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IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA
08 a 10 de junho de 2016
GT6. GÊNERO E VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES
A história de uma mulher vítima de violência doméstica em Mirandópolis -
SP
Cristina Aparecida Vieira Gomes Pavaneli
(FAM)
Thiago Agenor dos Santos de Lima
(FISMA/FEA)
Shizuko Miguita
(FAM)
A HISTÓRIA DE UMA MULHER VÍTIMA DE VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA EM MIRANDÓPOLIS - SP
Cristina Aparecida Vieira Gomes Pavaneli1
Thiago Agenor dos Santos de Lima (FISMA/FEA)2
Shizuko Miguita (FAM)3
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo principal apresentar a história de vida de uma
mulher que sofreu violência doméstica no município de Mirandópolis, interior de São Paulo.
Para o presente estudo, foi utilizado pesquisa bibliográfica e documental, bem como a
realização de entrevista semiestruturada, a fim de demonstrar as formas da realidade social que
vivem as mulheres vítimas de violência. Verifica-se que ainda é pouco discutido a temática da
violência, como também, não existe, ou é desconhecida pelos sujeitos, uma rede de proteção
social que viabilize atendimento e tratamento para as marcas deixadas pela violência, na vida
cotidiana dessas mulheres, mesmo havendo proteção através da Lei Maria da Penha e outras
legislações sociais, como no caso da Assistência Social e Saúde.
Palavras – Chave: Violência doméstica; História de Vida e Família.
1 Introdução: O percurso metodológico
O trabalho consiste em apresentar entrevista semiestruturada realizada no âmbito
da Faculdade de Mirandópolis (FAM), descrita no trabalho de conclusão de curso (TCC)4.
Os sujeitos de pesquisa, residem no bairro Morada do Sol, da cidade de
Mirandópolis – SP, cidade de Pequeno Porte II5. A escolha dos sujeitos da pesquisa se deu pelo
fato da pesquisadora morar no mesmo bairro e conhecer os sujeitos, inclusive compartilhando
1 Graduanda do curso de Serviço Social da Faculdade de Mirandópolis – FAM. E-mail:
2 Graduado em Serviço Social e Especialista e MBA em Política Social no contexto da Nova Política Nacional de
Assistência Social pela AEMS. Mestrando em Serviço Social e Política Social pela UEL. E-mail:
3 Licenciada em Letras Vernáculas e Alemão pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília (1975),
graduação em Pedagogia pela Faculdade de Educação, Ciências e Letras Urubupungá (1979) e mestrado em
Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2006). Atualmente é docente na Faculdade de
Mirandópolis. E-mail: [email protected]
4 Para esse artigo foi proporcionado um maior rigor analítico para a apresentação dos resultados.
5 Considera-se os descritos da Política Nacional de Assistência Social – PNAS (2004): municípios pequenos 1:
com população até 20.000 habitantes; municípios pequenos 2: com população entre 20.001 a 50.000 habitantes
municípios médios: com população entre 50.001 a 100.000 habitantes. Municípios grandes: com população entre
100.001 a 900.000 habitantes. Metrópoles: com população superior a 900.000 habitantes. (BRASIL, 2004, p. 11).
situações do cotidiano pessoal e familiar. Essa relação com a pesquisadora propiciaram as
confidências, em muitos diálogos que tiveram, que vivenciaram situações de violência por parte
dos companheiros.
Inicialmente foi elaborado o projeto de pesquisa, no âmbito das disciplinas de
Pesquisa em Serviço Social I e II, conforme projeto pedagógico6. O mesmo foi aprovado e
designado a orientação. Logo após, foi feito contato com os sujeitos de pesquisa e explicado os
objetivos da entrevista. Havendo o consenso pelas mesmas foi designado a sala das
dependências da FAM para a realização das entrevistas, tendo em vista o sigilo, foi agendado
horário e dia diferenciados.
Na tentativa de (re) construir o processo da história de vida dos sujeitos da pesquisa
e sua relação com a violência, optou-se por utilizar o método da “História Oral”, pois as
lembranças são espaços vivos repletos de significados, um rico potencial para conhecer a
história. Essa escolha se deu pelo fato de:
A explicitação das intencionalidades, a construção ética da pesquisa, o respeito aos
participantes e à sua livre expressão são fundamentais nesta metodologia que nos
coloca em contato direto com os sujeitos, permitindo-nos conhecer sua vida cotidiana,
seu modo de ser, de lutar, de resistir, de expressar-se pela mediação da arte e de
reivindicar direitos. (MARTINELLI, 2012, p. 5).
Esse método, foi também associado ao uso do caráter qualitativo, o qual permitiu
uma análise subjetiva dos depoimentos, com o objetivo de – “Identificar e descrever a história
de vida das mulheres vítimas de violência no município de Mirandópolis”, desdobrando-se nos
objetivos específicos, tais como: descrever como as mulheres compreendem a violência em
suas vidas, sobretudo, a suas manifestações e se houve o rompimento com os agressores.
Além de uma pesquisa bibliográfica e documental, realizada e produções cientificas
(livros, revistas, artigos), como nas legislações e normativas que permeia a área de abrangência
sobre a temática, foi realizada uma entrevista com um questionário inicial com seis perguntas,
e conforme foi sendo aplicado, novas questões complementares foram sendo realizadas para a
compreensão do todo.
Cada sujeito de pesquisa, assinou o “Termo Livre e Esclarecido”, onde constava os
objetivos da pesquisa e o compromisso de que os sujeitos não seriam identificados, por isso
nesse trabalho será utilizado nome fictício.
6 Pode ser acessado em http://www.uniesp.edu.br/fam/downloads/ppcServicoSocial.pdf
As entrevistas possibilitaram um espaço de resgate das memórias, trazendo junto as
lembranças doloridas e sofrimentos para os sujeitos. Em alguns momentos registrou-se
lágrimas, pensamentos confusos, inclusive indignações e raiva.
Pela complexidade da realidade vivenciada e atendendo as normatizações do evento
pela qual o presente artigo foi aprovado, nesse trabalho, optou-se apenas pela história de vida e
análises de um único sujeito de pesquisa, doravante denominada “Flor de Lis”, e suas falas
quando citadas serão grafadas de formas diferenciadas de uma citação direta.
A exposição da pesquisa neste artigo será feita através de apresentação de uma
síntese sobre a produção identificada em relação a questão da violência doméstica. Após,
apresenta-se a descrição das entrevistas, em um movimento dialético (particularidade,
singularidade e totalidade), isso significa dizer que a forma de exposição que é apresentada não
ocorreu da mesma forma que se procedeu a entrevista, por várias vezes o depoimento tomou
rumos diferentes e se complementaram, em seguida nas considerações finais são apresentados
os principais dados obtidos, bem como propostas de intervenção frente a temática, encerrando
a exposição.
2 Considerações sobre a violência doméstica: “hoje em dia as mulheres estão assim tem a
lei Maria”7
Para esse trabalho, levar-se-á como compreensão conceitual os aspectos descritos
na Declaração das Nações Unidas de 1949, sobre a violência contra a mulher, aprovada na
conferência de Viena em 1993, e também a Lei Maria da Penha, que expõe sobre a violência
como: “[...] todo e qualquer ato embasado em uma situação de gênero, na vida pública ou
privado, que tenha como resultado dano de natureza física, sexual ou psicológica, incluindo
ameaças, coerção ou a privação arbitrária da liberdade.” (ADEODATO, 2006, p.2).
Entende-se então que a violência doméstica contra a mulher recebe esta
denominação por ocorrer em sua vida “doméstica”, ou seja, no ambiente de sua residência, e o
agressor geralmente mantém ou manteve uma relação com a vítima.
A violência pode ser classificada como sendo: emocional, social, física, sexual,
financeira e perseguição, conforme descritos por diversos autores, ainda de acordo com a
Organização Mundial da Saúde (OMS), a violência contra a mulher tornou-se "uma epidemia,
que produz agravos à saúde física, psíquica e sexual das mulheres e meninas, devendo ser
enfrentada com políticas públicas e a punição dos agressores.
7 Esse subtítulo deu-se pela expressões descritas pela Sra. “Flor de Lis” na entrevista.
Assim sendo, cada vez mais a violência vem se generalizando no meio social.
Especificamente sobre a violência doméstica, os dados não são diferentes, entretanto, nos
estudos que abordam este tema, não existem estatísticas sistemáticas e oficiais que deem
visibilidade à dimensão dessa realidade envolvendo mulheres vítimas, presentes em todas as
camadas sociais.
No Brasil, foi promulgada a Lei 11.340/06, conhecida como Lei “Maria da Penha”.
Ganhou este nome em homenagem à Maria da Penha Maia Fernandes que, por vinte anos, lutou
para ver seu agressor preso. Ela era biofarmacêutica e foi casada com o professor universitário
Marco Antônio Herredia Viveros. Em 1983 ela sofreu a primeira tentativa de assassinato,
quando levou um tiro nas costas enquanto dormia, o seu marido, o Sr. Viveros foi encontrado
na cozinha, gritando por socorro, alegando que tinham sido atacados por assaltantes.
Desta primeira tentativa, Maria da Penha saiu paraplégica. A segunda tentativa de
homicídio aconteceu meses depois, quando Viveros empurrou Maria da Penha da cadeira de
rodas e tentou eletrocutá-la no chuveiro. Apesar de a investigação ter começado em junho do
mesmo ano, a denúncia só foi apresentada ao Ministério Público Estadual em setembro do ano
seguinte e o primeiro julgamento só aconteceu 8 anos após os crimes. Em 1991, os advogados
de Viveros conseguiram anular o julgamento. Em 1996, Viveros foi julgado culpado e
condenado a dez anos de reclusão, entretanto conseguiu recorrer.
Mesmo após 15 anos de luta e pressões internacionais, a justiça brasileira ainda não
havia dado decisão ao caso, nem justificativa para a demora. Com a ajuda de ONGs, Maria da
Penha conseguiu enviar o caso para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA),
que, pela primeira vez, acatou uma denúncia de violência doméstica.
O Sr. Viveiro só foi preso em 2002, para cumprir apenas dois anos de prisão. O
processo da OEA também condenou o Brasil por negligência e omissão em relação à violência
doméstica. Uma das punições foi a recomendações para que fosse criada uma legislação
adequada a esse tipo de violência.
E esta foi uma síntese sócio histórica para a criação da lei. Um conjunto de entidades
então reuniu-se para definir um anteprojeto de lei definindo formas de violência doméstica e
familiar contra as mulheres, estabelecendo mecanismos para prevenir e reduzir este tipo de
violência, como também prestar assistência às vítimas. E, somente em setembro de 2006, que
a lei finalmente entra em vigor, fazendo com que a violência contra a mulher deixe de ser tratada
com um crime de menor potencial ofensivo, embasada no parágrafo 8º do artigo 226 da
Constituição Federal, na Convenção sobre a eliminação de todas as formas de violência contra
a mulher, na Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a
mulher e em outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil, com
o objetivo de criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
Todavia, a Lei instituiu a criação de juizados especiais para os crimes previstos
nessa legislação e estabeleceu medidas de assistência e proteção às vítimas, além de assegurar
a criação de políticas públicas para a garantia dos direitos da mulher.
De acordo com essa lei, a esfera da unidade doméstica refere-se ao espaço onde
convivem constantemente as pessoas tendo ou não vínculo familiar, inclusive aquelas que
esporadicamente se agregam. Já o âmbito da família é entendido como o grupo formado pelas
pessoas que são ou se consideram aparentados, que se unem por laços naturais, afinidades ou
vontade expressa. Com referência à relação íntima de afeto, corresponde a qualquer relação em
que o agressor conviva ou tenha convivido com a vítima, independente de residirem sob o
mesmo teto, sendo que se pode classificar a violência doméstica como:
Art. 7. São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I -
a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou
saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe
cause danos emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe
o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações,
comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,
humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz,
insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou
qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a
presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante
intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a
utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método
contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição,
mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o
exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência patrimonial,
entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição
parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens,
valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas
necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure
calúnia, difamação ou injúria. (BRASIL, 2006, s/p).
Pela primeira vez uma lei expressa necessariamente as formas de conceituar e
verificar a violência, principalmente, auxiliando nos processos de prevenção e melhor
atendimento. Para a compreensão também de um tratamento especializado, essa lei prevê que
os juizados poderão contar com uma equipe multidisciplinar que será composta por uma rede
de profissionais das áreas psicossocial, jurídica e de saúde. Nas comarcas onde esses ainda não
tenham sido criados, os crimes devem ser julgados nas varas criminais, bem como estabelece
as proibições, sendo: Art. 17. “É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar
contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a
substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa. (BRASIL, 2006, s/p).
As mulheres vítimas devem ser encaminhadas a programas de serviços de proteção
e assistência social, uma vez que a Lei Maria da Penha prevê a criação de políticas públicas que
venham a garantir os direitos das mulheres em suas relações domésticas e familiares, visando
resguardar a mulher vítima de violência doméstica de toda a forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, prevendo uma forma personalidade
de atendimento.
A Lei Maria da Penha marca o início de um novo tempo, pois essa norma jurídica
transformou os casos envolvendo mulheres vítimas de violência, uma vez que antes eram
tratados pelo direito penal como irrelevantes, enquadrando em crimes de menor potencial
ofensivo. As mulheres eram oprimidas por toda a ordem de violência para, a partir dessa lei,
recuperar sua dignidade, por meio da conquista do respeito e consideração pelos operadores
jurídicos. Um grande passo foi dado com essa lei, no sentido de que a violência que ocorre nas
relações familiares e de afeto deixou de ser tratada como um problema privado, onde reinava a
impunidade sobre os agressores.
Outro benefício da Lei Maria da Penha é a agilidade com que os casos envolvendo
crimes contra as mulheres podem ser analisados e as providências cabíveis tomadas, conforme
a situação. Isso significa que quando a notícia de um crime enquadrado na Lei chega até uma
delegacia de polícia, os procedimentos adotados divergem dos demais casos, uma vez que essa
norma jurídica determina especificamente as providências legais cabíveis a serem tomadas pela
autoridade policial e seus agentes.
É importante ressaltar que existem delegacias especializadas para atender casos de
violência doméstica dos crimes enquadrados na Lei Maria da Penha, chamadas de Delegacias
Especializadas de Atendimento à Mulher — DEAMS. Nesses órgãos, há uma norma técnica
que foi lançada em setembro de 2010 pela Secretaria de Políticas para as Mulheres8, com a
finalidade de padronizar o atendimento aos casos de violência doméstica.
Por outro lado, um dos entraves para a efetivação da Lei é a questão da interpretação
e aplicação realizada pelo Judiciário. Neste sentido, como exemplo paradigmático, pode-se citar
o caso do juiz que entre os meses de junho e julho de 2008, negou 60 pedidos de medidas
preventivas amparadas na Lei Maria da Penha, alegando serem inconstitucionais. Segundo ele,
violariam o artigo 5º da Constituição Federal no qual está expresso que todos são iguais perante
a lei, sem distinção de qualquer natureza, sendo homens e mulheres iguais em direitos e
obrigações. Em entrevista ao jornal Correio do Povo (ANIS, 2008, online), o juiz afirmou,
8 Site http://www.spm.gov.br/
ainda, que "a melhor forma de a mulher se proteger é não escolher homem bagaceiro e pudim
de cachaça, pedindo separação ou divórcio, quando preciso, e não perpetuando uma situação
insustentável”.
Outro grande problema é que, muitas vezes, as mulheres mantêm a esperança de
que o companheiro mude de comportamento e acabam acreditando quando ele promete que não
vai mais agredi-la, sendo que na maioria das vezes, os registros de ocorrência nem sequer
configuravam "ocorrências passíveis de serem investigadas, mas sim relatos de cenas de
conflitos intraconjugais".
Portanto, não existe dúvida de que a Lei Maria da Penha representa um marco na
luta pelos direitos das mulheres. Significa uma vitória dos movimentos feministas e mais um
avanço no que tange ao reconhecimento legal da igualdade através de um tratamento específico
em relação aos diferentes segmentos e situações sociais.
3 A história de vida da Sra. “Flor de Lis”
A Sra. “Flor de Lis”, viveu por alguns anos com a sua família em uma fazenda na
região do município de Mirandópolis – SP. Em uma pequena escola conclui a quinta série.
Desde pequena conviveu com o Sr. Pedro, estudaram e trabalhavam juntos na agricultura e
começaram inicialmente com uma amizade, na idade de 16 e 13 anos namoraram por sete anos,
devido a gravidez resolveram morar juntos e após quatro anos a separação.
[...] Meu marido. Pai do meu filho. Eu conheci ele assim, nóis se conheceu desde
pequeno, trabalhamos juntos, porque estuda ele não estudo. Eu estudei assim,
naquela escolinha de fazenda, de sitio assim. sabe, estudei até a quinta série daquele
tempo ainda, que hoje não vale mais nada, se pergunta alguma coisa pra mim sou
burrinha pra caramba. Agente, namoro sete anos juntos sabe, vivia junto, pra cima
e pra baixo, num tinha maldade. Ai quando eu fui me envolver com ele mesmo, eu
tinha 23 anos. Fiquei com ele. Engravidei do Matheus, foi assim tão rápido meu filho
que Deus que me livre, vivi com ele 4 anos, logo após 4 anos engravidei do Pedro,
depois num fiquei mais com ele não, não aguentei. (SUSPIRO). Eu não aguentei tanta
pressão. (Relato da Sr. Flor de Lis).
Verifica-se que no passado tão recente, as próprias relações afetivas e matrimoniais
eram estabelecidas muito cedo, inclusive se verifica a existência de casamentos organizados
por questões econômicas ou até mesmo pela questão da pobreza que afetava a vida das classes
trabalhadoras.
No início do relacionamento com o companheiro, esse não demonstrou nenhum
traço de agressividade, porém quando passou a conviver, após alguns meses, esse começou com
agressões verbais e as discussões foram sendo intensificadas, até a primeira agressão física,
sendo os principais motivos por causa de ciúmes.
[...] Nois brigava por causa de ciúmes, eu tinha ciúmes dele, só que ele falava. (pausa
para pensar). Fala até hoje que tinha ciúmes. Mais num tinha não. A pessoa sei lá
quem ama cuida num cuida, ele não, sai procurando as outras da vida, ai chegava
bêbado em casa no outro dia [...]Me agrediu” Fisicamente? (SUSPIRO). “Vixi,
muitas vezes. (LÁGRIMAS). [...]. (Relato da Sr. Flor de Lis).
As agressões físicas foram sendo constante, até que após quatro anos, por decisão
da própria Sra. Flor de Lis, deixou o companheiro. Outro fato, era que o companheiro não
acreditava ser o pais dos dois filhos do casal, o uso de álcool e a existência de relacionamentos
fora do matrimonio, conforme segue:
[...] A separação foi o seguinte, quando eu engravidei do Pedro, ele falava que o filho
não era dele, eu num sei porque, eu sou de falar que o filho num era dele, até o
Matheus, quando nasceu, aí esse menino parece japonês num é filho meu, mas é a
cara dele os dois. Fiz exame do Matheus. Fiz exame do Pedro. (PAUSA). Ele num
deveria ter feito isso comigo, né, sabendo que os filhos era dele. Eu peguei e fui me
distanciando, acabo, me magoou muito. (LÀGRIMAS NOS OLHOS). [...]Por que
bebia de mais, era um capeta, e ainda Me traia [...] Vixi, eu bati na prima dele, e nele
também. Eu taquei água quente nos dois. Sabe o que o ciúmes provoca né, taquei
mesmo, depois eu me arrependi. [...] O motivo assim, vive em zona, que se quer com
um homem desse, arriscada de pegar um doença. Eu não, não deixei o coração falar.
[...]. (Relato da Sr. Flor de Lis).
Por outro lado, a separação também foi incentivada pelos familiares do próprio
agressor, lembra sobre os diversos diálogos que teve com sua sogra
[...] De ficar com ele, de tentar, eu não tinha cultura própria. A mãe dele falou assim,
vai embora. É meu filho. Mais não vale nada. Ele vai te fazer sofrê. Já tá te fazendo
sofrer. (PAUSA LONGA). Ela viu meu sofrimento. Ela era evangélica. (EXPRESSÂO
DE SOFRIMENTO). Ela via meu sofrimento, sofri muito, muito e muito. Teve um
tempo que fiquei até meia assim, querendo voltar com ele né, agora não. Deus que
me perdoe falar, tenho até nojo dele. (Relato da Sr. Flor de Lis).
A separação provocou também o afastamento dos seus filhos com o ex-
companheiro, sendo que quando perguntado se havia vinculação a resposta foi a seguinte:
[...] Não, agora que ele quer, mas os meninos não quer. O Pedro já é pai. O mais
novo já é pai. Tenho uma netinha. Agora o Matheus, num quer saber de casar não.
Mas ele fala assim, se for da vontade de Deus, pode ser que eu te dou um neto ou uma
neta, mas eu não quero. [...] Me arrependi assim, foi bem assim no começo, quando
as crianças era pequena, eu achava assim que as crianças deveria ser criadas com o
pai, mas com o tempo eu fui vendo (PAUSA). Fui vendo que não era nada disso, e fui
me libertando [...] O Pedro muitas vezes, o Matheus também, então por isso eu falei
assim eu ficar me submetendo a isso daí, e minhas crianças eu vou embora, e to aqui
até hoje, graças a Deus meus filhos ta tudo criado. [...]. (Relato da Sr. Flor de Lis).
O que deveria ser uma estratégia perante a saída da situação de violência doméstica,
acabou sendo mais uma vez um problema, tendo em vista que não recebeu apoio dos familiares,
e lembra sobre a relação com o pai
[...] Assim, meu pai era um homem muito rígido, ele excluía eu da família, chegava
os dias dos pais eu ia dar um beijo nele dia dos pais, ele não queria, ele cuspia, ele
era um baiano ruim, ele falava porque, porque eu tinha largado do pai do meu filho,
baiano nunca aceito, num aceita a gente larga. Ele fala ai sua irmã ta com o marido
até hoje, faz 30 anos que tá com o marido. Só você que não tá. Mais eu não sou
obrigada a vive com uma pessoa que eu não gosto. [...]. (Relato da Sr. Flor de Lis).
Perante essas afirmações, ressalta-se que em todo o processo de vida a família tem
sem dúvidas um papel fundamental, tendo em vista que ela é a rede de proteção e possibilita
uma reconstituição perante as adversidades que paira pela vida de seus membros. Mas, devido
as próprias mudanças existentes na sociedade, há uma alteração, inclusive da capacidade de
proteção e cuidado, tradicionalmente atribuídos às famílias, o que ocorre em um processo de
fragilização dos vínculos familiares e tornam as famílias mais vulneráveis. (MIOTO, 2004, p.
139).
No caso, a história da Sra. “Flor de Lis”, por não encontrar proteção desejada no
ambiente familiar, decide mudar de cidade, deixando os filhos com seus genitores, e pelo uso
da prostituição e do tráfico de drogas, acaba sendo custodiada, e dessa fase ressalta:
[...] Teve um época. (CHORO). Eu fiz meus filhos sofrer. Era cabeça dura, tava
evolvida na vida louca. (PAUSA) Essa parte da minha vida é muito dolorosa pra mim.
Mas eu vou contar, porque é minha vida. Uma vez eu me envolvi no mundo do crime,
mas sem querer, sabe, quando você cai de gaiato, me envolvi porque eu quis
(PAUSA). Não. Isso foi uma cilada do diabo na minha vida, porque não é possível,
sempre fui uma mulher direita, eu sou direita, porque eu errei paguei pelo meu erro
muito caro, ai eu fui privada da minha liberdade longe daqui em Ribeirão Preto. Eu
me iludi com um cara preso, uma colega minha apresentou esse cara, nesse tempo
tinha telefone nesses lugar entendeu, ai ela me apresentou esse cara, fiquei
encantada, porque uma mulher carente, vivia apanhando, só trabalhando, lutando
pela vida, eu peguei e fui, ai quando chegou lá o dinheiro acabou, eu fiquei na casa
de uma mulher, que ela que me chamou o nome dela é Cida, Cidinha. Ela falava pra
mim fica na casa dela. E esse fica em casa ficou muito caro. Ela quis que eu levasse
droga, eu falei eu não sei fazer isso, não eu coloco em você, não eu não sei fazer isso,
mas antes disso, eu tinha ligado pra uma pessoa que essa pessoa era assim muito
perto da minha mãe, da minha família, pra avisa pra minha família que eu não ia
porque não tinha dinheiro, que era pra eles depositar um dinheiro pra mim vim
embora, ai eles não tinha dinheiro pra mim vim embora, ai ela falou se você leva 100
graminha. Mas quando eu cheguei nesse lugar, engraçado, a mulher num tinha visto
isso em mim, a gente tava em 4 mulher, e eu ela deixou num canto, revistou as três e
deixou eu La, ai as meninas sai, ai ela falou Flor de Lis tem uma denúncia pra senhora
de Mirandópolis. A pessoa que denunciou é de Mirandópolis, a senhora pode ver aqui
no bina do telefone. Mas, assim foi de telefone público, mas foi de Mirandópolis e tem
duas pessoas que sabia a roupa que eu tava, e essa pessoa que eu liguei pra ela, eu
contei pra ela na maior confiança, olha tem uma pessoa assim que eu to na casa dela
e eu vou ter que levar isso e isso pra ela me dar o dinheiro pra mim ir embora.
(PAUSA). Só essas pessoas sabia. Uma dessas pessoas foi caguetagem. Então essas
pessoas fez isso comigo, mas essas pessoas tá sofrendo. Nunca faz mal pra uma
pessoa que você paga aqui. Num tem outro inferno, é aqui, as maldades que você faz
pra uma pessoa, você olha pra trás e fala porque eu to sofrendo tanto, você pensa vai
lá atrás e pensa o que fez de maldade pra uma pessoa, e vai fala num fiz aquilo pra
aquela pessoa e estou pagando. E paga, e eu paguei muito caro. Fiquei presa.
(PAUSA). Porque eu perdi minha mãe e eu tava naquele lugar. Fui ver minha mãe
em tempo de saidinha dos pais, fiquei um ano e um mês lá. Eu era primário, mal
comportamento, mas até hoje eu num cai na real ainda, que tudo isso se passou na
minha vida. [...]. (Relato da Sr. Flor de Lis).
Os problemas vivenciados então pela Sra. “Flor de Lis”, acaba também afetando a
vida do seu filho que se envolve com o uso e tráfico de drogas. Após uma abordagem de
policiais, conduzido para a FEBÈM9. Um tempo depois, em meio as visitas para ele na
instituição, o genitor da Sra. “Flor de Lis” fica doente, e irá ser cuidado pela filha, que na
entrevista emocionada relatou
[...] o Pedro me deu muito trabalho, mas antes ele se envolveu no mundo das drogas,
também vendendo, foi preso, foi pra FEBEM. Quando eu sai da liberdade, eu
cuidando do meu pai com câncer e ele preso. E eu tinha que visitar ele no domingo e
na segunda feira cedinho, corre pra Barreto com meu pai, ficava a semana inteira,
no domingo de novo ia visitar o Pedro e ir pra Barreto com meu pai. Eu fiquei fazendo
essa vida dois anos e dois meses. Eu num era gorda assim. Me deu um distúrbio, num
era de comer não, quem quisesse me ver tinha que ir na minha casa, por que eu não
podia sair um minuto de perto do meu pai. Ele foi falecendo, falecendo, cheirando
mal, o povo já não aguentava mais carregar ele dentro da van porque cheirava mal.
Sofreu. (CHORO). Meu pai morreu com 33 quilos. Um homem que pesava 76 quilos
foi pra 33 quilos, só que ele andava, dentro da casa com um chapeuzinho na cabeça,
um shortinho samba-canção branquinho e uma bengalinha, morreu, morreu
andando, morreu daquele jeito, deu hemorragia nele, o colchão que era novinho teve
que joga tudo fora, As roupas dele tudo fora. Porque eu não sabia como limpa aquele
sangue, foi um sofrimento. (PAUSA). Eu acho que assim, quando o pai e a mãe da
gente vai embora, vai um pedaço da gente também embora, eles falam que não, como
se diz, eu tenho que morrê primeiro que meu filho, eu acho que a mãe tem que morrê
primeiro que os filhos, não os filhos morrê primeiro que a mãe, porque é uma dor
infeliz. (LÁGRIMAS). [...]. (Relato da Sr. Flor de Lis).
A morte do pai também mexe com as relações familiares, inclusive afeta
diretamente seu filho pois o uso de drogas ainda permanece na vida do filho mais velho,
inclusive já tentou a realização de tratamento, mas foi vencida pela desmotivação, como
também pela não existência de uma rede de tratamento no município ou na região. O filho
também mantem uma relação afetiva, já violentou a sua companheira, hoje não faz, devido a
gestação da companheira.
Em relação a questão da violência doméstica, que foi trazida na entrevista pela Sra.
“Flor de Lis”, informa que deixou marcas profundas, pois comenta:
9 Hoje é denominada Fundação Casa, que o principal objetivo é desenvolver o trabalho em medida socioeducativa
privativa de Liberdade para adolescentes e jovens, conforme prevê o Estatuto da Criança e Adolescente – ECA.
[...] Nada, não pergunto nada, e não entendo até hoje as coisas que eu sinto. Você
pensa que eu sou feliz, eu não sou feliz, todo mundo dá risada. Vou te explicá uma
coisa, eu as vezes tenho medo de sorrir, dá risada, se achou graça em uma pessoa, se
tá rindo, as vezes você brinca com seus amigos, dá risada, brinca, eu brinco as vezes,
mais fico pensando meu Deus daqui a pouco vai acontecer alguma coisa, to rindo de
mais, com medo, medo de rir, mede de ser feliz, medo de tudo. (Relato da Sr. Flor de
Lis).
Essas marcas deixaram cicatrizes. Atualmente a mesma está se relacionando com
um rapaz que esta custodiado, e foi apresentado por uma conhecida que reside no mesmo bairro.
Essa relação tem proporcionado a ela projetos novos planos no futuro, ressaltando que:
[...] Graças a Deus eu tenho e ele também tem comigo, porque ele está frequentando
a igreja também. [...] Ele é mais novo que eu, então ele tá frequentando a igreja e
tudo lá e vamos que vamos, não deu certo com um daqui de fora. Fui lá dentro conheci
e tô vivendo feliz [...]. Me sinto agora bem, depois de ter falado, sabia que me alivio,
eu tô me sentindo mais leve, acho que eu precisava de um tratamento, de chegar
conversa com a psicóloga, e despejar mesmo. (PAUSA). Poder chorar. [...]. (Relato
da Sr. Flor de Lis).
4 Considerações Finais
Como foi destacado nesse trabalho, a questão da violência doméstica afeta a vida
das mulheres nas diversas camadas sociais, mas é na classe trabalhadora que suas expressões
são marcadas, principalmente porque se relaciona com outras situações de vulnerabilidade e
risco, e agrava a condição social, econômica, psicológica, pois esses não possuem condições
financeiras para custear um tratamento, bem como, as próprias políticas sociais, em especial de
Assistência Social e Saúde, não veem conseguindo chegar até a territorialidade, onde as pessoas
vivem e vivenciam.
É preciso registrar, que a própria lógica da operacionalização das políticas sociais,
que tem a família como o foco prioritário de suas ações, burocratizam as ações, e não
conseguem deixar que os profissionais especializados realizem ações a partir da subjetividade
da história de vida dos sujeitos usuários. Temos vistos uma série de programas familiares com
enfoque na condição da pobreza pela culpabilidade da sua condição da pobreza, bem como,
com o enfoque direto em renda econômica.
Por outro lado, não se pode deixar de registrar, que nos anos 2000, ações
direcionado as diversas expressões e manifestações da “questão social” que afeta a vida das
familiares, são inseridas na agenda governamental e através das políticas sociais, ampliaram as
formas de atendimento, porém, como foi visto na entrevista acima, ainda é restrito a existência
de ações direcionadas as mulheres vítimas de violência, bem como para os agressores, que
conforme muitos estudos, também sofreram diversas formas de violência que marcaram as suas
história de vida.
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seus parceiros. Revista de Saúde Pública, v. 39, n. 1, fev. 2005 (online). Disponível em:
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