intervenção psicológica em centros de saúde

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1. INTRODUÇÃO Caracterizar e contextualizar a intervenção psicológica em Centros de Saúde aparecem actualmente como tarefas urgentes e necessárias, em particular porque a integração relativamente recente dos psicólogos na carreira dos técnicos superiores de saúde assim o exige mas também porque, entre todas as questões relacionadas com a intervenção de psicólogos em serviços de saúde, a intervenção nos cuidados de saúde pri- mários é a nosso ver a mais prioritária e, para- doxalmente, a mais desconhecida, quer dos res- ponsáveis pelas políticas de saúde quer dos próprios psicólogos. Ao mesmo tempo, verifica- -se que cada vez mais estagiários das faculdades e cada vez mais licenciados procuram trabalhar em Centros de Saúde, mas não estão acessíveis dispositivos de formação e treino, nem de super- visão, salvo uma ou outra excepção (como é o caso do ISPA, que não só tem procurado integrar a intervenção dos psicólogos nos cuidados de saúde primários nos seus programas de forma- ção, como tem disponibilizado serviço de super- visão e organizado uma conferência anual sobre o tema). Assim, e também tendo em conta as caracte- rísticas específicas dos cuidados primários no sistema de saúde em Portugal, é urgente definir o papel do psicólogo nas equipas de cuidados de saúde primários. Dar um contributo para essa definição é a finalidade principal deste artigo, que desenvolve e aprofunda algumas questões já abordadas an- teriormente (Teixeira & Trindade, 1994), sempre tendo em conta que a saúde comunitária é o con- texto fundamental no qual se deverá delinear a intervenção dos psicólogos nos cuidados de saú- de no século XXI (Diekstra, 1990). Por fim, tenha-se em consideração que a ex- periência tem evidenciado que as representações que outros técnicos de saúde têm acerca do que é o papel da Psicologia e dos psicólogos nos Cen- tros de Saúde afastam-se daquilo que é interna- cionalmente aceite como psicologia da saúde. Este aspecto tem importância quando se pers- pectiva a implantação de psicólogos nos cuida- dos primários e, ao mesmo tempo, pode influen- ciar os processos de integração dos psicólogos nas equipas de saúde, designadamente no quadro das relações interprofissionais e do trabalho em 217 Análise Psicológica (1998), 2 (XVI): 217-229 Intervenção psicológica em centros de saúde O psicólogo nos cuidados de saúde primários ISABEL TRINDADE (*) JOSÉ A. CARVALHO TEIXEIRA (**) (*) Serviço de Psicologia do Centro de Saúde da Pa- rede. Sócia fundadora da Sociedade Portuguesa de Psicologia da Saúde. (**) Instituto Superior de Psicologia Aplicada, Lis- boa. Coordenador do Núcleo de Investigação de Psico- logia da Saúde. Sócio fundador da Sociedade Portu- guesa de Psicologia da Saúde.

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Page 1: Intervenção psicológica em centros de saúde

1. INTRODUÇÃO

Caracterizar e contextualizar a intervençãopsicológica em Centros de Saúde aparecemactualmente como tarefas urgentes e necessárias,em particular porque a integração relativamenterecente dos psicólogos na carreira dos técnicossuperiores de saúde assim o exige mas tambémporque, entre todas as questões relacionadascom a intervenção de psicólogos em serviços desaúde, a intervenção nos cuidados de saúde pri-mários é a nosso ver a mais prioritária e, para-doxalmente, a mais desconhecida, quer dos res-ponsáveis pelas políticas de saúde quer dospróprios psicólogos. Ao mesmo tempo, verifica--se que cada vez mais estagiários das faculdadese cada vez mais licenciados procuram trabalharem Centros de Saúde, mas não estão acessíveisdispositivos de formação e treino, nem de super-visão, salvo uma ou outra excepção (como é ocaso do ISPA, que não só tem procurado integrar

a intervenção dos psicólogos nos cuidados desaúde primários nos seus programas de forma-ção, como tem disponibilizado serviço de super-visão e organizado uma conferência anual sobreo tema).

Assim, e também tendo em conta as caracte-rísticas específicas dos cuidados primários nosistema de saúde em Portugal, é urgente definir opapel do psicólogo nas equipas de cuidados desaúde primários.

Dar um contributo para essa definição é afinalidade principal deste artigo, que desenvolvee aprofunda algumas questões já abordadas an-teriormente (Teixeira & Trindade, 1994), sempretendo em conta que a saúde comunitária é o con-texto fundamental no qual se deverá delinear aintervenção dos psicólogos nos cuidados de saú-de no século XXI (Diekstra, 1990).

Por fim, tenha-se em consideração que a ex-periência tem evidenciado que as representaçõesque outros técnicos de saúde têm acerca do que éo papel da Psicologia e dos psicólogos nos Cen-tros de Saúde afastam-se daquilo que é interna-cionalmente aceite como psicologia da saúde.Este aspecto tem importância quando se pers-pectiva a implantação de psicólogos nos cuida-dos primários e, ao mesmo tempo, pode influen-ciar os processos de integração dos psicólogosnas equipas de saúde, designadamente no quadrodas relações interprofissionais e do trabalho em

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Análise Psicológica (1998), 2 (XVI): 217-229

Intervenção psicológica em centros de saúdeO psicólogo nos cuidados de saúde primários

ISABEL TRINDADE (*)JOSÉ A. CARVALHO TEIXEIRA (**)

(*) Serviço de Psicologia do Centro de Saúde da Pa-rede. Sócia fundadora da Sociedade Portuguesa dePsicologia da Saúde.

(**) Instituto Superior de Psicologia Aplicada, Lis-boa. Coordenador do Núcleo de Investigação de Psico-logia da Saúde. Sócio fundador da Sociedade Portu-guesa de Psicologia da Saúde.

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equipa. Entre nós, também resultados de traba-lhos de investigação levados a cabo junto de mé-dicos e de utentes de Centros de Saúde eviden-ciaram esse distanciamento em relação às abor-dagens da psicologia da saúde (Franco, Sousa, &Teixeira, 1992). Finalmente, a investigação psi-cológica nas áreas da promoção da saúde e daprevenção, tal como a intervenção psicológicanos cuidados de saúde primários, não são aindamuito significativas em Portugal (Cima & Car-valho Teixeira, 1997; Santa Cruz & CarvalhoTeixeira, 1997).

2. PSICOLOGIA DA SAÚDE

Em Portugal, excepto no que diz respeito aosserviços de psicologia dos hospitais psiquiátricose aos departamentos de psiquiatria e saúde men-tal dos hospitais gerais, campo tradicional da in-tervenção da psicologia clínica no sistema desaúde (praticamente sempre perspectivada emtermos da psicopatologia e de psicodiagnóstico),verifica-se implantação escassa dos psicólogosnos serviços de saúde, quer nos centros de saúdequer nos hospitais centrais e distritais. A situaçãocomeça lentamente a modificar-se, mas aindaestamos muito longe do que acontece noutrospaíses em que os psicólogos contribuem já signi-ficativamente para a promoção da saúde, paraprogramas de prevenção, para a humanizaçãodos serviços de saúde e para a promoção da qua-lidade dos cuidados (Egger, 1994; Hornung &Gutsher, 1994; Schroder, 1994; Blanco & León,1994).

A insatisfação que se manifesta em relação àqualidade dos cuidados de saúde resulta, simul-taneamente, destes não darem geralmente res-postas às necessidades psicológicas dos sujeitosque recorrem aos serviços em contextos de crisespessoais, dificuldades de adaptação, problemasfamiliares, doença física, etc. e de existirem cadavez mais sujeitos que necessitam de apoio psico-lógico regular em consequência de acidentes edoenças de evolução prolongada e/ou incapaci-tantes. No caso específico dos cuidados de saúdeprimários há evidências de que disponibilizaraconselhamento psicológico pode aumentar asatisfação dos utentes com a qualidade dos cui-dados de saúde (Papadopoulos & Bor, 1998).

Ao mesmo tempo, partes significativas da

mortalidade e da morbilidade em Portugal estãoassociadas ao comportamento individual (Minis-tério da Saúde, 1997), de tal modo que o compor-tamento do sujeito pode ter influenciado o apare-cimento da alteração do estado de saúde e, aomesmo tempo, poderá influenciar a própria evo-lução da doença. São exemplos bem conhecidosa doença coronária e enfarte do miocárdio, hiper-tensão arterial, diabetes mellitus, obesidade edoenças sexualmente transmissíveis, entre ou-tras, sem esquecer as dependências de substâncias(alcoolismo, por exemplo), certas doenças cance-rosas e os acidentes de viação e de trabalho.

É neste contexto que a Psicologia pode de-sempenhar papel relevante na promoção e manu-tenção da saúde, prevenção e tratamento da do-ença e das disfunções psicológicas individuais efamiliares com ela relacionadas. O domínio dapsicologia da saúde diz respeito ao papel da Psi-cologia, como ciência e como profissão, noscampos da saúde e da doença, inclui as saúdefísicas e mental e abrange todo o campo da Me-dicina, mas ultrapassando-o ao ter em contatambém factores sociais, culturais e ambientaisrelacionados com a saúde e com a doença. Nãosó não tem uma dimensão exclusivamente indi-vidual, tal como é perspectivada tradicional-mente pela psicologia clínica, como o bem-estarpsicológico e saúde mental são dois valoresessenciais que implicam um aporte cada vezmaior da investigação e da intervenção psicoló-gica nos serviços de saúde, a qualidade de vidados sujeitos em contextos de saúde e de doençadeve ser considerada ao mesmo nível que a qua-lidade dos cuidados que são prestados e, mais doque os técnicos de saúde, são os indivíduos e ascomunidades os responsáveis principais pelamanutenção da sua saúde, pela prevenção dasdoenças, pela sobrevivência à doença e pela in-tegração social das pessoas com doenças cróni-cas e/ou deficiências.

Em consequência, a abordagem psicológicaem saúde implica a consideração simultânea dosujeito, da família, dos técnicos de saúde e dosuporte social, com modelos integrados de ava-liação e de intervenção, bem como uma pers-pectiva multissectorial que abrange essencial-mente o sistema de saúde e o sistema educativo,mas que também deverá englobar os dispositivosde segurança social e de suporte comunitário.

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Estes aspectos têm, a nosso ver, três consequên-cias essenciais:

- A psicologia da saúde desenvolve-se e pra-tica-se com contribuições multivariadasda ciência psicológica: educacionais, dife-renciais, sociais, clínicas, organizacionais,psicobiológicas, comunitárias e outras(McIntyre, 1997)

- Os locais privilegiados para o seu exercíciosão os serviços de saúde, quer nos cuidadosprimários quer nos cuidados diferenciados,mas também podem ser as empresas, asescolas e as organizações comunitárias

- São necessários dispositivos específicos deformação e treino, quer académico (licen-ciatura e formações pós-graduadas) quer deformação profissional.

Ao contrário do que por vezes se tenta fazercrer, não é o facto de trabalhar num serviço desaúde que, automaticamente, faz com que opsicólogo esteja a trabalhar em psicologia dasaúde. Pelo contrário, o que conota com psicolo-gia da saúde é um conjunto de parâmetros, a sa-ber:

- Definição do objecto – O sujeito individuale as suas relações com a saúde, a doença oua deficiência, e com a sua família e ostécnicos de saúde, bem como os grupossociais e os seus problemas associados àpromoção da saúde e à prevenção das do-enças

- Delimitação de objectivos em diversasáreas de intervenção e de investigação –Aquisição de comportamentos saudáveis,mudança de comportamentos relacionadoscom a saúde, confronto com procedimentosmédicos indutores de stress, processos deconfronto com a doença e a incapacidade,informação e comunicação nos serviços desaúde, comportamentos de adesão em saú-de, ambientes de tratamento, comporta-mentos de procura de cuidados de saúde,qualidade de vida e saúde, qualidade doscuidados de saúde, perigos ecológicos esaúde, e condições de saúde dos técnicosde saúde (Diekstra, 1990; Weinman, 1990),entre outras

- Modelos teóricos diversificados – Em psi-cologia da saúde a visão dos problemas be-

neficia com a diversidade de modelos teó-ricos que existem em Psicologia, dada acomplexidade e diversidade de questõesque tem de enfrentar (Teixeira, 1989).Destaque para o modelo biopsicossocial epara as teorias sóciocognitivas, relevantesna educação e promoção da saúde e na pre-venção das doenças – modelo de crenças desaúde de Rosenstock e Becker, teoria daacção racional e do comportamento planea-do de Fishbein, teoria da motivação pro-tectora de Rogers, modelo transteórico deProchaska e DiClemente, modelo de per-suasão-comunicação de McGuire (Kok ecol., 1996). Destaque também para os mo-delos relacionados com stress e coping epara o modelo de representações de doençade Leventhal, importantes no confronto eadaptação à doença, no confronto e com osprocedimentos médicos de diagnóstico e detratamento e na adesão em saúde

- Métodos de avaliação – Incluem os méto-dos tradicionais de avaliação individualque são próprios da Psicologia (entrevistaclínica, exame psicológico), mas tambémoutros que são específicos da avaliaçãopsicológica em saúde, quer quantitativosquer qualitativos, bem como a necessidadede desenvolver competências em avaliaçãoneuropsicológica. Destaque para a avalia-ção subjectiva de sintomas, qualidade devida, bem-estar psicológico e sofrimento,crenças e atitudes em relação à saúde e àsdoenças, comportamentos de risco e pre-venção, bem como comportamentos asso-ciados à doença, em especial adaptação ecomportamentos de adesão. Incluem-setambém as possibilidades de avaliar di-mensões específicas tais como hardiness,sentido interno de coerência, comporta-mento tipo A, raiva/hostilidade, comporta-mentos de dor, alexitimia, ansiedade den-tária, locus de controlo da saúde, impacteda artrite, entre outras

- Métodos de intervenção – Incluem essen-cialmente os modelos e técnicas de aconse-lhamento psicológico em saúde (individuale familiar), técnicas cognitivas (diversão daatenção, reestruturação cognitiva), técnicascomportamentais (técnicas de relaxação,des-sensibilização sistemática, técnicas de

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reforço, automonitorização), biofeedback,treino de competências sociais psicoterapiade apoio, intervenção na crise e técnicas deintervenção comunitária.

- Investigação – Actualmente a investigaçãoem psicologia da saúde deriva basicamenteda importância das novas tecnologias mé-dicas de diagnóstico e de tratamento (comosão exemplo as implicações psicológicas erelacionais das novas técnicas de diagnós-tico pré-natal, da reprodução medicamenteassistida e da transplantação de orgãos), denovas doenças, de novas capacidades deconsumo de cuidados de saúde, do desen-volvimento de estilos de vida saudáveis, daimportância dos factores sociais, culturais eétnicos em saúde e da importância da qua-lidade de vida nas doenças crónicas. As-sim, a investigação aparece centrada emáreas-chave que são as dos determinantespsicológicos dos comportamentos protecto-res da saúde e dos comportamentos de riscopara a saúde, da influência do stress e dosuporte social na saúde e na doença, da in-fluência dos factores psicológicos e psicos-sociais nas respostas imunitárias, nosdeterminantes da mudança de comporta-mentos relacionados com a saúde e no estu-do de atributos psicológicos associados àsaúde e à doença, tais como as crenças desaúde, hardiness, sentido interno de coerên-cia, percepção de controlo, expectativasde auto-eficácia, representações de doença,coping, comportamento tipo A, entre ou-tros.

- Formação e treino – Dispositivos de for-mação académica e profissional adaptadosàs necessidades do exercício profissional,incluindo supervisão das práticas profissio-nais.

Já não subscrevemos o conceito de que apsicologia da saúde seria uma subespecialidadeda psicologia clínica (Teixeira & Leal, 1990)nem concordamos com a tese da fusão «psico-logia clínica/psicologia da saúde» (Ribeiro &Leal, 1996). Só o facto histórico de terem sidoessencialmente psicólogos clínicos a iniciarem edesenvolverem em Portugal a psicologia da saú-de permite compreender que ainda haja quem es-teja preocupado com essa questão que, do nosso

ponto de vista, poderá ter algum interesse acadé-mico mas, em Portugal, não contribui para situara psicologia da saúde nos seus contextos cultu-ral, social e comunitário.

O que defendemos é que, no contexto espe-cífico da formação académica dos psicólogos nonosso país, são os psicólogos clínicos e os deaconselhamento e psicoterapias que – em funçãodas suas formações de base – estão mais voca-cionados para o trabalho em psicologia da saú-de. No entanto, é necessária uma formação espe-cífica em psicologia da saúde. Esta formaçãoespecífica, pós-graduada, deve ser aberta a qual-quer outra área de especialização das licencia-turas em Psicologia, não sendo desejável, a nos-so ver, a admissão de formandos que não sejamlicenciados em Psicologia, pelo menos enquantoem Portugal os psicólogos não estiverem bemimplantados e integrados nos serviços de saúde.

A saúde é um constructo multifactorial queresulta de uma interacção complexa entre facto-res culturais, sociais, psicológicos, físicos, bio-lógicos e espirituais, pelo que a sua promoção ea sua manutenção implica vários processos psi-cossociais na interacção entre o sujeito, o siste-ma de saúde e a sociedade. Assim estamos deacordo com Marks e Rodriguez-Marín (1996)quando afirmam que a psicologia da saúde é aaplicação das teorias, métodos e investigaçãopsicológicos à saúde, à doença e aos cuidadosde saúde, preocupando-se com os aspectos psi-cológicos da promoção e da mautenção da saú-de, do confronto com a doença e dos próprioscuidados de saúde no contextos individual,familiar, laboral, organizacional, cultural e co-munitário. Assim, o grande desafio é o de colo-car a psicologia da saúde no contexto cultural,sociopolítico e comunitário (Marks, 1996) ecompreender o seu impacte em diferentes fasesdo ciclo de vida (Schmidt, 1994), aspectos queainda são mais prioritários quando se considera aintervenção psicológica nos cuidados de saúdeprimários.

3. INTERVENÇÃO PSICOLÓGICA EMCENTROS DE SAÚDE

Nos cuidados de saúde primários presta-seatenção especial ao bem-estar psicológico dos

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sujeitos e dos grupos sociais, nomeadamenteem diferentes fases do ciclo vital. Nesta pers-pectiva, a intervenção psicológica é importantepara que, com ponto de partida nos Centros deSaúde, o desenvolvimento na comunidade deprogramas que visem a promoção e manutençãoda saúde, bem como a prevenção de doenças re-lacionadas com o comportamento, tenham tam-bém em conta os factores psicológicos envolvi-dos na saúde e nas doenças.

Como já foi notado anteriormente (Teixeira &Trindade, 1994), há cerca de 20 anos, no ReinoUnido, afirmava-se que os médicos de clínicageral tinham conhecimento escasso do papel efunções profissionais dos psicólogos, e vice--versa. Julgamos que em Portugal estaremossensivelmente nesse ponto. Assim, neste artigoperseguimos uma finalidade dupla: por um lado,caracterizar o papel profissional dos psicólogosnos cuidados de saúde primários, designada-mente a partir do ponto de vista da psicologia dasaúde, o que se afigura particularmente impor-tante considerando que não existe formação psi-cológica especificamente direccionada para aintervenção em Centros de Saúde; por outro, di-vulgar as potencialidades da intervenção psico-lógica junto de outros técnicos de saúde.

A construção de uma componente forte de in-tervenção de psicólogos nos cuidados de saúdeprimários exige abertura e motivação por partedos médicos e dos psicólogos, aprofundamentodo conhecimento mútuo e trabalho em equipa,em particular nos programas de saúde desenvol-vidos no quadro dos Centros de Saúde. Impor-tante também que os responsáveis pelas políticasde saúde, nomeadamente ao nível do Ministérioda Saúde e das Administrações Regionais deSaúde conheçam cada vez melhor as potencia-lidades da intervenção psicológica nos serviçosde saúde prestadores de cuidados primários(leia-se: na perspectiva da psicologia da saúde)e as vantagens da integração de psicólogos nosCentros de Saúde, nomeadamente ao nível daqualidade dos cuidados e da satisfação dosutentes.

Importa salientar, antes de mais, que a delimi-tação da área de colaboração interprofissionalexige o reconhecimento genuíno de que o inte-resse da integração dos psicólogos nos cuidadosde saúde primários pouco tem que ver com oscampos da patologia mental, das perturbações

por uso de substâncias e das perturbações psicos-somáticas, nos quais o interesse essencial dosCentros de Saúde é, a nosso ver, o de uma articu-lação eficaz com equipas de psiquiatria e saúdemental, que tanto tem faltado. Pelo contrário, aabordagem da psicologia da saúde é bastantemais ampla e envolve:

- Contribuição para programas de promoçãoda saúde e de prevenção das doenças, emespecial aquelas nas quais o comportamen-to está implicado

- Adesão a exames de saúde e rastreios, emdiferentes fases do ciclo vital

- Processsos de confronto e adaptação à do-ença (física e mental) e à incapacidade

- Stress induzido pelo confronto com proce-dimentos médicos de diagnóstico e/ou tra-tamento

- Problemas de adesão a tratamentos mé-dicos, regimes alimentares, desenvolvimen-to de auto-cuidados e medidas de reabili-tação

- Desenvolvimento da informação relaciona-da com a saúde e processos de comunica-ção em contextos de saúde

- Comportamentos de procura de cuidadosde saúde e determinantes da utilização dosserviços de saúde

- Qualidade dos cuidados de saúde e huma-nização dos serviços.

Como se pode constatar, é grande a diferençaem relação ao campo tradicional de intervençãodos psicólogos clínicos. A nosso ver, em termosde saúde mental, o que é relevante para a inter-venção nos cuidados de saúde primários deve li-mitar-se à participação em programas de promo-ção da saúde mental desenvolvidos na comuni-dade e à consideração de aspectos psicológicosassociados à saúde física de sujeitos com per-turbações mentais.

3.1. Papel do Psicólogo nos Cuidados deSaúde Primários

A equipa de cuidados de saúde primários éconstituída pelo médico (que pode ser um mé-dico de família ou um médico de saúde pública),enfermeiro (que pode ser um enfermeiro «de ca-beçeira» ou um enfermeiro de saúde pública),técnico de serviço social e outros técnicos, entre

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os quais se pode incluir o psicólogo. No entanto,a constituição das equipas pode variar con-soante as funções a desempenhar (por exemplo,na função assistencial articulam-se o médico defamília, o psicólogo e o técnico de serviço social,enquanto que no programa de educação para asaúde articulam-se o médico, o enfermeiro desaúde pública e o psicólogo) e ajusta-se às ca-racterísticas da comunidade e aos problemas desaúde nela predominantes.

A equipa de cuidados de saúde primáriosassume todas as funções que tendem para garan-tir e melhorar o nível da saúde individual e co-munitária ao nível da promoção da saúde (com oobjectivo de manter e melhorar a saúde indivi-dual e comunitária), da prevenção (medianteacções dirigidas a problemas específicos e commetodologias próprias para cada situação par-ticular), da função assistencial (ligada ao tra-tamento da doença), da reabilitação (no treino decompetências pessoais e desenvolvimento dossuportes comunitários necessários à integraçãoda pessoa deficiente), na investigação e na for-mação.

As funções ligadas à promoção da saúde, àprevenção da doença e à reabilitação são opera-cionalizadas através dos programas de saúde:planeamento familiar e saúde materna, saúde in-fantil, saúde mental, saúde oral, saúde escolar,saúde de adolescentes, saúde do adulto, saúde doidoso, prevenção de acidentes, doenças cárdio ecérebrovasculares, diabetes, tumores malignos,doenças transmissíveis (incluindo programa devacinação, tuberculose e doenças sexualmentetransmissíveis), hemoglobinopatias, etc.

Cada Centro de Saúde desenvolve a sua acti-vidade com os programas de saúde que, em fun-ção dos resultados do diagnóstico de situação, seafiguram como sendo os mais adequados à co-munidade abrangida.

As contribuições do psicólogo para a pres-tação de cuidados de saúde primários podemsistematizar-se em três áreas (Teixeira & Trin-dade, 1994):

(1) Na promoção da saúde, em particular naimplementação de práticas de saúde e depolíticas de saúde que contribuam para obem-estar individual e colectivo e capaci-tem os sujeitos para aumentarem cada

vez mais o seu controlo sobre a saúde, de-signadamente mobilizando agentes sociaise autarquias e integrando acções de in-formação e educação para a saúde (esco-las, locais de trabalho), de mudança orga-nizacional e de desenvolvimento comu-nitário visando a promoção de estilos devida saudáveis

(2) Na protecção da saúde, designadamentena implementação de segurança no traba-lho, na prevenção de acidentes (profissio-nais, de viação e de lazer) e na luta contraas ameaças ecológicas para a saúde. Nesteparticular, poderá também participar emprogramas de saúde ambiental

(3) Nos serviços preventivos, nomeadamentede saúde materna, saúde infantil, saúdeescolar, saúde oral, saúde ocupacional,saúde dos idosos, prevenção das doençassexualmente transmissíveis, das doençascárdiovasculares, dos tumores malignos,bem como nas contribuições que, no âm-bito da cooperação com os médicos de fa-mília possam ser úteis na mudança de es-tilos de vida e na facilitação da adesão atratamentos, a programas de auto-cuida-dos (em especial nas doenças crónicas) ea comportamentos saudáveis.

É neste contexto que importa agora caracte-rizar o papel profissional do psicólogo em áreasfundamentais (Botelho, 1990; Ludovino, 1990;Teixeira & Trindade, 1994): promoção da saúdee prevenção, função assistencial, reabilitação, in-vestigação, formação de outros técnicos de saú-de, e outras actividades.

3.1.1. Promoção da saúde e prevenção

Nesta área a intervenção psicológica articula--se com as actividades de saúde comunitária, nãosó as desenvolvidas pelo Centro de Saúde mastambém as que são desenvolvidas por organiza-ções comunitárias e autarquias locais, desde queno quadro de projectos cooperados com o Centrode Saúde.

Trata-se de integrar o papel do psicólogo coma implementação de práticas de saúde, o quepode ocorrer em acções de informação e educa-ção para a saúde e de desenvolvimento comuni-tário relacionadas com alimentação, prática de

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exercício físico, contracepção e planeamento fa-miliar, tabaco, álcool e drogas, prevenção de aci-dentes/segurança no trabalho, etc. Concordamoscom Schmidt (1994) que é necessário promoveruma abordagem psicológica dos problemas desaúde comunitária, quer no plano dos conteúdosquer no plano metodológico, abrangendo mode-los teóricos e metodologias de avaliação e inter-venção e, ao mesmo tempo, estudos de psicoepi-demiologia que permitam recolher dados sobrequalidade de vida relacionada com a saúde e as-pirações dos indivíduos, grupos e população emgeral.

Em termos da área geográfica abrangida peloCentro de Saúde, julgamos indispensável que, talcomo é referido por Taylor, Repetti & Seeman(1997), o psicólogo deverá prestar atenção par-ticular a características da comunidade que po-dem ter efeitos desfavoráveis sobre a saúde, no-meadamente pobreza e condições degradadasde habitação, mobilidade de certos grupos so-ciais, exposição a violência e erosão de redessociais.

Neste contexto torna-se particularmente im-portante a participação em actividades de edu-cação para a saúde, uma das formas de atingiros objectivos da promoção da saúde, não só emacções especificamente direccionadas para a po-pulação escolar mas também no âmbito dos vá-rios programas desenvolvidos nos Centros deSaúde, abrangendo outras populações-alvo. Aeducação para a saúde é uma actividade planeadaque beneficia de uma abordagem multidiscipli-nar na qual o papel do psicólogo é essencial paraa avaliação dos comportamentos, para a análisedos possíveis programas de intervenção e para aimplementação dos programas (Kok e col.,1996).

No que se refere à prevenção é desejável aparticipação em programas de saúde escolar,saúde oral, saúde materna, saúde infantil, saúdeocupacional, saúde dos idosos, bem como emprogramas de prevenção das doenças cárdio-vasculares, cancro e doenças sexualmente trans-missíveis, entre outros.

A intervenção na área da saúde escolar cons-titui oportunidade para implementar a aquisiçãoprecoce de comportamentos de saúde, com o queisto implica para a promoção da saúde e preven-ção da doença e para a promoção do sucesso es-

colar (Maça & Trindade, 1997). Neste âmbito opsicólogo deve contribuir para intervenções cujoobjectivo seja optimizar os recursos afectivos ecognitivos da população envolvida, e que aomesmo tempo contribuam para o desenvolvi-mento de competências que facilitem a resistên-cia à pressão social que pode conduzir a compor-tamentos de risco para a saúde. A saúde escolardeve ser, portanto, um dispositivo mais global depromoção da saúde da criança e do adolescente,não devendo reduzir-se às questões do sucessoescolar.

Compete ao psicólogo delinear intervençõesadequadas às diferentes fases do desenvolvi-mento psicológico da população-alvo e ao con-texto social, tendo atenção especial às minoriasétnicas e culturais.

As modalidades de intervenção podem serdiversas, mas têm que ter sempre em considera-ção o indivíduo como um todo, o que faz comque seja necessário não só intervir directamentecom as crianças e os adolescentes, mas tambémno meio escolar e familiar. Neste contexto podeser pertinente actuar ao nível individual e/ou fa-miliar, em grupos com as crianças ou adoles-centes, com as famílias ou com os professores.Por vezes, é necessário trabalhar a todos estesníveis, de modo a alcançar os objectivos propos-tos.

Entre nós, a saúde dos idosos merece desta-que particular, dado o crescimento rápido do nú-mero de idosos associado ao envelhecimento dapopulação portuguesa, especialmente no referen-te a aconselhamento de saúde para idosos (nasáreas do comportamento alimentar e do exercíciofísico de lazer) e intervenção associada a dificul-dades de memória, perturbações cérebrovascu-lares, demências e incontinência (Santos & Trin-dade, 1997).

Poderão ser desenvolvidas, consoante as ne-cessidades, actividades específicas relacionadascom programas de supressão tabágica, modifi-cação do comportamento tipo A em sujeitoscom doença coronária, controlo da dor crónica eaconselhamento preventivo.

3.1.2. Função assistencial

É desenvolvida no quadro de uma consulta depsicologia funcionando como (1) consulta de re-ferência para os clínicos gerais/médicos de fa-

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mília, mas também como (2) dispositivo de apoioaos diferentes programas de saúde que são de-senvolvidos no Centro de Saúde.

É aqui que é necessária a integração do pa-radigma clínico com os factores que influenciamo desenvolvimento e a mudança de comporta-mentos em saúde, tal como referida por Olden-burg (1994), enfatizando uma abordagem de tipoecológico-social em saúde, de tal modo que oestilo de vida do sujeito individual é consideradono contexto das interrelações dinâmicas estabe-lecidas com o ambiente familiar, social e físico epoderá conduzir à necessidade de intervençãoem múltiplos níveis.

Tem-se em conta também que a intervençãopsicológica neste contexto difere dos serviçospsicológicos tradicionais em 4 aspectos princi-pais:

- O número de consultas é elevado- O tempo de cada consulta é mais curto- Os utentes não apresentam geralmente per-

turbações mentais relevantes- A colaboração com o médico de família é

essencial.

O último aspecto implica um modelo de cola-boração próprio da equipa de saúde primária, noqual o papel do psicólogo é o de ser um gene-ralista que é responsável pela contextualizaçãodo problema, quer ao nível das questões psicoló-gicas e psicossociais quer ao nível do problemade saúde (Graça Pereira, 1996).

Os critérios de selecção de utentes para con-sulta e atendimento individual devem ser estabe-lecidos em função das necessidades concretas decada Centro de Saúde e, tanto quanto possível,deverão incluir a possibilidade de avaliaçãoe/ou acompanhamento de casos problemáticosno âmbito de (Schillitoe e col., 1986; Trindade& Carvalho Teixeira, 1994):

- Mudança de comportamentos e prevenção- Processos de confronto e adaptação à do-

ença e incapacidade- Stress induzido por procedimentos médicos

de diagnóstico e tratamento- Comportamentos de adesão- Crises pessoais e/ou familiares (luto, pro-

blemas conjugais, etc.)- Perturbações de ajustamento (ansiosas e

depressivas)

- Perturbações do desenvolvimento e com-portamento infantil

- Dificuldades de comunicação dos utentescom os técnicos (relacionada com informa-ção de saúde, tratamentos, etc.)

Apesar de se considerar aqui uma dimensãode atendimento individual, o facto de se articularcom a Medicina Familiar implica atenção per-manente a características do ambiente familiarque podem influenciar a saúde dos seus mem-bros, em particular crianças e adolescentes, quepodem associar-se a stress emocional, depressãoe comportamentos de risco para a saúde. Impor-tante identificar (Taylor, Repetti, & Seeman,1997): ambiente familiar conflitual ou mesmoviolento; suporte afectivo escasso; alternância decontrolo parental excessivo com ausência de li-mites e de apoio estruturante.

Grande número de intervenções individuaissão do âmbito do aconselhamento psicológicoem saúde, quer na perspectiva da promoção dasaúde individual e da prevenção, quer do con-fronto e adaptação à doença (física e mental) eaos seus tratamentos (Corney, 1996). Julgamosque o aconselhamento psicológico em saúde deorientação cognitivo-comportamental é o maisajustado à integração do psicólogo em equipasde cuidados de saúde primários.

Concordamos com Papadopoulos e Bor(1998) que o desenvolvimento de aconselha-mento psicológico nos cuidados de saúde primá-rios não deverá limitar-se a sujeitos referencia-dos pelos médico de família. Pelo contrário,deverá estar disponível a jusante dos programasde saúde (para aconselhamento preventivo indi-vidual) e para a própria equipa (desenvolvimentode competências para o aconselhamento por par-te de outros técnicos de saúde e prevenção dostress ocupacional).

É de referir que podem existir obstáculos àcolaboração entre os psicólogos e os médicos defamília (Pace e col., 1995) que importa reconhe-cer e superar, nomeadamente no que se refere aperspectivas diferentes na abordagem teórica eprática dos problemas de saúde e à influênciadominante do estatuto profissional e social dosmédicos. Em particular porque, dado o papel dosclínicos gerais/médicos de família nos cuidadosde saúde primários, o desenvolvimento de rela-

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ções profissionais eficazes com estes médicos éum objectivo estratégico para os psicólogos.

3.1.3. Reabilitação

A intervenção psicológica direcciona-se aquipara a integração social e profissional de sujeitoscom doença crónica incapacitante, com a finali-dade de promover adaptação mais satisfatória àsituação, por parte do sujeito e da família. Po-dem ser importantes as estratégias de confronto eos processos de ajustamento psicológico à hos-pitalização, cirurgia, dor crónica e ao cancro(Blanco & Leon, 1994), bem como às conse-quências de traumatismos cranianos e de aciden-tes vasculares cerebrais.

Neste âmbito, o psicólogo poderá tambémdesempenhar papel mediador entre a equipa desaúde e a equipa de reabilitação, bem como entrea equipa de saúde e os suportes comunitários ne-cessários para a integração.

3.1.4. Investigação

No quadro dos cuidados de saúde primários éimportante que os psicólogos participem emprojectos de investigação desenvolvidos pelosCentros de Saúde, designadamente estimulandoa sua realização e influenciando as atitudes dosoutros técnicos para a necessidade da investiga-ção, que é desejável ser investigação-acção.Noutros casos, pode ser interessante quer par-ticipem em projectos de investigação intersecto-riais que são propostos ao Centro de Saúde poroutras instituições, nomeadamente autarquiaslocais, escolas, universidades e organizações co-munitárias, por exemplo.

A importância da investigação psicológicaem cuidados de saúde primários está relacio-nada, entre outros aspectos, com a relevância dapromoção da saúde e dos estilos de vida saudá-veis, da emergência de novas doenças relacio-nadas com o comportamento, com os padrões deutilização dos serviços de saúde, e com a promo-ção da qualidade de vida relacionada com asaúde. Assim, é natural que as grandes áreas deinvestigação possam ser:

- Factores psicológicos relacionados comos comportamentos saudáveis e dos com-portamentos de risco para a saúde

- Determinantes psicológicos da mudançade comportamentos em saúde

- Influência do stress e do suporte social nasaúde e na doença.

- Implementação da qualidade de vida rela-cionada com a saúde.

3.1.5. Formação de outros técnicos e voluntá-rios

É desejável a participação do psicólogo emacções de formação contínua destinadas aoutros técnicos (técnicos de saúde, técnicos deserviço social) e voluntários (de organizaçõescomunitárias) em especial centrada em aspectospsicológicos relacionados com as suas interven-ções na prestação de cuidados. Os conteúdosconcretos da formação terão de ser adaptados àscaracterísticas e necessidades da comunidadeabrangida e ao papel desempenhado pelos desti-natários.

O psicólogo pode influenciar as atitudes dosoutros técnicos (Derksen, 1986). Identificamosvárias temáticas nas quais poderá ser considera-da essa influência: educação para a saúde e pre-venção, participação comunitária, ciclo de vida esaúde, influência social e cultural nos cuidadosde saúde, informação e comunicação em saúde,comportamentos de adesão e desenvolvimentode autocuidados, saúde dos idosos, minoriasétnicas e culturais, comportamentos de procurade cuidados de saúde e utilização de serviços desaúde, e qualidade dos cuidados.

Não deverá negligenciar-se a sensibilizaçãodos outros técnicos para aspectos psicológicosenvolvidos, por exemplo, no crescimento e de-senvolvimento, alimentação, contracepção, pla-neamento familiar, disfunções sexuais, gravideze maternidade, envelhecimento, doenças cárdio-vasculares, hipertensão arterial, dependência doálcool e drogas, tabagismo, cancro e outras do-enças crónicas e doenças sexualmente transmis-síveis.

3.1.6. Outras actividades

Incluimos aqui a participação dos psicólogosno desenvolvimento da qualidade dos cuidados edos serviços, designadamente através da sua in-tegração e participação activa em programas degarantia de qualidade nos Centros de Saúde,

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especificamente nas 4 áreas prioritárias de inter-venção definidas pela Comissão Nacional deHumanização e Qualidade (Ministério da Saúde,1997): acessibilidade dos serviços, acolhimento,personalização dos cuidados e continuidade doscuidados. Contribuição importante pode ser da-da, por exemplo, na avaliação da satisfação dosutentes, introduzindo metodologias psicológicas.

O desenvolvimento de projectos inovadoresno âmbito dos Centros de Saúde é uma área naqual é útil a participação dos psicólogos, nomea-damente ao nível da intervenção comunitária eda melhoria da acessibilidade aos cuidados desaúde.

A intervenção psicológica em projectos decuidados continuados assume, a nosso ver,grande importância, tendo em conta que sãocuidados dirigidos a sujeitos que, não necessi-tando de internamento, requerem assistência eacompanhamento continuados, designadamentenos locais onde se encontrem (domicílio, lares,etc.), cuidados que também exigem um disposi-tivo que permita dar resposta às necessidadespsicológicas dos doentes e famílias envolvidas,tornando-lhes acessíveis diferentes modalidadesde ajuda e aconselhamento psicológicos. Alémdisto, em projectos desta natureza a intervençãodo psicólogo também poderá ser direccionadapara a adaptação dos níveis de prestação doscuidados em função das variações dos níveis defuncionamento individual e dos recursos dodoente e da família, para a monitorização daqualidade dos cuidados prestados e para a pro-moção da adesão a longo prazo do doente, da fa-mília e dos parceiros envolvidos na prestaçãodos cuidados.

3.2. Formação

A formação necessária para a intervençãopsicológica nos cuidados de saúde primáriospode ser definida como envolvendo aspectosgerais (de formação em psicologia da saúde) eespecíficos (relacionados com os cuidados desaúde primários).

A nosso ver, o modelo de formação, tal comorecomendado pela European Federation of Pro-fessional Psychological Associations (EFPPA)(Marks e col., 1995) e pela American Psycholo-gical Association (APA) (Sheridan e col., 1989),deverá integrar as duas vertentes fundamentais –

profissional e académica – de forma a promovero desenvolvimento de competências para a inter-venção e para a investigação-acção. Entre nós,isto coloca uma questão central: como desenvol-ver formação adequada às necessidades dosserviços de saúde portugueses tendo em conta ainexistência e/ou inadeaquação de dispositivosapropriados de formação profissional e, ao mes-mo tempo, a existência de dispositivos de for-mação académica muitas vezes desligados darealidade e das necessidades dos serviços desaúde?

A análise comparativa dos aspectos gerais eespecíficos da formação que sistematizamosabaixo com os da Portaria 171/96, de 22 deMaio, que aprovou o programa de formação doestágio do ramo de psicologia clínica da carreirados técnicos superiores de saúde, permitirá evi-denciar facilmente a inadequação dos seusobjectivos e conteúdos, que a Portaria 191/97, de20 de Maio não conseguiu corrigir integralmen-te, porque a sua elaboração não parece ter obede-cido aos parâmetros europeus de intervenção psi-cológica nos serviços de saúde.

3.2.1. Formação geral

Os aspectos gerais da formação são os quemais habitualmente são definidos em psicologiada saúde (Carvalho Teixeira, 1997):

- Conhecimentos básicos de psicologia dasaúde – Ciclo de vida. Cognições relacio-nadas com a saúde. Modelos teóricos decomportamentos relacionados com a saúde.Factores socias e étnicos relacionados coma saúde. Psico-neuro-imunologia e psicofi-siologia. Educação para a saúde. Prevençãono contexto dos comportamentos relacio-nados com a saúde. Factores de risco psi-cológico para a saúde e factores psicoló-gicos protectores da saúde. Informação ecomunicação nos serviços de saúde. Pro-cedimentos médicos indutores de stress.Confronto com a doença. Aspectos psico-lógicos associados à dor crónica, cancro,doença crónica, cirurgia, doença infantil eSIDA. Adesão em saúde e utilização dosserviços de saúde. Gerontopsicologia. Qua-lidade de vida em saúde.

- Conhecimentos básicos de ciências da saú-

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de – Biologia. Epidemiologia. Sociologiada Saúde. Economia da Saúde. Medicina.Fisiologia. Políticas de Saúde. Sistema Na-cional de Saúde.

- Desenvolvimento de competências para aintervenção – Avaliação de necessidades deeducação para a saúde e de prevenção. En-trevista e questionários em saúde. Métodosde avaliação psicológica específicos emsaúde. Elaboração de informações e de re-latórios psicológicos. Compreensão de pro-blemas transculturais. Aconselhamento psi-cológico em saúde suas diferentes moda-lidades. Trabalho com grupos. Intervençãocomunitária.

- Desenvolvimento de competências para ainvestigação – Utilização de metodologiasde investigação psicológica em saúde. De-limitação de problemas. Tipos de estudos.Problemas éticos da investigação em saúde.

- Desenvolvimento de competências para aformação e outros conhecimentos – Ensinoe transmissão de informação: comunica-ções, trabalhos de grupo, supervisão de es-tagiários. Planeamento, execução e avalia-ção de acções de formação. Papel e funçõesdo psicólogo em serviços de saúde. Traba-lho em equipa. Relações interprofissionais.Questões éticas e deontológicas do exercí-cio profissional em psicologia da saúde.Aspectos legais, estatuto profissional e car-reiras.

3.2.2. Formação específica

Os aspectos específicos da formação podemser subdivididos em (Trindade & Carvalho Tei-xeira, 1997; Stokes, Alexander e col., 1987):

- Aquisição de conhecimentos – Problemasde saúde mais comuns na consulta de me-dicina familiar. Processos psicológicosassociados às mais comuns alterações doestado de saúde e crises pessoais que maisfrequentemente determinam procura de cui-dados em clínica geral/medicina familiar.Aspectos familiares, sociais e culturais re-lacionados com a saúde e a doença. Desen-volvimento psicológico e aquisição decomportamentos protectores da saúde.Mudança de comportamentos em saúde.

Avaliação psicológica relacionada com asaúde em diferentes fases do ciclo de vida(crianças, adolescentes, adultos e idosos) erelacionada com diversos motivos de con-sulta e/ou referência por parte de outrostécnicos. Evolução do conceito de cuidadosde saúde primários. Organização e funcio-namento do Centro de Saúde. Perfis pro-fissionais dos vários técnicos. Qualidade deserviços de saúde. Recursos comunitáriosem áreas diversas (saúde mental, serviçostutelares de menores, educação especial,reabilitação, associações de doentes, gru-pos de ajuda mútua, etc.)

- Aptidões – Tratamento de informação mui-to variada necessária à avaliação de casos.Desenvolvimento de tarefas de avaliação eintervenção psicológica tendo em conta oritmo de trabalho em cuidados de saúdeprimários. Identificação de sujeitos comriscos psicológicos para a sua saúde física,decorrentes de características de persona-lidade e/ou estilo de confronto. Trabalhocooperado com outros técnicos e funcioná-rios.

- Desenvolvimento de atitudes – Trata-se dodesenvolvimento de atitudes para estabe-lecer relação personalizada com utentes etécnicos; disponibilizar-se para a auto-ava-liação e autoformação; reconhecer as suaspróprias necessidades de actualização;compreender que ajudar os sujetos a resol-verem por si mesmos os seus problemasrelacionados com a saúde e com os servi-ços de saúde é uma actividade essencial naintervenção psicológica; não tomar partidosna instituição; facilitar a comunicação entreos utentes e os diferentes técnicos; evitarabordagens reducionistas dos problemasde saúde.

- Desenvolvimento de competências – Paraalém das referidas anteriormente nos as-pectos gerais, acentuam-se aqui o trabalhoem equipa e a participação em grupos detrabalho, intervenções comunitárias, acon-selhamento psicológico em saúde e estabe-lecimento de formas eficazes de comunica-ção e de cooperação com os outros técni-cos, bem como as competências de avalia-ção e de intervenção psicológicas com su-

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jeitos saudáveis, doentes ou deficientes emdiferentes fases do ciclo de vida.

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RESUMO

Neste artigo, os autores caracterizam a intervençãopsicológica em Centros de Saúde. Definem o papel dopsicólogo nos cuidados de saúde primários no âmbitoda promoção da saúde e da prevenção, consulta psico-lógica, investigação, formação de outros técnicos e ou-tras actividades. Finalmente, discutem as necessidadesde formação para a intervenção psicológica neste im-portante sector do sistema de saúde.

Palavras-chave: Psicólogo, cuidados primários desaúde.

ABSTRACT

In this article, the authors characterize the psycho-logical intervention in Health Centers. They explainthe psychologist functions in primary health care in thescope of health promotion and prevention, psycho-logical consultation, research, training of health wor-kers and others activities. Finally, they discuss thetraining needs for the psychological intervention inthis important sector of the health system.

Key words: Psychologist, health primary care.

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