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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO
INVALIDADES TRIBUTÁVEIS
NILSON HENRIQUE BEGA PAULON
ORIENTADOR: GUILHERME ADOLFO DOS SANTOS MENDES
RIBEIRÃO PRETO
2015
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO
NILSON HENRIQUE BEGA PAULON
INVALIDADES TRIBUTÁVEIS
RIBEIRÃO PRETO
2015
NILSON HENRIQUE BEGA PAULON
INVALIDADES TRIBUTÁVEIS
Monografia apresentada ao Departamento de Direito Público da
Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo,
junto à disciplina DFB 9001 – Trabalho de Conclusão de Curso, como
parte dos requisitos a obtenção do título de Bacharel em Direito.
Orientador: Guilherme Adolfo dos Santos Mendes
RIBEIRÃO PRETO
2015
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
PAULON, Nilson Henrique Bega
Invalidades tributáveis. Ribeirão Preto, 2015.
78p. ; 30cm
Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado à Faculdade de
Direito de Ribeirão Preto/USP.
Orientador: MENDES, Guilherme Adolfo dos Santos
1. Direito Tributário 2. Direito Privado 3. Invalidades negociais 4.
Fato jurídico tributário
NILSON HENRIQUE BEGA PAULON
INVALIDADES TRIBUTÁVEIS
Monografia apresentada ao Departamento de Direito Público da
Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo,
junto à disciplina DFB 9001 – Trabalho de Conclusão de Curso, como
parte dos requisitos a obtenção do título de Bacharel em Direito.
Nota Final Atribuída: ____________________________________
Aprovado em ____ de ______________de 2015
Banca Examinadora:
________________________________________________
Professor Orientador Guilherme Adolfo dos Santos Mendes
________________________________________________
Professor Doutor Alexandre Naoki Nishioka
Aos meus pais, verdadeiros autores
de cada palavra que aqui se escreve;
verdadeiros patronos do esforço sem o qual
não me haveria um campo do possível;
inventores de cada janela que um dia me
abriu um futuro.
RESUMO
Este estudo pretende abordar a temática das invalidades negociais do ponto de vista
do Direito Tributário, assim, tratará de determinar se tais atos jurídicos comportam incidência
de tributos e, nesse caso, em que condições isto se dará. A questão se complexifica quando se
atenta ao efeito da decretação de nulidade ou da anulação: expulsar ato e efeito do mundo
jurídico. Buscará, portanto, surpreender os casos em que tipos estruturais ainda possam ter sua
incidência preservada, mesmo diante de negócio jurídico inválido.
ABSTRACT
This study intent to approach contract nullification from the perspective of Tax
Law, therefore seeks to set if these defective negotial acts can or cannot be marked as a tribute
hypothesis and supposing an affirmative answer under which circumstances it would happen.
The question gets intricate when we notice that the main effect of the nullification is to expel
contract and it effects from the legal world. In conclusion it wants to find out if the so called
“structural types” can be used as basis for a tribute after the contract invalidation.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 14
PLANO DO TRABALHO .................................................................................................................. 16
PRIMEIRA PARTE – O FENÔMENO JURÍDICO ....................................................................... 18
CAPÍTULO 1 – O MUNDO JURÍDICO ...................................................................................... 19
1. O mundo jurídico .................................................................................................................. 19
2. Teoria negocial: tomada de posição ...................................................................................... 20
3. Teoria ponteana ..................................................................................................................... 21
4. A decretação de invalidade ................................................................................................... 25
SEGUNDA PARTE – RELAÇÕES ENTRE DIREITO PRIVADO E DIREITO TRIBUTÁRIO
............................................................................................................................................................... 27
CAPÍTULO 2 – DIREITO PRIVADO E DIREITO TRIBUTÁRIO ......................................... 28
5. Interação entre direito privado e direito tributário ................................................................ 28
6. Como a comunidade jurídica convencionou o código de significação de estruturas privadas
nas hipóteses tributárias? ............................................................................................................... 31
6.1. Os arts. 109 e 110 do CTN ............................................................................................ 34
6.2. Repercussões da tomada de posição. ............................................................................. 38
CAPÍTULO 3 – O NEGÓCIO JURÍDICO COMO SIGNO ....................................................... 44
7. Apreciação semiótica do negócio jurídico e a tributação de invalidades .............................. 44
7.1. A causa como elemento do negócio jurídico ................................................................. 50
7.1.1. A causa como atribuição patrimonial .................................................................... 50
7.1.2. A causa tal qual concebida por Heleno Tôrres ...................................................... 52
7.1.3. Considerações finais sobre o papel da causa ......................................................... 54
TERCEIRA PARTE – O TEMPERAMENTO DO ILÍCITO INVALIDANTE ........................... 56
CAPÍTULO 4 – A ATRIBUIÇÃO DE EFEITO MODULADOR À CAPACIDADE
CONTRIBUTIVA ........................................................................................................................... 57
8. Temperamento da regra geral: a capacidade contributiva como moduladora de efeitos
invalidantes ................................................................................................................................... 57
8.1. O princípio da capacidade contributiva e a modulação de efeitos da invalidade .......... 60
8.2. A capacidade contributiva como cláusula geral e a modulação dos efeitos da invalidade
64
8.3. Alteração dos efeitos do ilícito invalidante ................................................................... 68
CONCLUSÕES ........................................................................................................................... 71
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CITADAS E CONSULTADAS: ....................................... 72
14
INTRODUÇÃO
Este estudo pretende abordar a temática das invalidades1 negociais2 do ponto de
vista do Direito Tributário, assim, tratará de determinar se tais atos jurídicos comportam
incidência de tributos e, nesse caso, em que condições isto se dará.
O problema se introduz com o enunciado posto no art. 118, I do CTN (Código
Tributário Nacional), cujos termos impõem regras interpretativas para as formulações deônticas
no Direito Tributário. Deste modo seria necessário, na atitude aplicacional deste particular
ramo, proceder à abstração quanto aos chamados planos da validade e eficácia, em outras
palavras, pouco importaria se um ato jurídico tivesse sido atacado por nulidade ou anulação,
qualquer que fosse o caso seria apto a compor antecedente de norma individual e concreta
constitutiva do tributo.
De fato, segui-lo à risca sem ponderar o instituto negocial não parece impossível.
Ora, uma vez ultimada a avença já aí teriam nascido as bases para a incidência, cogitar o que a
ela se seguiu certamente não atende às necessidades de eficiência anseadas pelo Fisco, nem
mesmo parece provável que tenha o ente condições para averiguar as circunstâncias negociais
singulares a cada caso. Eis, portanto, o amparo da regra: a praticidade da aparência.
Mas o rigor lógico aplicado às relações que se formam entre invalidades (como
antecedentes) e tributações (como consequentes) daria-nos uma resposta tão simples?
Tomemos as características que costumam caracterizar a nulidade:
a) o juiz as deve decretar de ofício tão logo as conheça;
b) qualquer interessado pode alegá-las;
1 O título inicial proposto para o trabalho era Nulidades tributáveis, no entanto, percorrendo a dogmática privada,
notamos que o termo nulidades referindo-se à nulidades absolutas e relativas era inadequado por reduzir a questão
ao plano da eficácia e, às vezes, tomar um tomar um caso de anulabilidade por um caso de nulidade. Como aponta
MIRANDA, P. Tratado de direito privado, T. IV. Campinas: Bookseller, p. 66 “O sentido adequado de relatividade
e absolutidade é o referente aos limites subjetivos da eficácia: relativa é a eficácia só atinente a um, ou a alguns,
absoluta, a eficácia erga omnes. Ora, já esse sentido não pode ser o que serviria a se distinguirem o nulo e o
anulável”; no mesmo sentido MELLO, M. B., Teoria do fato jurídico: plano da validade. São Paulo: Saraiva,
2014, p. 99: “A impropriedade terminológica no emprego das expressões nulidade absoluta e nulidade relativa
parece-nos evidente, porque (a) à mesma expressão são atribuídos sentidos diferentes, (b) o que cria ensejo ao seu
emprego para designar objetos distintos. Por isso, o seu uso leva à possibilidade de incorrer-se na imprecisão de
dizer que uma nulidade absoluta (=nulidade), quando apenas alegável pelo interessado direto, seria, também, uma
nulidade relativa. A falta de precisão, que a torna carente de cientificidade, nos leva a recusá-la, seguindo a doutrina
que nos parece mais correta.”. Por estas razões, neste trabalho empregaremos o vocábulo “Invalidades” para
referirmos ao fenômeno jurídico que abrange as nulidades e anulabilidades. 2 Invalidades negociais consideradas como gênero, não em cada uma de suas espécies.
15
c) são insanáveis. Ressalve-se que quando houver elemento que
possa ser substituído será possível a repetição, mas nesse caso o que nasce é um novo
negócio;
d) são imprescritíveis;
e) é necessária a desconstituição do próprio ato jurídico.3
Notemos que a maioria das características está a indicar sua instabilidade
existencial no mundo jurídico, aliás, apagar o ato é medida que se comanda ao juiz tão logo
encontre o negócio nulo. Atentemo-nos a este ponto para indagarmos: se há a desconstituição
do próprio fato jurídico que suportava a incidência do tributo, será ainda possível que este fato
tributário persista? Ou ruem os dois com a queda do primeiro?
De outro giro, supor que algo que existiu, por influência de ato humano, deixe de
ter existido pode soar absurdo, cedendo espaço à argumentação de que a desconstituição só se
dá para o futuro, ao menos quanto ao ato (plano da existência). Destarte, restaria ainda presente
o suporte para a construção do fato jurídico tributário.
Em conclusão, parece oportuno, do ângulo acadêmico, o desempenho da pesquisa,
já que muitos dos enunciados que procuram solucionar o problema baseiam-se em premissas
construídas já há um tempo considerável, sendo razoável colocá-los à prova observando se
resistem ao confronto com as teorias mais recentes sobre o fato gerador da obrigação tributária.
Aliás, no que tange ao seu aspecto prático, não é menor o interesse que desperta, basta
atentarmo-nos para o cenário de insegurança ocasionado pela falta de determinação de um
esquema normativo para a questão, articulá-lo significa fazer sobressair a previsibilidade e,
necessariamente, a calculabilidade dos riscos assumidos por cada ator negocial, deixando-os a
par das consequências que podem vir a experimentar ainda que reste fulminada a contratação.
3 No caso dos efeitos dos atos nulos, normalmente, não os produzem, razão pela qual costuma não caber sua
desconstituição.
16
PLANO DO TRABALHO
O presente trabalho, para desenvolver-se, exigiu um olhar variado que, à primeira
vista, poderia parecer fragmentário, no entanto, o esforço analítico, de incisão e separação do
conjunto, desempenhou-se voltado à molecularização do esquema normativo. Quis esmiuçar
para reconstruir e esclarecer para sustentar as bases sistemáticas e coerentes do fenômeno.
Nessa esteira é que estão postas diferentes zonas teóricas, aparentemente
desnecessárias ao recorte temático, como ferramental de trabalho apto a pincelar a figura
precisa, o quadro minucioso da tributação que recai sobre invalidade.
Com efeito, temos na questão um caso de antecedente cuja hipótese contempla um
outro fato jurídico, razão pela qual foi necessário tomar posição a respeito de um mecanismo
juridicizador, em outras palavras: em que condições é possível atribuir o predicado “jurídico”
a um dado fato social?
O avanço fez notar as nuances entre “incidência” e “aplicação”. De um lado atinar
sobre a viabilidade de a norma jurídica atuar instantânea e automaticamente sobre o fato social,
de outro notar se a põe-se em ação apenas quando manipulada pelo ente competente a denotar
o enunciado protocolar da norma jurídica.
Considerando, como aqui se fez, que as invalidades só podem eivar atos jurídicos
lato sensu, foi ainda necessária a escolha de uma teoria dos atos e negócios jurídicos
pormenorizada a ponto de conceder ao intérprete o momento exato em que o ilícito invalidante
ataca o ato, implicando, assim, no roteiro que seguirá a própria incidência tributária. Como não
podia deixar de ser, neste momento retomamos as velhas discussões sobre as interações
possíveis entre direito tributário e direito privado, aproximando, tanto quanto possível, a norma
do art. 118 de algumas das classificações propostas.
Tudo isso feito, estavam alcançados os alicerces para um esquema geral de
tributação de invalidades que, ao encarar o negócio jurídico como relação sígnica, fez do art.
118 moderador da experiência colateral negocial no direito tributário.
Mas mesmo aqui as questões ainda pareciam pulular, casos limítrofes se
apresentavam como que para desdizer toda chance de coadunação entre invalidades e
tributação. Foi então que a teoria dos fatos jurídicos adotada veio à tona para solucionar as
17
perplexidades, configurando com firmeza a modulação dos efeitos ex tunc de uma invalidade
decretada.
19
CAPÍTULO 1
O MUNDO JURÍDICO
O problema de ser ou não-ser, no direito como em todos os ramos do
conhecimento, é problema liminar. Ou algo entrou ou se produziu e, pois, é, no mundo
jurídico; ou nele não entrou, nem se produziu dentro dele, e, pois, não é.4
1. O mundo jurídico
Se pusermos como ponto preliminar um processo fenomenológico5, seria possível
colocar o conhecimento como situação complexa, aberta à identificação de alguns componentes
mínimos. Com efeito, o fenômeno se apresenta como objeto apenas a um sujeito cognoscente
e se modela de acordo com as formas disponíveis para sua abordagem. Uma relação humana de
conhecimento encontra como que seu filtro em estruturas receptoras do mundo sensível,
igualmente, sua construção está dependente dos recursos linguísticos presentes nos indivíduos.
Neste expediente a organização de eventos categorizados como fatos naturais está sujeita a
menos filtros que aqueles necessários para a construção de um fato social. Atribuir a qualquer
evento o predicado “social” exige algo além, demanda o manejo de outros códigos de
significação, da mesma maneira que subcategorizar um fato social como “liberal” irá requerer
novos filtros e assim por diante.6
O direito, numa analogia com essa estrutura cognoscitiva, poderia ser tomado como
uma espécie de sujeito7 dotado de modos próprios para apreender os fatos sociais.
Naturalmente, o desenrolar deste processo dará como produto o mundo jurídico: a soma de
4 MIRANDA, P. Tratado de direito privado, T. IV. Campinas: Bookseller, 2000, p.41. 5 Apropriemo-nos do olhar de VILANOVA que concebe o conhecimento como fato complexo com os seguintes
componentes: sujeito cognoscente; atos de percepção e de julgar; objeto do conhecimento; a proposição. Cf.
VILANOVA, L. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. São Paulo: Noeses, 2010, p. 1. 6 “Ora, como toda a linguagem é redutora do mundo sobre o qual incide, a sobrelinguagem do direito positivo vem
separar, no domínio real-social, o setor juridicizado do não juridicizado.” CARVALHO, P. B. Direito Tributário:
Fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 11. 7 Ou, mais precisamente, um outro código de significação operado pelo sujeito e que lhe descreverá o filtro a
recolher os fatos jurídicos.
20
todos os fatos qualificados como jurídicos8. A esta “apreensão”, que como veremos não é ato
ensimesmado mas comunicacional9, costuma-se nomear incidência10 ou juridicização11.
Interessa-nos a questão porque o caso aqui tratado dobra-se sobre uma hipótese
jurígena peculiar, aquela em que o antecedente preenche-se com consequente de outra norma.
O direito, em primeiro lugar, juridiciza um fato social como negócio jurídico para depois, num
movimento metalinguístico, rejuridicizar o próprio enunciado como fato jurídico tributário.
2. Teoria negocial: tomada de posição12
Se o fenômeno jurídico estudado é transpassado por metalinguagem, devemos
desde já tomar posição sobre que código estará a ditar a expressão que precede. Diante de
construções doutrinárias tão amplas, como escolher uma teoria do negócio jurídico adequada à
solução da questão? Comecemos por estabelecer alguns critérios.
De início é mister que nossa premissa seja reputada. Não é proposta deste trabalho
consagrar qualquer teoria de direito privado. Sustentar teses pouco acolhidas excede a
incumbência e faz decrescer a acolhida do principal por uma rejeição “a priori”: desde logo não
se concede o pressuposto. Eis que o campo de escolha deve ater-se ao geralmente aceito.
Mas não basta que partamos do que é tido como notável. Será necessário acatar
aquilo que se destaca e se produz para o direito brasileiro, porque aqui, com maior
probabilidade, teremos preservada a harmonia com o sistema. Não será um ferramental
enxertado, impróprio para o trato do ordenamento.
A amostra ainda deve restringir-se pela completude da teoria13. De fato, não seria
apropriado preferir um esquema que equiparasse eficácia e validade. A separação rígida dos
8 MIRANDA, P. Tratado de direito privado, T. I. Campinas: Bookseller, 1999, p. 52. 9 CARVALHO, P. B. Direito Tributário: Fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 21:
“Nesta visão, o direito vai aparecer como grande fato comunicacional, sendo a criação normativa confiada aos
múltiplos órgãos do sistema. O sujeito produzirá regras apenas na medida que participe, efetivamente, daquele
processo, integrando o fato concreto da comunicação jurídica.” 10 MIRANDA, op. cit., p. 41. 11 MELLO, M. B., Teoria do fato jurídico: plano da existência. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 10 12 Ainda diremos mais sobre os fatos jurídicos em geral, mas os apontamentos restantes ultrapassam a teoria que
será eleita nas próximas linhas, por isso serão apresentados num passo futuro como complemento. 13 Citemos Sílvio Rodrigues que recusa os problemas que levam a não existência jurídica, segundo ele a questão
estaria melhor solucionada pela atribuição de nulidade absoluta ao ato, em vez de recorrer, de maneira inexata,
inútil e inconveniente, ao reconhecimento de sua inexistência. RODRIGUES, S. Direito Civil, v. 1. São Paulo:
21
planos jurídicos: existência, validade e eficácia; será indispensável para constatar o exato ponto
e o momento em que incidirá a norma tributária.
Conjugando ambos os critérios é possível constatar dois autores reputadíssimos
com obras de peso sobre o assunto: Pontes de Miranda e Antônio Junqueira de Azevedo. Merece
escolha o primeiro pelas razões que se seguem.
Em primeiro lugar, o professor Antônio Junqueira de Azevedo, embora tenha se
proposto, de início, a exaurir o exame dos três planos jurídicos, acabou por dispensar grande
atenção ao plano da Existência, pondo de lado o projeto de aprofundamento nos outros dois.
Não esqueçamos que aqui ocupamo-nos do plano da validade, justamente um dos inacabados.
Como segunda razão, não aderimos à enunciação essencial do negócio jurídico tal
qual proposta em sua obra. O professor Junqueira esforça-se para refutar as definições
voluntaristas e funcionais, sua argumentação não as exclui das propriedades de um negócio,
porém, também não as inclui como atributos definitórios. Segundo ele o negócio jurídico deve
ser explicitado a partir de sua estrutura, assim
consiste em uma manifestação de vontade cercada de certas circunstâncias (as
circunstâncias negociais) que fazem com que socialmente essa manifestação seja
vista como dirigida à produção de efeitos jurídicos. 14
Manifestação de vontade mais as circunstâncias negociais configuram o que o autor
chama de declaração negocial: o negócio jurídico.
Quanto a isso parece-nos que o autor não surpreende o negócio jurídico como fato
jurídico, mas tão somente como fato social.15 Motivação que julgamos bastante para partir da
teoria ponteana.
3. Teoria ponteana16
Saraiva, p. 291-292. Em sentido semelhante GOMES, O. Introdução ao direito civil. Rio de Janeiro: Forense,
2010, p. 366: “O negócio inexistente equivalerá, portanto, ao negócio nulo, ainda sob esse aspecto prático.
Se doutrinariamente, é admissível a distinção entre inexistência e nulidade, praticamente não teria
utilidade.”. 14 AZEVEDO, A. J. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 16. 15 Mais à frente o autor chega a invocar a incidência ponteana para justificar a entrada no mundo jurídico. De
qualquer forma, não nos parece que sua fórmula demonstre o passe da declaração negocial ao mundo jurídico. Cf.
Ibid, p. 23. Entre suas conclusões está a de que a existência jurídica de um negócio qualquer está em função da
cultura e não da norma jurídica. “O direito posto contentasse, salvo uma ou outra situação de exceção, com regular
a validade e a eficácia dos atos negociais (não a sua existência).” p. 8. Cf. Id. Negócio Jurídico e Declaração
Negocial. São Paulo: Faculdade de direito, Universidade de São Paulo, 1986. Tese de Titularidade. p. 8. 16 Ao longo do texto o leitor perceberá muitas citações a Marcos Bernardes de Mello. Este autor é um grande
estudioso da obra de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda e a adotou como pressuposto de sua famosa obra,
22
A primeira coisa que se deve observar para articular o pensamento do autor é sua
concepção de fenômeno jurídico. De fato, o pressuposto do mundo jurídico nos é apresentado
como a atuação da norma sobre o fato: a incidência; que seleciona acontecimentos do mundo
real, suficientemente coincidentes com as hipóteses normativas, para dar-lhes sua particular
coloração. Quase como um princípio da natureza, o autor vê o agir da norma sobre o fato como
algo infalível, automático, independente de atividade humana, esta última tendo lugar somente
na aplicação17, procedimento que pode ou não corresponder à incidência.
O mecanismo juridicizador toma como critério para dar passe ao mundo jurídico a
ocorrência dos elementos contidos no núcleo do suporte fático: o cerne e os completantes. Os
elementos cerne configuram as classes jurídicas mais abstratas, como o elemento conformidade
a direito, que define a classe dos fatos lícitos em oposição à não-conformidade +
imputabilidade, designante dos atos ilícitos. Prosseguindo em direção às classes mais concretas
encontraremos novos elementos cerne, desta maneira podemos separar as condutas
juridicamente significativas em
(a) conduta com vontade relevante, (b) conduta sem vontade ou com vontade
irrelevante e (c) sem conduta alguma configuram os (a) atos jurídico lato sensu, (b)
os atos-fatos jurídicos e (c) os fatos jurídicos stricto sensu, respectivamente;18
Dentro da subclasse dos atos jurídicos lato sensu é que estarão as questões que
concernem à validade19. Aqui
(a) manifestação consciente da vontade com poder de auto-regramento (=poder de
escolha da categoria jurídica e, dentro dos limites prescritos pelo ordenamento, de
estruturação do conteúdo da relação jurídica correspondente) e (b) manifestação
consciente da vontade sem poder de auto-regramento (= não há poder de escolha da
categoria jurídica nem de estruturação de conteúdo da relação jurídica, que são
predispostos pelas normas jurídicas), estabelecem a diferença entre (a) negócios
jurídicos e (b) atos jurídicos stricto sensu.20
em três volumes (estando o quarto em elaboração): Teoria do Fato Jurídico. Pertinente, deste modo, apropriarmo-
nos de grande parte de suas notas. Sobre o plano da validade em Pontes de Miranda cf. MIRANDA, P. Tratado de
direito privado, T. IV. Campinas: Bookseller, 2000. 17 Também, evidentemente, na positivação da norma. 18 MELLO, M. B., Teoria do fato jurídico: plano da existência. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 54. 19 MIRANDA, op. cit., p. 36: “Tenhamos sempre presente que a validade e a invalidade (nulidade, anulabilidade)
só diz respeito aos negócios jurídicos e aos atos jurídicos stricto sensu. Não há atos-fatos jurídicos válidos ou não-
válidos. Nem atos ilícitos ou atos jurídicos stricto sensu”. 20 MELLO, M. B., op. cit., p. 54.
23
Fecham-se, assim, os elementos do cerne para agora ceder espaço aos completantes,
estes é que serão responsáveis por descrever as várias espécies de atos jurídicos. A disposição
de certo objeto com o pagamento de determinado preço21, por exemplo, está a completar o
núcleo indicando uma compra e venda.
A incidência, tratada linhas acima, tem como mola propulsora estes elementos do
núcleo, bastando sua verificação para que sobrevenha o existir no mundo jurídico.
Concebido o plano da existência, outros elementos podem ser adicionados ao
suporte fático: os complementares; estes nos interessam de modo especial porque constituem
pressupostos de validade ou eficácia dos negócios jurídicos22. Segundo Marcos Bernardes de
Mello:
os complementares não integram o núcleo do suporte fáctico, apenas o complementam
(não completam) e se referem, exclusivamente, à perfeição de seus elementos. Assim,
são elementos complementares relativos:
(a) ao sujeito: (i) a capacidade de agir; (ii) a legitimação (poder ativo
ou passivo de disposição); (iii) a perfeição da manfiestação de vontade (ausência de
erro, dolo, coação, lesão, estado de perigo, simulação e fraude contra credores); (iv) a
boa-fé e a eqüidade, esta, apenas nos negócios de consumo;
(b) ao objeto: (i) a ilicitude, (ii) a moralidade, (iii) as possibilidades
física e jurídica e (iv) a determinabilidade;
(c) à forma da manifestação de vontade: o atendimento à forma quando
prescrita ou não defesa em lei.23
Abordados os elementos pertinentes do suporte fático, cuidemos agora da
invalidade. Esta questão é tratada por Pontes de Miranda como incidência sucessiva de uma
norma sancionatória. Assim, o suporte fático apresenta-se suficiente (elementos nucleares) para
adentrar no mundo jurídico, vindo, ainda, complementado por outros elementos que serão
apreciados no plano da validade. A respeito destes últimos, o plano os assinalará como
eficientes ou deficientes conforme atendam ou não aos pressupostos de validade e eficácia. Os
marcados como deficientes constituirão o suporte fático do ílicito invalidante cujo preceito
impõe a eliminação do ato tido como jurídico do mundo novo que passara a integrar.
Como existem duas espécies de invalidade: nulidade e anulabilidade; o preceito do
ilícito invalidante atua diferentemente para cada uma, já que, no primeiro caso, sua incidência
21 MELLO, M. B., Teoria do fato jurídico: plano da existência. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 54. 22 Ibid, p. 55. 23 MELLO, M. B. 2007, loc. cit.
24
expulsa o ato do mundo jurídico automaticamente, tão logo compareça ao plano da validade,
embora reste necessário o reconhecimento da atuação da norma pelas vias da aplicação. No
segundo caso, o ato permanece no plano da validade deficientemente, mas, ainda assim,
produzindo efeitos, inclusive seguindo num caminhar que, com o tempo, o perpetrará como
válido. Destarte, quanto à anulabilidade, o preceito fica condicionado ao querer desfazer o ato,
enquanto na nulidade irrelevante é este querer dada a sua insanabilidade.
Tomemos emprestadas algumas palavras do professor Marcos Bernardes de Mello
sobre o caráter ilícito da invalidade:
Na verdade, a invalidade afeta, em geral, atos jurídicos que resultam: (a) de infração
a norma jurídica cogente; ou (b) de defeitos na manifestação de vontade, que, em si
mesmos, algumas vezes, já configuram a prática de atos essencialmente ilícitos, como
o dolo e a coação, e que, em outros casos, têm por finalidade verdadeira causar,
intecionalmente, prejuízo a terceiros (simulação nocente e fraude contra credores).
Não somente na área do direito civil, ao qual, em geral, erroneamente, porém, se
costuma ligar e limitar o trato das invalidades, mas em toda a Teoria Jurídica (sede
própria para o seu estudo), a questão da invalidade dos atos jurídicos está diretamente
relacionada com o problema da violação de normas jurídicas.24
Em outro trecho, o mesmo autor trata do percurso que antecede à invalidade:
É uma espécie de ato ilícito, o ato ilícito invalidante, que, na verdade, tem natureza
especial, diferente dos outros atos ilícitos, porque recebe esse caráter de ilicitude por
força da incidência de normas jurídicas invalidantes, que atuam já dentro do mundo
jurídico, no plano da validade. Ao entrar no plano da existência o ato jurídico é, como
qualquer outro, apenas ato jurídico. Ao alcançar o plano da validade, se há défice em
elemento nuclear de seu suporte fáctico, decorrente de específicas contrariedades a
direito, sofre a incidência da norma invalidante, cuja consequência é torná-lo inválido
(=nulo ou anulável) em razão de sua natureza ilícita. 25
Como dito supra, a deficiência do suporte fático se relaciona aos elementos
complementares, mas é, de alguma maneira, qualidade que se predica à sua essência, ao que lhe
é suficiente à existência, é assim que atribuímos sentido à expressão: défice em elemento
nuclear; empregada pelo professor. Melhor seria ter dito défice provocado pelos elementos
complementares. Este sendo um ponto para clarificar os ensinamentos trazidos.
24 MELLO, M. B., Teoria do fato jurídico: plano da validade. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 86. 25 MELLO, M. B., ibid., p. 87-88.
25
4. A decretação de invalidade
Apreciemos agora questão basilar para o problema da tributação de invalidades. A
despeito de ainda não a exaurirmos, fixemos algumas considerações iniciais.
Como já mencionado na introdução, a sentença que decreta a invalidade
desconstitui o ato jurídico e ao fazê-lo atende à sanção do ilícito invalidante. Sua atuação é na
maior parte das vezes para o passado, fazendo rearranjos no mundo jurídico para que tudo se
passe como se nunca ato ou efeito houvesse. Tragamos sobre o tema algumas construções de
Pontes de Miranda:
A anulação lança no não-ser o ato jurídico que era, embora anulável. (...) Não se trata
de ficção. A sentença, em plano de realidade pura, desconstituiu o ato jurídico, desde
todo o começo. (...) se a sentença anulou transferência de quota de socidade de
responsabilidade limitada, o adquirente passa a nunca ter sido sócio, e o alienante, a
tê-lo sido sempre. 26
As reflexões agora expostas, situam-se para além da incidência, no momento
posterior da aplicação. Há, destarte, que considerar-se que o que antes era, deixou de ser.
Trazendo o problema para o direito tributário: o suporte fático que embasara a incidência do
tributo não mais existe, permanecerá ainda o tributo?
Outro de seus ministérios, ainda que sobre tema alheio, assenta as bases para um
outro olhar sobre o negócio jurídico perante o direito tributário:
Nos casos mesmos de regra jurídica nova, que diz ser válido o que era nulo, em
verdade há incidência dessa lei nova no mesmo suporte fático, que a outra considerou
deficiente e essa considera eficiente (=sem défice). Não é isso, está-se a ver, tornar
válido, e sim fazer jurídico e válido.27 (grifo nosso)
Em outras palavras, o autor nos conta que o advento de lei nova a contemplar o
suporte fático antes considerado inválido não tem o condão de sanar a invalidade, ao contrário,
fará novo suporte fático, este sim válido. Diante disso, será possível que o direito tributário, tal
qual lei nova, atue sobre os fatos do negócio para considerá-los outro negócio jurídico, este sim
apenas com o suporte fático suficiente, abstraída parte deficiente? A cogitação seria pertinente
caso a hipótese da tributação descrevesse os mesmos fatos que a hipótese do negócio jurídico
26 MIRANDA, P. Tratado de direito privado, t. IV. Campinas: Bookseller, 2000, p. 277. 27 MIRANDA, P., ibid., p. 81.
26
específico, assim, se há compra e venda quando o comprador se obriga a pagar o preço e o
vendedor a dar a coisa, há tributação quando o comprador se obriga a dar o preço e vendedor a
coisa. Caso haja compra e venda naqueles termos, porém, tributação quando houver compra e
venda, posta lá como referência ao negócio jurídico privado, não há que se falar em dois
negócios jurídicos criados um pela norma privada outro pela norma tributária, cada um com
seus pressupostos de eficiência.
O indício lá encontrado é alvo de larga disputa entre os tributaristas. Vejamos a
seguir as maneiras encontradas pela dogmática tributária para descrever a interação entre este
ramo em particular e o direito privado.
28
CAPÍTULO 2
DIREITO PRIVADO E DIREITO TRIBUTÁRIO
5. Interação entre direito privado e direito tributário
Se há algo a ser fixado de antemão é que a razão de ser do direito tributário são os
fatos econômicos. Estes é que buscam ser surpreendidos pelo legislador no recorte hipotético
das normas tributárias, tudo mirando o alcance daquelas pessoas com maior aptidão para
contribuir com as receitas estatais. Ocorre, no entanto, que o exercício desta modalidade
especial de competência não se passa desordenadamente, ao contrário, segue uma técnica
peculiar. Como assevera FALCÃO
o ideal seria que concretamente se pudesse mensurar, de modo direto e imediato, pelo
patrimônio e pela renda, a capacidade que tem cada um de contribuir para o custeio
das despesas públicas. 28
Mas a única via apropriada para a consecução deste objetivo é aquela indireta, por
meio da qual a norma constitui um critério, um índice ou um indício para a aferição da
capacidade econômica ou contributiva dos sujeitos aos quais se atribui29. A partir disso é
natural imaginar antecedentes tributários correlacionando negócio jurídico uma situação de
potencial contribuição.
Com efeito, o instituto historicamente ocupou o centro do fenômeno jurídico, não
por qualquer razão, é ele o instrumento por excelência das relações econômicas, a ponto de, por
muito tempo, sua função social ser tida apenas como a circulação de riqueza30. Há mesmo quem
suponha o seu suporte fático como uma operação econômica para a qual serve de veste31.
28 FALCÃO, A. A. Fato gerador da obrigação tributária. São Paulo: Noeses, 2013, p. 41. 29 FALCÃO, A. A., ibid., p. 39. 30 RODRIGUES, S. Direito Civil, V. III. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 61. 31 Cf. ROPPO, E. O contrato. Coimbra: Almedina, 1988. p. 8; MARTINS-COSTA, J. O direito privado como um
“sistema em construção” – as cláusulas gerais no projeto do código civil brasileiro. Revista dos Tribunais, São
Paulo, v. 753, p. 24 et seq., jul. 1998: “Frase dita e repetida indica que “o contrato é a veste jurídica das operações
econômicas”, de modo que constitui sua função primordial instrumentalizar a circulação de riqueza, a transferência
de riqueza, atual ou potencial, de um patrimônio para outro.”
29
Mister, portanto, reconhecer o campo em comum que une direito privado e tributário: os fatos
e situações com conteúdo econômico32.
Nestas hipóteses, em que a lei elege como centro da hipótese normativa ato jurídico
privado, forma-se a classe dos fatos geradores jurídicos, formais, abstratos33 ou, ainda, tipos
estruturais34, inversamente, ao remeter-se com rigor à própria economicidade, põe-nos diante
dos denominados fato geradores econômicos, causais35 ou tipos funcionais36. Vejamos dois
exemplos trazidos por Alberto Xavier:
Exemplo de tipo funcional é o art. 51 da Lei n 7.450/85, segundo o qual “ficam
compreendidos na incidência do imposto de renda todos os ganhos e rendimentos de
capital, qualquer que seja a denominação de lhes seja dada, independentemente da
natureza, da espécie ou da existência de contrato escrito, bastando que decorram de
ato ou negócio que pela sua finalidade tenha os mesmos efeitos do previsto na norma
de incidência do imposto de renda”.
Exemplo de tipo estrutural é o art. 13 da Lei nº 9.779/99, segundo o qual “as operações
de crédito correspondentes a mútuo de recursos financeiros entre pessoas jurídicas ou
entre pessoas jurídicas e pessoas físicas sujeitam-se à incidência do IOF segundo as
mesmas normas aplicáveis às operações de financiamento e empréstimos praticados
por instituições financeiras”.37 (grifamos o núcleo de cada hipótese)
Como se nota, num caso seria suficiente à incidência que alguém colhesse ganhos
ou rendimentos de capital, de modo completamente alheio à veste jurídica de que proviessem.
Por outro lado, no segundo antecedente temos a seleção do negócio jurídico de mútuo como o
signo a expressar a capacidade contributiva dos agentes ali mencionados. Diante disso surge o
questionamento: devemos alcançar no sentido de ambas proposições um fato meramente
econômico a desencadear a eficácia tributária?
A este entendimento atende Amilcar de Araújo Falcão, segundo este autor o fato
tributário é, em verdade, um fato econômico de relevância jurídica38 e, exatamente por isso,
32 COSTA, A. J. Direito tributário e direito privado. In: Machado, B. (Coord). Direito tributário – Estudos em
homenagem ao prof. Ruy Barbosa Nogueira. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 222. 33 FALCÃO, A. A. Fato gerador da obrigação tributária. São Paulo: Noeses, 2013, p. 50. 34 XAVIER, A. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva. São Paulo: Dialética, 2001, p. 35: “tipos
estruturais são aqueles em que a norma jurídica utiliza para descrever a sua hipótese conceitos de atos o negócios
jurídicos de Direito Privado sem alusão expressa aos efeitos econômicos por ele produzidos”. 35 FALCÃO, A. A., op. cit., p. 50. 36 XAVIER, A., op. cit., p. 35: “tipos funcionais são aqueles em que a hipótese da norma tributária é caracterizada
pela obtenção de um certo fenômeno econômico, independente da natureza jurídica dos atos ou negócios que para
ele concorrem”. 37 XAVIER, A., 2001, loc. cit. 38 FALCÃO, A. A., op. cit., p. 40.
30
será essa a luz sob a qual deve o intérprete construí-lo. Não se trataria de um recurso à aplicação
analógica, atitude vedada no âmbito hermenêutica tributária, mas de aprofundamento no
suporte fático do tributo no intuito de desvelar-lhe a relação econômica subjacente39. Só seria
legítimo tratar a questão como analogia face a uma lacuna legislativa, problema diferente do
que aqui se manifesta, no máximo, cogitar-se-á de simples interpretação extensiva, aliás,
denominação por ele considerada inapropriada:
Na chamada interpretação extensiva, como na restritiva, em verdade, ocorre apenas
uma declaração do verdadeiro sentido da norma, cuja dição seja defeituosa ou
inequivalente à mens legis, a propósito, afirma-se que o legislador disse menos (minus
dixit quam voluit) ou disse mais do que efetivamente quis (plus dixit quam voluit).40
Como veremos adiante fato é um relato que organiza em linguagem um evento
inalcançável em todas as suas nuances. Por este motivo é que quando a hipótese se remete a
certo negócio jurídico já está promovendo um recorte numa situação existencial mais ampla,
acolhendo-a na sua faceta jurídica. Seria, de fato, possível notar no cenário complexo
características econômicas, mas nesta tarefa estaríamos ressignificando o evento num relato
econômico diferente do expresso pela norma. Longe de apenas declarar o sentido,
reformaríamos a base interpretativa da regra para ampliar as possibilidades de significação.
Além disso, embora não seja o método mais eficaz quanto ao resultado
arrecadatório, a fixação rígida do índice faz-se indispensável para que não ocorram os mesmos
problemas observados no modo, citado acima, direto e imediato de aferição da capacidade
contributiva, que
pelas distorções decorrentes de sua impraticabilidade, afigurar-se-ia mesmo de adoção
inconveniente, dadas as inevitáveis fraudes que propiciaria, além da insegurança
jurídica que acarretariam para o contribuinte as atividades inquisitoriais do fisco para
tornar factível o resultado.41
Assim, se um tipo estrutural fixar um negócio jurídico como conduta central da
hipótese tributária, será esse o único índice apto para apontar a capacidade contributiva. De
outro giro, se um tipo funcional indicar o fato ou efeito econômico, assim é que esta será
constatada.
39 FALCÃO, A. A., Fato gerador da obrigação tributária. São Paulo: Noeses, 2013, p. 25. Cumpriria “Identificar,
na alusão feita pelo legislador fiscal a determinado ato, negócio ou instituto jurídico para a definição do fato
gerador; o intuito de caracterizar, através de uma forma elíptica, a relação econômica subjacente”. 40 FALCÃO, A. A., ibid., p. 23. 41 FALCÃO, A. A., ibid., p. 41.
31
De qualquer maneira, isto não significa que o signo “negócio jurídico” seja
interpretado da mesma maneira numa norma de direito privado e numa norma de direito
tributário. Afinal, o direito tributário consignou outro código de significação para a leitura dos
institutos privados que, mesmo não os modificando a ponto de transmudá-los em meros fatos
econômicos, promove-lhes incisões ou alterações que não podem ser ignoradas.
6. Como a comunidade jurídica convencionou o código de significação de
estruturas privadas nas hipóteses tributárias?
Os modos de construir a significação dos enunciados tributários, assim como o
arranjo cujo produto perfazia-se na regra matriz de incidência, foram, e continuam sendo, mira
de longo e intenso debate. Numa ponta, voltados ao berço financeiro deste ramo, postulava-se
a natureza econômica de seu modo operacional, destacando-o a ponto de garantir-lhe autonomia
frente a todo dado simplesmente jurídico, surgia aqui a consideração ou interpretação
econômica42. Na outra, a já de longa data consolidada doutrina privatística, pugnava pela
submissão do Direito Tributário ao Direito Privado, seara dogmaticamente segura e
supostamente apta a resolver-lhe os problemas.43 Nos dois extremos notamos uma abordagem
a partir de critérios apriorísticos44: antes de mesmo de considerar um texto legal, devia-se ter
algum preconceito.45 Evidentemente, a querela influi na maneira como devem ser encarados os
negócios jurídicos inválidos na interpretação tributária.
por muito tempo, o Direito Tributário foi visto como um “Direito de Sobreposição”,
o que implicaria que a tributação incidiria sobre situações jurídicas, estas entendidas
como aquelas reguladas por outro ramo do Direito. (...) Noutras palavras: na hipótese
tributária haveria, necessariamente um fato jurídico de natureza privada; na
inexistência (ou invalidade) deste, não haveria que cogitar de tributação.
(...)
42 Na teoria apresentada supra, Amilcar Falcão, ao definir o fato tributário como fato econômico de relevância
jurídica, desempenha raciocínio próximo desta visão. 43 TÔRRES, H. Direito tributário e direito privado: autonomia privada, simulação, elusão tributária. São Paulo:
Revista dos tribunais, 2003, p. 48: “Desde meados do século XIX, estava em plena efervescência certa doutrina
que pretendia submeter o direito tributário aos princípios gerais do direito, que nestes tempos eram os mesmos
princípiso do direito civil, o que imporia ao direito tributário uma necessária sujeição ao direito privado”. 44 SCHOEURI, L. E. Direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 711. TÔRRES, H., op. cit., p. 50. 45 SCHOEURI, L. E., op. cit., p. 711.
32
A consideração econômica, surgida no início do século XX na Alemanha, foi uma
reação àquele entendimento: em síntese, sustentava a total independência do Direito
Tributário, em relação ao Direito Privado. (...) [C]aberia reconhecer que a hipótese
tributária não se vinculava a estruturas de Direito Privado; previa, ao contrário,
fenômenos econômicos, cuja ocorrência, por sua vez, seria investigada
independentemente da validade dos negócios jurídicos celebrados entre as partes.46
Na doutrina do primado do direito civil, percebem-se objetivos muito claros e
tendentes a favorecer o polo do contribuinte, assim, procura consignar a recepção plena dos
conceitos de direito privado pela legislação tributária ou mesmo enaltecer a liberdade de formas
atribuída ao particular. Em contrapartida, a outra vertente, concluindo que o direito tributário
dificilmente se reportaria a estes atos em conformidade com seus traços originais, pugnava
estar-lhe reservado o poder de criar ou alterar institutos civis.47 Opunha-se a liberdade
contratual à liberdade de qualificação, tanto do ponto de vista do legislador, ao reformular os
conceitos, quanto nos atos de aplicação, ao atribuir ao FISCO o condão de reconceituá-los48.
A evolução da discussão findou por recusar o problema, tratando-o como questão
de mera aparência49. Verdadeiramente, não merece escolha o argumento de que um ramo
submeta a outro, salvo se pudermos recortar um setor de normas hierarquicamente superiores,
como as constitucionais, estas sim estão a curvar todos os subsistemas. A divisão do
ordenamento em ramos diferentes não está a indicar uma cisão não comunicativa. Seu
funcionamento como sistema unitário50 leva qualquer norma válida a repercutir em todas as
outras, recebendo reciprocamente o influxo das restantes, fica, desse modo, repelido um
movimento cognitivo atomizado, alheio à componência molecularizada do ordenamento. É bem
verdade que métodos interpretativos podem ser positivados que restrinjam o suporte
interpretativo da norma, assim, direcionando o olhar do exegeta a diplomas de uma dada
natureza51. Mas ainda aqui, para que a articulação da norma jurídica recuse certa significação
provinda, por exemplo, do direito privado, é preciso que a rejeição se fundamente no direito
posto, para que prevaleça a coerência sistêmica.
46 SCHOEURI, L. E. Direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 727. 47 TÔRRES, H. Direito tributário e direito privado: autonomia privada, simulação, elusão tributária. São Paulo:
Revista dos tribunais, 2003, p. 48. 48 TÔRRES, H, ibid., p. 49. 49 TÔRRES, H., 2003, loc. cit. 50 TÔRRES, H., 2003, loc. cit. 51 CARVALHO, P. B. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 73.
33
Mesmo a autonomia científica deve ser declinada, já que não se pode levar a cabo
sem destruir aquele que é o mais transcendental entre os princípios fundamentais do direito –
o da unidade do sistema jurídico52. Resta, destarte, apenas o reconhecimento de autonomia
didática ao Direito Tributário, realizada com a expedição de
proposições declarativas que nos permitam conhecer as articulações lógicas e o
conteúdo orgânico desse núcleo normativo, dentro de uma concepção unitária do
sistema jurídico vigente.53
Superada a problemática da autonomia, passemos a análise do ponto central deste
item. Como o Direito Tributário orienta o intérprete a construir a significação de um tipo
estrutural?
Segundo Alcides Jorge Costa, sobre aquelas hipóteses a que temos chamado tipos
estruturais, podemos descrever quatro modos de interação entre os conceitos privados e o direito
tributário a partir de recepção expressa, implícita, alteração explícita do conceito ou aplicação
analógica das normas de direito privado.
Na recepção expressa há referência direta ao fato jurídico privatístico ou, pelo
menos, ao seu suporte fático abstrato. A norma de direito privado incorpora-se ao direito
tributário54. Acrescente-se que, de acordo com o autor, mesmo que haja alteração da norma de
direito privado, esta continuará a ser aplicada, ainda que não mais em vigor55.
No que se refere à recepção implícita, a lei tributária menciona conceitos e institutos
já elaborados em outra porção do direito, como propriedade, venda ou sucessão causa mortis;
se bem que o faz não para adotá-los expressamente, mas para referir as mesmas situações de
fato a que tais conceitos e institutos dizem respeito56.
52 CARVALHO, P. B. Curso de direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 47. 53 CARVALHO, P. B., 2011, loc. cit. No mesmo sentido TÔRRES, H. Direito tributário e direito privado:
autonomia privada, simulação, elusão tributária. São Paulo: Revista dos tribunais, 2003, p. 52. 54 COSTA, A. J. Direito tributário e direito privado. In: Machado, B. (Coord). Direito tributário – Estudos em
homenagem ao prof. Ruy Barbosa Nogueira. São Paulo: Saraiva, 1984, 222. 55 COSTA, A. J., ibid., 223. 56 COSTA, A. J., 1984, loc. cit. Então para referir-se não à uma compra e venda, mas ao fato de uma pessoa
obrigar-se a dar o preço, enquanto outra se obriga a dar a coisa. Notemos, contudo, a ressalva feita pelo autor mais
à frente quando menciona: “Alterações explícitas ou aplicações que considerem o substrato econômico sem levar
em conta a forma não são compatíveis com o sistema constitucional brasileiro.” (A menção é anterior à CF/88)
COSTA, A. J., ibid., p. 226.
34
Quanto às alterações explícitas, passam-se quando o direito tributário dá um novo
traçar aos institutos de direito privado, seja promovendo seu alargamento ou restrição, ou leva
a cabo a criação de um novo instituto.57
Por fim, o autor remete à aplicação analógica das normas de direito privado diante
de lacuna no direito tributário. Segundo COSTA, esta classificação, dada por Tesoro58, não lhe
parece bem nomeada, porque seria antes um caso de figuras e conceitos comuns a ambos os
ramos.
Cremos pertinentes a primeira e a terceira classificações, às quais passaremos a
adotar feitas algumas considerações.
Em relação à recepção expressa, não aderimos ao apontamento de que o instituto
indicado seria tomado sempre tal qual era no início. Se assim fosse não estaríamos diante de
recepção, ao contrário, veríamos o direito tributário fixando um conceito, ainda que repetido.
Para tratar-se de recepção é preciso que este ramo apenas se abra ao instituto em toda sua
atualidade, inversamente ao que se passa, já que está sempre a magnetizá-lo para seu formato
precedente, o que significa alteração.
A segunda categoria, se a entendermos como a utilização de signo tal qual “compra
e venda”, mas devendo enviar o intérprete à situação de fato, em oposição à jurídica, muito se
parece com a interpretação econômica, motivo pelo qual nos parece inapropriada.
A última não nos parece útil, porquanto expresse, sem emendas, o princípio da
unidade e a sistematicidade do direito.
Surgem, assim, duas possibilidades: numa o direito tributário recepciona o instituto
em todas as suas características, na outra o modifica ou cria um conceito novo.
6.1. Os arts. 109 e 110 do CTN
57 COSTA, A. J. Direito tributário e direito privado. In: Machado, B. (Coord). Direito tributário – Estudos em
homenagem ao prof. Ruy Barbosa Nogueira. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 224 e 230. 58 TESORO, g., Princippi di Diritto Tributario, Bari: Luigi Macri Ed., 1938, p. 10 e s. apud COSTA, A. J., op. cit.,
p. 222.
35
Tratando expressamente da presença de institutos, conceitos e formas de direito
privado em hipóteses tributárias, o CTN tem positivado em seu bojo os arts. 109 e 110, vejamos
seus enunciados:
Art. 109 Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para a pesquisa da
definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não
para a definição dos respectivos efeitos tributários.
Segundo Ricardo Lobo Torres face às repercussões da sistematicidade do
ordenamento, bem como à superação das teorias de sujeição entre um e outro ramo do direito,
os arts. 109 e 110 só podem ser vistos como uma extravagância59, acrescenta ainda que o
primeiro dispositivo, não faz mais que indicar o método teleológico que
traduz-se no campo tributário, e em outros ramos do direito, na interpretação
econômica (ou consideração econômica) – wirtschaftliche Betrachtunsweise para os
alemães) ou na interpretação funcional dos italianos.60
No mesmo sentido, SCHOUERI admite que este artigo, lido separadamente, parece
enunciar a opção do legislador complementar pela autonomia do Direito Tributário,
acrescentando que, sob outro olhar menos atento, o art. 110 indicaria a prevalência do Direito
Privado, mas pondera que
O mesmo dispositivo oferece, entretanto, leitura diversa, que propõe um equilíbrio
entre os dois ramos jurídicos: o Direito Tributário não está submetido ao Direito
Privado; o legislador é livre para criar seus próprios institutos e o faz com frequência.61
A interpretação do primeiro texto é penosa, fato sobre o qual chama a atenção Lobo
Torres
A própria interpretação do art, 109 vem torturando juristas, em virtude do conflito
entre a sua primeira parte, a proclamar que “os princípios gerais do Direito Privado
utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos,
conceitos e formas”, e a parte final, a ressalvar a “definição dos respectivos efeitos
tributários”. O dispositivo é inteiramente conflitante, eis que não se pode separar a
forma do conteúdo, nem o conceito da finalidade e da consequência.62
59 TORRES, R. L. Normas de interpretação e integração do direito tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.
145. 60 TORRES, R. L., 2006, loc. cit. 61 SCHOEURI, L. E. Direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 762-763. 62 TORRES, R. L., op. cit., p. 147.
36
Não aderimos à conclusão a que chega este autor. Com efeito, no direito privado se
constitui o suporte fático de um dado instituto bem como sua consequência, consubstanciada
no preceito ou efeito jurídico. Não nos parece ilógico que venha a norma tributária a integrar,
restringir ou recriar, além do próprio desenho existencial do ato, suas propriedades eficaciais63,
desde que a modificação não gere contradição sistêmica.
Tomando o tema aqui debatido como exemplo, a princípio, conceberíamos como
possível que a partir de um suporte jurídico o consequente tributário reformulasse suas
categorias eficaciais ou mesmo o equiparasse a outro fato jurídico. Não se admite, no entanto,
que, incidindo o ilícito invalidante, permaneça a irradiação de efeitos atípica, porquanto a
sistematicidade do ordenamento tenha feito faltar seu antecedente lógico, em função do qual
está o consequente.
Retomando as consequências classificação registrada supra, é preciso conceder
que, por vezes, o legislador criará seus próprios institutos, porém, noutras vezes, recepcionará
com ou sem alterações os já existentes64. Acontece que separar os casos em que a recepção se
dá sem ressalvas, daqueles em que exceções devem ser consideradas, não é tarefa fácil.
Inúmeras vezes o legislador não é eloquente se a expressão por ele empregada deve ser
entendida enquanto instituto de Direito Privado, ou como algo diverso65.
Em geral, a solução dependerá do contexto em que se insere o aplicador e a norma
concreta a ser construída, de um modo tal que não há resposta mandatória para o processo66.
Se por um lado o art. 109, lido isolado, confere uma abertura geral para que se
redesenhem os efeitos de institutos privados, por outro, sua conjugação com o art. 110 direciona
o intérprete a notar a residualidade de sua norma. De fato, a abertura legislativa só poderá ser
63 SCHOEURI, L. E. Direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 762: “Os “efeitos tributários” surgem, nesta
leitura, como algo diverso dos “efeitos civis”, o que parece indicar que o legislador tributário pode contemplar,
num instituto de Direito Privado, “efeitos” que não se encontram neste.” 64 SCHOEURI, L. E., ibid., p. 763: “Não é incomum que expressões criadas no Direito Privado sejam aproveitadas
no Direito Tributário com sentido diverso. Exemplo notório é o da pessoa jurídica, instituto próprio do Direito
Privado que, não obstante, surge na legislação do Imposto de Renda para abranger até mesmo as sociedades
irregulares. Se, entretanto, o legislador opta por um instituto, conceito e forma do Direito Privado e não o define
com tintas próprias, então deve o intérprete/aplicador compreender que tais institutos não podem ser desprendidos
do contexto (de Direito Privado) onde foram desenvolvidos. Retomando o mesmo exemplo acima citado, a ideia
de “sociedade” pressupõe, no Direito Privado, um conjunto de pessoas e uma finalidade comum – distanciando-se
do mero condomínio. Um condomínio não pode, destarte, ser tomado pelo intérprete/aplicador da lei tributária
como sociedade se não houver norma (tributária) equiparando ambas as situações.” 65 SCHOEURI, L. E., 2015, loc. cit. 66 SCHOEURI, L. E., ibid., p. 764.
37
exercida respeitando um rol de exceções, isto é, respeitando aqueles conceitos que tenham sido
expressamente empregados pelo constituinte67.
O que se passa é que a CF/88, ao estabelecer a distribuição de receitas, fixa
conceitos de direito privado, ou refere-se a suas nomenclaturas, sendo assim, não se concede às
normas tributárias infraconstitucionais alterá-los, sob pena de licenciar ao legislador ordinário
a violação do pacto federativo68. Aqui haverá sempre recepção expressa e, ainda, segundo
COSTA, tanto quanto possível, os conceitos deverão ser interpretados tais quais eram ao tempo
em que foram incorporados69. Registramos, entretanto, nossa discordância deste autor. Como
consigna Lobo Torres
Sucede que a interpretação da Constituição não se restringe ao sistema do federalismo
fiscal, senão que alcança também o sistema tributário nacional, isto é, a estruturação
sistemática dos tributos, independentemente de a titularidade pertencer a este ou
àquele ente público.70
Se o princípio federativo tem por objetivo irradiar seus direitos prima facie,
decerto que não o faz sem buscar a otimização, o que não se performa sem a ponderação com
outros princípios71. Admitamos, portanto, que um dado conceito não pode ser estancado
irrefletidamente apenas para atender a segurança da repartição de competências. É preciso,
também, que levemos em conta outros fatores como a mobilidade conferida na própria
Constituição a alguns dos conceitos. No exemplo do art. 156, II o instituto dos direitos reais
deve ser construído em concomitância com sua função social, que implica dinamismo
porquanto recorra a valores metajurídicos, alheios a qualquer estática. Eis que, se ponderados
67 Como anota o autor, este artigo padece de sério problema, já que por via legal busca orientar a interpretação
constitucional. Além disso, o dispositivo aparece aos seus olhos como supérfluo, vez que, a toda evidência, não
poderá o legislador ordinário opor-se ao estabelecido constitucionalmente. Cf. TORRES, R. L. Normas de
interpretação e integração do direito tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 173 e 177-178. 68 COSTA, A. J. Direito tributário e direito privado. In: Machado, B. (Coord). Direito tributário – Estudos em
homenagem ao prof. Ruy Barbosa Nogueira. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 225. 69 COSTA, A. J., 1984, loc. cit.: “Em suma, os institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados pela
Constituição para definir ou limitar competências tributárias, serão os existentes ao tempo em que a Constituição
foi promulgada ou emendada, sendo irrelevantes alterações posteriores”. Em sentido diverso SCHOEURI, L. E.
Direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 788-789, que menciona o caso do art. 156, II da CF em que se
atribui competência aos Municípios para instituir impostos sobre direitos reais. Ora, em 1988 o Código Civil
vigente era o de 1916 cujo rol taxativo de direitos reais não previa o direito de superfície, numa visão estática
estaria tolhida do legislador municipal esta competência, porque não abarcada no conceito de direitos reais
adotados na Constituição. O autor, então, resolve a questão recorrendo à noção de “tipo” presente na repartição de
competências. Para uma descrição de tipos e conceitos Cf. Ibid, p. 271-278; TÔRRES, H. Direito tributário e
direito privado: autonomia privada, simulação, elusão tributária. São Paulo: Revista dos tribunais, 2003, p. 58-
66; DERZI, M. A. M. Direito Tributário, Direito Penal e Tipo. São Paulo: Revista dos tribunais, 1988. 70 TORRES, R. L., op. cit, p. 174. 71 SILVA, V. A. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Revista Latino-Americana de
Estudos Constitucionais, v. 1, 2003, p. 607-630.
38
os dois princípios, o resultado ótimo não terá respaldo na solução simplista do argumento
genético, os direitos reais serão entendidos como conceito em evolução, atualizados com o
direito privado vigente. Ademais, a partir destes pressupostos, restará mantido o ente federativo
mais aproximado com a ocorrência do fato e, igualmente, a expectativa do contribuinte de ser
tributado conforme uma legislação coerente sobre os temas, que só resguardará sua coesão se
expedida por um ente que controle todos os seu traços. Recusamos, destarte, a fragilidade de
uma interpretação da Constituição conforme a lei72.
Em conclusão, aderimos à possibilidade de o direito tributário criar um determinado
instituto, recepcionar a um outro na sua integralidade ou mesmo alterá-lo, tudo na conformidade
das considerações feitas sobre os arts. 109 e 110 do CTN, bem como da construção sistemática
de um conceito dentro da Constituição.
6.2. Repercussões da tomada de posição.
A inclinação por qualquer uma das teorias antes mencionadas tem o condão de
determinar a solução para o problema que nos ocupa. Assim, se tomarmos as considerações de
Amilcar Falcão de Araújo.
Não é, como vimos, o fato gerador um negócio jurídico, senão apenas um fato jurídico,
ou um fato econômico de relevância jurídica: por isso mesmo, a vontade das partes,
no que tange ao seu conteúdo ou ao seu caráter valorativo, é indiferente.73
Em outro excerto:
Por isso que ao Direito Tributário interessa primordialmente a relação econômica, não
importa à configuração do fato gerador a circunstância de consistir ele, concretamente,
num ato ou negócio jurídico inquinado de nulidade ou anulabilidade, uma vez que os
efeitos econômicos se produzam. Inversamente, se for pago o tributo, em tais
condições a superveniência de anulação ou decretação de nulidade do ato jurídico em
que consista seu fato gerador não dará lugar, salvo disposição de lei em sentido
contrário, à repetição do tributo prestado – regularmente pago à época – pelo
contribuinte.74
72 TORRES, R. L. Normas de interpretação e integração do direito tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.
175. 73 FALCÃO, A. A. Fato gerador da obrigação tributária. São Paulo: Noeses, 2013, p. 56. 74 FALCÃO, A. A., ibid., p. 53-54.
39
Esta conclusão decorre da adoção da interpretação econômica pelo autor, que faria
indiferente qualquer invalidação desde que subsistisse economicidade subjacente. O autor ainda
considera o fato tributário como fato jurídico em sentido estrito75, indiferente à qualquer
valoração dada a vontade pelo direito privado. Por esta razão, estaria alheio, o direito tributário,
a qualquer vício do consentimento. Neste ponto sua observação parece muito com a que faz
Heleno Tôrres.
Este autor nos conta que não cumpre ao legislador pesquisar a validade ou a eficácia
de atos jurídicos privados, isto porque
O direito tributário surpreende o fato jurídico de direito privado como mero “evento”,
motivo pelo qual ao aplicador não interessará saber da validade ou invalidade dos atos
que se cumprem.76
Complementando,
os efeitos dos fatos efetivamente ocorridos não vinculam a hipótese de incidência da
norma, importando somente a forma adotada ou a causa que eventualmente tenha sido
eleita, mesmo que esta seja inválida, ilícita ou imoral, tomadas como meros fatos.77
O fato jurídico stricto sensu comporta em seu suporte fático apenas fatos da
natureza, independentes de ato humano como dado essencial. Pode ligar-se a um ato humano,
contudo, isto não lhe altera a natureza, vez que a circunstância de haver um ato humano na sua
origem não muda o caráter de evento que constitui seu suporte fático78.
Embora aceitemos a ideia de que o fato tributário enquadre-se nos fatos jurídicos
em sentido estrito, não podemos deixar de lado os efeitos da decretação de invalidade no plano
da existência de um fato jurídico. Assim, mesmo que não importe a vontade do agente para que
entre no mundo jurídico o suporte fático do tributo, caso seu antecedente necessário e suficiente
seja um negócio, uma vez invalidado, sofrerá influência o próprio evento, que verá decair o seu
ser. Restará, deste modo, uma lacuna no antecedente da norma tributária que emperrará sua
própria incidência. Cremos, portanto, que não basta considerar como mero fato o negócio
jurídico contido na hipótese para que sejam neutralizados os efeitos da invalidade.
75 FALCÃO, A. A. Fato gerador da obrigação tributária. São Paulo: Noeses, 2013, p. 37. 76 TÔRRES, H. Direito tributário e direito privado: autonomia privada, simulação, elusão tributária. São Paulo:
Revista dos tribunais, 2003, p. 93. 77 TÔRRES, H, 2003, loc. cit. 78 MELLO, M. B., Teoria do fato jurídico: plano da existência. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 131.
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Vejamos, ainda as conclusões a que chega Alfredo Augusto Becker, combatente
ferrenho da chamada interpretação econômica do direito tributário. Depois de analisar
apuradamente o negócio jurídico segundo a teoria ponteana79, sua sustentação culmina na
análise lógica das hipóteses de incidência tributária, a par dos modos de regência a determinar
os atos juridicamente inexistentes, nulos e anuláveis. Desta feita, segundo ele, inicialmente
deve-se cogitar da escolha feita pelo legislador a integrar o núcleo do “fato gerador”. Anotemos:
quando a regra jurídica tributária prevê, como elemento integrante de sua hipótese de
incidência, um efeito econômico condicionado a determinado fato jurídico, e aquele
efeito econômico ocorre, embora este fato jurídico tenha surgido ineficaz (ex: por
nulidade), então aquela regra jurídica tributária não pode incidir. Ela não pode incidir
porque o efeito econômico não foi causado pelo fato jurídico, mas pelo fato físico ou
ato humano (não-jurídico) subjacente ao fato jurídico ineficaz, ela (a regra jurídica)
ao escolher os elementos integrantes de sua hipótese de incidência, preferiu escolher
a causação do fato jurídico (portanto, eficaz), em lugar da causação do fato físico ou
ato humano.80
Em momento posterior, sistematizando a exposição dogmática sobre as invalidades
tal qual construídas na teoria ponteana, Becker separa duas eventuais influências que os atos
deficitários podem exercer na tributação: as neutras e negativas.
O ato inexistente, nulo, anulável ou eficaz poderá ter uma influência negativa ou
neutra para o nascimento do dever tributário.
Influência negativa: o acontecimento do ato inexistente, nulo, anulável ou ineficaz
impossibilita a incidência da regra jurídica de cuja incidência nasceria o dever
tributário.
Influência neutra: o acontecimento daqueles atos é indiferente (neutro) para a
incidência ou não-incidência daquela regra jurídica.
Esta influência negativa ou neutra decorre da composição de cada hipótese de
incidência. Noutras palavras, a análise da quantidade, natureza e causação dos
elementos (núcleo e adjetivos) integrantes da hipótese de incidência de cada regra
jurídica tributária, dirá se a inexistência, nulidade, anulabilidade ou ineficácia de um
determinado ato, impossibilitou a incidência da regra jurídica (influência negativa),
ou lhe foi indiferente (influência neutra) e consequentemente não impediu sua
incidência.81
79 A mesma aqui adotada. 80 BECKER, A. A. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2007, p. 490. 81 BECKER, A. A., ibid., p. 493.
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Também pertine expor as observações do professor Paulo de Barros Carvalho. Seus
ensinamentos correspondem, em grande medida, com as conclusões alcançadas há pouco.
Vejamos
Pondere-se, todavia, que na própria idealização das consequências tributárias o
legislador muitas vezes lança mão de figuras de direito privado. Sempre que isso
acontecer, não havendo tratamento jurídico-tributário explicitamente previsto, é
evidente que prevalecerão os institutos, categorias e formas do direito privado.82
Em decorrência, o pressuposto alcança a interpretação dos arts. 116 e 118 do CTN,
estes os que tratam especificamente de nossa questão. Segundo o autor, a única maneira de
entender a referência à situações de fato e situações jurídicas consiste na apreciação da primeira
como a mera hipótese que, embora venha a se tornar situação jurídica com a incidência da
norma tributária, é contemplada primeiramente sem categorizar-se como instituto jurídico; e da
segunda como sendo representada por entidade que o direito já houvera definido e prestigiado,
tendo já atribuída a si regime jurídico específico83. Sobre esta última, consigna este é o caso
típico do negócio jurídico, situação não só contemplada como também categorizada pelo
direito, a que corresponde a figura do inc. II do art. 116.84
Continua, discorrendo sobre o imposto de transmissão imobiliária seremos
instados a consultar as regras de direito atinentes às transmissões imobiliárias, para saber da
consumação do fato, segundo as prescrições do regime jurídico que lhe seja peculiar.85
Neste passo, cumpre acrescentarmos uma reflexão. É que nas palavras do art. 116,
II a ocorrência do fato gerador será determinada no momento em que a situação jurídica estiver
definitivamente constituída, nos termos do direito aplicável. Como já mencionamos supra, o
negócio jurídico inquinado por nulidade sofre de uma imanente instabilidade existencial,
estando sujeito a ser desconstituído ao longo de toda sua existência. Aqui cabe questionar se
definitivamente constituído está a significar permanentemente constituído ou perfeitamente, no
sentido de acabado, já que, com o primeiro entendimento, um ato jurídico nulo, à primeira vista,
nunca estará permanentemente constituído, ao contrário, sua característica principal é a
82 CARVALHO, P. B. Curso de direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 138 83 CARVALHO, P. B., ibid., p. 345. 84 CARVALHO, P. B., 2011, loc. cit. 85 CARVALHO, P. B., 2011, loc. cit.
42
suscetibilidade à desconstituição, no entanto, estará perfeitamente acabado, porque elementos
suficientes de seu suporte fático vieram a ocorrer.
A adoção do primeiro sentido se complica ainda mais ao apreciar o enunciado do
art. 118, I que dispõe no sentido de que os fatos geradores se definem com abstração da
validade. Eis aí a contradição, a ocorrência do fato gerador depende de sua aptidão para
permanecer, por outro lado, o traçar de sua definição não tolera o conhecimento das
características que ameaçam sua perenidade. Transcrevamos o que nos diz o professor:
Muito mais difícil, porém, é compatibilizar o art. 118, I, com o art. 116, II. Nesse
ponto a tarefa parece até impossível. Para o reconhecimento da situação jurídica temos
de analisar sua constituição, nos termos do direito aplicável (art. 116, II), e, ao mesmo
tempo, para compreender a definição legal do fato, sempre que se tratar de ato ou
negócio jurídico, somos obrigados a fazer a abstração da validade dos atos praticados.
As ordens prescritas não se coadunam. Uma exclui a outra, em dimensões de
contraditoriedade absoluta.
Enfrentamos, de novo, um problema de opção interpretativa e temos para nós que o
privilégio deve recair no inc. II do art. 116, em detrimento do inc. I do art. 118.86
Por fim, apresentemos o que nos diz sobre o tema o professor Luís Eduardo
Schoueri. Segundo ele, a disposição trazida pelo art. 118 do CTN só pode ser entendida caso o
seu inciso I trate das “situações de fato”, enquanto o inciso II regule as “situações jurídicas”,
vejamos:
O artigo 118 desdobra-se em duas hipóteses, tendo em vista que o artigo 116
contempla uma distinção entre “situação de fato” e “situação de direito”. Se a hipótese
tributária é uma “situação de fato”, então o inciso I, acima transcrito, esclarece ser
irrelevante a validade jurídica dos atos praticados; se for uma “situação jurídica”,
então o inciso II esclarece serem irrelevantes seus efeitos “fáticos”.
Tomando a hipótese do inciso I, portanto, ele não é aplicável às situações em que a
hipótese tributária contempla um negócio jurídico. Se este for o pressuposto da
tributação, sua ausência será relevante, já que sem o negócio, não há fato jurídico
tributário. A invalidade (jurídica) dos atos praticados, neste caso, implicará
inocorrência da tributação.87
86 CARVALHO, P. B. Curso de direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 351. 87 SCHOEURI, L. E. Direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 522.
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Com efeito, parece perfeita a argumentação no sentido de que a invalidade fará
cessar o pressuposto do fato jurídico tributário, porém, entendemos inexata a correlação que se
faz dos incisos I e II com, respectivamente, “situação de fato” e “situação jurídica”. Eis o
enunciado do dispositivo:
Art. 118. A definição legal do “fato gerador” é interpretada abstraindo-se:
I – da validade jurídica dos atos e efetivamente praticados pelos contribuintes,
responsáveis, ou terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos
II - dos efeitos dos atos efetivamente ocorridos
Ora, não teria sentido predicar a determinado fato o valor validade ou invalidade
para depois recusar esta qualificação numa análise posterior, o que ocorreria caso o inciso I
tratasse de “situação de fato”. Verdadeiramente, adjetivar uma situação como inválida só faz
sentido dentro do código de significação estabelecido pelo ordenamento jurídico. Pelo que não
parece cuidar inciso I de “situação de fato”.
Muito mais plausível que seja esta a ocupação do inciso II cujo objetivo é
surpreender os “atos efetivamente ocorridos”, isto é, aqueles que correspondam em medida
máxima à complexidade do evento.
É claro que parece atraente a argumentação no sentido de que, guardando a
coerência do sistema jurídico, só possa o inciso I regular “situação de fato”. Porém, esta
conclusão ultrapassa os limites de sentido e alcance de seu enunciado, devendo ser recusada.
Vemos, dessarte, acerto no discurso lógico sobre a insustentabilidade de um tributo
amparado em negócio jurídico (como antecedente) invalidado. Não porém quanto à
significação e articulação da norma de orientação interpretativa veiculada, principalmente, pelo
art. 118.
Isto consignado, passaremos a expor tese que, sem abalar a coesão do ordenamento,
permite aceitar o inciso I do art. 118 como hipótese a abranger “situações jurídicas” e não
“fáticas”.
44
CAPÍTULO 3
O NEGÓCIO JURÍDICO COMO SIGNO
7. Apreciação semiótica do negócio jurídico e a tributação de invalidades
Apresentadas as concepções dogmáticas de direito privado, bem como as principais
formas de encarar a hipótese de incidência tributária e, deste modo, as relações que este ramo
pode estabelecer com o Direito Privado, faremos uma apreciação do negócio jurídico de uma
perspectiva semiótica.
Aqui foram consultados principalmente três trabalhos: Direito Tributário –
Fundamentos jurídicos da incidência, Direito Tributário – Linguagem e método e As estruturas
Lógicas e o Sistema de Direito Positivo. As obras em questão nos trazem reflexões
importantíssimas a repercutir sobre o postulado mais importante até agora visto: a incidência;
de fato, logo nas palavras introdutórias da primeira o autor já nos adianta o descabimento da
distinção entre incidência jurídica e aplicação88 tudo amparado numa distinção de peso entre
o evento e fato.
Com efeito, o sujeito cognoscente sempre perceberia as situações existenciais
caoticamente, devendo, para organizá-las e compreendê-las, constituí-las em linguagem, neste
ponto, e somente neste ponto, nasceria a realidade. Haveria, portanto, um mundo “aparente”
caótico e um mundo “real” ordenado. O espírito humano avançaria da aparência para a
realidade89. Esta teoria edificada por Vilém Flusser90amolda-se perfeitamente ao objeto de
estudo da ciência do direito: as normas jurídicas; afinal, se onde há direito há também normas
jurídicas, igualmente onde estejam as normas jurídicas, aí também estará a linguagem91. Assim,
nas palavras do autor:
88 CARVALHO, P. B. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 6. 89 Id., Direito tributário: linguagem e método. São Paulo: Noeses, 2013, p. 171. 90 FLUSSER, V. Língua e realidade. São Paulo: Annablume, 2004 apud CARVALHO, P. B. Direito tributário:
linguagem e método. São Paulo: Noeses, 2013, p. 170 91 Id., 1999, p. 17.
45
O grande mérito de Flusser situa-se na força retórica de seus argumentos, que tiveram
a virtude de demonstrar, o quanto se pode fazê-lo nessa difícil região do
conhecimento, que a língua é, forma, cria e propaga a realidade. Pois então, o território
das condutas intersubjetivas, campo de eleição do direito, sendo, como de fato
pensamos ser, a realidade jurídica por excelência, é construído pela linguagem do
direito positivo, tomado aqui na sua mais ampla significação. 92
Eis, enfim, a definição de fato: um elemento linguístico capaz de organizar uma
situação existencial como realidade93; por outro lado, evento é a própria situação existencial
que se revela aos sentidos caoticamente.
Dando seguimento, o autor nos ensina sobre os sistemas sígnicos e seu particular
modo operacional, isto é, como relação que se estabelece entre significado, signo e significação:
o primeiro caracterizando-se pelo objeto referido; o segundo pelo substrato material de natureza
física; e a terceira uma construção mental que toma por suporte o signo. O direito, como
linguagem, há de se exprimir por um sistema sígnico, sendo, desta maneira, válida em muitos
pontos a aplicação dos princípios fundantes daquele sistema ao sistema de direito positivo.
A primeira questão que deve se aplicar aos dois sistemas é quanto ao vazio do
suporte físico quando considerado em si mesmo.
Ora, se tomarmos o texto na sua dimensão estritamente material, que é, aliás, a
acepção básica, como aquilo que foi tecido, circunscrevendo nosso interesse ao
conjunto dos produtos dos atos de enunciação, o que importa ingressar na
esquematização estrutural em que se manifesta, poderemos compreender a razão pela
qual os enunciados linguísticos não contêm, em si mesmos, significações. São objetos
percebidos pelos nossos órgãos sensoriais que, a partir de tais percepções, ensejam,
intra-subjetivamente, as correspondentes significações. São estímulos que
desencadeiam em nós produções de sentido. Vê-se, desde agora, que não é correta a
proposição segundo a qual, dos enunciados prescritivos do direito positivo, extraímos
o conteúdo, sentido e alcance dos comandos jurídicos. Impossível seria retirar
conteúdos de significação de entidades meramente físicas. De tais enunciados
partimos, isto sim, para a construção das significações, dos sentidos, no processo
conhecido como interpretação.94
Deparamo-nos aqui com o primeiro óbice às possíveis soluções levantadas no
estudo da teoria ponteana. Vejamos, se os artigos e diplomas do direito positivo todos se
92 CARVALHO, P. B. Direito tributário: linguagem e método. São Paulo: Noeses, 2013, p. 172. 93 Id., Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 86. 94 CARVALHO, P. B. ibid., p. 16-17.
46
materializam em enunciados com função prescritiva, nada tem eles de intrínseco, não escondem
significado a ser revelado pelo intérprete. Em verdade, estão em posição de mero suporte físico,
ocos antes de construção humana que os preencha: antes da significação. Mesmo a significação
de um único enunciado, em geral, não basta, é preciso percorrer o conjunto global dos
enunciados produzindo diversas significações para depois articulá-las de acordo com o esquema
lógico deôntico. Só depois de transpostas estas etapas haverá a norma jurídica, como entidade
mínima dotada de sentido deôntico completo95.
Observemos que o trabalho humano aqui foi essencial para que se realizasse a
norma jurídica, antes deste grandioso esforço ela não existia. Mas se ela não existe sem o
empenho do jurista, como pode atuar antes disso automática e infalivelmente? Cai por terra o
postulado da incidência.
Uns poderão dizer, relembrando Ferdinand de Sausurre, que se o enunciado do
direito positivo está para o signo, então o próprio direito positivo deve estar para a língua. O
liame social que constitui a língua é a totalidade das imagens verbais armazenadas nos
indivíduos96.
Entre todos os indivíduos assim unidos pela linguagem, estabelecer-se-á uma espécie
de meio-termo; todos reproduzirão os mesmos signos unidos aos mesmos conceitos.97
Sendo assim, se a língua conecta indivíduos diversos pelo compartilhamento de
imagens acústicas (entidade que está diretamente associada aos conceitos) que se reproduzem
em signos, talvez os enunciados do direito positivo sejam como signos ligados à conceitos
jurídicos compartilhados pela coletividade dos juristas e, existindo algo de necessário no seu
conteúdo, este algo poderia suportar a incidência. Sustentada estaria a distinção entre incidência
e aplicação.
A reflexão, embora atraente, não está amparada na razão. Para demonstrar sua
inviabilidade basta pensar numa determinada classe, a título de exemplo a classe dos assentos98.
Como traços distintivos de um assento citemos: objeto construído para gente sentar, com
encosto, para uma pessoa, com braços, com pés, feito de material rijo99; a inclusão de um
determinado objeto na classe dos assentos dependerá de constatação humana sobre esses
95 CARVALHO, P. B. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 39. 96 SAUSURRE F. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 2012, p. 45. 97 SAUSURRE F., ibid., p. 44. 98 BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009, p. 387. 99 BECHARA, E., 2009, loc. cit.
47
elementos para então realizar-se um ato de inclusão, nada se inclui nesta classe
automaticamente, é preciso atividade intelectiva que note as correspondências e proceda à tal
inserção. O mesmo se passa com a incidência, é mister que por ato linguístico ordene-se o caos
social para então, notando o cabimento numa categoria jurídica, seja executada a subsunção.
Aceitemos, deste modo, a impossibilidade da incidência como atuação infalível e
automática da norma sobre o evento. É preciso considerar, entretanto, que no momento
decisório em que o ente competente vai emitir o enunciado protocolar da norma concreta e
individual (fato jurídico), este o faz como se incidência tivesse havido. Assim, considera, se for
o caso, as incidências sucessivas do negócio jurídico deficiente e da sanção invalidante à época
dos eventos, embora não tivesse nascido qualquer fato jurídico naquele primeiro momento. Isto
se faz por razões de lógica na composição do discurso e organização de raciocínio. A este
respeito, citemos o professor Paulo de Barros Carvalho:
Para efeito de constituição do fato e da correspectiva relação, pouco importa que o
evento por ele referido tenha ocorrido no dia 1º de janeiro. Esta data vai ser
importantíssima para a caracterização interna do enunciado factual, bem como para a
caracterização do conteúdo dos efeitos irradiados pela constituição do fato. Em termos
de existência para o direito, o marco fundamental é 25 de maio e não 1º de janeiro.
Todavia, para compor o enunciado protocolar, no seu núcleo, e para determinar as
alterações de conduta projetadas no conseqüente da norma individual e concreta,
relevantíssima será a data da verificação do evento, não do fato.100
Assim, as conclusões que passaremos a expor terão de ser interpretadas como se
incidência houvesse e supondo a(s) mesma(s) reconhecida(s) por um ente credenciado que vá
denotar o fato jurídico tributário.
Comecemos introduzindo um meio de encarar o fenômeno perceptivo. Eis que o
signo, ao se apresentar, quer sempre realizar uma situação existencial intangível e que somente
por meio dele pode ser conhecida e organizada. Para denominar este objeto referenciado pelo
signo o professor Paulo de Barros Carvalho101, embasado na teoria peirceana, nos traz o
conceito de objeto dinâmico. A atividade cognoscitiva não é capaz de exaurir este objeto por
conta de sua complexidade, assim, o que o signo nos apresenta é apenas um aspecto do objeto
dinâmico, um recorte chamado objeto imediato.
100 CARVALHO, P. B. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 106. 101 CARVALHO, P. B., ibid., p. 91.
48
À atitude de integrar o entendimento do objeto dinâmico pela mediação de outros
signos, a expressar diferentes objetos imediatos, chama-se experiência colateral e o direito
impõe ao estudioso que dela se valha para bem compreender o sistema por ele formado. Desta
maneira, poderíamos distinguir experiências colaterais jurídicas e extrajurídicas. Vejamos o que
nos diz Paulo de Barros Carvalho sobre as jurídicas:
Façamos a distinção entre uma experiência colateral de padrão eminentemente
jurídico e uma experiência colateral que se processe em hemisférios estranhos,
portanto extrajurídica. Dar-se-ia a primeira quando o intérprete, procurando captar a
mensagem legislada, deixa de lado, por instantes, os enunciados com que iniciou o
seu trabalho e sai à procura de outras orações prescritivas, no mesmo ou em diplomas
diferentes, para construir adequadamente a norma jurídica ou para bem compreender
as figuras e setores do direito positivo. Assim, toda vez que, disposto a aumentar seu
conhecimento a propósito de uma figura de direito público ou privado, o sujeito
frequenta leis ou códigos relativos a outro ramo do direito, procurando, num estudo
intra-sistemático, individualizar as possibilidades jurídicas do objeto de seu
interesse.102
As normas jurídicas promovem uma incisão nos fatos sociais descartando as
propriedades por ela consideradas irrelevantes103, deste modo apresentam determinado objeto
imediato redutor de uma realidade ampla e complexa. Outras vezes, porém, a incisão ocorre
num determinado fato jurídico, veiculando-o normativamente como outro objeto imediato, é
este o caso dos antecedentes normativos que recaem sobre os negócios jurídicos.
Tomando estes atos em analogia com os objetos dinâmicos, muitas seriam as formas
de conhecê-lo e expressá-lo, cada uma delas representaria um objeto imediato. Poderíamos
observar sua forma, seu objeto, os agentes negociais, sua causa e, neste último caso,
dependendo da acepção atribuída a expressão “causa” outros muitos aspectos poderiam ser
conhecidos. Mas notemos que um mínimo se conheceu do objeto para inseri-lo na classe
negócio jurídico, permitindo cogitar outros modos de apreendê-lo.
É por este caminho que parece se explicar a prescrição do art. 118, I quando
comanda ao jurista interpretar o fato gerador abstraindo-se da validade jurídica. Restringe o
conhecimento do objeto àquele mínimo que o faz inserido em sua classe, ao que basta para sua
existência como negócio jurídico: o suporte fático suficiente ponteano. Está vedada aqui a
102 CARVALHO, P. B. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 95. 103 CARVALHO, P. B., ibid., p. 93.
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experiência colateral que culminaria na aplicação das normas que regem a validade e a eficácia
dos fatos jurídicos.
Entretanto, isto não quer dizer que outros entes, que não os aplicadores da norma
tributária, experienciando colateralmente e aplicando as consequências próprias da invalidade,
estejam impedidos de desconstituir o fato jurídico e seus efeitos retroativamente. No momento
dessa ocorrência a denotação da norma individual e concreta no mundo jurídico deixa de existir,
legando um vácuo aos outros enunciados protocalares que dela se valiam. Estamos aqui diante
da falta de elementos suficientes para que a norma tributária acarrete suas consequências:
absoluta atipicidade jurídica.
Valem, no entanto, algumas ressalvas. Destaquemos que no parágrafo anterior
tratávamos de decisões que desconstituíram o ato para o passado. Se a norma individual e
concreta, inversamente, surtir efeitos só para o futuro algumas peculiaridades lógicas
interferirão na conclusão. É que permanecerá o suporte fático jurídico que compunha o
enunciado protocolar da norma tributária, persistindo, portanto, o objeto imediato e dinâmico
nela referenciado. Numa hipótese a referência teve sua função prejudicada, na outra a teve
preservada e atuante.
Raros são os casos em que os efeitos permanecem no passado, a decisão invalidante,
via de regra, se dá ex tunc, por força do art. 182 do Código Civil. O mais citado, sem dúvida, é
o do casamento putativo, mas outros são imagináveis, principalmente aqueles em que ficam
protegidos terceiros de boa-fé. Nessas ocasiões os efeitos se propagaram e foram mantidos, mas
observemos que efeito algum se produz do nada: efeito, como consequência que é, só se produz
a partir do existir no mundo jurídico; por isso parece razoável concluir que a manutenção dos
efeitos exige a permanência do ato. Existindo o ato, ainda que deficiente, a norma tributária
incide sobre seu suporte fático suficiente.
Atentemo-nos, contudo, à questão de que essas situações inusitadas geralmente
protegem valores caríssimos ao ordenamento, motivo pelo qual é mister considerar
significações de enunciados constitucionais durante a articulação que ensejará a norma
individual e concreta104.
Quanto ao problema antes trazido sobre a questão de o fato jurídico estar
definitivamente constituído para que possa compor fato gerador (art. 116, II do CTN),
104 CARVALHO, P. B. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 75.
50
lembremo-nos que um fato só ganha qualificação jurídica quando um ente competente expede
sobre ele norma individual e concreta. Sendo competente para decretar nulidade ou
anulabilidade somente o órgão jurisdicional, sem o seu pronunciar não há óbice jurídico a
considerar constituído o ato competentemente criado por entes privados. Serve, destarte, o
negócio jurídico ainda não decretado deficiente à ocorrência do fato gerador.
7.1. A causa como elemento do negócio jurídico
Cabe ainda acrescentar uma última palavra sobre a composição do suporte fático
suficiente. É que na dogmática do Direito Tributário alguns autores tem eleito a causa como
elemento essencial do negócio jurídico, inclusive determinando sua interpretação e
qualificação105. Anotemos
A partir de tais referências, qualquer interpretação que se pretenda operar sobre o ato
ou negócio jurídico deverá tomar em consideração a “causa” do ato, nos termos das
normas de dirigismo hermenêutico e daquelas cogentes de limitação, como modo de
se alcançar ao esperado equilíbrio entre finalidade e funcionalidade, entre substância
e forma negocial.106
Ocorre que o supracitado autor apoia-se na teoria do negócio jurídico tal qual
formulada por Antônio Junqueira de Azevedo, diferentemente da que aqui foi por nós preferida:
a teoria ponteana; devemos, portanto, analisar como concebe a “causa” este último a fim de
bem posicioná-la no plano da existência, validade ou eficácia, implicando, assim, na
composição do suporte fático suficiente ou eficiente.
7.1.1. A causa como atribuição patrimonial
105 NISHIOKA, A. N. Planejamento fiscal e elusão tributária na constituição e gesão de sociedades: os limites de
requalificação dos atos e negócios e jurídicos pela administração. São Paulo: Faculdade de direito, Universidade
de São Paulo, 2010. Tese de Doutorado. p. 174. SCHOUERI, L. E. Fato gerador da obrigação tributária. In:
SCHOUERI, Luís Eduardo Schoueri (Coord). Direito Tributário – Volumes I e II. São Paulo: Quartier Latin, 2003.
p. 143. TÔRRES, H. Direito tributário e direito privado: autonomia privada, simulação, elusão tributária. São
Paulo: Revista dos tribunais, 2003, p. 146. 106 TÔRRES, H. Direito tributário e direito privado: autonomia privada, simulação, elusão tributária. São Paulo:
Revista dos tribunais, 2003, p. 146.
51
Nos ensinamentos de Pontes de Miranda
A causa é a função, que o sistema jurídico reconhece a determinado tipo de ato
jurídico, função que o situa no mundo jurídico, traçando-lhe e precisando-lhe a
eficácia. A causa fixa, na vida jurídica, o ato.107
Mais à frente
A causa refere-se à atribuição. Tantos tipos de atribuições tantas as causas. (...) A
causa só diz respeito à atribuição, e a atribuição é a mesma, na venda e compra, na
troca, na locação e na transação.108
Atentemo-nos que, para este autor, ela se confunde com o fim econômico típico da
atribuição patrimonial109, separando-se, ainda, dos motivos. Entretanto, está limitada,
principalmente, as espécies: causa credendi (ou causa constituendi), causa solvendi, causa
donandi; o corolário desta constatação é que nem todos os negócios jurídicos estão
contemplados por uma causa única, diferenciada110, além disso, não é papel da causa
corresponder necessariamente ao resultado prático:
Só se levaria em conta o resultado prático do negócio jurídico, mas, se assim fosse,
até que ele se produzisse haveria motivo, indiscernível dos outros motivos. Portanto,
também inadmissível111
E isto se dá porque, segundo o autor, a causa deve nascer concomitantemente ao
negócio jurídico, não podendo se consubstanciar apenas quando da verificação do resultado
prático. Não fosse assim, não poderia localizar-se, tal qual alocada pelo autor, no suporte fático
suficiente, porque este se completa tão logo o ato venha a existir no mundo jurídico, sendo
indiferente ao que se passa na execução do contrato:
O fim que o agente procura e o leva a prática do ato, sem se cogitar do fim, que antes
tivera, e do fim, ou fins, ulteriores, que com o ato entende alcançar é a causa. O fim,
que se tem como relevante, é, de regra, só que está no suporte fático do ato jurídico e
determina o caráter da atribuição.112
Traça então os fins anteriores ao negócio como motivos, pré-intenções que dão
ensejo ao negócio113, e os fins ulteriores como resultado prático, supostamente indiferente ao
107 MIRANDA, P. Tratado de direito privado, t. III. Campinas: Bookseller, 2000, p. 107. 108 MIRANDA, P., 2000, loc. cit. 109 MIRANDA, P., ibid. p. 127. 110 MIRANDA, P., 2000, loc. cit. 111 MIRANDA, P. ibid., p. 129. 112 MIRANDA, P., ibid. 126-127. 113 MIRANDA, P., ibid. p. 127.
52
plano da existência no mundo jurídico. A causa será o direito atribuído em equivalência ao
decréscimo de um patrimônio (causa credendi ou constituendi)114, o ato praticado a partir de
um dever e de que decorra adimplemento (causa solvendi)115 ou a atribuição que se faz sem
outra causa que a de inserir um bem de vida no patrimônio de outrem (causa donandi)116.
7.1.2. A causa tal qual concebida por Heleno Tôrres
Segundo Heleno Tôrres a
Causa é a finalidade, a função, o fim que as partes pretendem alcançar com o ato que
põem em execução, sob a forma de contrato, para adquirir relevância jurídica. Por isso
a causa é elemento essencial do negócio, como fim de realizar uma operação
apreciável economicamente, devendo ser sempre lícita e passível de tutela pelo direito
positivo. E para cada contrato ou ato jurídico, somente uma causa. No contrato de
venda e compra, a causa é o intuito de entregar uma bem recebendo um preço
correspondente. Caso seja um bem por outro, a causa já individualiza um outro
contrato, o de permuta; e se não há intuito de obter o pagamento do preço deste, a
causa já impõe outra qualificação a de um contrato de doação.117
Bem se vê que as perspectivas não se identificam. Num a causa é a mesma na venda
e compra, na troca, na locação e na transação118, noutro entre compra e venda e permuta já se
dá outro traçar a causa. É que aqui a causa é tomada no seu sentido objetivo, como função
econômico-social do negócio. Num
é a chamada “causa da atribuição patrimonial” (4.º sentido). As mais importantes
causae de atribuição patrimonial são: a causa credendi, a causa solvendi e a causa
donandi. Em princípio, sempre que há um deslocamento patrimonial de A para B,
deve-se procurar a causa que justifica essa atribuição.119
Noutro
114 MIRANDA, P. Tratado de direito privado, t. III. Campinas: Bookseller, 2000, p. 111. 115 MIRANDA, P., ibid., p. 112. 116 MIRANDA, P., ibid. p. 114. 117 TÔRRES, H. Direito tributário e direito privado: autonomia privada, simulação, elusão tributária. São Paulo:
Revista dos tribunais, 2003, p. 143. 118 MIRANDA, P., op. cit., p. 107. 119 AZEVEDO, A. J. Negócio jurídico e declaração negocial: noções gerais e formação da declaração negocial.
São Paulo: Faculdade de direito, Universidade de São Paulo, 1986. Tese de titularidade. p. 124.
53
a causa é o fim do próprio negócio, ela é, com propriedade, causa do negócio, ou do
contrato, e não, causa da obrigação, ou da atribuição patrimonial, ou da atribuição do
direito.
Por último, o fim, que surge do próprio negócio, é, numa terceira concepção (somente
objetiva), a função que ele exerce; esse fim é uniforme nos negócios do mesmo tipo
(negócios típicos) e, se atípicos, ele deve ser socialmente útil para ser juridicamente
admitido. A função econômico-social do contrato, ou prático-social dos negócios
jurídicos, entra assim, como uma exigência do ordenamento; constitui a sua causa.120
Heleno Tôrres a põe entre os elementos existenciais do negócio jurídico, como se
vê do seguinte trecho, aparentemente fundado na teoria do Professor Antônio Junqueira de
Azevedo:
A causa é um dos elementos essenciais (gerais) do negócio jurídico, ou, nas palavras
de Antônio Junqueira de Azevedo, uma das circunstâncias negociais que, juntamente
com o objeto e a forma, constituem a existência do negócio.121
Ocorre que o mencionado autor, em fartos trechos, retira a causa final objetiva:
função econômico-social; do plano da existência. Colacionaremos alguns trechos a descrever o
seu papel:
A causa é um fato externo ao negócio, mas que o justifica do ponto de vista social e
jurídico, enquanto o elemento categorial objetivo é justamente a referência, que se faz
a esse fato, no próprio conteúdo do negócio. Por outras palavras, o elemento
inderrogável objetivo faz parte, isto é, é integrante da estrutura do negócio, e a causa,
não. O elemento categorial objetivo consiste numa referência à causa, a qual está,
porém, fora do negócio (ela está, logicamente, ou antes ou depois, mas não no
negócio; ela é extrínseca à sua constituição).122
Também a causa não age no plano da existência, mas sim, conforme se trate de causa
pressuposta ou de causa final, age, ou no plano da validade, ou no plano da eficácia.
A inexistência de causa (nos negócios causais), em regra, acarretará, quando a
hipótese for de causa pressuposta, nulidade por falta de causa (portanto, a existência
da causa é, aí, requisito de validade) e, quando a hipótese for de causa final, ineficácia
superveniente (portanto, a existência de causa é, aí, fator de permanência da
eficácia).123
120 AZEVEDO, A. J. Negócio jurídico e declaração negocial: noções gerais e formação da declaração negocial.
São Paulo: Faculdade de direito, Universidade de São Paulo, 1986. Tese de titularidade. p. 127-128. 121 TÔRRES, H. Direito tributário e direito privado: autonomia privada, simulação, elusão tributária. São Paulo:
Revista dos tribunais, 2003, p. 141. 122 AZEVEDO, A. J. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 150. 123 AZEVEDO, A. J., ibid., p. 152.
54
Diz-se também, especialmente nos países causalistas, que a causa, entendida, pois,
como “função”, é “elemento constitutivo” do negócio. Ora, isso envolve insuperável
contradição de colocar função como fazendo parte do negócio, quando jamais a
função de um ser pode ser, ao mesmo tempo, elemento constitutivo dele. A conclusão,
portanto (que aliás, já havíamos tirado no título anterior), de que são coisas diferentes,
o elemento constitutivo típico e a função prático-social do negócio, impõe-se à mente
com toda a evidência; o primeiro é o que venho chamando de elemento categorial
inderrogável, e a segunda é, realmente, a causa (observamos, entretanto, que a
expressão, “função”, aplicada à causa, adapta-se muito melhor aos casos de causa final
que aos de causa pressuposta).124
Estes excertos considerados, parece pecar pela premissa a conclusão Heleno Tôrres
de que a causa participa do negócio jurídico no plano da existência125. O que percebemos é que,
segundo o professor Junqueira, a causa pode se situar no plano da eficácia ou validade, a
depender de como é concebida. Por outro lado, como causa da atribuição patrimonial, Pontes
de Miranda a situa no plano da existência126, contrariando, portanto, AZEVEDO. Ainda,
segundo este último autor, a causa final objetiva não compõe o suporte fático suficiente do
negócio jurídico.
7.1.3. Considerações finais sobre o papel da causa
Embora ambos: Pontes de Miranda e Antônio Junqueira de Azevedo; situem a causa
(final e objetiva) fora do suporte fático suficiente de um negócio jurídico, não nos parece que
assim se passe.
O Código Civil, no seu art. 421 enuncia que a liberdade de contratar, isto é de
conferir existência a um contrato, será exercida em razão da função social do contrato. Ora, a
função social do contrato é por muitos considerada a verdadeira consagração da causa no
124 AZEVEDO, A. J. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. São Paulo: Saraiva, p. 154. 125 TÔRRES, H. Direito tributário e direito privado: autonomia privada, simulação, elusão tributária. São Paulo:
Revista dos tribunais, 2003, p. 141. 126 Referindo-se as considerações de Clóvis Beviláqua sobre a inexistência da causa no CC 1916, Pontes de
Miranda tece o seguinte comentário: “O código Civil fala em objeto (art. 82) e não fala em causa. A extirpação é
inoperante, porque todo o sistema é fundado na causa.” prossegue: “Algo de equivalente ao grito do professor de
obstetrícia que se dirigisse às internadas: “Todos os recém-nascidos nasçam sem pernas.” Mas não nascem em
milhões. Nem as condições imorais deixam de ser ilícitas, nem a causa desaparece, ao sopro legislativo do Código
Civil inteiro.” MIRANDA, P. Tratado de direito privado, t. III. Campinas: Bookseller, 2000, p. 129-130.
55
ordenamento jurídico brasileiro127. Além disso, ao que parece ela é a grande fonte de toda e
qualquer avença e, como fonte, relega ao que dá nascimento parte de sua substância: o negócio
jurídico está geneticamente impregnado por sua função social.
Sobre o que postula o professor Junqueira, que seja insuperável contradição a de
colocar função como fazendo parte do negócio, quando jamais a função de um ser pode ser,
ao mesmo tempo, elemento constitutivo dele128, não pode ser considerado de todo verdade. A
própria metafísica aristotélica admitia como uma das concepções de substância a finalidade129,
aquilo que a coisa tem em mira, assim, no exemplo dado em De anima, a substância do olho
seria a visão. Jamais conceder à função a característica de essência, figura-se, então, como um
paralogismo.
É nossa posição, destarte, que o artigo 421 do CC configura como dado existencial
do negócio jurídico a causa (no sentido final e objetivo). Em decorrência, quando postulamos
que a incidência tributária recai sobre o suporte fático suficiente, estamos aí incluindo a causa.
Analisemos agora quais seriam as hipóteses em que o direito tributário poderia
operar a modulação de efeitos com o fito de preservar o suporte do tributo.
127 NISHIOKA, A. N. Planejamento fiscal e elusão tributária na constituição e gesão de sociedades: os limites de
requalificação dos atos e negócios e jurídicos pela administração. São Paulo: Faculdade de direito, Universidade
de São Paulo, 2010. Tese de Doutorado. p. 174. MORAES, M. C. B. A causa dos contratos. Revista Trimestral de
Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 21, p. 117-119, jan./mar. apud NISHIOKA, A. N., op. cit., p. 166: “Isto, na verdade,
confirma que o ordenamento civil brasileiro não dá qualquer guarida a negócios abstratos, isto é, a negócios que
estejam sujeitos, tão-somente, à vontade das partes, exigindo, ao contrário, que os negócios jurídicos sejam causais,
cumpridores de uma função social. Nesta linha de raciocínio, teria o legislador exteriorizado, através dos termos
da cláusula geral do art. 421, o princípio da “causalidade negocial”. Embora nós talvez continuemos a dizer,
simplesmente, que determinado negócio “não cumpre função social”. 128 AZEVEDO, A. J. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. São Paulo: Saraiva, p. 154. 129 ROSS, D. A metafísica de Aristóteles. In: Aistóteles. A metafísica. Trad. Leonel Vallandro. Porto Alegre:
Editora Globo, 1969, p. 26: “a explicação definitiva das coisas, para Aristóteles, reside no fim para que tendem”.
Id. Sobre a alma. Trad. Ana Maria Lóio. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da moeda, 2010, 412b, p. 63: “Se um
instrumento, como um machado, fosse um corpo natural, o que é, para um machado, ser, seria a sua essência, e
isso seria também a sua alma. [...] Se o olho fosse um animal, a visão a sua alma. Esta é, pois, a essência do olho,
de acordo com a sua definição.”.
57
CAPÍTULO 4
A ATRIBUIÇÃO DE EFEITO MODULADOR À CAPACIDADE
CONTRIBUTIVA
8. Temperamento da regra geral: a capacidade contributiva como moduladora de
efeitos invalidantes
Como é de se imaginar, a maioria dos negócios invalidados são atingidos pela regra
plena do ilícito invalidante, passando, assim, a nunca ter existido como fato do mundo jurídico.
No entanto, em algumas dessas situações, nos depararemos com casos em que a capacidade
contributiva se manifestará ostensivamente, sem que a norma tributária possa contar com
qualquer base de incidência. A isso já atentava Amilcar de Araújo Falcão ao pensar ter resolvido
o problema configurando o fato gerador como fato econômico, afinal, uma vez produzidos os
efeitos econômicos, restaria dispensável a análise da invalidade130.
Não obstante, como consignado supra, por vezes a hipótese tributária está disposta
como tipo estrutural, sendo essencial a existência do negócio jurídico para que o antecedente
tributário ganhe concreção. Caso reste fulminado o ato jurídico, toda a atuação da norma fica
prejudicada, pairando, por este motivo, um espaço vazio de tributação131.
Que pensar então destas circunstâncias que atentam tão firmemente contra a
igualdade tributária? Estamos ainda diante do primado absoluto da legalidade?
Imaginemos o seguinte caso, suponhamos que o Imposto Territorial Rural tivesse
apenas como pressuposto o fato jurídico propriedade132. No Recurso Especial 1.279.932 – AM,
de Relatoria do Ministro Castro Meira, d.j. 17/11/2012, a corte se deparou com intrincada
130 FALCÃO, A. A. Fato gerador da obrigação tributária. São Paulo: Noeses, 2013, p. 53: “um segundo préstimo
oferece a ênfase emprestada à consistência econômica do fato gerador: facilita o equacionamento e solução do
problema da tributação de atos nulos e anuláveis (...) não importa à configuração do fato gerador a circunstância
de consistir ele, concretamente, num ato ou negócio jurídico inquinado de nulidade ou anulabilidade, uma vez que
os efeitos econômicos se produzam.”. 131 DÓRIA, A. R. S. Elisão e evasão fiscal. São Paulo: Livraria dos Advogados, 1971, p. 86 apud XAVIER, A.
Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva. São Paulo: Dialética, 2001, p. 131: “Há espaços vazios,
zonas de irrelevância, bolsões de imunidade, isenções, não-incidência, a que o legislador é induzido por causas
múltiplas” 132 Excluímos o domínio útil e a posse para estampar algumas perplexidades que podem ter origem na invalidação.
58
questão de nulidade que muito bem serve à ilustração que buscamos. De fato, em 1893 teria o
Estado do Amazonas alienado um grande lote de terras devolutas ao indivíduo A, contudo, no
ano de 1962 o Estado procedeu a nova alienação desta terras, inclusive o ato administrativo de
transmissão foi levado a registro passando a constar o indivíduo B, adquirente, como novo
proprietário da gleba. Em 1964, mais uma vez, houve novo contrato cujo objeto era alienação
destas terras, desta vez a um indivíduo C, o acordo de transmissão deste também sido levado a
registro.
O ato administrativo de transmissão levado a cabo pelo Estado em 1962 promoveu
uma alienação a non domino, procurava dar coisa sobre a qual não tinha disposição
(legitimação), constituindo, portanto, obrigação impossível, além disso, afrontava
absolutamente o direito de A, a quem devia estar atribuída a propriedade das terras, todas estas
razões concorreram para que o título levado a registro fosse nulo. É certo que o registro foi
executado, mas a nulidade do ato de transmissão induz-lhe também o vício. Com base na
propriedade deficitária B procedeu a nova transmissão, concedendo a C seu direito defeituoso.
Tanto o ato administrativo de transmissão quanto o negócio jurídico entre B e C
foram decretados inválidos por sentenças transitadas em julgado. Consequentemente, o
rearranjo jurídico levou B e C a nunca terem sido proprietários, ao passo que A nunca teria
deixado de sê-lo. Diante disso, a quem atribuir o nosso suposto imposto?
Ora, se a hipótese de incidência fosse tão só a propriedade a única possibilidade
seria constituir o crédito contra A, afinal, a partir da sentença este nunca teria deixado ter sido
proprietário. Mas, ao menos nos anos em que B e C tinham para si a propriedade nula, não
demonstrava A a capacidade contributiva típica deste tributo, sendo, portanto, vedado que dele
se cobre o mesmo. Por outro lado, B e C ostentavam o símbolo de riqueza tutelado pelo ITR e,
mesmo assim, não teriam satisfeito as condições necessárias e suficientes para que ele incidisse.
É evidente que, estando incluído no suporte fático do ITR o domínio útil ou a posse,
o caso seria resolvido facilmente estabelecendo B e C como contribuintes. De qualquer maneira,
o redesenho que fizemos do imposto tem o condão de apresentar as perplexidades que podem
emanar de um tipo estrutural, como muito bem poderia vir a ocorrer com o IPVA. De fato, no
Estado de São Paulo a Lei 13.296/2008 instituiu como fato gerador do tributo a propriedade do
59
veículo (art. 2º), igualmente o contribuinte como o proprietário (art. 5º), pelo que não resta
dúvida de que o núcleo é a propriedade no sentido do direito privado.133
Remanesceria um espaço vazio de tributação para aqueles que ostentavam a
capacidade contributiva ou haveria algum recurso jurídico a englobá-los como contribuintes?
Uma aparente solução seria aquela dada pelo STJ no Recurso Especial 1.175.640 –
MG, de Relatoria do Ministro Benedito Gonçalves, d.j. 04/05/2010. Neste julgado se discutia
se o ITBI seria incidente embora a transmissão de propriedade tenha sido desfeita por decisão
judicial. Em seu argumento principal, assim consignou o Relator:
Inicialmente, deve-se observar que, à época da compra e venda do imóvel, houve o
regular registro imobiliário, com a consequente transferência do domínio do imóvel.
Somente após o trânsito em julgado da ação movida por terceiros estranhos ao negócio
é que o registro foi cancelado.
Nesse contexto, é forçoso reconhecer que o fato gerador do Imposto sobre
Transmissão de Bens Imóveis – ITBI ocorreu regularmente, pois a transmissão do
bem imóvel foi efetivada sem óbice algum.
Remata citando o art. 118 do CTN e dizendo que a anulabilidade não tem efeito
antes de julgada por sentença, postulando ser
Forçoso reconhecer, assim, que, anulado o negócio, a pretensão de recuperação dos
valores pagos a título de ITBI deve-se dar em ação indenizatória movida contra aquele
que deu causa à anulação do negócio, e não contra a Fazenda do Município.
Interessante a solução porque sendo, como vimos, o suporte fático deficiente algo
que, de alguma maneira, colide com a ordem jurídica, em muitos casos seria mesmo possível
apontar um culpado, atribuindo-lhe, desta maneira, o peso da carga tributária.
Mas não se pode olvidar que o ordenamento jurídico é um todo coerente e
sistemático, não sendo possível fechar os olhos aos rearranjos jurídicos que se estendem à sua
plenitude. No decisum, não obstante o Relator tenha considerado que a anulação só produz
efeitos quando decretada por sentença, ignorou o preceito obtido pela significação do art. 182
do CC, que prescreve a necessidade de conduzir as partes ao estado que se encontravam antes
da avença, isto é, o comprador como se nunca tivesse adquirido o imóvel e o vendedor como
se nunca o tivesse alienado, a própria transmissão, passada em julgado a decisão, deixa de ter
133 Para uma crítica ao termo “propriedade” como conceito jurídico no art. 156/CF, cf. SCHOEURI, L. E. Direito
tributário. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 765.
60
existido para o direito. Sendo assim, a contragosto do Ministro, o registro e a propriedade são
desfeitos sob o efeito ex tunc da sentença, para desde antes do negócio. Não subsiste, destarte,
o fato gerador da tributação. O pressuposto que alicerça a solução do STJ não tem respaldo nos
recursos de que o ordenamento dispõe, fazendo a tributação indevida e o regresso ao terceiro
disparatado.
À vista disso, a que outros meios jurídicos poderemos recorrer para que a situação
tenha reposta a igualdade diretora de nosso ordenamento?
8.1. O princípio da capacidade contributiva e a modulação de efeitos da invalidade
Como citado acima, existem casos em que os negócios jurídicos inválidos
produzem efeitos, já que a lei, considerando certas circunstâncias especiais, atribui,
excepcionalmente, efeitos jurídicos a atos jurídicos nulos134. É o que se chama de efeitos
putativos, a eficácia putativa é sempre definitiva (= não está sujeita a deseficacização), de
modo que não é afetada pela decretação de invalidade do ato que a produziu. Se, na aplicação
do ilícito invalidante, reconhece-se que há efeitos já produzidos que não podem ser
desconstituídos, fica prejudicada a constituição negativa do próprio ato, que só poderá se dar
para o futuro (ex nunc)135. Entretanto, façamos uma ressalva, a eficácia putativa costuma referir-
se a efeitos provenientes de fatos já juridicizados, isto é, trata-se de segunda eficácia, a primeira
tendo sido a eficácia normativa que deu passe para certo fato entrar no mundo jurídico, depois
dela, o ato viciado, excepcionando a regra, produz seus efeitos putativos. Esta distinção é
significativa se considerarmos que também aquela primeira propagação de efeitos pode ser
protegida, isto é, seria possível, em tese, blindar a existência do ato no passado.
Em geral, resguarda-se a eficácia em hipóteses expressamente previstas como no
casamento putativo, em que se protege o cônjuge de boa-fé (art. 1561/CC); no direito eleitoral,
quando o voto é dado a candidato inelegível, se esta for declarada depois da votação, o voto,
mesmo nulo, é computado para a legenda (Lei 4.737, art. 175, §§ 3º e 4º)136. Mas nada impede
134 MELLO, M. B. Teoria do fato jurídico: plano da eficácia, 1ª parte. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 60. 135 MELLO, M. B. ibid., p. 61. 136 Os exemplos estão em MELLO, M. B., ibid, p. 60.
61
que, por via de princípio, modulem-se os efeitos da invalidade. A própria boa-fé, como
princípio, poderia ser fonte para a blindagem de efeitos ou atos no passado.
Realmente, se tomarmos em conta a teoria dos princípios tal qual formulada por
Robert Alexy concluiremos que são normas que estabelecem que algo deve ser realizado na
maior medida possível, diante das possibilidades fáticas e jurídicas presentes. Seriam eles
mandamentos de otimização, na medida em que, tendo em vista um objetivo e ou resultado,
fazem surgir direitos prima facie cuja definitividade e vinculação só poderão ser determinadas
no caso concreto, depois que hajam sidos sopesados dois ou mais princípios. Em outros termos:
diante de específicas circunstâncias prevalecerá o princípio P1 face a P2 – (P1P P2) C137 e da
solução ótima encontrada emanarão direitos e deveres definitivos. Por isso é que não seria
possível falar em primazia a priori de um princípio sobre outro.
No modo como é teorizada, o autor coloca a diferença entre princípios e regras em
termos qualitativos. A regra expressa direitos definitivos, devendo realizar exatamente aquilo
que prescreve, nem mais nem menos138. Caso não o faça, deverá ser recusada sua validade no
sistema jurídico. Princípios, por outro lado, conquanto não prevaleçam num determinado
sopesamento, não tem, por esta razão, sua invalidade implicada. É que sua finalidade última é
o resultado ótimo, que pode muito bem se dar caso um princípio omita seus direitos prima facie,
ou mesmo os produza de maneira menos ampla139, cedendo espaço para que parte dos direitos
prima facie produzidos por outro princípio se realizem concomitantemente. A definitividade,
aqui, só se estabelece depois do processo de ponderação.
Outro ponto a destacar é que a fundamentalidade de uma norma não é critério
pertinente para enquadrá-la como regra ou princípio140. Evidente, assim, que muitas das
estatuições basilares do sistema acabam sendo excluídas da categoria, como, por exemplo, o
“princípio” da anterioridade.
Se se adotam os critérios propostos por Alexy, essas normas são regras, não princípios.
Todavia, mesmo quando se diz adotar a concepção de Alexy, ninguém ousa deixar
137 SILVA, V. A. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Revista Latino-Americana de
Estudos Constitucionais, v. 1, 2003, p. 610. 138 SILVA, V. A., ibid., 611. 139 SILVA, V. A., 2003, loc. cit. 140 SILVA, V. A., ibid., p. 613.
62
esses “mandamentos fundamentais” de fora das classificações dos princípios para
incluí-los na categoria de regras.141
Não se discute que estas regras continuem ocupando graus superiores na hierarquia
e que, por isso mesmo, delas decorram as regras de menor escalão, que com elas devem
compatibilizar-se. Apenas deve ficar claro que, segundo sua classificação, qualificam-se como
regras, não como princípios.
Alguém poderia argumentar que esta estrutura dos princípios não se conforma à
teoria aqui adotada, poderiam supor que seria levada em conta a significação do enunciado
principiológico e, ulteriormente, a própria ponderação no momento em que as significações são
articuladas, portanto, em ponto logicamente anterior ao nascimento da norma. Não havendo
norma quando da ponderação, também não haveria conflito normativo a ser ponderado. Seria o
argumento da colisão aparente
Segundo Bergmann Ávila, a colisão é aparente porque o problema que surge na
aplicação dos princípios “reside muito mais em saber qual dos princípios será aplicado
e qual a relação que mantêm entre si.” Com tal afirmação quer-se dizer algo como
“depois de resolvida, a colisão revelou-se apenas aparente”. Ora, nesse sentido, todas
as colisões são aparentes, exceção feita às irresolúveis. 142
Para melhor explicitar a questão o autor, então, passa a distinguir com precisão
os deveres definitivos daqueles que são prima facie.
O exemplo mais recorrente para ilustrar a distinção é o seguinte: João promete ir à
festa de aniversário de seu amigo José. Entrementes fica João sabendo que seu outro
amigo, Jorge, está extremamente doente e precisa de sua ajuda. Para João, tanto
quanto cumprir as promessas feitas, ajudar um amigo também é um dever. Nesse caso
concreto, contudo, não é possível cumprir ambos os deveres. Após ponderação, decide
João ajudar seu amigo doente e não ir à festa de José. Isso não significa, porém, que
“cumprir promessas” tenha deixado de ser um dever para João. (...) No caso concreto,
o dever definitivo é aquele que é produto de uma ponderação ou sopesamento e que é
expresso por uma regra com a seguinte redação: “Em situações como a do tipo S1, o
dever de ajudar os amigos tem prioridade em face do dever de manter promessas”. A
colisão entre ambos os deveres, como se vê, não é apenas aparente, mas real.143
141 SILVA, V. A. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Revista Latino-Americana de
Estudos Constitucionais, v. 1, 2003, 613. 142 SILVA, V. A., ibid., p. 618. 143 SILVA, V. A., ibid., p. 619.
63
Feitas estas considerações, Virgílio Afonso da Silva conclui que a diferença entre
princípios e regras não é de mera vagueza, seria, em última análise, o fato de regras expressarem
deveres definitivos e princípios tão-somente deveres prima facie144. Regras podem ser
interpretadas e, como fruto desta atividade, já serem aplicadas. Princípios exigem interpretação
e depois compatibilização, para que se formulem os deveres que consubstanciam o resultado
ótimo.145
Diante do exposto, supondo a capacidade contributiva como princípio, não seria
irrazoável conceber que direitos prima facie dela se irradiem. No nosso problema, se seu
objetivo é otimizar a tributação dos símbolos de riqueza, por que não dispensar a ela o papel de
proteger do ilícito invalidante os atos jurídicos que deixem resquícios econômicos? A fórmula
poderia ser tratada da seguinte forma: diante da circunstância “negócio jurídico inválido cujo
suporte fático suficiente compõe hipótese tributária e que tenha produzido efeitos econômicos
irremovíveis” deve prevalecer o princípio da capacidade contributiva frente ao da segurança
jurídica, desembocando a solução ótima na preservação do ato jurídico inválido, ou de seus
efeitos, no passado. Resolvida estaria a perplexidade proveniente do espaço vazio de tributação.
No entanto, devemos questionar se o princípio da capacidade contributiva, no
direito brasileiro, se apresenta como princípio ou regra. Vejamos o enunciado do art. 145, §
1º/CF sobre o qual se assenta, precipuamente, sua norma:
§ 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo
a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária,
especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os
direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades
econômicas do contribuinte.
A este respeito já se manifestou Alberto Xavier:
Observe-se, em primeiro lugar, adotando a terminologia de ALEXY, que enquanto a
legalidade e a tipicidade da tributação são objeto de uma regra, a capacidade
contributiva é objeto de um princípio. “Regras” são normas que, uma vez verificados
certos pressupostos, exigem, proíbem ou permitem algo em termos definitivos (...) Ao
invés, “princípios” são normas que exigem a realização de algo, não em termos
definitivos, mas apenas da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades e
as circunstâncias, ordenando a otimização do direito, mas sempre com a “reserva do
144 SILVA, V. A. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Revista Latino-Americana de
Estudos Constitucionais, v. 1, 2003, P. 619. 145 SILVA, V. A., ibid., p. 617.
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possível”: “sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados
segundo a capacidade econômica do contribuinte”.146
Aderimos ao seu posicionamento, inclusive quando este autor deduz a
mediatidade deste princípio147, afinal, o objetivo proposto deve ser realizado nos termos da lei,
destarte, não se pode admitir que propague direitos prima facie à administração, todo e qualquer
efeito deve se passar por consequente legal.
Fica prejudicada, portanto, a tese de que a capacidade contributiva, como
princípio, teria o condão de modular os efeitos da invalidade.
8.2. A capacidade contributiva como cláusula geral e a modulação dos efeitos da
invalidade
Alguns autores referem-se a uma certa cláusula geral que busque surpreender a
capacidade contributiva, outras vezes, ainda, a uma cláusula geral antielisiva, que, em alguns
casos, a toma indiretamente por base.148
As cláusulas gerais são fatores de mobilidade do sistema, representando o
temperamento entre a rigidez de seus elementos – orientada pela codificação e pelo primado da
segurança jurídica – e a renovação das ordens externas que com ele mantêm contato. Um
sistema extremamente aberto é autofágico, se move no rumo de sua própria desaparição, um
muito rígido é insensível e ríspido, não acomoda satisfatoriamente os fatos que lhe servem de
suporte, antes os atropela. Eis, portanto, o recurso que pretende construir o meio termo: as
cláusulas gerais.149
Com efeito, constituem
146 XAVIER, A. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva. São Paulo: Dialética, 2001, p. 126. 147 XAVIER, A., ibid., p. 129. Para um estudo sobre a eficácia positiva da capacidade contributiva, cf. GRECO,
M. A. Planejamento tributário. São Paulo: Dialética, 2008, p. 311-339. Opondo-se ao seu posicionamento.
XAVIER, op. cit., p. 111-158. NISHIOKA, A. N. Planejamento fiscal e elusão tributária na constituição e gesão
de sociedades: os limites de requalificação dos atos e negócios e jurídicos pela administração. São Paulo:
Faculdade de direito, Universidade de São Paulo, 2010. Tese de Doutorado. p. 102 et seq. 148 FALCÃO, A. A. Fato gerador da obrigação tributária. São Paulo: Noeses, 2013, p. 31. XAVIER, A., op. cit,m
p. 85. 149 MARTINS-COSTA, J. As cláusulas gerais como Fatores de Mobilidade do Sistema Jurídico. Revista dos
Tribunais, São Paulo, v. 680, p. 47 et seq., jun. 1992.
65
o meio para permitir o ingresso de princípios valorativos ainda inexpressos
legislativamente, de standards, máximas de conduta, arquétipos exemplares de
comportamento, de deveres de conduta não previstos legislativamente.150
Embora este mecanismo esteja prevalentemente no direito privado, a princípio,
nada impede que se estenda a outros ramos151, aliás, um olhar atento poderá surpreendê-las
mesmo no direito público brasileiro152.
A noção de cláusula geral começa a se traçar quando notamos o referencial,
numa hipótese normativa, a uma ordem de valores metajurídicos ou diretivas extrasistemáticas,
protraindo a formulação de seu consequente para depois do cotejo entre o caso concreto e os
elementos do sistema referido153. Por esta razão é que, ao legislar por meio de cláusulas gerais,
de alguma maneira, o legislador renuncia aos valores intrasistêmicos154.
Em sua estrutura costuma estar contida uma expressão vaga cuja significação
privilegia o plano pragmático da linguagem155. Esta composição encontra seu pressuposto no
reconhecimento pelo legislador da impossibilidade de acompanhar o câmbio das relações
sociais, assim, as cláusulas gerais aparecem como o grande instrumento que dará
compatibilidade entre as normas jurídicas e seu contexto funcional156.
Pressupõem, ainda, a atribuição de certa discricionariedade ao órgão aplicador
porque, além de incumbir-lhe a enunciação do comportamento devido, conferem-lhe o espaço
para fazê-lo segundo sua própria valoração do sistema externo.157
150 MARTINS-COSTA, J. O direito privado como um “sistema em construção” – as cláusulas gerais no projeto
do código civil brasileiro. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 753, p. 24 et seq., jul. 1998. 151 WÔJCIK, K. Las cláusulas generales: concepción e funciones. Revista Vasca de Admnistracion Publica, v. 27,
mayo-agosto 1990, p. 117:“En un principio las cláusulas generales aparecieron en el derecho civil, y después se
introdujeron en las otras ramas del derecho que se demarcaron respecto al derecho civil como el derecho de família
y el derecho del trabajo. Ello no quiere decir, sin embrago, que el uso de las cláusulas generales esté restringido a
este ámbito; ahora las cláusulas generales son de aplicación universal utilizándose en derecho penal, derecho
administrativo, etc.”. 152 Por exemplo no caput do art. 37/CF, que relega os deveres em que se deve pautar a administração pública a
uma fonte extrasistêmica, metajurídica. 153 WÔJCIK, K., 1990, loc. cit. “La noción de cláusula general se observa en los casos en que el órgano de
aplicación judicial es competente para actuar no sólo según las disposiciones de derecho positivo sino también
según otras directivas extra-sistemáticas o valore cuyo carácter se discute ampliamente.” 154 WÔJCIK, K., ibid., p. 119. 155 WÔJCIK, K., ibid., p. 118. 156 WÔJCIK, K., ibid. p. 119. 157 WÔJCIK, K., ibid. p. 120.
66
Krystyna Wôjcik relata as dificuldades para definir o instituto, de tal modo que
o desenho por ela traçado melhor a coloca, não como conceito, mas como noção ou tipo.
Vejamos
Podemos formular, en tal situación, definiciones parciales que den critérios negativos
del uso de esta noción:
a) Si la noción x no es una expresión vaga, no es una cláusula
general.
b) Si la noción x no es una expresión valorativa, no es una
cláusula general.
c) Si la noción x no hace una referencia extra-sistémica, no es
uma cláusula general.
d) Si la noción x no crea una discrécion al órgano de aplicación
del derecho, no es una cláusula general.
e) Si una discrécion implicada en la noción x no se ha creado
voluntaria e intencionadamente no es una cláusula general.158
A partir desta exposição, poderíamos cogitar, em oposição a tese aqui sustentada de
que o art. 118 elege o suporte fático suficiente como núcleo da hipótese de incidência, que, em
verdade, este dispositivo configura uma cláusula geral. Isto porque a referência extrasistêmica
pode passar-se de duas maneiras: direta ou indiretamente; esta última ocorreria quando el
significado de una frase utilizada en la disposicíon jurídica depende del significado de un
critério extra-sistémico particular159. Nesse sentido, a recusa que o art. 118 faz às
particularidades jurídicas: validade e eficácia; poderiam, talvez, remeter ao conteúdo
econômico do fato. O que está dentro das possibilidades abarcadas por uma cláusula geral,
vejamos que los valores a los que se refiere la cláusula general son de distinto tipo. Pueden
ser políticos y económicos y sobre todo morales, que son el grupo más amplio de referencia.160
Ora, concebido deste modo não só estaria resolvido o problema da tributação de
invalidades que ostentem capacidade contributiva, como estaria consagrado o fato econômico
como a substância de toda e qualquer hipótese tributária. Ademais, sobre a primeira solução,
estaria superada a necessidade de valer-se de direitos prima facie decorrentes do princípio da
capacidade contributiva, já que, diferentemente dos princípios, as cláusulas gerais não
158 WÔJCIK, K.. Las cláusulas generales: concepción e funciones. Revista Vasca de Admnistracion Publica, v.
27, mayo-agosto 1990, p. 122. 159 WÔJCIK, K., ibid., p. 120. 160 WÔJCIK, K., 1990, loc. cit.
67
comportam ponderação, seus direitos emanam e se aplicam sem que um outro princípio tolha a
plenitude de sua eficácia.
Conquanto atraente, este desfecho não resiste a uma análise mais profunda,
porquanto o conteúdo do antecedente e do consequente não estejam dados de antemão,
constituindo verdadeiras obras do aplicador que colidem com a previsibilidade e segurança
jurídica. De fato, atuam conferindo aos novos problemas soluções a priori assistemáticas e,
ainda que promovam, paulatinamente, a ressistematização161, não se coadunam com o “gênio”
particular do Direito Tributário.
Outro ponto a se levantar é a questão de não serem as cláusulas gerais subsumíveis.
Ora, diante disso, a aproximação que se faz de sua hipótese não a põe como conceitual, ao
contrário, surge como tipológica e esbarra nas possibilidades aventadas por este ramo jurídico.
Judith Martins Costa, depois de afastar a técnica da subsunção na interpretação das
cláusulas gerais assevera:
Em contrapartida, às cláusulas gerais é assinalada a vantagem da mobilidade,
proporcionada pela intencional imprecisão dos termos da fattispecie que contém, pelo
que é afastado o risco de imobilismo porquanto é utilizado em grau mínimo o princípio
da tipicidade.162
Conferir ao princípio da tipicidade grau mínimo de atuação é resultado que não
pode ser concedido na tributação de condutas.
Além disso, como ressalta Krystyna, para a adoção de cláusulas gerais as
características técnicas del derecho vigente son también importantes; así, em derecho penal se
prohíbe la analogia, el texto jurídico es más casuístico y las cláusulas generales son menos
utilizadas.163
E são menos utilizadas precisamente porque na maioria dos casos acabam levando
este ramo a operar por meio de operações analógicas.
No direito tributário brasileiro, por força do art. 108, § 1º, não se pode empregar a
analogia caso dela resulte exigência de tributo. Se há algo de que não se duvida é que do manejo
161 MARTINS-COSTA, J. O direito privado como um “sistema em construção” – as cláusulas gerais no projeto
do código civil brasileiro. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 753, p. 24 et seq.., jul. 1998 162 MARTINS-COSTA, J. O direito privado como um “sistema em construção” – as cláusulas gerais no projeto
do código civil brasileiro. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 753, p. 24 et seq., jul. 1998 163 WÔJCIK, K. Las cláusulas generales: concepción e funciones. Revista Vasca de Admnistracion Publica, v. 27,
mayo-agosto 1990, p. 119.
68
de tal cláusula sobejarão tributos a serem exigidos e, portanto, por mais esta razão esta
interpretação do art. 118 é inadequada.
Por último, acrescentemos que a recusa das valorações jurídicas não implica
necessariamente na dedução de que há referência a um sistema econômico. Com efeito, ainda
sobrariam muitas maneiras de recortar o evento em questão, justamente por meio da experiência
colateral supracitada. Destarte, prejudicada está a referência extrasistêmica indireta, tornando
impossível a qualificação desta norma como cláusula geral.
8.3. Alteração dos efeitos do ilícito invalidante
Neste passo derradeiro, gostaríamos de remeter o leitor ao que foi dito sobre as
interações entre direito privado e direito tributário. De fato, a conjugação dos arts. 109 e 110
fazem crer na possibilidade de o direito tributário modificar o preceito de um dado conceito,
ato ou instituto de direito privado. Mais acima apresentamos as dificuldades para estabelecer,
com segurança, os casos em que um signo estaria, realmente, para um negócio jurídico. Nesta
tarefa seria mister levar em conta o contexto, mesmo que, na maioria dos casos, a mera
referência sem ressalvas fizesse crer na adoção plena do conceito. Estas dificuldades se
comunicam com uma certa casuística das hipóteses de incidência, uma atividade que busque
exaurir os componentes de cada categoria separando definitivamente cada um dos tipos em
estruturais ou funcionais.
Tendo em vista que nossa proposta é elaborar um esquema normativo geral da
tributação de nulidades, permitiremo-nos levar a cabo uma abstração quanto à casuística, para
surpreender em outros níveis a resolução do problema.
Repitamos, uma vez mais, o enunciado do art. 118:
Art. 118. A definição legal do “fato gerador” é interpretada abstraindo-se:
I – da validade jurídica dos atos e efetivamente praticados pelos contribuintes,
responsáveis, ou terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos
II - dos efeitos dos atos efetivamente ocorridos
Se por um lado um suporte fático desligado de sua validade e eficácia é,
simplesmente, suporte fático suficiente, parecendo ser esta a construção de sentido que
69
desemboca na norma; por outro, esta interpretação não exclui uma outra afeta ao artigo 109 e
110 do CTN, uma compreensão voltada à modificação do preceito do ilícito invalidante.
Se não importa a validade jurídica, deve ela ser igualmente indiferente quando
presente ou se acaso estiver ausente. Acontece que, para preservar sua irrelevância, de alguma
maneira, o consequente do ilícito invalidante deve ser restringido, isto é, frear sua atuação para
fins tributários.
É evidente que isto não pode se dar desordenamente, excluindo da invalidade todo
e qualquer ato jurídico justamente para que o Estado o tribute. É preciso que a significação do
art. 118 se articule e se compatibilize com aquelas de nível hierárquico superior: deve ela
harmonizar-se com as normas de origem constitucional.
Portanto, é inadmissível que, ao cessar a invalidação, surja como consequência a
tributação de ato sem signo de riqueza, sem capacidade contributiva, materializando verdadeiro
confisco contra o contribuinte.164
A recusa da invalidade deve sempre respeitar a aptidão econômica. Atinemos,
ainda, que dizer isso é o mesmo que declarar a capacidade contributiva como moduladora dos
efeitos da invalidade.
Em síntese, devemos reconhecer que, a partir da possibilidade conferida ao direito
tributário de modificar efeitos de institutos privados, a norma amparada, principalmente, no art.
118 redesenha o conteúdo eficacial do ilícito invalidante para fazê-lo cessar diante de negócios
jurídicos que componham antecedentes de tipos estruturais, contudo, a suspensão de sua
atuação só ocorre a partir da verificação da capacidade contributiva, de modo tal que, sendo ela
sua pauta, consubstancia sua aptidão para modular os efeitos do negócio jurídico nulo ou
anulável.
Ainda, poder-se-ia cogitar de a modificação de efeitos conduzir ato jurídico
deficiente ao plano da eficácia, para que assim, pelo menos para fins tributários, tenhamos a
constituição de direitos e estados que correspondam ao suporte fático do tributo.
164 Cremos que, além de princípio, há momentos em que a capacidade contributiva se manifesta como regra, assim,
por exemplo, na prescrição do não confisco. Ou se tributa levando a cabo um confisco ou não, não se aventando a
contingência da ponderação. Sendo regra, passa atuar, por vezes, em plano diverso daquele dos princípios. Para
uma perspectiva do não confisco como regra, cf. SCHOUERI, L. E. Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2015,
p. 352 et seq.
70
Assim, no caso do IPVA paulista o núcleo do tributo identifica-se na propriedade.
Supondo um negócio jurídico nulo, embora exista juridicamente, em regra não atingirá o plano
da eficácia e, caso seu efeito seja constituir a propriedade, não o fará. Seria possível, portanto,
aventar a possibilidade de o art. 118 promover-lhe a eficácia para que do negócio tenha
decorrido a propriedade, conferir-lhe-ia, desta maneira, efeitos putativos, blindados de qualquer
decretação de nulidade ou anulação. Isto operado, subsistiria o fato jurídico tributário, porque
preservado seu antecedente. Mas, não é demais repetir, a modulação dos efeitos nulos deverá
sempre respeitar a presença de capacidade contributiva, caso contrário estará absolutamente
vedada.
Fica conclusa, enfim, a tese levantada, que supõe possível a tributação de
invalidades desde que não tenham sido desconstituídos o suporte fático suficiente ou os efeitos
jurídicos pelo ilícito invalidante.
71
CONCLUSÕES
Vimos que o problema da tributação de invalidades está afeito aos tipos tributários
estruturais, aqueles cujo núcleo da hipótese de incidência seja um conceito, forma ou instituto
de direito privado.
Quanto à regra do art. 118, em um primeiro sentido, devemos entendê-la como
reconhecimento apenas do suporte fático suficiente de um ato jurídico lato sensu no antecedente
tributário.
O problema é que a invalidação atinge o próprio plano da existência, ceifando o
suporte fático suficiente e desamparando a tributação.
Este resultado apresenta perplexidade nos casos em que surge um aparente espaço
vazio de tributação, embora haja ostensiva capacidade contributiva.
Uma possibilidade para a resolução do problema seriam os supostos direitos prima
facie decorrentes do princípio da capacidade contributiva. Porém, como analisado, pelo menos
se tratando da norma em questão, estes direitos devem propagar-se mediatizados por lei.
Uma segunda hipótese seria a configuração do art. 118 como cláusula geral, a
regular os embaraços insurgentes da invalidação sem modulação. Entretanto, esta espécie
normativa viola frontalmente a tipicidade tributária, além de suscitar a cobrança de tributos por
meio de analogia.
A terceira hipótese, que nos parece a solução para questão, resulta, em síntese, no
reconhecimento de que a partir da possibilidade conferida ao direito tributário de modificar
efeitos de institutos privados, a norma amparada, principalmente, no art. 118 redesenha o
conteúdo eficacial do ilícito invalidante para fazê-lo cessar diante de negócios jurídicos que
componham antecedentes de tipos estruturais, contudo, a suspensão de sua atuação só ocorre a
partir da verificação da capacidade contributiva, de modo tal que, sendo ela sua pauta,
consubstancia sua aptidão para modular os efeitos do negócio jurídico nulo ou anulável.
72
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