvez tivesse sido melhor dizer : um objeto
v is ua l q ue m os tr as se a p e rd a, a destruicao, 0 desaparecimento dos
objetos ou dos corpos.
Ou seja, coisas a ver de longe e a tocar de perto, coisas que se
q_uerou nao s t;pode-ac~riciar . Obstaculos , mas tarnbem coisas de onde
sair e onde reentrar. Ou seja, volumes dotados de vazios. Precisemos
ainda a questao: 0 que seria portanto urn volume - urn volume, urn
corpo ja - que mostrasse, no sentido quase wittgensteiniano do ter-
mo19, a perda de 'urn corpo? 0 que e urn volume portador, mostra-
dor de vazio? Como mostrar um vazio? E como fazer desse ate umaforma - uma forma que nos alha?
17 Cf. por exemploR. Javelet , Image et ressernblance au XII ' siecle de saint
'"P.,"~~"mc a Alain de Lille, Paris , Letouzey et Ane, 1967, r, pp, 224~236. Quanto
XIII, Boaventura, Itinerarium mentis in Deum, I-II, au Tomas de Aquino,
theologiae, Ia, 93, 6. Quan te a uma implicacao da problernatica do ues-
no campo cia pintura, d. Didi-Huberrnan, Fra Angelico ...:.Dissemblance
tuiuration, Paris , Flammarion, 1990, pp. 51-55.
'. 18 "An object that t el ls o f the loss, destruction, disappearance of objects ."
citado e comentado por J . Cage, "Jasper Johns: Stories and Ideas" ,J . Johns.Drawings and Sculpture, 1954-1964, Londres , Whitecha pel Gallery ,
27.
" H a segurarnente 0 inexprirnlvel. Este se mostra ... M L.Wittgenstein, Trac-
)g,,:o-Jmllos()pn'!cu~s, § 6.522, trad . P. Klossowski, Pa ri s, Gal limard , 1961
o Que Nos Olha 35
5/13/2018 HUBERMAN G. O Que Vemos, o Que Nos Olha - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/huberman-g-o-que-vemos-o-que-nos-olha 5/11
1- ~
.,,
.. -~
1.Lou s a fu n er a ri a do a ba de Is arn , s egu nd a m era de d o seculo X l . M a rmo re ,
1 7& )( 6 0 c m. C rip ra s d a a ba dia S ain r- Vlc to r, M ar se lh a, D .R .:.
o EVITAMENTO DO VAZIO:
CREN t: :: A OU TAUTOLOG IA
Talvez se ja prec ise, para nao enfraquecer a exigencia aberta pelo
texro joyceano - como seriamos tentados a faze-Io ass im que deixa-
mos 0 te rrit6rio t ranstornadoe arruinado de nossas maes mortas para
abordar aquele , cultivado, pre tensamenteajuizado , das obras de arte
-, tornar a partir de uma situayao exemplar (direi: fatal) em que a
queseao do volume e do vazio se coloca inelu tave lmente a nosso olhar,
E a situac;ao de quem se acha face a face com um nimulo, dianre dele,
pondo sobre ele os olhos (fig. 1, p. 36).
Situalt ao exempla r porque abre nossa experienc ia em duas, pore
que irnpoe tangivelmente a nossos olhos aque la ci sao evocada de ini-
cio. Por urn lado, ha aquilo que vejo do tumulo, ou seja a euidencia
d e u r n vo lume , em geraTiima 'massa . de pedra rnais OU menos geome-tri ca, rnai s ou menos figurat iva, mais ou menos coberta de inscricoes:
uma massa de pedra trabalhada seja como for, tirando de sua face 0
mundo dos objetos talhados ou mode lados, 0 mundo da arte e do
a r te fa to em ger a l, Por outro Iado, ho iaqui!o, direi novamente, que. .T I v .
olha.:e 0 que me olhaem tal sima9ao " n r c ; tern rnais nada deevideme,
Utt ;s vez que se trata ao contrar io deuma espec ie de esoaz iamen to . Urn
esvezia rnento que de modo nenhum concerne mais ao rnundo do ar-
refaroou do simulacra, urn esvaziamento que ai, diante de mim, diz
respei to ao inevi tavel po r exce lencia , a saber: 0 destino do corpo se-
melhante ao meu, esvaziado d e s ua vida, de sua fala, de seus movimen-
tOS, esvaziado de seu poder de levantar os olhos para mim. E que no
entanto me olha num certo sentido - a sentido inelutavel da perdaposto aquia tra balhar.
Havia ainda, no exemplo de Stephen Dedalus a tormentado par
sua m,ae e contemplando a mar, algo de livre e mesrno de excessivo na
operaliao imaginativa. Alguma outra coisa que permitia a ele, Stephen,
n a . o sentir nem 0 fundo marinho, nem as ovas de peixe, nem 0 sargaco
nauseabundos, portadores de morte -eontemplar a mar com 0olhar
i d ea li st s de ur n puro esteta amador de pianos azuis ; ou, rnais simples-
. ,0 Q u e V em os , 0 Que Nos Olha 37
5/13/2018 HUBERMAN G. O Que Vemos, o Que Nos Olha - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/huberman-g-o-que-vemos-o-que-nos-olha 6/11
"
:'
mente ainda, com 0 olhar pragrnatico de urn apreciador de cenas de
banho. Mas, dianre de urn nimuloj aexperienc ia torna-se mais mono-
.lttica,e nossas imagens sao mais.di~~t_arpente coagidas 21 0 que ommu-
(o . quer diaer, istoe, ao que 0 nirnulo encerra, Eis por que 0 nirnulo,
quan.doo vejo, meolha "aie'oamago - e nesse ponto, alias, de 'i~mperturbar m inha capac idade de ve-Io simplesmente , serenamente - na
m ed id a m esmo em q ue , m e mostra q ue p er di esse corpo que ele r~ecolhe
em seu fundo. Ele me olha tambem, e claro, porque imp6e em mim a
i ma ge m i mp os siv el d e u e» daquilo que me fad. 0 igu al e 0 semelhante
desse cerpo em r ne u pr6prio destino futuro de corpo que em breve se
e s va z ia rd , j az e ra , e d e sa p ar ec e ra num volume m ais ou menos parecido.
Assi rn, d iante da rumba , eu me smo tombo, caio na angustia - a saber,
esse "modo fundamenta l do sentimento de toda situacao", essa "reve-
la<;ao privilegiada dO},~r~ai"',de que falava Heidegger! ... E a angustia
'de olhar a fundo - ' Q . l ~ : g C t Y \ - do que me olha, a angustia de ser Janca-
do a questdo de saber '( ; ;: 'a 'verdade, de 1 1 a O saber) 0 que vern a ser meu
proprio corpo, entr e sua capac idade de fazer volume e suacapacidade
de se oferecer ao vazio, de se abrir,
Que fazer d iante di sso? Que fazer nessa ci sao? Poderemos soco-
bra r, eu cli ti a, na lucidez , supondo que a ati tude hic ida , no caso, secharne melancolia. Poderemos, ao contrario, tentar tapar as buracos,
suturar a angust ia que seabreem nos diante do nimulo, e par isso
mesrno nos abre em dois, Ora, f u . t u r a ~ ,,aangus.tia nao consiste senjio
em recalcar, ou seja, acred ita r p r ee 'n cher . 0 . vazio pondo cada _termo
da cisao num espaco fechado, l impoe bern guardado pela razao ~ uma
razso rni seravel, convem dizer. Dois casos de flgurasse apresentam em
nossa { ab ui s . .0 prirneiro seeia permanecer aquem da cisiioaberta pelo
que. nos o lha no que vemos ...Ati rude equiva lente a pretender a rer-se
ao qu e e visto. E acreditar - digo bern: acreditar - que todo 0 resto
n.ao mais nos olharia, E dec idir , diante de urn n imulo, permanecer em
se u volume enquanto ta l, 0 v olu me v is fv el, e posrular a resto como
inexistente, rejeitar a resto ao dornlnio de uma invisibi lidade sem nome.Notar-se-a que he. nessa atitude uma e s p e c i ~ de horroroude
denegacao do cheio, isto e , do fato de esre volume, diante de 1 1 6 s , es-
tar cheio de urn ser semelhante a nos, mas morto, e deste modo cheio
de uma angiist ia que nos segreda n0550 proprio destino, Mas ha tam-
1c r . M. Heldegger , UP't re e t l e t emp s ( 19 27 ), t ra d, R . B o ehme A . d eWa e !h en s,
P ar is , G aH im ar d, 1 96 4, p p. 2 26 -2 33 .
38 Georges Did i·Huberman
b er n n es sa a ti tu de urn verdadeiro horror e u ma d en eg ac ao dovazio:
um a vontade de permanecer nas aresras discemfveis do volume em
sua forrnalid ade convexa e simples. Uma vontade de permanecera todo
custo no que vemos, para ignorar que tal volume nao e indiferente e
simplesmente convexo, posto que oco.esvaz iado, posto que faz recep-
ta.culo [e concavidade) a um carpo e le pr6prio ceo, esvsz iado de toda
a sua subseancia, Essa atinrde - essa dupla recusa- consiste, como
terao compreendido, em fazer da experiencia do vet u rn e x er ci ci o d a
tautologia; u r na v e rd a de rasa ("essa rumba que vejo nao e sense 0 que
vejo nela: um paraleleplpedo de cerca deurn metro e oitenea de corn-
primento ....") Iancada como an teparo a urna verdade mais subte rra-
nea e bern mais rernlvel (" a que ests. 2 1 1 a b a i x o . .. " ). Oanteparo da
, tautologia: urna esquiva em forma de rnau trufsmo 00. de evidsncia tola,
Uma vitoria man iaca e rniser avel da l inguagem sobre 0olhar, na afi r-
ma9a.o fechada , congelada , de que al nao h a nada mais que um volu-
me, e q u .e e s se volume na o e s en ao e le r ne smo, por exemplo ur n para-
lelepipedo de cerca de urn met ro e oi tenta de comprimento ... .
o hornem da tautologia - como nossa construcao hipotetica
autoriza a chama-lo doravante - tera portanto fundado seu exerci-
cio da visdosobre uma serie de embargos em forma de (falsas) vito-
rias sobre as poderes inquietantes da c ls ao . . T e ra feito tudo esse ho-o .. .. ... .. .. _ _ ' .. . _~ ,. ~. _ '·,w .. .. . " , . , -,
..m em da rautologia, para recusar as latencias do objeto 21 0 afirmar
como um rriunfo a ident idade mani fe s ta . .. .. :. .minimal, tautologies -
desse obje to mesmo: "Esse obj eto que ve]o e aquilo qu e ve jo, um pon-
,: to, nada mais" .. Tera assim feiro tudo para recusar a temporalidade
do objeto, 0 trabalho do tempo ou da rneramorfose no objeto, 0 tra-
. balho da mem6ria - ou da obsessao- no olhar. Logo, tera, feiro
tu do p ar a recusar a aura do objeto, ao ostentar um modo de indife-
ren<;a. :. .9~~rl to~o queesta jus tamente par baixo, escondido, presence,
. j ac ent e, E essa propria i nd if er en ca s e c on fe re 0 estatuto de ur n modo! '.
: ,>de-;at isfayao diante do que e evidence, evidenternenre visfvel: "0 que! - .
..vejo e 0 que vejo, e me contento com isso,,2 .. , 0 resultado ultimo
2 0 q u e d ef in ir ia a a ti tu de n ii o- fr eu d ia na p or e xc el en ci a. F re ud e ve nt ua lm en re
d ia n re d a s imag ens , raurolcglasr PO! e xemp lo q ua nd o, d la nr e d as f ig uta s f e-
de Leonar do d a V i nc i, e ncont ra ap en a s 0. ad ie ti vo " I eona rd es co" p a ra q ual if ic a -
Freud, Un souvel1 ird 'enfance de Leonard d e Vinci [ 1 910 J, t ra d , c ol e ri v a, P a ri s,
1 98 7, p , 132) , ou c nt ao q ua nd o, n a Traumr;1eut img, re ba te a s i ma ge ns d e
("0. s on ho p en sa s ob re tu d o p er ima ge ns visuais") s ob re " e lement os q u e s e com·
. . ,Que Vemo.s , 0 Qu e N es O lh a 39
5/13/2018 HUBERMAN G. O Que Vemos, o Que Nos Olha - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/huberman-g-o-que-vemos-o-que-nos-olha 7/11
dessa indiferenca, desse ostentacao em forma de sarisfacao, fad. da
tautologia urna especie de cinismo: "0 que vejo e 0que vejo, eo res-
to nao me importa."
Frente it tautologia, na ou tra ext remidade da pa isagem, aparece
urn segundo meio para suturar a angustia diante da rumba/Ele consiste
em querer u!t~apassar a questao, em querer dir igir -se para alem do 0- .
~ a oaberra pelo que nos olha no que vemos. Consi ste em querer supera r
- imaginariamente - tanto 0 que vemos quanto 0 que nos olha, 0
volume perde entao sua evidencia de granito, e 0 vazio perde igual-
mente seu poder inquietante de morte presente (morte do outro au
nossa propria morte, esvaziamento do outro ou nosso proprio esvazia-
mente). 0 segundo caso de figura equivale portanto a produzir urn
modele [icticio no qual tudo - volume e v azio, corpo e morte - po-
deria se reorganizar, subsistir, continuar a viver no interior de urn
~ra~d.e sonho acordado.
, Como a precedente, essa aritude supoe urn horror e uma dene-
ga<;ao do cheio: como se houvesse af, nessa tumba, apenas urn volu-
me vazio e desencarnado, como se a vida - chamada entao de alma
- ja rivesse abandonado esse lugar dec ididamente concre to demais,
mate rial de rnais, dernasiado pr6ximo de nos, demasiado inquietante
em signi ficar algo de inelucavel e de definit ive. Nada, nessa hipotese ,
sera definitive: a vida nao estara mais ai, mas noutra parte, onde a
corpo sera sonhado e_9D:!opermaneeendo bela e bem feito, cheio de
substdncia e cheio d 'vid~ e compreende-se aqui 0 horror do vazio"_ -"-
que gera urna tal fic~ao -, simplesmente sera. sanhado, agora ou bern
po rt am como i r na g ens " (S, Freud , L ' in t e rp r e t at ion de s r eue s [ 1 900 ) , r r ad . 1. Meyerson
r ev is t a po r D. Be rg er . P a ri s, PU F , 1 9 7 1 , p, 5 2 , p a ss ag er n q u e m e f oi a ss in al ad a p or P.
L ac os te ). M a s, em a mb os o s c a so s, a taurologia indica qu es ti o namen to e i n sa t is f ec a o,
o u s e ja , 0 c on tr sr io d o q u e a po nt ar no s a qu i. Q u an do F re ud p ro du z u m a t au to lo gi a
d ia nt e d e u rn q u ad ro , t al ve z na o f ac ;a s e n se r ep ro d uz ir u r n sintoma q u e e le proprioc on he ce b er n - a s ab er, II a ri tu d e d e D or a q u e p as sa " d ua s h or as em a dm ir ac ao reo
c ol hi da e s on ha do ra " d ia nt e d a Mado na S ix ti n« d e R a fa e l, e q u e r es po nd e a pergun -ta do " q u e t an to the h av ia a gr ad ad o n es se q ua dr o" c om a pe na s d ua s palavras (tau-
tol6gicas ma s d e se ia nt es ): " A Ma d on a" . ct . S . F r eu d , " F ra gm ent d 'u n e analyse d'hys-
te rl e ( Do ra )" ( 19 05 ), tr ad , M . B on ap ar te e R .M . L oe we ns te in , C i nq p sy chana ly s e s ,
P ar is , P U F , 1 95 4 , ( ed . 1 9 7 9) , p . 7 1. C om e nt ei e ss a u lt ra pa ss ag er n f re ud ia na d a " ta u-
t el og ia d o v i sl v el " em "U ne r avissante b lancheur " , Un s i ec i e d e r e che r che s f r eu d ie n ne s
e n F ranc e , T ou lo us e, E re s, 1 98 6 , p p. 7 1- 83 .
40 Geo rg es D i d i-H ub e rman
t arde ,tk!hure .~~ Eo ser-al .e a rumba eom~ lugar q~e sao aqui re-
::iCllsaclOSpelo que' sao verdadeiramente, rnaterialmente.
Essa segunda ati rude consisre portanto em fazer da experienc ia
. ver urn exercicio da crenfa: uma verdade que nao e nem rasa nem
p~~funda, mas que se da enquanto verdade superlativa e invocanre,
eterea mas i.lutoritaria. E uma vi t6ria obsessiona l - igualmenre mi -
.seclvel, mas d~'orma mais desviada - da linguagem sobre 0 olhar;
~,a.afirma(jao, eondensada em dogma, de que ai nao ha nem um vo-
apenas, nem um puro processo de esvaziamento, mas "algo de
que faz reviver tudo isso e Ihe d a um sentido, releologico e
Aqui, 0 que vemos (0 triste volume) sera eclipsado, au{",,~~.!:~:;.~~~-~~:.':.~.ela instancia legi ferante de urn invis iuel a prever; e
que nos olha se ultrapassara num enunciado grandioso de verda-
,do alem, de Alhures hierarquizados, de fururos paradisiacos e de
'.""",,,,.,,-,,,,,~.'"rnessidnicos ... Outra recusa, outro modo de sarisfacao
'.n;,I,V.l.U<."".'U<L diante do que, no entanro, continua a nos olhar C01110 a
,do pior, t uma ostenta~ao simetrica da precedente , extati ca e nao
""" .cinica. E urn outre recalque, que nao diz respeito a exisrencia
tal da cisao, mas ao estatuto de sua intervencao 16giea e onto-
. . . Ela nao
eporem senso a outra face da mesma rnoeda, a moe-
.de quem renta.escapar-a essa cisao aberta em nos pelo que nos olha" . ~ ,
que vemos.
A atividade de produzir imagens tem com frequencia muito aver
'com esse tipo de escapes. Per exemplo, ° universe da crenca crista
revelou-se, na longa dura~ao, for~ado a tal exuberancie dessas ima-
"gens "escapes" que uma hist6ria espedfica dela tent resultado - a
, h I S t 6 r 1 a que denorninamos hoje com 0 vocabulo insatisfat6r io de his-
. da arte. A "arte" crista terti assirn produzido as imagens inume-
. de nimulos fantasmaticamente e s ua z ia dos d e SeT.l.S c or po s - e
, , num certo sentido, esvaziados de sua propria capacidade
. ou angustiante. 0 modele continua sendo, e claro, 0 dopr6prio Cristo que, pelo simples faro (se se pode dizer) de abandoner
:"seu tumulo, suscita e conduz em sua total idade 0 processo rnesrno da
3 Have ri a po r tan to duas fc rm as d e recalque: 0 recaique nao amn es ia ( fo r-
h i sr e ri c a) e 0 r ec al qu e q ue " rr ab al ha c om m ei os 1 6gi cos " , s e gund o u r na exp re s -
de F re ud tf or ma c bs es si va ). C f. P . L ac os te , La sorciere et le t ransfer t. Sur la
de s neu rose s , P ar is , R am sa y, 1 98 7, p . 63·100.
41: O Q ue V em os, 0Q ue N os O lh a
5/13/2018 HUBERMAN G. O Que Vemos, o Que Nos Olha - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/huberman-g-o-que-vemos-o-que-nos-olha 8/11
crenca, 0~va?gel~o de Sao loao nos fornece uma formulacso intei-
rarnenre eClS~ahnadlSSO.E quando a d is ci pu lo - precedido par Simao-
Peci r,oe seguido por Maria, depois par Maria Madalena - chega diante
do n im u lo , c on sta ra a pedra des locada e olha 0inter ior. . . "e viu e creu"
(et vi~jt, et credidit), observa lapidarmente Sao Joa04; acreditou por-
~ ) : ; " , . . , que VIU, como outros mais tarde acreditarao par rer tocado e outros
ainda scm ter vista nem tocado. Mas ele, que e que ele viu] N~d~}
justamente. E e esse nada - ou esse tres vezes nada: alguns panesbrancos na penumbra de uma cavidade de pedra -, e essevazio de
corpo que ted. desencadeado para sempre toda a dialetica da crenca;
Uma aparicao de nada, uma aparicao minima: alguns indicios de um
~esaparecimento. Nada ver, para crer em tudo (fig. 2, p . 44). ' .
A partir dai, sabernos, a iconografia crista tent inventado todos
os procedimentos i rnaginavei s para fazer imaginar, justamente a rna-. .,nei ra como urn corpo ,poderia s e , fazer ,c(}paz de esuaziar os lugares
- quero dizer .esvazia r 0 lugar rea l; ter'restr~" de sua ul tima morada.
V~mos entao por toda parte as corpos tentando escapar, em irnagens,
evidentemente, aos volumes reais de sua inclusao ffsica, a saber, as
tumbas: essas tumbas qge;JJ,a,Q_maiscessarao de reproduzir a sinistra,
a s6rdida presenca dos ~~daver~ em representacdes elaboradas quedeclinam todas as hierarqulas"ou entao todas as fases supostas do
grande processo de Aufhebung [superacao 1 gloriosa, de ressurreicao
sonhada-, Com muita frequencia, com efeito, a escultura dos nimu-
los tende a afastar -Iateralmente, em vies au em altura - as repre-
sentacfies do corpo em relac;ao ao lugar real que concern 0 cadaver.
Com muita freqiiencia, a s e fl gi es f u neb re s duplicarn-se de outras ima-
gens que evocam 0 momento futuro do Juizo final , que define urn tem-
po em que todos os corpos se erguern de novo, saem de suas tum bas
e se apresentam face a face a seu juiz supremo, no dominic se m fim
de u rn olhar superlativo. Da Idade Media ao s tempos modernos ve -
mos assim, junto as paredes das igrejas, incontaveis nimulos que
4 lOlio, X X, 8 . C f. em geral 0 c omene i ri o s e rn i ot i co d es s e r e la t e POt L.Marin,
" L es f emm es a u r or nb ea u. E ss al d 'a na ly se structurale d 'u n t ex te evangellque"
Langages, VI, n° 22,1971, pp. 39 .5 0 . '
S Sabre a iconografia crista dos nimulos , ver, entre a abundante l iteratura, E.
Panofsky, Tomb S c ul p tu r e. I ts C h an g in g Aspects f ro n A n ci en t E g yp t t o Be rni n i Nova
York, Abrams, 1964 . E , rnais recentemente, 1.Herklotz, "S epul cra " e "Monu' ;' en t a"
de l Med i oevo. S t ud i s u ll 'a r te s e p ol cr a le i n l ta li a, Roma, Rari Name, 1985 .
42Georges Didl-Huberman
( iF~~:;fi 'gurai li i'os corpos singulares encerrados em suas caixas, entre as
n:preseiitac;oes do modelo cr ls tico - a Colocadio no tumulo au a
Im ag o P ie ta tis - e representacdes mais gloriosas que fazem 0 rerra-
to do morto evadir-se em dire!jao a urn alhures de beleza pura, mine-
rai e celeste (fig .], p . 44) ... Enquanto seu rostoreal continua, este, a
esvaziar-se fisicamente. ' . , "
'."",,,TaU portanro a grande imagem que a crenca quer impor-se ver
e impoe a todos sentir-se nela tragados: urn nimulo, em primeiro pla-no - objero de angtistia -, mas urn nirnulo vazio, 0do deus morro e
: ressusci rado. Exposto vazio comourn modele , uma prefigu~a~ao para
t o a o s os 'o '~tros cujas lajes jazem .disseminadas, enquanto suas entra-
, nhas geometricas se tornam puras caixas de ressonancia para uma
r na ra vi lh os a - au te rn iv el - s in fo ni a de trampas celestes. is portanto
seus volumes ostensivamente esvaziados de seus conteudos enquan-
to seus conteiidos - os corpos ressuscirados - se precipitam em mul-
,t idao para as portas dos lugares que lhes cabem: Parafso au Inferno''
: : . ' ( f i g . 4, p . 45). As rumbas cristds deviam assim esvaziar-se de seus cor-
pos para se encher de algo qu e nao e somente uma promessa - a cia
ressurreicao -, mas tam bern uma dialetica muito ambigua de asnicias
e punicoes, de esperancas d'adas e ameacas brandidas. Pois a toda ima-'gem rnitica e precise uma contra- imagem investida dos poderes da con-
vertibil idade/ : Assirn, toda essa estrutura de crenca s6 vale ra na ver-
: 'dade pelo jogo estrategico de suas poJaridades e de suas contradicoes
, , sc b rede te r rn inada s .
, Era logica rnente preci so.portanro, uma cont ra-versao infernal ao
':: modele glorioso da ressurreicdo crlsti ca, e e Dante, sem duvida, que
' ' ' ; t e r a dado sua profer i l ) : a 0 rnais circunstanciada, mais abundante. Lem-
, bremo-nos simplesmente dos cantos IX e X do Inferno, c irculo de onde
irrompem chamas e gritos lancados pelos Hereticos qu e sofrern seu
: .cast igo. E al i que Vi rgl lio diz a Dante:
6 Descrevo aqui, muiro surnarlamente, a parte central do celebre Jufzo final
d e F ra Angelico em F lor en ca (Museu de S a n Ma r co ), p inta do po r v olta d e 1 43 3.
b re a i co no gr af ia m ed ie va l d o j uf zo , c t. a o br a c ol er iv a Homo, memerlto Finis.
Iconography o f J u st J ud gement in Me di ev al A rt an d Drama, Medieval Institute
" i ca do ns , K a la ma zo o, W e st er n Michigan Un iv e rs it y P re ss , 1 9 85 .
7 Cf . par e xemp lo C . Levi-Strauss, La p e n s e e sauvage, Paris, Plan, 1962 , pp.
" 8 -1 43 .:" "
, Que Vemos,0 Que N os O lh a 43
5/13/2018 HUBERMAN G. O Que Vemos, o Que Nos Olha - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/huberman-g-o-que-vemos-o-que-nos-olha 9/11
I I
I
I
I
2. Fra Ange lico, Mulheres junto ao rurnulo, deta lhe da Ressu17'cit;ao, cerca de
143B.1450. Afresco. Convenro de San Marco, Flot'en"a. Foto Scala.,- ~~
3. M aso di B anco, T um ulo B ardi d i V ernio com lImju{zQ f inal , s ec u lo X IV .
Afresco, lgreia Santa Croce, Florenca. Poto N. Orsi Battaglini.
. . . . Ange lico , Ju izo f ina l , d eta lh e. C er ca d e 1 43 3. T em pe ra s ab re m ad ei ra .
. M useu de S an Marco, F iorenca, Foro Scala.
5/13/2018 HUBERMAN G. O Que Vemos, o Que Nos Olha - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/huberman-g-o-que-vemos-o-que-nos-olha 10/11
E qu elli a me: "Qui son l i e res ia rche
Can lor seguaci, d'ogne setta, e malta
Piii che non credi son Ietombe carche.
Simile qui can simile e sepolto,
Eimonumenti son piii e men caldi."
E poi ch'a la man destra si fu volta,
passammo tra i martiri e Ii altri spaldi.
'''Dos bereges ' , tornou-me, 'a/mas danadas,com sequazes de toda seita e culto;
e as tumbas sao, mais do que cres , pejadas
Simi! aqui com simil e sepulto ,
diverso 0 grau dos [eretros candentes.'
E ei s que a direita se moveu seu vulto
e fomos, da amurada ao pe, silentes. ,,8
.~,.
E nesse lugar que, par urn processo exatarnente inverso ao dos
Eleitos, todas as tampas dos nimulos perrnanecerao levantadas ate 0
[ufzo f inaL. para se fecharem para sempre sobre a cabeca de seus
ocupantes no dia em que as Bem-aventurados, por sua vez, deixarem
s ua s r um b as fi na lm e nte a be rta s (fig. 5 , p . 4 7). E poderiamos c ita r m u i-
tos outros e xempi os d e ss as i nv e rs oe s e st ru tu r ai s, d es s es sistemas de ima-
gens que na o cessam de s e i n st al ar , p o s it iv a ou negativamente, em torno
_ ou seja , i i i . distancia, mas na p er sp ec tiv a - da c isao aberta pelo que
nos olha no que vemos. Eo caso dos Simoniacos do canto XIX que se
encontram em posicso invertida, com a cabeca para baixo em seus
sepulcros; au ainda dos Aduladores do canto XVIII, que se banham
"num mar de Iezes" (equindo giu nel fossa I vidi genie attuffata in
uno stereo) ... E os artistas nao seprivam, em suas i luminuras, de apre-
se!}Jaralgumas invers6es explicitas a iconografia tradicional da Res-
1Urrei~ao cristica au do tumulo virginal cheio de flores",
3 Dante, Diu in a Comedi a , Inferno, canto IX, 127-133, rrad. Cristiano Mar-
t ins, Belo Horizonte , I ta tiaia, 1976, p. 139.
9 l d ., i b id . , XVIII·XX. Sobre a iconograf ia daDiu in a Comed ia , 0 livro prin-
cipal continua sendo 0 de H. Brieger , M. Meiss e C.S. Singleton, I lluminated Ma" .
nuscripts of the Divine Comedy, Princeton, Princeton University Press, 1969,2 v o L .("Bollingen Series", 91).
46Georges Didi-Hu
5. Anonimo italiano, Dante, Virgilio e Parinata, seculo XV.para a Divina Comedia, Inferno, canto X. Biblioreca Marciana,
Veneza (cod. it. IX, 276). D.R.
5/13/2018 HUBERMAN G. O Que Vemos, o Que Nos Olha - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/huberman-g-o-que-vemos-o-que-nos-olha 11/11
:·1
".
j ' . :I
, l.
'"·i ·
;~,~
c,
, ~~'1. ' :
S eja c om o fo r" 0 h om ern d a cr en ca ver.a sempre alguma Dutra
coisa alem do que vi, qu ando se encontra face a face com um a mID-
b a. U m a g ra nd e c on str uc ao fanrasmaticae c on sola dor a faz ab rir s eu
o lh ar , c om o s e ab riria a c au da d e u rn p av fio , p ara lib era r 0 le qu e d e
u rn m und o e sre tic o (s ub lim e au re rn lv el) e ta mb ern te mp or al (d e e sp e-
ranca ou de rernor), 0 que e vista, aqui, scmp re se preve, e 0 que se
prev e sem pre esta assoc iado a u rn fim dos tem pos: u rn d ia - u rn dia
em que a nO( j : ao d e d ia , como a d e n oire, tenl. cadu cado -, serernossalvos do encerrarnento desesperador que 0 volume dos nimulos su-
gere. U rn d ia chegara para qu e ch egu e tu do 0 q ue e sp era rn os s e a cre -
d ir ar no s n es se d ia , e r ud o 0qu e te mern os s e n a o a cr ed it amo s n ele . P os to
d e la do 0 Colr ate r alien an te d es sa e sp ecie d e double bind totalitario,
c um pre re te r na atitu de d a I.~ te nc;:aes se rn ov im ento p elo q ua l, d e for-
m a ins is te nr e, o bs es siv a, s e reelabora um a f i c c ; : a o d o te mp o. P re fi gu -
r ac ao , r eto rn o, j ul gam en to ,c ele ol og ia : u r n tempo r e in v enr a -s e a i, d i an r e
da tum ba, na m edida rnesm o em que e 0 lugar r ea l q u e e r ej ei ta do c om
pavor - a rnareria lidade do jazigo e su a f u n c ; : i i o d e c aix a q ue e ne er ra ,
gue opera a perda de urn set, de urn corpo doravante ocupado em se
desfazer, 0 h om em d a c re nc a p re fe re e sv az ia r o s n im ulos d e s ua s c ar rie s
p utr es ce nte s, d es es pe ra da me ne e in fo rm es , p ar a e nc he -Io s d e'[ ma ge nscorpora ls su blim es, d ep urad as, feitas p ara conforta r e inform ar - ou
seja , fixar - n os sa s m emor ie s, nossos te rn or es e nossos desejos.
4B Georges Didi-Huberman
o MA IS S IM P LE S O B JE TO AV ER
Aparenternenre, 0 homem da tautologia inverre ao extreme esse
processo fantasmacico. El e pretendera elirninar coda construcao tem-
p or al f ic rf cia , q ue re ra p er rn an ec er n o te mp o p re se nr e d e s ua e xp er ie n-
c ia d o visivel. P re te nd ed . elir nina r tod a im ag em , r ne sm o " pu ra" , qu e-
red perm anecer no que ve , absolutarnenre, especificamente, Preten-
dera d ianre da tu mba nao rejeitar a m ateria lid ad e do esp aco real qu e
se oferece a su a vlsdo: querera nao uer outra coisa atem do que v epresentemente.
M as o nd ee nc on tr ar u ma figu ra p ara es sa s eg und a a ritu de ] O nd e
a ch ar u rn e xe mp lo d e e rn pre go efetiv o d e ta l p rog ra ma, de t al r a di c a-
Iid ad e] T alv ez n o rig or o ste nta do p or ce rtos ar tis ta s am erica nos qu e,
p or v olta d os a oo s 6 0 , le va r am a o e xtr em e, p ar ec e, 0processo des tru t ivoi n v oc ad o p or Ja sp er J oh ns e a nte s d ele p or M arc el D uc ha m p . E ss a v is ao
da h is toria - h oj e c om u m, is to e, m u i to p artilh ad a, m as tam bern triv ial
- fo i c lar ar ne nre en un cia da p elo fil6 sofo R ic ha rd W ollh eim , q ue q uis
diagnosticar, dos primeiros ready made a s telas pretas de Ad Reinhardt,
u rn p ro ce ss o g er al d e d es tr uic ao (wor.k of destruction) q u e c u lm i na r ia
nu rnaarte que ele acaba par nomesr - para nornear 0 quase-nada
resu ltante d essa destru icao - d e arte minimalista: u ma a rte d ota da ,
c o m o ele diz ia , de u rn " minim a deconteu do d e arte" (aminimal art-
content)l,
o exemplo p ar ec e c on vi r ta nto m elh or a m in ha p eq ue na fabula
filo sefic a qu an to os a rr is tas as sim n orn ea dos p rod uz ir am , na m aioria
d as v ez es , p ur os e s im ple s v olu me s, em p artic ular p ara lele pfp ed os p ri-v ad es d e q ua lq ue r imagerie, d e q u a lq u e r elemento d e c re nc a, v olu n-
ta ria me nte re du zid os a e ss a es pec ie d e a rid ez ge om etrie s qu e ele s d a-
IR. Wollheim, "Minimal Art "( 1965), On ATt and the Mind, Londres/Cs rn-
bridge, Harvard Universiry Press, 1974, p, 101 (e, em geral, pp, 101-111). Convern
n ao es quec er , na leitura dessa expressao, IIpolissemia da palavra content, q u e s ig -
r u f i c a igualmente 0 r eo r, a capacidade, 0 vo lume . . .
o Que Vemos, 0 Que N'os Olha 49