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1 A aula passeio contribuindo para a interculturalidade na educação escolar indígena 1 Luiz Carlos Cruz Cunha (SEDUC/UFPA) Eliana Ruth Silva Sousa (UEPA/UNESP) Resumo Apresentamos o ensaio etnofotográfico de uma experiência vivenciada em uma escola indígena situada na Terra Indígena Alto Rio Guamá no município de Santa Luzia do Pará PA. A atividade ocorreu em 2017 durante uma aula de Arte, na turma do 7º ano da Escola Pirá, anexo da Escola Francisco Magno Tembé, na Aldeia Pirá. Destacamos a aula passeio, baseada nos princípios pedagógicos de Celestin B. Freinet, como procedimento de ensino que se aproxima da proposta de escola indígena intercultural, específica e diferenciada. As imagens descrevem uma aula passeio em que os estudantes vivenciam e descobrem a aldeia como local de busca e validação de conhecimentos tradicionais e científicos, passando a observar o meio ambiente em que vivem com outros olhares. Foi possível observar a interdisciplinaridade, interculturalidade, autonomia e solidariedade presentes nas ações desenvolvidas pelos estudantes. Assim, consideramos a aula passeio uma quebra do paradigma tradicionalista do ensino escolar, ainda muito marcante nas práticas pedagógicas nas escolas indígenas. Palavras-chave: Educação Intercultural. Aula passeio. Tembe. Etnofotografia. Introdução A interculturalidade na educação escolar indígena está presente nos discursos e pesquisas, porém, na prática, ainda se insiste na imposição da cultura científica nas salas de aula das escolas indígenas. Nossa experiência e vivência junto ao contexto da educação escolar indígena nos permite fazer essa afirmação. No intuito de propor ações pedagógicas que transforme esse cenário foi planejada uma aula passeio com os dois estudantes da turma do 7º ano da Escola Pirá, anexo da Escola Francisco Magno Tembé, na Aldeia Pirá. A escola atende onze famílias. Possui turmas do ensino fundamental menor, maior e ensino médio. Foi criada em 2008, ano em que se tornou anexo da escola Francisco Magno Tembé. Está localizada na Terra Indígena Alto Rio Guamá no município de Santa Luzia do Pará, nordeste do estado do Pará. 1 Trabalho apresentado no III Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os dias 19 e 21 de setembro de 2018, Belém/PA

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Page 1: indígena1 - EAVAAM · 2020. 3. 15. · Luiz Carlos Cruz Cunha (SEDUC/UFPA) Eliana Ruth Silva Sousa (UEPA/UNESP) Resumo Apresentamos o ensaio etnofotográfico de uma experiência

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A aula passeio contribuindo para a interculturalidade na educação escolar

indígena1

Luiz Carlos Cruz Cunha (SEDUC/UFPA)

Eliana Ruth Silva Sousa (UEPA/UNESP)

Resumo

Apresentamos o ensaio etnofotográfico de uma experiência vivenciada em uma escola

indígena situada na Terra Indígena Alto Rio Guamá no município de Santa Luzia do Pará

– PA. A atividade ocorreu em 2017 durante uma aula de Arte, na turma do 7º ano da

Escola Pirá, anexo da Escola Francisco Magno Tembé, na Aldeia Pirá. Destacamos a aula

passeio, baseada nos princípios pedagógicos de Celestin B. Freinet, como procedimento

de ensino que se aproxima da proposta de escola indígena intercultural, específica e

diferenciada. As imagens descrevem uma aula passeio em que os estudantes vivenciam e

descobrem a aldeia como local de busca e validação de conhecimentos tradicionais e

científicos, passando a observar o meio ambiente em que vivem com outros olhares. Foi

possível observar a interdisciplinaridade, interculturalidade, autonomia e solidariedade

presentes nas ações desenvolvidas pelos estudantes. Assim, consideramos a aula passeio

uma quebra do paradigma tradicionalista do ensino escolar, ainda muito marcante nas

práticas pedagógicas nas escolas indígenas.

Palavras-chave: Educação Intercultural. Aula passeio. Tembe. Etnofotografia.

Introdução

A interculturalidade na educação escolar indígena está presente nos discursos e

pesquisas, porém, na prática, ainda se insiste na imposição da cultura científica nas salas

de aula das escolas indígenas. Nossa experiência e vivência junto ao contexto da educação

escolar indígena nos permite fazer essa afirmação.

No intuito de propor ações pedagógicas que transforme esse cenário foi planejada

uma aula passeio com os dois estudantes da turma do 7º ano da Escola Pirá, anexo da

Escola Francisco Magno Tembé, na Aldeia Pirá.

A escola atende onze famílias. Possui turmas do ensino fundamental menor, maior

e ensino médio. Foi criada em 2008, ano em que se tornou anexo da escola Francisco

Magno Tembé. Está localizada na Terra Indígena Alto Rio Guamá no município de Santa

Luzia do Pará, nordeste do estado do Pará.

1 Trabalho apresentado no III Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os

dias 19 e 21 de setembro de 2018, Belém/PA

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Os moradores dessa aldeia sobrevivem basicamente do plantio de roças.

Produzem farinha, milho, arroz, macaxeira e outros produtos. Tem também a extração do

açaí como fonte de renda em determinados períodos do ano além de alguns fazerem parte

do quadro funcional da educação ou da saúde.

A experiência aqui relatada buscou nos estudos de Freinet o aporte para pensar o

ensino na escola indígena para além da sala de aula, consideramos a própria aldeia como

espaço escolar de muitas possibilidades didáticas e pedagógicas. Ou seja, temos de

ampliar o espaço escolar fazendo-o chegar na natureza e na vida social se quisermos uma

educação com o máximo de eficácia. (FREINET, 1969)

A aula passeio traz todos esses aspectos e reforça/contribui para a efetivação da

educação intercultural na escola indígena. A escola indígena pode torna-se intercultural,

diferenciada, específica, bilíngue e comunitária tomando como pressupostos os princípio

freinetianos: Tateamento Experimental, Educação do Trabalho, Livre Expressão, Senso

Cooperativo. Por meio da

defesa da livre expressão, como consequência necessária da autonomia,

e a livre pesquisa, como consequência do trabalho como meio gerador

de conhecimento novo e, finalmente, a cooperação e autogestão como

resultado coerente e lógico dessa experiência teórico-metodológica.

(KANAMARU, 2014, p. 773)

O contexto das escolas indígenas possui subsídios para o desenvolvimento de aulas com

metodologias diferenciadas, baseadas em pressupostos mais humanistas e menos

capitalistas, formando para a vida e não para o mercado trabalho.

Esta escola já não prepara para a vida; não está voltada nem para o

futuro, nem mesmo para o presente; obstina-se num passado que não

volta […]. […] A Escola que não prepara para a vida, já não serve a

vida; e é essa a sua definitiva e radical condenação […]. (FREINET,

1998, p. 19 apud KANAMURU, 2014, p. 774)

Uma escola para a vida requer professores humanizados, implicados e engajados

nas causas existentes em seu contexto de trabalho. Conhecer e compreender a escola e

seu contexto social, político e cultural pode ser o início para as transformações necessárias

na escola indígena.

Trazemos a seguir o relato e as imagens da experiência em que desenvolvemos

uma aula voltada para a natureza da floresta indígena, buscando conhecimentos que estão

conectados nesse ambiente, como arte e ciências. Durante a aula passeio pudemos

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vislumbrar diversos aspectos importantes para a formação dos estudantes, por exemplo,

curiosidade, criatividade, autonomia e cooperação.

Figura 1 – Crianças Tembé coletando argila.

A figura 1 mostra dois estudantes indígenas Tembé em atividade escolar. A

imagem quebra o paradigma escolar tradicional no que se refere ao espaço em que eles

ocupam. A atividade consiste em coletar argila para produzir artefatos a partir da própria

inspiração. Uma prática que demanda prazer como se pode comprovar pelo semblante da

jovem que se utiliza das mãos para pegar o material.

Depois de cavar o chão à margem do igarapé com o auxílio de uma ferramenta

denominada enxadeco, é hora de colocar esse material dentro de sacos (Figura 2).

Normalmente as tarefas são divididas espontaneamente. O garoto assume a ferramenta de

escavação enquanto que a menina se responsabiliza pela coleta e arrumação desse

material dentro de sacos.

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Figura 2 – Colocando a argila em sacos para levar a aldeia.

Figura 3 – Lavando as mãos depois da coleta da argila.

Com a primeira fase cumprida, é hora de lavar as mãos no igarapé e pensar no

trajeto de volta para a aldeia que está cerca de 700 metros de distância do local da extração

da argila.

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Figura 4 - Primeiras experiências no manuseio da argila.

Mas, antes de iniciar o retorno a aldeia, vale um primeiro teste, um momento em

que os dois jovens resolvem tentar fazer um artefato qualquer, algo sem planejamento

prévio. Para isso utilizam uma cuia como recipiente para misturar argila e água em

medidas certas para preparar uma composição pastosa e então materializar suas

inspirações.

Figura 5 - Argila e cuia.

A cuia é um utensílio que serve basicamente no auxílio a alimentação dos Tembé.

Mas aqui ela assume papel fundamental como base para a mistura da argila e água. Em

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outras situações, ela é também empregada na confecção do maracá, instrumento musical

utilizado em festas tradicionais do povo Tembe Tenetehar. (Figura 5)

Figura 6 – Jovem indígena imaginando uma luva de argila.

Na figura 6 temos um exemplo de como a criatividade é um elemento que faz

parte do processo de aprendizagem. O lúdico manifesta-se por meio da ideia que a jovem

Tembé teve ao inventar uma luva de argila para refrescar as mãos do calor amazônico.

Figura 7- O uso da argila no exercício do grafismo indígena.

Essa imagem reflete um pouco da identidade manifestada pela ideia que a

estudante teve de reproduzir, com argila, em seu braço, um pouco da própria cultura

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gráfica por meio da representação de uma pintura corporal. É o sentimento de pertença

em relação a ancestralidade/identidade manifestando-se espontaneamente. (Figura 7)

Figura 8 - Caminho de volta para aldeia.

A volta para a aldeia é sempre um misto de sensações. A vontade de aliviar o

esforço físico que se faz ao carregar a argila é abrandado pela beleza e variedade da flora

e fauna proporcionada pela caminhada além da vontade de pôr em prática suas ideias em

relação ao material que se leva. (Figura 8)

Figura 9 - Caminhando pelo leito do igarapé.

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O retorno é também um momento de aprendizado, de descoberta. Nesse percurso

os alunos aproveitam para observar uma parte do leito do igarapé que nesse momento

serve de caminho por conta do período de estiagem do verão amazônico. O rastro de um

animal, um peixe em condições de captura, o risco eminente de uma ferroada de arraia, o

choque de um puraquê acuado em uma pequena poça de água ou algum tipo de fruto caído

das árvores que margeiam o igarapé são bons motivos para os olhares vigilantes dessas

crianças. (Figura 9)

Figura 10 - Ramal que dá acesso a aldeia.

Com vistas a escoação dos bens de consumo produzidos pelos Tembé, foram

abertos ramais que interligam as aldeias ao município mais próximo, Capitão Poço. Isso

provocou reações variadas nos indígenas. As crianças, por exemplo, preferiam os antigos

caminhos cobertos pela vegetação. Ainda assim, é fácil perceber aqui o olhar

investigativo desses jovens em relação as margens da estrada. É possível constatar o zig

zag movido pela curiosidade e revelações que o percurso pode oferecer. (Figura 10)

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Figura 11 – Preparando a argila para produção de pequenos artefatos.

Aqui o trabalho é coletivo no sentido preparar a argila para a produção de

artefatos. O ambiente é o mesmo onde cotidianamente se lava louças, roupas e toma-se

banhos. O estudante Tembé aproveitou esse momento para se refrescar um pouco nas

águas desse pequeno igarapé para em seguida iniciar as produções cerâmicas. (Figura 11)

Figura 12 - A argila ganhando forma nas mãos dos estudantes.

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Aqui os estudantes estão literalmente com as mãos na massa. É a argila ganhando

forma pela habilidade e inspiração indígena. Um momento de criação e materialização de

subjetividades artísticas. (Figura 12)

Figura 13 - Artefato de argila pronto.

Entre “erros” e “acertos” os objetos vão se revelando. A satisfação dos estudantes

não está na excelência do artefato produzido, mas sim no conjunto da atividade. No prazer

do contato com elementos da natureza em oposição ao espaço tradicional da sala de aula.

Uma pedagogia intercultural que contempla vivências e saberes desses estudantes

indígenas.

Referências

FREINET, Célestin. Para uma escola do povo: guia prático para a organização material,

técnica e pedagógica da escola popular. Lisboa: Presença, 1969.

KANAMARU, Antonio Takao. Autonomia, cooperativismo e autogestão em Freinet:

fundamentos de uma pedagogia solidária internacional. Educ. Pesqui. São Paulo, v.40,

n. 3, p. 767-781, set. 2014. Disponível em

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-

97022014000300012&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 20 ago. 2017. Epub 21-Fev-2014.

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014005000007.