i mercadoria, mercantilização e mercado sumáriopaje.fe.usp.br/~mbarbosa/cursopos/notas1.pdf ·...
TRANSCRIPT
A Mercantilização da Ciência: Processos, Consequências e Alternativas
(Disciplina do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da FFLCH-USP)
(2o semestre de 2014)
Prof. Marcos Barbosa de Oliveira
NOTAS DE AULA
I – Mercadoria, mercantilização e mercado
Sumário
1. O conceito de mercadoria: atributos básicos
2. Sobre o conceito de propriedade
3. Natureza quantitativa da mercadoria: valor de troca e dinheiro
4. A mercadoria e a dádiva
4.1 Mauss, o autor, e MAUSS, o movimento
4.2 O utilitarismo
4.3 A dádiva contrastada com a mercadoria
5. Mercantilização e mercadorias fictícias: as concepções de Polanyi
5.1 O dinheiro
5.2 A terra
5.3 O trabalho
6. O mercado capitalista e a metáfora da mão invisível
6.1 O mercado como sistema regulador
6.2 O mercado como sistema dinamizador
6.3 A metáfora da mão invisível
1. O conceito de mercadoria: atributos básicos
O primeiro trecho de nosso percurso consiste numa análise do conceito de
mercadoria, que constitui o cerne do capitalismo. Tomamos como ponto de partida
algumas ideias de Marx, mas é importante deixar claro desde já que a análise a ser
desenvolvida não tem em essência nada de intrinsecamente crítico, nada que um não-
marxista precise necessariamente rejeitar. Os conceitos de mercadoria, mercantilização
e mercado não são exclusividade do marxismo, podendo perfeitamente ser usados em
descrições apologéticas do capitalismo. (Em contraste, o conceito de mais-valia, por
exemplo – assim como outros conceitos da teoria marxista –, não tem essa
característica: é essencialmente crítico, e consequentemente rejeitado pelos adeptos do
capitalismo.)
2
O conceito de mercadoria desempenha um papel central no sistema de ideias
construído por Marx; isso transparece no famoso primeiro parágrafo d’O Capital1:
A riqueza das sociedades nas quais predomina o modo de
produção capitalista aparece como uma monstruosa coleção de
mercadorias, e a mercadoria singular como sua forma elementar.
Nossa investigação começa, por isso, com a análise da
mercadoria. (p. 13)
Um conceito-chave nessa passagem é o de modo de produção. Um modo de
produção é uma forma específica de organização social da produção dos bens
necessários para satisfazer as necessidades e desejos humanos. O modo de produção
capitalista é aquele em que os bens são produzidos como mercadorias. Entre os outros
modos de produção encontram-se, de uma perspectiva histórica, o feudal, e o antigo; de
uma outra perspectiva, o modo da produção simples de mercadorias (em que a
produção é realizada por produtores independentes, donos dos meios de produção
necessários para seu trabalho), o modo da produção doméstica (produção para consumo
próprio), etc.
Em cada sociedade, ao longo de sua história, em geral co-existem diferentes
modos de produção, sendo um deles o dominante. A uma sociedade vista por esse
prisma dá-se o nome de formação social. O que determina o caráter de uma formação
social é o modo de produção nela dominante; uma formação social capitalista, por
exemplo, é uma formação em que o modo de produção capitalista é o dominante.
Como bem aponta Paul Singer em Uma utopia militante2, há uma ambiguidade
no termo “capitalismo”, usado para designar ora o conceito de modo de produção
capitalista, ora o conceito de formação social capitalista. Essa distinção é importante
para deixar claro que, enquanto formação social, o capitalismo pode envolver, e de fato
tem envolvido, outros modos de produção, além do capitalista – por exemplo, a
produção simples de mercadorias (por artesãos), a produção doméstica, etc. O modo de
produção capitalista é o dominante, mas não o único. Analogamente, em muitas
1. K. Marx, O capital: crítica da economia política. Em todas as citações provenientes do Cap. I
d’O Capital, adotamos a tradução que se encontra em Karl Marx, A mercadoria (tradução do
Cap. I d’O Capital, apresentação e comentários de Jorge Grespan) e os números de página indicados referem-se essa publicação. Outras traduções para o português (assim como para o
espanhol, o inglês, e o francês) usam o adjetivo “imensa” (ou o correspondente nessas outras
línguas) no lugar de “monstruosa” – mais fiel ao original alemão ungeheure.
2. P. Singer, Uma utopia militante: repensando o socialismo, p. 137.
3
formações sociais da Antiguidade havia mercadores e mercadorias, mas nem por isso
elas constituíam formações capitalistas. E, o que é mais importante de um ponto de vista
político, o socialismo, como uma formação social, também não exclui necessária e
totalmente a mercadoria: é suficiente para que uma formação social não seja capitalista
que o modo capitalista de produção não seja o dominante.
Voltemos agora ao conceito de mercadoria. O que vem a ser, afinal, a
mercadoria? Recorrendo de novo a Marx,
Inicialmente, a mercadoria é um objeto externo, uma coisa que,
por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de algum
tipo. A natureza dessas necessidades, se elas surgem, por
exemplo, do estômago ou da fantasia, nada altera na coisa. Não
se trata aqui tampouco de como a coisa satisfaz a necessidade
humana, se imediatamente como meio de vida, isto é, objeto de
fruição, ou através de um desvio, como meio de produção. (p.
13-4)
Se algo satisfaz alguma necessidade humana, dizemos que ela tem utilidade, ou
valor de uso, ou ainda, que é um bem. Mas para ser mercadoria, não é suficiente que
algo seja um bem: é necessário também que seja produto de trabalho humano:
Uma coisa pode ser valor de uso, sem ser valor [mercadoria]3.
Esse é o caso quando sua utilidade para o homem não é mediada
pelo trabalho. Assim o ar, o solo virgem, os campos naturais, a
mata selvagem, etc. (p. 22)
Mais ainda: para ser mercadoria, não é suficiente que algo seja um bem, e que
seja um produto do trabalho humano – é preciso também que seja produzido para ser
trocado:
Uma coisa pode ser útil e produto de trabalho humano sem ser
mercadoria. Quem satisfaz sua própria necessidade com seu
produto cria realmente valor de uso, mas não mercadoria. Para
produzir mercadoria, deve produzir não só valor de uso, mas
valor de uso para outros, valor de uso social. (E não só para
outros simplesmente. O camponês medieval produzia o trigo do
tributo para o senhor feudal, e o trigo do dízimo para o padre.
Mas nem o trigo do tributo nem o do dízimo se tornavam
mercadorias, por terem sido produzidos para outros. Para se
3. Nos escritos de Marx, diz-se tanto que um bem pode ter valor de uso quanto que ele pode ser
valor de uso.
4
tornar mercadoria, o produto deve ser transferido para outro, a
quem ele servirá como valor de uso, mediante a troca.) (p. 224)
Na linguagem comum, a palavra “troca” é normalmente usada com o sentido de
troca simples, ou escambo, em que nenhum dos bens trocados é dinheiro. Em textos de
economia, “troca” tem um sentido mais amplo, que inclui as operações de compra e
venda. É com esse sentido amplo que a palavra é usada na citação acima, e no que se
segue.
Feito esse esclarecimento, pode-se resumir o que foi exposto até aqui dizendo:
uma mercadoria é (1) um bem (2) produzido pelo trabalho humano (3) para ser
trocado.
Para avançar no entendimento do que vem a ser a mercadoria, passamos a
analisar cada um dos elementos que entram nessa primeira definição, começando com a
troca. Uma constatação bastante óbvia é a de que o conceito de troca – tanto no sentido
restrito quanto no amplo – pressupõe o de propriedade – mais precisamente, o de
propriedade privada. E a propriedade, por sua importância, merece consideração
especial.
2. Sobre o conceito de propriedade
A propriedade se distingue da mera posse física. Ser proprietário de um bem é
ter o direito de fazer certas coisas com ele. Sendo um direito, a propriedade pressupõe
alguma forma de organização social tal que a sociedade tenha meios de impedir – pela
força, se necessário – que sejam violados os direitos dos proprietários. Em geral, e
tipicamente nas sociedades modernas, a função de fazer valer os direitos cabe ao
Estado. A propriedade não é uma relação entre uma pessoa e um bem: é uma relação
entre pessoas, que diz respeito aos bens. É portanto uma relação política. Como diz
Macpherson,
Que a propriedade é política é evidente. A idéia de uma
reivindicação que pode ser imposta implica a existência de
algum órgão que a imponha. O único órgão amplo o suficiente
para isso é toda a sociedade organizada ela própria, ou sua
4. O trecho parênteses foi introduzido por Engels na 4
a edição d’O Capital com a seguinte
observação: “Incluí o trecho entre parênteses, porque com sua omissão surgia frequentemente o
mal-entendido de que qualquer produto consumido por outro que não o produtor valeria para
Marx como mercadoria.—Friedrich Engels.”
5
organização especializada, o Estado; e nas sociedades modernas
(isto é, pós-feudais) o órgão de imposição sempre foi o Estado, a
instituição política da idade moderna. Portanto, a propriedade é
um fenômeno político.5
A propriedade assume várias formas, e a primeira distinção é a que separa a
propriedade privada da propriedade pública. Na propriedade privada, ser proprietário
de um bem é ter, entre outros, o direito de excluir outras pessoas da possibilidade de
usar, ou consumir o bem; neste sentido, é um direito exclusivo. A propriedade pública,
em contraste, é o direito de não ser excluído da possibilidade de usar certos bens – os
bens públicos, ou seja, as ruas, praças, no plano das criações artísticas, as obras de
domínio público, etc.
Sendo uma relação política, a propriedade é um dos temas – na verdade, um dos
principais temas – da Filosofia Política, tendo sido discutido por todos os grandes
pensadores que se ocuparam desse ramo da reflexão, de Platão e Aristóteles até Hobbes,
Locke, Rousseau, Marx, e tantos outros. Um tópico central nessas discussões, desde a
Antiguidade até nossos dias, tem sido o estatuto da propriedade privada enquanto
instituição social, tendo havido uma polarização entre os que a condenaram, como
Platão, e os que a defenderam, como Aristóteles.
Até a Idade Moderna, embora o foco das controvérsias estivesse na propriedade
privada, a propriedade pública desempenhava ainda um papel importante no debate. Na
transição para a modernidade, o conceito de propriedade privada se fortalece, deixando
na sombra o de propriedade pública. Essa mudança conceitual, situada no plano das
ideias, se dá em interação com mudanças na realidade social, isto é, na propriedade
como instituição social real. Citando novamente Macpherson,
A partir dos séculos XVI e XVII, cada vez mais terras e recursos
[...] tornavam-se propriedade privada, e a propriedade privada
tornava-se um direito individual ilimitado em extensão, não
condicionado à realização de funções sociais, e livremente
transferível, como tem sido substancialmente até os dias de
hoje.6
Esse conceito fortalecido de propriedade privada está presente no senso comum,
na ideia de que ser proprietário de um bem é poder fazer com ele o que bem se entende.
5. C. B. Macpherson, “The meaning of property”, in C. B. Macpherson (org.), Property:
mainstream and critical positions, p. 4.
6. Ibid,. p. 10.
6
Mais precisamente, o que bem se entende respeitados os limites impostos pelas outras
leis que regem a sociedade: ser dono de um revólver naturalmente não dá ao dono o
direito de usá-lo para matar desafetos. Mas apesar disso, como prossegue Macpherson,
O direito [de propriedade] moderno, em comparação com o
direito feudal que o precedeu, pode ser considerado absoluto em
dois sentidos: é o direito de dispor, ou alienar, assim como o de
usar, e é um direito não condicionado à realização de qualquer
função social por parte do proprietário.7
Tal é o pano de fundo da reflexão moderna sobre a propriedade. De novo, a
propriedade privada encontra defensores, como Locke – um dos mais influentes
pensadores da modernidade que se ocuparam da questão –, e críticos, como Rousseau.
Em ambos, como na verdade em toda a tradição filosófica, a propriedade da terra tem
um papel central, funcionando como uma espécie de paradigma para a propriedade de
outros tipos de bens. Para ilustrar isso, bem como a veemência que pode assumir a
condenação da propriedade privada, convém lembrar a famosa passagem de Rousseau
no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens onde se
lê:
O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que,
tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e
encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo.
Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não
pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas
ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes:
“Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se
esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence
a ninguém!”8
Podemos agora tornar mais precisa a afirmação de que a propriedade privada é
um pressuposto da troca especificando que o conceito em jogo é o de propriedade
7. Macpherson, op. cit., p. 10.
8. Rousseau, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, p.
259-60. Cf. também a seguinte passagem de Marx, muito citada quando se trata de evidenciar suas preocupações com a questão ecológica: “Do ponto de vista de uma formação econômica
superior [isto é, o socialismo], a propriedade privada individual da terra parecerá de tão mau
gosto quanto a propriedade de um ser humano por outro. Nem mesmo toda uma sociedade, ou toda uma nação, ou todas as sociedades contemporâneas tomadas em conjunto, são donas
absolutas da terra. São apenas seus ocupantes, seus beneficiários, e, como bons pais de família,
têm de deixá-la em melhores condições para as gerações seguintes.” K. Marx, O capital: crítica
da economia política, vol. III, tomo 2, p. 239.
7
privada em sua versão moderna, fortalecida. Se a propriedade privada é um pressuposto
da troca, se ser produzido para ser trocado é uma característica essencial da mercadoria,
e se a mercadoria constitui o cerne do capitalismo, então uma maneira de acabar com o
capitalismo é eliminando a propriedade privada. Sendo assim, entende-se que tenha
sido condenada por pensadores anti-capitalistas, tanto anarquistas – como Proudhon,
responsável pelo aforismo “A propriedade é o roubo” (“La proprieté c’est le vol”) –,
quanto socialistas/comunistas – como, naturalmente, Marx e Engels. O próprio termo
“comunismo” remete à questão da propriedade, condenando sua forma privada, em
favor da propriedade comum, ou pública. Mas no pensamento de Marx e Engels, é bom
lembrar, o socialismo implica a abolição da propriedade privada apenas dos meios de
produção, não de todos os bens.
3. Natureza quantitativa da mercadoria: valor de troca e dinheiro
Na medida em que é produzida para ser trocada, o que importa numa mercadoria
M é a proporção em que se dá a troca, isto é o quanto de uma outra mercadoria se
recebe em troca de cada tanto de M – por exemplo, quanto ovos em troca de cada quilo
de farinha. Tal proporção é uma quantidade, e pode ser expressa por um valor, o valor
de troca. O valor de troca tem uma natureza quantitativa, que se mostra mais
evidentemente quando a troca é uma operação de compra e venda, assumindo a forma
de preço, isto é da quantidade de dinheiro que se cede em troca do bem. Devido à
importância do dinheiro no modo capitalista de produção, convém tratar, ainda que
rapidamente, de sua função e seu desenvolvimento histórico, recorrendo para isso ao
clássico A riqueza das nações, de Adam Smith (1723-1790), onde se lê:
Quando começou a implantar-se a divisão do trabalho, a
possibilidade de fazer trocas deve ter sido frequentemente
impedida ou dificultada. Suponhamos que um homem tem uma
quantidade de artigos superior àquela de que necessita, e que um
segundo tem falta deles. O primeiro estará interessado em
vender uma parte desse excedente e o segundo em comprá-la.
Mas, se este não possui nada de que o primeiro necessite,
nenhuma troca se poderá realizar entre eles. O açougueiro terá
mais carne na sua loja do que a necessita para si mesmo, e tanto
o cervejeiro como o padeiro estariam interessados em adquirir
uma parte desse excedente. Mas só têm, para oferecer em troca,
os diferentes produtos de seus respectivos negócios, e o
açougueiro já possui, suponhamos, todo o pão e cerveja de que
necessita. Neste caso, não se poderá efetuar nenhuma troca entre
8
eles. O açougueiro nada lhes pode vender, nem eles podem ser
seus clientes; e assim os três homens não podem prestar serviços
uns aos outros. A fim de resolver estas situações, os homens
previdentes devem ter procurado, em cada período da sociedade,
depois do estabelecimento da divisão do trabalho, efetuar os
seus negócios de maneira a ter sempre à sua disposição, além do
produto do seu próprio trabalho, uma certa quantidade de
qualquer mercadoria facilmente negociável com as diversas
pessoas que produziam aquilo de que necessitavam.
É provável que muitas mercadorias diferentes tenham sido
sucessivamente descobertas e usadas com esse objetivo. Nas
idades mais primitivas da sociedade, diz-se que o gado
constituiu o meio de troca mais usual; e, se bem que fosse um
meio pouco prático, sabemos que muitas coisas eram
antigamente avaliadas a partir da quantidade de gado obtido em
troca por elas. A armadura de Diomedes, afirma Homero, custou
nove bois; mas a de Glaucus já custou cem. Sabe-se que na
Abissínia o sal foi usado como meio normal de troca; em,
algumas zonas da costa indiana, certas espécies de conchas; na
Terra Nova, bacalhau seco; na Virgínia, tabaco; em algumas das
nossas colônias no oeste da Índia, açúcar; noutros países, peles e
couro curtido; e existe hoje uma aldeia na Escócia onde é
normal, segundo fui informado, que um trabalhador entregue
pregos em vez de dinheiro na loja do padeiro ou da cervejaria.
Em todos os países, porém, os homens parecem ter sido
finalmente obrigados a preferir os metais para este tipo de
utilização.9
Continuando seu relato, A. Smith observa que inicialmente os metais eram
utilizados em barras, sem qualquer marca, só depois começando a serem cunhados,
dando origem às moedas. Da moeda metálica até os dias de hoje as transformações
evidentemente não cessaram, passando pelo papel moeda, pelos cheques e outros tipos
de documento, até chegar ao dias de hoje, na forma de cartões de plástico magnetizados,
ou, ainda mais abstratamente, como registros nas memórias dos computadores mantidos
pelos bancos.
Uma das principais decorrências da natureza quantitativa da mercadoria para os
propósitos deste curso é a de que nos casos mais importantes, ela implica que para ser
mercadoria um bem precisa ser quantificável, isto é, deve ser mensurável em unidades
de medida. No caso de bens materiais, esse requisito é facilmente satisfeito, o que varia
9. Adam Smith, Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações, p. 21-2.
9
é a unidade, que pode ser de peso (quilos de arroz), de volume (barris de petróleo), de
energia (quilowatt-hora), etc., ou então unidades tout court (uma bicicleta, cinco
camisas). No caso dos bens intelectuais, contudo, a quantificação é bastante
problemática, como veremos no capítulo 4 do curso.
4. A mercadoria e a dádiva
O passo a ser dado agora na análise do conceito de troca tem como ponto de
partida a constatação de que nem toda troca de bens é troca de mercadorias. A troca de
presentes, ou dádiva10
, por exemplo, não é troca de mercadorias.
As trocas de mercadorias, ou trocas mercantis, têm três características
essenciais. Em primeiro lugar, elas têm a natureza de contratos. Um contrato é um
acordo em que (duas ou mais) partes contratantes entram livremente, e que estabelece
obrigações para cada uma, que correspondem a direitos para a(s) outra(s). Por envolver
o conceito de direito, e de acordo com o que foi visto a respeito dos direitos na seção 2
(referente à propriedade), um acordo pressupõe uma instância social a que um indivíduo
pode recorrer quando seus direitos não são respeitados. Nos casos mais típicos, tais
obrigações e direitos são registrados por escrito, tanto assim que o termo “contrato” é
usado também para designar o documento em que tal registro é feito. Mas essa não é
uma característica essencial dos contratos, e toda operação de compra e venda – mesmo
a de frutas ou legumes numa feira livre – tem a natureza de um contrato.
O segundo atributo essencial das trocas mercantis é seu caráter agonístico, ou
competitivo, isto é, elas envolvem uma disputa, em que o comprador procura comprar
pelo menor preço possível, e o vendedor procura vender pelo maior preço que consegue
obter. Em termos mais abstratos, podemos dizer que numa troca mercantil cada um dos
sujeitos envolvidos na transação procura maximizar seu ganho. Esse caráter agonístico
pode ser entendido como um princípio que rege as trocas mercantis; vamos denominá-lo
Princípio de Maximização do Ganho (PMG).
O terceiro atributo consiste em que os ganhos em disputa numa troca mercantil
são pensados exclusivamente em função do auto-interesse, isto é, sem levar em conta os
interesses do outro, e os da sociedade (como por exemplo os impactos ecológicos e/ou
10. Nestas Notas, as palavras “dádiva”, “presente” e “dom” são usadas mais ou menos com
sinônimas. A escolha de uma ou outra em cada passagem deve-se a razões estilísticas, ou à
necessidade acompanhar as ocorrências em citações.
10
sociais da produção e consumo do bem que é objeto da transação). Esse aspecto está
ligado ao viés individualista do capitalismo, ao qual retornaremos a seguir.
A partir dessa definição, não é difícil mostrar que a troca de presentes não é uma
troca mercantil: ela não tem a natureza de um contrato – não se pode processar um
amigo por não ter retribuído um presente – nem o caráter agonístico. Para perceber isso,
basta notar que nas negociações envolvidas numa troca mercantil, o vendedor procura
sempre exaltar as qualidades da mercadoria, e o comprador desmerecê-las. Como diz
um ditado português, desde que existem merceeiros e queijos, nunca se viu um
merceeiro falar mal de seu queijo. Na troca de presentes, a situação se inverte. Diz o
doador (aquele que cede o bem, correspondente ao vendedor na troca mercantil): “Não
repare, é apenas uma lembrancinha”, ao que o agraciado com o presente responde: “Que
linda! Era bem de uma gravata assim que estava precisando!”.
O conceito de troca mercantil serve de base para uma definição alternativa do
conceito de mercadoria, a qual em certos contextos é mais adequada que a definição
“um bem, produzido pelo trabalho humano para ser trocado”. A nova definição é: uma
mercadoria é um bem que é objeto de uma troca mercantil ou – numa formulação
menos precisa, porém mais rica de conotações – de uma operação de compra e venda.11
É importante notar que um bem pode participar não apenas de uma, mas de
várias operações de troca ou doação. Um relógio, por exemplo, pode ser objeto de uma
transação de compra e venda, mas é possível que, num segundo momento, o comprador
o dê de presente a alguém. Enquanto é produzido para a venda, e efetivamente vendido,
um relógio é uma mercadoria; quando é dado de presente, não. Isto significa que o
caráter de mercadoria de um bem não é um atributo intrínseco ao objeto – como um
pecado original irreparável, pode-se dizer – mas sim à relação de que participa. A
primeira definição transmite implicitamente, ou no mínimo sugere, a ideia do caráter de
mercadoria como atributo intrínseco. Deste ponto de vista, a nova definição é mais
adequada.
11. Ambas as definições são apenas parciais; de certo ponto de vista completam-se com o
requisito de que a troca se realize no contexto de um mercado (estudado na seção 6 a seguir.)
Uma diferença importante entre as duas definições consiste em que a segunda não inclui o
requisito de ser produzido pelo trabalho humano.
11
4.1 Mauss, o autor, e MAUSS, o movimento
Existe uma tradição de estudos sobre a dádiva, responsável por uma
considerável literatura (embora nem de longe tão ampla quanto à referente à mercadoria
e o capitalismo). Na literatura sobre a dádiva, se há uma obra mais importante que todas
as outras, esta é o clássico de Marcel Mauss Essai sur le don: forme et raison de
l’échange dans le societés archaïques12
. Marcel Mauss (1872-1950) foi um sociólogo e
antropólogo francês, sobrinho e discípulo de Émile Durkheim (1858-1917). Para nossos
propósitos, duas excelentes exposições das ideias de Mauss sobre a dádiva encontram-se
em obras do antropólogo estadunidense David Graeber; uma bastante sucinta, no artigo
“Give it away” (Graeber 2001a), outra bem mais densa e detalhada no cap. 6 do livro
Toward an anthropological theory of value (Graeber 2001b).
De acordo com Graeber, a maior parte dos comentários a respeito do Ensaio
sobre o dom peca por não levar na devida conta as ligações de Mauss com a política.
Mauss foi um socialista revolucionário não-marxista, adepto de uma concepção de
socialismo na linha de Owen e Proudhon. Já enquanto estudante, começou a colaborar
com Jean Jaurès no Parido Socialista, e a contribuir para a imprensa de esquerda, uma
atividade que manteve em quase toda sua vida. Tem 800 páginas a coletânea de seus
escritos políticos organizada por M. Fournier (Mauss 1997). Foi militante do
movimento cooperativista francês, tendo fundado e gerenciado por muito tempo uma
cooperativa de consumo em Paris. Como dirigente, visitou, e escreveu relatório sobre a
situação do movimento em vários países, como a Alemanha, a Inglaterra, a Hungria e a
Rússia. Sua reação à Revolução Soviética pode ser caracterizada como de apoio crítico,
de simpatia por seus ideais e condenação de seus métodos.
O destaque dado às posições políticas de Mauss se justifica pela proposição de
que, como sustenta um outro comentador (Hart 2007, p. 11), é indispensável levá-las em
consideração para um entendimento adequado de sua produção acadêmica. Com relação
ao Ensaio sobre a dádiva, a proposição é demonstrada por Graeber pela análise dos
vínculos de sua temática com as questões levantadas pela Nova Política Econômica de
Lênin, anunciada em 1921. Graeber chega a afirmar serem o ensaio, e o artigo
12. Publicado originalmente em 1925, em L’Année Sociologique, Nouvelle Série, Tome I, 1923-
24. Reproduzido na coletânea Sociologie et anthropologie , organizada por Levy Strauss (Mauss
1950). Tradução brasileira dessa coletânea: Mauss 1974.
12
“Socialisme et bolchévisme”, publicado também em 1925, duas partes de um mesmo
projeto.
Pressupondo um conceito robusto de mercadoria, que engloba o de mercado em
que vigora a lei da oferta e da demanda, pode-se dizer que a mercadoria é o princípio
organizador da sociedade no sistema capitalista, e a dádiva, para Mauss, um sistema
alternativo – um “outro da mercadoria” – presente em sociedades “arcaicas” e
“primitivas”, do passado e do presente e, no futuro, do socialismo – tal como concebido
pelo autor.13
O componente anticapitalista do socialismo de Mauss era menos radical
que o dos marxistas, por não envolver a negação completa da mercadoria, mas apenas
da mercadoria como único princípio organizador da sociedade, admitindo para o
mercado o papel de “uma mera técnica para a alocação de certos tipos de bens
econômicos (por exemplo, entre cooperativas democraticamente organizadas ou
organizações profissionais).” (Graeber 2001b, p. 157-8)
A faceta anticapitalista das posições de Mauss inclui a rejeição dos princípios do
utilitarismo, a qual constitui o fulcro do episódio mais significativo na fortuna crítica do
Ensaio sobre a dádiva, nos quase 90 anos desde sua publicação. Trata-se da fundação,
em 1981, do movimento que, numa espécie de jogo de palavras com o nome de seu
patrono, denominou-se Mouvement Anti-Utilitariste dans les Sciences Sociales, donde a
sigla MAUSS (também grafada M.A.U.S.S.). O economista e sociólogo francês Alain
Caillé é um dos fundadores, e a principal figura do MAUSS. Entre outros membros de
destaque encontram-se Gerald Berthoud, Ahmet Insel, Jacques Godbout e Serge
Latouche (um dos líderes do movimento da Décroissance). David Graeber, mencionado
na seção anterior é um simpatizante.
A divulgação das ideias do movimento começou com o Bulletin du MAUSS, que
em 1989 passou a ser publicado pela Editora La Découverte, tornando-se a Revue du
Mauss14
. Em 2007 foi criado o site interativo Journal du MAUSS15
, juntamente com
uma versão em português e espanhol, o Jornal do/Periódico del M.A.U.S.S.
Iberolatinoamericano16
.
13. O tema do mercado como princípio organizador sociedade é tratado mais amplamente na seção 6 a seguir.
14. http://www.revuedumauss.com/.
15. http://www.journaldumauss.net/
16. http://www.jornaldomauss.org/periodico/
13
O MAUSS é muito pouco conhecido nos países anglo-saxônicos. Tem uma
presença significativa na Itália; no Brasil criou-se recentemente uma sucursal, a
Associação Movimento Anti-Utilitarista nas Ciências Sociais (MAUSS), liderada pelo
Prof. Paulo Henrique Martins, da Universidade Federal de Pernambuco, um dos editores
do Jornal do M.A.U.S.S.17
4.2 O utilitarismo
Embora as ideias centrais do utilitarismo já estivessem circulando na época, o
pensador inglês Jeremy Bentham (1748-1832) costuma ser considerado o fundador da
doutrina. Foi responsável pela adoção do nome “utilitarismo”, e liderou o movimento
formado em torno de suas ideias, cujos adeptos ficaram conhecidos como os
Benthamites. O livro em que a doutrina foi exposta por Bentham chama-se Introduction
to the priciples of morals and legislation, e foi publicado em 1789 (Bentham 1974).
O cerne do utilitarismo pode ser analisado em três momentos lógicos: redução,
quantificação, maximização.
Redução: o utilitarismo reduz todos os sentimentos, emoções e valores humanos
a uma única dimensão, a da polaridade felicidade/infelicidade, ou prazer/dor. Nas
palavras de Bentham:
A natureza colocou o gênero humano sob o domínio de dois
senhores soberanos: a dor e o prazer. Somente a eles compete
apontar o que devemos fazer, bem como determinar o que na
verdade faremos. Ao trono desses dois senhores está vinculada,
por uma parte, a norma que distingue o que é reto do que é
errado, e, por outra, a cadeia das causas e efeitos. Os dois
senhores de que falamos nos governam em tudo o que fazemos,
em tudo o que dizemos, em tudo o que pensamos, sendo que
qualquer tentativa que façamos para nos livrarmos dessa
sujeição outra coisa não faz senão demonstrá-la e confirmá-la.
Através das suas palavras, o homem pode pretender abjurar tal
domínio, porém na realidade permanecerá sujeito a ele em todos
os momentos de sua vida.18
Quantificação: O capítulo IV do livro em pauta tem por título “Método para
medir uma soma de prazer ou de dor”. Cada prazer ou dor tem um valor, medido de
17. Em português existem pelo menos dois livros de autoria de membros do MAUSS: O espírito da dádiva, de Godbout (1997), com a colaboração de Caillé, e Antropologia do dom: o terceiro
paradigma, de Caillé (2002).
18. Bentham 1974, p.9. (Nesta, e nas citações de Bentham a seguir, algumas modificações
foram introduzidas na tradução. Em todas os itálicos provêm do original.)
14
acordo com um determinado método. O cerne desse método é descrito da seguinte
maneira:
Para uma pessoa considerada em si mesma, o valor de um prazer
ou de uma dor, considerado em si mesmo, será maior ou menor,
segundo as quatro circunstâncias que se seguem:
(1) A sua intensidade.
(2) A sua duração.
(3) A sua certeza ou incerteza.
(4) A sua proximidade ou distância no tempo. (Ibid., p.16)
Maximização: O termo “utilidade”, do qual deriva o nome da doutrina, figura
na expressão “princípio da utilidade”, sendo tal princípio apresentado por Bentham
como o fundamento da doutrina. Seu enunciado é o seguinte:
Por princípio da utilidade entende-se aquele princípio que
aprova ou desaprova qualquer ação, segundo a tendência que
tem a aumentar ou diminuir a felicidade da pessoa cujo interesse
está em jogo, ou, o que é a mesma coisa em outros termos,
segundo a tendência a promover ou comprometer a referida
felicidade. (Ibid., p. 4)
Tempos depois da publicação do livro, Bentham passou a usar “máxima
felicidade” (“greatest happiness or greatest felicity principle”) no lugar de “utilidade” –
com isso deixando mais evidente o caráter maximizador do princípio.19
Em outras palavras, no plano dos indivíduos, cada um age sempre procurando
maximizar sua felicidade “líquida”, isto é, a soma dos valores dos prazeres menos a
soma dos valores das dores.
O tema central do livro, como diz o título, são os princípios da moral e da
legislação. Moral e legislação constituem aspectos da vida social dos seres humanos, e
só podem ser entendidos no contexto de uma concepção de sociedade. A defendida por
Bentham é uma concepção individualista, que incorpora uma determinada noção do
19. Numa nota de 1822, diz o autor: “A esta expressão [princípio da utilidade”] acrescentei
ultimamente – substituindo até a primeira – esta outra, o princípio da máxima felicidade [the
greatest happiness or greatest felicity principle] [...]. A palavra utilidade não remete tão claramente às ideias de prazer e de dor como a palavra felicidade [the words happiness and
felicity], nem à consideração do número dos interesses afetados [...]. Esta falta de uma conexão
suficientemente clara entre as ideias de felicidade e prazer, de um lado, e a ideia de utilidade, de
outro, tem constituído às vezes, para certas pessoas – conforme pude constatar – um obstáculo para a aceitação do princípio acima que, de outra forma, possivelmente não teria encontrado
resistência.” (Ibid, p.3)
15
indivíduo. É individualista porque nela os indivíduos são ontológica e
metodologicamente anteriores à sociedade. Referindo-se à comunidade, no lugar de
sociedade, por razões que não vêm ao caso aqui, diz Bentham:
O interesse da comunidade, eis uma das expressões mais
comuns que pode ocorrer na terminologia e na fraseologia
moral. Em consequência, não é de estranhar que muitas vezes se
perca de vista o seu significado exato. Se a palavra tiver um
sentido, será o seguinte. A comunidade constitui um corpo
fictício, composto de pessoas individuais que se consideram
como constituindo os seus membros. Qual é, neste caso, o
interesse da comunidade? A soma dos interesses dos diversos
membros que integram a referida comunidade. (Ibid., p.4)
A noção de indivíduo que completa a concepção utilitarista de sociedade reflete
os três momentos caracterizados acima. Enquanto um tipo ideal, o indivíduo postulado
por Bentham tem o perfil do Homo economicus. “Homo economicus” é a expressão
consagrada na literatura para designar o indivíduo quantificador, calculista, cujo único
objetivo na vida é maximizar a satisfação de seu auto-interesse, valendo-se para isso de
seus conhecimentos, e da razão instrumental.20
Aplicado à moral e à legislação, o princípio da utilidade adquire um caráter
ético, constituindo uma norma para a avaliação de prescrições morais ou legais: uma
prescrição é boa ou má conforme sua tendência a aumentar ou diminuir a soma das
felicidades líquidas dos membros da sociedade.
Há um vínculo evidente entre o utilitarismo e o capitalismo, que Hobsbawm
ilumina muito bem na seguinte passagem:
A aritmética foi o instrumento fundamental da Revolução
Industrial, vista por seus autores como uma série de contas de
somar e subtrair: a diferença de custo entre comprar no mercado
mais barato e vender no mais caro, entre o custo da produção e o
preço de venda, entre o investimento e o retorno. Para Jeremy
Bentham e seus seguidores, os mais ferrenhos defensores desse
tipo de racionalidade, até a moral e a política prestavam-se a
20. Entendendo o Homo economicus não como caracterização da natureza humana, mas sim
como a meta de um processo cultural, ao qual podemos e devemos resistir, diz Mauss: “Foram nossas sociedades ocidentais que, muito recentemente, fizeram do homem um “animal
econômico”. Mas não somos ainda todos seres desse gênero. [...] O homo œconomicus não está
atrás de nós, mas à nossa frente, como o homem da moral e do dever, como o homem da ciência e da razão. O homem foi durante muito tempo outra coisa, e não faz muito tempo que ele é uma
máquina, complicada como uma máquina de calcular.
De resto, felizmente ainda estamos distantes desse constante e glacial cálculo utilitário.”
(Mauss 1974, p.176-7)
16
esses cálculos simples. A felicidade era o objetivo das políticas
de governo. O prazer de cada um podia ser expresso (pelo
menos em teoria) como uma quantidade, da mesma forma que
seu sofrimento. Deduzindo-se do prazer o sofrimento, o
resultado líquido seria a sua felicidade. Somando-se a felicidade
de todos e deduzindo-se a infelicidade, o melhor governo seria o
que garantisse a felicidade máxima do maior número de pessoas.
A contabilidade da humanidade produziria saldos de débito e
crédito, como nos negócios. (Hobsbawm 1978, p.74)
Enquanto doutrina no campo da Ética, o utilitarismo está vivo e vigoroso nos
dias de hoje, em formulações bem mais sofisticadas que as de Bentham, conhecidas pela
designação geral de consequencialismo. Entretanto, a faceta que constitui o alvo
principal da crítica do MAUSS é a do utilitarismo como fundamento das ciências
humanas. No mainstream da Economia, a concepção utilitarista prevalece, primeiro na
Economia Política clássica, de Adam Smith, Ricardo e outros e depois, mais claramente,
na vertente neoclássica, ou marginalista, criada por Jevons, Walras, e Menger em
princípios da década de 70 do século XIX. N’A Teoria da Economia Política, de Jevons
(1983, [1871]) a concepção utilitarista como fundamento da Economia é afirmada da
maneira mais explícita. Com a ascensão do neoliberalismo a partir dos anos 80 do
século passado, torna-se avassaladora a predominância da vertente neoclássica na
Economia, parte do pensamento único denunciado pelos críticos. Também como faceta
da ascensão do neoliberalismo, a concepção utilitarista se fortalece na Ciência Política
(na forma da Teoria da Ação Racional e na Teoria dos Jogos), na sociologia e na
antropologia. (Graeber 2001b, p. 5 ss.)
Na visão do MAUSS – que, convém dizer, se apresenta explicitamente como
reação ao neoliberalismo –, é evidente portanto, a importância do utilitarismo. Isso
explica a adoção do termo “anti-utilitarismo” como a palavra-chave do movimento, a
qual é portanto bem mais que um pretexto para o jogo de palavras com o nome de seu
patrono.
4.3 A dádiva contrastada com a mercadoria
O Ensaio de Mauss é um texto bastante longo para esse gênero de trabalho: são
157 páginas na edição original da revista L’Année Sociologique, sendo uma boa parte do
espaço ocupada por mais de 500 notas de rodapé em tipo miúdo. Dessas 157 páginas,
apenas as últimas 27 versam sobre a dádiva no mundo contemporâneo; todas as demais
17
tratam da dádiva nas sociedades que ele denomina “arcaicas” ou “primitivas”. Na
produção do MAUSS, essa proporção se inverte, sendo o foco de maneira geral
deslocado para as sociedades contemporâneas; isso vale especialmente para o livro de
Godbout O espírito da dádiva.
Dessa mudança de foco emerge uma lista das várias formas que a dádiva assume
nos dias de hoje, incluindo – além da mais evidente, as trocas de presente propriamente
ditas:
o trabalho voluntário,
as práticas de caridade e filantropia,
os cuidados e bens que os pais proporcionam aos filhos – e os filhos aos pais,
quando eles envelhecem –, ou mais, genericamente, a dádiva nas relações
familiares,
a doação de sangue21
,
a doação de órgãos humanos para o transplante,
os serviços prestados na forma de favores, as gorjetas, etc.
A caracterização da dádiva que propomos acompanha essa mudança de foco.
Uma das diferenças fundamentais entre a mercadoria e a dádiva já foi indicada na parte
introdutória da presente seção; trata-se do caráter contratual da troca de mercadorias,
ausente da troca de presentes. A segunda diferença fundamental diz respeito às funções
que as duas modalidades de troca desempenham na vida social. A troca de mercadorias
é um meio de efetuar a distribuição dos bens necessária em virtude da divisão do
trabalho, levando em conta a utilidade dos bens, e não as caraterísticas e disposições dos
agentes envolvidos na transação. A troca de presentes, por sua vez, tem a função de
promover os laços afetivos entre as pessoas, os quais envolvem os sentimentos e valores
da amizade, do amor, da solidariedade, lealdade, empatia, etc. Dar um presente a um
amigo é dizer: “tenho apreço por você, e desejo que nossa amizade continue”.
Assim como a troca de mercadorias, a de presentes também envolve obrigações
mais claramente, a obrigação de retribuir um presente recebido. (Um reflexo dessa
característica é a palavra “obrigado”, usada em português como expressão de
21. Um livro muito citado na literatura sobre a dádiva é The gift relationship: from human blood
to social policy (Titmuss 1972), onde o autor procura mostrar a superioridade dos sistemas de
coleta de sangue para transfusões baseados em doações, em comparação com os sistemas
baseados na compra.
18
agradecimento.) Entre essa característica e a função de promover os laços afetivos
existe certa tensão. Um presente é genuíno quando o doador tem de fato os sentimentos
que a doação deve exprimir. Se um presente é dado apenas por obrigação, isto é, sem
ser motivado pelos sentimentos apropriados, então não é um presente genuíno. Essa
tensão dá origem a um impulso, no doador, de negar o lado obrigatório da doação, e é
responsável – na visão de Mauss (1974, p. 41 e 45) e Caillé (2002, p.8-9) – por um
caráter paradoxal da dádiva, como sendo ao mesmo tempo livre e obrigatória.
Há uma outra forma em que um presente não constitui um presente genuíno, a
saber, aquela em que a doação não é motivada pelos sentimentos apropriados, mas
apenas pela expectativa de retribuição. Exemplificando: é um presente interesseiro, não-
genuíno, aquele que um comerciante dá ao gerente de sua agência bancária, a quem
detesta, esperando com isso conseguir condições favoráveis para os empréstimos de que
necessita. A troca de que o presente interesseiro faz parte não envolve obrigações
contratuais, mas é semelhante à troca de mercadorias por ser regida pelo princípio de
maximização da utilidade. Quando aquilo que se espera como retribuição do presente
envolve alguma forma de ilegalidade, configura-se o suborno.
5. Mercantilização e mercadorias fictícias: as concepções de Polanyi
Se o modo de produção capitalista, caracterizado pela mercadoria, passou a ser o
dominante, correspondendo essa mudança à instauração do capitalismo, então deve ter
havido categorias de bens que não eram mercadorias, mas passaram a sê-lo. O processo
em que uma categoria de bens vira mercadoria é o da mercantilização. Mercantilizar um
bem é fazer com que ele se transforme em, ou passe a funcionar como mercadoria.22
O conceito de mercantilização está presente na obra de Marx, porém figura com
muito mais destaque na de Karl Polanyi, cujas ideias, vão desempenhar um papel
importante na exposição a seguir. Em função disso, convém fazermos aqui uma pausa
no desenvolvimento do raciocínio para explicar rapidamente quem foi Polanyi.
22. Apesar da importância do conceito, o termo “mercantilização” – bem como seus cognatos
“mercantilizar”, “desmercantilizar”, etc. – é um neologismo – assim como seus equivalentes em
outras línguas, como o inglês (commodification) e o francês (marchandisation). Só os dicionários mais recentes os registram, e alguns autores os colocam entre aspas. Em português,
nota-se também o uso de “mercadorizar” no lugar de “mercantilizar”; em inglês,
“commoditisation” em vez de “commodification”. De acordo com o Oxford English Dictionary,
a primeira ocorrência de “commodification” data de 1975.
19
Polanyi foi um intelectual engajado; formou-se em direito e filosofia, foi
advogado, jornalista, professor e autor de uma obra teórica que passa pelos campos da
economia, da antropologia, da história e da sociologia. Nasceu em Viena em 1896, e
criou-se em Budapeste. Em 1920 voltou a Viena, onde morou até 1933 quando – como
tantos outros intelectuais judeus da Europa Central – foi forçado a emigrar devido ao
avanço do nazismo. Viveu primeiro na Inglaterra, depois nos Estados Unidos e no
Canadá, onde morreu em 1964. A ida para a Inglaterra representou uma guinada na vida
de nosso autor; sua obra teórica mais sólida foi fruto desse período anglo-americano, e
nela destacam-se Trade and market in the early empires (1957) (um trabalho coletivo
do qual Polanyi foi o principal inspirador e organizador); Dahomey and the slave trade
(publicado postumamente em 1966), e um outro livro póstumo, inacabado quando o
autor faleceu, The livelihood of man (1977). Mas o livro pelo qual Polanyi é mais
conhecido, sendo hoje em dia amplamente considerado um clássico, é A grande
transformação, de 194423
. Nesta, e nas próximas seções, vamos expor e discutir
algumas das principais contribuições teóricas d’A grande transformação. Para
estabelecer a articulação com a linha de raciocínio que vinha sendo desenvolvida,
convém começar com uma observação sobre o significado do título.
Qual é a grande transformação a que o título se refere? Há duas respostas para
essa pergunta. A primeira, com certeza a mais fiel a certas passagens do livro, é a que
identifica a grande transformação com o colapso do que Polanyi chama “a civilização
do século XIX”, em outras palavras, a crise do sistema capitalista que tem início por
volta de 1870, dá origem à Primeira Guerra Mundial, depois à depressão dos anos 30, e
à Segunda Guerra, durante a qual foi escrito o livro. Sua frase de abertura é:
A civilização do século XIX entrou em colapso. Este livro trata
das origens políticas e econômicas desse evento, bem como da
grande transformação da qual ele foi o arauto. (p. 17)
A segunda interpretação, embora menos fiel, tem suas vantagens e encontra-se
com frequência na literatura secundária. De acordo com ela, a grande transformação é a
passagem do feudalismo ao capitalismo, que se completa em princípios do século XIX.
Na verdade, o tema do livro são esses dois processos históricos, e pode-se dizer que um
23. K. Polanyi, The great transformation. Edição brasileira: A grande transformação: as
origens de nossa época. Os números de página nas referências das citações de Polanyi a seguir
são os da edição brasileira; a tradução, entretanto, foi feita a partir do original.
20
título mais condizente com o conteúdo seria “As (duas) grandes transformações” – de
muito menor impacto, naturalmente, que o título original.24
Retomemos agora o fio da meada, adotando essa segunda interpretação.
Havíamos introduzido o conceito de mercantilização, como um processo que algumas
categorias de bens devem sofrer para que o modo de produção capitalista passe a ser o
dominante – constituindo essa mudança o cerne da grande transformação. Prosseguindo,
vamos dar início a uma exposição sobre um dos conceitos-chave no pensamento de
Polanyi, o de mercadoria fictícia. Para ele, são três as principais categorias de bens que
precisam ser mercantilizadas para que o capitalismo possa se realizar plenamente: o
trabalho, a terra e o dinheiro; uma vez mercantilizadas, elas se tornam mercadorias
fictícias. E o que são mercadorias fictícias? O ponto de partida é o que o autor denomina
“a definição empírica da mercadoria”, e que corresponde em essência à análise do
conceito de mercadoria que vínhamos desenvolvendo, particularmente no que se refere
ao atributo de ser produzido para ser trocado. A ideia é a de que, por não terem tal
atributo, mas, por assim dizer, serem forçadas a funcionar como mercadorias, o
trabalho, a terra e o dinheiro são mercadorias fictícias.
[O] trabalho, a terra e o dinheiro [...] de acordo com a definição
empírica de mercadoria, não são mercadorias. O trabalho é
apenas outro nome para uma atividade humana que é parte da
própria vida, a qual por sua vez não é produzida para a venda
mas por razões inteiramente diversas, e esta atividade não pode
ser destacada do resto da vida, ser armazenada ou mobilizada; a
terra é apenas um outro nome para a natureza, que não é
produzida pelo homem; o dinheiro real [actual money] por fim,
é apenas um símbolo de poder de compra que, de maneira geral,
simplesmente não é produzido, mas passa a existir através do
mecanismo dos bancos ou da finança estatal. Nenhum deles é
produzido para a venda. A descrição do trabalho, da terra e do
dinheiro como mercadorias é inteiramente fictícia. (p. 94)
24. Com referência a títulos, vale a pena observar que o sub-título do livro na edição brasileira (“as origens de nossa época”) parece sugerir a segunda interpretação (grande transformação =
surgimento e instauração do capitalismo) – embora seja também coerente com a outra, dada a
vagueza da expressão “nossa época”. Esse sub-título parece provir do título da segunda edição em inglês, publicada na Inglaterra em 1945 pela Gollancz, em que se inverte a ordem: The
origins of our time: the great tranformation. Nas edições posteriores em inglês publicadas pela
Beacon Press, o título é: The great transformation: the political and economic origins of our
time.
21
Em contraste com as mercadorias fictícias, as mercadorias genuínas são os bens
que não só funcionam como mercadorias, mas são produzidos para serem trocados. Nas
três sub-seções a seguir trataremos das três mercadorias fictícias de Polanyi, na ordem
crescente de sua importância.
5.1 O dinheiro
Entre os vários tipos de bens, o dinheiro tem uma peculiaridade: a de não poder
ser comprado e vendido. Pode-se naturalmente comprar e vender quantias de moedas
diferentes, por exemplo, comprar dólares pagando em reais ou vice-versa. Mas deixando
de lado a diversidade de moedas – como convém ao nível de abstração em que a análise
está se desenvolvendo –, que sentido teria comprar uma quantia de dinheiro pagando
por ela uma quantia idêntica? Comprar 100 reais pagando por eles 100 reais nada mais
seria que trocar seis por meia dúzia. E se as quantias fossem diferentes, quem cedesse a
maior em troca da menor sairia perdendo; não teria motivo algum para participar da
operação. Mas se não pode ser comprado e vendido, como pode o dinheiro ser
mercantilizado?
Para responder a essa pergunta é necessário introduzir no raciocínio um outro
tipo de operação em que um bem muda de mãos, a saber, o empréstimo, em que o
direito de uso de um bem é cedido pelo proprietário a uma outra pessoa por um
determinado período de tempo. Quando nada se cobra pelo empréstimo, a operação tem
o caráter de um presente, ou dádiva; no caso contrário, tem a natureza de uma relação
mercantil, e é conhecida como aluguel. É fácil constatar que embora não possa ser
comprado e vendido, o dinheiro pode ser alugado: trata-se da operação do empréstimo a
juros, ou usura.25
Num empréstimo a juros o dinheiro funciona como mercadoria de
maneira análoga à dos bens em geral quando alugados, e é nesse sentido que se pode
falar da mercantilização do dinheiro.
Passando da análise conceitual para a história, a mercantilização do dinheiro,
embora não tenha se reduzido a isso, envolveu crucialmente a mudança do estatuto ético
25. Como explicam os dicionários, a palavra “usura” tem pelo menos três sentidos. O primeiro é mais geral, idêntico ao de “empréstimo a juros”. O segundo é mais específico, equivalente a
“empréstimo a juros exagerados”, de acordo com algum critério. Nesse segundo sentido,
“usura” e “usurário” são termos pejorativos, sinônimos de “agiotagem” e “agiota”. E finalmente
“usura” significa também o que se paga pelo aluguel do dinheiro, ou seja, o juro.
22
do empréstimo a juros, condenado na Idade Média como um pecado mortal26
, e aceito
sem restrição como parte normal da vida econômica alguns séculos depois.27
Para dar
uma ideia do estatuto medieval, vejamos duas passagens de um livro inteiramente
dedicado ao tema: A bolsa e a vida:a usura na Idade Média, de Jacques Le Goff.
A decretal Consuluit de Urbano III (1187), integrada no Código
de Direito Canônico, expressa melhor, sem dúvida, a atitude da
Igreja diante da usura no século XIII:
– Usura é tudo aquilo que é pedido em troca de um empréstimo
além do próprio bem emprestado;
– Receber uma usura é um pecado proibido pelo Antigo e o
Novo Testamento;
– A simples esperança de uma devolução de um bem, além do
próprio bem, é um pecado;
– As usuras devem ser integralmente restituídas a seu
verdadeiro dono;
– Preços mais elevados por uma venda a crédito são usuras
implícitas. 28
A segunda passagem é interessante por formular um argumento legitimador da
condenação da usura:
Um texto espantoso, falsamente atribuído a São João
Crisóstomo, datando provavelmente do século V, foi inserido na
segunda metade do século XII no Código de Direito Canônico.
Nele está escrito:
“De todos os mercadores, o mais maldito é o usurário, pois este
vende uma coisa dada por Deus, não adquirida pelos homens (ao
contrário do mercador) e, após a usura, retoma a coisa,
26. Já em Aristóteles se encontra uma condenação da usura: “A usura é detestada com muita
razão, pois seu ganho vem do próprio dinheiro, e não daquilo que levou à sua invenção.
Efetivamente, o objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta, mas os juros aumentam a quantidade do próprio dinheiro (esta é a verdadeira origem da palavra*: a prole se assemelha
aos progenitores, e os juros são dinheiro nascido do dinheiro), logo, esta forma de ganhar
dinheiro é de todas a mais contrária à natureza.” * Nota de rodapé da edição brasileira: “Em grego, pois tôkos significa ao mesmo tempo prole, descendência, e juros (a “descendência do
dinheiro”).” Aristóteles, Política, 1258b, p. 28.
27. Como fica claro no tratamento do tema n’A grande transformação, a mercantilização do dinheiro teve outros aspectos importantes que contudo, por um lado são de natureza mais
técnica, por outro carecem de relevância para os propósitos deste estudo, sendo por isso
omitidos.
28. Jacques Le Goff, A bolsa e a vida: a usura na Idade Média, p. 26.
23
juntamente com o bem alheio, o que não faz o mercador. Pode-
se objetar: aquele que aluga um campo para receber renda ou
uma casa para ter aluguel, não se assemelha àquele que empresta
dinheiro a juros? É claro que não. Antes de tudo porque a única
função do dinheiro é o pagamento de um preço de compra;
depois, o arrendatário faz frutificar a terra, o locatário goza da
casa; nestes dois casos, o proprietário parece dar o uso da coisa
para receber dinheiro, e de certo modo, trocar lucro por lucro,
enquanto que, do dinheiro emprestado, não podemos fazer dele
nenhum uso; enfim, o uso esgota pouco a pouco o campo,
estraga a casa, enquanto o dinheiro emprestado não se sujeita à
diminuição nem ao envelhecimento.”29
Como no caso da terra e do trabalho, o processo de mercantilização foi longo e
complexo; para nossos propósitos, não é necessário contar essa história.
5.2 A terra
Um dos temas centrais no pensamento de Polanyi é o que diz respeito à relação
entre a estrutura econômica – isto é, a forma como se organiza a produção e distribuição
dos bens – e outras estruturas sociais, como as políticas, religiosas, de família, de
classes, etc. Segundo Polanyi, nas formações sociais anteriores, sem exceção, todas
essas estruturas, inclusive a econômica, estavam articuladas entre si, formando a
totalidade da organização social. Para se referir a essa característica, ele introduz o
conceito de inserção (embeddedness)30
. A ideia é a de que nos sistemas não-capitalistas,
a estrutura econômica é inserida (embedded) na sociedade; com a instauração do
capitalismo ocorre um movimento de desinserção: a estrutura econômica se destaca das
demais, assumindo um posição dominante em relação a elas. E por esse motivo Polanyi
29. Ibid., p. 28. Para ilustrar as diferenças entre as posturas medieval e moderna na transações
econômicas, Heilbroner (num livro muito influenciado pelas ideias de Polanyi) conta a seguinte anedota: “Um certo são Geraldo de Aurillac, no século X, havendo comprado em Roma um
hábito eclesiástico por um preço muito baixo, teve conhecimento por alguns mercadores
ambulantes de que fizera uma “pechincha” e, em vez de alegrar-se, apressou-se em mandar de volta ao vendedor uma soma adicional, temendo incorrer no pecado da avareza.” (R. L.
Heilbroner, A formação da sociedade econômica, p. 56.) Trata-se de um caso excepcional, com
observa o autor, mas útil como exemplo de uma operação de compra e venda não regida pelo PMG.
30. O conceito figura n’A grande transformação, mas é tratado mais sistematicamente no cap. 4,
“The economy embedded in society”, de The livelihood of man. Na edição brasileira d’A grande
transformação, “embedded” é traduzido por “embutido” (cf. p. 77).
24
considera o capitalismo um fenômeno único na história da humanidade, uma forma de
organização social com uma característica que nenhuma outra tem.
A mercantilização da terra, como parte da transição do feudalismo ao
capitalismo, ilustra bem esse processo de desinserção. Como diz Polanyi:
A terra, fulcro da ordem feudal, era a base do sistema militar,
judicial, administrativo e político; seu estatuto e função eram
determinados por leis e costumes. Se sua posse era ou não
transferível, e em caso positivo, para quem e sob quais
restrições; o que os direitos de propriedade implicavam; que
usos podiam ser feitos de alguns tipos de terra – todas essas
questões eram separadas da organização de compra e venda, e
sujeitas a um conjunto inteiramente diferente de regulamentos
institucionais.
[...] Quanto à terra, seu estatuto feudal foi abolido apenas na
medida em que estava ligado a privilégios provinciais; de resto,
a terra permaneceu extra commercium na Inglaterra e na França.
Até a época da Grande Revolução de 1789, a propriedade
fundiária continuou sendo fonte de privilégios sociais na França,
e mesmo depois, na Inglaterra a lei comum sobre a terra era
essencialmente medieval.31
Foram necessários portanto vários séculos para que se completasse o corte das
amarras que articulavam a propriedade da terra com as outras estruturas sociais, e
inseriam sua dimensão econômica na sociedade. Na seção 2, definimos a propriedade
como um direito. Uma definição mais precisa – e mais adequada para que se possa
entender a citação de Polanyi – é a que identifica a propriedade com um conjunto de
direitos – um conjunto que varia conforme a categoria do bem em questão, e varia
historicamente, dando origem assim às várias formas que a propriedade assume. Ainda
na seção 2, mencionamos a importância especial da propriedade da terra, em relação à
propriedade de outros tipos de bens, assim como o fortalecimento do conceito de
propriedade privada. Tal fortalecimento, particularmente no caso da terra, pode agora
ser entendido como uma ampliação do conjunto de direitos associados à propriedade. E
do ponto de vista da mercantilização, o essencial nessa mudança foi, naturalmente, o
acréscimo do direito de alienar: de comprar, vender, e alugar livremente a terra. A
história da mercantilização da terra, no que ela tem de mais central, é a história do
31. Polanyi, op. cit., p. 91.
25
processo que levou à situação, tão familiar nos dias de hoje, em que a terra pode ser
objeto de trocas mercantis mais ou menos como qualquer outra mercadoria.
Essas considerações contemplam um dos aspectos do processo de
mercantilização da terra, que consiste no fortalecimento da propriedade privada da terra,
a qual já existia como instituição. Outro aspecto de suma importância é a privatização,
isto é, a transformação de extensões de terra de propriedade pública em propriedade
privada. Um movimento histórico dessa natureza desempenhou um papel
importantíssimo na geração das circunstâncias propícias ao surgimento do capitalismo.
Trata-se de um processo que se deu em toda a Europa, mas de maneira particularmente
significativa na Grã-Bretanha. Por isso, tanto em português quanto em outras línguas, ao
se fazer referência a ele, costuma-se mencionar a expressão em inglês que o designa: the
enclosure of the commons. Antes de explicar o significado desses termos, convém
observar que o processo em pauta foi longo, tendo se estendido por vários séculos, e
complexo, dando-se de formas diferentes conforme a região e a época. Assim, só
poderemos descrevê-lo em termos muitos gerais, e a própria explicação do significado
de “commons” e “enclosure” não estará isenta de vagueza – que entretanto não é
prejudicial a nossos propósitos.
“Common” (ou “common land”) tinha um equivalente em português, a palavra
“rossio”, que entretanto caiu em desuso.32
A tradução mais usual hoje em dia é “terra
comunitária”. E que são os commons, ou terras comunitárias? São as terras que, no
feudalismo, e por um bom tempo depois, os camponeses tinham o direito de usar em
comum como pastagem para seus animais, como fonte de lenha para uso próprio, etc.
“Enclosure” é em geral traduzido por “cercamento”, e o cercamento das terras
comunitárias é o processo de sua privatização, de sua transformação em propriedade
privada, exclusiva, com a anulação de todos os direitos dos camponeses.
O processo tem início na Inglaterra, já no século XIII e, com altos e baixos em
sua intensidade, prolonga-se até princípios do século XIX. Entre os fatores que o
impulsionaram, o principal foi o desenvolvimento da fabricação e comércio de tecidos
de lã, que tornava altamente lucrativa a criação de carneiros. Tanto Marx quanto
Polanyi trataram do tema; Marx no capítulo sobre a acumulação primitiva d’O capital,
Polanyi no cap. 3 d’A grande transformação. Embora reconhecendo um lado positivo
32. Cf. Marcelo Leite, “Rossio científico”; Simon e Vieira, “O rossio não-rival”.
26
no processo – na medida em que, junto com outros fatores, levou a uma elevação da
produtividade agrícola –, Polanyi critica a maneira, e especialmente o ritmo segundo o
qual o processo se desenvolveu. Assim como Marx, e muitos outros pensadores, Polanyi
descreve vivamente a perturbação social, a miséria e a degradação resultantes dos
cercamentos. Em suas palavras,
Os cercamentos foram apropriadamente chamados uma
revolução dos ricos contra os pobres. Os senhores de terra e os
nobres estavam perturbando a ordem social, destruindo leis e
costumes antigos, às vezes por meios violentos, frequentemente
através de pressões e intimidação. Eles estavam literalmente
roubando os pobres de sua parte nas terras comunitárias,
demolindo casas que, em virtude da força do costume, até então
inquebrável, os pobres haviam considerado como suas e de seus
herdeiros. O tecido social estava sendo rompido; aldeias
abandonadas e as ruínas de habitações humanas testemunhavam
a ferocidade da revolução, colocando em perigo as defesas do
país, devastando suas vilas, dizimando a população, reduzindo o
solo sobrecarregado a pó, atormentando o povo e
transformando-o de lavradores decentes em uma malta de
mendigos e ladrões.33
Num trabalho que trata de patentes e direitos autorais, o tema em pauta tem uma
relevância especial, decorrente do uso do cercamento das terras comunitárias como
metáfora, baseada na analogia entre a superfície da Terra, e o espaço abstrato das
criações da mente humana – invenções, obras de arte, conhecimentos científicos e
tradicionais, etc. A partir dessa perspectiva, o estabelecimento dos sistemas de patentes
e direitos autorais – ou, mais amplamente, dos direitos de propriedade intelectual (DPI)
– é visto como análogo ao cercamento das terras comunitárias. A metáfora é usada pelos
críticos dos DPI; a sugestão, naturalmente, é a de que tornar a propriedade intelectual
propriedade privada pode ter consequências tão nefastas quanto as dos cercamentos34
.
Um dos movimentos de resistência ao fortalecimento dos direitos autorais, por exemplo,
tem o nome de Creative Commons. Voltaremos a esse tópico no último segmento do
curso.
5.3 O trabalho
33. Polanyi, A grande transformação, p. 53.
34. Cf., por exemplo, J. Boyle, “The second enclosure movement and the construction of the
public domain”.
27
O trabalho mercantilizado é o trabalho assalariado, em que o empregado vende
sua força de trabalho ao empregador, em troca de um salário. Estamos tão
familiarizados com essa forma de trabalho nos dias de hoje que muitas vezes
esquecemos a longa duração e a complexidade do processo histórico que fez dela a
forma dominante. Para dar uma ideia – necessariamente muito simplificada – desse
processo, convém voltar por um momento ao nível da análise conceitual, lembrando
que, sendo uma relação mercantil, a compra e venda da força de trabalho tem a natureza
de um contrato e, como tal, pressupõe a liberdade dos sujeitos envolvidos, liberdade de
firmar ou não cada contrato – no caso, contratos de trabalho. Mas a liberdade de firmar
ou não contratos é um elemento crucial no contraste entre as relações de trabalho no
capitalismo e no feudalismo. No setor da produção agrícola e pecuária, diretamente
ligada à terra, o trabalhador, no feudalismo, quer fosse um servo, quer mantivesse com o
senhor feudal um outro tipo de relação de dependência, não tinha essa liberdade: o
servo, por exemplo, não podia decidir desligar-se de um senhor feudal e submeter-se a
outro, como se muda de emprego hoje em dia. Algo semelhante valia para o outro
grande setor da produção, o dos bens manufaturados, que no feudalismo, como se sabe,
era organizado pelo sistema de guildas, ou corporações.35
Tendo como ponto de partida a situação no feudalismo, o processo de
mercantilização do trabalho teve um lado positivo, pois ao eliminar as relações de
dominação que existiam entre o trabalhador e os senhores feudais, e ao levar à extinção
o sistema de guildas, instaurou uma forma de liberdade individual da qual não estamos
dispostos a abrir mão.
A liberdade do trabalhador de vender sua força de trabalho é entretanto uma
condição necessária mas não suficiente para que se estabeleça uma relação de trabalho
assalariado. Para tanto, é preciso não só que o trabalhador possa, mas também que ele
queira vendê-la. Raciocinando grosso modo, pode-se dizer, primeiro, que o trabalhador
35. A organização do trabalho é outro tópico que constitui – ao lado da terra, como vimos na
sub-seção anterior – uma boa ilustração da tese polanyiana da inserção da esfera econômica na vida social. Como diz nosso autor, “Sob o sistema de guildas, como em qualquer outro sistema
econômico na história prévia, os motivos e circunstâncias das atividades produtivas estavam
inseridos na organização geral da sociedade. As relações entre o mestre, o jornaleiro, e o aprendiz; os termos do ofício; o número de aprendizes; os salários dos trabalhadores, eram todos
regulamentados pelo costume e as normas da guilda e da cidade.” (A grande transformação, p.
91) Assim como o servo não podia se transferir de um senhor feudal a outro, o aprendiz não
tinha a liberdade de trocar de mestre.
28
só irá aceitar a condição de assalariado se não tiver uma opção melhor para se sustentar,
para ganhar a vida. Segundo, que se ele fosse proprietário dos meios de produção – a
terra e os vários implementos necessários para seu cultivo, no caso da produção rural; as
ferramentas e matérias primas, no caso da produção de manufaturas – então ele poderia
se estabelecer como produtor independente, o que, fora outras possíveis vantagens, lhe
daria a liberdade de determinar a maneira e o ritmo do uso de sua força de trabalho, no
lugar de conceder essa prerrogativa ao patrão. Chega-se à conclusão de que os
trabalhadores só aceitariam se engajar numa relação de trabalho assalariado se fossem
excluídos da propriedade dos meios de produção. O trabalho assalariado pressupõe
assim uma desigualdade fundamental na distribuição dos meios de produção, uma
desigualdade que divide as partes envolvidas na relação em proprietários dos meios de
produção – os capitalistas – e os trabalhadores, que sobrevivem vendendo sua força de
trabalho. Polanyi – e, antes dele, Robert Owen e Max Weber – usaram a expressão
“medo da fome, esperança do ganho” para caracterizar as motivações dos trabalhadores
e capitalistas, respectivamente, para participar dos processos de produção de
mercadorias da maneira como o fazem. (Cf. Polanyi 1947; Dale 2010, p. 192)
No processo histórico de instauração do capitalismo na Europa, o
estabelecimento do trabalho assalariado como forma dominante de relação de trabalho
deu-se em estreita associação com o processo de mercantilização da terra, especialmente
com os cercamentos. Isso porque os trabalhadores na grande indústria – cuja criação
representa um momento crucial da grande transformação – foram originariamente os
trabalhadores rurais expulsos da terra pelos cercamentos.
No pensamento de Polanyi, como estamos vendo, a grande transformação é
concebida em termos da mercantilização das mercadorias fictícias. Os mesmos
processos, grosso modo, são os estudados por Marx n’O Capital pelo prisma do
conceito de acumulação primitiva, ou originária. Marx refere-se a ela como a “assim
chamada acumulação primitiva”, deixando claro que toma a expressão de empréstimo a
Adam Smith.36
Embora a linha de pensamento que introduz o conceito, na ordem das
razões d’O Capital, seja bem diferente da seguida por Polanyi para chegar às
36. Em Smith, a expressão original é previous accumulation, que Marx traduz por ursprunglich
Akkumulation. Embora “acumulação originária” corresponda melhor a ursprunglich
Akkumulation, “acumulação primitiva” tornou-se a expressão consagrada em português (assim
como em inglês, primitive accumulation).
29
mercadorias fictícias, as duas análises têm muito em comum. Isso fica claro na seguinte
passagem, que capta o essencial do que foi visto nesta seção:
A assim chamada acumulação primitiva [ursprunglich
Akkumulation] é, portanto, nada mais que o processo histórico
de separação entre produtor e meio de produção. Ele aparece
como “primitivo” porque constitui a pré-história do capital e do
modo de produção que lhe corresponde.
A estrutura econômica da sociedade capitalista proveio da
estrutura econômica da sociedade feudal. A decomposição desta
liberou os elementos daquela.
O produtor direto, o trabalhador [rural] somente pode dispor
de sua pessoa depois que deixou de estar vinculado à gleba e de
ser servo ou dependente de outra pessoa. Para tornar-se livre
vendedor de força de trabalho, que leva sua mercadoria a
qualquer lugar onde houver mercado para ela, ele [agora o
trabalhador em manufaturas] precisava ainda ter escapado do
domínio das guildas, de seus regulamentos para aprendizes e
oficiais e das prescrições restritivas do trabalho. Assim, o
movimento histórico, que transforma os produtores em
trabalhadores assalariados, aparece, por um lado, como sua
libertação da servidão e da coação corporativa; e esse aspecto é
o único que existe para nossos escribas burgueses da História.
Por outro lado, porém, esses recém-libertados só se tornaram
vendedores de si mesmos depois que todos os seus meios de
produção e todas as garantias de sua existência, oferecidas pelas
velhas instituições feudais, lhes foram roubados. E a história
dessa sua expropriação está inscrita nos anais da humanidade
com traços de sangue e fogo.37
Numa outra passagem logo a seguir, Marx ressalta a importância dos
cercamentos como parte do processo de acumulação primitiva:
O que faz época na história da acumulação primitiva são todos
os revolucionamentos que servem de alavanca à classe
capitalista em formação; sobretudo, porém, todos os momentos
em que grandes massas humanas são arrancadas súbita e
violentamente de seus meios de subsistência e lançadas no
mercado de trabalho como proletários desprovidos de direitos. A
expropriação da base fundiária [a terra] do produtor rural, do
camponês [ou seja, os cercamentos], forma a base de todo o
processo. Sua história assume coloridos diferentes nos diferentes
37. O capital, vol. 1, tomo 2, p. 262.
30
países e percorre as várias fases em sequência diversa e em
diferentes épocas históricas.38
Para concluir, é importante registrar a seguinte observação. Na medida em que
podem ser considerados separadamente, dentre os processos de mercantilização das três
mercadorias fictícias de Polanyi o mais importante como componente da grande
transformação é o do trabalho. Como diz Braverman, “a produção capitalista requer
relações de troca, mercadorias e dinheiro, mas sua differentia specifica é a compra e
venda de força de trabalho.”39
E num livro de Kloppenburg – um outro autor que adota
as concepções de Marx como base teórica para seus estudos – lê-se:
A mercadoria – um artigo produzido para a troca em vez de para
o uso – não é exclusiva do capitalismo. O que distingue o
capitalismo é que ele se caracteriza por um sistema generalizado
de produção de mercadorias em que a força de trabalho também
figura como algo que é comprado e vendido; trata-se, num certo
sentido, da produção de mercadorias por mercadorias.
O capitalismo não emergiu plenamente formado a partir do
feudalismo, como Atenas da cabeça de Zeus. Em vez disso, as
relações capitalistas se estenderam na proporção em que se
generalizava progressivamente a forma mercadoria,
especialmente em sua aplicação à força de trabalho.40
6. O mercado capitalista e a metáfora da mão invisível
No sentido mais geral, um mercado é um lugar onde se encontram vendedores e
compradores de determinadas categorias de bens. Acompanhando uma tendência geral,
vamos usar o termo “mercado” para designar o que é na verdade uma forma particular
de mercado, o mercado capitalista. Polanyi dedicou uma grande atenção aos mercados,
num sentido amplo, estudando, além da capitalista, as várias outras formas de mercado
existentes entre as diferentes sociedades, em diferentes épocas. Em sua concepção, o
que distingue o mercado capitalista de outras formas de mercado é o “mecanismo de
38. Ibid., p. 263.
39. Braverman, Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX, p. 54. (Nessa tradução brasileira, que deixa muito a desejar, no lugar de “relações de troca” (exchange
relations) figura “intercâmbio de relações”!)
40. Kloppenburg, First the seed: the political economy of plant biotechnology, 1492-2000, p. 22-3. A sugestiva fórmula “produção de mercadorias por mercadorias” provém do título de
um livro de Piero Sraffa: Produção de mercadorias por meio de mercadorias: prelúdio a uma
crítica da teoria econômica.
31
oferta-procura-preço”.41
Dito de outro modo, o mercado capitalista é o mercado em que
vigora a lei da oferta e da procura.
A lei da oferta e da procura tem como pressuposto essencial o Princípio de
Maximização do Ganho, o PMG, ou, em outras palavras, a lei é uma consequência da
atuação do PMG no contexto de um mercado. Num plano relativamente alto de
abstração, como vimos, uma operação de compra e venda é um contrato, fruto de uma
negociação agonística regida pelo PMG, de tal forma que o preço acordado reflete a
correlação de “forças” entre a posição do comprador e a do vendedor, na negociação.
No contexto de um mercado, tal correlação depende crucialmente das outras opções que
tanto o vendedor quanto o comprador têm, de realizar a transação de uma forma
possivelmente mais vantajosa com um outro comprador, ou, respectivamente, um outro
vendedor. Isso posto, o mecanismo subjacente à lei da oferta e da procura é bastante
familiar, podendo ser descrito de forma bem concisa. Quando aumenta a oferta, cresce a
“força” relativa da posição dos compradores nas negociações, e o preço cai; quando a
oferta diminui, o contrário acontece, e o preço aumenta. Vale o mesmo para a procura,
com o sinal trocado.
Para explicar a importância da lei da oferta e da procura como a característica
distintiva do mercado capitalista, convém introduzir uma distinção entre três dimensões
da vida econômica das sociedades, correspondentes a três questões a que, abstratamente,
qualquer sociedade deve responder para organizar suas atividades econômicas, a saber,
o que produzir, como produzir, e como distribuir os bens produzidos. Essa distinção
está presente tanto na obra de Marx quanto na de Polanyi, mas figura com muito maior
nitidez e destaque na tradição ortodoxa neoclássica, como um dos fundamentos da
economia. Num dos manuais mais amplamente adotados em cursos introdutórios – o
Economia, de Samuelson & Nordhaus –, no cap. 1, “Os fundamentos da economia”,
seção B, “Os três problemas da organização econômica”, por exemplo, lê-se:
Qualquer sociedade humana – seja um país industrial avançado,
uma economia de planejamento central ou uma sociedade tribal
isolada – tem de se confrontar com e resolver três problemas
econômicos fundamentais. Qualquer sociedade tem de ter um
41. Cf. Polanyi, The livelihood of man, p. 6.
32
modo para determinar que bens são produzidos, como são
produzidos esses bens e para quem são produzidos.42
No modo de produção capitalista, as três perguntas são respondidas (de acordo
com seus defensores, respondidas da melhor maneira possível) pelo mercado, que dessa
forma organiza a vida econômica e, indiretamente, com veremos, toda a vida das
sociedades em que predomina.43
Como isso se dá?
O preço é obviamente um fator crucial nas decisões de compra dos
consumidores. Quanto às decisões sobre o que produzir e como produzir, convém
observar que no contexto das atividades empresariais – sejam do setor da produção,
industrial ou agrícola, sejam no do comércio – o PMG se transmuta em princípio de
maximização do lucro (PML). O lucro do comerciante é a diferença entre o preço de
compra e o preço de revenda da mercadoria; o do produtor é a diferença entre o custo de
produção da mercadoria – os gastos com salários, matérias primas, etc. – e o preço de
venda. É fácil constatar que, em ambos os casos, o lucro depende dos preços. Assim, é
evidente que também nas decisões empresariais os preços são um fator crucial. Daí
decorre a importância dos preços: é através deles que o mercado exerce sua função
organizadora da vida econômica.
Os preços são o meio, mas de que modo o mercado exerce essa função? No que
se refere à distribuição, a economia de mercado proporciona as rendas – os salários, no
caso dos trabalhadores, e os lucros, no caso dos empresários – que permitem a
realização das compras, e assim a distribuição dos bens produzidos.
O lado mais importante da atuação do mercado, entretanto, é o ligado à
produção. E nesse contexto, é necessário distinguir dois modos de atuação. Um deles é
associado ao equilíbrio, à estabilidade, e corresponde ao mercado como um sistema
regulador. Outro tem um caráter dinâmico, corresponde ao mercado funcionando como
força propulsora de transformações no que e no como se produz, é o mercado como
sistema dinamizador.
42. Samuelson, P. A. & Nordhaus, W. D., Economia, p. 8. Cf. também Heilbroner, Introdução à microeconomia, p. 19: “Assim, o que produzir, como produzir e a quem entregar o produto
constituem os problemas básicos da Economia, que toda ordem social deve enfrentar de uma
maneira ou de outra”.
43. Cf. Samuelson & Nordhaus: “Uma economia de mercado é aquela em que os indivíduos e as
empresas privadas tomam as decisões mais importantes acerca da produção e do consumo. Um
sistema de preços, de mercados, de lucros e prejuízos, de incentivos e recompensas determina o
quê, como e para quem”. (p. 8-9).
33
A pergunta sobre o que se produz pode por sua vez ser decomposta em duas: que
tipos de bens produzir, e que quantidade de cada tipo produzir. A pergunta sobre a
quantidade é respondida pelo mercado como sistema regulador. O mercado como
sistema dinamizador responde à pergunta sobre os tipos, além da pergunta sobre como
produzir. Tudo isso ficará mais claro a seguir.
6.1 O mercado como sistema regulador
A determinação da quantidade de cada tipo de bem a ser produzida corresponde
ao problema da alocação social de recursos. O mercado como sistema regulador é o
mercado considerado em seu papel de alocador de recursos. O que permite ao mercado
desempenhá-lo são certas cadeias causais que vamos agora descrever, num registro
muito sucinto e simplificado. A descrição expõe as facetas que permitiriam ao mercado
desempenhar eficientemente sua função reguladora (como pretendem os defensores do
capitalismo), deixando de lado as facetas problemáticas.
Consideremos um determinado tipo de mercadoria – digamos, ventiladores – e
suponhamos que a partir de certo momento comece a aumentar a procura por eles.44
Havendo um aumento da procura, e supondo que as fábricas de ventiladores estivessem
funcionando abaixo de sua capacidade, os fabricantes podem num primeiro momento
simplesmente aumentar a produção, com isso aumentando seus lucros, mesmo que o
preço se mantenha estável. Mas se as temperaturas continuam a subir, e
consequentemente a procura de ventiladores, chega um momento em que a capacidade
ociosa das fábricas se esgota, e então o preço começa a se elevar. A elevação do preço,
por sua vez, faz crescer a lucratividade do negócio, e isso estimula a construção de
novas fábricas, seja pelas empresas já estabelecidas no ramo, seja por novas empresas.
Em qualquer dos casos, o resultado é um aumento da produção, e portanto da oferta, que
por sua vez leva a uma redução do preço, o qual pode assim retornar ao nível em que se
encontrava inicialmente – supondo que depois de certo período a procura tivesse se
estabilizado, agora num outro patamar.
44. Nos dias de hoje, é fácil imaginar uma causa para tal aumento, a saber, o aquecimento global, decorrente do efeito estufa. Embora essa característica seja interessante por tornar o
exemplo mais concreto – e por isso o escolhemos –, a especificação das causas que levam a
aumentos (ou diminuições) da procura por determinadas mercadorias é irrelevante para o
entendimento do mecanismo de regulação do mercado.
34
Paralelamente ao aumento da procura por ventiladores, pode ocorrer uma queda
na procura por aquecedores, e neste caso desenrola-se um processo inverso, envolvendo
decréscimo de produção, fechamento de fábricas, encerramento de empresas – por
falência, ou para evitar a falência, etc. O decréscimo da produção reduz a oferta, e com
uma suposição análoga à feita no caso dos ventiladores, o resultado é o mesmo: o
retorno do preço a seu nível original.45
Do ponto de vista da alocação de recursos – abstraindo agora o preço –, o
processo se apresenta como uma alteração no nível da demanda, acompanhado de um
ajuste no nível da produção, de forma tal que, aceitas as pressuposições do modelo em
que se baseia o raciocínio, pode-se afirmar que o mercado é um sistema regulador
eficiente de alocação de recursos. O que se espera de um tal sistema é que não ocasione
nem falta nem excesso de produção. O mercado cumpre esse requisito, na medida em
que seu mecanismo tende a estabelecer, para cada mercadoria, um equilíbrio entre oferta
e procura.
Essa descrição do mecanismo subjacente ao papel do mercado como sistema
regulador, como dissemos, é extremamente simplificada, não pretende ser mais que um
modelo. Mas embora os mercados sejam instituições extremamente complexas, assim
como as formas que assumem os mecanismos reguladores, pode-se dizer que todas elas
são variações de um esquema básico, tal como o descrito.
O mercado como um sistema regulador é um conceito central no pensamento de
Polanyi. O termo que ele usa para designá-lo é “self-regulating market”, que merece
alguns comentários. A edição brasileira d’A grande transformação o traduz por
45. Existem modelos matemáticos desse mecanismo do mercado que, partindo de certas
pressuposições, demonstram rigorosamente que, havendo uma alteração na variável que
representa a procura, o resultado – como na descrição informal que apresentamos – é um movimento na variável que representa o preço, o qual termina com seu retorno ao nível original.
O uso de tais modelos constitui um aspecto fundamental da tradição dominante na economia
desde fins do século XIX. Essa tradição denomina-se neoclássica – em contraste com a
economia política clássica, de A. Smith, D. Ricardo, J. S. Mill, e outros, criticados por Marx. O capital, é bom lembrar, tem por subtítulo Crítica da economia política. O estabelecimento dos
princípios da economia neoclássica – também conhecida como marginalista – constitui um
episódio interessante na história do pensamento econômico: foi obra de três autores, que chegaram a eles de forma independente, e praticamente ao mesmo tempo. Os autores, e os livros
em que expõem as respectivas versões dos princípios em pauta são o inglês W. S. Jevons, com
The Theory of Political Economy (1871), o austríaco C. Menger, com Grundsätze der Volkswirtschaftslehre (1871) e o francês L. Walras, com Éléments d'économie politique pure,
ou théorie de la richesse sociale (1874). Walras deu a suas concepções o nome de Teoria do
Equilíbrio Geral, significativa da atenção dada pelos neoclássicos ao papel regulador do
mercado.
35
“mercado auto-regulável”. Mas “regulável” significa “que pode ser regulado”, e essa
ideia de possibilidade está ausente do significado do termo original. A tradução mais
literal seria “mercado auto-regulante”, mas “regulante” não figura nos dicionários, e a
que se encontra com maior frequência na literatura é “mercado auto-regulado” (que pelo
menos é melhor que “mercado auto-regulável”). De um outro ponto de vista, uma
escolha mais adequada a nosso ver teria sido simplesmente “regulating market” – em
português “mercado regulador” – uma vez que os mecanismos reguladores atuam sobre
a vida econômica como um todo, e não apenas sobre o próprio mercado. Mas vamos
respeitar a escolha terminológica de Polanyi – que por outro lado permite caracterizar os
mercados não capitalistas como não auto-regulados, mas regulados por forças externas.
O mercado auto-regulado é o mercado livre, ou seja, o mercado em que cada
participante goza de total liberdade ao tomar suas decisões de compra e venda, para
consumo ou investimento, guiado apenas pelo PMG.
No sistema capitalista plenamente instaurado, há um mercado para cada tipo de
mercadoria: o mercado de trabalho, o mercado de imóveis, o mercado financeiro, o
mercado de commodities46
, etc. Mas tais mercados não funcionam independentemente
uns dos outros, na medida em que cada agente econômico participa de mais de um
mercado. Um trabalhador, por exemplo, participa pelo menos do mercado de trabalho e
do mercado de bens de consumo. Assim, o que acontece no mercado de trabalho – por
exemplo, um aumento no nível dos salários – afeta o mercado de bens de consumo, que
por sua vez afeta o mercado de bens de produção, e assim por diante. O que existe assim
no sistema capitalista é – para usar a expressão de Polanyi – O Grande Mercado (One
Big Market47
).
Uma boa parte do que foi dito até agora nesta seção está condensado na seguinte
passagem d’A grande transformação, onde se introduz a definição de economia de
mercado:
Uma economia de mercado é um sistema econômico controlado,
regulado e dirigido apenas por preços de mercado; a ordem na
produção e distribuição dos bens é confiada a esse mecanismo
auto-regulado. Uma economia deste tipo decorre da expectativa
46. A palavra “commodity” tem em inglês um sentido amplo, equivalente ao de “mercadoria” em português, e um sentido mais específico, referente a produtos não-manufaturados, matérias
primas como minérios, a soja em grão, etc. Quando “commodity” é usado no contexto do
português, o sentido é o mais restrito.
47. Cf. A grande transformação, p. 93.
36
de que os seres humanos se comportam de maneira a conseguir
o máximo de ganhos monetários. Ela pressupõe mercados nos
quais o suprimento de bens (incluindo serviços) disponível a um
determinado preço será igual à demanda a esse preço. Pressupõe
a presença do dinheiro, que funciona como poder de compra nas
mãos dos possuidores. A produção será então controlada pelos
preços, pois os lucros daqueles que dirigem a produção
dependerão dos preços, uma vez que os preços formam rendas, e
é com a ajuda dessas rendas que os bens são produzidos e
distribuídos entre os membros da sociedade. Com esses
pressupostos, a ordem na produção e na distribuição de bens é
assegurada apenas pelos preços.48
No que se refere à postura dos agentes econômicos, é em virtude de ter como
elemento fundamental o PMG – o motivo do ganho, da barganha ou da permuta, nas
palavras de Polanyi – que o mercado pode desinserir a esfera econômica das outras
esferas da organização social, num movimento que ao mesmo tempo a situa numa
posição dominante em relação a elas. E esse movimento no mundo real leva Polanyi a
passar, no terreno das ideias, do conceito de economia de mercado para o conceito de
sociedade de mercado49
:
O padrão de mercado, por outro lado, relacionando-se a um
motivo peculiar próprio, o motivo da barganha ou da permuta, é
capaz de criar uma instituição específica, a saber, o mercado.
Em última instância, é por isso que o controle do sistema
econômico pelo mercado tem consequências avassaladoras para
toda a organização da sociedade: significa, nada menos, a
condução da sociedade como um acessório do mercado. Em vez
de a economia estar inserida nas relações sociais, são as relações
sociais que estão inseridas no sistema econômico. A importância
vital do fator econômico para a existência da sociedade exclui
qualquer outro resultado. Pois uma vez estando o sistema
econômico organizado em instituições à parte, assentadas sobre
motivos específicos, e com um status especial, a sociedade deve
ser formada de tal maneira que permita a esse sistema funcionar
de acordo com suas próprias leis. Esse é o sentido da afirmação
48. Ibid., p. 89-90.
49. “Sociedade de mercado” é a expressão que Polanyi usa para designar aquilo que é mais
conhecido como “capitalismo”.
37
familiar de que uma economia de mercado só pode funcionar
numa sociedade de mercado.50
A sociedade de mercado tem uma característica que a distingue de todas as
outras formas de organização social, e que se entende mais claramente quando o
contraste é feito não com formas anteriores ao capitalismo, mas com o socialismo, tal
como concebido na tradição marxista. Como vimos, para Marx e Engels o socialismo
viria com a abolição da propriedade privada dos meios de produção, que passariam a ser
propriedade pública – estatal ou coletiva –, e com isso se extinguiria também o
mercado. Se admitimos a pressuposição segundo a qual toda formação social deve ter
instituições capazes de organizar a vida econômica respondendo, entre outras, à
pergunta sobre que quantidade de cada tipo de bem produzir, então alguma outra
instituição deve ser criada para substituir o mercado em sua função alocadora de
recursos.
No socialismo tal como veio a se cristalizar na União Soviética, no século
passado, a função reguladora do mercado passa a ser exercida pelo Estado, por meio do
sistema de planejamento central. Numa descrição bem abstrata, o sistema funciona
assim. O Estado tem um órgão de planejamento central que faz periodicamente
estimativas da quantidade de cada categoria de bens que precisa ser produzida para
satisfazer, direta e indiretamente, as necessidades da população (por exemplo, a
necessidade de ventiladores e aquecedores no decorrer no próximo ano). A partir desses
dados, o órgão planejador faz um rateio entre as unidades produtoras desses aparelhos, e
expede ordens dirigidas a cada uma delas, especificando o número de unidades que
devem ser produzidas. Caso a capacidade instalada das fábricas não seja suficiente para
atender à demanda, o órgão planejador toma as providências para que novas fábricas
sejam construídas. O mesmo processo se aplica a cada uma de todas as outras categorias
de bens.
50. Ibid., p. 77. A razão mais importante pela qual uma economia de mercado só pode funcionar
numa sociedade de mercado é a que diz respeito às mercadorias fictícias. Nas palavras de
Polanyi: “Uma economia de mercado deve envolver todos os elementos da indústria, inclusive o trabalho, a terra e o dinheiro. [...] Mas o trabalho e a terra são nada menos que os próprios seres
humanos dos quais qualquer sociedade é composta, e o ambiente natural em que ela existe.
Incluí-los no mecanismo de mercado significa subordinar a própria substância da sociedade às
leis do mercado.” (Ibid., p. 93; itálico acrescentado.)
38
Embora em muitos contextos quando se usa a expressão “planejamento central”
a referência seja a algo como o sistema esboçado acima, a designação mais precisa para
este é “economia de comando”; com esse rótulo, o sistema foi adotado inclusive por
países capitalistas, em tempos de guerra, para certos setores da produção. Chama-se
“economia de comando” porque funciona na base de ordens emitidas por um órgão de
planejamento, e dirigidas às unidades produtoras. No presente contexto é importante
ressaltar a natureza do processo, que se apresenta como uma deliberação racional –
análoga às que faz um indivíduo livre como base para as decisões sobre o uso de seus
próprios recursos. Como uma ilustração mais concreta, pode-se pensar em Robinson
Crusoe em sua ilha, decidindo qual a melhor forma de distribuir sua força de trabalho
entre as várias tarefas que precisa realizar, de modo a produzir os vários tipos de bens
necessários para sua sobrevivência. Nos escritos de Marx e Engels, a caracterização do
sistema de alocação de recursos que no socialismo desempenharia a função reguladora,
substituindo o mercado, não corresponde necessariamente ao sistema de planejamento
central no estilo soviético, mas sim a um sistema caracterizado apenas por essa natureza
de deliberação racional. Marx refere-se a ele como “controle consciente e
planificado”51
, Engels como “organização planejada e consciente” da produção, e
“produção social com base num plano predeterminado”.52
O sistema de mercado, em contraste, tem um caráter claramente maquinal, tanto
assim que não causa estranheza o uso – tal como foi feito acima – do termo mecanismo
para designar as cadeias causais responsáveis pelo funcionamento do sistema. Na
verdade, o mercado constitui um exemplo de um tipo de sistema regulador automático
muito importante estudado na Engenharia de Controle e Automação, e, num plano mais
teórico, na Cibernética53
. Nesses domínios, um dos conceitos mais importantes é o de
feedback – em português, retro-alimentação. A retro-alimentação pode ser entendida
como uma cadeia causal circular, em que uma variação numa das grandezas de um
51. Cf. Marx, O Capital, em A mercadoria, p. 80.
52. Engels, Do socialismo utópico ao socialismo científico, p. 107 e 110.
53. No presente contexto, “controle” e “regulação” podem ser tomados como sinônimos. O
termo “cibernética” tornou-se corrente a partir de meados do século passado graças a Norbert
Wiener, que o escolheu para designar a linha de investigação multidisciplinar fundada por ele, centrada nos processos de controle e comunicação. “Cibernética” provém do grego κυβερνήτης
(kybernetes), que significa timoneiro, ou, num sentido mais amplo, quem conduz um veículo, ou
ainda, tal como em Platão, quem governa uma sociedade. O verbo “governar”, na verdade, tem
sua origem na mesma raiz grega, através do latim “gubernare”.
39
sistema afeta outras, em sequência, e em algum ponto, a própria grandeza cuja variação
deu origem ao processo. Os exemplos a seguir deixarão claro o significado dessa
definição abstrata.
A retro-alimentação pode ser positiva ou negativa. É negativa quando um
aumento (ou diminuição) numa grandeza tende, no ponto em que a cadeia causal
circular retorna a seu ponto de partida, a fazer com que a grandeza diminua (ou,
respectivamente, cresça), tendendo a retornar a seu valor inicial. A retro-alimentação
negativa pode assim funcionar como um dispositivo estabilizador, que faz uma grandeza
retornar a um valor predeterminado sempre que ocorre nela uma variação causada por
fatores externos, e por isso ela tem um interesse especial do ponto de vista do controle.
Um exemplo bem simples de um dispositivo dessa natureza é o termostato – cuja
função é manter estável a temperatura num certo entorno. As geladeiras têm sua
temperatura interna controlada por termostatos, e seu modo de funcionamento é bem
conhecido. O dispositivo envolve um termômetro, acoplado a uma chave; quando a
temperatura atinge um certo valor máximo pré-estabelecido, a chave aciona o motor da
geladeira, que coloca em movimento o compressor, que por sua vez provoca uma queda
da temperatura. A queda continua até chegar a um limite inferior, quando o termômetro
atua sobre a chave, fazendo com que o motor seja desligado. Tem-se então uma
variação numa grandeza (o aumento da temperatura), que dá origem a uma cadeia
causal (envolvendo o termômetro, o motor, o compressor, e na verdade todos os
processos físicos que ocorrem no gás da geladeira, e são responsáveis pelo efeito
refrigerador), a qual vai afetar a própria temperatura. O resultado global do processo é
que a temperatura fica oscilando entre um valor máximo e um valor mínimo de uma
faixa predeterminada de temperaturas; colocando-se no eixo vertical de um gráfico a
temperatura, e no horizontal o tempo, tem-se uma curva em forma de onda. O
termostato funciona então como um dispositivo estabilizador de temperatura,
constituindo um exemplo de um sistema regulador automático – automático porque seu
funcionamento dispensa a intervenção de seres humanos.
O exemplo do termostato de um refrigerador doméstico é muito simples, na
medida em que a ação estabilizadora é de um único tipo; termostatos mais sofisticados
podem envolver tanto um dispositivo refrigerador quanto um aquecedor. E tanto um
quanto outro podem variar na intensidade de sua atuação ao longo de um contínuo de
valores, isto é, não se limitando, como é o caso dos motores das geladeiras domésticas,
40
a dois estados, o ligado e o desligado. Os termostatos são apenas um dos inúmeros tipos
de sistema regulador automático criados pelos inventores e engenheiros ao longo dos
últimos séculos. Um dispositivo muito citado na história da tecnologia é o regulador
centrífugo, cujo princípio já era conhecido, mas foi aplicado pela primeira vez no
controle da velocidade de operação de máquinas a vapor por James Watt, em 1788.
Na retro-alimentação positiva, a cadeia causal gerada pelo aumento numa
grandeza faz com que ela cresça mais ainda. Uma retro-alimentação positiva não pode
prosseguir indefinidamente: ou sua operação é limitada a uma faixa de valores, ou o
sistema entra em colapso.
Do ponto de vista da concepção mecanicista dos seres vivos, da qual Descartes
foi um dos pioneiros, a cibernética representou um avanço, na medida em que
desenvolveu a ideia de estudar, com o mesmo aparato conceitual usado na engenharia,
os processos biológicos de regulação – da temperatura corporal, por exemplo, em aves e
mamíferos, ou, em termos mais gerais, dos processos responsáveis pela homeostase.
Comparemos agora os sistemas de controle automático situados no terreno da
tecnologia, e o mercado como um sistema regulador, tal como descrito. À primeira
vista, parece haver uma diferença significativa: os sistemas tecnológicos foram
caracterizados como automáticos por dispensarem a ação humana. E isso parece não
valer para o mercado, já que seu funcionamento depende de decisões dos agentes
econômicos. Tais decisões, entretanto, são frutos apenas dos interesses individuais dos
agentes, e não do objetivo de regular a economia como um todo. E nesse sentido, pode-
se sustentar que em essência – ainda que não em aparência – o mercado é um sistema
regulador automático.54
Voltando ao contraste com o socialismo, no que se refere à alocação social de
recursos, e invertendo a ordem – isto é, tomando como referência o método socialista
baseado na deliberação racional – a economia de mercado aparece como um processo
em que a sociedade abre mão de tomar racionalmente as decisões sobre a alocação de
recursos, delegando essa função a um sistema regulador automático.
54. Na definição clássica de Wiener, a cibernética é “a ciência da comunicação e do controle no
animal e na máquina” (o título do livro em que ele lançou a ideia é Cybernetics or control and communication in the animal and the machine. A definição pode ser ampliada para “a ciência da
comunicação e do controle no animal, na máquina, e na sociedade” – como já se sugeriu, e
como condiz com o título e o conteúdo de outro de seus clásssicos, Cibernética e sociedade: o
uso humano de seres humanos.
41
A Engenharia teve muito sucesso em seu empreendimento de criar reguladores
automáticos eficientes, de tal modo que – voltando ao exemplo da geladeira – há muitas
vantagens e nenhum problema em delegarmos ao termostato a tarefa de controle da
temperatura – que em princípio uma pessoa pode fazer, verificando periodicamente a
temperatura, e ligando ou desligando manualmente o motor conforme o caso. A
pergunta que se coloca – e que será ampliada na sub-seção 6.2, generalizada na 6.3, e
considerada de diferentes pontos de vista em todo o restante do curso – é a seguinte:
será o mercado um sistema de controle automático eficiente o bastante para que seja
sensato delegarmos a ele o controle da alocação social de recursos?
6.2 O mercado como sistema dinamizador
O mercado como princípio dinamizador, como já observamos, fornece respostas
à pergunta sobre que tipos de bens produzir e – o que é mais importante – à pergunta
sobre como produzir. Para explicar a maneira com isso se dá, convém situar a questão
num outro contexto, a saber, o das estratégias que os empresários do setor produtivo
adotam tendo em vista seu objetivo primordial, a maximização dos lucros. Já vimos
uma dessas estratégias ao explicar o mecanismo regulador do mercado: diante de um
acréscimo na demanda causado por fatores externos, o empresário eleva a quantidade de
mercadorias produzidas conseguindo assim aumentar seu lucro mesmo que o preço se
mantenha estável. Trata-se de uma estratégia muito limitada, uma vez que tais fatores
externos estão fora do controle do empresário.
Uma outra estratégia, cada vez mais intensamente utilizada, é a que consiste em
provocar um aumento na demanda por meio da publicidade. Há na verdade um número
muito grande de estratégias empresariais; vamos nos concentrar em duas das mais
importantes, que tem uma relação estreita com a faceta dinamizadora do mercado.
A primeira delas consiste em inventar novas mercadorias, novas categorias de
bens para as quais existe, ou pode ser criada, uma demanda. O presente momento
histórico é pródigo em manifestações dessa estratégia, talvez se possa mesmo dizer que
nunca antes se introduziram no mercado tantas novas mercadorias em tão curto espaço
de tempo – dos computadores pessoais ao telefone celular, dos fornos de micro-ondas
aos televisores de plasma, etc., etc., etc.
A segunda, ainda mais importante, diz respeito não ao que se produz, mas a
como se produz. O lucro do empresário é a diferença entre o custo de produção e o
42
preço de venda. Um elemento crucial no custo de produção são os salários pagos aos
trabalhadores, e assim, uma maneira de aumentar o lucro seria diminuir os salários. Mas
esse caminho é bloqueado pelo fato de que o nível salarial é estabelecido pelo mercado,
estando assim fora do controle de cada empresário considerado individualmente. A
alternativa é reduzir o montante de salários pagos diminuindo o número de
trabalhadores empregados na produção de uma mesma quantidade de mercadorias, ou
seja, aumentando a produtividade do trabalho. Com esse objetivo, o empresário recorre
a avanços tecnológicos – ferramentas e máquinas cada vez mais sofisticadas – e a
mudanças na forma de organização do trabalho. Os dois processos interagem
fortemente, e com frequência é a forma de organização do trabalho que deve se adaptar
aos avanços tecnológicos.
Pode-se dizer então que a tecnologia, no modo de produção capitalista, tem pelo
menos duas funções muito importantes: aumentar a produtividade e criar novas
mercadorias. Mostramos acima como essas estratégias decorrem do PML; nessa
demonstração ficou implícito, e merece agora ser explicitado, o papel da concorrência.
A concorrência é a forma em que se manifesta no contexto do mercado o caráter
agonístico da relação mercantil. Como diz Heilbroner,
... diferente das competições da vida comum, a concorrência
econômica envolve não apenas uma única luta entre rivais, mas
duas lutas, uma entre os dois lados do mercado, e outra entre os
componentes de cada um de seus lados. Pois o mercado
competitivo não é apenas o lugar onde o choque de interesses
entre compradores e vendedores resulta da oposição entre oferta
e procura, mas também o local onde os compradores lutam
contra os compradores e os vendedores contra os vendedores.55
... a concorrência econômica, diferente da competição por
prêmios que ocorre fora da vida econômica, não é uma
competição que ocorre uma vez e termina, mas um processo
contínuo – uma corrida em que os vencedores nunca ganham,
mas devem continuar infindavelmente tentando manter-se na
frente, para evitar as penalidades de ficar para trás.56
Pensada em sua relação com a tecnologia, a concorrência aparece como o motor,
a força impulsionadora dos avanços tecnológicos. E sendo a concorrência apenas um
aspecto do mercado, fica explicado seu funcionamento como um sistema dinamizador,
55. Heilbroner, Introdução à microeconomia, p. 40.
56. Ibid., p. 39.
43
que, como veremos, desempenha um papel importantíssimo na história do Ocidente na
época moderna.
Em sua função como sistema dinamizador, o mercado não somente impulsiona
mas – como é natural imaginar, e como veremos em detalhe mais tarde – direciona os
avanços tecnológicos. E ele faz isso de forma automática, como no caso de sua função
reguladora. A pergunta posta ao final da sub-seção anterior agora se amplia: será o
mercado um sistema de controle automático eficiente o bastante para que seja sensato
delegarmos a ele o controle da alocação social de recursos, e a determinação dos rumos
do desenvolvimento da tecnologia?
6.3 A metáfora da mão invisível
Conforme o plano anunciado anteriormente, vamos agora formular a pergunta
em pauta em termos mais gerais. Para isso vamos recorrer à chamada metáfora da mão
invisível – fortemente associada ao nome de Adam Smith, a quem se atribui sua autoria,
embora não se deixe de apontar a existência de precursores, entre os quais,
especialmente Bernard de Mandeville (1670-1733). A metáfora desempenha um papel
crucial na legitimação do sistema capitalista, bem como no debate sobre os fundamentos
metodológicos não só da economia, mas de todas as ciências sociais57
, sendo invocada
também como princípio subjacente à teoria darwiniana da evolução58
.
Enquanto argumento legitimador do sistema capitalista, a metáfora é uma
resposta ao conflito existente entre, de um lado, os valores da solidariedade, da
cooperação, do altruísmo, da preocupação com o bem comum, e outros dessa natureza,
presentes em nossa cultura ocidental principalmente graças à influência da tradição
judaico-cristã; de outro lado, os valores do individualismo, da competição, e do egoísmo
– em uma palavra, do auto-interesse – com base nos quais funciona o sistema
capitalista. E o que diz o argumento? Diz que graças à atuação de u’a mão invisível, o
57. Como diz uma comentadora, referindo-se a A. Smith, “a ideia que a metáfora conota
permeia todas as suas teorias sociais e morais. Na verdade, foi a noção da mão invisível que
permitiu a Smith desenvolver a primeira teoria abrangente da economia como um sistema social inter-relacionado. Não há muito exagero em afirmar que a mão invisível tornou a própria
ciência social teórica possível.” “A noção de ordem espontânea no sentido de um sistema auto-
ordenado [contida na metáfora da mão invisível] continuou a fornecer os fundamentos da ciência econômica e especialmente da teoria do equilíbrio geral durante todo o século XIX, e até
o presente”. K. Vaughn “Invisible hand”, p. 168 e 172. Cf. também A. Flew, “Social science:
making visible the invisible hands”.
58. Cf. P. Ylikoski, “The invisible hand and science”.
44
resultado global do comportamento de todos os indivíduos, cada um motivado apenas
pelo auto-interesse, é o bem de toda a sociedade. Vejamos a linha de raciocínio que leva
a essa conclusão, começando com as ideias de Mandeville.
Em 1705 Mandeville publicou a fábula The grumbling hive, or knaves turn’d
honest (A colmeia queixosa, ou os escroques que ficaram honestos), que passou
relativamente despercebida. Em 1714 The fable of the bees; or private vices, publick
benefits (A fábula das abelhas; ou vícios privados, benefícios públicos), um livro que
reproduzia a fábula, acrescida de um prefácio e uma série de observações. O objetivo da
fábula, como o autor deixa claro no prefácio, é mostrar que um país pode ser rico, ou
pode ser virtuoso, mas não as duas coisas ao mesmo tempo; sendo necessário optar,
Mandeville fica com a primeira alternativa. Em suas palavras:
O principal objetivo da Fábula (como se explica brevemente na
moral) é mostrar a impossibilidade de usufruir todos os mais
elegantes confortos da vida que se encontram numa nação
industriosa, rica e poderosa e, ao mesmo tempo, ser abençoado
com toda a virtude e inocência que se pode desejar para uma
idade de ouro; e a partir disso expor a falta de sensatez e loucura
daqueles que, desejosos pertencerem a um povo opulento e
florescente, e maravilhosamente cobiçosos dos benefícios que
podem receber enquanto tal, ficam entretanto resmungando e
deblaterando contra os vícios e inconveniências que desde o
começo do mundo até os dias de hoje têm sido sempre
inseparáveis de todos os reinos e Estados famosos por seu poder,
riqueza e refinamento, ao mesmo tempo.59
Tratava-se de uma moral escandalosa, já que legitimava o vício, e por isso o
livro suscitou uma avalanche de críticas indignadas – processo na Inglaterra, livro
queimado na França. – o que não impediu que tivesse um impacto considerável na
linhagem dos iluministas. Entre os pensadores que o leram, e foram por ele
influenciados, encontram-se pensadores do porte de Hume, Rousseau, Kant, além,
naturalmente, de A. Smith.60
Apesar da importância do papel que a metáfora da mão invisível desempenha em
seu pensamento, Smith usa o termo “mão invisível” apenas três vezes em toda sua obra
(uma dessas num contexto referente à astronomia, e menos relevante para nossos
propósitos no curso). A primeira ocorrência se dá em A teoria dos sentimentos morais
(1759):
59. Mandeville, The fable of the bees, in The fable of the bees and other writings, p. 20
60. Cf. E. J. Hundert, “Introduction”, in Mandeville, op. cit., p. xix.
45
[Os ricos] consomem pouco mais que os pobres; e a despeito de
seu natural egoísmo e rapacidade, embora pensem tão-somente
em sua própria comodidade, e a única finalidade que buscam, ao
empregar o trabalho de muitos, seja satisfazer seus próprios
desejos vãos e insaciáveis, apesar disso dividem com os pobres
o produto de todas as suas melhorias. São conduzidos por uma
mão invisível a fazer quase a mesma distribuição das
necessidades da vida que teria sido feita, caso a terra fosse
dividida em porções iguais entre todos os seus moradores; e
assim, sem intenção, sem saber, promovem os interesses da
sociedade, e oferecem meios para multiplicar a espécie. Quando
a providência dividiu a terra entre uns poucos orgulhosos
senhores, não se esqueceu e tampouco abandonou os que
pareciam ter ficado fora dessa partilha. Também estes
usufruíram sua parte em tudo o que a terra produz. No que se
refere à verdadeira felicidade da vida humana, não são em nada
inferiores aos que pareceriam estar tão acima deles. No conforto
do corpo e na paz do espírito, todas as diferentes posições da
vida estão quase no mesmo nível, e o mendigo que se aquece ao
sol junto da estrada possui a segurança por que se batem os
reis.61
Vejamos agora duas passagens de A riqueza das nações que dizem respeito à
metáfora da mão invisível, embora o termo não seja usado.
Não é da bondade do açougueiro, ou do padeiro, que podemos
esperar nosso jantar, mas de seu interesse. Nós nos dirigimos
não ao seu espírito humanitário, mas ao seu interesse, e nunca
lhes falamos de nossas necessidades, e sim de suas vantagens.62
Todo indivíduo se esforça continuamente para encontrar o
emprego mais vantajoso de qualquer capital de que dispuser. É
sua própria vantagem, na verdade, e não a da sociedade, que ele
tem em vista. Mas o estudo de sua própria vantagem
naturalmente, ou melhor, necessariamente, o leva a preferir o
emprego que é mais vantajoso para a sociedade.63
E agora a passagem com o termo:
Todo indivíduo trabalha necessariamente para tornar a renda
anual da sociedade tão alta quanto lhe é possível. Ele geralmente
não tem a intenção de promover o interesse público, nem sabe o
61. Smith, Teoria dos sentimentos morais, p. 226.
62. Smith, A riqueza das nações, p. 14.
63. Smith, An inquiry into the nature and causes of the wealth of nations, IV.2.4.
46
quanto o está promovendo. ... Ele tem em vista apenas seu
próprio ganho, e é conduzido, neste e em muitos outros casos,
por u’a mão invisível, a promover um fim que não era parte de
sua intenção. Perseguindo seu próprio interesse ele
frequentemente promove o da sociedade mais eficientemente do
que quando tem realmente tal intenção. Nunca soube que muito
bem tenha sido feito pelos que pretendem comerciar tendo em
vista o bem público.64
Mas como atua a mão invisível? Que mágica é essa que ela parece realizar? As
duas sub-seções acima permitem uma resposta sucinta a essa pergunta: a mão invisível
atua por meio dos mecanismos do mercado, em sua função reguladora – equilibrando
oferta e procura – e em sua função dinamizadora – fomentando o progresso da
humanidade –, promovendo assim o bem de todos, e realizando a mágica de transformar
vícios privados em benefícios públicos.
Sejam quais forem os resultados do exame da validade do argumento no plano
teórico, ele corresponde a uma tese que pode ser confrontada com dados empíricos, ou
seja, com as consequências da experiência histórica da adoção do mercado como
sistema regulador e dinamizador. Entre os defensores do capitalismo, mesmo os mais
ferrenhos reconhecem que o mercado não é um sistema perfeito, admitindo a existência
do que denominam falhas do mercado. Tais falhas entretanto referem-se a deficiências
mais ou menos pontuais do sistema; adotada uma postura crítica, há que se considerar
também as consequências nefastas mais profundas e difusas decorrentes da adoção do
sistema. Em sua forma mais geral, nossa pergunta diz respeito então à validade do
argumento da mão invisível: trata-se de avaliar se as desvantagens decorrentes das
falhas, e outras consequências nefastas do sistema de mercado, não são maiores que
suas vantagens. Uma boa parte do que se verá ao longo do curso é uma tentativa de
responder a essa pergunta, com referência aos domínios da ciência e da tecnologia.
64. Smith, ibid., IV.2.9.
47
Referências
ARISTÓTELES. Política. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1988.
BENTHAM, JEREMY. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. Coleção
Os pensadores, vol. XXXIV (Bentham e Mill). São Paulo: Abril, 1974
[1789].
BOYLE, JAMES. The second enclosure movement and the construction of the public
domain. Law and contemporary problems, 33, p. 33-74, 2003.
(Disponível em
<http://www.law.duke.edu/journals/lcp/articles/lcp66dWinterSpring2003
p33.htm>, acesso em 12/9/2008.)
CAILLÉ, ALAIN. Antropologia do dom: o terceiro paradigma. Petrópolis: Vozes, 2002.
DALE, GARETH. Karl Polanyi: the limits of the market. Cambridge (Reino Unido):
Polity Press, 2010.
BRAVERMAN, HARRY. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no
século XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.
ENGELS, FRIEDRICH. Do socialismo utópico ao socialismo científico. Rio de Janeiro:
Edições Horizonte, 1945.
FLEW, ANTONY. Social science: making visible the invisible hands. The Journal of
Libertarian Studies, VIII(2), 1987.
GODBOUT, JACQUES. O espírito da dádiva. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.
GRAEBER, DAVID. Give it away. Em http://www.revuedumauss.com/, acesso em
31/12/2012. Publicado originalmente em In These Times, 21/10/2001a.
GRAEBER, DAVID. Toward an anthropological theory of value: the false coin of our
dreams. Nova York: Palgrave, 2001b.
HART, KEITH. Marcel Mauss: in pursuit of the whole – a review essay. Comparative
Studies in Society and History 49(2), p.1-13, 2007.
HEILBRONER, ROBERT L. A formação da sociedade econômica. Rio de Janeiro: Zahar,
1964.
HEILBRONER, ROBERT L. Introdução à microeconomia. Rio de Janeiro: Zahar, 1971.
HOBSBAWM, ERIC J. Da revolução industrial inglesa ao imperialismo. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária, 1978.
KLOPPENBURG JR., JACK R. First the seed: the political economy of plant biotechnology,
1492-2000. Cambridge: Cambrige University Press, 1990.
JEVONS, WILLIAM S. A teoria da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983
[1971].
LE GOFF, JACQUES. A bolsa e a vida: a usura na Idade Média. São Paulo: Brasiliense,
1989.
LEITE, MARCELO. Rossio científico. Folha de São Paulo, Caderno Mais, 5/2/2006.
LUCAS, PHILIP & SHEERAN, ANNE. Asperger’s Syndrome and the eccentricity and genius
of Jeremy Bentham. Journal of Bentham Studies, vol. 8, p.1-37, 2006.
48
MACPHERSON, CRAWFORD B. The meaning of property. In C. B. MACPHERSON (org.),
Property: mainstream and critical positions. Toronto: University of
Toronto Press, 1978.
MANDEVILLE, BERNARD. The fable of the bees and other writings. Seleção, organização,
introdução e notas de E. J. Hundert. Indianapolis: Hackett, 1997.
MARX, KARL. O Capital. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
MARX, KARL. A mercadoria (tradução do Cap. I d’O Capital, apresentação e
comentários de Jorge Grespan, São Paulo: Ática, 2006.
MAUSS, MARCEL. Essai sur le don: forme et raison de l’échange dans le societés
archaïques. In Sociologie et anthropologie. Paris: Presses Universitaires
de France, 1950 [1925]. p.143-279.
MAUSS, MARCEL. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades
arcaicas. In Sociologia e antropologia, vol. II. São Paulo: Edusp/e.p.u.,
1974 [1925], p.37-184.
MAUSS, MARCEL. Écrits politiques: textes réunis et présentés par Marcel Fournier.
Paris: Fayard, 1997.
POLANYI, KARL. The great transformation: the political and economic origins of our
time. Boston: Beacon Press, 2001 [1944].
POLANYI, KARL. A grande transformação. Rio de Janeiro: Campus, 1980 [1944].
POLANYI, KARL. Our obsolete market mentality. Commentary 3(2), p.109-17, 1947.
POLANYI, KARL. Dahomey and the slave trade: an analysis of an archaic economy.
Seattle: University of Washington Press, 1966.
POLANYI, KARL. The livelihood of man. Nova York: Academic Press, 1977.
POLANYI, KARL., ARENSBERG, C. M. & PEARSON, H. W. (orgs.), Trade and market in
the early empires: economies in history and theory. Glencoe: The Free
Press, 1957.
ROUSSEAU, JEAN-JACQUES. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade
entre os homens. No vol. Rousseau da Coleção Os pensadores. São
Paulo: Abril Cultural, 1978.
SAMUELSON, PAUL A. & NORDHAUS, WILLIAM D. Economia. 16ª ed. Lisboa: McGraw-
Hill, 1999.
SANDEL, MICHAEL J. What money can’t buy: the moral limits of markets. Londres: Allen
Lane, 2012.
SIMON, IMRE & VIEIRA, MIGUEL SAID. O rossio não-rival. In Nelson de Luca Pretto e
Sérgio Amadeu da Silveira, Além das redes de colaboração: internet,
diversidade e tecnologias do poder. Salvador: EDUFBA, 2008.
Disponível em http://impropriedades.files.wordpress.com/
2008/08/livroalemdasredes.pdf.
SINGER, PAUL. Uma utopia militante: repensando o socialismo. Petrópolis: Vozes,
1998.
SMITH, ADAM. A teoria dos sentimentos morais. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
49
SMITH, ADAM. An inquiry into the nature and causes of the wealth of nations. [1776]
(Library of Economics and Liberty, <http://www.econlib.org/library/Smith/smWN13.html>. Acesso em 24/8/2011).
SMITH, ADAM Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações. No vol.
Smith/Ricardo da coleção Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural,
1979.
SRAFFA, PIERO. Produção de mercadorias por meio de mercadorias: prelúdio a uma
crítica da teoria econômica. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
TITMUSS, RICHARD M. The gift relationship: from human blood to social policy. Nova
York: Random House, 1972.
VAUGHN, KAREN I. Invisible hand. In EATWELL, J., MILGATE, M. & NEWMAN, P.
(orgs.), The invisible hand. Nova York: W. W. Norton, 1989.
WIENER, NORBERT. Cybernetics or control and communication in the animal and the
machine. Cambridge: MIT Press, 1948.
WIENER, NORBRT. Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos. São
Paulo: Cultrix, 1958 [1950].
YLIKOSKI, PETRI The invisible hand and science. Science Studies 8 (1995): 32-43.