ignácio rangel - criminalidade e crise econômica

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CRIMINALIDADE E CRISE ECONÔMICA Ignacio Rangel Economista, Professor de Economia, autor de inúme- ros ensaios em publicações especializadas, autor de vá- rias obras entre as quais: Dualidade Básica da Econo- mia Brasileira; Introdução ao Estudo do Desenvolvi- mento Econômico Brasileiro e A Inflação Brasileira. Caracterização da Crise Econômica Que o Brasil — com seu notório talento para amplificar os movimentos cícli- cos da economia capitalista mundial, em cuja periferia ocupa posição eminente — seja um país em crise, basta um pouco de bom senso para senti-lo. Que as invejáveis taxas de crescimento do seu dividendo nacional, que continuam a ser observadas, não possam ser argüidas para desmentir a realidade de tal crise, isso é, já, outra coisa, que exige algo mais do que simples bom senso para perceber, porque o chamado bom senso costuma mover-se entre parâmetros que bem poderiam ser chamados de "mentiras convencionais". Assim é que pouca gente costuma duvidar de que a inflação seja sintoma de excesso de demanda — suscetível, portanto, de ser combatida através da com- pressão desta, via arrocho salarial e outras medidas conducentes à terapêutica de um pouco de recessão; que pouca gente põe em dúvida que a melhor maneira de combater a crise agrária — invertendo, eventualmente, o sentido da marcha do êxodo rural — seja a expansão da produção agrícola, só praticável, em nossas con- dições sociais e ecológicas, pelo emprego de técnica de vanguarda; pouca gente duvida de que a correção monetária seja, intrinsecamente, um processo de realimen- tação da inflação etc. Em suma, aí temos apenas algumas das mentiras convencio- nais de nossa ciência sócio-econômica, delas comungando, desde simples donas de casa, a eminentes professores. Desejamos registrar o nosso agradecimento ao Prof. Rangel, pela gentileza e atenção que nos dispensou, escrevendo este artigo, especialmente, para o primeiro número de nossa revista.

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  • C R I M I N A L I D A D E E CRISE ECONMICA

    Ignacio Rangel Economista, Professor de Economia, autor de inme-ros ensaios em publicaes especializadas, autor de v-rias obras entre as quais: Dualidade Bsica da Econo-mia Brasileira; Introduo ao Estudo do Desenvolvi-mento Econmico Brasileiro e A Inflao Brasileira.

    Caracterizao da Crise Econmica

    Que o Brasil com seu notrio talento para amplificar os movimentos ccl i-cos da economia capitalista mundial, em cuja periferia ocupa posio eminente seja um pas em crise, basta um pouco de bom senso para senti-lo. Que as invejveis taxas de crescimento do seu dividendo nacional, que continuam a ser observadas, no possam ser argidas para desmentir a realidade de tal crise, isso , j, outra coisa, que exige algo mais do que simples bom senso para perceber, porque o chamado bom senso costuma mover-se entre parmetros que bem poderiam ser chamados de "mentiras convencionais".

    Assim que pouca gente costuma duvidar de que a inflao seja sintoma de excesso de demanda suscetvel, portanto, de ser combatida atravs da com-presso desta, via arrocho salarial e outras medidas conducentes teraputica de um pouco de recesso; que pouca gente pe em dvida que a melhor maneira de combater a crise agrria invertendo, eventualmente, o sentido da marcha do xodo rural seja a expanso da produo agrcola, s praticvel, em nossas con-dies sociais e ecolgicas, pelo emprego de tcnica de vanguarda; pouca gente duvida de que a correo monetria seja, intrinsecamente, um processo de realimen-tao da inflao etc. Em suma, a temos apenas algumas das mentiras convencio-nais de nossa cincia scio-econmica, delas comungando, desde simples donas de casa, a eminentes professores.

    Desejamos registrar o nosso agradecimento ao Prof. Rangel, pela gentileza e ateno que nos dispensou, escrevendo este artigo, especialmente, para o primeiro nmero de nossa revista.

  • Distribuio da Renda e Demanda Efetiva

    Se uma sociedade padece de uma distribuio muito desigualitria da renda, como no nosso caso, isso quer dizer que, se consideramos apenas a demanda de bens e servios de consumo e para a simples reposio do capital gasto no processo produtivo, parte da populao tender a gastar todo o quociente de renda que lhe couber, inclusive sem cobrir suas necessidades mais elementares, ao passo que outras pessoas tendero a gastar menos do que ganham, criando-se uma situao em que a economia entra em crise, a menos que estas ltimas pessoas sejam interes-sadas em expandir seu consumo, lato sensu. Somente assim ser possvel criar uma demanda incrementai, que permita a plena utilizao da capacidade produtiva do sistema. (Uma das mais decisivas conquistas da cincia econmica ocidental, neste sculo, est na constatao de que a plenitude da utilizao da capacidade produti-va sempre relativa, porque a regra um emprego menos que pleno. Assim, por plena utilizao da capacidade produtiva devemos entender uma utilizao razovel de dita capacidade, que no deixe margens clamorosas de ociosidade. Quanto cincia econmica oriental, isto , o marxismo, sempre o soube.)

    Esse consumo incrementai das classes em cujas mos a renda tende a concen-trar-se era chamado consumo produtivo, pelos antigos, e investimento, por nossos contemporneos. Trata-se de expandir o capital f ixo e os estoques do sistema eco-nmico e, contrariamente ao que acontece com o consumo stricto sensu , em princpio, i l imitado.

    Essa ilmitao das necessidades de investimento , entretanto, relativa. Pode acontecer, por exemplo ~ e apenas por exemplo, porque a lista exaustiva seria longa que, os excedentes de capacidade para investir se concentrem em certos setores da economia, j bem ou mesmo excessivamente servidos de capital f i xo , para os padres tecnolgicos vigentes, ao passo que outras reas do sistema muito teriam a ganhar de investimentos que expandissem sua capacidade fsica ou reduzissem seu atraso tecnolgico. Noutros termos, visto o sistema econmico como um todo, as necessidades de investimento no estariam cobertas, mas a demanda efetiva de investimento, sim, se as atividades carecidas de renovao do seu capital no estiverem institucional e financeiramente preparadas para efetivar

    Em todo caso, nossa crise j amadureceu o bastante para que todos sintam sua presena, no obstante as evidncias, do t ipo da expanso ininterrupta da expanso do dividendo nacional. No importa que as autoridades falem em crise econmica como simples possibilidade, argindo com as aludidas altas taxas de expanso do PIB. Muita gente, especialmente fora dos nossos arraiais prof issionais de economis-tas, est indo mais longe, isto , levantando a suspeita de que talvez o problema no esteja propriamente no dividendo - chame-se ele PIB ou outra coisa - mas sim no divisor. Noutras palavras, no mais segredo que, para o nvel de desenvolvi-mento j alcanado, nossa renda nacional est catastroficamente distribuda.

  • Ociosidade e Antiociosidade

    Em resumo, pode definir-se um estado de coisas tal que, no corpo do organis-mo econmico nacional se acumulem excedentes atuais ou potenciais de recursos para investir, em certo grupo de atividades, ao passo que, simultaneamente, noutro grupo de atividades persista aguda escassez dos mesmos recursos. Retomando uma expresso que venho usando: no organismo econmico nacional configura-se um plo de ociosidade, concomitante mente com outro plo de antiociosidade ou, como mais usual dizer-se, uma rea ou setor de escassez ou pontos de estrangula-mento.

    Essa concomitncia de excedentes econmicos e de escassez, no seio do mes-mo organismo econmico, a chave para a soluo de numerosos problemas, verda-deiros quebra-cabeas ou charadas. Por outras palavras, embora a demanda global espontaneamente resultante do esquema nacional de distribuio da renda no seja de molde a induzir uma taxa de formao de capital altura das foras produtivas j criadas, a maneira como, setorialmente, manifestam-se a capacidade ociosa e a anticapacidade ociosa vale dizer, respectivamente, reas de super e subinvesti-mento, de superproduo e de pontos de estrangulamento tem t ido, objetiva-mente, o efeito de induzir surtos peridicos de intensificao da formao de capital, alternando-se com perodos depressivos.

    Foi graas a isso que a industrializao brasileira pde chegar ao nvel alcan-ado, mais isto apenas parte da histria. Assim, a revelao cclica de reas carre-gadas de pontos de estrangulamento explica os surtos de exacerbao da formao de capital, mas no basta para explicar o efeito desses surtos sobre o nvel geral de emprego, a ponto de mascarar os efeitos de um teratolgico exrcito industrial de reserva, o resultado mais monstruoso da crise agrria. Para isso era mister, tambm, a concomitncia de certas condies, para explicar o excepcional efeito desses surtos sobre o nvel de emprego.

    O Primitivo Departamento I da Economia

    Os fatos que definem essas condies so conhecidos, se bem que raramente postos em correlao. No fundamental, trata-se de que a industrializao do Brasil privilegiou, por motivos no ocasionais, em seus primeiros ciclos, a produo de bens de consumo, isto , o Departamento II sobre o I ; a indstria leve, sobre a

    sua demanda. Ento, a sociedade carecer de expandir seu capital, mas como se no carecesse, pelo menos at que se removam os obstculos transferncia inter-setorial de recursos.

  • Declina o Multiplicador de Emprego

    A cada nova volta do parafuso cclico isto , medida que o processo de industrializao se desenvolvia, modernizando um setor aps outro, passando da rea do Departamento II para a do Departamento I, a funo consolidada nacional de produo, isto , a soma algbrica de todas as funes setoriais de produo

    ' Ainda que com alguma impropriedade, as categorias econmicas Indstria Pesada e Departa-mento I e Indstria Leve e Departamento II so usadas como equivalentes.

    pesada'. Dai' resultava que o suprimento dos bens de capital necessrios implanta-o da moderna indstria leve, teria que ser assegurado precisamente pelas ativida-des menos desenvolvidas tecnologicamente do sistema, isto , pelas atividades mais insumdoras de mo-de-obra por unidade de valor criado.

    Esse virtual Departamento I da economia subdividia-se em dois subdeparta-mentos, se assim podemos dizer:

    a) um setor primrio (basicamente agrcola) tecnicamente atrasado e altamen-te utilizador de mo-de-obra, responsvel pela produo de excedentes ex-portveis, isto , criador de capacidade para importar, prioritariamente reservada esta, nas condies institucionais que presidiram as etapas iniciais da industrializao, para o pagamento das importaes de bens modernos de produo isto numa poca caracterizada por muito escassa oferta de capital externo;

    b) um setor pr-industrial supridor de bens modernos de capital, cuja medula eram as instalaes ancilaresdas indstrias e servios (oficinas de manuten-o das ferrovias, dos transportes eltricos urbanos, das usinas eltricas, dos portos e estaleiros, das usinas de acar e t c ) , capazes de, conforme as circunstncias, copiar modelos importados, reconstruir equipamentos im-portados usados, prolongando indefinidamente sua vida e, por isso mesmo, aumentar o acervo de capital f i xo moderno do sistema.

    A industrializao do Brasil seria inconcebvel sem o papel eminente desem-penhado por esse duplo e virtual Departamento I da economia nacional, cuja carac-terstica comum era o elevado ndice de utilizao de mo-de-obra, por valor criado de bens de capital.

    Caracterstica comum desses dois subdepartamentos I da economia brasileira, nas etapas iniciais do processo de industrializao, era, portanto uma funo de produo pr-industrial, com o resultado paradoxal de que, embora estivssemos montando um aparelho produtivo industrial isto , intensivo quanto ao capital e poupador, quanto mo-de-obra para o futuro, o resultado corrente ou presente era uma funo de produo com caractersticas precisamente opostas.

  • Formas de Economia Natural

    Essa economia de autoconsumo ou natural^ pode desagregar-se em descom-

    ^Os economistas usam o conceito de "economia natural" com dois sentidos aparentados, mas no idnticos: a) no sentido de produo para autoconsumo, isto , sem intercmbio (por escambo ou compra-venda); no sentido de economia no monetria (isto , sem compra-venda, mas admit indo permuta ou escambo).

    teria que ir mudando, paulatinamente, tornando-se mais "capital intensive" e menos "labour intensive". Noutros termos, declinava o peso do efeito multiplicador de emprego do investimento. Por isso mesmo, ia-se tornando cada dia mais problemti-ca a conciliao do processo de industrializao com a estrutura agrria herdada da era pr-industrial, em processo de desagregao. No estgio a que chegamos, caracterizado por ndices de urbanizao comparveis aos dos pases mais desenvolvidos, coexistindo com ndices de populao ativa tpicos de pases ainda agrrios, isto , pr-industriais, claro que o velho arranjo, por muito fecundo que tenha sido, j cumpriu sua misso.

    Talvez valha a pena abrir aqui um breve parntese para precisar que que se deve entender por populao ativa. sabido que, pari passu com o desenvolvimento econmico, aumenta o percentual da populao classificada como ativa, na popula-o total e sabido, tambm que, como desenvolvimento, aumentam os ndices de urbanizao. Por outras palavras, a converso de contingentes sempre novos da populao em populao ativa e em populao urbana, concomitantemente c o m o desenvolvimento e a industrializao, sugere uma correlao entre estes e aqueles movimentos demogrficos. Com efeito, no deve restar dvida de que a sociedade fu-tura ser, ao mesmo tempo, urbana e dotada de elevados ndices de populao ativa.

    No obstante, o paralelismo dos dois movimentos "demogrficos", no curso do processo de desenvolvimento a urbanizao e a ativao da populao no completo. Para comear,os baixos ndices de atividade da populao rural pr-indus-trial no querem dizer que a parte no ativa da populao seja ociosa, mas, simples-mente, que trabalha numa economia natural, produzindo para autoconsumo, de modo que geralmente s o chefe da famlia a numerosa famlia camponesa tra-dicional tem renda monetria, isto , pode ser classificado como populao ativa, vale dizer, t i tular de uma renda monetria ou, na expresso j consagrada, "gayn-fu l ly employed". Os outros membros da faml ia, mesmo aqueles que no responde-riam aos critrios de idade para, nas economias desenvolvidas e urbanizadas, se poderem candidatar ao ingresso na populao ativa, esses trabalham, no raro de estrela a estrela, mas, como no so titulares de renda monetria, so considerados inativos, visto como SU atividade desenvolve-se fora da economia de mercado (vale dizer, margem do esquema de diviso social do trabalho), isto , no seio da econo-mia de autoconsumo.

  • Desagregao Geral da Economia Natural

    Em resunx), a economia brasileira, particularmente ao longo dos anos 60 e 70, vem sendo palco de um trpl ice e cada vez mais acelerado processo de desagregao de suas sobrevivncias de economia natural, liberando contingentes crescentes de mo-de-obra, os quais confluem para o mercado capitalista, cada vez menos inte-ressados em sua utilizao, medida que suas atividades se modernizam, isto , que suas funes de produo se tornam mais poupadoras de mo-de-obra.

    O xodo rural , portanto, apenas um dos aspectos do processo, embora seja o mais visvel e chocante, visto como se traduz num fenmeno demogrfico, facil-mente detectvel e mensurvel estatisticamente, isto , a urbanizao; os dois outros movimentos so mais discretos, visto como dizem respeito realocao de contin-gentes j urbanizados de mo-de-obra, mas seu efeito f inal soma-se ao do primeiro e o potncia, Esse efeito pode ser analisado sob seus aspectos mais importantes, a saber:

    a) tendncia depresso dos salrios, como conseqncia do aumento da

    passo com a absoro dos contingentes vlidos de mo-de-obra por ela liberados, com efeitos que dif ici lmente pwdem ser superestimados sobre a economia assente no esquema de diviso social do trabalho. No nosso caso, de uma industrializao sem reforma agrria, a crise agrria tem, como epicentro, a liberao de mo-de-obra a r i tmo muito maior do que o exige a economia capitalista em expanso.

    Os servios ancilares j aludidos, das indstrias e servios, embora integrados em empresas capitalistas, representam uma das formas de sobrevivncia da econo-mia natural. Seu produto no vai, ordinariamente, ao mercado, sendo absorvido pelas prprias unidades que integram. A mo-de-obra e os insumos que util izam contabilizam-se como despesas correntes de explorao das empresas, como servios, isto , pe!o custo e no pelo valor incorporado, isto , no a preo de mercado, o que representa uma fonte de subestimao de esforo social de formao de capital. Ora, com o desenvolvimento, esses servios ancilares so consideravelmente reduzi-dos, quando no desaparecem, com conseqncias que nossos economistas no estu-dam, inclusive drstica poupana de mo-de-obra.

    Acresce que nem todos os rxjntingentes de mo-de-obra, liberados pela econo-mia natural, sob qualquer dessas formas, vo ter diretamente bolsa de trabalho da economia de mercado capitalista. Parcela no desprezvel vai ter casa de famlia urbana, verso simplificada da economia domstica rural tradicional, que a utiliza produtivamente nas fainas domsticas tradicionais, sem incorporao formal populao ativa, visto como tais servios, embora indispensveis, no so remune-rados. Ora, nos dois lt imos decnios, como conseqncia da racionalizao do desenho e da construo da moradia e da mecanizao e eletrificao dos servios domsticos, a casa de famlia entrou a devolver, em larga escala, a mo-de-obra tem-porariamente retida, oriunda das outras atividades naturais, antes aludidas.

  • A Misria e O Crime

    A fome m conselheira, como j o sabiam os antigos, mas seria grave equ-voco estabelecer um relacionamento unvoco entre a misria e o crime. A etiologia da presente criminalidade popular j no deixa campo para dvidas, visto como o prprio ministro da Justia a relaciona com a crise agrria, que erradica milhes de camponeses, desencadeando um processo de urbanizao francamente anmalo, que est suscitando o aparecimento de metrpoles invertebradas, sem qualquer trama lgica interna, impoliciveis e ingovernveis.

    (H quase vinte anos, como membro do Grupo de Trabalho criado pelo presi-dente Jnio Quadros e mantido pelo presidente Joo Goulart sob a presidncia do ento senador Mi l ton Campos e com a participao de nomes no menos ilustres, como Dom Helder Cmara t ive a oportunidade de por em dvida a possibilidade de uma revoluo agrria resultante do levante das massas rurais, visto como o xo-do rural, ao transferir parte dos excedentes de mo-de-obra, produzida pela crise agrria, do campo para a cidade, no apenas reduzia a tenso social no campo, como decapitava a esperada revoluo, pois transferia precisamente os elementos mais ca-pazes de liderana,ao passo que as cidades em expanso absorviam esses excedentes, sem maiores problemas.

    oferta de mo-de-obra, sem contrapartida de demanda; b) ao contrrio, porque a transferncia de mo-de-obra dos quadros da eco-

    nomia natural para os da economia capitalista, muito mais aberta s ino-vaes tecnolgicas, importa, geralmente, em aumento da produtividade do trabalho, ou seja, por unidade de produto, em contrao da demanda de mo-de-obra.

    Em suma, assistimos ao agravamento das taras do esquema de distribuio de renda, em aumento do desemprego, mesmo no caso de aumento pondervel do nmero de pessoas empregadas. Tudo isto conflui para a gestao de um clima de protesto, o qual, antes de encontrar expresso poltica amadurecida, assume a forma de uma criminalidade urbana que, por suas dimenses e caractersticas, ultrapassa os quadros cobertos pela simples criminalstica. H um momento em que o fenmeno jur d ico transfigura-se em pol t ico, exigindo remdios adequados a essa nova condio. o momento em que a transgresso ordem pblica converte-se em componente da desobedincia civil caracterizada.

    Ora, a criminalidade est assumindo, na sociedade brasileira, dimenses franca-mente polt icas, ao contribuir para o clima de desobedincia civil. E no me refiro apenas criminalidade popular, que se est tentando reprimir pela violncia mais desenfreada, sob os olhos complascentes de um poder judicirio que confessa no ter remdio para o problema, mas tambm criminalidade de elite, que est parali-zando o estado, por uma desobedincia cada vez mais aberta e da qual a evaso fiscal apenas uma das manifestaes mais em vista.

  • Tm a Palavra os Juristas

    Retomemos o ponto de partida do nosso arrazoado, isto : a economia e a sociedade brasileiras esto em crise, no depondo contra isso os elevados ndices de crescimento que continuam a ser observados. Com efeito, dados os rvDssos padres de distribuio da renda e a baixa propenso a consumir neles implci ta, mesmo um equiliTario precrio do sistema exigir fortssimas taxas de formao de capital e estas, por muito mal orientado que seja o seu emprego, no podem seno tender, perpetuarnente, a engendrar manifestaes de superinvestimento e de desemprego de mo-de-obra, isto , capacidade ociosa.

    Insisto em dizer que nosso problema no consiste em demonstrar que como conseqncia dessas coisas, a economia tende para um estado depressivo crnico, mas sim em descobrir por que e por que coisas tal tendncia tem sido contrariada, de tal modo que, em vez de uma derivao contnua para o estado de renda bsica, os perodos depressivos so alternados com perodos de prosperidade, engendrando isso que tenho proposto batizar com a denominao de "ciclo juglariano brasileiro". Isto posto, chegaria o momento de levantar a questo de saber por quanto tempo e em que condies esse mecanismo afinal, muito feliz, porquanto permitiu-nos levar a industrializao do Pas a nvel razoavelmente elevado, sem reforma agrria digna desse nome poder continuar a operar.

    Tenho constatado, tambm, que esse processo no poderia ser eterno e vemos agora que desembocou numa crise que, nem por no manifestar os sintomas usuais

    (Tenho notado que essa minha antiga atitude antes isolada e desaaeditada, porque as modas da poca consistiam em, ou negar pura e simplesmente, qualquer crise agrria, ou considerar iminente a nova " jacquerie" - est ganhando populari-dade, agora, em certos meios intelectuais, muito propensos a tomar a Nuvem por Juno. E quero deixar claro que no sustentaria agora aquele meu antigo ponto de vista, num momento em que a crise agrria juntamente com outros movimentos paralelos, antes indicados - amadureceu para soluo, no mais admit indo nenhuma tergiversao. Que a crise agrria tenha perdido, em grande parte, seu antigo carter rural, emergindo como fenmeno basicamente urbano, isto , questo de forma, o que no quer dizer que seja uma questo sem importncia - pois h questes de forma que se tornam capitais).

    O que importa destacar que estamos diante de um movimento de desobe-dincia civi l , do qual a criminalidade - seja a popular ou a de elite - apenas uma componente. A misria e a fome tm por certo, um papel a desempenhar, mas o que importa que, no fundo, o que temos so foras sociais em busca de utilizao e que, portanto, no se trata de redistribuir um dividendo social j existente, mas de promover o aparecimento de novos titulares renda nacional, no prprio ato de faz-la crescer problema que no se analisa em mero massacre diuturno de marginais nos subrbios das grandes cidades.

  • Crescimento Econmico e Crise

    No o Brasil o nico pas a entrar em bvia crise de regime que no se mani-festou por queda do dividendo nacional, em termos absolutos. O Japo , provavel-mente, o caso mais em vista, mas no o nico. Sua produo industrial, no trinio 1975-78, esteve a expandir-se ao r i tmo de quase 7 por cento ao ano; seus ndices de emprego no agrcola se estiveram elevando taxa de 1,5 por cento ao ano (mais que a populao); a produo de cimento cresceu ao r i tmo de 9 por cento ao ano etc. Mas nada disso pode fazer sombra ao fato de que o Japo uma eco-nomia em crise profunda, que utiliza apenas dois teros da capacidade instalada de sua siderurgia e um quarto, ou menos, da capacidade da indstria da construo naval, a mais importante do pas. Nem os porta-vozes do governo e dos negcios japoneses procuram mascarar ou desacreditar esses indcios de crise. Esta resulta, qualquer que seja a forma que revista, da incapacidade de utilizao do potencial produtivo j criado.

    das crises econmicas, deixa de ser uma crise, visto como est pondo em causa os prprios fundamentos da ordem jurdica e do estado, atravs de um indisfarvel movimento de desobedincia civi l , o qual no poder passar sem a reconstruo do estado, isto , sem que seja negociado, entre as foras sociais mais amadurecidas, novo pacto de poder, que sirva de fundamento a nova ordem jurdica como em 1822,1889 e i 930.

    No fo i por acaso, por certo, que, no conturbado perodo que precedeu a pre-sente Abertura Poltica, identificada,grosso modo, coma transio do governo Geisel para o Figueiredo, fo i dos juristas conspicuamente atravs de homens como Raimundo Faoro, presidente, ento, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que a sociedade civil recebeu a necessria inspirao renovadora, enquanto os outros cientistas sociais (inclusive, ou principalmente, ns prprios, os economistas, e os socilogos) girvamos esterilmente em crculo, nada de concreto ocorrendo-nos propor.

    Tampouco est sendo por acaso que, neste momento, quando o aparellio do estado sente-se impelido a agir, tomando posio perante a crise bvia, seja o minis-trio da Justia, com um crimina lista frente - o Professor Ab i Ackel - a fonte das nicas idias esclarecedoras da verdadeira etiologia da crise, enquanto os porta--vozes da chamada "rea econmica", continuam a girar em crculo, to desorienta-dos quanto ns prprios, os economistas de oposio, ao tempo em que, sob a lide-rana dos juristas, pugnvamos pela Abertura.

    Tudo isso resulta do carter objetivo assumido pela aise brasileira presente. A etiologia fundamental da crise no constitui segredo, isto : o desenvolvimento das foras produtivas da sociedade ultrapassou, por ampla margem, o que em seu seio podem comportar as relaes de produo vigentes. A novidade est na maneira como esse descompasso se manifestou, em nosso caso concreto.

  • O Cerne do Problema

    Isto, porm, no retira crise o seu carter basicamente econmico, a exigir remdios econmicos que nossa miopia profissional no nos permite ainda receitar. Que esses remdios devam assumir forma jurdica, isso no deve ser motivo de sur-presa, visto como se trata de mudar relaes de produo, e as relao de proprie-dade so a medula destas. Mas, antes que o jurista possa encontrar uma teraputica mais adequada do que o massacre de marginais ou uma exao fiscal sufocante, que no consulta as condies reais de operao do contribuinte, ou medidas draconia-nas, mas necessariamente ineficazes, tambm por no consultarem as condies econmicas das unidades, objeto de tais medidas, ha um pesado labor de cincia e

    Aparentemente, os japoneses souberam distribuir com certa eqidade o seu desemprego, sabedoria que nos tem faltado. Milhes de camponeses, no Brasil ex-pulsos dos lugares onde nasceram, e projetados num ambiente inteiramente desconhe-cido e hostil, perdidas suas escalas tradicionais de valores, constituem um caldo de cultura ideal para uma criminalidade,quetendea converter-se em fenmeno de massa e no simples ao individualista contra padres sociais estabelecidos. Isto quanto criminalidade popular, produtora em larga escala dos chamados "marginais", que os chamados esquadres julgam poder eliminar pelo massacre diuturno de uns quantos delinqentes, com o risco evidente de romper a prpria trama social bsica, to indispensvel vida da metrpole, onde muito facilmente o homem se sente perdido e s, no meio da mult ido, mais isolado e irresponsvel do que se estivesse gravitando pelo espao sideral.

    A metrpole invertebrada, construda imagem e semelhana do transporte automobilstico individual, Moloch insacivel ao qual tudo se sacrifica, impotente para reprimir, legalmente, o crime e recorre ao crime da represso terrorista. Entre-mentes, os socilogos sonham com um xodo rural s avessas, no prprio momento em que a especulao fundiria j que no se cogitou a srio de organizar o mer-cado de valores obviamente indispensvel para financiar os servios da infra-estrutu-ra urbana e inter-regional expele do campo as levas retardatrias de camponeses desarraigados pela crise agrria. E os economistas acenam com a ilusria possibili-dade de promover o xodo rural ao revs, via aumento da produo agrcola, sem se aperceberem de que a nica agricultura capaz de produzir os esperados exceden-tes exportveis, usando para isso as "novas terras" da catinga, do cerrado, da hilia, do pampa uma agricultura capitalista, que prefere vir recrutar os reduzi-dos contingentes de mo-de-obra temporariamente necessrios, nos subrbios das grandes cidades e que, portanto, incrementa o xodo, no sentido tradicional, ao invs de invert-lo.

    Em tais condies, que motivo de surpresa pode haver em que sejam precisa-mente os juristas e, dentre estes, os criminalistas os primeiros a se aperceberem de que algo de bsico e fundamental deve ser fei to, com urgncia e energia?

  • Um Falso Problema

    Talvez pelo temor de que o bom senso acabe por prevalescer, chamando s boas o patronato e o operariado do plo de ociosidade vale dizer, da rea do sis-tema econmico mais organizada e, potencialmente, a mais rica e politicamente po-derosa, certos elementos, obviamente interessados em impedir esse entendimento, esto levantando uma reivindicao aparentemente muito avanada, mas na verdade, retrgrada, visto como s serve para desviar a ateno dos problemas real-mente maduros para soluo. Assim como, h vinte anos, a palavra de ordem muito " rad ica l " da reforma agrria na lei ou na marra fo i levantada, com a inteno hoje bvia, de promover a desestabilizao do regime, agora estamos querendo impor, contra vento e mar, uma suposta co-gesto industrial.

    H vinte anos, a nica classe capaz de conduzir viavelmente a sociedade brasi-leira era o latifndio feudal. A reivindicao ilusria da reforma agrria o reduzia impotncia e desestabilizava o estado. Agora, que o estado est desestabilizado.

    tcnica econmicas a cumprir. Ora, mutatis mutandis, a liistria se repete. Em certas reas do sistema econ-

    mico nacional (chamemo-las de setor) ocorreram pesados investimentos, cujo exce-dente se manifesta por capacidade ociosa. Os empresrios responsveis pelas unida-des produtivas componentes de tal setor ou plo de ociosidade, encontram-se entre dois fogos: de seus operrios, que no compreendem por que haveriam de suportar, sob a forma de compressio dos salrios reais, o peso de uma crise cuja etiologia des-conhecem e cuja prpria existncia posta em dvida pelos economistas oficiais; do aparelho do estado, que julga poder submet-los a redobrada carga fiscal, sem se aperceberem de que, por muito potencialmente ricas que sejam as empresas, as condies de ociosidade a que estaco condenadas as deixam, na melhor das hip-teses, ao nfvel usualmente definido pela expresso inglesa do "break even po in t " isto , aquele grau de utilizao da capacidade em que a empresa nem produz IUCTO, nem prejuzo. Isso na melhor das hipteses, porque, em muitos casos, empresas potencialmente ricas, capazes de engendrar excedentes livres para investir noutras reas do sistema, andam cata de capital de giro.

    Este o cerne do problema. A qualquer momento, o azedo dilogo entre os empresrios do setor e seus operrios pode mudar de t o m , porque inevitvel que os contendores se apercebam de que, por graves que sejam suas contendas, a prpria vida os est confrontando com uma oportunidade de entendimento, capaz de fazer sombra aos motivos de desentendimento, por muito tempo ainda. Com efeito, me-lhorados os ndices de utilizao da capacidade produtiva j criada, no setor, estaro criadas as condies para a converso dos contendores em aliados e, com tais aliados, o empresariado industrial passar da condio de pedinte a candidato hegemonia sobre toda a sociedade, pronto para empreender a reconstruo da ordem jurdica e do estado.

  • O Objetivo Primordial a Perseguir

    Para encerrar se que se pode falar em encerrar uma exposio to sumria, versando sobre assunto to complexo e multifactico gostaria de acentuar o fato de que a mesma reestruturao do aparelho de intermediao financeira que ser o detonador do processo de recomposio do pacto nacional de poder, ao permitir a efetivao da demanda para os produtos a resultarem da utilizao da capacidade excedente, no plo de ociosidade, permitir o financiamento dos investimentos inadiveis no plo de escassez, resolvendo, portanto, o problema estrutural funda-mental.

    Ao mesmo tempo, ao assegurar aplicao para os recursos financeiros ociosos, que esto financiando a especulao fundiria e aos recursos financeiros a resulta-rem da utilizao da capacidade ociosa por ponto final sobrevida que dita espe-culao est assegurando ao latifndio feudal, pondo em marcha um movimento de barateamento da terra que trar consigo uma implcita reforma agrria.

    Ao permitir a compra, no mercado interno, de produtos cuja importao est respondendo pelo insuportvel endividamento externo, modificar a capacidade de endividamento do Pas. Paradoxalmente, as entradas de capital estrangeiro devero crescer, em vez de diminuir , se bem que em novas condies, isto , com o radical alvio dos ndices de exigibilidade.

    A reforma agrria que dever resultar do colapso do preo da terra - impl-cito nas mudanas aludidas no aparelho de intermediao financeira ser, parado-xalmente, pelo menos no incio, um fenmeno urbano. Isto , muito antes que a

    porque o latifndio feudal esgotou sua capacidade de liderana, nada mais tendo a oferecer, buscamos paralizar a nica classe social capaz de reestabilizar o estado, isto , a burguesia industrial, acirrando lutas fora de todo contexto, com seu prprio operariado, a nica fora social que cresceu com a burguesia industrial, rx)mo f ruto da prpria industrializao, mas que no tem absolutamente condies de candida-tar-se hegemonia sobre a sociedade, porque cada coisa chega ao seu tempo.

    No centro de toda a nossa presente problemtica nacional como nas fases recessivas de todos os nossos ciclos encontra-se o problema de como organizar a captao dos recursos excedentes a resultaram do emprego da capacidade ociosa das reas super investidas, para as atividades convertidas em pontos de estrangulamento. Trata-se, em sua expresso mais simples, de algumas mudanas jurdicas, relaciona-das com o aparelho de intermediao financeira, mas para singularizar a presente conjuntura, temos que a soluo do problema interessar a prpria estrutura do estado, visto como, pelo mesmo passo, promover condio de fora hegemnica a burguesia industrial, desenvolvida nos ciclos anteriores, e desqualificar para per-manecer no comando o latifndio feudal o qual, particularmente por intermdio dos estancieiros gachos presidiu ao processo de industrializao e, assim, criou e educou seus prprios coveiros, como si acontecer, ao longo do evolver histrico.

  • famlia camponesa comece a receber lotes que lhe permitam recompor, em novas bases, sua primitiva economia natural ou de autoconsumo, as populaes trabalha-doras urbanas tero acesso a pequenos lotes que lhes permitam construir, pelo emprego da mo-de-obra inativa da famlia, seus barracos, eventualmente suscetveis de converso em verdadeiras casas, mas que, de imediato, retirando aquela mo-de--obra inativa do mercado, sanear este l t imo.

    E aqui chegamos ao ponto em que a crise scio-econmica primeiro amadure-ceu, ao converter-se em problema de criminalidade generalizada. Esta reabsoro da mo-de-obra inativa pela prpria famlia no quadro urbano e fora dele de par com o engajamento de novos contingentes no processo de rompimento dos pontos de estrangulamento, representa precisamente o objetivo primordial a perseguir.

    Trata-se, portanto, de um problema jur d ico, se bem que no no sentido ima-ginado pelos criminalistas de vistas curtas.