jeanne-marie gagnebin - memória, história, testemunho

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4. MEMÓRIA, HISTÓRIA, TESTEMUNHO Gostaria de pensar as questões que nos ocupam durante este co- lóquio — questões políticas e éticas, questões dolorosas — a partir de alguns conceitos emprestados à filosofia de Walter Benjamin. Com efeito, Benjamin não é somente, por sua biografia, um representante desses exilados-refugiados sem papéis nem teto que encontramos hoje, por todas nossas cidades e que, talvez, sejam a figura de nosso pró- prio exílio. O pensamento de Benjamin se ateve a questões que ele não resolveu e que ainda são nossas, questões que sua irresolução, preci- samente, torna urgentes. Talvez nossa tarefa consista em colocá-las de forma diferente. Uma destas questões essenciais e sem resposta poderia ser defi- nida, em termos benjaminianos, como o fim da narração tradicional. Ela se coloca com força em toda literatura moderna e contemporânea, nas discussões históricas e historiográficas e na reflexão filosófica atual — chamada ou não de "pós-moderna" — sobre "o fim das grandes narrativas". 1 Esta discussão também sustenta as narrativas, simulta- neamente impossíveis e necessárias, nas quais a memória traumática, apesar de tudo, tenta se dizer — narrativas e literatura de testemunho que se tornaram um gênero tristemente recorrente do século XX, em particular (mas não só) no contexto da Shoah. Especialmente dois ensaios de Walter Benjamin, dois ensaios quase contemporâneos, tratam deste tema: "Experiência e pobreza", de 1933 e "O narrador", escrito entre 1928 e 1935. Porque partir des- tes dois textos? Porque eles iniciam com descrições semelhantes, às vezes literalmente semelhantes, para chegar a conclusões que podem parecer opostas, contraditórias até. É a presença desta oposição que nos assinala, justamente, a gravidade da questão colocada. 1 Ver, sobre o tema, Jean-François Lyotard, La condition postmoderne, Pa- ris, Minuit, 1979. Memória, história, testemunho 44

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Jeanne-Maria Gagnebin

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  • 4. MEMRIA, HISTRIA, TESTEMUNHO

    Gostaria de pensar as questes que nos ocupam durante este co-lquio questes polticas e ticas, questes dolorosas a partir de alguns conceitos emprestados filosofia de Walter Benjamin. Com efeito, Benjamin no somente, por sua biografia, um representante desses exilados-refugiados sem papis nem teto que encontramos hoje, por todas nossas cidades e que, talvez, sejam a figura de nosso pr-prio exlio. O pensamento de Benjamin se ateve a questes que ele no resolveu e que ainda so nossas, questes que sua irresoluo, preci-samente, torna urgentes. Talvez nossa tarefa consista em coloc-las de forma diferente.

    Uma destas questes essenciais e sem resposta poderia ser defi-nida, em termos benjaminianos, como o fim da narrao tradicional. Ela se coloca com fora em toda literatura moderna e contempornea, nas discusses histricas e historiogrficas e na reflexo filosfica atual chamada ou no de "ps-moderna" sobre "o fim das grandes narrativas".1 Esta discusso tambm sustenta as narrativas, simulta-neamente impossveis e necessrias, nas quais a memria traumtica, apesar de tudo, tenta se dizer narrativas e literatura de testemunho que se tornaram um gnero tristemente recorrente do sculo XX, em particular (mas no s) no contexto da Shoah.

    Especialmente dois ensaios de Walter Benjamin, dois ensaios quase contemporneos, tratam deste tema: "Experincia e pobreza", de 1933 e "O narrador", escrito entre 1928 e 1935. Porque partir des-tes dois textos? Porque eles iniciam com descries semelhantes, s vezes literalmente semelhantes, para chegar a concluses que podem parecer opostas, contraditrias at. a presena desta oposio que nos assinala, justamente, a gravidade da questo colocada.

    1 Ver, sobre o tema, Jean-Franois Lyotard, La condition postmoderne, Pa-

    ris, Minuit, 1979.

    Memria, histria, testemunho 44

  • Ambos os ensaios partem daquilo que Benjamin chama de per-da ou de declnio da experincia (Verfall der Erfahrung), isto , da experincia no sentido forte e substancial do termo, que a filosofia clssica desenvolveu, que repousa sobre a possibilidade de uma tra-dio compartilhada por uma comunidade humana, tradio retoma-da e transformada, em cada gerao, na continuidade de uma pala-vra transmitida de pai para filho. A importncia desta tradio, no sentido concreto de transmisso e de transmissibilidade, ressaltada, em ambos os ensaios, pela lenda muito antiga (provavelmente uma fbula de Esopo) do velho vinhateiro que, no seu leito de morte, con-fia a seus filhos que um tesouro est escondido no solo do vinhedo. Os filhos cavam, cavam, mas no encontram nada. Em compensao, quando chega o outono, suas vindimas se tornam as mais abundan-tes da regio. Os filhos ento reconhecem que o pai no lhes legou nenhum tesouro, mas sim uma preciosa experincia, e que sua rique-za lhes advm dessa experincia.

    Pode-se, naturalmente, interpretar esta fbula como a ilustrao da nobreza do trabalho e do esforo. Benjamin, entretanto, no a usa para fins moralizantes. a encenao da histria que lhe interessa. No o contedo da mensagem paterna que importa; alis, o pai pro-mete um tesouro inexistente e prega uma pea a seus filhos para con-venc-los. O que importa que o pai fala do seu leito de morte e ouvido, que os filhos respondem a uma palavra transmitida nesse li-miar, e reconhecem, em seus atos, que algo passa de gerao para gerao; algo maior que as pequenas experincias individuais parti-culares (Erlebnisse), maior que a simples existncia individual do pai, um pobre vinhateiro, porm, que transmitido por ele; algo, portan-to, que transcende a vida e a morte particulares, mas nelas se diz; algo que concerne aos descendentes. Uma dimenso que simultaneamente transcende e "porta" a simples existncia individual de cada um de ns. Podemos cham-la "o simblico" ou mesmo "o sagrado"; Ben-jamin no nomeia essa dimenso e tal omisso tambm o signo de um grande pudor. Ele insiste, alis, muito mais na perda da experin-cia que a fbula de Esopo encenava. A perda da experincia acarreta um outro desaparecimento, o das formas tradicionais de narrativa, de narrao, que tm sua fonte nessa comunidade e nessa transmissibi-lidade. As razes dessa dupla desapario provm de fatores histricos que, segundo Benjamin, culminaram com as atrocidades da Grande Guerra hoje, sabemos que a Primeira Guerra Mundial foi somente

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  • o comeo desse processo. Os sobreviventes que voltaram das trinchei ras, observa Benjamin, voltaram mudos. Por qu? Porque aquilo que vivenciaram no podia mais ser assimilado por palavras.

    Nesse diagnstico, Benjamin rene reflexes oriundas de duas provenincias: uma reflexo sobre o desenvolvimento das foras pro-dutivas e da tcnica (em particular sua acelerao a servio da orga-nizao capitalista da sociedade) e uma reflexo convergente sobre a memria traumtica, sobre a experincia do choque (conceito-chave das anlises benjaminianas da lrica de Baudelaire), portanto, sobre a impossibilidade, para a linguagem cotidiana e para a narrao tradi-cional, de assimilar o choque, o trauma, diz Freud na mesma poca, porque este, por definio, fere, separa, corta ao sujeito o acesso ao simblico, em particular linguagem.

    precisamente esta impossibilidade de uma resposta simblica clssica que pode nos ajudar a compreender por que Benjamin desen-volve conseqncias to diferentes nos dois textos em questo, ape-sar da identidade do ponto de partida a constatao da perda da experincia e da narrao tradicional.

    Em "Experincia e pobreza", Benjamin insiste justamente nas mutaes que a pobreza de experincia acarreta para as artes con-temporneas. No se trata mais de ajudar, reconfortar ou consolar os homens pela edificao de uma beleza ilusria. Contra uma est-tica da interioridade, da harmonia, da suavidade e da graa, Benja-min defende as provocaes e a sobriedade spera das vanguardas. So seus famosos exemplos, emprestados arquitetura, do material moderno o vidro, elemento frio, cortante, transparente, que impe-de a privacidade e se ope aos interiores aconchegantes, repletos de tons pastis e de chiaroscuro, nos quais o indivduo burgus procura um refgio contra o anonimato cruel da grande cidade (e da grande indstria). Emblema desse ideal ilusrio: o veludo, exato oposto do vidro, o veludo macio, acolhedor e, sobretudo, profundamente im-pregnado de privacidade, porque nele que o feliz proprietrio dei-xa, com a maior facilidade, sua marca, a marca de seus dedos, con-trariando a regra de ferro que governa a vida moderna, a saber, no deixar rastros.

    nesse contexto que Benjamin cita o famoso poema de Brecht, "Verwisch die Spuren" (Apague os rastros).2 Deve-se ressaltar que o

    2 "Apague as pegadas", traduz Paulo Csar de Souza em Poemas: 1913-

    Memria, histria, testemunho SI

  • poema citado de maneira positiva contra as iluses consoladoras e harmonizantes das prticas artsticas "burguesas", como Benjamin e Brecht as chamam. Prticas que no levam em conta a ruptura es-sencial que a arte contempornea no pode eludir: que a experincia Erfahrung no mais possvel, que a transmisso da tradio se quebra e que, por conseguinte, os ensaios de recomposio da har-monia perdida so logros individualistas e privados (resta saber se essa harmonia perdida realmente existiu, mas esta uma outra questo). Esse ponto me parece ter uma importncia decisiva para refletirmos juntos, na esteira das anlises benjaminianas, sobre as dificuldades objetivas que se opem ao restabelecimento da tradio e da narra-o em nossas sociedades "ps-modernas" e ps-totalitrias; isso sig-nifica tambm que, infelizmente, os bons sentimentos nunca bastam para reparar o passado.

    Claro, a citao do poema de Brecht tambm possui um valor crtico de denncia porque evoca, de maneira simultaneamente sbria e proftica, as prticas do Estado totalitrio moderno. Cito as duas ltimas estrofes do poema:

    "O que voc disser, no diga duas vezes. Encontrando seu pensamento em outra pessoa: negue-o. Quem no escreveu sua assinatura, quem no deixou

    [retrato Quem no estava presente, quem nada falou Como podero apanh-lo? Apague os rastros!

    Cuide, quando pensar em morrer Para que no haja sepultura revelando onde jaz Com uma clara inscrio a lhe denunciar E o ano de sua morte a lhe entregar Mais uma vez: Apague os rastros!

    (Assim me foi ensinado.)"

    2956 (Bertolt Brecht, So Paulo, Editora 34, 2000, pp. 57-8). Em razo do con-texto da minha exposio, prefiro traduzir "Apague os rastros".

    52 Lembrar escrever esquecer

  • A ltima estrofe, em particular, adquire um peso essencial quan-do a lemos como contraponto cruel fbula do vinhateiro no seu lei-to de morte. E tambm quando lembramos que o primeiro sentido da palavra grega "stna" justamente o de tmulo, de sepultura, desse signo ou desse rastro que os homens inscrevem em memria dos mor-tos esses mortos que o poeta e o historiador, nas palavras de He-rdoto, no podem "deixar cair no esquecimento".

    dessa tarefa que trata o segundo ensaio de Benjamin, alis mui-to mais conhecido, "O narrador". Pode-se observar novamente que ambos os textos so contemporneos e que devemos, portanto, l-los em confronto, em suas semelhanas e em suas diferenas. "O nar-rador" formula uma outra exigncia; constata igualmente o fim da narrao tradicional, mas tambm esboa como que a idia de uma outra narrao, uma narrao nas runas da narrativa, uma transmis-so entre os cacos de uma tradio em migalhas. Deve-se ressaltar que tal proposio nasce de uma injuno tica e poltica, j assina-lada pela citao de Herdoto: no deixar o passado cair no esqueci-mento. O que no significa reconstruir uma grande narrativa pica, herica da continuidade histrica. Muito pelo contrrio, o ltimo tex-to de Benjamin, as famosas teses "Sobre o conceito de Histria", bastante claro a esse respeito. Podemos reter da figura do narrador um aspecto muito mais humilde, bem menos triunfante. Ele , diz Ben-jamin, a figura secularizada do Justo, essa figura da mstica judaica cuja caracterstica mais marcante o anonimato; o mundo repousa sobre os sete Justos, mas no sabemos quem so eles, talvez eles mes-mos o ignorem. O narrador tambm seria a figura do trapeiro, do Lumpensammler ou do cbiffonnier, do catador de sucata e de lixo, esta personagem das grandes cidades modernas que recolhe os cacos, os restos, os detritos, movido pela pobreza, certamente, mas tambm

    3 Para Benjamin, Kafka encarna, sem dvida, uma das possibilidades con-

    temporneas desse novo narrador. Podemos nos lembrar da narrativa da "Men-sagem imperial", que um imperador, tambm em seu leito de morte, transmite a um augusto mensageiro que nunca chegar at ns, apesar de sua destreza e mes-mo que no paremos de esperar por ele...

    4 Aluso ao poema "Le vin des chiffonniers", das Flores do Mal, pois, para

    Benjamin, Baudelaire o primeiro poeta verdadeiramente moderno, aquele que trata dos reais habitantes das grandes cidades.

    Memria, histria, testemunho 53

  • pelo desejo de no deixar nada se perder (Benjamin introduz aqui o conceito teolgico de apokatastasis, de recoleco de todas as almas no Paraso).

    Esse narrador sucateiro (o historiador tambm um Lumpen-sammler)5 no tem por alvo recolher os grandes feitos. Deve muito mais apanhar tudo aquilo que deixado de lado como algo que no tem significao, algo que parece no ter nem importncia nem sen-tido, algo com que a histria oficial no sabe o que fazer. O que so esses elementos de sobra do discurso histrico? A resposta de Ben-jamin dupla. Em primeiro lugar, o sofrimento, o sofrimento indiz-vel que a Segunda Guerra Mundial levaria ao auge, na crueldade dos campos de concentrao (que Benjamin, alis, no conheceu graas a seu suicdio). Em segundo lugar, aquilo que no tem nome, aqueles que no tm nome, o annimo, aquilo que no deixa nenhum rastro, aquilo que foi to bem apagado que mesmo a memria de sua exis-tncia no subsiste aqueles que desapareceram to por completo que ningum lembra de seus nomes. Ou ainda: o narrador e o histo-riador deveriam transmitir o que a tradio, oficial ou dominante, jus-tamente no recorda. Essa tarefa paradoxal consiste, ento, na trans-misso do inenarrvel, numa fidelidade ao passado e aos mortos, mes-mo principalmente quando no conhecemos nem seu nome nem seu sentido.

    Evidentemente, tal histria no pode ser o desenrolar tranqilo e linear de uma narrativa contnua. Sem querer entrar aqui em deta-lhes, penso que um dos conceitos importantes que poderia nos ajudar a pens-la o conceito de cesura (comum a Hlderlin e a Benjamin) ou o de interrupo (comum a Brecht e a Benjamin). A exigncia de memria, que vrios textos de Benjamin ressaltam com fora, deve levar em conta as grandes dificuldades que pesam sobre a possibili-dade da narrao, sobre a possibilidade da experincia comum, enfim, sobre a possibilidade da transmisso e do lembrar, dificuldades que evocamos no incio desta exposio. Se passarmos em silncio sobre elas em proveito de uma boa vontade piegas, ento o discurso sobre o dever de memria corre o risco de recair na ineficcia dos bons sen-timentos ou, pior ainda, numa espcie de celebrao vazia, rapida-

    5 Ver o artigo de Irving Wohlfarth, "Et cetera? De Phistorien comme chiffon-

    nier", in Heinz Wismann (org.), Walter Benjamin et Paris, Paris, Cerf, 1986.

    54 Lembrar escrever esquecer

  • mente confiscada pela histria oficial.6 Proporia, entso, uma distin-o entre a atividade de comemorao, que desliza perigosamente para o religioso ou, ento, para as celebraes de Estado, com paradas e bandeiras, e um outro conceito, o de rememorao, as sim traduzindo aquilo que Benjamin chama de Eingedenken, em opo sio Erinne-rung de Hegel e s vrias formas de apologia. Tal rerrnemorao im-plica uma certa ascese da atividade historiadora que, ^m vez de repe-tir aquilo de que se lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao es-quecido e ao recalcado, para dizer, com hesitaes, ssolavancos, in-completude, aquilo que ainda no teve direito nem Uembrana nem s palavras. A rememorao tambm significa uma aterno precisa ao presente, em particular a estas estranhas ressurgncias do passado no presente, pois no se trata somente de no se esquecer dlo passado, mas tambm de agir sobre o presente. A fidelidade ao passado, no sendo um fim em si, visa transformao do presente.

    Essa ligao com o presente me leva a contar utrna terceira his-tria de transmisso e de morte. Comeamos pela fbuLa do vinhateiro que falava aos filhos do leito de morte. Opusemos-lie o poema de Brecht, "Apague os rastros". A ltima figura de narra*o que gosta-ria de citar a do sonho de Primo Levi no campo de Auschwitz, so-nho sonhado, descobre ele, por quase todos os seus oompanheiros a cada noite. Sonha com a volta para casa, com a feliciciade intensa de contar aos prximos o horror j passado e ainda vive? e, de repente, percebe com desepero que ningum o escuta, que os ou vintes se levan-tam e vo embora, indiferentes. Primo Levi pergunta: "Por que o so-frimento de cada dia se traduz, constantemente, em nossos sonhos, na cena sempre repetida da narrao que os outros no esccutam?".7 Essa narrativa foi feita, est sendo feita, mas, como ressaltajrn todos os so-breviventes, ela nunca consegue realmente dizer a experincia inenar-rvel do horror. J se teceram muitos comentrios a respeito dessa irrepresentabilidade. Na narrativa do sonho de Primo* Levi, gostaria de me ater a um outro personagem, quele que se levarita e vai embo-ra, na indiferena. Vou tentar justificar esta escolha.

    6 Remeto aqui ao artigo de Grard Namer que tem o suges-tivo ttulo de "La

    confiscation sociopolitique du besoin de commmorer", revista pAutrement, n 54, "Travail de mmoire 1914-1998", Paris, janeiro de 1999.

    7 Primo Levi, isto um homem?, Rio de Janeiro, Rocco, 1988, p. 60.

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  • Hoje, quando os ltimos sobreviventes de Auschwitz, uns de-pois dos outros, morrem de morte dita natural, assistimos a um des-dobramento de empresas de memria. Estes "abusos da memria",8 para retomar o ttulo provocativo de Todorov, comportam vrios pe-rigos. S citarei dois deles: uma fixao doentia ao passado o que Nietzsche, no fim do sculo XIX, j tinha diagnosticado como um dos diversos sintomas do ressentimento (isto , tambm a incapacidade de bem viver no presente); e, na esteira dessa fixao, a identificao, muitas vezes patolgica, por indivduos, que no so necessariamen-te nem os herdeiros diretos de um massacre, a um dos papis da dade mortfera do algoz e da vtima: como se a busca de si tivesse que ser a repetio do (neo)nazi ou, ainda mais dramaticamente, talvez, a cons-truo de uma infncia no campo de Madjanek (o famoso "caso" de Binjamin Wilkomirski, alis, Bruno Doessekker).

    As reflexes de duas descendentes de sobreviventes do genocdio armnio, Hlne Piralian e Janine Altounian, podem nos ajudar nes-se contexto. Esse genocdio to mais terrvel, na medida em que con-tinua, at hoje, sendo ignorado e denegado pela comunidade poltica internacional. como se houvesse herdeiros de mortos que, simboli-camente falando, nunca existiram, que no pertenceram aos vivos e no podem, portanto, pertencer hoje aos mortos, tornando seu luto to difcil uma dificuldade anloga, quase uma impossibilidade, atormenta os familiares dos "desaparecidos" na Amrica Latina.

    Agora, como tentar pensar um lugar fora desse crculo de fixa-o e de identificao? No temos que pedir desculpas quando, por sorte, no somos os herdeiros diretos de um massacre; e se, ademais, no somos privados da palavra, mas, ao contrrio, se podemos fazer do exerccio da palavra um dos campos de nossa atividade (como, por exemplo, na universidade), ento nossa tarefa consistiria, talvez, muito mais em restabelecer o espao simblico onde se possa articular aquele

    8 Tzvetan Todorov, Les abus de Ia mmoire, Paris, Arla, 1995.

    9 Aluso ao livro Bruchstcke, publicado em 1995 pela Suhrkamp e traduzi-

    do para vrios pases, inclusive o Brasil (Fragmentos: memrias de uma infncia, 1939-1948, So Paulo, Companhia das Letras, 1998). Saudado como um dos mais pungentes testemunhos sobre a Shoah, foi denunciado posteriormente como sen-do uma autobiografia fictcia escrita pelo falsrio ou esquizofrnico (?) Bruno Doessekker, suo de uns cinqenta anos, filho ilegtimo de uma empregada e ado-tado, ainda criana, por um casal de mdicos de Zurique.

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  • que Hlne Piralian e Janine Altounian chamam de "terceiro" isto , aquele que no faz parte do crculo infernal do torturador e do tor-turado, do assassino e do assassinado, aquilo que, "inscrevendo um possvel alhures fora do par mortfero algoz-vtima, d novamente um sentido humano ao mundo". No sonho de Primo Levi, deveria ser a funo dos ouvintes, que, em vez disso e para desespero do sonha-dor, vo embora, no querem saber, no querem permitir que essa histria, ofegante e sempre ameaada por sua prpria impossibilida-de, os alcance, ameace tambm sua linguagem ainda tranqila; mas somente assim poderia essa histria ser retomada e transmitida em palavras diferentes. Nesse sentido, uma ampliao do conceito de tes-temunha se torna necessria; testemunha no seria somente aquele que viu com seus prprios olhos, o bistor de Herdoto, a testemunha di-reta. Testemunha tambm seria aquele que no vai embora, que con-segue ouvir a narrao insuportvel do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a histria do ou-tro: no por culpabilidade ou por compaixo, mas porque somente a transmisso simblica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizvel, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos aju-dar a no repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboar uma outra his-tria, a inventar o presente.

    10 Hlne Piralian, "criture(s) du gnocidaire", in Catherine Coquio (org.),

    Parler des camps, penser les gnocides, Paris, Albin Michel, 1999, p. 541. Ver a este respeito, da mesma autora, "Maintenir les morts hors du nant", revista Au-trement, n 54, cit. Ver tambm, de Janine Altounian, "Les hritiers d'un gno-cide", in Parler des camps, penser les gnocides, cit.

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