iseb e a construção de brasília

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    487O ISEB e a construo de Braslia: correspondncias mticas

    Sociedade e Estado, Braslia, v. 21, n. 2, p. 487-512, maio/ago. 2006

    O ISEB E A CONSTRUO DE BRASLIA:correspondncias mticas

    Mrcio de Oliveira*

    Resumo:Este artigo trata da relao entre o Instituto Superior deEstudos Brasileiros (ISEB), a construo da atual capital do Brasil,

    a cidade de Braslia e as ideologias nacionalistas. O estudo analisacom brevidade a produo bibliogrfica dos professores AlbertoGuerreiro Ramos e Hlio Jaguaribe, e, com maior profundidade,a produo de Roland Corbisiser (diretor do Instituto entre1955 e 1959). Afirma-se que entre o ISEB e o nacionalismodesenvolvimentista kubitschekiano havia muitos pontos emcomum. Mas teria havido mais do que uma concordncia de formae de contedo entre as idias defendidas pelo governo JK e aquelas

    defendidas por intelectuais do ISEB. Examinando a histria doInstituto, as circunstncias sociopolticas predominantes duranteo mandato de JK (1956-61) e as teses empregadas para defendera transferncia da capital, nota-se o apoio de muitos intelectuais construo da capital. No obstante, conclui-se que no h relaode causalidade ou determinncia entre as principais teses do ISEBe a poltica do governo JK em relao a Braslia. Correspondnciase cumplicidades mticas explicam melhor a realidade que fez unir

    esses atores em torno do tema geral da construo da nao.

    Palavras-chave:ISEB, Braslia, nacional-desenvolvimentismo.

    * Doutor em Sociologia pela Universidade de Paris V; coordenador do Programa dePs-graduao em Sociologia da Universidade Federal do Paran (UFPR). E-mail:[email protected]

    Este trabalho tem por origem a minha tese de doutorado em Sociologia:tude sur limaginairebrsilien: le mythe de la nation et la ville de Braslia , defendida na Universidade de ParisV.

    Artigo recebido em 27 set 2005; aprovado em 22 dez 2005.

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    O governo do presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira(1956-1961) procurou apoiar seu projeto de transferncia da capitaldo Rio de Janeiro para o planalto goiano em opinies e anlises

    dos mais variados matizes, desde as tentativas de interiorizao eresgate do Brasil esquecido at as propostas de modernizaoda infra-estrutura (produo de energia e indstrias de bens decapital) do pas e de industrializao do setor produtivo de bensde consumo (Moreira, 1998; Oliveira, 2005). Grosso modo, estasanlises de carter poltico e/ou cientfico, surgidas desde o finaldos anos 1940 e reaproveitadas durante o perodo de construo dacidade (1956-1960), apresentavam como tema de fundo a nao ouainda a questo nacional, mantendo estreitos (mas nem semprevoluntrios) laos com as ideologias nacional-desenvolvimentistasda poca e, em particular, com as anlises intelectuais oriundas doInstituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB).

    Os temas favoritos do governo JK, com exceo de Braslia, jeram debatidos pelos intelectuais que fundaram o ISEB desde antes

    de sua criao.

    1

    JK conheceu alguns deles durante sua campanha presidncia. Sodr (1978) afirma que alguns intelectuais teriam vistona candidatura de JK ora uma plataforma poltica semelhante aosseus ideais, ora mesmo uma possibilidade de trabalhar e assessorardiretamente o possvel futuro presidente. Assim, passaram a apoiar acandidatura de JK e chegaram mesmo a sustentar sua posse ocorridasob estado de stio. No de se admirar, portanto, que o governotenha se aproximado do ISEB. Mas no deixa de ser relevante o

    fato de que o principal momento do ISEB se deu justamente duranteo governo JK. Isso se deve em parte graas aos recursos pblicosdestinados ao Instituto via Ministrio da Educao e Cultura. Masa principal razo talvez seja o impulso poltico ocorrido quandoo ex-presidente incumbiu ao Instituto a tarefa de dar sustentaoideolgica poltica desenvolvimentista de seu governo (Sodr,1977). O apoio pblico de JK acabou por reforar tanto o Institutoquanto o nacional-desenvolvimentismo.

    Havia, claro, uma certa concordncia entre os temasisebianos e o sentido geral do programa de governo de JK. Contudo,

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    isso no se estendeu a todos os projetos governamentais. Em relaoao projeto de transferncia da capital e de construo de Braslia,houve ora apoio explcito, ora omisso. JK anunciou repetidamente

    a construo da nova capital como sendo um ato de fundao donovo Brasil, revelando assim uma vontade de dividir a histriabrasileira e o prprio destino da nao em antes e depois deBraslia. Mas, o que pensaram os isebianos dos grandes projetoskubitschekianos? A capital precisava realmente ser transferida parao planalto goiano? A anunciada nova capital significaria realmente arefundao do Brasil?

    A transferncia da capital foi abertamente apoiada porintelectuais ligados ao Instituto e, assim, cabe investigar asrazes desse fato. Concordncia de vises? Apoio episdico ouincondicional? Em resumo, como compreender a relao que poucoa pouco se estabeleceu entre os intelectuais ligados ao ISEB e oprojeto governamental de transferncia da capital?

    Para responder a estas questes, este estudo parte do exame

    tanto da histria do ISEB quanto da produo bibliogrfica de seusmembros, dando especial nfase de Roland Corbisier (diretordo Instituto entre 1956 e 1959) e, em menor escala, de AlbertoGuerreiro Ramos e de Hlio Jaguaribe. luz desses estudos,examinamos suas obras e os possveis laos existentes em relaoaos principais argumentos apresentados pelo governo JK paratransferir a capital do Brasil.

    As origens do ISEB e o governo JK

    Fazer do Brasil uma nao moderna, independente edesenvolvida um dos temas mais recorrentes na histria dopensamento social brasileiro, seguramente desde meados do sculoXIX (Oliveira, 1994). Eis porque o programa desenvolvimentista

    anunciado por JK materializado em seu famoso Programade Metas reverberou (seja em forma de eco, seja em formade crticas) tambm nessa gerao de intelectuais que, nos anos

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    1950, reunia nomes como os de Alberto Guerreiro Ramos, HlioJaguaribe, Roland Corbisier, Costa Pinto, Roberto Campos, LucasLopes, Cndido Mendes, Pedro Calmon, Igncio Rangel, lvaro

    Vieira Pinto, Gilberto Freyre, Srgio Buarque de Holanda, NlsonWerneck Sodr, entre outros. Embora a questo nacional no fosseuma novidade em si, aqueles anos 1950 apontavam para uma novaperspectiva na maneira de abord-la. Se, no comeo do sculo XX,o Estado era uma entidade sem perfil nacional e pouco operanteadministrativamente, a partir dos anos 1940, nenhum intelectualmenospreza seu papel e influncia na vida econmica e social dopas. Mais: desde o final do Estado Novo, todas as questes centraisque dizem respeito nao convergem para a estrutura de um Estadoj bem mais nacionalizado e organizado burocraticamente. Noobstante, as anlises intelectuais e polticas do perodo apontavampara uma nao ainda sem perfil social e econmico consolidado.Nessas condies, era pouco provvel que os diversos atoressociais lograssem construir um projeto nacional. Este caberia aoEstado. Com a expanso na oferta de bens e servios e na taxa de

    investimentos, segundos estudos do BNDE,2

    o Estado lentamente sepreparava para a tarefa que se apresentava.

    Segundo Cardoso (1978, p. 386), em toda a dcada de 40 eat a metade da dcada de 50, o Brasil apresenta um crescimentoeconmico considervel. Acreditava-se porm que as condiesque permitiram aquele crescimento no se repetiriam, sobretudodevido depreciao das relaes de intercmbio. Esta tendncia

    j havia sido indicada por Prebisch (1949) e seria confirmada emestudos da CEPAL (Moraes, 1985). A questo da dependncia,entendida tanto do ponto de vista das relaes econmicas quanto dasrelaes polticas travadas entre pases subdesenvolvidos e pasesdesenvolvidos, era apontada como o n estrutural a ser vencido.Alm disso, o quadro econmico do Brasil revelava um pas ruralostentando uma pauta de exportaes essencialmente agrcola naqual, para o ano de 1955, 60% eram provenientes do caf. Faro e

    Silva (2002, p. 67-105), diagnosticando a realidade socioeconmicado Brasil de ento, apresentam um quadro bastante minucioso doqual podemos ressaltar:

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    1) 58,82 % da populao economicamente ativa no setorprimrio;

    2) baixa produtividade agrcola;3) 60% das exportaes provenientes da venda de caf;

    4) siderurgia e indstria automobilstica emergente;

    5) indstria nacional de cimento abastecendo 90% doconsumo domstico;

    6) produo nacional de energia eltrica abastecendo 25%das necessidades domsticas;

    7) 3.000 km de estradas pavimentadas;

    8) 13,5 telefones instalados por 1.000 habitantes.

    Em termos de poltica macroeconmica, o Brasil oscilavaentre o desenvolvimentismo e o monetarismo. Segundo Lafer

    (2002, p. 13), o governo JK surge nesse cenrio propondo, j em suaprimeira Mensagem Presidencial enviada ao Congresso Nacional noincio de 1956, a transformao da mquina poltico-administrativanacional atravs de um Programa de Metas, cuja funo seria a deum fulcro irradiador e cuja tnica seria o desenvolvimento. Era oincio das polticas nacionais de desenvolvimento e foi este tambm,coincidentemente, o momento de criao do ISEB.

    A origem do ISEB remonta ao pequeno grupo de intelectuais dito Grupo de Itatiaia3 que havia criado, em 1953, o InstitutoBrasileiro de Economia, Sociologia e Poltica (IBESP). A atuaodo IBESP consistia em ministrar cursos sobre realidade brasileirano auditrio do Ministrio da Educao e Cultura. O IBESP contavacom o apoio de Ansio Teixeira e tinha como sede o escritrio deadvocacia de Hlio Jaguaribe e Reinaldo Reis, localizado na rua doOuvidor, cidade do Rio de Janeiro.

    Em 1955, o mesmo grupo de intelectuais do IBESP, a partirdo convnio firmado com a Coordenao de Aperfeioamento

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    De fato, o desenvolvimento foi o grande tema abordado por quasetodos os intelectuais ligados ao ISEB. O grupo de intelectuais presenteno Instituto desde sua fundao, o dito grupo histrico, procurou,

    desde seus primeiros trabalhos, elaborar pesquisas e reflexestericas sobre a questo do desenvolvimento, direcionando-as formulao de um nacional-desenvolvimentismo dito moderado.

    Numa estratgia de consolidao de seu nome para a corridapresidencial de 1955, o ento governador de Minas Gerais, JK, aindaem 1954, teria sido apresentado a estes intelectuais. JK, j eleito,trabalhou para transformar o Instituto em um centro destinado a

    produzir uma ideologia que justificasse seu programa de metas,garantindo apoio de muitos deles ao governo e contribuindo para aconstruo da discutvel imagem de fbrica de ideologia5 que lheseria colada (Toledo, 1978).

    A aproximao de JK ao ISEB no fora gratuita e menosainda fortuita. Alm do tema nacional comum, a ligao de JKcom intelectuais, em especial escritores, surgira durante o perodo

    de seu governo em Minas Gerais. No seu mandato presidencial, osintelectuais continuariam tendo grande espao em seu governo edentre seus assessores mais prximos, o nmero de escritores foiimportante. Entre eles, contavam-se: Afonso vila, Alphonsus deGuimares Filho, lvaro Lins, Augusto Frederico Schmidt, AutranDourado, Cristiano Martins, Cyro dos Anjos, Fbio Lucas, Franciscode Assis Barbosa e Eduardo Portela. Werneck (2001, p. 156) afirma

    que JK desejou dar brilho verbal ao seu governo, freando, nomesmo movimento, a tendncia oposicionista dos intelectuais.

    Os homens acima, escritores, contistas ou poetas, podem,contudo, ser relativamente diferenciados dos intelectuais da geraoisebiana. Eram antes homens bem nascidos, com ligaes nas elites,inteligentes, formados ou no e, sem exceo, bons redatores. O poderdeles necessitava tanto para fazer andar a mquina administrativa

    e burocrtica do Estado quanto para manter alianas polticas.Miceli (1981) se refere a esta gerao de intelectuais (1920-45)como originrios das camadas oligrquicas (e de suas extenses,

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    os parentes pobres) to comuns nos anos 1920 e 1930. Pouco apouco, essa gerao fora se modernizando, se profissionalizando medida em que se modificava o mercado de trabalho intelectual.

    Talvez se possa dizer que sua vocao para ocupar cargos no poderpblico era antes uma estratgia natural de sobrevivncia doque uma prtica poltica conscientemente arquitetada. Diferentesdaquela foram os homens da gerao de 1945, formados sob abandeira do nacionalismo. Pcaut (1990) se refere a estes como umagerao engajada. diferena do grupo de escritores, contavam-se agora cientistas polticos, economistas, socilogos e juristas.Esta formao cientfica no poupou aos intelectuais isebianosuma certa desconfiana entre os grupos de cientistas sociais ligados Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio deJaneiro) e mesmo Universidade de So Paulo, que os julgavammal preparados para analisar e formular solues para o Brasil.No obstante as crticas e embora em sua maioria fossem oriundosdos estratos mais elevados da sociedade, procuraram, de formaorganizada e consciente, analisar e, a partir de suas opes tericas e

    ideolgicas, interferir politicamente nos destinos do pas. Em traosgerais, esta a gerao responsvel pelo ISEB.

    Quando de sua criao, os responsveis pelas cadeiras doInstituto (e, assim, pelos contedos dos cursos) eram: Hlio Jaguaribe(Cincia Poltica), lvaro Vieira Pinto (Filosofia), Ewaldo Correira(Economia), Alberto Guerreiro Ramos (Sociologia), CndidoMendes (Histria) e Nlson Werneck Sodr (Histria do Brasil).6

    Os cursos eram ofertados com total autonomia pelos docentes que,inclusive, no freqentavam as aulas dos colegas.

    O Instituto funcionou, nos seus dois primeiros anos, 1956e 1957, como uma instituio de ensino e pesquisa, dentro doformato previsto pelo Ministrio da Educao e Cultura. Mas, em1958, ocorre uma crise. Sodr (1978, p. 27-53) afirma que a crisefoi resultado de um processo que, desde incios de 1956, vinha

    dividindo os intelectuais do Instituto. O desenvolvimentismokubitschekiano fora definido como uma acelerao do crescimentoeconmico, enquanto que aquele defendido por alguns intelectuais

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    isebianos deveria apresentar uma dimenso nacionalista explcita, oque implicaria uma mudana na estrutura econmica do pas. Soma-se a isso uma campanha em veculos da grande imprensa carioca

    na qual, lentamente, os professores do Instituto foram chamados orade comunistas, ora de entreguistas, ora de ambos. A crise tivera comoestopim a publicao do livro de Hlio Jaguaribe, Nacionalismona atualidade brasileira, cujas afirmaes sobre a explorao dopetrleo e sobre as possibilidades de desenvolvimento associadoa capitais externos colocaram em posies opostas algumas dasfiguras mais importantes do Instituto. Jaguaribe (2004, p. 1) afirma,

    em recente entrevista, que a crise tivera como estopim o fato deGuerreiro Ramos ter sido acometido da falsa impresso de que oBrasil se encaminhava para uma grande revoluo social no governoJuscelino. Sodr afirma que a posio de Guerreiro Ramos foraambgua e sectria, culminando num racha decisivo que levaria tantoa seu prprio afastamento quanto ao de Hlio Jaguaribe, ocorridopouco tempo depois. Com a sada destas duas importantes figuras,teria havido, a partir de 1959, uma lenta radicalizao nas posies

    dos intelectuais remanescentes7 no sentido da elaborao de umaverdadeira ideologia nacional que, embora tambm pautadano desenvolvimentismo, estivesse sob o comando das camadaspopulares ou do operariado. Contudo, entre fins de 1958 e fins de1960, embora caminhando para posies ideolgicas mais radicais fato que, contudo, s se tornaria mais evidente a partir de 1961,durante do governo Jnio Quadros o Instituto se manteve prximo

    das propostas desenvolvimentistas defendidas pelo governo JK.

    Para Toledo (1978; 1986) e Franco (1978), os intelectuais doISEB atuaram como idelogos. Como um todo, o Instituto produziuuma cincia que se transmutou em ideologia. Agiu assim comouma fbrica de ideologia, um aparelho ideolgico de Estadoou ainda como a prpria conscincia burguesa da poca. Estaexplicao encontra, claro, numerosos argumentos tanto no trabalho

    dos professores responsveis pelas cadeiras quanto na prpria ata defundao do Instituto. Esta explicao encontrou guarida ainda emoutros trabalhos. Mota (1985 [1977]) afirma que se tratava de uma

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    gerao em que ingressaram acadmicos e metamorfosearam-seem polticos.

    Outros trabalhos, contudo, apresentam a produo dosintelectuais do ISEB de uma maneira mais contextualizada,nuanando suas diversas posies terico-ideolgicas e seusdiversos perodos e exprimindo aqui e ali os diversos matizespoltico-ideolgicos da poca. Lamounier (1978) afirma que osintelectuais isebianos no lograram produzir uma teoria poltica nemmesmo uma ideologia propriamente dita, indicando assim um certoespontanesmo e voluntarismo poltico. Schwartzman (1981, p. 3)definiu estes intelectuais menos pelas posies polmicas e polticasque os animavam e mais pelo sentimento que os unia: a preocupaocom o subdesenvolvimento, a busca de uma posio internacionalde no alinhamento e de terceira fora, um nacionalismo emrelao aos recursos naturais do pas, uma racionalizao maiorda gesto pblica, maior participao de setores populares na vidapoltica.... A explicao de Schwartzman (1981) retoma assim o

    argumento inicial: a preocupao terica e poltica em torno dotema do desenvolvimento, trabalhada desde os tempos do IBESP,aquela que mais define o Instituto. Enfim, Ortiz (1985) afirma queo Instituto no seria nem mero apndice do governo, nem fbricade ideologia, mas, sim, composto por um grupo de intelectuais,heterogneos por formao e por ideologia, que teria produzido,em sintonia com a poca, diversas anlises (ou ideologias) sobre a

    realidade nacional.Muito ainda se pode falar a respeito da ideologia produzida

    pelos diversos acadmicos ligados ao Instituto. Contudo, pareceforado hoje reuni-los em apenas um nico grupo, em apenas umanica posio ideolgica ou mesmo em resumir sua atuao ao fabricode uma nica ideologia nacional-desenvolvimentista. Talvez sejamelhor falar em ideologias. Essas (eis a hiptese) assumem novo

    contorno quando confrontadas ao sentimento de inexistncia de naoe da necessidade de uma poltica de desenvolvimento (como formade constru-la) que assaltou toda essa gerao de intelectuais. De fato,

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    a oposio nao/anti-nao talvez aquela que melhor signifique oISEB, em certa medida porque ela permitia (ainda permite?) resgataro nvel de (des)nacionalizao8 do desenvolvimento brasileiro. A

    hiptese que este imbricamento entre sentimento de inexistncianacional e de desenvolvimento materializou-se com uma fora noimaginada no projeto governamental de mudana da capital. Aconstruo de Braslia devido tanto a seu carter pedaggico deesclarecimento da (ir)realidade do Brasil quanto devido s dimensesnacionais e de potencialidades de desenvolvimento pouco a poucovislumbradas conferiu justa e didtica imagem ao variado conjuntode pressupostos terico-ideolgicos lentamente elaborados pelosintelectuais ligados ao Instituto.

    O ISEB, o governo JK e a construo de Braslia

    Para ilustrar a relao do Instituto com o governo JK e como projeto de Braslia, tomemos o caso de Roland Cavalcanti de

    Albuquerque Corbisier ou simplesmente Roland Corbisier (1914-2005).9 Paulista de nascimento, filsofo e diretor do Instituto entre1955 e 1959, Corbisier publica, nesse mesmo perodo, trs livros:Responsabilidade das elites(1956);Formao e problema da culturabrasileira (1958); Braslia e o desenvolvimento nacional (1960).Os dois ltimos livros foram frutos de conferncias realizadas peloautor em 1955 e 1956 e em maro de 1960, respectivamente. Asduas primeiras aconteceram no auditrio do Ministrio da Educao

    e Cultura, durante os cursos de Introduo aos Problemas do Brasile Filosofia do Brasil promovidos pelo ISEB e a terceira aconteceuno mesmo auditrio no dia 31 de maro do ano de 1960, no quadro deum seminrio, tambm promovido pelo ISEB, sobre a nova capital.Assim, no nasceram como livro. A ltima, inclusive, foi a nicaconferncia daquele seminrio publicada pelo Instituto.10

    Participando ativamente da vida poltica, escrevendo e

    apoiando publicamente o programa de governo de JK, o exemplode Corbisier bastante ilustrativo do papel que as questes dodesenvolvimento e do nacionalismo, em sua dimenso ideolgica,

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    ocupavam no seio do Instituto. Mas pode-se tambm ver nacronologia e no significado dos livros publicados um outro sentido,mais perene. A hiptese bsica que a obra de Corbisier aproxima-

    se do tema da construo de Braslia inspirada pelo mesmo desejode construir a nao presente no processo que levou o governo JKa esposar tarefa to espinhosa. Esse desejo teria como lastro umaanlise aparentemente inquestionvel para a poca: no havianao brasileira. Urgia constru-la. Como desenvolvemos alhures(Oliveira, 1997; 2005), JK, durante todo o perodo da construode Braslia, insistiu sobre o carter redentor da obra. Em inmerasoportunidades e para os mais diversos pblicos, Braslia foi sempreapresentada como algo maior que uma cidade. Tratava-se de umacapital e no apenas mais uma capital mas sim aquela destinadaa redirecionar o futuro da nao, a unificar internamente o pas, atrazer realidade as vastas potencialidades sempre alardeadas. Ootimismo que tomou conta do pas na era JK anunciava ao largoum outro pas, bem diferente daquele em que se vivia.

    O simbolismo nacional em torno de Braslia no se limitouapenas prpria transferncia da capital. Ao contrrio, alcanou defato diversas dimenses da vida nacional. Lembremos, por exemplo,do sentimento da criao de uma modernidade verdadeiramentenacional representada pelos projetos urbanstico e arquitetnico danova cidade. O plano piloto sugeria tambm, em sua expressosocial, o surgimento de uma nova sociedade, com base em relaessociais menos desiguais. Alm disso, como gigantesca obra de

    construo civil, inclusive graas s inmeras obras de infra-estrutura rodoviria e ferroviria que lhe dariam suporte, Brasliarepresentava o resgate e o desenvolvimento dos sertes e, desdeo incio da edificao, j revelava efeitos sociais e econmicos emtermos de crescimento e desenvolvimento.

    Todas essas dimenses no apenas apontavam para todesejada construo da nao, mas tambm confirmavam a tese de

    sua inexistncia. O desejo de construir a nao foi ainda muito bemexpressado pelas imagens de vazio, de comeo, de incivilizaodo interior etc. trazidas pelos primeiros relatos e constantemente

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    reforadas pelo governo JK, tanto em expresses tais como novaera de progresso, novo Brasil que se anuncia, entre outras,quanto nos filmes e fotografias produzidas de forma organizada pela

    publicidade governamental. Trazidas tona naquele contexto, asimagens do perodo da construo comearam a adquirir um sentidosimblico explcito. Mas o mais importante era que estas imagenspareciam associar-se menos s estruturas da lgica cientfica ques estruturas das narrativas mticas. Dito de outra forma, o desejode construir o Brasil, de fazer do pas uma verdadeira nao etc.surgia paradoxalmente tanto nos discursos governamentais quanto

    nas anlises intelectuais como guias para a reflexo e para ao. Emresumo, essas imagens pareciam ser substratos culturais permanentesfuncionando como um mito modulador da histria brasileira, ouseja, como uma estrutura que sustenta simbolicamente determinadasformas de agir e de pensar.

    O objeto da aproximao de Corbisier temtica de fundodo governo JK a construo do Brasil ultrapassa, portanto, as

    afinidades intelectuais e/ou poltico-ideolgicas. Como pretendemosdemonstrar a seguir, tambm ele teria sido influenciado por estemito modulador,11 acreditando assim que a melhor maneira deconstruir a nao era atravs da mudana da capital para o interiordo Brasil.

    Para fins de anlise, tomemos, inicialmente, as duasconferncias realizadas pelo autor. EmA formao e o problema da

    cultura brasileira,a tese desenvolvida : durante o perodo colonial,a sociedade brasileira no se constituiu porque inexistia umaestrutura econmico-nacional autntica. Por conseguinte, a culturae a ideologia que essa sociedade poderia criar eram igualmenteinautnticas. A partir dessa tese, o livro afirma que, no primeiroperodo (ps-independncia), o pas continuava a ser dependenteeconomicamente da Inglaterra e culturalmente da Frana. Esta

    dupla dependncia no teria permitido que o pas conseguisse sedesenvolver apesar do crescimento quantitativo e de uma certamudana na estrutura produtiva. A imagem de uma nao inacabada

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    to forte quanto o fato da inexistncia de um sentido histrico aser resgatado pelos contemporneos. O pas no poderia reportar-se sua histria colonial e dependente para construir seu projeto de

    nao. Apenas o presente e o futuro eram soluo possvel. Mascomo? Graas elaborao de um projeto de transformao, de umaideologia fundada sobre a realidade e voltada para o futuro:

    [...] a transformao racional de nossa circunstncia exige o seuprvio conhecimento, conhecimento esse que, por sua vez, s se tornapossvel em conseqncia desse projeto anterior de transformao(Corbisier, 1958, p. 86).

    A transformao racional no poderia se fazer sem umconhecimento anterior da realidade. Este conhecimento seriafruto de um projeto de transformao. Temos aqui uma inversodo raciocnio lgico porque o conhecimento da realidade que,em princpio, permite elaborar o projeto de transformao e no ocontrrio! Para o autor, contudo, os dados empricos e a realidadedeveriam se submeter aos projetos de transformao.

    A transformao sendo considerada necessria, como noaceitar os pressupostos da ideologia nacional-desenvolvimentistaexemplarmente divulgados atravs das imagens da cidade que seconstrua do nada? Deste momento em diante, pouco a pouco, masfirmemente, o autor apresenta, em sua obra seguinte Braslia eo desenvolvimento nacional os argumentos que vo fundamentar

    seu apoio ao governo JK. O projeto de transformao nacional,reclamado por Corbisier em tantas passagens dA Formao...encontra no projeto de transferncia da capital mais que umaexpresso palpvel. Encontra a resposta, a concreta possibilidade deretirar o pas do marasmo, do arcasmo de suas tradies coloniais.O ttulo da obra Braslia e o desenvolvimento nacional12 maisque uma anlise. Assemelha-se a uma convocao imperiosa em

    direo ao futuro do pas. Neste livro, logo de incio, o autor retomaos mesmos argumentos j desenvolvidos nA Formao...:o Brasilno era uma nao.

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    [...] termos proclamado nossa independncia h quase um sculo emeio, no quer dizer que tenhamos por essa razo, e ao mesmo tempo,conquistado tambm a nossa independncia econmica e cultural.

    Soberanos politicamente, ao menos na forma legal, continuamos aser colnia econmica da Inglaterra e colnia cultural da Frana. Eo nosso crescimento econmico, que se processou at o incio daindustrializao, no alterou a fisionomia do Pas, a estrutura do seuaparelho de produo, de suas classes sociais, de suas instituies

    polticas e administrativas, nem tampouco o estilo de sua vidacultural. A unidade nacional se reduzia unidade do territrio,da lngua e da organizao poltica. Do Imprio centralizador

    Repblica Federativa, no se afrouxaram os laos dessa unidade,embora o Pas, pela prpria extenso continental, pela escassezou inexistncia de meios de comunicao e de transporte, pelocentrifuguismo de sua economia dependente, carecesse de mercadointerno e, portanto, de integrao econmica e social. A rigor, nuncahouve sociedade nem povo brasileiro (Corbisier, 1958, p. 161-162).

    A independncia poltica de nada nos teria servido. A histriado Brasil apresentada como uma longa caminhada de dependnciaem dependncia. Do plano econmico ao cultural, dois pases:Inglaterra e Frana. O final da passagem taxativo: nem sociedade,nem povo. Estava resumido o Brasil. Preparava-se nestes termos oterreno para a interveno, para o conjunto de solues que tornariamo Brasil uma nao independente. Este conjunto no poderia esperaro natural desenvolvimento das foras sociais e econmicas. O autor

    prope a idia, ou melhor, um conjunto de idias. O tema-base desteconjunto de idias era a integrao.13 Contudo, inconsciente deseu lastro mtico, essa imagem era apresentada como a condiopara a existncia de um mercado interno e para a industrializao,temas presentes em anlises que vo da CEPAL, passando por CelsoFurtado at o Partido Comunista do Brasil. O fundamento dessaanlise , portanto, poltico e ideolgico, mas seu lastro mtico

    porque implicitamente admitia a inexistncia da nao. Assim,o autor poderia afirmar que o desejo de construir a nao j seencontrava em germe espera de tarefas que a trouxessem vida:

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    Essa tarefa, porm, de desenvolvimento, de integrao nacional, deconstruo da Nao brasileira, essa tarefa, embora seja de contedoeconmico e social, , fundamentalmente, poltica e ideolgica.

    No so as foras de mercado, entregues sua espontaneidade,ao seu livre jogo, que nos permitiro corrigir os desequilbriosinternacionais e os desequilbrios internos, promovendo, no prazoque nos interessa, o desenvolvimento harmonioso e equilibrado doPas. (Corbisier, 1958, p. 167).

    Uma interveno faria o pas se desenvolver. A tarefa era a daconstruo da nao. Uma tarefa ideolgica, como bem assinala oautor, mas tambm poltica. E qual seria esta poltica? Qual ideologia

    seria capaz de reorientar o desenvolvimento nacional e de mudarestruturas seculares? A resposta estava em andamento. Era o projetode transferncia da capital e a construo de Braslia:14

    Ao edificar a cidade, no s o homem se liberta da servido natureza e dos misteres elementares da sobrevivncia, como fabricaa moldura, o contexto no qual passa a realizar sua existncia. [...].Todas as grandes culturas e civilizaes que conhecemos, encontram,

    por assim dizer, seu arremate e seu coroamento na construo daMetrpole, da grande capital. (Corbisier, 1960, p. 173).

    O projeto de transferncia tem uma importncia to grandeque chega a ser comparado com o papel que as prprias cidadesdeveriam ter no contexto civilizatrio. Corbisier (1960, p. 173)continua:

    Para atender s exigncias do desenvolvimento, da integrao

    econmica e cultural do Pas, tornava-se imperativo e urgenteinteriorizar a Metrpole, transferindo-a para o corao de nossoterritrio.

    Integrao versus disperso; unio versus desagregao. Asoluo era a interiorizao da metrpole. Era Braslia no coraodo Brasil. As estradas de integrao sobretudo a BelmBrasliae a BrasliaAcre so invocadas para confirmar que um novo pas

    surgia. Corbisier conclui:Na hora matutina em que assistimos ao nascimento na Nao, emque energias poderosas e indecisas despendem-se da crislida e

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    tomam forma diante de ns, nessa hora inaugural em que se deseja afisionomia do novo Pas, livre e soberano, celebremos o privilgio desermos os contemporneos da epopia de Braslia, a flor do deserto,

    a Capital do futuro e da esperana. (Corbisier, 1960, p. 179).

    Saliente-se ainda o paralelo entre os termos novo Pas,livre e soberano empregados por Corbisier queles empregadospor outros intelectuais e por outros membros do governo JK.Comunho de idias, ideologia poltica comum ou correspondnciasmticas? Ausncia de sociedade, necessidade de uma ideologia queconstrusse a nao, necessidade de desenvolvimento, ocupao

    do territrio so alguns dos temas que instigaram os intelectuaisbrasileiros durante a construo de Braslia. Se, em Corbisier, haviauma ntida recuperao do mote mtico da inexistncia da nao,que dizer de outros isebianos?

    Guerreiro Ramos apresenta uma anlise bastante semelhantequela de Corbisier, como se pode ver j no prefcio de seu livro:

    Demos a este livro o ttulo de O problema nacional do Brasilcomplena conscincia de que ele vai situar-se na tradio da sociologiamilitante no Pas, que vem desde o Visconde do Uruguai, PaulinoJos Soares de Souza, at Oliveira Vianna, passando por SlvioRomero, Euclides da Cunha e Alberto Torres. Este ltimo autor

    publicou, em 1914, O problema nacional brasileiro. O presentelivro, como o de Alberto Torres, uma tentativa de utilizar a cinciasocial como instrumento de organizao da sociedade brasileira

    (Ramos, 1960, p. 13-14).Tambm em Guerreiro Ramos, o conhecimento deveria

    ser aplicado, deveria servir de instrumento de organizao....15Mas por que se deveria organizar a sociedade? A resposta a estaquesto, dentro do desenrolar do texto, no tarda muito. Analisandoos grandes momentos da histria do Brasil, desde a Independnciaat os anos 1920, na mesma perspectiva histrico-metodolgica de

    Corbisier, Guerreiro Ramos (1960, p. 21-22) afirma que, dominadopor fazendeiros em seu perodo colonial, o Brasil foi um passem povo [...]. Pas sem mercado interno, sem sistema nacional de

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    transportes e comunicaes. A m formao da sociedade brasileira

    era conseqncia, uma vez mais, do perodo colonial. Trata-sede uma explicao que se tornaria unanimidade nos manuais de

    histria dos ensinos fundamental e mdio: Maldita colonizaoportuguesa, repleta de bandidos, aventureiros etc. repetir-se-ia.Frente a um tal pecado original, a sada ou a soluo no poderiaser seno uma revoluo nacional recheada de industrializao,de progresso, enfim, de nacionalizao conclui o autor s ltimaspginas de seu livro:

    Nas ltimas dcadas cada vez mais evidente que o Brasil estrealizando sua revoluo nacional, isto , est adquirindo osrequisitos materiais de verdadeira nao (Ramos, 1960, p. 245.)

    Nas ltimas dcadas, conforme descreve o autor, o pas se

    industrializa, progride. Estava adquirindo os requisitos materiaisde verdadeira nao. Devia-se concluir, contudo, que o pas aindano realizara sua revoluo nacional, ainda no revolucionara

    suas condies materiais de produo. Conseqentemente, aindaque Guerreiro Ramos no tenha apoiado abertamente o projeto detransferncia da capital, o tom de sua anlise prximo daqueles deCorbisier e de JK.

    O mote da inexistncia o ponto de partida da narrativa

    mtica na trajetria do pensamento social brasileiro. O pontode chegada variaria de autor para autor. Em O nacionalismo na

    atualidade brasileira, Hlio Jaguaribe defende a tese segundo a qualo nacionalismo era a melhor forma de unir e desenvolver o pas.Esta tese foi o resultado de um trabalho iniciado em 1952, com apublicao de seu ensaio A Filosofia no Brasil (republicado peloISEB em 1957), onde demonstrava a ausncia de uma verdadeirafilosofia brasileira porque nossos intelectuais estavam demasiadoimpregnados das filosofias estrangeiras.

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    Concluso

    Pode-se afirmar que a inexistncia da nao era o piv em torno

    do qual gravitavam praticamente todas as anlises dos intelectuaisligados ao ISEB. A idia da construo, da urgncia, que j havianorteado outras geraes de intelectuais e polticos nas dcadasde 1920, 1930 e 1940, encontra-se tambm nestes intelectuaisdesenvolvimentistas e nacionalistas, olhos fixos sobre a modernacidade que surgia (mesmo se no concordassem com o projeto) ementes voltadas para o grandioso futuro da ptria.

    O caso do ISEB , contudo, nico no seu gnero. No sepode consider-lo simplesmente como um centro de pesquisas e difcil consider-lo uma escola. Porm no se pode dizer que opensamento isebiano estava isolado ou imerso em um meio hostil.Alm de ter ouvido e comemorado o primeiro campeonato mundialde futebol em Braslia, numa estratgia de grande impacto sobre aopinio pblica nacional, o governo JK convidaria, para visitar ocanteiro de obras, personalidades como, por exemplo, Tom Jobim e

    Vincius de Moraes, retirando dessa estratgia de pura propaganda,apoio e imagens (fotografias e filmes) dos mais diversos expoentesda vida nacional. A futura capital em construo numa regioisolada demonstrava o arroubo do governo, reforava a imagemmtica do comeo e contribuiu em muito para o clima de ufanismo,de confiana no futuro naqueles ditos anos dourados.

    Tentamos mostrar um sentido sutil que permitiu aproximar

    alguns daqueles que pensaram o Brasil durante os anos JK.No se vislumbra, contudo uma relao de causa e efeito entreintelectuais do ISEB e o governo JK ou ainda entre os intelectuais eBraslia; tampouco h primazia em relao ao apoio ao projeto detransferncia. Ao contrrio, talvez se possa dizer que o elementode ligao seja o sentimento da inexistncia da nao. Eis o quenos remete narrativa mtica de construo da nao: o desejo

    de construir a nao se manifesta apenas quando a engrenagemdo pensar a questo nacional posta em funcionamento. Trata-seassim de um mito que se manifesta quando, s condies sociais

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    e intelectuais, soma-se o desejo de compreenso e, por vezes, afalta de dados e conhecimento para faz-lo. Nestes momentos sim,considera-se que a nao est por se fazer; que h urgncia etc. O

    poder de mito modulador sempre atualizado em relao a cadacontexto social e poltico.

    O relacionamento de JK com o Instituto as evidnciasindicam isso , teve por base a semelhana nas anlises sobre arealidade nacional, cujo pano de fundo foi o desenvolvimento.No obstante, o tema do nacionalismo foi bem mais retrico do

    que propriamente econmico ou poltico para o governo JK, doque o foi para intelectuais como Guerreiro Ramos, por exemplo.A relao de JK com os intelectuais ligados ao ISEB ganhoucontornos especiais, talvez, devido aos laos de amizade queuniam JK a Roland Corbisier. Foi, de fato, este ltimo quem maisabertamente apoiou a ideologia nacional-desenvolvimentista etambm a construo de Braslia. No obstante, outros intelectuais(Gilberto Freyre, por exemplo) mostraram-se favorveis a Braslia,discutindo, contudo a sua urgncia, o timming da construo e oprocesso de transferncia das funes poltico-administrativasou o sentido cultural da nova brasilidade anunciada. Em outraesfera, questes de relevo envolveram os debates acerca da novacapital: ora falou-se em industrializao e desenvolvimento, oraem segurana nacional e geopoltica. O desenvolvimentismo e/ou onacional-desenvolvimentismo no apontavam necessariamente para

    a transferncia da capital. No h, portanto, relao de causalidadeou de determinncia entre as principais teses do ISEB e a polticado governo JK em relao a Braslia. Correspondncias mticastalvez dem conta melhor da realidade que fez unir alguns dessesatores em torno do tema central que era a construo da nao, sejatransferindo a capital, seja se opondo a ela. Nesse caso, a semelhananas anlises surge mais como fruto de substratos culturais mticos

    do que propriamente da lgica estrita das anlises polticas ouintelectuais.

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    Notas

    1 Eram temas debatidos pelo Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia

    e Poltica (IBESP) e publicados em sua revista Cadernos do NossoTempo, entre 1953 e 1956.

    2 Hoje o banco chama-se BNDES, acrescentando o s de social.

    3 Esta denominao tem sua origem no local Parque Nacional de Itatiaia onde a partir de 1952 passou a se reunir o referido grupo. Deste fizeramparte Guerreiro Ramos, Ewaldo Corra Lima, Hlio Jaguaribe, IgncioRangel, para citar apenas aqueles mais conhecidos.

    4 A CAPES foi criada em 1951, pelo Decreto Federal n 29.741. Suacriao insere-se no seio do projeto de nao desenvolvida formuladonos primeiros anos do governo Vargas.

    5 Esta imagem deve-se, sobretudo ao perodo 1958-1960 curiosamentequando sua ideologia se afastava daquela de JK, em particular no quedizia respeito soberania nacional e s transformaes estruturais dasociedade.

    6 Em um acerto cordial, Nlson W. Sodr (1978, p. 17) teria ficado coma parte de histria do Brasil enquanto Cndido Mendes teria ficadocom a histria geral.

    7 A cadeira de Sociologia foi ocupada por Jlio Barbosa, em substituioa Guerreiro Ramos; a de Economia, por Ezio Tvora dos Santos, emsubstituio a Ewaldo Correia; e a de Histria, apenas por WerneckSodr com a passagem de Cndido Mendes para a de Poltica, que ficouvaga com o afastamento de Jaguaribe. Esta formao teria permanecido

    at 1964, quando do fechamento do Instituto.

    8 De desigualdade, dizemos hoje.

    9 Filsofo, ensasta, articulista (Jornal do Brasil) e poltico, Corbisier foidiretor do ISEB, deputado federal e professor de Filosofia. Alm doslivros citados, sua obra grande e importante, com forte inclinao paraa rea de filosofia poltica. Uma anlise desta e mesmo do personagemultrapassaria em muito o escopo deste trabalho.

    10 As outras conferncias desse seminrio no publicadas foram:Significao geopoltica de Braslia, de Josu de Castro; Braslia,

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    marco histrico da criao de uma cultura mediterrnea, de PrimoNunes de Andrade; Aspectos sociolgicos e econmicos da mudanada capital, de Jlio Barbosa; Aspectos institucionais da mudana da

    capital, de Jos Joffily; e, Arquitetura e urbanismo de Braslia, deAugusto Guimares Filho.

    11 A idia do mito ou da narrativa mtica enquanto elemento moduladorda trajetria histrica umas das principais teses defendidas pelofilsofo francs Gilbert Durand (1979, p. 31), que afirma: ... o mitoque faz o momento histrico, a alma de uma poca, de um sculo, deuma idade da vida. O mito o mdulo da histria, no o inverso.

    12 Curiosamente, este o ttulo de uma tese defendida no ISEB em 1958(e publicada em maio de 1960, aps a inaugurao de Braslia) porHenrique L. C. de Castro. O essencial da tese de Castro retomado naobra de Corbisier. Contudo, o trabalho de Castro mais completo, comreferncias histricas mudana, dados sobre o crescimento econmicodo pas, sobre o processo de interiorizao provocado pela mudana euma anlise sobre o perfil integrador das rodovias que estavam sendocontrudas pelo governo JK e um balano do estado da construo da

    cidade naquele ano de 1958.13 A imagem da integrao foi apresentada, desde o incio das obras de

    construo, atravs de um carto postal que mostrava as distncias detodas as regies do Brasil at Braslia.

    14 Durante o perodo como diretor do ISEB (1955-1959), Corbisier,chefiando um grupo de alunos do instituto, visitou as obras de construoda capital.

    15 No caso de Alberto Guerreiro Ramos claro que a tese da "aplicao doconhecimento" no nascera ali. Sua mais forte expresso talvez estejaemA reduo sociolgica, de 1945.

    The Higher Institute of Brazilian Studies and the city of Braslia:mythical accomplicity

    Abstract:This paper works on the connection between the Higher

    Institute of Brazilian Studies (Instituto Superior de EstudosBrasileiros, ISEB) and the new capital of Brazil, the city of Braslia.We analyse the history of the Institute as well as the works of his

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    professors Alberto Guerreiro Ramos, Hlio Jaguaribe and, above all,the works of Roland Corbisier (director of the Institute between 1955and 1959). There are many points in common between the Institute

    and the nationalist ideologies. However, there is much more. Bystudying the history of the institute, the sociopolitical circunstancesof this period and the policy of JKs government, we conclude thattheres no causal relation among all of these ideas. Actually, thereare mutual correspondences and mythical accomplicity among all ofthese social actors around the general theme of nations building.

    Key-words:ISEB; Braslias city; Brazil; developmental nationalistideology.

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