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7/21/2019 i6 http://slidepdf.com/reader/full/i656d6bdb51a28ab30168f064a 1/9 Ortografia: Uma questão a ser levada a sério Alexander Pereira Frade (UFOP) Introdução Com base nos estudos de Emília Ferreiro, Luiz Carlos Cagliari, Mary A. Kato, dentre outros, discutiremos, neste trabalho, a aprendizagem da ortografia, promovendo uma reflexão sobre a relação entre ortografia e língua falada, o estatuto do “erro” ortográfico e o conceito de norma ortográfica. Em seguida, tendo como modelo o estudo empírico desenvolvido por Artur Gomes de Morais (1996), examinaremos a relação entre êxito e fracasso, no uso da ortografia, entre alunos da terceira e quarta séries do ensino fundamental do município de Dionísio/MG. Finalmente, apresentaremos algumas estratégias que visam auxiliar na explicitação consciente dos conhecimentos ortográficos. A educação está passando por um momento de renovação quanto ao ensino de língua materna, aproximando o que se aprende na escola do uso efetivo que se faz da linguagem fora do contexto escolar. Apesar desta renovação, a escola “cobra” do aluno que ele escreva “certo”, mas não cria oportunidades para que ele possa refletir sobre as dificuldades ortográficas do  português. Acreditamos que é preciso investir mais em ensinar, de fato, a ortografia, em vez de se preocupar em avaliar o conhecimento ortográfico dos alunos. É necessário entendermos que a ortografia é uma convenção social cuja finalidade é ajudar na comunicação através da escrita. Muitas pessoas pensam que a ortografia é uma imposição inútil e que tudo se tornaria mais fácil “se pudéssemos escrever as palavras tal como falamos”. Ao cogitar essa idéia, essas  pessoas esquecem que na língua oral as palavras são pronunciadas de formas variadas. Falantes de diferentes regiões, pertencentes a diferentes grupos socioculturais, ou nascidos em diferentes épocas, pronunciam as mesmas palavras de formas diferentes. Essas formas de  pronúncia são válidas e não podem ser consideradas “certas” ou “erradas”. Não existe uma única forma de pronúncia, nem uma forma que possamos considerar melhor que as outras. Segundo Artur Gomes de morais 1 , em seu livro “aprender a ortografar”, a ortografia funciona como um recurso capaz de “cristalizar” na escrita as diferentes maneiras de falar dos indivíduos de uma mesma língua. Assim, se escrevermos de forma unificada, poderemos nos comunicar mais facilmente, e cada um continuará tendo a liberdade de pronunciar o mesmo texto à sua maneira quando, por exemplo, o lê em voz alta. Deixar de ensinar ortografia nos parece uma atitude ingênua e até mesmo incorreta, que acarreta sérios problemas sociais e políticos. No mundo de hoje, encontramos a cada dia uma quantidade enorme de livros para ler, e a correção dessas mensagens escritas é um aspecto de suma importância para facilitar a comunicação (leitor  –  texto). Além disso, escrever conforme a norma é uma exigência da sociedade para com o indivíduo dentro ou fora da escola. Podemos constatar, portanto, que, ao deixar de ensinar a ortografia, a escola está contribuindo  para distinguir entre bons e maus usuários da língua escrita. 1  Artur Gomes de Morais é professor na Universidade Federal de Pernambuco desde 1988 e doutor pela Universidade de Barcelona.

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Ortografia: Uma questão a ser levada a sério

Alexander Pereira Frade (UFOP)

Introdução

Com base nos estudos de Emília Ferreiro, Luiz Carlos Cagliari, Mary A. Kato, dentre outros,discutiremos, neste trabalho, a aprendizagem da ortografia, promovendo uma reflexão sobre arelação entre ortografia e língua falada, o estatuto do “erro” ortográfico e o conceito de norma

ortográfica. Em seguida, tendo como modelo o estudo empírico desenvolvido por ArturGomes de Morais (1996), examinaremos a relação entre êxito e fracasso, no uso da ortografia,entre alunos da terceira e quarta séries do ensino fundamental do município de Dionísio/MG.Finalmente, apresentaremos algumas estratégias que visam auxiliar na explicitação conscientedos conhecimentos ortográficos.

A educação está passando por um momento de renovação quanto ao ensino de língua materna,aproximando o que se aprende na escola do uso efetivo que se faz da linguagem fora docontexto escolar. Apesar desta renovação, a escola “cobra” do aluno que ele escreva “certo”,

mas não cria oportunidades para que ele possa refletir sobre as dificuldades ortográficas do português. Acreditamos que é preciso investir mais em ensinar, de fato, a ortografia, em vezde se preocupar em avaliar o conhecimento ortográfico dos alunos. É necessário entendermosque a ortografia é uma convenção social cuja finalidade é ajudar na comunicação através daescrita.

Muitas pessoas pensam que a ortografia é uma imposição inútil e que tudo se tornaria maisfácil “se pudéssemos escrever as palavras tal como falamos”. Ao cogitar essa idéia, essas

 pessoas esquecem que na língua oral as palavras são pronunciadas de formas variadas.Falantes de diferentes regiões, pertencentes a diferentes grupos socioculturais, ou nascidos emdiferentes épocas, pronunciam as mesmas palavras de formas diferentes. Essas formas de

 pronúncia são válidas e não podem ser consideradas “certas” ou “erradas”. Não existe uma

única forma de pronúncia, nem uma forma que possamos considerar melhor que as outras.

Segundo Artur Gomes de morais1, em seu livro “aprender a ortografar”, a ortografia funciona

como um recurso capaz de “cristalizar” na escrita as diferentes maneiras de falar dos

indivíduos de uma mesma língua. Assim, se escrevermos de forma unificada, poderemos noscomunicar mais facilmente, e cada um continuará tendo a liberdade de pronunciar o mesmotexto à sua maneira quando, por exemplo, o lê em voz alta.

Deixar de ensinar ortografia nos parece uma atitude ingênua e até mesmo incorreta, queacarreta sérios problemas sociais e políticos. No mundo de hoje, encontramos a cada dia umaquantidade enorme de livros para ler, e a correção dessas mensagens escritas é um aspecto desuma importância para facilitar a comunicação (leitor –  texto). Além disso, escrever conformea norma é uma exigência da sociedade para com o indivíduo dentro ou fora da escola.Podemos constatar, portanto, que, ao deixar de ensinar a ortografia, a escola está contribuindo

 para distinguir entre bons e maus usuários da língua escrita.

1  Artur Gomes de Morais é professor na Universidade Federal de Pernambuco desde 1988 e doutor pelaUniversidade de Barcelona.

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 É importante que tenhamos um novo tipo de ensino que trate a ortografia como um objeto dereflexão. Para realizar este ensino, é necessário compreender como está organizado esseobjeto de conhecimento, a norma ortográfica, ajudando assim o aluno a compreendê-la e usá-

la de forma adequada.

Para Morais, uma primeira distinção a ser considerada é que transgredir um sistema denotação e transgredir a norma que rege o seu uso são coisas distintas. Emília Ferreiro e AnaTeberosky no livro Psicogênese da língua escrita, nos mostram que a maioria das crianças,desde os cinco anos de idade, conhecem determinadas características da notação alfabética: aforma das letras, a direção da escrita na linha, a combinação entre as letras, etc. Muitascrianças além de conhecerem que existe uma relação entre o que está escrito e o que se diz,sabem como escrever algumas palavras, e ao fazê-lo põem em evidência esse conhecimentomesmo quando sua escrita não seja convencional do ponto de vista ortográfico. É evidenteque na evolução da aprendizagem da notação alfabética, primeiramente se aprendem as regras

do sistema e, em seguida, as normas ortográficas. Uma criança que não escreveortograficamente correto, já conhece as regras fundamentais do sistema ortográfico e nãotransgride as regras que regem o funcionamento da notação alfabética. O que ela transgride éa norma ortográfica, porque não a conhece.

Escrever conforme a norma padrão é uma das preocupações mais comuns entre professores.Há alguns que ficam ansiosos, e até frustrados, quando não conseguem fazer com que seusalunos escrevam “corretamente”. 

 No entanto, se, por um lado, há professores preocupados com a ortografia, há outros que ponderam a língua como um organismo que deve desenvolver-se com total liberdade,considerando que em termos de linguagem não existe incorreção. Não concordamos com as

 posições extremas: de aceitação total de qualquer forma de manifesto escrito e de aceitação doerro ortográfico, uma vez que a sociedade exige do indivíduo da língua comportamentosregulados por normas. Contudo, a escola precisa propiciar ao aluno momentos em que ele

 possa dizer e escrever com suas palavras o seu pensamento, construindo o seu conhecimentoem vez de se limitar a repetir a linguagem do professor.

Segundo Koch (1995)2, apesar de acometer desvios, o aluno age de modo reflexivo e, emmuitos casos, baseia-se em usos perfeitamente possíveis, segundo as regras ortográficas donosso sistema de escrita. Quando usa “meza” ao invés de “mesa”, ele o faz com base no

conhecimento de que o f onema /z/ pode ser representado pela letra “s”. O nosso objetivo édeixar claro que os chamados “erros” são desvios quanto às regras ortográficas da escrita,

 portanto, não são dificuldades estranhas e, na maior parte dos casos, têm razões plausíveis enão ocorrem casualmente. Todavia, é preciso “dar tempo ao tempo” e acompanhar a trajetória

do aluno ao se apropriar da grafia “correta”, segundo as regras do sistema da língua escrita.

Enfim, as relações entre linguagem oral e linguagem escrita/ortografia, tornam-se difíceis portratar-se de dois níveis diferentes: um nível mais concreto e individual, muito próximo dosenunciados reais, e o outro muito mais abstrato e social, próximo da língua como sistema, talcomo ela se encontra no dicionário. Blanche-Benveniste ((1993), apud MORAIS, 1996) aoentrevistar crianças entre oito e dez anos sobre o tema dos franceses que “falam bem” ou que

2  KOCH, Ingedore V. A aquisição da escrita e textualidade. In: Cadernos de estudos lingüísticos,Campinas.V.29, p.109-117 (1995). Este artigo apresenta a relação entre a concepção de texto que a criança

 possui na alfabetização e a influência de tal concepção na sua produção textual.

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“falam mal”, obteve resultados surpreendentes. Alguns dos entrevistados responderam que

eles pertenciam ao grupo dos que “falavam mal” porque falavam com “erros de ortografia”.  

Capítulo I

Aprender a ortografia

1.1  –  Introdução

O domínio da ortografia (palavra grega composta de “Orthos”, “direito, justo”, e de “gráfho”,

“gravar, desenhar, escrever”) é o próprio domínio da escrita formal, representação da língua por meio de sinais grafados: hieroglíficos, lineares, cuneiformes, alfabéticos, etc. Acombinação desses sinais  –  letras, pontuação, acentos ou sinais diacríticos  –  produzindo, por

convenção, determinados sons, traduz a vivência da língua do sujeito falante.A ortografia portuguesa, como é sabido, passou por três estágios bem delimitados: 1) ofonético, quando havia a preocupação de escrever as palavras em harmonia com a pronúncia;2) o etimológico, que pretendeu restaurar o modelo greco-latino clássico, inserindo noshábitos gráficos números anacrônicos, como letras dobradas (delle, communicar) e os dígrafoshelenizantes (rh, th, ph e ch); 3) o simplificado, quando, a partir do trabalho de Aniceto dosReis Viana, intitulado “Ortografia Nacional” (1904), se estabeleceram os princípios que

nortearam os atuais padrões ortográficos.

A norma ortográfica possibilita uma garantia de estabilidade e a confiabilidade da notação das

 palavras de uma língua. Mas, ao mesmo tempo, se desenvolveu a noção de erro ortográficocom todo o seu sentido de culpa e transgressão da norma. Quando a norma escrita estáestabelecida, a única possibilidade para os usuários é aprender a reproduzi-la.

Para “ortografar” uma palavra, Artur Gomes de Morais afirma que a relação entre o correto eo errado abrangeria diferentes possibilidades: a) ou o correto já está automatizado e fica forada decisão consciente do sujeito; b) ou existem dúvidas sobre o correto e é necessárioconsultar a “escrita autorizada” (procurando recuperá-la na mente ou num dicionário); c) oucomete-se um erro por desconhecimento da norma.

Aprender ortografia não é um processo passivo, não é um simples “armazenamento” de

formas corretas na memória. Ainda que a norma ortográfica seja uma convenção social, osujeito que aprende a processa ativamente. Os erros infantis demonstram perfeitamente isso.Quando um aluno “erra”, está nos revelando que não é um mero repetidor das formas escritas

que vê ao seu redor.

Para estudarmos o aprendizado da ortografia, optamos por verificar em que medida orendimento ortográfico observável tem a ver com o nível de conhecimentos que o alunoelaborou internamente sobre a norma ortográfica. Para isso, nos inspiramos em uma pesquisafeita por Artur Gomes de Morais, que também teve este mesmo intuito.

1.2 

 –  O trabalho de Morais

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A pesquisa de Morais foi inspirada num modelo psicológico proposto por Annette Karmiloff –  Smith3, segundo o qual os avanços de rendimento do aprendiz - numa determinada área deconhecimento - estariam relacionados ao nível de explicitação sob o qual ele elaborou seusconhecimentos específicos daquela área. Tal processo pode inclusive culminar num nível de

explicitação verbal consciente, quando o sujeito é capaz de verbalizar as restrições queutilizou para produzir uma conduta correta no domínio de conhecimento em questão.

Depois de situar o marco teórico a partir do qual enfocou o aprendizado da ortografia, o autordescreveu os sujeitos pesquisados e o tipo de ensino da ortografia que recebiam. Em seguida,tratou das principais evidências obtidas em três tarefas (uma situação de ditado de texto, umasituação de reescrita com transgressões intencionais e uma entrevista clínica) que visavam aidentificar quais conhecimentos das restrições da norma ortográfica do português osaprendizes tinham representado mentalmente sob diferentes níveis de explicitação.

 Nas pesquisas que desenvolveu nos últimos anos com crianças brasileiras e espanholas,

Morais procurou alcançar uma melhor compreensão das diferenças observadas no rendimentoortográfico, contrastando as produções da criança com indicadores do nível de explicitaçãoem que ela havia elaborado seus conhecimentos acerca das restrições da norma ortográfica.

Como Karmiloff-Smith propunha que o rendimento ortográfico tinha relação com outrosdomínios de conhecimento, Morais partiu da hipótese de que um melhor rendimento emortografia estaria vinculado a um conhecimento explícito das restrições do objeto que ascrianças estavam aprendendo. Deste modo, esperava-se que os alunos com melhor rendimentoem ortografia demonstrassem mais conhecimento explícito (inclusive em nível verbalconsciente) das restrições da ortografia do português. Para ter acesso ao nível de explicitaçãodas representações ortográficas dos estudantes que examinou, pediu-lhes que, um dia depoisde anotar um texto ditado, o reescrevessem “como se fossem um menino estrangeiro que fala

 perfeitamente o português, mas que escreve com muitos erros de ortografia”. Esta situação de

"transgressão Intencional", inspirada em Karmiloff-Smith (l990), partia da premissa defendida por esta autora (idem) e por Tolchinsky & Teberosky (l992), segundo a qual, para transgredirintencionalmente, o sujeito precisa ter um conhecimento explícito da norma, princípio ourestrição que está violando. Posteriormente à realização desta tarefa de transgressão, queinformava sobre quais representações ortográficas os estudantes tinham reescrito mentalmenteem um nível explícito, realizou também entrevistas clínicas, as quais foram conduzidasindividualmente pelo autor deste trabalho. Além de investigar quais conhecimentos os alunos

 podiam explicitar verbalmente, foi-lhes indagado sobre a importância de se escrevercorretamente e sobre as razões para fazê-lo ou não.

Capítulo II 

2.1 - O rendimento ortográfico demonstrado pelas crianças mineiras 

 Nosso ponto de partida foi abordar as relações entre normas, erro e o nível de explicitação dasrepresentações ortográficas dos alunos. Para isso, optamos, por criar uma situação que nos

 permitisse ter acesso a este nível de explicitação, pois não e interessante confiarmos somenteem entrevistas ou questionários que exigem da criança uma capacidade de verbalizar os seus

3 Essa autora resume a sua teoria no livro Beyond modulary: a developmental perspective on cognitive Science,Ma, MIT Press / Bradford,1992.

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conhecimentos em ortografia. A solução que encontramos foi criar uma situação detransgressão, tal como proposto por Morais (1996).

Se transgredir intencionalmente pode ser considerada uma forma de mudar distinta daquela do

“errar” e que põe em destaque o conhecimento consciente da norma, então a proposta detransgressão no âmbito ortográfico poderia permitir a abordagem das relações entre norma,erro e explicitação das representações ortográficas dos alunos. De acordo com a hipótese deMorais, as crianças que apresentassem maior êxito ao escrever “corretamente” com a intençãode fazê-lo seriam também mais capazes de transgredir deliberadamente a normativaortográfica.

Examinamos, então, dois grupos de crianças mineiras, de terceira e quarta séries do ensinofundamental de uma escola pública localizada no município de Dionísio. No primeiro dia,assim como Morais, fizemos o ditado de um texto descritivo (ver figura 1) 4, selecionado demodo a representar os diferentes casos de convencionalidade regular e irregular do português

e que tenham uma grande freqüência de uso entre os alunos. No dia seguinte, voltamos à salade aula e devolvemos a cada aluno os seus respectivos ditados, juntamente com uma canetavermelha, e pedimos às crianças que relessem o texto com cuidado para corrigir todos os errosque encontrassem: “como se elas fossem o professor que estivesse corrigindo”. No terceiro

dia, devolvemos às crianças os seus trabalhos escritos e revisados e pedimos quereescrevessem o mesmo texto, mas, desta vez, “como se fossem um estrangeiro”, um menino

que “fala bem o português”, mas comete muitos erros na hora de escrever”.  

Após dois dias, entrevistamos a metade dos alunos da terceira série que tiveram a maior e amenor pontuação no ditado. O mesmo foi feito com a quarta série. Nosso objetivo foiinvestigar a relação entre a possibilidade de explicitar conscientemente os conhecimentosdemonstrados na ortografia, quando “brincaram de estrangeiro”, e a capacidade de

verbalizarem tais conhecimentos. Levando em consideração os erros intencionais produzidos, perguntamos por que a criança estrangeira teria-se enganado em algumas palavras.Perguntamos, ainda, sobre o significado de “ortografia” para eles e sobre sua importância. 

FIGURA 1

Bacharel é um famoso cavalo de minha cidade. Sempre passeia com umas ferraduras prateadas e uma sela chinesa, que lhe dão um ar extravagante. Conforme me disseram, seudono, um simpático estancieiro português, pagou pelo animal um preço exagerado, hádezessete anos.

Bacharel é gozado, tem seus truques e jeitinhos. Quando corre pelos campos, ziguezagueiacomo um míssil atômico ,em direção ao horizonte. Toda manhã aproveita para roubarabacaxis, berinjelas e maxixes das fazendas por onde passa. Mas vigia muito para que não lheapanhem nessas fugidas.Como outros cavalos, tem ojeriza aos cachorros rabugentos e aos besouros selvagens,zumbindo na sua orelha. Porém Bacharel não teme a ninguém nem a nada, nem sequer achegada da velhice. Quando jovem, sonhou em servir o exército e guerrear noutras regiões.Hoje, já mais tranqüilo, prefere auxiliar humildemente seu amo.Talvez Bacharel pareça desobediente para as pessoas que não o conhecem. Mas é, semduvida, a admiração do vilarejo, fonte de orgulho para seu dono e de inveja para toda a gente,sejam cachaceiros ou beatas.

4 Resolvemos utilizar o mesmo texto de Morais para realizarmos o ditado, pois, o texto em questão foi criado para atender aos objetivos de uma pesquisa psicolingüística.

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2.2 –  Cotejando os resultados de Recife com os de Minas Gerais

Cinqüenta e oito alunos de uma escola pública de Recife participaram da pesquisa feita porMorais. As crianças estavam concluindo o 2º, 3º e 4º anos de instrução formal em leitura e

escrita. Já a nossa pesquisa, em Minas Gerais, foi realizada com cinqüenta e quatro alunos queestavam concluindo a 3ª e 4ª séries do ensino fundamental, também de uma escola pública.5 

A partir da observação em sala de aula e de entrevistas realizadas com os professores dasturmas estudadas, constatou-se que as duas escolas (de Minas Gerais e de Recife) tentavam

 pôr em prática um ensino da língua escrita de orientação construtivista e que não tinhammetas específicas para o ensino de ortografia em cada série do 1º Grau. Não havia uma carga-horária específica para atividades de ensino da ortografia. As atividades que podiam-se prestara este fim se restringiam a ditados de palavras ou de textos, e a correção dos ditados eexercícios era sempre coletiva, a partir do modelo correto apresentado no quadro-de-giz. Comrespeito à produção de textos espontâneos, observou-se que esta se dava uma vez por semana

na escola pública dos dois estados em questão. No entanto, estes textos nem sempre eramcorrigidos e as crianças não eram estimuladas a revisá-los e se autocorrigissem.

O baixo rendimento apresentado pelos alunos dos dois estados se revelou em todos os principais âmbitos da notação ortográfica da língua (correspondências fonográficas,acentuação, segmentação das palavras no texto, marcação da concordância gramatical).Segundo Morais, considerando recentes evidências da literatura psicológica sobre a relaçãoentre o desempenho ortográfico e exposição à língua escrita impressa, esse baixo rendimentofoi interpretado como uma decorrência, sobretudo, das escassas oportunidades de exposição àescrita impressa vivida pelos alunos de classe popular, não só em seus lares, mas também naescola.

Os alunos com melhor rendimento ortográfico (tanto de Recife quanto de Minas Gerais), noditado feito com a intenção de escrever sem erros, foram capazes de realizarsignificativamente mais transgressões intencionais quando escreveram produzindo errosintencionais do que os alunos com baixo rendimento, o que foi interpretado, por Morais, comouma demonstração de que tinham mais conhecimento explícito sobre as restrições daortografia de nossa língua. Esta diferença entre os “melhores” e os “piores” alunos não diz

respeito apenas à quantidade, mas ao próprio grau de “sofisticação” e criatividade dos erros

inventados. As transgressões dos alunos com baixo rendimento ortográfico indicavam menosconhecimento da norma, uma vez que não priorizava os pontos mais críticos da nossaortografia. Exemplificando, agregavam ou omitiam letras (Em Recife, transformaram

“cavalo” em “caalo”; em Minas Gerais, transformaram “minha” em “linha”). Já os “bons”alunos em ortografia, utilizaram em suas transgressões os “pontos mais problemáticos” da

norma do português, como, por exemplo, os erros produzidos devido a pronúncia semelhanteà da palavra original (Em Recife, transformaram “hoje” em “oji”; em Minas Gerais,

transformaram “dono” em “donu”). 

De acordo com a pesquisa de Morais, ao serem entrevistados, os alunos da escola pública deRecife revelaram uma quase impossibilidade de verbalizar quais restrições da norma tinhamviolado. Em lugar disso, explicavam que para aprender aquelas correspondências era preciso"copiar", "fazer igual à professora". Demonstravam tratar as restrições de tipo regular ouirregular como algo que "se aprende copiando", "imitando o certo". Os alunos de Minas

5 Os resultados da pesquisa feita em Minas Gerais são parciais, pois ainda não foi feita uma análise maisdetalhada acerca do corpus.

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Gerais, também tiveram dificuldade em explicar verbalmente porque o menino estrangeirohavia cometido os erros que eles apontaram.

Os desvios ortográficos que todos os alunos de Minas Gerais, sem distinção, conseguiram

explicar foram quanto ao uso de “r” e “rr” , “m” e “n”. A maioria dos alunos com bomrendimento ortográfico, ao serem indagados como sabiam que, por exemplo, “humilde” se

escreve com “h”,  responderam que viram em livros, no dicionário, ou que liam muito e jáconheciam esta palavra. Já os alunos com baixo rendimento em ortografia disseram que nãosabiam explicar ou limitaram-se a dizer que sabiam “porque é assim que se escreve”. 

Em relação às perguntas “O que você endente por ortografia?” e “Por que é importante

escrever certo?”, os alunos com bom desenvolvimento ortográfico responderam,

respectivamente, que ortografia é escrever certo, e enfatizaram a importância da ortografiatanto no âmbito escolar quanto para a vida, para o trabalho, como por exemplo, escrever umacarta, sem “erros”, para um amigo. Já os alunos com baixo rendimento ortográfico não

souberam responder à primeira pergunta e se limitaram a responder a segunda somente parafins escolares. Como, por exemplo, um aluno da 3ª série, que afirmou que escrever certo éimportante porque “quando eu fizer uma prova, a tia não tira ponto”.

Para Morais, cabe à instituição escolar assumir a responsabilidade de promover umaaprendizagem adequada e em nível explícito dos aspectos subjacentes à notação escrita do

 português, aspectos que o indivíduo precisa conhecer para ter êxito em ortografia.

3. Considerações Finais

3.1 - Estratégias para o ensino da ortografia

A capacidade de transgressão revela um conhecimento já adquirido e explicitado da norma. Adúvida, por sua vez, revela o início do acesso consciente à ortografia, uma vez que o escritornão dispõe de solução pessoal conhecida e precisa fazer a consulta.

Para ajudar os alunos a tornar os conhecimentos ortográficos conscientes, Morais (1996)afirma que devemos estimular os jogos de transgressão e também as dúvidas, como, porexemplo, perguntando-lhes “Com que letra se escreve...?”, “Com que letra escreveria alguém

que não sabe?”, “Com que letra escreveria alguém que sabe?”, etc. Este tipo de exercício tem

como finalidade levantar uma reflexão acerca das possíveis alternativas gráficas para que ascrianças saibam qual alternativa corresponde à solução normativa. Para Morais, é importante

que o professor intervenha durante o processo de produção de escrita, estimulando seusalunos a duvidar e a levantar transgressões hipotéticas sobre o que estão escrevendo.

Propagar a dúvida e possibilitar jogos de transgressão é possível não só imitando umestrangeiro, como foi feito na pesquisa, mas também imitando diferentes formas dialetais.Com isso, os alunos adquirirão consciência de que os indivíduos de todos os grupos sociais(ou regiões) realizam normas orais distintas entre si e distintas quanto à norma escrita.

Além de utilizar as idéias já mencionadas, na tentativa de estabelecer a “normativa

ortográfica” nas crianças, é necessário orientá-las a solucionar sozinhas as dúvidas quanto àgrafia correta das palavras através do dicionário. Segundo Morais, a atitude de alguém que

 procura no dicionário a notação correta para uma palavra não exige simplesmente a dúvidacega, mas sim a formulação de alternativas, a antecipação de soluções, como perguntas dotipo: “Se /umano/ não começa com “u”, com que letra começará?”  

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Uma prática pedagógica interessante que os alunos da pesquisa nos ensinaram é que a revisãodos escritos é uma oportunidade para duvidar das soluções ortográficas que tinham adotado.Mesmo que a atividade de autocorreção não produza bons resultados, possibilitará aintrodução de um maior número de mudanças corretas que incorretas. Com isso, conclui-se

que as práticas de revisão são um ingrediente para a formação de uma atitude mais rigorosa para com a norma socialmente exigida no ato de escrever.

É evidente que as crianças quando estão adquirindo a escrita ortográfica tendem a dar ênfaseao som inicial ou final das palavras, como uso de rreino para reino, boua para boa, correl 

 para correu, ou ainda, buscãdo para buscando. Um jogo agradável que pode ser realizado para propiciar à criança conhecer a forma adequada da escrita destas palavras foi proposto pela pedagoga Sabrina Garcez6, que consiste na divisão da turma em equipes, onde cada uma seráresponsável por um mural em que constem as indicações conforme a figura 2.

A coluna das palavras terá retângulos contendo palavras selecionadas dentre os erros

ortográficos cometidos pelas crianças, sempre com duas grafias: a correta e a errada. Cadagrupo deverá então separá-las entre as colunas vazias, estabelecendo a diferença entre a formacomo algumas vezes falamos e a escrita de acordo com a norma ortográfica. Ganhará o grupoque tiver mais acertos no quadro final.

Pode-se dar seqüência a essa atividade utilizando as mesmas palavras para a construção defrases; para a organização de um bingo, com cartelas confeccionadas pelos alunos; paraelaboração de listas de consulta para a sala, etc.

Para concluir, é necessário refletirmos sobre o trabalho escolar acerca da ortografia, quehabitualmente tem como prioridade a cópia repetitiva e exercícios em que o aluno respondesem inferir nem deduzir nada. Na realidade, essas estratégias parecem não corroborar na

explicitação consciente dos conhecimentos ortográficos, e apresentam, ainda, o risco de tornarautorizada a escrita errônea, não abrindo espaço para a consulta da escrita autorizada.

A partir do que nos ensinaram as crianças de nossa pesquisa, acreditamos que as intervençõesde correção mais adequadas se caracterizam por acompanhar o próprio momento da produçãoe por fornecer modelos de escrita autorizada, estimulando os alunos a procurar as formasalternativas: duvidando, antecipando soluções, antecipando intencionalmente que soluções

 proporia alguém que não conhecesse a norma, etc. Isto porque, segundo Morais, conhecer anorma é imprescindível para que se possa optar entre segui-la ou transgredi-la.

FIGURA 2

6 Sabrina Garcez é pedagoga com Especialização em Educação Infantil e Especial, e professora das RedesPúblicas Municipais de Ensino de Porto Alegre e Alvorada/RS.

Palavras Como falamos Como escrevemos

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Referências bibliográficas 

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 _____________. Reflexões sobre a alfabetização.FRANCHI, Egle Pontes. Pedagogia da alfabetização: da oralidade a escrita. São Paulo:Cortez Editora, 1988.GARCEZ, Sabrina. Revista do Professor  –  Janeiro a março –  ano XIX, nº 73. Porto Alegre,V.19 –  p.14-16, 2003.KATO, Mary Aizawa. No mundo da escrita. Uma perspectiva psicolingüística. SãoPaulo:Editora Atica, 1986.MORAIS, Artur Gomes de. Ortografia: ensinar e aprender. São Paulo: Editora Atica, 2001.