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IDENTIDADE E DIFERENÇA REALISTA-NATURALISTA COM
ENFOQUE EM ALUÍSIO AZEVEDO
Révia Lima Herculano
Acabara de ruir a ambiência subjetivista romântica, que alimentava o Eu interior e priorizava a sensação e a imaginação ora possibilitando vôos de transcendência ora telúricos conflitos quando,em
meados do século XIX, novos princípios eclodem; sistematizam-se inúmeras correntes filosóficas:ouve-se o grito revoltado de Proudhon e seu socialismo utópico; vê-se o emergir do pensamento de Taine no
qual meio, raça e momento determinam a atitude do homem. Neste entrecruzar de ideologias e tendências configura-se, na
cultura ocidental, um estilo que, ao priorizar o não-Eu,abandona in
dagações teológicas, metafísicas e restringe-se à objetividade.Surge a Escola Realista, que pressupõe um comportamento científico, republicano e socialista revestido de idéias antimonarquistas e anticlericais.
Assim,com a publicação,na França, da revista Le Realisme nasce em 1857 esta nova Escola, consagrada com a publicação de Madame Bovary de Gustave Flaubert, obra que se contrapõe ao subjetivismo,já aludido, e ao exagero sentimental dos ultra- românticos.
Forte é o traço determinista do Movimento, que associa, intimamente, universo, natureza e o homem, e os torna sujeitos, como
organismos,aos mesmos princípios e finalidades.Até fatos sociais e de teor psicológico são submetidos a leis universais e são manifestações da matéria.
Na verdade, o escritor realista deve se fundamentar no evolucionismo de Darwin, no positivismo de Comte,nas ciências médicas e suas áreas afins para dar um cunho científico à obra. Necessita tam
bém se apegar à lógica,priorizar a inteligência e a razão como verdade universal e submeter seus protagonistas a determinantes biológicos e
sociais. Nenhum comportamento do personagem (realista)é gratuito.
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Em Portugal, o sucesso de Eça de Queiroz com as obras O Cri
me do Padre Amaro e O Primo Basílio concorreu não só para consagrá-lo
mas para tornar vitoriosa a Escola a que se filiava.
No Brasil,Machado de Assis , no auge de seu ficcionismo,escreve
"Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Quincas Borba", obras sinalizadoras
da nova fase do autor que passa, daí em diante, a criticar valores bur
gueses. Valha acrescentar que a temática realista preocupa-se em con
servar o aspecto ético- educativo,sendo seu sistema sintático subme
tido à rigorosa ordenação, cultivando,assim, um claro estilo.O próprio
Eça torna-se romântico em suas formulações e, na aguçada ótica da
professora Noemi Elisa Aderaldo nele aflora o messianismo português
em inúmeras passagens de sua obra prenhes de nostalgia renovadora,
de esperança. "Os realistas,sim, chegam à utopia, ao buscarem aliança entre
arte, filosofia e ciência",diz Noemi Elisa .
Não nos parece pretencioso afirmar que Realismo e Naturalismo
brotam de um mesmo terreno, embora não sigam a mesma vertente.
Foi com o surgimento da obra Thérese Raquin do escritor fran
cês Érnile Zola, que se acentuou o gosto em submeter persona
gens literárias à análise científica.N a verdade, desde Balsac a ciência
impulsionava,de algum modo,o romance. O autor de A Mulher de Trinta
Anos afirmava ser obrigatório não sacrificar a verdade em detrimento
do artifício fantasioso. Flaubert,por exemplo,pesquisou em tomos médicos a síndrome
do envenenamento por arsênico com que detalhou a morte de Emma
Bovary,tendo, certamente, o reforço da inegável influência deTaine .
O Naturalismo é,por assim dizer, a literatura da continuidade, da
horizontalidade "metonímica",da arte voltada para o exterior,contendo
a verdade em si mesma.E o estilo que grafita mazelas sociais, fotografa
o fatalismo,a deformação cultural, trabalhando com exceções existentes
na sociedade.É a arte em natureza bruta.
Aqui no Brasil, Aluísio Azevedo torna-se relevante naturalista
com O Mulato,Casa de Pensão e O Cortiço, ao tempo em que Raul Pom
péia projeta-se nacionalmente com O Ateneu e Artur Azevedo,irmão de
Aluísio,autor teatral e poeta, publica Contos Possíveis.
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Discípulo de Eça de Queiroz e principalmente de Zola,o jovem maranhense consagrou-se, muito moço, como um dos melhores romancistas do Brasil e com certeza o mais audacioso.
Ao comprovar o realismo social com escritura considerada obscena Aluísio compreende que a função do artista deve ultrapassar à estética.Deste modo,com tintas fortes, negras até,denuncia a miséria da condição humana como forma de sintonizar, politicamente, com a grande massa, usando uma linguagem que a mesma entende.
O romance que lhe deu renome nacional e o levou de volta ao Rio de Janeiro foi o Mulato que concilia seus dois talentos:as letras e a pintura.
Numa confissão revelada a Coelho Neto, o próprio esteta reconhece:"Fiz-me romancista, não por pendor, mas por me haver convencido da impossibilidade de seguir a minha vocação que é a pintura. Quando escrevo, pinto mentalmente.Primeiro desenho os meus romances,depois redijo-os".
Vale informar que, na Casa de Balsac, em Paris, vê-se, ainda hoje,as figurinhas de massa ou de barro das quais o escritor fazia uso para se familiarizar com os personagens que ia colocando no papel.
Aluísio valia-se do desenho fotográfico,daí a clareza de seu texto literário.
A descrição dinâmica,quase pictórica de São Luís do Maranhão, em O Mulato, remete-nos a uma fotografia nua e imediata da realidade. O parágrafo de abertura coloca-nos sob sintomáticos elementos sensoriais e numa seqüência de impressões comprobatórias,ao descrever um dia de calor na cidade brasileira:
"Era um dia abafadiço e aborrecido.A pobre cidade de São Luís do Maranhão parecia entorpecida pelo calor. Quase que se não podia sair à rua: as pedras escaldavam; as vidraças e os lampiões faiscavam ao sol como enormes diamantes; as paredes tinham reverberações de prata polida; as folhas das árvores nem se mexiam; as carroças de água passavam ruidosamente a todo instante, abalando os prédios; e os aguadeiros, em mangas de camisa e pernas arregaçadas, invadiam sem-cerimônia as casas para encher as banheiras e os potes. Em certos pontos não se encontrava viva alma na rua; tudo estava concentrado, adormecido; só os pretos faziam as compras para o jantar ou andavam no ganho."
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Rico em elementos realistas, o trecho descreve um mundo áspero, cru,pleno de personagens típicas. E o que é interessante,não individualizadas.
Faz-se oportuno observar a grande semelhança de significantes
no parágrafo de abertura com o do livro Germina4 de Émile Zola, o qual anuncia,além das características acima citadas, uma descritiva obediente à
rigorosa ordenação lógica e a um latente processo coordenativo. Tanto quanto no texto acima, é visível a preocupação do autor
em lapidar a verdade com minúcias, em apontar a miséria de maneira
impiedosa. (Vejamos.) "Na planície lisa, numa noite sombria, sob um céu sem estrelas,
um homem caminhava, sozinho, pela estrada que vai de Marchiennes
a Montsou, dez quilômetros retos de calçamento cortando os campos de beterrabas. Nem mesmo o chão negro ele percebia, e a sensação do vasto horizonte plano apenas lhe chegava quando o vento de março soprava em gélidas lufadas, como em alto-mar, depois de terem batido léguas e mais léguas de paludes e terras escalvadas. Nem uma sombra de árvore manchava o espaço; a estrada se alongava numa planura de
quebra-mar, em meio à escuridão que cegava." Segundo Coelho Neto, Aluísio Azevedo era um entusiasta dos
romances de Zola e, sendo homem de poucos assomos,chegava a tracejar, com o cachimbo entre os dedos, a marcha dos mineiros em Montsou do famoso Germinal,obra documentada que influenciou, sobremaneira, a elaboração de O Cortiço.
Eça de Queiroz com O Crime do Padre Amaro renovou de algum
modo a escrita de Aluísio,mas, foram as lições do mestre francês que o ensinaram a ser,ao invés de escritor de uma trama, romancista de multidão.
Diz-se também de um Eça com sabor naturalista, que teria influenciado, no fulcro da ação criminosa de Padre Amaro, Adolfo Caminha, em A Normalista, quando o mesmo alcança o ultra-realismo já em sua fase final.Em ambos não há ônus para o crime por sedução. Grávidas, as duas personagens Amélia do autor português e Maria do
Carmo do autor cearense são escondidas em locais distantes e têm seus filhos assassinados.
Nesse painel de sirnilitudes estão os desfechos de O .Cortiço, e de Nana, de Zola.São duas das mais patéticas cenas da novelística na-
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ruralista, sobrecarregadas do elemento irónico que lhes caracteriza a trágica densidade.
Diz o primeiro: " ... Bertoleza então,erguendo-se com ímpeto de anta bravia, re
cuou de um salto e,antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de lado a lado.
E depois emborcou para a frente,rugindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue.
João Romão fugira até ao canto mais escuro do armazém, tapando o rosto com as mãos.
Nesse momento parava à porta da rua uma carruagem. Era uma comissão de abolicionistas que vinha,de casaca,trazer-lhe respeitosamente o diploma de sócio benemérito.
Ele mandou que os conduzissem para a sala de visitas." No mesmo tema de patologia social, amoralismo e sublinhada
indiferença Zola recria Nana, a prostituta de alto preço que arruína homens ricos e cuja morte coincide com os primeiros estouros da guerra. O cadáver da protagonista, descrito com detalhes do horrendo, é abandonado pelos amigos,apontando o autor para a falsidade e para a enganadora riqueza do império.
" ... A Vênus decompunha-se.Parecia que o vírus por ela contraído nas valetas, nas podridões toleradas,acabava de lhe subir ao rosto, apodrecendo-o.
O quarto estava vazio.Um grande sopro desesperado subia do bulevar e inflava a cortina:
A Berlim! A Berlim!A Berlim!" Para encerrar, em contraponto a tanta crueza, gostaria de men
cionar o gênio do romance, Marcel Proust, quando divisa o amor e mede espaço e tempo com o coração. Depois, lembrar o apóstolo Paulo em sua primeira carta aos Coríntios, no versículo XX do capítulo VI,fazendo a seguinte exortação:
"Porque fostes comprados por um grande preço. Glorificai a Deus no vosso corpo".
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