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PRÓLOGO 23

PARTE IUm mundo de sonhos

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UM MUNDO DE SONHOS 25

Domingo, 13 de maio de 1565

Castelo Sant’Angelo, o Borgo, Malta

A situação, vista por Starkey, era a seguinte.A maior armada desde a Antiguidade, composta pelo melhor exército do mun-

do moderno, tinha sido despachada pelo xá Suleiman para conquistar Malta. Oêxito turco exporia o sul da Europa a uma onda de terror islâmico. A Sicília estariamadura para o saque. Uma reconquista muçulmana de Granada não seria inconce-bível. A própria Roma tremeria. Ainda que essas recompensas estratégicas fossemgratificantes, a ambição maior de Suleiman era exterminar os Cavaleiros de SãoJoão – esse grupo singular de monges curandeiros e guerreiros conhecido poralguns como os Cavaleiros do Mar e por outros como os Hospitaleiros e que, emuma época de Inquisição, se atreviam a chamar a si mesmos de “A Religião”.

O exército do Grande Turco era comandado pelo paxá Mustafá, que vencera oscavaleiros uma vez antes – e em uma cidadela incomensuravelmente mais forte doque essa – no famoso cerco de Rodes, em 1521. Desde então, Suleiman – que, apesarde seus muitos feitos, colocava o dever sagrado de conquistar o mundo para o Islãcomo prioridade de sua política – tinha derrubado Belgrado, Buda, Bagdá e Tabriz.Derrotara a Hungria, a Síria, o Egito, o Irã, o Iraque, a Transilvânia e os Bálcãs. Vintee cinco ilhas venezianas e todos os portos do norte da África tinham caído para seuscorsários. Seus navios de guerra tinham esmagado a Santa Aliança em Preveza. So-mente o inverno o fizera voltar dos portões de Viena. Ninguém tinha dúvidas sobrequal seria o resultado da mais recente jihad de Suleiman, em Malta.

Exceto, talvez, um punhado dos próprios cavaleiros.Frei Oliver Starkey, tenente turcopole* da Langue Inglesa, estava em pé à janela

da sala do Grão-Mestre. De sua posição, no alto do muro sul do castelo Sant’Angelo,

* Turcopole: combatentes de ascendência mista, em geral pai turco e mãe grega, que seriam muçul-

manos convertidos ao cristianismo. (N. da T.)

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podia ver a geografia complexa do futuro campo de batalha. Circundadas por eleva-ções, três línguas de terra triangulares formavam as fronteiras do Grand Harbour,terra dos Cavaleiros do Mar. Sant’Angelo ficava na ponta da primeira península edominava a principal cidade do Borgo. Aí se apinhavam os albergues dos Cavaleiros,a enfermaria sagrada, a igreja do mosteiro de San Lorenzo, as casas dos cidadãos, osprincipais cais e armazéns e toda a parafernália de uma minúscula metrópole. OBorgo era defendido do continente por uma imensa circunvalação – uma cortinaguarnecida de bastiões defensivos e milícia em treinamento.

Starkey olhou para além de Galley Creek, para a segunda língua de terra, L’Isola,onde as asas de uma dúzia de moinhos giravam com uma tranqüilidade estranha eincongruente. Quadrados de infantaria giravam em formação, o sol cintilando emseus capacetes, e, para além deles, escravos muçulmanos nus, acorrentados em pa-res, retesavam-se ao apito do feitor, enquanto arrastavam blocos de arenito paracima do contramuro de Saint Michel, a fortaleza que isolava L’Isola do continente.Quando o cerco tivesse início, a única comunicação entre L’Isola e o Borgo seria afrágil ponte de barcos através de Galley Creek. Ao norte, meia milha depois deGrand Harbour, na ponta do lado do mar da terceira península, estava o forte deSantelmo. Era o posto avançado mais isolado de todos, e, uma vez sitiado, só seriaacessível por água.

O cenário todo agitava-se com os preparativos. Fortificar e treinar; escavar eentrincheirar; colher, salgar e armazenar; polir, amolar, e rezar. Suboficiais grita-vam com lanceiros, e os martelos dos armeiros ressoavam alto. Nas igrejas, sinosrepicavam e novenas eram organizadas, e mulheres rezavam à Nossa Senhora dia enoite. Oito em dez defensores eram camponeses sem linhagem, com lanças e arma-duras de couro feitas em casa. Ao terem de escolher entre escravidão e morte, osorgulhosos e valentes malteses não hesitaram. Uma disposição de rebeldia implacá-vel pairava na cidade.

Um movimento chamou a atenção de Starkey, e ele ergueu os olhos. Dois falcõesde asas negras mergulharam em direção à terra, atravessando um céu turquesa,como se fossem cair para sempre. Então, planaram sem movimento aparente rumoao horizonte oeste, e, no momento indefinível em que se fundiram na névoa, Starkeyimaginou-os os últimos pássaros no mundo. Uma voz do outro lado da sala espaçosarompeu a magia de seu devaneio.

– Quem não conheceu a Guerra não conheceu Deus.

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Starkey ouvira esse lema ímpio antes. Nunca deixava de perturbar sua consciên-cia. Hoje, encheu-o de pavor, pois temia em breve descobrir que era verdadeiro.Starkey virou-se da janela para tornar a participar da conferência.

Jean Parisot de La Valette, o Grão-Mestre da Ordem, estava à mesa de mapascom o coronel Le Mas. Alto e austero, em um hábito preto comprido engalanadocom a Cruz de São João, La Valette tinha 71 anos. Cinqüenta anos de mortes emalto-mar tinham forjado seu vigor, e, talvez por isso, sabia do que estava falando.Aos 20 anos, sobrevivera à matança em Rodes, quando os esfarrapados remanes-centes da Ordem tinham sido banidos às ondas no último de seus navios. Aos 46,tinha sobrevivido a um ano como escravo nas galés de Abd-ur Rahman. Quandooutros teriam aceitado assumir uma alta posição na Ordem – na segurança daterra firme –, La Valette optara por décadas de pirataria incessante, suas narinastampadas com tabaco por causa do mau cheiro. Sua testa era larga, e seu cabelo ebarba agora estavam grisalhos. Seus olhos, descorados pelo sol, haviam adquiridoa cor de pedra. Sua face parecia moldada em bronze. Notícias de invasão, para ele,eram como um elixir rejuvenescedor em uma lenda ática. Abraçara a perspectivada destruição com o ardor de um amante. Era incansável. Era exuberante. Erainspirado. Inspirado como alguém cujo ódio pôde, finalmente, ser desatreladosem piedade, sem qualquer freio. O que La Valette odiava era o Islã e todas as suasobras diabólicas. O que amava era Deus e a Religião. E nos últimos dias de suavida, Deus havia enviado à Religião a benção da Guerra. A Guerra em sua apoteose.A Guerra como manifestação da Vontade Divina. A Guerra sem grilhões, pura, aser combatida até a sua conclusão fumegante, por meio do máximo concebível decrueldade e horror.

Quem nunca conheceu a Guerra não conheceu Deus? Cristo nunca abençoaraa ação com armas, da maneira que fosse. Mas, então, havia momentos em queStarkey tinha certeza de que La Valette era louco. Obcecado com a premonição deviolência extrema. Obcecado com a convicção de que o poder de Deus fluía atra-vés dele. Louco, pois quem mais se não um louco poderia ter o destino de um povona palma da mão e prever a carnificina de milhares com tal equanimidade? Starkeyatravessou a sala para se unir aos dois velhos camaradas que conferenciavam àmesa dos mapas.

– Quanto tempo devemos esperar? – perguntou o coronel Le Mas.– Dez dias? Uma semana? Talvez menos – replicou La Valette.

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– Pensei que tivéssemos um mês.– Nós nos enganamos.A sala de La Valette refletia seu temperamento austero. As tapeçarias, os retratos

e a guia mobília de seus predecessores tinham desaparecido. Em seu lugar, pedra,madeira, papel, tinta, velas. Um simples crucifixo de madeira estava pregado naparede. O coronel Pierre Le Mas tinha chegado naquela manhã de Messina com oreforço inesperado de quatrocentos soldados espanhóis e 32 cavaleiros da Ordem.Era um marinheiro robusto e com cicatrizes de guerras, e estava com quase 60 anos.Confirmou com a cabeça para Starkey e indicou o mapa na mesa.

– Somente um filósofo é capaz de decifrar estes hieróglifos.O mapa – de certa maneira para tristeza de Starkey, pois tinha, ele próprio,

supervisionado a delicada cartografia – estava repleto de anotações cifradas e sím-bolos elaborados por La Valette. A Ordem de São João era dividida em oito Langues– ou Línguas –, cada uma conforme a nacionalidade de seus membros: da França,Provença, Auvergne, Itália, Castela, Aragão, Alemanha e Inglaterra. La Valettetraçou a circunvalação defensiva que selava o Borgo em uma grande curva de pedrade oeste a leste, destacando o bastião que designara a cada Langue.

– França – disse ele, e assinalou a extrema direita, defronte a Galley Creek.Como Le Mas, La Valette era de uma das castas mais beligerantes, era gascão. – Anossa nobre Langue da Provença está perto, aqui, no primeiro bastião.

– Quantos somos da Provença? – perguntou Le Mas.– Setenta e seis cavaleiros e sargentos de armas – o dedo de La Valette moveu-se

sobre o mapa para oeste. – À nossa esquerda, está a Langue de Auvergne. Depois, ositalianos, 169 lanceiros, em seguida Aragão. Castela. Alemanha. No total, 522 ir-mãos responderam à convocação às armas.

Le Mas franziu a testa. O número era miseravelmente pequeno.– Com os homens que você trouxe – acrescentou La Valette –, temos oitocentos

tercios espanhóis e quarenta aventureiros. A milícia maltesa soma pouco mais decinco mil.

– Soube que Suleiman envia sessenta mil gazi para nos forçar ao mar.– Inclusive marinheiros, mão-de-obra escrava e tropas de apoio, e muito mais –

replicou La Valette. – Os cães do Profeta nos fizeram recuar quinhentos anos:de Jerusalém a Krak des Chevaliers, de Krak a Acre, de Acre a Chipre e Rodes. Ecada milha de nossa retirada está marcada com sangue, cinzas e ossos. Em Rodes,

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escolhemos a vida e não a morte, e, apesar de o mundo todo considerá-lo um episó-dio banhado de glória, para mim é uma mancha. Dessa vez, não haverá “rendiçãocom honra”, não mais bateremos em retirada. Malta é o nosso último reduto.

Le Mas esfregou as mãos.– Deixe-me reivindicar o Posto de Honra. – Com isso, Le Mas queria dizer o

local de maior perigo. O posto da morte. Não era o primeiro a pedir, e devia saberdisso, pois acrescentou: – Você me deve isso.

Starkey não entendeu a que se referia, mas alguma coisa se passava entre os doishomens.

– Falaremos disso depois – disse La Valette –, quando soubermos melhor quaissão as intenções de Mustafá. – Indicou a ponta das fortificações. – Aqui, no PortãoKalkara, é o posto da Inglaterra.

Le Mas riu.– Um posto inteiro para um único homem?A Antiga e Nobre Língua Inglesa, antes entre as mais importantes da Ordem,

tinha sido destruída pelo namorador e herege Henrique VIII. Starkey era o únicoinglês que restava na Ordem de São João.

– Frei Oliver é a Langue Inglesa – disse La Valette. – Também é o meu braçodireito. Sem ele, estaríamos perdidos.

Starkey, constrangido, mudou de assunto.– Os homens que trouxe, como avalia a sua qualidade?– Bem treinados, bem-equipados e todos devotados a Cristo – disse Le Mas. –

Consegui duzentos voluntários do comandante militar Toledo, ameaçando quei-mar suas galés. O resto foi recrutado em nosso nome pelo alemão.

La Valette ergueu um sobrolho.– Mattias Tannhauser – disse Le Mas.– Foi ele o primeiro a nos advertir dos planos de Suleiman – completou Starkey.La Valette ergueu os olhos para o vazio, como se para evocar um rosto. Balançou

a cabeça.– Tannhauser trouxe a informação? – perguntou Le Mas.– Não foi um ato de caridade – disse Starkey. – Tannhauser nos vendeu uma

quantidade colossal de armas e munição com que prosseguir a guerra.– O homem é uma raposa – disse Le Mas, com admiração. – Quase nada aconte-

ce em Messina que lhe escape. Tem jeito para lidar com os homens, também, e

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certamente seria um companheiro inflexível em um combate, pois foi um devshirme,e passou 13 anos no corpo de janízaros do sultão.

La Valette piscou os olhos.– Os Leões do Islã – disse.Os janízaros eram a infantaria mais feroz do mundo, a elite das armas otomanas,

os pontas-de-lança de seu pai, o sultão. Sua seita era inteiramente compostade meninos cristãos, criados e treinados – através da ordem fanática e implacável deBektasi, dervixe do Islã – para desejarem a morte em nome do Profeta. La Valetteolhou para Starkey em busca de confirmação.

Starkey forçou a memória por detalhes da carreira de Tannhauser.– A conquista persa, Lago Van, o aniquilamento das rebeliões da dinastia Safavid,

o saque de Nahjivan. – Percebeu La Valette piscar os olhos pela segunda vez. Umprecedente tinha sido estabelecido. – Tannhauser conquistou a patente de zelador,ou capitão, e se tornou um membro da escolta do filho primogênito de Suleiman.

– Por que ele abandonou os janízaros? – perguntou La Valette.– Não sei.– Não lhe perguntou?– Ele não me responderia.A expressão de La Valette mudou, e Starkey sentiu que uma conspiração se havia

iniciado.La Valette abraçou Le Mas.– Frei Pierre, voltaremos a falar em breve... sobre o Posto de Honra.Le Mas compreendeu que estava sendo dispensado e se encaminhou à porta.– Mais uma coisa – disse La Valette. – Disse que Tannhauser sabia lidar com os

homens. Também tem jeito com mulheres?– Bem, tem um grupo admirável de núbeis trabalhando para ele. – Le Mas corou

com seu próprio entusiasmo, pois seus deslizes ocasionais na libertinagem eramconhecidos. – Embora tenha de deixar claro que não são empregadas domésticas.Tannhauser não recebeu o sacramento da Ordem e, no seu lugar, bem... se ele gostade mulheres... e tem bom gosto... Bem, isso não seria algo pelo qual eu o condenaria.

– Obrigado – disse La Valette. – Não farei isso.Le Mas saiu fechando a porta, e La Valette sentou-se, examinando os dedos.– Tannhauser. Não é um nome nobre.

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Para se candidatar a Cavaleiro da Ordem de São João, um homem tinha deprovar 16 quartos de brasões de nobreza em sua estirpe. Era um conceito no qual oGrão-Mestre depositava muita fé.

– Tannhauser – replicou Starkey – é um nom de guerre, tirado de lenda alemã,acho, que assumiu quando serviu a Alva nas guerras franco-espanholas.

– Se Tannhauser passou 13 anos nos Leões do Islã, sabe mais sobre o nossoinimigo, suas táticas, formações, humor, sua moral, do que qualquer outro emnosso acampamento. Eu o quero aqui, em Malta, para o cerco.

Starkey ficou confuso.– Frei Jean, por que ele pensaria em se unir a nós?– Giovanni Castrucco parte para Messina ao meio-dia, no Couronne.– Tannhauser não se deixará convencer por Castrucco.– Não – disse La Valette. – Você irá com ele. Quando Castrucco retornar, você

trará esse janízaro alemão a Malta.– Mas ficarei fora cinco dias. Tenho inúmeras tarefas a cumprir aqui...– Sobreviveremos à sua ausência.– Tannhauser não se unirá a nós se o trouxermos acorrentado.– Então, pense em outra maneira.– Por que ele é tão importante?– Talvez não seja. Mas ainda assim.La Valette levantou-se. Voltou ao mapa e examinou o terreno que milhares, em

breve, disputariam com suas vidas.– Essa batalha por nossa sagrada religião não será vencida ou perdida por algum

grande ataque – disse ele. – Não haverá nenhuma manobra brilhante ou decisiva,nenhum Aquiles ou Heitor, nenhum Sansão com a maxila de um asno. Tais histó-rias são invenções. Haverá somente vários ataques menores por vários heróis me-nores: nossos homens, nossas mulheres, nossas crianças. Nenhum dos quais conhe-cerá o resultado final, e poucos até mesmo viverão para vê-lo.

Pela primeira vez, Starkey percebeu algo semelhante a horror nos olhos deLa Valette.

– O fluxo no cadinho de Deus é infinito em possibilidades, e, no final, somenteDeus saberá quem foi que inclinou a balança: o cavaleiro que morreu na rebentação,ou o garoto que distribui água e que saciou sua sede, ou o padeiro que fez seu pão, oua abelha que picou o inimigo no olho. É assim que os pratos da balança da guerra

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são pesados. É por isso que quero Tannhauser. Por seu conhecimento, por suaespada, por seu amor ao turco, ou seu ódio, não importa.

– Perdoe-me, frei Jean, mas lhe asseguro que Tannhauser não virá.– Lady Carla continua nos atormentando com suas cartas?Starkey se intrigou com esse non sequitur e com a trivialidade do tema.– A condessa de Penautier? Sim, ela continua a escrever... ela não conhece o

significado de recusa. Mas... por quê?– Use-a como alavanca.– Contra Tannhauser?– O homem gosta de mulher – disse La Valette. – Que goste dessa.– Nunca vi a condessa – protestou Starkey.– Quando jovem, possuía grande beleza, que, tenho certeza, os anos pouco ou

nada obscureceram.– Isso pode funcionar, mas ela é uma mulher de sangue nobre e Tannhauser é...

bem... praticamente um bárbaro...A expressão de La Valette impediu que a discussão prosseguisse.– Você vai embarcar no Couronne. Vai trazer Tannhauser a Malta.Pegou o braço de Starkey e o conduziu à porta.– Ao sair, mande entrar o inquisidor.Starkey piscou os olhos.– Não participarei da conferência?– Ludovico embarcará com você no Couronne. – La Valette percebeu sua per-

plexidade e insinuou um raro sorriso. – Frei Oliver, sabia que você é muito querido.Na antecâmara do lado de fora, Ludovico Ludovici, juiz e jurista da Sacra Con-

gregação da Inquisição, passava as contas de seu rosário com a impassibilidadeinocente de um ícone. Retribuiu o olhar de Starkey sem demonstrar nenhumaexpressão, e por um instante deixou-o sem palavras.

Ludovico estava na faixa dos 40, como Starkey, e ainda assim o pêlo de suatonsura paulina era preto como as asas da graúna e não se retraíra nem um tantinhode seu bico-de-viúva. Sua testa era lisa, seu rosto imberbe, e seu crânio dava aimpressão de uma imensa pedra esculpida por forças primordiais. Seu torso eralongo, os ombros largos, e usava o escapulário branco e a capa preta da ordem dosdominicanos. Seus olhos brilhavam como esferas de obsidianas e careciam de qual-quer indício de ameaça ou afeto. Olhavam o mundo caído à sua volta como haviam

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olhado desde Adão, com uma franqueza de percepção que excluía a possibilidadetanto de alegria quanto de horror, e com uma inteligência extraordinária que pro-curava romper o cerne mais íntimo daquele que ele sujeitava a seu olhar. E, por trásdisso, residia a sombra de uma melancolia fabulosa – de um pesar que evocava umacerta idéia de lamento perpétuo –, como se tivesse visto um mundo melhor do queeste e soubesse que não o reveria.

Torne-me o guardião dos segredos de sua alma, diziam os olhos negros inson-dáveis. Ponha o seu fardo sobre minhas costas e ganhará a vida eterna.

Starkey sentiu, ao mesmo tempo, um impulso de confiar e uma apreensão nãomuito clara. Ludovico era o legado especial do papa Pio IV para a Inquisição maltesa.Viajava mil milhas por ano em busca de heresia. Entre outros feitos famosos, man-dara Sebastiano Mollio, renomado catedrático de Bolonha, para a fogueira, noCampo del Flor. Tinha orientado o duque Alberto da Baviera em sua brutal restau-ração da única fé verdadeira. Durante seu expurgo do Piemonte, despachara todoum séquito de prisioneiros segurando círios acesos como penitência aos autos-de-féem Roma. No entanto, a humildade de Ludovico era profunda; profunda demaispara ser uma simulação. Starkey nunca vira tanto poder investido de tanta leveza. Afunção de Ludovico em Malta era investigar a heresia luterana entre os irmãos daOrdem de São João; mas, até então, não fizera nenhuma prisão. Essa sua atitudetornara-o ainda mais temido. La Valette queria Ludovico em segurança na Sicília?Ou havia outras intrigas em jogo? Starkey deu-se conta de que ficara olhando parao outro por tempo demais.

Fez uma mesura e disse:– Sua Excelência, o Grão-Mestre, o aguarda.Ludovico levantou-se. Com um movimento ágil e um chocalhar de contas, amar-

rou o rosário em volta da cintura. Sem dizer uma palavra, passou por Starkey eentrou na sala. A porta fechou-se. O alívio de Starkey foi moderado pelo pensamentoda viagem de dois dias na companhia do dominicano. Dirigiu-se a seus aposentospara se preparar para a viagem. Não primava em subterfúgios e desonestidade; mas,nos tempos modernos, só um tolo confundiria devoção a Deus com moralidade. Eleamava La Valette. Amava a Religião. No serviço aos dois – e independentemente docusto para sua alma –, Starkey estava pronto a fazer qualquer coisa.

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Terça-feira, 15 de maio de 1565

Vila Saliba, Messina, Sicília

... Em suma, considerações militares continuam me impedindo de autorizar suapassagem para a ilha de Malta. Entretanto, posso sugerir outros meios pelos quaissua ambição maior poderá ser realizada.

No porto de Messina há um homem chamado Mattias Tannhauser, cuja origemé excessivamente complicada para que acrescente algo neste momento. Basta dizerque ele age segundo sua própria vontade. Apesar de ser um freqüentador de ordensinferiores, não nutrir muito respeito pela lei e correr o rumor de que é ateu ou coisapior, posso assegurar que é um homem de palavra e não tenho nenhuma razão paraacreditar que lhe causaria algum mal. Tampouco tenho qualquer motivo para acre-ditar que irá ajudá-la. Ao mesmo tempo, não posso predizer o poder que umamulher nobre, com sua graça e beleza, é capaz de exercer sobre instintos maisnobres que ele talvez possua.

Não vou enganá-la, milady. A presença do capitão Tannhauser em Malta nosseria bastante vantajosa na luta contra o Grande Turco. Até o momento, por nos deverlealdade e estando ciente dos riscos, não demonstrou nenhuma inclinação para seunir a nós. Se milady conseguisse persuadi-lo a fazer a viagem em seu nome, eupoderia lhe conseguir uma passagem como sua acompanhante. O Couronne partede Messina hoje, à meia-noite. Se as informações mais recentes forem exatas, seráo último navio cristão a vencer o bloqueio turco.

Encontrará Tannhauser em uma taverna no extremo sul da zona portuária,chamada Oracle. É contrariado que a aconselho a visitar um estabelecimento tãosórdido, mas provavelmente ele ignorará os mensageiros usuais. Como vai abordá-lo, então, dependerá da urgência com que deseja agilizar seu processo.

Minha consciência me obriga a repetir as advertências anteriores: que existe umestado de guerra na ilha e o risco de morte ou escravidão para todos os residentesnos próximos dias é extremamente grave. Se eu puder lhe conceder qualquer outra

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ajuda ou conselho, me encontrará em Messina, até o Couronne zarpar, no Prioradodos Cavaleiros de São João de Jerusalém.

A letra de Starkey era a mais bela que Carla já tinha visto. Perguntou-se quantashoras ele passara, quando menino, aperfeiçoando as curvas graciosas, as transiçõeselegantes entre as penadas para cima e para baixo, o espaçamento invariavelmentepreciso entre cada letra, palavra e frase. Era escrito como um emblema de poder. Aescrita para fazer um rei marcar exatamente o que foi dito – como reis realmentefaziam, pois Starkey redigia a correspondência diplomática da Ordem. Carla não oconhecia pessoalmente. Imaginava se seria tão refinado quanto sua caligrafia, ou seseria um monge empoeirado, encarquilhado, curvado sobre uma escrivaninha. Pen-sou em seu próprio filho e se perguntou se já saberia ler ou escrever. E, com essalembrança de seu fracasso no cumprimento do dever como mãe, seu estômago secontorceu de dor, e o seu desejo de retornar a Malta – juntamente com o medo denunca consegui-lo – se tornou mais intenso e urgente.

Carla dobrou a carta e a apertou na mão. Correspondia-se com Starkey havia seissemanas. As proibições anteriores ao seu retorno tinham sido as réplicas de umhomem ocupado obrigado a lidar com trivialidades e se esforçando em respondersomente em deferência à sua origem nobre e ao nome de sua família. Durante omesmo período, ela perguntara a vários capitães de navios mercantes e cavaleirosque passavam por Messina se a levariam a Malta. Era ouvida com o máximo defidalguia e a promessa ocasional de ação, embora ela ali permanecesse, observando,da Vila Saliba, o nascer do sol.

O Grão-Mestre La Valette decretara que todo aquele incapaz de contribuir paraa defesa da ilha era uma “boca inútil”. Centenas de mulheres grávidas, os idosos eenfermos, além de uma quantidade não-declarada da decrescente aristocraciamaltesa, doente ou não, haviam sido despachados através do Canal de Malta para aSicília. Todo maltês nativo que podia segurar uma lança ou uma pá permanecia nailha, independentemente de sexo ou idade. Carla – para eles, uma nobre frágil a quemse sentiriam obrigados a proteger – era peso morto. Além do mais, todo espaço nasgalés que retornavam ao Grand Harbour estava reservado para combatentes, equi-pamento e suprimentos militares, não para damas ociosas com um inexplicáveldesejo de morrer. Carla desprezava a ociosidade e, certamente, não se considerava

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fraca. Administrava sozinha sua modesta propriedade na Aquitânia. Não estava soba autoridade ou influência de nenhum homem. Ela e a sua boa companheira, Am-paro, haviam atravessado a cavalo o Langue D’Oc sob a proteção da Graça Divina eda inteligência de Carla. A recente guerra dos huguenotes deixara um rastro decicatrizes e um vestígio de perigo iminente, mas elas tinham chegado a Marselhasãs e salvas, e seguiram de navio para Nápoles e Sicília sem incidentes. O fato deterem vindo de tão longe sem ajuda e desacompanhadas chocara muitos que elastinham conhecido. Agora, em retrospecto, Carla admitia um aspecto impetuoso,talvez até mesmo temerário, de sua viagem, mas, uma vez tomada a decisão, a idéiade que não conseguiriam chegar ao menos até ali nunca lhe ocorreu. Para umamulher que havia muito resolvera ditar sua própria vida, as semanas passadas nocalor de Messina tinham sido exasperadoras. A carta de Starkey era a primeirainsinuação de esperança. Agora, ela tinha um valor militar potencial. Se conseguissepôr esse Tannhauser no Couronne, à meia-noite, teria permissão para viajar com ele.

Durante toda a negociação com Starkey, capitães e cavaleiros, ela nunca revela-ra o motivo por que queria tanto retornar à sua terra. Se tivesse feito isso, confirma-ria, na opinião deles, a mulher desequilibrada que achavam que era. Somente Amparosabia a razão. Mas não era simplesmente por diplomacia que Carla não revelavaseus motivos. Guardava o segredo por vergonha. Tinha um filho. Um filho bastardo,tirado de seus braços 12 anos atrás. E seu filho, ela acreditava, estava em Malta.

Ela abriu as portas envidraçadas que davam para os jardins. Os Saliba, parentesdistantes de sua própria família, os Manduca, tinham se retirado para Capri paraescapar do verão da Sicília e haviam oferecido a Carla a sua casa de hóspedes. Eraelegante e confortável, e havia um cozinheiro, uma criada e um mordomo, franca-mente insolente, de nome Bertholdo. Pedira a Bertholdo que providenciasse a en-trega de uma mensagem ao capitão Tannhauser, na Oracle, mas o impactoelaboradamente simulado com que ele recebeu seu pedido a convenceu de quelevaria dias para que a obedecesse. De qualquer maneira, a altivez inveterada deBertholdo provavelmente acarretaria o fracasso de sua missão, se não uma agressãodo proprietário da taverna que ameaçaria sua vida.

Carla olhou para o jardim. Amparo estava ajoelhada no canteiro de flores,embevecida em comunhão com uma comprida rosa branca. Tais excentricidadeseram normais na garota, e a liberdade de espírito para entregar-se a elas fazia Carla

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se achar insensível. Uma idéia passou em sua cabeça enquanto a observava. Carlanão tinha medo de ir pessoalmente à taverna Oracle. Esse havia sido o seu primeiroimpulso. Negociara muitas vezes com mercadores de Bordéus. Mas sabia que en-frentar o notório Tannhauser em seu próprio território seria assumir a posição maisfraca. Se ele pudesse ser atraído a vir vê-la, ali, em meio aos símbolos de poder, avantagem seria sua. Amparo, ela agora percebia, traria Tannhauser à Vila Salibacom muito mais facilidade do que ela própria. Se os mensageiros habituais nãofuncionassem, Amparo seria a mensageira mais estranha que um homem já recebera.

Carla foi para debaixo das palmeiras, de cuja sombra a sobrevivência das floresdependia. Amparo beijou a rosa branca e se levantou para limpar a terra de suassaias. Seus olhos permaneciam nas flores quando Carla parou do seu lado. Amparoparecia calma. Ao se levantar, ela continuava agitada com o que via em sua bola decristal na noite anterior. As imagens que relatava, quando isso acontecia, eram tãodiversas, tão extraordinárias, que, quando uma delas se sobrepunha à realidade,Carla era propensa a acreditar em mera coincidência. Deixando a coincidência delado, símbolos podiam ter qualquer significado segundo o desejo de seu intérprete.Mas Amparo nunca interpretava. Ela somente via.

Ela vira um navio preto com velas vermelhas, tripulado por macacos minúsculostocando cornetas. Vira um mastim imenso com uma coleira de pontas de ferro e umatocha acesa nas mandíbulas. Vira um homem nu, seu corpo coberto de hieróglifos,montando um cavalo da cor de ouro fundido. E, quando ele passou, a voz de um anjolhe falou: “O portão é largo, mas a trilha até ele é como o fio da navalha.”

– Amparo? – chamou Carla.Amparo virou-se. Havia sempre um instante em que Carla esperava que ela

continuasse a se virar e a olhar a distância, como se o contato do olhar lhe doesse eela procurasse uma certa beleza que só ela via. Esse tinha sido o hábito de Amparodurante os primeiros meses juntas, e continuou sendo com todo mundo, excetocom Carla. Mas Amparo a olhou diretamente. Seus olhos eram de cores diferentes,o esquerdo castanho como o outono, o direito cinza como o vento do Atlântico. Osdois pareciam cheios de perguntas que nunca seriam enunciadas, como se nãoexistissem palavras para descrevê-las. Tinha 19 anos, mais ou menos; sua idadeexata era desconhecida. Seu rosto tinha o frescor de uma maçã e a delicadeza de umaflor, mas uma depressão acentuada no osso sob o olho esquerdo conferia às suasfeições uma assimetria perturbadora. Sua boca nunca se arqueava em um sorriso.

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Deus, ao que parecia, lhe negara essa possibilidade, como negara a visão ao cego. Elhe negara muito mais. Amparo sofria de um certo distúrbio mental – por índole,por loucura, pelo demônio, ou uma conspiração de todos esses e mais. Não tinharecebido nenhum sacramento e parecia não saber rezar. Tinha horror a relógios eespelhos. Ela mesma tinha contado que falava com anjos e era capaz de ouvir ospensamentos de animais e árvores. Era extremamente delicada com todas as coisasvivas. Era um raio de luz das estrelas capturado na carne, só esperando o momentode prosseguir sua jornada para a eternidade.

– Está na hora de tocarmos? – perguntou Amparo.– Não, ainda não.– Mas vamos tocar.– É claro que sim.– Está com medo.– Só por sua segurança.Amparo relanceou os olhos para as rosas.– Não entendo.Carla hesitou. O hábito de cuidar de Amparo estava tão arraizado que lhe pedir

que entrasse em um covil de ladrões parecia um crime. Mas Amparo tinha sobrevi-vido às ruas de Barcelona, a uma infância de violência e privação, que Carla sequerse atrevia a imaginar. A covardia não era um defeito de Amparo, mesmo que, nofundo do coração, Carla acreditasse ser dela própria.

Carla sorriu.– O que a luz da estrela tem a temer do escuro?– Ora, nada. – Amparo franziu o cenho. – É uma charada?– Não. Eu queria que fizesse uma coisa para mim. Uma coisa extremamente

importante.– Quer que eu procure o homem do cavalo dourado.A voz de Amparo era suave como a chuva. Ela via o mundo através dos olhos de

uma mística. Carla estava tão habituada com as lentes da imaginação de Amparo,que passara a achar isso natural.

– O seu nome – disse Carla – é Mattias Tannhauser.– Tannhauser – repetiu Amparo, como se testando a integridade de um sino

recém-fundido. – Tannhauser. Tannhauser. – Pareceu satisfeita.

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– Preciso falar com ele ainda hoje. O mais cedo possível. Quero que vá ao portoe o traga para cá.

Amparo assentiu com um movimento de cabeça.– Se ele recusar vir... – prosseguiu Carla.– Ele virá – disse Amparo, como se qualquer outro desfecho fosse inconcebível.– Se ele não vier, pergunte-lhe se me receberia logo que possível... mas hoje,

entendeu? Tem de ser hoje.– Ele virá. – O rosto de Amparo se iluminou com uma alegria misteriosa, que era

o mais próximo que ela chegava de um sorriso e que, à sua própria maneira, era maisdo que uma compensação.

– Mandarei Bertholdo preparar a carruagem.– Odeio a carruagem – disse Amparo. – Não tem ar, é lenta e cruel para o cavalo.

Carruagens são absurdas. Vou a cavalo. Se Tannhauser não vier comigo, ele nãoé o homem que caminhará no fio da navalha... e, portanto, para que iria querervê-lo depois?

Carla sabia que não adiantava argumentar. Balançou a cabeça concordando.Amparo fez menção de sair, mas então parou e olhou para trás.

– Podemos tocar quando eu voltar? Assim que eu voltar?Havia dois elementos invariávies nos dias de Amparo, sem o que ela ficava

aflita: a hora que passavam, toda tarde, tocando música e a sessão que dedicava à suapedra de adivinhação depois que escurecia. Também ia à missa todos os dias, maspara acompanhar Carla, e não por algum senso de devoção.

– Não se Tannhauser vier com você – replicou Carla. – O que tenho de dizer a eleé urgente. Pela primeira vez, nossa música terá de esperar.

Amparo pareceu atônita com tal tolice.– Mas deve tocar para ele. Tem de tocar para Tannhauser. É para ele que pratica-

mos há tanto tempo.Tocavam havia anos, portanto isso era absurdo, e, de qualquer maneira, Carla

achava a idéia sem o menor sentido. Amparo percebeu sua dúvida. Segurou as mãosde Carla e as levantou e abaixou, como se dançando com uma criança.

– Para Tannhauser! Para Tannhauser! – De novo, fez seu nome ressoar comoum sino. Sua face brilhava. – Imagine isso, minha querida. Tocaremos para elecomo nunca tocamos antes.

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O começo com Amparo tinha sido difícil. Carla a encontrara durante a suacavalgada de manhã cedo, em um dia cristalino de fevereiro, em que a cerraçãoainda envolvia os joelhos de seu cavalo e as primeiras cerejeiras estavam em flor.Essa cerração escondeu Amparo, e seus caminhos poderiam nunca ter se cruzado,se Carla não tivesse escutado uma voz aguda e doce pipilar como o lamento de anjosna paisagem. A voz cantava em um dialeto de Castela, e uma melodia inventada porela própria, que transmitia o bater das asas da morte. Qualquer que fosse o seusignificado, a beleza sobrenatural da música fez Carla desviar sua montaria.

Descobriu Amparo em um bosque de salgueiros. Se já não soubesse pela voz,seria difícil afirmar se o que jazia enroscado em um tronco, semi-enterrado sobuma massa de folhas apodrecidas protegendo-se da geada, era mulher ou homem,ou mesmo um ser humano e não uma criatura das florestas, de origem fantástica.Afora uma pele de animal imunda em volta do pescoço e os restos de um par demeias de lã, ela estava nua. Seus pés eram grandes para o corpo, e azuis, assim comosuas mãos juntas entre os seios. Os dois braços, dos ombros até os pulsos, estavammanchados de equimoses cor de chumbo, assim como a pele clara translúcidaesticada na caixa torácica. Seu cabelo era negro como o corvo, cortado grosseira-mente e colado no crânio por coágulos de lama. Seus lábios estavam roxos de frio.Seus olhos de diferentes cores não traíam nenhum sinal de angústia ou de autoco-miseração, e por isso mesmo pareceram a Carla inspirarem mais pena do que quais-quer outros que já tinha visto. Amparo nunca contaria como fora parar na floresta,faminta e suja, quase morta de frio. Raramente falaria o que quer que fosse de seupassado, e só para responder sim ou não ao esforço de adivinhação de Carla. Porém,nesse mesmo dia, mais tarde, quando deixou que Carla a lavasse com água quente,havia sangue e gosma coagulados em suas partes íntimas, e algumas das marcas emseu corpo eram de dentes humanos.

No primeiro encontro, Amparo não a olhou nos olhos. Passar-se-iam semanasaté ela fazer isso, e permaneceu sendo uma honra raramente concedida a alguémmais. Quando Carla desmontou e a pegou pelo braço, Amparo gritou de maneiratão pungente que o cavalo de Carla quase se soltou. A aflição do animal fez Amparolevantar-se de um pulo. Confortou o animal e falou-lhe baixinho, em um murmúrioao ouvido, esquecida de seu estado patético. Quando Carla a envolveu com sua capa,Amparo não fez objeção, e, apesar de se recusar a montar, ficou contente em cami-nhar do lado, segurando a rédea. Assim, sete anos antes, Amparo chegara à casa de

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Carla, acompanhando-a com o comprido manto verde arrastando atrás, como umpajem descalço e maltrapilho em um conto inenarrável.

Os membros da criadagem de Carla, seu padre, seus poucos conhecidos na al-deia e os mexeriqueiros locais, em número muito maior, foram unânimes em acharCarla insensata – na verdade, tão louca quanto a garota – ao levar a criança abando-nada para sua casa. Amparo, então adolescente, era propensa a repentes violentos aprovocações obscuras e a passar horas conversando com os cavalos e os cachorros,a quem fazia serenatas com paixão em sua voz clara e suave. Recusava-se a comercarne de qualquer tipo de animal, desdenhando, às vezes, o pão fresco, e a sua dietapreferida de nozes, cerejas e legumes crus nunca acrescentou nem um grama aoestado emaciado em que fora encontrada. Sua recusa em encarar o padre e o fatode seus olhos serem de cores diferentes eram sinais incontestáveis, acreditava-se, detendências diabólicas.

Carla ficava do lado da garota nos acessos de fúria e transe, nos desaparecimen-tos repentinos, que podiam durar dias, nas humilhações sociais e ofertas de exorcis-mo, e na aparente incapacidade de Amparo de retribuir afeição. Ela parecia insen-sível aos sentimentos dos outros, ou, se não insensível, completamente indiferente.No entanto, na lealdade que Amparo desenvolveu em relação a ela, na participaçãoda descoberta da sua pedra de adivinhação e das revelações que provocava, no seuesforço para aprender a etiqueta básica e os princípios de como se comportar, e,mais que tudo, no talento singelo que demonstrava no estudo da música, Amparodemonstrou um amor mais profundo e mais duradouro do que a maioria dos mor-tais chegou a conhecer. Eram amigas singulares, então, ainda que nunca duas ami-gas tivessem sido mais próximas.

Carla amava a garota e às vezes se perguntava se seria por causa de algum feitiçolançado no espelho da identificação. No espelho em que todos os que foram dester-rados podiam se ver. Ou porque, em seu isolamento, precisava de alguém a quemamar e aconteceu de a garota estar ali? Ou o amor sempre seria uma conspiração doisolamento, reconhecimento e acaso, tudo misturado? Não tinha importância. Agarota conquistou o seu coração. Foi Amparo, uma garota sem passado, que inspi-rou e impulsionou Carla nessa busca de se redimir.

– Não irei a Messina até me responder – disse Amparo. – Vamos tocar para eleou não?

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O coração de Carla se acelerou diante da idéia. Não se fazia esse tipo de coisa.Convidar um homem – um homem de reputação duvidosa – a uma vila estranha e,sem uma apresentação, submetê-lo à sua Arte? Era inaudito. Tannhauser as achariamalucas. Sua mente lhe dizia que tocar para ele seria uma loucura. Seu coração diziaque seria magnífico. Amparo esperou sua resposta.

– Sim – disse Carla –, tocaremos para ele. Tocaremos como nunca tocamosantes.

– Vai me levar com você, não vai? – disse Amparo. – Se me deixar, não vousuportar.

Ela tinha feito essa pergunta inúmeras vezes desde que haviam iniciado essajornada, mas a partir de agora as coisas podiam mudar. Starkey permitiria?Tannhauser permitiria? Pela primeira vez, Carla respondeu sem saber se poderiacumprir sua promessa.

– Eu nunca a deixarei.De novo, a chama de alegria, sem sorriso, iluminou a face de Amparo, e outra

inspiração brotou de sua mente.– Use o vestido vermelho – disse ela.Viu a cara que Carla fez.– Oh, sim, o vestido vermelho – insistiu Amparo. – Deve usá-lo.Carla encomendara o vestido durante sua estada em Nápoles, por razões que

não pôde compreender na época. A peça de seda vermelha a tinha cativado: a idéiafantástica da cor que atravessara o deserto e o mar desde Samarkand. O costureirovia seu reflexo em seus olhos e juntara as mãos em comunhão com uma visão que elaainda não podia ter de si mesma, e lhe prometera uma união entre a seda e o desejodo seu coração, cuja harmonia deliciaria uma coluna de pedra.

Quando o vestiu pela primeira vez, uma semana depois, sua pele tinha suspira-do e seu coração vibrado, e algo semelhante ao pânico obstruíra sua garganta,como se lembrasse de algo em si mesma que temesse mais do que qualquer outracoisa e que, havia muito tempo, decidira esquecer. Quando saiu do quarto devestir, os olhos de Amparo se arregalaram e se encheram de lágrimas. Ao se pôrdiante do espelho, se deparara com uma mulher que não conhecia, e que ela nãopodia ser. E, apesar de valorizá-la mais do que qualquer outra coisa que possuísse,sabia que nunca usaria essa roupa sofisticada, pois o momento em que ela poderiase tornar a mulher do espelho – em que se atreveria a ser essa mulher – nunca

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chegaria. O vestido fora feito para uma mulher na flor da idade, e ela era umamulher cuja primavera e verão já tinham se passado. Estava no baú, envolto notecido em que o costureiro o embrulhara.

– Nunca houve uma ocasião apropriada – disse Carla. – E certamente não é agora.– Se não agora, quando? – perguntou Amparo.Carla hesitou e desviou o olhar. Amparo insistiu.– Se Tannhauser deve percorrer o fio da navalha, então você terá de estar à altura

dele.Havia lógica nisso, mas a lógica de Amparo.– Não importa o quanto ele seja extraordinário, não estará usando seda vermelha.Amparo entendeu e sacudiu a cabeça com tristeza.– Agora, basta dessas fantasias tolas – disse Carla. – Por favor, vá.Observou Amparo correr para a casa e se perguntou como deveria ser viver sem

medo. Sem culpa, sem vergonha. Como Amparo vivia. Carla pressentira essa vidanaquela manhã na última primavera, quando partiram da Aquitânia para a Sicília.Duas loucas em uma jornada que ela sabia que nunca se completaria. Nessa manhã,se sentira tão livre quanto o vento em seu cabelo. Carla voltou para a casa de hóspe-des. Iria à capela da vila e rezaria o terço para que a garota tivesse êxito. Se Amparoretornasse da Oracle sozinha, sua busca estaria encerrada.

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