imagination and creation processes within a historical ... · formam a ele e à bruxa em seres do...

14

Click here to load reader

Upload: ngokhue

Post on 19-Jan-2019

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Imagination and creation processes within a historical ... · formam a ele e à bruxa em seres do bem. A trama finaliza com todos os participantes tocando per- ... por eles foi objeto

49

IMA

GIN

ÃO

NA

PERSPECTIVA

HISTÓ

RICO

CU

LTURA

L

Estudos de Psicologia I Campinas I 32(1) I 49-61 I janeiro - março 2015

1 Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Psicologia. Campus Universitário,Trindade, 88040-900, Florianópolis, SC, Brasil. E-mail: <[email protected]>.

2 Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação. Campinas, SP, Brasil.3 Faculdade Metropolitana de Blumenau, Curso de Psicologia. Blumenau, SC, Brasil.4 Psicóloga. Florianópolis, SC, Brasil.5 Universidade Federal de Santa Catarina, Curso de Psicologia. Florianópolis, SC, Brasil.

Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Projetos de Pesquisa/Edital MCT/CNPq 03/2008).

▼ ▼ ▼ ▼ ▼

http://dx.doi.org/10.1590/0103-166X2015000100005

Imaginação e processos de criação na perspectivahistórico-cultural: análise de uma experiência

Imagination and creation processes within a historical

cultural perspective: Analysis of an experience

Kátia MAHEIRIE1

Ana Luiza Bustamante SMOLKA2

André Luiz STRAPPAZZON3

Carolina Souza de CARVALHO4

Felipe Karpinski MASSARO5

Resumo

Este artigo aborda a imaginação como processo psicológico fundamental do ser humano, tomando como base ostrabalhos de Vigotski e seus interlocutores, e tendo como eixo reflexivo uma pesquisa-intervenção desenvolvida emuma Organização Não-Governamental de arte-educação. A investigação se caracterizou pela oferta de oficinas depercussão, produção de espetáculo musical e produção de vídeo sobre esse espetáculo, tendo como sujeitos criançase jovens de 9 a 14 anos que frequentavam a entidade. Uma análise da experiência vivida por esses sujeitos na relaçãocom os pesquisadores toma como base a imaginação e seus desdobramentos no processo de criação. Nesse processode criação, a experiência (re)significada pelos sujeitos vai compondo núcleos de memória, de forma que a atividadeimaginativa se apresenta como um processo psicológico (re)combinador, objetivada em um novo produto.

Palavras-chave: Imaginação; Espetáculo musical; Processos de criação; Psicologia histórico-cultural.

Abstract

This paper deals with imagination as a fundamental psychological process of human beings, based on the work ofVygotsky and his interlocutors. The intervention research was developed at a Non-Governmental Organization in ArtEducation. The investigation was characterized by offering percussion workshops, musical show production and videoproduction about the show, to a group of 9 to 14-year-old children who attended the Non-Governmental Organization.The analysis of the experience of these subjects with the researchers was based on imagination and its developmentsin the creation process. In this process of creation, the (re)signified experience of the subjects forms memory cores ina way that the imaginative activity emerges as a (re)combining psychological process objectified in a new product.

Keywords: Imagination; Musical show; Creation process; Cultural-historical psychology.

Page 2: Imagination and creation processes within a historical ... · formam a ele e à bruxa em seres do bem. A trama finaliza com todos os participantes tocando per- ... por eles foi objeto

50

K. M

AH

EIRIE et al.

Estudos de Psicologia I Campinas I 32(1) I 49-61 I janeiro - março 2015

Este artigo aborda a imaginação como pro-cesso psicológico fundamental do ser humano,tomando como base os trabalhos de Vigotski e seusinterlocutores, e tendo como eixo reflexivo uma pes-quisa-intervenção desenvolvida em uma Organi-zação Não-Governamental (ONG) de arte-educa-ção, situada em uma localidade de baixa renda, nacidade de Florianópolis (SC). A ONG, localizada naperiferia da cidade, oferecia a crianças e jovens, nocontraturno escolar, oficinas de arte e/ou aulas dereforço, dentre as quais as crianças e jovens es-colhiam o que fazer.

A investigação ocorreu em diferentes etapas,entre 2006 e 2009, contemplando em sua tota-lidade a oferta de oficinas de percussão, a produçãode um espetáculo musical e a produção de um vídeosobre esse espetáculo. Os sujeitos foram consti-tuídos por crianças e jovens de 9 a 14 anos, quefrequentavam a referida ONG no período ves-pertino.

O trabalho, desde o início, tinha como pro-pósito oferecer uma oficina e, ao mesmo tempo,realizar uma investigação. A pesquisa partiu dopressuposto de que a música atua como mediadorade coletivos (Maheirie, 2001) e aumenta a potênciade ação dos sujeitos. A equipe de trabalho era com-posta pela pesquisadora coordenadora, por alunosde graduação ou mestrado em Psicologia e por umprofessor de música, caracterizando-se como umapesquisa-intervenção. Adotou-se a modalidade mu-sical “percussão” por ser essa a área de compe-tência do professor que se propôs a realizar o tra-balho.

Assim que as inscrições foram abertas paraa oficina de percussão, aproximadamente vinte su-jeitos se inscreveram. Era-lhes oferecido optar entrea oficina de percussão ou aulas de reforço em mate-mática, sem que os pesquisadores soubessem dissoà época.

No primeiro semestre das oficinas, o númerode participantes foi diminuindo para dez, em funçãoda discrepância entre o que eles procuravam e oque o ensino da música exigia deles. A percussão,para eles, era a possibilidade de um espaço parabrincadeiras, assim como para extravasar sua ener-gia, que não encontrava outro espaço para se dis-

sipar. O professor tentava focar aspectos quepudessem levá-los à apropriação de saberes e técni-cas, enquanto eles queriam batucar sem regras egritar, experimentando o espaço estético no hori-zonte do brincar. Em meio a tantas contradições,dificuldades e incongruências, com muito esforçopara estabilizar algumas combinações, as dez crian-ças que permaneceram nas oficinas puderam seapropriar do conhecimento disponibilizado a elas,durante dois semestres.

No segundo semestre, os participantes semostraram desmotivados para a percussão, o quefez a equipe repensar sua continuidade nos moldesem que vinha acontecendo. Assim, recriaram-se es-tratégias interventivas nas oficinas, inserindo outrasformas de linguagem artística, como teatro, figu-rino, pintura e confecção de máscaras. Os oito par-ticipantes que permaneceram, com idade entre 9 e14 anos, criaram uma história, montaram o espe-táculo, inserindo a percussão quase no final doprocesso.

O espetáculo, que se intitulou “O MágicoContra o Som”, tratava da história de uma princesae uma bruxa. A princesa tem seu sono despertadopor uma feia bruxa, que vem assustá-la à noite; amãe da princesa, a rainha, acode para acalmá-la,enquanto a bruxa foge para a floresta. Pela manhã,a princesa vai passear pela floresta, quando encontrauma linda flor que a faz ajoelhar para sentir seudelicioso perfume. Ao levantar-se, ela tropeça nasraízes de uma grande árvore. Porém, tanto a florquanto a árvore estão enfeitiçadas: todas as pessoasque cheiram a flor tropeçam nas raízes e caem.Caindo ao chão, a princesa se depara com a árvoree a admira, quando surge um mágico que conversacom ela e faz uma magia para que fique boa. A

princesa agradece e continua seu passeio. A bruxa,avisada pelo mágico, vai até a princesa e a prendenum calabouço. Bruxa e mágico são seres maus,

porque não gostam de música e passam a históriaimpedindo que se toque qualquer instrumento nafloresta. Surgem duas fadas que libertam a princesa,desfazem os feitiços do mágico e também trans-formam a ele e à bruxa em seres do bem. A tramafinaliza com todos os participantes tocando per-cussão em roda. Dos oito participantes, as sete

Page 3: Imagination and creation processes within a historical ... · formam a ele e à bruxa em seres do bem. A trama finaliza com todos os participantes tocando per- ... por eles foi objeto

51

IMA

GIN

ÃO

NA

PERSPECTIVA

HISTÓ

RICO

CU

LTURA

L

Estudos de Psicologia I Campinas I 32(1) I 49-61 I janeiro - março 2015

meninas atuaram como personagens, enquanto oúnico menino foi responsável pela sonorização.

A criação da história envolveu todos osparticipantes, sendo que os pesquisadores buscaraminicialmente não interferir. A história foi construídaa partir dos núcleos de memória que as criançasforam trazendo para a experiência das oficinas, mes-clando e (re)criando aspectos de histórias que faziamparte de suas vidas, como experiências anterioresno teatro e aquelas disponibilizadas em programasinfantis na televisão. Acordos iam sendo estabele-cidos entre eles conforme houvesse alguma discor-dância na construção do enredo. Papéis para os dife-rentes personagens iam sendo construídos em meioa conflitos e resoluções, sendo necessária, algumasvezes, a mediação da equipe de pesquisadores,agora mais participativa no enredo.

Depois de finalizada a história, os sujeitosconstruíram os figurinos e cenário, inseriram a músi-ca, agora já reconfigurada, e se apresentaram publi-camente em duas situações. No ano seguinte, aconstrução de um vídeo sobre a experiência vividapor eles foi objeto da última oficina oferecida pelaequipe de pesquisadores.

Todas as oficinas foram filmadas e seu con-teúdo foi digitalizado, sendo posteriormente decu-pado, ou seja, segmentado em temas com seutempo correspondente. A história, dramatizada esonorizada no espetáculo, foi apresentada publi-camente na ONG que frequentavam e, posterior-mente, em um festival de teatro promovido pelaUniversidade do Estado de Santa Catarina (UDESC),ocorrido no Teatro da Universidade Federal de SantaCatarina (UFSC). Após essa apresentação pública,os sujeitos foram entrevistados, utilizando-se umroteiro que buscava investigar o impacto e os senti-dos daquela apresentação para eles.

Método

Participantes

No ano seguinte à oficina de criação e àmontagem do espetáculo, na terceira etapa dotrabalho - objeto do presente estudo -, a equipe de

pesquisa ofereceu oficinas de vídeo, em que as setemeninas aprenderam técnicas videográficas e decriação de roteiro (o menino havia saído da ONG enão pôde ser localizado). Por meio da memória,elas puderam (re)significar toda experiência doespetáculo criado, que teve a música como lingua-gem e tema de todo o processo.

Portanto, dos oito participantes da etapaanterior, especificamente nessa etapa, a investi-gação contemplou o trabalho com as sete meninasque se conseguiu contatar para este estudo.

Instrumentos

O material para a construção do vídeo foiaquele produzido nas oficinas anteriores, que estavadigitalizado no computador da sala da equipe depesquisa. Foram realizados encontros semanais como grupo das sete meninas, os quais foram videogra-vados e registrados em diário de campo pelos mem-bros da equipe de pesquisa. Ao final, foram reali-zadas entrevistas abertas com as participantes, àsquais era solicitado que falassem sobre a experiênciavivenciada nas oficinas até aquele momento. Alémdisso, as garotas elaboraram uma redação temáticaacerca de toda a experiência.

Em síntese, utilizaram-se como instrumentode pesquisa: diários de campo, entrevistas abertase coletivas, produção individual de redação, pro-dução de imagens paradas (fotografias produzidaspor meio do congelamento das filmagens coletadasanteriormente) e imagens em movimento que com-punham as decupagens.

Procedimentos

Primeiramente, todo o material foi decu-pado, visando disponibilizar aproximadamente duashoras e meia de filmagem para a montagem dovídeo. As imagens foram organizadas por temática,de acordo com as cenas que faziam parte do espe-táculo e de acordo com as etapas do processo decriação: ensaio, criação do roteiro do espetáculo,criação dos personagens, ensaio, figurino, cenário,percussão, momentos de descontração e apresen-tação no Teatro da UFSC.

Page 4: Imagination and creation processes within a historical ... · formam a ele e à bruxa em seres do bem. A trama finaliza com todos os participantes tocando per- ... por eles foi objeto

52

K. M

AH

EIRIE et al.

Estudos de Psicologia I Campinas I 32(1) I 49-61 I janeiro - março 2015

Todos os encontros que compuseram essaoficina ocorreram na sala de pesquisa da equipe,tendo sido filmados e armazenados digitalmente.

Para a construção da análise, foram pesqui-sadas as situações, falas e depoimentos orais eescritos que as meninas produziram ao longo daexperiência, tendo como alicerce teórico as contri-buições de Vigotski e interlocutores. Para a constru-ção deste artigo, elegeu-se a imaginação como focoprincipal do processo de criação.

Ao conceber a música como uma forma delinguagem, entende-se, assim como Vigotski (1934/1992), que “a linguagem é constitutiva/constituido-ra do sujeito, de modo que o pensamento e a lingua-gem refletem a realidade de uma forma diferentee se constituem no ponto central para se compreen-der a consciência humana” (Maheirie et al., 2008,p.190).

Ao discorrer sobre a linguagem e o pensa-mento, Vigotski (1934/1992) afirma que ambossurgem e se configuram durante o processo de de-senvolvimento histórico da consciência humana.Ambos são produtos do processo de formação doser humano, de modo que a relação entre eles sur-ge, transforma e cresce em conformidade com odesenvolvimento do indivíduo. Essa relação é umprocesso, é desenvolvimento: o pensamento culmi-na na palavra, possuindo movimento, fluidez e de-sempenhando uma função. Em suma, o pensa-mento “resolve uma tarefa determinada” (p.296).Nessa direção, o autor alerta que a estrutura dalinguagem não é simples reflexo da estrutura dopensamento. Ela não expressa o pensamento puro,pois este se modifica ao transformar-se em lingua-gem, a qual se faz uma realização daquele e nãosua expressão. Assim, os aspectos semântico e ver-bal da linguagem se colocam em direções opostas,mesmo sendo um único processo.

Para Vigotski (1934/1992), o significado dapalavra é a unidade do pensamento e da linguagem:o significado é a própria palavra como um fenô-meno de linguagem e como um fenômeno depensamento; é verbal e intelectual, evoluindo domais simples ao mais complexo. O significado repre-senta uma generalização, um modo de refletir arealidade e, quando se constitui em sua forma mais

complexa, encontra sua expressão nos conceitosabstratos.

Tomando como base os trabalhos de Pauhlan,Vigotski (1934/1992), continua suas ideias acercada linguagem em suas diferentes formas, diferen-ciando significado e sentido. Enquanto este secaracteriza por uma “formação dinâmica, variávele complexa que tem várias zonas de estabilidadediferente” (p.333), o significado “é só uma dessaszonas de sentido, a mais estável, coerente e precisa”(p.333). Sendo assim, o sentido é infinito e deveser buscado num contexto mais amplo, caracteri-zando-se como uma singularização na relação coma pluralidade.

A palavra está inserida no contexto, do qualtoma seu conteúdo intelectual e afetivo, carregandoesse significado e ampliando seu repertório, demodo a adquirir novos conteúdos. O sentido nuncaestá acabado, pois depende da interpretação domundo e da singularidade do sujeito.

No que se refere ao pensamento, Vigotski(1934/1992) afirma que este nunca coincide comas palavras. Ele é movimento, sempre tende a uniralgo com algo e sempre está mediado por signos esignificados, até que faça seu caminho em direçãoàs palavras. Para o autor, o pensamento sempreestá por trás das palavras, como um “subtexto”(p.340), apresentando-se de forma mais extensa evolumosa do que elas.

O pensamento nasce “da esfera motiva-cional de nossa consciência, que abarca nossasinclinações e nossas necessidades, nossos interessese impulsos, nossos afetos e emoções. Detrás de cadapensamento há sempre uma tendência afetivo--volitiva” (Vigotski,1934/1992, p.342). Assim, paracompreender a linguagem, não é suficiente com-

preender as palavras: é preciso compreender opensamento e o desejo do interlocutor, e aquiloque os embasa, isto é, sua motivação e a base afe-

tivo-volitiva que o sustenta.

Vigotski (1934/1992) finaliza o texto“Pensamiento y palavra”, apontando que pensa-mento e linguagem constituem a chave para a com-

preensão da consciência humana, uma vez que elaé a consciência que existe na prática para os outros

Page 5: Imagination and creation processes within a historical ... · formam a ele e à bruxa em seres do bem. A trama finaliza com todos os participantes tocando per- ... por eles foi objeto

53

IMA

GIN

ÃO

NA

PERSPECTIVA

HISTÓ

RICO

CU

LTURA

L

Estudos de Psicologia I Campinas I 32(1) I 49-61 I janeiro - março 2015

e, por consequência, para o indivíduo. Mesmofocando fundamentalmente na linguagem ver-bal/escrita, as reflexões do autor indicam que, comoconstituintes e constituídas pelos sujeitos, as dife-rentes formas de linguagem se definem por ser umaobjetivação transformada do pensamento, o qualse fez possível por meio da apropriação da lingua-gem.

Para Vigotski, assim como para Bakhtin, alinguagem é mais que um simples signo: ela é tra-balho e processo, na medida em que constitui açãosobre o pensamento e a cultura (Morato, 2000),regulando a relação cognição - mundo social. Nessaperspectiva, seria prudente afirmar que toda baseafetivo-volitiva é estruturada nas condições obje-tivas, materiais e concretas do sujeito, de forma que

se faz também sob a raiz das normas pragmáticasutilizadas na linguagem. Sua função reguladora seconstitui entre a fala e a ação (Morato, 2000) e,

uma vez que se aprende a usar “a função plane-jadora da linguagem” (Vigotski, 1934/1992), o futu-ro faz parte constante de seu campo psicológico.

Assim, o pensamento, sua base afetivo-volitiva, estáapontado para o futuro, para o devir, para aquiloque ainda não se é.

Nessa direção, a presente investigação apon-

tou para a esfera da temporalidade dialética, ondese entrelaçam o passado, o presente e o futuro nainteligibilidade do movimento do sujeito em con-

textos sociais específicos, alertando para uma con-dição ontológica de superação do instituído, pormeio do processo de criação. Para Vigotski (1925/

1998), os processos de criação que envolvem obje-tivações artísticas têm a especificidade de promoverrelações estéticas, bem como de provocar transfor-

mações nos sujeitos que com elas se implicam, sin-gular e coletivamente.

Por isso, faz-se importante trazer uma afir-mação de Morato (2000), quando a autora defende

que “o que Vigotski traz com uma força intem-pestiva para a pesquisa atual é a ideia de con-tinuidade (não apenas funcional ou estrutural, massígnica) entre cognição e linguagem, entre lingua-gem e cultura, entre cultura e arte, entre arte e

política” (p.155).

Na análise das artes proposta por Vigotski(1925/1998), o interesse se volta para os processosimplicados na criação artística por seres humanosque produzem e consomem arte num determinadocontexto sócio-histórico. A arte é entendida, então,como um sistema simbólico elaborado pelo artistacom o intuito de provocar no seu público um tipoespecífico de reação, a reação estética. O autor afir-ma que a reação estética possibilita que emoçõesangustiantes e desagradáveis sejam submetidas auma descarga, à sua destruição, capaz de trans-formá-las em sentimentos opostos. Assim, “a reaçãoestética como tal se reduz, no fundo, a essa catarse,ou seja, à complexa transformação dos sentimen-tos” (p.270).

De acordo com Pino (2006), o sentido esté-tico, assim como tudo que é especificamente hu-mano, é construído histórica e culturalmente, sendoportanto objeto de formação e educação.

Os processos educativos voltados para aampliação do sentido estético possibilitam maiorriqueza da experiência perceptiva, a qual se faz fun-damental para a produção de imagens. Nas palavrasde Pino (2006):

Se é pelo corpo que entramos em contato

com as “coisas” que formam a realidade do

mundo, então a sensorialidade é funda-

mental e os órgãos sensoriais, ou “sentidos”,

são essenciais para a percepção sensível; a

tal ponto que, se não funcionam, ou fun-

cionam de forma deficiente por falhas fi-

siológicas, anatômicas ou outras, uma de

duas: ou perdemos a percepção das coisas

ou temos uma percepção distorcida delas.

O fato de constituir a forma elementar, ou

biológica, da percepção não quer dizer que

a sensorialidade não entre no quadro do que

entendemos por “sentido estético”, pois

sem ela não temos o que dizer a respeito.

Acontece que a tese da dupla série de fun-

ções de que fala Vigotski supõe que os ór-

gãos receptores funcionem bem, o que no

caso humano, embora necessário, não é sufi-

ciente, pois o que resulta da percepção sen-

sorial não são apenas imagens, mas imagens

humanas passíveis de interpretação e de

múltiplas reelaborações semióticas (p.67).

Page 6: Imagination and creation processes within a historical ... · formam a ele e à bruxa em seres do bem. A trama finaliza com todos os participantes tocando per- ... por eles foi objeto

54

K. M

AH

EIRIE et al.

Estudos de Psicologia I Campinas I 32(1) I 49-61 I janeiro - março 2015

Ou seja, continuando a tese de Pino (2006),a qual está em consonância com a tese da duplasérie de funções, uma percepção “refinada” dasmaterialidades sensoriais “é fundamental para aconstituição nelas das funções culturais (simbólicas)fundamento do sentido estético” (p.67). Aumentara potência de ação dos sentidos produz novasemoções e novas imagens que com aquela se uni-ficam e que foram possíveis por meio da percepçãoanterior das materialidades sensoriais. Ao poten-cializar os sentidos estéticos, o sujeito pode chegara processos de criação, objetivando novos produtosnos entornos que ocupa.

Na perspectiva da psicologia histórico-cul-tural, o homem é um ser de relações, ou seja, nadaé, senão na relação com os outros, com a natureza,com o tempo, com as coisas e com seu própriocorpo. Como consequência, o sujeito é produto docontexto que vivencia e é, ao mesmo tempo, pro-dutor desse contexto. O processo criativo, então, éproduzido nas relações e se faz também como pro-duto e produtor do contexto no qual o sujeito estáinserido.

Para Vigotski, a criação é uma capacidadehumana, uma condição ontológica conquistada noprocesso evolutivo, que permite tomar o rumo daprópria evolução (Pino, 2006), caracterizando o pro-cesso de humanização. Porém, a condição onto-lógica está submetida às condições materiais con-cretas e às possibilidades efetivas que se encontrampara a criação.

Resultados

Apontamentos da experiência baseque gerou o vídeo

No contexto investigado, as condições en-ontradas constituíram dificuldades que posterior-mente foram sendo ultrapassadas. No início, valelembrar, a atividades oferecidas pela ONG, incluindoa oficina de percussão, eram praticamente obriga-tórias, de forma que a percussão surgiu para ascrianças como uma forma de brincar com o barulhooriundo dos instrumentos musicais. O professor da

oficina logo mostrou que, para tocar percussão, eranecessário muito esforço, atenção, coordenação edisciplina.

Após as oficinas de percussão, nas quais ascrianças reclamaram da postura e da disciplina exi-gida pelo professor, elas acabaram se apropriandode técnicas e fazeres musicais, culminando na cons-trução coletiva do espetáculo musical em diferenteslinguagens artísticas. Diferentes conhecimentossobre outras linguagens foram oferecidos às crian-ças e jovens, para que vivenciassem experiênciasmediadas por saberes técnicos, as quais tambémvaleram para que o conhecimento musical encon-trasse novos caminhos de objetivação (Maheirie et al.,2008). A mediação dos instrutores se mostrou fun-damental para a apropriação do conhecimento edas técnicas necessárias à criação do espetáculo mu-sical e, posteriormente, à produção do vídeo sobretal experiência. O processo de criação não é mágiconem surge do nada, uma vez que implica, neces-sariamente, no que Vigotski (1930/2009) chamoude “torturas da criação”. Ou seja, esta se constituia partir dos esforços empreendidos pelo indivíduo,não sem sofrimento, para que se aproprie de umsaber que posteriormente servirá de base para seuultrapassamento.

Os sujeitos produziram o enredo durante osencontros, por meio de debates, conversas, brigase brincadeiras, dialetizando de forma reflexiva eafetiva no momento em que foram apresentadasas possibilidades de figurino. Os ensaios começarama ser realizados nas primeiras reuniões, baseadosno breve enredo desenvolvido. No entanto, as falase posicionamentos, assim como a inserção da per-cussão, aconteceram durante os ensaios subse-quentes, nas improvisações do grupo.

Vigotski (1930/2009) aponta que a imagi-nação se faz possível por um processo anterior deapropriação do conhecimento, o qual é recom-binado de uma nova maneira pela imaginação eposteriormente objetivado no contexto. Sendo as-sim, os processos de criação musical têm seu iníciona percepção que se tem do mundo concreto e seusobjetos, sempre mediada semioticamente, o quepossibilita sua reorganização por meio da fantasia,para que, em seguida, se objetive o novo. Portanto,

Page 7: Imagination and creation processes within a historical ... · formam a ele e à bruxa em seres do bem. A trama finaliza com todos os participantes tocando per- ... por eles foi objeto

55

IMA

GIN

ÃO

NA

PERSPECTIVA

HISTÓ

RICO

CU

LTURA

L

Estudos de Psicologia I Campinas I 32(1) I 49-61 I janeiro - março 2015

a atividade criadora se realiza pela síntese da fan-tasia com os objetos que constituem o mundo,fazendo surgir o novo, que aponta sempre comouma possibilidade, ou seja, como projeto e devir.

A construção do espetáculo sintetizou fan-tasia e realidade, culminando na objetivação de umnovo produto. A partir de materiais como papelão,tinta, tesoura, papel, pincel, cola e lápis, os partici-pantes criaram o castelo, o calabouço e sua chave,a vara e o chapéu da bruxa, bem como a varinhada fada. Os vestidos que compunham o figurino dapeça foram emprestados pela instituição, e cadaator escolheu o que melhor se ejustava a seu per-sonagem. Finalizando o momento da construçãodo espetáculo, foram feitos os ensaios finais e reali-zadas as duas apresentações já referidas.

Para Vigotski (1930/2009), a atividade criadoraocorre partindo dos elementos que as pessoaspercebem e significam na/da realidade e que sãoregistrados por meio da memória. A partir dessesnúcleos de memória, os quais constituem as histó-rias de vida dos sujeitos, a atividade imaginativa seapresenta como um processo psicológico (re)combi-nador. Entretanto, a atividade criadora pressupõenecessariamente a objetivação, ocorrendo somentequando completa seu ciclo, ou seja, quando seuproduto volta à realidade, produzindo algo no mun-do. Quando isso acontece, o sujeito transforma arealidade e a si próprio, dando novo sentido a suasexperiências.

O autor (Vigotski, 1930/2009), ao falar sobrebrincadeira de crianças, observa que elas refletemna brincadeira aquilo que percebem no contexto.No entanto, esse reflexo nunca é meramente umacópia, mas sim um trabalho criativo de recombi-nação das impressões que a criança tem do con-texto. Ela combina e usa tais impressões para cons-truir uma “nova realidade” que corresponda às suaspróprias necessidades e desejos. Portanto, ao brincare imaginar, a criança recria o seu contexto num pla-no imaginário, organizando assim suas ideias sobreo seu lugar social. Visto isso, é possível entender aimportância de espaços que permitam e estimulema criação infantil, pois estes acabam por ser exce-lentes ferramentas de mudança social, ao permitiràs crianças testar o novo no faz-de-conta, no planoda imaginação, lugar onde tudo se torna possível.

Para Vigotski (1930/2009), os sentimentosmovem a imaginação, a atividade imaginativa crianovos sentimentos, em um movimento em queemoção e pensamento se vinculam. Ou seja, naatividade criadora sentimentos e emoções se res-significam. Essa transformação de sentimentos, pormeio da imaginação e da criação estética, pôde serobservada diversas vezes durante esta investigação,em suas múltiplas fases.

Com o espetáculo em processo de finali-zação, a percussão foi reaparecendo entrelaçadana linguagem teatral. Conhecimentos musicais apro-priados anteriormente se fizeram a base para areapropriação da percussão no espetáculo; uma vezdesconstruídos, foram recombinados em um novoproduto (Maheirie et al., 2008). Os participantesforam atribuindo características musicais aospersonagens e à própria história, trazendo grandeparte das batidas da percussão aprendidas ante-riormente. Assim, “a criatividade dos sujeitos apare-ceu por meio da (re)composição musical, possibi-litada pela construção de conhecimentos que osinstrumentalizaram para que pudessem objetivar asua subjetividade na formação do espetáculo” (p.193).

Discussão

Atividade criadora na experiência dasmeninas

A história criada para o espetáculo, revividapela memória na produção do vídeo, é compreen-

dida como unificação das experiências vividas nahistória dessas meninas. É possível perceber nodiscurso de algumas participantes a preocupaçãocom a dicotomização, bom vs mal, certo vs errado,coisa de menino vs coisa de menina. Nessa pers-pectiva, a própria história-enredo criada pode ser

resumida como a luta do mal contra o bem, emque o bem tenta regenerar as pessoas más. É impor-tante ressaltar que algumas das participantes já

haviam tido contato com o fazer teatral, e a históriacriada naquele contexto em muito se assemelhavacom a criada na oficina de criação deste espetáculo.Vigotsky (1930/2009) aponta que as criações não

Page 8: Imagination and creation processes within a historical ... · formam a ele e à bruxa em seres do bem. A trama finaliza com todos os participantes tocando per- ... por eles foi objeto

56

K. M

AH

EIRIE et al.

Estudos de Psicologia I Campinas I 32(1) I 49-61 I janeiro - março 2015

são produzidas a partir do nada, mas que tais pro-duções são sempre fruto da combinação de ele-mentos retirados de outras experiências, e que essacapacidade de criação é o que permite ao homemtransformar-se a partir de novas situações. Difi-cilmente os elementos mudam, mas as relaçõescambiam de acordo com a imaginação de quem ofaz.

Quanto mais rica for a experiência vivida poralguém, maior será a magnitude e complexidadedas coisas por ele criadas (Vigotski, 1930/2009).Assim, é possível entender que essa concepçãodualista de bem e mal presente na história das crian-ças não é somente uma significação individual, masalgo que já foi experimentado, provavelmente naleitura de histórias de contos de fadas, ou conver-sas ouvidas de pessoas a seu redor. Isso permite en-tender claramente que toda criação é um produtohistórico e social, que representa conceitos e ideiasde uma época e um lugar. Já que não há muitosnovos elementos nas criações, quase tudo que nelasé usado já foi antes observado ou experimentado,de alguma forma, no universo em que o criadorestá inserido.

A criação é a combinação de elementos jávividos com novos. A habilidade de combinar ovelho com o novo constitui a base da criação. Quan-to mais rica for a experiência da criança, mais impor-tante e produtiva a atividade de sua imaginação(Vigotski, 1930/2009). Na entrevista com uma dascrianças, pode-se ver que elementos de outra expe-riência de criação teatral entraram na criação danova peça:

Entrevistador: Você já tinha feito teatro

antes?

Luana: Já, já tinha feito, na escola.

Entrevistador: E como era o teatro lá?

Luana: A gente fazia, era o ataque das for-

migas. Tinha a formiga rainha, formiguinha,

tinha a formiga do mal.

Entrevistador: Era mais ou menos parecida

com a peça que vocês mostraram na Casa

da Criança, que tinha rainha, também tinha

as formiguinhas, também tinha os persona-

gens do mal, né? O mágico, a bruxa.

Luana: É, parecida.

A experiência das meninas com a música -ou seja, a música que escutam em suas casas, ouque seus familiares e amigos lhes apresentam -, giraem torno de gêneros como o pagode, o rap e, maisespecialmente, o funk. A finalização do espetáculose deu com a percussão no ritmo do funk, por es-colha e criação dessas meninas. As sonoridades pre-sentes em todo o espetáculo unificam-se com suasvivências musicais, apresentando melodias conhe-cidas desde a infância.

No espetáculo produzido a partir de oficinasde percussão e criação de roteiro e cenário, paraalém da criação de todos os pormenores da obra,pode-se também refletir também sobre o próprioato de atuar, de experenciar o que fora antes ima-ginado.

A imaginação, como subjetivação de mate-rialidades em imagem mediadas semioticamente,é o exercício do imaginário que, para Pino (2006),

é comparável a uma fábrica de produção. Tal ideiaindica a relação inexorável entre o real e o imagi-nário, em que o primeiro precede o segundo, en-quanto este o modifica, material e simbolicamente.

Maria, outra menina participante do projeto,ao assistir o vídeo de uma etapa da criação do espe-táculo, lembrou que, inicialmente, havia um circono qual Eliane era o palhaço:

Eliane, conta-nos Maria, gesticulava cha-

mando as pessoas para assistir a um show,

“venham, venham!”, gritava com um maço

de papel na mão. Luana logo lembra à

amiga que o maço de papel era um exemplar

do Diário Catarinense [jornal de circulação

diária]. “Que memória!”, exclama o pesqui-

sador, “mas e aí, como foi que você virou

flor, Eliane?” A menina responde: “foi o má-

gico quem me transformou”. Luana, o má-

gico, complementa mais uma vez com sua

voz tímida: “ela não me deixava entrar den-

tro do circo, aí transformei ela em uma flor”.

Enquanto houvesse um palhaço a segurar

um jornal nas mãos, o mágico não poderia

entrar no circo. Mas, como todo bom má-

gico, habitante do plano irreal, Luana ima-

ginou o arlequim não mais com seu nariz

Page 9: Imagination and creation processes within a historical ... · formam a ele e à bruxa em seres do bem. A trama finaliza com todos os participantes tocando per- ... por eles foi objeto

57

IMA

GIN

ÃO

NA

PERSPECTIVA

HISTÓ

RICO

CU

LTURA

L

Estudos de Psicologia I Campinas I 32(1) I 49-61 I janeiro - março 2015

vermelho, mas com pétalas e flores, e enfim

executou o seu plim transformador: estava

livre, pela mágica, para entrar no circo (Ano-

tações de campo).

Tomando como eixo principal a imaginaçãopara entender os processos de criação e com base

no princípio da interconexão entre os processos psi-cológicos complexos (Pino, 2000), pode-se con-ceber a percepção e a cognição como Processos

Psicológicos Complexos (PPC) que alimentam e pro-duzem a imaginação. Se alguém fizer como Luana,pode imaginar uma flor. Assim como quem percebe

uma flor, quem a imagina vai enxergá-la em per-fis - mas de maneira imediata. Pode girá-la e olharpor dentro de suas pétalas; pode olhá-la por cima,

pelo lado, por baixo, enfim, por todos os perfis aomesmo tempo, o que não seria possível na per-cepção. Porém, nenhum perfil ou elemento ima-

ginado poderia sê-lo antes de ser percebido ouconhecido, já que a imaginação é a transformaçãode um conhecimento antes apropriado.

Diferentemente da flor que se percebe, na

qual cada novo olhar revela um detalhe não visto,na flor que se imagina os detalhes antes apropriadossão recriados. As crianças, ao brincarem com umaimagem de flor, foram afetadas pela imagem--lembrança de um teatro do qual haviam anterior-mente participado, ou de outra experiência vividacom uma flor. De qualquer forma, o saber acercadesse objeto se dá no próprio ato em que ele surgecomo imagem, mesmo que não se reconheça oconhecimento nesse ato.

Sartre, partindo de bases epistemológicasdistintas das de Vigotski, pode contribuir com estasreflexões, ao ponderar que o saber é fundamentalao imaginário. Para ele, a intenção está no centrodo [ato de imaginar]: é ela que visa o objeto, isto é,que constitui pelo que ele é. O saber, que está indis-soluvelmente ligado à intenção, especifica que oobjeto é este ou aquele, acrescenta sinteticamentedeterminações. [Nosso] “saber é um saber do obje-to, um saber tocando o objeto” (Sartre, 1936/1996,p.24, grifo do autor).

Para o autor, imaginar é dirigir-se a um obje-to irreal ou ausente, como impulso a alguma coisa.

Sua definição indica a imaginação como relação eque o imaginário (como substantivo) não se con-

funde com um depósito onde se armazenam ima-gens. Ao contrário, tal postura aponta o carátertransfenomênico da imaginação, a qual, assim como

a percepção e a reflexão, também precisa de umobjeto para se fazer. Ao colocar a imaginação comoato que envolve a subjetividade em direção a um

objeto, Sartre contribui com as reflexões desen-volvidas neste artigo, que concebe o imaginário co-mo um processo psicológico complexo, na medi-

da em que envolve a relação entre o subjetivo e oobjetivo.

A flor que Luana imaginou, esse objeto-em--imagem, não estava “dentro” dela; portanto só exis-

tiu com uma intenção e um saber que posicionassetal objeto. Seu ato de imaginar visou o objeto en-quanto objeto concreto e situado, assim como o

ato perceptivo e o ato reflexivo visam o seu obje-to - mesmo que o façam, cada qual, à sua maneira.

Criar é uma forma de transcender o já vividoem função do ainda não existente. É recombinar os

elementos da realidade que foram apreendidos, pormeio da percepção significativa, do sentido estéticoe da reflexão, para desconstruí-los e reconstruí-losde outra forma, impulsionados pela imaginação.Assim, é possível compreender o motivo pelo quala imaginação é a base para toda e qualquer formade criatividade, seja ela artística, científica ou técni-ca, já que nela o sujeito vai além de seu passado ede suas experiências vividas, projetando-se emfunção de um porvir. Portanto, o processo de criação

implica na subjetividade realizando uma articulaçãotemporal, visando a uma transformação da objetivi-dade (Maheirie, 2003).

Função psicológica complexa do campo dasubjetividade, a imaginação é uma atividade criado-ra ou, como afirma Pino (2006), uma atividade pro-dutiva, na qual o indivíduo forma os objetos a partirde uma síntese de elementos afetivos e elementosde seu saber. Por isso, as produções imaginárias sefazem imprescindíveis para toda produção humana,seja material ou simbólica. Imaginar, nessa pers-pectiva, é da ordem do humano, da “autodeter-minação, da liberdade e da consciência” (p.49).

Page 10: Imagination and creation processes within a historical ... · formam a ele e à bruxa em seres do bem. A trama finaliza com todos os participantes tocando per- ... por eles foi objeto

58

K. M

AH

EIRIE et al.

Estudos de Psicologia I Campinas I 32(1) I 49-61 I janeiro - março 2015

O personagem não é o ator. Eliane não é aprincesa. Mas isso não significa que ela não tenhase mobilizado para produzi-la, enquanto atuava no

palco e enquanto criava o roteiro com as amigas.Ela utilizou seus sentimentos e gestos, como aná-logos ao sentimento da princesa, e se colocou in-

teiramente na história criada, realizando-se em seupersonagem.

A atitude imaginante tem um sentido e umautilidade para a dinâmica psicológica. Sabe-se que

é ela que permite ao indivíduo lançar-se além dopresente, sobre o passado, visando um futuro, per-mitindo-lhe projetar algo novo, para uma situação

além da condição material que lhe é dada.

Modos de apropriação da experiênciade criação

Em todas as redações produzidas pelas me-ninas ao final da experiência de criação, apareceramagradecimentos. Elas também escreveram palavras

como “legal”, “divertido”, “muito bom”, “engra-çado”, apontando o lúdico e prazeroso como partedo processo experenciado. Além disso, trouxeram

também relatos da dificuldade em se aprender atécnica musical da percussão, apontando que “nocomeço eu levava tudo na brincadeira, mas depoiseu vi que o bagulho tava ficando mais sério e dalipra frente eu resolvi mudar nas atitudes do teatro eeu comecei a levar o que eu queria pra mim maisa sério”, relata Maria, que gostou muito de seraplaudida na apresentação final no Teatro da UFSC.

Eliane relata que “vai levar para o resto davida tudo o que aprendi com vocês”, e Biancaexplica que não fala que “valeu a pena da boca prafora nem para agradar vocês, é porque eu gosteimesmo de coração!”. Nesses relatos, percebe-senitidamente o envolvimento afetivo entre as parti-cipantes e os mediadores das oficinas, aliado aotom de “quero mais” e “de que foi uma oportu-nidade maravilhosa”.

É comum também o relato da dificuldadeem aprender a tocar música. Tal dificuldade foirelacionada à figura do professor de percussão, na

medida em que as falas sobre ele estão semprevoltadas às dificuldades no aprendizado da técnica.Por exemplo, Luana afirma: “Não gostei quandoeu tava lá brincando com o ‘coisinha’ e o professorpegou no meu pé, não sei o quê, porque eu tavabrincando. Porque eu tava assim, ‘ah! Eu não seitocar essa coisa aí’, mas aí teve uma hora que eutive que aprender, né”. Aprender uma nova técnicanunca é fácil, é necessário disciplina, esforço, persis-

tência até que a técnica fique suficientemente incor-porada para que seja possível a criação do novo apartir dos elementos já conhecidos da técnica.

Estas garotas relatam terem tido importantes

recompensas pelo seu esforço, como se apresentarpara um público novo e para suas famílias, conheceroutros espaços e fazer amigos, o que as estimulou

a aprender, cada vez mais. Tendo conseguido seapropriar da percussão e realizar o espetáculo,muitas demonstraram um grande aumento da auto-

estima. Por exemplo, nas palavras de Maria, “Ai,eu sempre fui... tipo eu sempre me destaquei emcoisas assim, de tocar. Aí eu fui à primeira aluna aaprender direito o que ele tava ensinando. Aí eleme entregou o bumbo e eu comecei a tocar”. Luanaconta que passou a ter uma visão diferente acerca

de si mesma: “Mudou! Porque antes eu era bemburra, não sabia, Daí o professor ficava pegandono meu pé e ficava, aí eu ficava: ‘ai mas eu não seifazer isso! Eu não vou fazer...’ Daí agora eu sei!Agora mudou porque agora eu sei!”.

A criação implica uma postura afetiva, o queé fundamental para a criação (Maheirie, 2003), quenecessita da crítica para se alimentar. Como pro-cesso de construção social, ela não se confunde coma noção de talento inato ou vocação. Processos psi-cológicos complexos são fundamentais para a pro-dução criativa, possibilitando não só a composiçãodo novo, mas também seu resultado. Ou seja, apartir da criação, o sujeito modifica suas possibi-lidades afetivo-cognitivas, o que, por sua vez, trans-

forma a vida e a própria leitura de seu contexto. Aobjetivação criadora, por seu turno, transforma tam-bém a própria realidade, uma vez que possibilitauma reação estética (Vigotski, 1925/1998) nos su-jeitos que com ela vierem a se relacionar. Assim,

Page 11: Imagination and creation processes within a historical ... · formam a ele e à bruxa em seres do bem. A trama finaliza com todos os participantes tocando per- ... por eles foi objeto

59

IMA

GIN

ÃO

NA

PERSPECTIVA

HISTÓ

RICO

CU

LTURA

L

Estudos de Psicologia I Campinas I 32(1) I 49-61 I janeiro - março 2015

consequência das relações semioticamente me-diadas, os processos psicológicos complexos sãoconstruídos e reconstruídos ao longo da história dos

sujeitos, graças à subjetivação de ferramentas sim-bólicas (Riviére, 1985).

Para Vigotski (1931/1983), as funções psico-lógicas superiores são constituídas por processos

que se dão a partir do desenvolvimento cultural,como o idioma, a escrita etc., e são conhecidas atual-mente por atenção, imaginação, memória lógica,

formação de conceitos etc. Processos psicológicoscomplexos, segundo a psicologia de Vigotski, sãonecessariamente mediados por signos, e possibi-

litam ao ser humano a relação com a realidade,com os outros e consigo mesmo, mediatizada pelacultura (Zanella, 2001).

Partindo de uma concepção de sujeito que

se define histórica e socialmente, os processoscriativos se constituem, como os demais processospsicológicos complexos, como relações sociais inter-

nalizadas (Pino, 2000) ao longo do desenvolvimento

histórico do sujeito. Assim, sua origem e desenvol-

vimento se dão no movimento de uma subjeti-

vidade que se objetiva singularmente, ao mesmo

tempo semelhante e diferente do outro, o qual se

faz mediação na sua constituição. A condição dos

processos de criação, assim como de outros pro-

cessos psicológicos complexos é, justamente, a de

não surgir do nada, uma vez que vai se ancorando

inicialmente numa realidade social para, depois, se

individualizar ao longo da história do sujeito. A ima-

ginação, processo psicológico que possibilita qual-

quer atividade criadora de um sujeito singular, está

sempre atrelada à realidade, a qual é sempre lida,

interpretada e significada através da mediação dos

signos e das palavras, indicando que a atividade

criadora de sujeitos singulares depende diretamente

de suas experiências (Vigotski, 1930/2009).

Luana, fascinada com a universidade, ao ser

informada de que um dia poderia nela trabalhar,

questionou prontamente o pesquisador: “como

trabalhar? assim, limpar?” Quando se imaginou tra-

balhando, imaginou a partir de suas condições

concretas de vida, trazendo um saber anterior das

tarefas já aprendidas. Depois de informada de quepoderia ali trabalhar como estudante e pesquisadorano futuro, Luana experimentou esse outro futuro

também como possível, abrindo uma nova pers-pectiva a se imaginar e objetivar, caso as condiçõesconcretas e materiais o viabilizem.

Considerações Finais

No que diz respeito à implicação das ativi-dades oferecidas pela investigação para os sujeitos

participantes (oficinas de música, teatro e vídeo),pôde-se perceber, no relato de alguns deles, umaampliação das perspectivas futuras. O futuro só é

possível em função da imaginação, processo psico-lógico complexo, imprescindível a uma existênciaefetivamente humana. Assim, fez-se importante

descrever a imagem para poder compreender agrande função da imaginação, destacando sua apa-rição no decorrer do processo de criação do espetá-

culo “O mágico contra o som”.

O fato de ser uma pesquisa-intervenção pos-sibilitou que isso acontecesse, uma vez que as ofi-cinas promovidas pelo projeto também possibi-

litaram para as crianças o aprendizado de técnicasde percussão, teatro e edição de vídeo, via mediaçãoda equipe de pesquisa, apesar de todas as dificul-

dades encontradas no percurso.

Ao apostar em novos modos de subjetivaçãoe objetivação que serão possíveis em seus devires,entende-se que eles estão se expandindo, ou seja,

expandindo a vida como potência, que pode seraumentada nos encontros com os outros.

Os processos de criação implicam, neces-sariamente, recurso, utilização e desenvolvimentode processos psicológicos considerados complexos.A imaginação é, talvez, uma das características maisimportantes do processo. Sendo assim, não há um

antagonismo entre realidade e imaginação, uma vez

que se extraem da realidade os elementos para a

composição da fantasia (conteúdo do processo

imaginativo). Isso implica que a história de vida de

um sujeito, suas objetivações e subjetivações, reve-

lam a fonte do processo de imaginação. Além disso,

Page 12: Imagination and creation processes within a historical ... · formam a ele e à bruxa em seres do bem. A trama finaliza com todos os participantes tocando per- ... por eles foi objeto

60

K. M

AH

EIRIE et al.

Estudos de Psicologia I Campinas I 32(1) I 49-61 I janeiro - março 2015

há a combinação dos elementos extraídos darealidade e os que o sujeito produz em fantasia,indicando a imaginação como um exercício de

estruturação dessas fantasias. Por fim, há um enlaceemocional que engloba a imaginação, carregandode afeto a relação do sujeito com o contexto ima-

ginário que produz. O produto dessa fantasia seobjetiva em algo novo, a criação propriamente dita,que modifica o sujeito e o contexto no qual o pro-

duto se insere.

A objetivação do processo de criação podeproporcionar ao sujeito um ultrapassamento de suasituação, um movimento de superação na sua his-

tória, uma transformação em seus sentimentos eemoções, em direção a uma postura mais eman-cipatória. Daí a importância de se realizar esta aná-lise, a fim de avaliar criticamente o trabalho em-preendido, o qual envolve a música e outras lingua-gens artísticas com populações de baixa renda, emum contexto sociocultural específico. Entende-seque a experiência vivida por essas meninas na oficinade percussão foi redimensionada a partir da oficinade construção do espetáculo, e novamente (re)signi-ficada na construção do vídeo sobre toda a expe-riência. Ou seja, a experiência vivida por elas torna--se material de elaboração para novas experiências.

Sob esta ótica, cabe perguntar se, de fato,as objetivações criativas no campo supracitado, eseus sentidos para as meninas que as produzem,fazem-se traduzir em uma orientação mais humano--genérica, reconhecendo seu produto no contextoda humanização.

Acredita-se que esta pesquisa-intervençãonão alcança objetivos tão complexos. Não obstante,o produto que dela deriva é sempre coletivo e, sobesta ótica, cumpre necessariamente uma funçãosocial.

A experiência afetou intensamente grandeparte da equipe de pesquisa. Os pesquisadores, aomesmo tempo que mediaram da apropriação denovos saberes, viram-se na experiência modificandoseus propósitos e horizontes. Foram constituídos pormúltiplas vozes, que se entrelaçaram às vozes das

meninas nessa grande experiência, transformando--os como sujeitos e apontando para novos devires.

Esta experiência de pesquisa coloca, peranteo investigador, um produto dialógico e ideológicoao mesmo tempo. Os resultados da investigação eo entrelaçamento teórico que a envolve se faz porum embate de vozes sociais que se compõem e seobjetivam em uma peça que ora se apresenta aqui,na forma deste artigo. Ao mesmo tempo, “nessejogo de forças toda palavra proferida apresenta suacondição ideológica, pois está para um outro comoum signo, sempre e necessariamente posicionadoem relação a um leitor pressuposto e ao própriofoco do discurso” (Groff, Maheirie, & Zanella, 2010,p.99).

Recriando e transformando sujeitos e con-textos, esta investigação acerca dos processos decriação traz sentidos em torno da experiência decriar que não se localizam no discurso das meninasnem na fala dos pesquisadores, mas no enlace daprodução discursiva que se fez em ato no contextoda investigação. Assim, este trabalho aponta algunspossíveis sentidos dos fragmentos da experiênciafocada e alguns possíveis desdobramentos, os quaistalvez ocupem espaços que hoje estão fora do que

a imaginação pode alcançar.

Referências

Groff, A. R., Maheirie, K., & Zanella, A. V. (2010). Consti-tuição do(a) pesquisador(a) em ciências humanas.Arquivos Brasileiros de Psicologia, 62(1), 97-103.

Maheirie, K. (2001) Música popular, estilo estético e iden-tidade coletiva. Revista Psicologia Política, 2(3), 39-54.

Maheirie, K. (2003) Processo de criação no fazer musical:uma objetivação da subjetividade, a partir dos tra-balhos de Sartre e Vygotsky. Psicologia em Estudo,8(2), 147-153.

Maheirie, K., Strappazzon, A., Barreto, F. R., Lazarotto,G., Zonta, G. A., Soares, L. S., …, Schoeffel, S. A.(2008). (Re)composição musical e processos de subje-tivação entre jovens de periferia. Arquivos Brasileirosde Psicologia, 60, 187-197.

Morato, E. M. (2000). Vigotski e a perspectiva enunciativada relação entre linguagem, cognição e mundo social.Educação & Sociedade, 21(71), 149-165.

Pino, A. (2000). O Social e o cultural no obra de Lev S.Vigotski. Educação & Sociedade, 21(71), 45-78.

Pino, A. (2006). A produção imaginária e a formação dosentido estético: reflexões úteis para uma educaçãohumana. Pró-Posições, 17(2-50), 47-69.

Page 13: Imagination and creation processes within a historical ... · formam a ele e à bruxa em seres do bem. A trama finaliza com todos os participantes tocando per- ... por eles foi objeto

61

IMA

GIN

ÃO

NA

PERSPECTIVA

HISTÓ

RICO

CU

LTURA

L

Estudos de Psicologia I Campinas I 32(1) I 49-61 I janeiro - março 2015

Riviére, A. (1985). La Psicologia de Vygotsky. Madri: VisorDistribuiciones.

Sartre, J. P. (1996). O imaginário. São Paulo: Ática. (Pu-blicado originalmente em 1936).

Vigotski, L. S. (1983). Historia del desarrollo delasfunciones psíquicas superiores. In: Obras escogidas III.Madrid: Visor Distribuiciones. (Publicado originalmenteem 1931).

Vigotski, L. S. (2009). Imaginação e criação na infância:ensaio psicológico: apresentação e comentários deA. L. Smolka. São Paulo: Ática. (Publicado original-mente en 1930).

Vigotski, L. S. (1992). Pensamiento y palabra. In Obrasescogidas II. Madri: Visor Distribuiciones. (Publicadooriginalmente en 1934).

Vigotski, L. S. (1998). Psicologia da arte. São Paulo: Mar-tins Fontes. (Publicado originalmente em 1925).

Zanella, A. V. (2001) .Vigotski: contexto, contribuições àpsicologia e o conceito de zona de desenvolvimentoproximal. Itajaí: Univali.

Recebido: setembro 28, 2012Versão final: abril 1, 2014Aprovado: abril 23, 2014

Page 14: Imagination and creation processes within a historical ... · formam a ele e à bruxa em seres do bem. A trama finaliza com todos os participantes tocando per- ... por eles foi objeto

62

K. M

AH

EIRIE et al.

Estudos de Psicologia I Campinas I 32(1) I 49-61 I janeiro - março 2015