j.h. elliot - a europa dividida 1559-1598

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Sobre Europa

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Page 1: J.H. Elliot - A Europa Dividida 1559-1598
Page 2: J.H. Elliot - A Europa Dividida 1559-1598

J. H. ELLIOTT

A EUROPA DIVIDIDA

1559-1598

EDITORIAL ~ I PRESENCA .

Page 3: J.H. Elliot - A Europa Dividida 1559-1598

Título orl.gúinal: EUROPE DIVIDED 1559-1-598 Publ~cado origin8)1imente em inglês poc Wi1l'ilaan Co1lins Sons & Oo. Ltd. © Oopyright by J. H. EJJUott '1968 Tradução de .Con-ceição Jardli.m e Eduardo N10,guedm Revisã:o de texto J!Or Wanda Ramos Hootração da .ca.pa: «A .Airrniada Thl'VeDJciVeJ», Museu Nacional MarUimo de

Greenwich

Resell"V'ados .todos OIS dii1ettos ,porura a i!fJngua po·I1buguesa à EDITORIAL . PRE·SENÇA, LDA. Rua Augusto Gil, 35-A - 1000 LliSBOA

\ I

PREFÁCIO

Ao considerar a apreciável quantidade de literatura existente sobre a história dos finais do século dezasseis na Europa, senti que neste momento se tornava principalmente necessária uma narrativa polí­tica, que tivesse em conta os desenvolvimentos recentes dos nossos conhe­cimentos da história económica e social desse período, e tentasse rela­cionar entre si alguns dos acontecimentos simultâneos e complementares ocorridos nos diversos Estados europeus. De tal maneira nos habituámos a separar os relatos das guerras religiosas francesas· da revolta da Ho­landa que nos arriscamos a perder de vista a interacção entre os acon­tecimentos nas diferentes partes do continente, de que os contemporâ­neos tinham, aliás, penetrante consciência. O reduzido espaço de que dispunha levou-me necessariamente a abreviações e omissões; mas espero ter dado uma ideia da inter-relação complexa existente entre os acon­tecimentos verificados em todo o continente e os sentimentos dos con­temporâneos envolvidos no grande drama europeu. Ao escolher 1572 e 1585 como momentos de divisão cronológica da narrativa, apenas fui influenciado por aquilo que me pareceu ser o significado maior desses anos. A consequente divisão dos trinta e nove anos que vão de 1559 a 1598 em períodos de treze anos não pretende sugerir, pois, qualquer fé mística num movimento cíclico da história.

Gostaria de expressar a minha gratidão a Alastair Duke e Brian Pearce por terem chamado a minha atenção para certas publicações sobre a Holanda e a França, respectivamente. Quatro dos meus alunos que investigaram diferentes aspectos da história deste período- R. J. W. Evans, R. L. Kagan, A. W. Lovett e N. G. Parker- fizeram tudo o que lhes foi possível para me manterem a par do seu trabalho, e muito beneficiei das minhas conversas com eles. Quando as teses destes alunos acabarem por ver a luz do dia, este livro exigirá uma revisão e emenda em diversos pontos. Estou igualmente reconhecido ao Professor J. H. Plumb e ao Professor G. R. Elton, que leram o original e fizeram preciosos comentários a seu respeito. O pro­fessor R. B. Wemham, o professor Orest Ranum e o Dr. N. M. Suther­land renunciaram generosamente a parte do seu tempo para ler as

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provas, apontando erros que fiz o possível por corrigir. O sr. Richard Ollard mostrou-se exigente e muito encorajador em todas as fases de elaboração do livro. O índice foi compilado por minha mulher, a quem dedico, reconhecido, este livro.

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9 de Julho de 1968

King's College, Londres.

I I \

PARTE I

A EUROPA DE CATEAU-CAMBRÉSIS

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I I

I

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A CENA INTERNACIONAL

1. A paz dinástica

A Europa de Cateau-Cambrésis nasceu sob o duplo signo da ban­carrota e da heresia, e nunca fugiu às poderosas influências que assis­tiram ao seu nascimento. Os custos cada vez maiores da guerra levaram a Coroa espanhola a não cumprir as suas obrigações para com os banqueiros em 1557, e o mesmo aconteceu dentro em pouco à Coroa ' francesa. Depois disto, a paz entre os Habsburgo e os Valois era apenas uma questão de tempo. Existia de facto um limite para a boa vontade e os recursos dos banqueiros, mesmo os mais condescendentes, tal como havia um limite para a capacidade de os Estados aceitarem os aumentos exorbitantes das taxas de juro aplicadas às suas crescentes dívidas. Os reis do século dezasseis não desconheciam a insolvência, se bem que ignorassem a existência desta enquanto lhes foi possível. Mas, em certos momentos, deixava de ser possível ignorá-la. Um desses mo­mentos foi 1557, e nas décadas que se seguiram verificar-se-iam outros momentos igualmente dolorosos.

A bancarrota, no entanto, não foi a única razão que levou Filipe li de Espanha e Henrique li de França a procurarem resolver os seus diferendos. A heresia, e o receio desta, actuavam no mesmo sentido. A autoridade dos príncipes e a estabilidade dos Estados pare­ciam ser postas em causa por toda a parte nos meados do século, devido à alarmante expansão da dissidência religiosa. A própria Espa­nha, se bem que protegida pela poderosa Inquisição, sentia-se perigosa­mente exposta; e a França enfrentava um desastre iminente. Foi pelo menos este o aviso que o bispo de Arras, Antoine Perrenot, fez a Charles de Guise, cardeal da Lorena, quando os dois homens se encon­traram em Maio de 1558 para discutir a possibilidade de um acordo de paz. Como conselheiro de Filipe li e membro do conselho de Estado holandês, Perrenot falava com alguma autoridade. E avisou o cardeal de que a heresia se encontrava já nos níveis sociais mais elevados. É certo que não havia qualquer motivo de suspeita relativamente ao favorito de Henrique 11, Montmorency, prisioneiro dos espanhóis desde

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a derrota da França na batalha de St. Quentin 1• Mas já o mesmo não se poderia dizer de dois outros prisioneiros franceses, sobrinhos daquele, Gaspard de Coligny e o irmão François d' Andelot. As autoridades espa­nholas possuíam provas irrefutáveis de que Coligny tivera contactos com a Genebra calvinista. Nestas circunstâncias, o rei de França deve­ria ser aconselhado a abandonar uma guerra de que apenas os heréticos podiam sair vencedores, e a dedicar todas as suas energias à salvaçüo espiritual do seu perturbado reino.

Se bem que este aviso fosse tido em conta por Henrique li, a paz não foi fácil de conseguir. Iniciaram-se as discussões formais em Outubro de 1558, mas qualquer perspectiva de acordo imediato foi anulada por um acontecimento da maior importância para as monarquias da Europa ocidental- a morte, a 17 de Novembro, de Maria Tudor, rainha de Inglaterra e esposa de Filipe li de Espanha. A união entre a Inglaterra e a Espanha fora uma pedra angular da política de Carlos V nos últimos anos do seu reinado, e o futuro deste devia ser agora considerado bastante incerto, estando Maria morta e não tendo o casamento produzido nenhum filho que lhe sucedesse. Ninguém sabia que política a nova rainha, Isabel, iria adaptar em questões doutrinais e de relações externas, ainda que o enviado de Filipe a Londres tivesse exprimido o profético receio de que «em religião ela não irá bem». A melhor maneira de contrariar esta profecia e evitar uma cala­midade consistia em dar-lhe um marido devotamente católico, e espa'" nhol. O seu antigo cunhado Filipe, agora em Bruxelas, estava disposto a aceitar. Para este rei prematuramente atingido por desgostos, duas vezes viúvo com a idade de trinta e dois anos, as vantagens políticas de um segundo casamento com uma inglesa não ofereciam dúvidas. A in­fluência francesa era perigosamente forte na Escócia, cuja jovem rainha, Maria, se tornara recentemente nora de Henrique li de França, e cuja rainha regente, Maria de Lorena, era irmã do duque de Guise. Quando Maria Tudor morreu, Henrique li proclamou a nora herdeira legítima da coroa inglesa. Se a Espanha desejava manter alguma influência no norte da Europa, e se a Holanda devia ser furtada à sujeição da França, tornava-se necessário contrariar a todo o custo a tentativa de Henrique li de obter o controlo das Ilhas Britânicas.

A disputa entre Filipe e Henrique em torno do domínio da Inglaterra tendia a interromper as negociações entre os Habsburgo e os Valois, sobretudo porque Isabel, que deveria ser parte em qualquer acordo, não estava interessada em fazer a paz com a França enquanto Calais permanecesse em mãos francesas. Mas apesar de Filipe estar ansioso por fazer a corte a Isabel, depressa se apercebeu de que as suas perspectivas de casamento eram neste caso particularmente desen­corajantes, e que a Inglaterra necessitava de paz tão urgentemente

1 Vler G. R. 'IDlton, A Europa da Reforma, Ed. PreS'tmça.

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como a Espanha. Quando Isabel, pelo seu lado, compreendeu que Filipe não estava disposto a adiar indefinidamente as negociações só por causa das suas exigências quanto a Calais, viu-se forçada a ceder. Em inícios de Fevereiro de 1559, portanto, as três potências estavam dispostas a recomeçar as discussões.

O local sugerido para as negociações era o território neutro de Cateau-Cambrésis, onde o bispo de Cambrai possuía um chât:a~ aban­donado. Foram rapidamente instaladas janelas de papel em calXllhos de madeira, e colocaram-se alguns móveis no edifício vazio. Os delegados espanhóis chegaram a 5 de Fevereiro e os franceses a 6, log? seguidos dos ingleses. As três delegações comportavam homens CUJOS nomes viriam a ficar famosos em toda a Europa antes de acabar o século. A forte delegação espanhola consistia num grande c~efe mi.li.tar, o duque de Alba; Rui Gomes da Silva, favorito portugues de Fthpe li, e futuro rival de Alba na luta de influências na corte espanhola; An­toine Perrenot, bispo de Arras, dentro em pouco ~leva~o .à dignidade cardinalícia sob o nome de cardeal Granvelle; Ulnch Vtglms do con­selho de Estado holandês, e Guilherme, Príncipe de Orange, o maior dos nobres holandeses e um servidor leal de Filipe li. A delegação francesa, pelo contrário, era fraca; e sofreu as consequências de ter actuado em desvantagem na primeira série de discussões, realizada em 1558, porque dois dos seus membros, Montmorency e o Marechal de Saint-André, eram ao tempo prisioneiros de guerra libertados sob pala­vra a fim de tomar parte nas negociações. Desde então, Montmo­rency havia pago uma elevada fiança e usado a sua influência junto de Henrique li no sentido de fazer a paz com a Espanha. Mas perdera grande parte do seu crédito em F~ança devido à sua de:rota em St. Quentin, e viria a perder ainda mats quando foram anunctados os ter­mos do acordo. Uma figura mais eficaz da delegação francesa era o cardeal de Lorena, irmão do duque de Guise e o membro mais inte­ligente dessa grande Casa de Guise-Lorena cuja estre.la subia à medi~a que a da sua rival Montmorency começava a declmar. f>:. delegaçao inglesa, com três elementos, era relativamente modest.a: o btspo de Ely, Nicholas Wootton (anteriormente embaixador em Pans) e Lord. Howard de Effingham, cujo filho conduziria a frota inglesa à vitória em 1588.

Quando as discussões genéricas se iniciaram, em 11 de Fevereiro, os embaixadores concordaram pelo menos quanto à falta de conforto dos seus alojamentos. Mas as conversações evoluíram lentamen~e .. As três delegações ocupavam diferentes cantos da sala, sendo penodtca­mente enviados porta-vozes de cada um dos cantos para defen?erem as respectivas posições. Existiam, por .outro lado, J?roblemas d~ lmgua­gem, dado que as discussões eram realizadas em latim - uma lmgua em que os militares que faziam parte das delegações, Alba, Montn:torency e Sain:t-André, tinham alguma dificuldade em exprimir-se. O btspo de Arras e o cardeal de Lorena eram portanto constantemente usados como intérpretes. Mas as dificuldades, tanto diplomáticas como linguís-

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ticas, ~~ra~ oport_unamente vencidas. Muitas das decisões mais impor­~antes Ja tmham s1do tomadas nas negociações de Outubro, e a atitude mgles~ quanto a Calais acabou por ser a principal causa dos atrasos. Em _fma1s_ de Março os problemas estavam praticamente resolvidos, e as d1scussoes foram formalmente concluídas pela assinatura de dois tra­tados de paz separados, em 2 e 3 de Abril respectivamente.

O prim~iro tratado, entre a Inglaterra e a França, fornecia a Isabel urna formula que lhe permitia salvar as aparências, segundo a qual o~ fr~nceses conservariam Calais durante oito anos e, em seguida, dev_olve-la-mm ou- dado que isso parecia altamente improvável- pa­gar~am uma c?mpensação. Nos anos que se seguiram, a amarga eva­caçao de Cala!s. assolou as relações entre a Inglaterra e a França mas, em teri?~s prahcos, o assunto estava resolvido e a Inglaterra perdera o seu ultimo posto avançado permanente no continente europeu.

O segundo tratado, mais importante, foi assinado a 3 de Abril entre a França e a Espanha. Para além de uma troca de cidades ao longo da sua fronteira nordeste, onde a França também manteve as cidades imperiais de Metz, Toul e Verdun, o tratado respeitava princi­palmente a um acordo sobre a Itália, o campo de batalha entre a França ~- a Espanh~ ?urante mais de meio século. Aqui, a paz confirmou o que Ja fora defm1do por uma série de guerras: a quase total exclusão da França da península italiana, em benefício da Espanha e seus aliados. Foi com grande amargura e desilusão que o exército de ocupação francês recebeu ordens para abandonar o Piemonte, que invadira em 1536. De ac~r?o com o tratado, o Piemonte e a Sabóia voltavam ao seu possuidor leg1t1mo, o duque Manuel Felisberto, que servira fielmente Filipe II como governador na Holanda e como general vitorioso em St. Quentin. Os franceses mantiveram algumas praças fortes no lado italiano dos Alpes, mas os seus dias como potência italiana estavam definitivamente contados. Talv~z se pudesse encontrar uma certa compensação no facto de Ma~uel Fehsber:to se obrigar a casar com a irmã de Henrique II, Marganda de Val01s. Mas a lealdade de Margarida ao inarido acabou por ser mais f?rte que as suas obrigações para com a família, e o casal ducal ded1cou-se a restaurar a situação do ducado e da Casa de Sabóia sem grande respeito pela França.

O rea~areciment? _de um ~orte Estado alpino governado por um duque persp1caz e dec1d1do tendm a fazer esquecer as outras decisões tomadas em Cateau-Cambrésis relativamente à Itália. Havia no entanto razões para que um outro governante italiano, além de Manuel Felis­berto, ~~ sentisse s~tisfeito com o aco~do. Em 1555, uma força mista de espanh01s e florentmos capturara a c1dade independente de Siena. Dois anos mais ta~;de, Filipe, ~I. entregou a cidade capturada ao duque de Florença, Cos1mo de Med1c1s, sendo a sua atitude ratificada em Cateau­-Cambrésis. A aquisição de Siena satisfez um dos maiores desejos do ambicio~o Cosimo de Médicis. E aumentou, por outro lado, o poder e a reputa~ao de um governante que começava já a adquirir uma posição proemmente entre os seus pares italianos.

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·As transferências de território para os duq ucs de Sabóia e de Florença foram realizadas com uma relativa calma. Um outro aliado da Espanha, no entanto, teve consideráveis dificuldades em colher os frutos da vitória. Em Cateau-Cambrésis a ilha de Córsega, que se encontrava sob ocupação francesa desde 1553, foi devolvida à República de Génova. Os corsos, sob a direcção de um dos mais notórios aventureiros mediter­rânicos do século dezasseis, Sampiero Corso, lutavam desde há muito para se libertarem do domínio genovês. Foi Sampiero quem original­mente apelou para os franceses, e foi ele quem retomou a luta quando os franceses foram obrigados a partir. Enquanto os genoveses tentavam controlar urna ilha hostil, Sampiero explorou o Mediterrâneo em busca de aliados. Recebeu promessas de auxílio da França, juntamente com alguns estandartes com a divisa heróica pugna pro patria; e, assim armado, desembarcou em 1564, com um punhado de amigos, em Ajac­cio. Foram necessários quatro anos, e o assassínio de Sampiero, para esmagar a insurreição que se seguiu. Os corsos foram os primeiros, mas não os únicos, a lutarem pela sua pátria nos anos que se seguiram a Cateau-Cambrésis.

Independentemente das dificuldades práticas envolvidas na apli­cação dos termos dos tratados, a Europa ocidental encontrava-se for­malmente em paz na primavera de 1559. A políti:ca oficial francesa consistia em acolher calorosamente a reconciliação das duas grandes potências católicas - uma reconciliação que deveria ser solenemente ratificada pelo casamento de Filipe II com a filha de Henrique II, de treze anos de idade, Isabel de Valois. Mas alguns franceses nutriam grandes ressentimentos devido à pretensa humilhação da França no tratado de paz. O país abandonara os seus aliados e as suas conquistas em Itália, parecendo que as vidas e o tesouro franceses tinham sido perdidos para nada. «Com um risco de pena», escreveu um crítico, «todas as nossas conquistas nos últimos trinta anos foram devolvidas». O homem geralmente considerado responsável pela humilhação sofrida em Cateau-Cambrésis era Montmorency; e os Guise, como seria de esperar, nada fizeram para apagar a impressão de ter sido realmente ele o arquitecto do desastre. Mas Montmorency ainda conservava os favores do rei, e os Guise acharam-se impossibilitados de alcançar o poder máximo.

Três meses depois de Cateau-Cambrésis, no entanto, tudo se mo­dificava. Henrique II ordenou que os casamentos do rei de Espanha e do duque de Sabóia com as duas princesas francesas deveriam ser celebrados com festividades espectaculares. A 28 de Junho, dia do casamento de Manuel Felisberto e Margarida, iniciaram-se os torneios. A 30, o próprio Henrique entrou nas lides, sendo mortalmente ferido pela lança do conde Montmorency. Morreu a 10 de Julho, deixando uma viúva, Catarina de Médicis, e uma prole de filhos doentes, o mais velho dos quais se tornava agora rei, sob o nome de Francisco II, com a idade de quinze anos.

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A sucessão de Francisco trouxe consigo a queda de Montmo­rency, e a sua substituição pelo duque de Guise e yelo cardeal de Lorena tios da rainha Maria da Escócia, a nova ramha de França. Sendo ~gora a sua Casa dominante nas cortes de França e de Edimburgo, surgiram algumas possibilidades tentadoras aos a~~iciosos c~efes d~st.a ambiciosa família. Através de um rápido golpe mihtar podenam ehnu­nar a humilhação do recente tratado de paz, confirmando a r.eputação do duque de Guise, ganha em Calais, como salvador nacwnal da França. Uma vez mais, tal como quando Maria Tudor morreu, o futuro da Europa ocidental cruzava-se com o das Il.has Britâ~icas. U~ ~nter­venção militar francesa poderia colocar a ramha Mana da Escoem no trono inglês em substituição de Isabel. E mesmo que isso falhasse, poderia ajudar a restaurar e a consolidar a infl~ên~ia frances.a na Escócia, onde, nesse momento, o governo de regencia de Mana de Lorena se encontrava em dificuldades.

John Knox ao voltar do seu exílio em Genebra em Maio de 1559, opusera-se vigor~samente ao governo da: rainha regente, estrangeira e católica. Ao apelo de Knox respondeu um surto popular de des­truição de imagens e uma insurreição de nobres protestantes, os «Lords of the Congregation». Enquanto Maria de Lorena pedia auxílio à França a fim de recuperar a sua autoridade, os rebeldes voltava~-se para Isabel, se bem que de início sem grande esperança d~ êxito. Segundo os termos do tratado de Cateau-Cambrésis, Isabel ob~tgara-se a não intervir na Escócia, e estava de facto relutante em apotar uma rebelião contra uma rainha legítima. No entanto tanta coisa estava em jogo na Escócia que não podia, muito simplesmente, deixar que_ o país seu vizinho a norte caísse em mãos francesas por falta de actuaçao da sua parte. Deixando-se persuadir pelo ministro William Cecil, ven­ceu os escrúpulos oferecendo auxílio aos rebeldes em geral e a J ohn Knox em particular, e chegando a enviar uma esquadra para o ~irth of Forth 2 em Janeiro de 1560. Em seguida, calculando com ngor as prováveis repercussões internacionais da sua atitude, enviou um exército para a Escócia em finais de Março, com ordens para cercar as forças francesas em Leith.

A invasão inglesa da Escócia provocou preocupação nas cortes da Europa ocidental. Se Isabel fosse derrotada pelos fra~c~es, como Filipe de Espanha temera que acontecesse, tanto a Escocta com? a Inglaterra cairiam em mãos francesas, ficando a Holanda em pengo. Mas poderia ·o rei católico de Espan?a .ir e:n auxílio de uma ra~nha que entretanto tomara claras as suas mclmaçoes protestantes e ap01ava uma rebelião instigada por hereges contra um soberano legítimo? O pro­blema de Filipe foi um dos primeiros exemplos do dilema que viria a afligir todos os governantes europeus na época de Cateau-Cambrésts

2 Estuár~o do rdJo F.Oirltlh, que dlesrugm no MaJr do Norte (N. R.).

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- se deveriam privilegiar os interesses nacionais ou os religiosos nas infortunadas ocasiões em que não coincidiam. Porém, no momento em que chegava a Inglaterra um enviado de Filipe para insistir junto da rainha numa cessação das hostilidades e na aceitação da mediação espanhola, a questão já estava praticamente resolvida. Apesar de o exército inglês fazer uma figura miserável, os erros militares ingleses mostraram ser menos importantes do que as desavenças políticas c reli­giosas dos franceses. Abalado pela descoberta, em Fevereiro, da conspi­ração huguenote de Amboise, o regime Guise perdeu o seu entusiasmo inicial pela aventura no exterior, sendo enviados representantes fran­ceses à Escócia para negociar a paz. Através do Tratado de Edimburgo de 6 de Julho de 1560, estabeleceu-se que todas as tropas francesas de­veriam abandonar a Escócia e que Maria Stuart deveria renunciar às suas pretensões ao trono inglês. Francisco II e Maria recusaram-se depois a ratificar o tratado, mas Francisco morreu em 5 de Dezem­bro e os interesses do novo regente de França, a florentina Catarina de Médicis, não se estendiam às remotas e incompreensíveis regiões do notie. Maria Stuart foi portanto entregue a si própria e quando voltou à Escócia, em Agosto de 1561, não pôde contar com o apoio militar francês às suas pretensões de soberania sobre a Inglaterra.

O êxito de Isabel e de Cecil na Escócia em· 1559-60 teve um grande significado na Europa, pois nada poderia ter perturbado mais rapidamente o equilíbrio de forças registado no tratado de Cateau­-Cambrésis do que a consolidação do poder francês na fronteira norte de Inglaterra. Ao estabelecer-se como protectora da nova Escócia pro­testante, Isabel reforçara enormemente a sua própria posição e asse­gurara a sua independência relativamente às principais potências conti­nentais. Simultaneamente, ajudara também a conferir alguma perma­nência ao acordo europeu ocidental de 1559. A continuidade deste acordo baseava-se agora no reconhecimento de dois factos importantes da vida internacional. O primeiro era o reconhecimento pela França de que a península italiana se encontrava de momento fora da esfera dos seus interesses efectivos. O segundo era o reconhecimento mútuo, pela França e pela Espanha, de que o domínio das Ilhas Britânicas não constituía por agora uma política prática para nenhuma delas. Aceites estas duas premissas básicas, era razoável esperar que a paz de Cateau­-Cambrésis iria ter maior duração do que as anteriores tentativas de acordo entre os Habsburgo e os Valois.

As razões disto decorriam, em parte, do desgaste das potências rivais, em parte da sua preocupação pela expansão da heresia mas, principalmente, do declínio da autoridade da coroa francesa após a morte de Henrique II, no Verão de 1559. A fracassada aventura escocesa tomara evidentes as dificuldades de condução de uma política externa ambiciosa num período de grande incerteza doméstica, e a lição foi compreendida por Catarina de Médicis. Enquanto a rainha-mãe dominasse em França, faria tudo no sentido de evitar uma confronta-

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ção com a Espanha. Como resultado, a antiga luta entre os Hab~­burgo e os Valois- a principal causa da instabilidade na Europa ,oci­dental no meio século anterior- desactivou-se após 1559. A mutua rivalidade persistiu, inevitavelmente; mas durante os trinta anos segu~ntes verificou-se um vácuo no coração da vida europeia - um vácuo cnado pela incapacidade da . enfraquecida mo~arquia franc~a de defend:r coerentemente os seus mteresses para alem das fronteiras do seu pais.

Se o eclipse do poder francês se tivesse verificado uma geração mais cedo talvez tivesse salvo o Imperador Carlos V; mas, em 1559, Carlos e d seu império já pertenciam ao passado. O irmão: Fe~ando I (1556-64), herdara o título, mas não as realidades do poder Impenal. Em vez dele foi o filho de Carlos, Filipe li de Espanha, quem, apesar de desprovido do título imperial, se encontrou em P?sição de ganhar com a paz de Cateau-Cambrésis e a morte de Hennque. li. Enqu~nto Fernando era obrigado a contentar-se com uma autondade nommal sobre a Alemanha cuja desunião política e religiosa fora formalmente confirmada pela paz de Augsburgo em 1555, o sobrinho Filipe de Espanha chefiava uma Castela impecavelmente ortodoxa; ~ enquanto os recursos financeiros e militares de Fernando eram reduzidos, e em grande parte absorvidos pela defesa da fronteira oriental da Europa contra os turcos os recursos de Castela, se bem que momentaneamente exauridos, apont~vam para reservas de poder que em muito e~c.ediam o que um Habsburgo austríaco poderia sonhar. ~e, portanto, ~~Ipe c<:n­seguisse explorar essas reservas, encontrar-se-Ia nul?-a posiçao mmto mais forte do que o seu tio no que tocava a aproveitar a fraqueza da França.

Os domínios de Filipe consistiam na Espanha e nas suas poss~s­sões em Itália e no Novo Mundo, juntamente com a Holanda e a antiga relíquia da Borgonha, o Franco-Condado, localizado entre a Fr~~ç~ e a Confederação Suíça. Durante quatro anos governara estes temtonos a partir de Bruxelas, um centro conveniente que lhe permitia acompanhar as campanhas contra os franceses e vigiar os seus in~eresses na Holat;J-da e em Inglaterra. Mas, ironicamente, este homem fno, que dava a Im­

pressão de nunca ter sentido o calor do sol ~editerrânico,_ nunca se sentiu verdadeiramente à vontade no norte, ansmndo pelo dia em que poderia voltar a Castela. No Verão de 1559 esse momento estava à vista. A morte de Maria Tudor e a assinatura da paz com a França tornaram a sua presença no norte menos necessária que anteriorment~." Simultaneamente, os ministros espanhóis reclamavam o seu regresso a península, onde problemas admit;J-istra~ivos urg~ntes exigi~m . a sua atenção pessoal. Mas, antes do mais, fOI a necessidade de dmheuo que novamente o atraiu a Espanha. Nos últimos anos a Holanda revelara-se cada vez mais decepcionante como fonte de rendimentos régios e Filipe ficara esmagadoramente dependente das remessas de dinheiro de Castela. <<Nada ganho em ficar aqui», escreveu a Antoine Perrenot em Junho de 1559, <<excepto perder-me a mim próprio e a estes territórios ... O me-

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lhor que temos a fazer é procurar o remédio ... e se o remédio não se encontra aqui irei procurá-lo a Espanha» 3• Se o encontraria ou não aí já era outro assunto, mas a tentativa justificava a viagem e, em Agosto de 1559, trocou o norte pela Península Ibérica, para nunca mais voltar.

O regresso de Filipe a Espanha no início do Outono de 1559 é um acontecimento tão bom como qualquer outro para uma divisão do século. De um lado estava a era de Carlos V, do outro a de Filipe li; e se bem que o filho aproveitasse muito do pai, e tivesse aproveitado mais ainda se tivesse podido, existiam apesar de tudo profundas dife­renças entre os impérios do pai e do filho, mais pronunciadas ainda à medida que o século progredia. O império de Carlos fora o Sacro Império Romano-Germânico, universal nas suas aspirações e realiza­ções, e baseado, em termos geográficos, nos territórios alemães. O im­pério de Filipe li, por outro lado, tecnicamente não o era de facto. Os contemporâneos conheciam-o pelo nome de monarquía espafíola - e o título, se bem que dificilmente sugerisse a extensão e a diversidade dos territórios de que era composta, reconhecia pelo menos o aspecto principal do poder de Filipe II: a sua firme base espanhola. Se Filipe herdou juntamente com os seus territórios em Espanha, muitas das obri­gações universais que em tempos tinham pertencido a seu pai, isso deveu-se menos a compromissos implícitos no seu esülo e títulos, do que às realidades económicas, geográficas e religiosas do mundo em que devia assumir a sua herança. Com efeito, em 1559, a monarquia de Espanha encontrava-se numa posição particularmente poderosa, acar­retando consigo as responsabilidades e oportunidades que anteriormente tinham automaticamente acompanhado o título de Imperador Romano­-Germânico.

Não existe uma explicação única para a particular proeminência da Espanha nos assuntos da Europa nas duas ou três gerações que se seguiram a 1559. Parte dela decorria naturalmente do acidente que o eclipse temporário da França constituía. Isto tornava-se particularmente evidente em Itália, onde a Espanha beneficiou decididamente da posse de territórios italianos e da ausência de uma concorrência séria. Após 1559, deixou de ser possível a Veneza e aos príncipes italianos aplica­carem com possibilidade de êxito a sua tradicional política de instigação dos franceses contra os espanhóis. A maior parte deles, com diferentes graus de resignação, aceitaram o inevitável e preferiram apoiar o seu futuro na estrela cada vez mais brilhante da Espanha. É certo· que a República Veneziana tentou preservar alguma liberdade de acção apro­ximando-se mais do papado e do ducado· florentino de Cosimo de Médicis, que em 1569 melhorou bastante a sua posição ao obter do Papa Pio V o direito ao título de Grão-Duque da Toscânia. Manuel Felisberto de Sabóia, com um espírito de independência compatível

3 iOiltlalàlo :p.or Johin Lynch, SPain under the Habsburgo, O,crloir!d, 19614.

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com o vitorioso general de St. Quentin, conseguiu incutir em Filipe li um certo respeito cauteloso, à medida que reconstituía metodicamente os recursos do seu arruinado ducado alpino. Mas, em geral, o poder da Espanha nos anos que se seguiram imediatamente a Cateau-Cambrésis era demasiado esmagador para que os governantes italianos se arriscas­sem a contrariar seriamente Madrid. No fim de contas, Filipe li possuía a Lombardia e Milão, Nápoles, a Sardenha e a Sicília. As guar­nições espanholas estavam distribuídas por toda a península, e Milão era uma plaza de armas inexpugnável, a partir da qual os espanhóis podiam dominar toda a planície do norte de Itália. Além disso, os turcos encon­travam-se demasiado perto para que qualquer pequeno príncipe italiano ousasse desafiar excessivamente a única potência capaz de lhe oferecer alguma protecção, no caso de um ataque otomano.

Como o comportamento dos Estados italianos sugere, grande parte da proeminência espanhola na Europa na época de Filipe li decorria do seu poder militar que, por sua vez, era uma estranha mistura de reputação e realidade. Os famosos tercios espanhóis - formações ma­ciças de lanceiros e mosqueteiros que tinham dominado os campos de batalha europeus na primeira metade do século -tinham compreensi­velmente ganho uma reputação de invencibilidade. O soldado de infan­taria espanhol, endurecido pelo serviço no Norte de África ou na Itália, e por vezes nas índias, era um soldado notável que, quando bem con­duzido, não tinha igual na Europa. Mas os espanhóis de origem apenas constituíam uma pequena porção dos 40 000 a 60 000 homens que a qualquer momento se encontravam ao serviço dos exércitos do rei de Espanha. O núcleo das tropas consistia em mercenários estrangeiros - valões, alemães, italianos - , cuja eficácia como força militar de­pendia grandemente das esperanças de remuneração. Era o dinheiro, na opinião dos contemporâneos, que decidia a sorte na guerra, ou, como disse Rabelais, <<les nerfs des batailles sont les pécunes». Se os merce­nários estrangeiros desejavam colocar-se ao serviço do rei de Espanha, faziam-no porque esperavam que este lhes oferecesse amplas oportu­nidades de um emprego lucrativo, e um pagamento regular razoável.

Esta expectativa, se bem que frequentemente frustrada, era pelo menos compreensível. O poder de Filipe li baseava-se, em última aná­lise, na sua riqueza, que excedia de longe a dos outros governantes contemporâneos da Europa cristã. Esta riqueza derivava fundamen­talmente de duas fontes: os impostos, laicos ou não, aplicados nos seus domínios, e particularmente em Castela; e as remessas anuais de prata das suas possessões na América. Mas em 1559, quando Filipe voltou a Espanha, nenhuma destas fontes era tão produtiva como poderia ser, ou como conviria que fosse para o rei poder manter e aumentar o seu poder. A exploração em grande escala das minas de prata do Novo Mundo estava ainda nos seus inícios, e a situação via-se agravada pelo facto de o comércio espanhol com as índias se encontrar então em recessão 4• Na própria Espanha, a bancarrota régia de 1557 reve-

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Iara a debilidade das finanças da Coroa frente às exigências da guerra; e os impostos existentes, apesar de recaírem fortemente sobre certas parcelas da população de Castela, eram inadequados para cobrir sequer as necessidades mais urgentes de Filipe li.

As novas oportunidades internacionais que esperavam a Espanha nos anos que se seguiram imediatamente a 1559 foram portanto con­trabalançadas, até certo ponto, pelo carácter urgente das suas dificul­dades domésticas. Era necessário tempo para organizar a herança finan­~eira e administrativa do reinado de Carlos V e para descobrir e mobi­lizar. novas fontes de rendimentos. Mas, mesmo dispondo de tempo, era Impossível que a Espanha continuasse sem ser desafiada; com efeito, apesar de a França ter deixado de ser um competidor eficaz, restava ainda um outro, muito mais forte: o Império Otomano de Suleiman o Magnífico. '

Havia mais de cem anos que a Europa vivia desconfortavelmente perto dos turcos. Nas costas da Itália e na planície húngara, herdades desvastadas e aldeias despovoadas testemunhavam o terror imposto pelo poder oto.mano. Carlos V fizera o que lhe fora possível, mas Carlos morrera, e o Imperador Fernando não possuía recursos para continuar a luta. Em 1562, uma série de frustrantes negociações diplomáticas em ~ue se lançara terminaram numa trégua humilhante·, segundo a qual o Imperador concordou em pagar pontualmente o seu tributo anual ao sultão e foi obrigado a reconhecer a independência da Transilvânia sob o governo do príncipe João Segismundo Zapolyai.

Durante 1558, Filipe li tomara parte, discreta e indirectamente nestas negociações, na esperança de assegurar uma trégua na frent~ mediterrâ~ica...: Poderia ter sido conseguido algum acordo temporário nas negocmçoes mas, em 1559, imediatamente após a assinatura do tratado de Cateau-Cambrésis, Filipe mudou de opinião. Foram suspen­sos os contactos diplomáticos com os agentes do sultão e em Junho Filipe aprovou os planos preparados pelo seu vice-rei na Sicília e Grão­-Mestre dos Cavaleiros de S. João de Malta para uma expedição com o objectivo de recuperar Trípoli, da qual os Cavaleiros tinham sido expulsos pelos turcos e seus aliados em 1551.

Esta mudança crucial na política de Filipe relativamente à Tur­quia, na primavera de 1559, se bem que parcialmente inspirada por relatórios d.e divergências internas no Império Otomano, foi possibili­tada pelo fllll da guerra com a França. Cateau-Cambrésis libertara a Espanha das suas preocupações na Europa do norte e, simultaneamente, pnvara os turcos do auxílio do seu tradicional aliado cristão. Filipe, desconhecendo ainda o estado da Espanha após os longos anos de guerra, parece ter considerado que este era um momento favorável para se apoderar da iniciativa no Mediterrâneo, embora depressa se

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verificasse que os seus cálculos não estavam correctos. Os tur­cos encontravam-se então muito mais fortes, e a Espanha muito mais fraca, do que Filipe li pensara 5• Como resultado, a Espanha viu-se vinculada a um prolongado conflito mediterrânico, durante o qual Filipe acabou naturalmente por. assumir a posição de seu pai como campeão da cristandade contra as forças do Islão.

A paz no noroeste da Europa em 1559 não foi portanto acom­panhada por uma paz correspondente no sul. A bacia mediterrânica, no entanto, não era a única região que viria a ser afectada por con­flitos nos anos que se seguiram a 1559, nem o Império Otomano foi a única potência na franja da Europa que contrariou a paz. No nordeste, nas costas do Báltico, o precário equilíbrio entre Estados rivais - a Polónia, a Suécia, a Dinamarca - era nesse momento afectado pela súbita intrusão da Moscóvia, uma potência que até então desempenhara um papel pouco activo na vida internacional europeia. Nos primeiros anos do seu governo pessoal, Ivã IV, que adaptara o título de czar em 1547, dedicou-se a alargav as fronteiras orientais do seu Estado. A ane­xação em 1552 do canato tártaro de Kazan deu-lhe o domínio do Médio Volga e o acesso através dos Urais à Sibéria ocidental. Quatro anos mais tarde, a tomada de Astracã levou os russos às costas do Cáspio e, nas décadas seguintes, avançaram regularmente para leste. Mas os inte­resses de Ivã não se confinavam apenas ao leste. Interessava-lhe igual­mente acabar com a dependência da Moscóvia relativamente aos inter­mediários da Liga Hanseática, assegurando um acesso directo à Europa ocidental através do Báltico. Foi na década de 1550 que surgiu uma possibilidade de abertura ao ocidente, a propósito da questão da Livónia.

A Livónia, juntamente com a Estónia e a Curdlândia, pertencia aos Cavaleiros da Ordem Teutónica, cujo Grão-Mestre, Alberto de Brandenburgo, chocara a Europa convertendo-se ao luteranismo em 1525. Desde então, a Ordem viu-se afectada por discórdias internas, e as potências bálticas começaram a cobiçar as suas terras. Ivã aperce­beu-se rapidamente das vantagens que poderia obter da fraqueza e da desmoralização da Ordem e em 1558, após várias tentativas de intimi­dação, as suas forças ocuparam o porto estoniano de Narva. A ocupação russa de Narva, o principal porto de entrada das mercadorias do oci­dente europeu na Europa oriental, teve repercussões previsíveis em todo o norte. A Dieta Imperial reuniu; os suecos e os polacos, receosos quanto ao futuro da Livónia mas desejosos de evitarem uma confron­tação com o czar, apoiaram, se bem que hesitantemente, os Cavaleiros teutónicos, cujas terras cobiçavam. Quando os russos infligiram nova derrota esmagadora à Ordem Teutónica, as ondas de choque produzidas pela invasão da Livónia provocaram um novo alinhamento de forças

s Ver capítUJlo 16.

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ao longo das costas do Báltico. Em 1561 o Grão-Mestre da Ordem, reconhecendo a sua incapacidade para se defender sozinho, concordou com a união da Livónia ao Grão-Ducado da Lituânica que por sua vez se uniu formalmente em 1569 à Polónia, através da União de Lublin. Ainda em 1561, Eric XIV da Suécia ocupou a Estónia, esperando esta­belecer-se no lado oriental de um Báltico dominado pelos dinamar­queses e obter o controlo do comércio russo com o ocidente. A inter­venção sueca precipitou um selvático conflito com a Dinamarca, uma Guerra dos Sete Anos nórdica que durou de 1563 a 1570.

A importância do comércio no Báltico para a Europa é demons­trada pelo congresso de paz que se reuniu em Stettin em 1570 in­cluindo representantes da Inglaterra e da Escócia, e até de Esp~nha. Só os russos se viram excluídos do congresso, que proclamou a liber­dade de navegação no Báltico e tentou obter um acordo geral entre as potências nórdicas. A Suécia, se bem que conservasse a Estónia, não obteve grande êxito no congresso. É certo que Frederico 11 da Dina­marca fr~cassara na sua tentativa de reconquistar a Suécia e que os planos dmamarqueses de restauração da união escandinava estavam praticamente mortos. Mas o grande objectivo de Eric XIV de expansão no Báltico, susceptível de colocar o comércio russo sob controlo sueco, red~dara em ~racasso, acabando o seu autor po~; definir na prisão, depois de ter sido deposto pelos seus nobres em 1568. As regiões da Livónia que não tinham caído em poder dos polacos foram colocadas sob protecção da Dinamarca, a fim de ficarem fora do alcance russo. ~ czar tudo faria nos anos seguintes para contrariar o acordo mas, fmalmente, foi derrotado pelos seus próprios problemas domésticos e a Moscóvia viu-se forçada a esperar longamente pelo acesso ao ocidente. A paz de Stettin de 1570 foi portanto, em alguns aspectos, o equivalente nórdico ~a paz d~ Cateau-Cambrésis de onze anos antes. Se bem que tenha de1xado mmtos problemas por resolver, criou um acordo relati­vamente duradouro para benefício, em primeiro lugar, dos dinamar­queses e dos polacos. Tal como Cateau-Cambrésis, este acordo reve­lou-se razoavelmente duradouro· porque a Moscóvia, tal como a França após Cateau-Cambrésis, depressa mostrou não estar em condições de contrariar eficazmente o veredicto. A Europa de finais do século dezas­seis iria desenvolver os seus conflitos sem se preocupar com a Mos­c~wm, um impé~io de~asiad? remoto, estranho e instável para poder ser v1sto pelas naçoes oc1dentms, com mais do que um receio ou uma curiosidade passageiros.

2. As lutas confessionais

. A paz dinástica que surgiu na Europa ocidental em 1559 permi-tm esperanças de um longo período de tranquilidade internacional, durante o qual as feridas da cristandade poderiam ser fechadas e cica­trizadas, restaurando-se a sua unidade religiosa. Estas esperanças fo-

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ram cruelmente desiludidas. Se bem que as tradicionais rivalidades dinás­ticas tenham perdido grande parte da sua anterior importância nas duas ou três décadas que se seguiram a Cateau-Cambrésis, não viria a verificar-se qualquer alívio da tensão internacional. Em vez disso, alguns anos depois as animosidades não só surgiram com renova~o vigor como ainda actuaram com uma intensidade sem precedentes. As rivalidades nacionais sobrepusera-se, de facto, uma nova camada de ódio e desconfiança, produto da principal herança legada pelo século dezasseis à vida em·opeia - as lutas confessionais. As diferenças religiosas ocuparam o primeiro plano após 1559, passando as fronteiras nacionais, exacerbando antigos ódios e fomentando novos, lançando a discórdia nas comunidades nacionais e, em seguida, na comunidade internacional, tendo efeitos tão devastadores que trinta anos depois de Cateau-Cam­brésis o carácter político da Europa estava profundamente, e perma­nentemente, alterado.

Já na época de Carlos V a controvérsia religiosa tinha ajudado a destruir a unidade nominal de uma cristandade confrontada com os avanços do Islão. Mas nos anos 50 Martinho Lutero morreu e a sua religião, privada da forte direcção pessoal do seu fundador, entorpecia intelectualmente e tornava-se politicamente inactiva. Na Alemanha, principal cenário da luta confessional durante a primeira metade do século, a paz de Augsburgo estabelecera um equilíbrio, apesar de instável, entre os príncipes luteranos e os católicos romanos e ao fazê-lo pri­vara os luteranos de um real incentivo no sentido de uma maior mi­litância. Os calvinistas, no entanto, foram excluídos dos termos do acordo de Augsburgo; e à medida que o torpor vencia a segunda geração de luteranos, os calvinistas transformavam-se nos mais dinâmicos repre­sentantes da religião reformada.

Num momento em que a Igreja Romana finalmente começava a responder com algum êxito ao desafio da heresia, o calvinismo dispunha de certas vantagens óbvias sobre o luteranismo enquanto credo militante. As suas doutrinas eram mais definidas e estavam formuladas de modo mais claro; os seus seguidores eram mais disciplinados; o seu sistema celular de organização eclesiástica tornava possível a sua propagação e crescimento independente, mesmo quando as autoridades seculares se opunham ao seu estabelecimento; e possuía em Genebra um quartel­-general de onde o próprio Calvino até à sua morte em 1564, podia orientar o campo de batalha. Após anos de luta o idoso Calvino transformara-se, em meados, dos anos 50, no incontestável mestre de Genebra. A oposição no conselho da cidade fora silenciada; os seus inimigos tinham fugido. Agora que se encontrava entrincheirado em Genebra, livre de qualquer possibilidade de derrube, Calvino podia transformar a cidade numa verdadeira capital da sua nova religião, numa Roma protestante. Os calvinistas europeus desde há muito estavam habituados a procurar conselhos, e instruções em Genebra, e nela se refugiavam em tempos de perseguição. Mas ainda não possuía um

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instituto de educação superior para formação de pastores, dos homens que iriam actuar como missionários da fé. A Academia de Lausana, se bem que até certo ponto satisfizesse esta necessidade, estava submc~ tida ao governo de Berna, que não apoiava as formas mais rígidas ela ortodoxia calvinista. Após prolongadas disputas, a maior parte dos pro­fessores de Lausana, incluindo Teodoro Beza, professor de grego, foi expulsa pelo governo de Berna, em 1558. Com o seu auxílio, Calvino fundou uma academia em Genebra em 1559, tornando-se Beza reitor. A nova instituição teve um êxito imediato. Três anos depois já se ti­nham inscrito cento e sessenta e dois estudantes, e o número subira para mais de trezentos quando Calvino morreu.

A abertura da Academia de Genebra em Junho de 1559 coinci­diu com a reabertura das fronteiras nacionais europeias após a paz de Cateau-Cambrésis. Numa oração no funeral de Maria Tudor, o bispo de Winchester fizera já um aviso sombrio quanto aos horrores que se aproximavam: «Os lobos saem de Genebra e de outros lugares da Alemanha e enviam os seus livros à frente, cheios de doutrinas pestilen­tas, de blasfémias e heresias, para contaminar o povo» 6• Com a rea­bertura das fronteiras em 1559-60, as alcateias de lobos espalha­ram-se por toda a parte. Os exilados apoiantes de Maria Stuart volta­ram a Inglaterra quando Isabel subiu ao trono e obrigaram a rainha a~ aceitar, em 1559, um acordo mais protestante do que ela própra dese­java. Isabel resistiu com êxito à imposição de uma forma calvinista de organização da sua igreja, mas dois Estados europeus começaram a remodelar as respectivas igrejas segundo linhas calvinistas no início da década de 1560- a Escócia, sob a direcção revolucionária do exilado retornado John Knox, e o Palatinato, em circunstâncias particularmente respeitáveis, como resultado da conversão do seu novo governante, o Eleitor Frederico 111. Nos Países Baixos, onde a heresia fora selvatica­mente reprimida, o regresso da paz permitiu aos exilados calvinistas infiltrarem-se através das fronteiras e instalarem-se em Tournai, Valen­ciennes e nas cidades da Flandres. Sob a direcção do mais proeminente dos exilados retornados, Guy de Bres, o calvinismo avançou considera­velmente no início dos anos 60 no sul da Holanda - mais do que no norte, onde a influência calvinista existente provinha da igreja de Emden, do outro lado da fronteira alemã. Mas foi em França que Gene­bra conseguiu os seus êxitos mais notórios. Todos os dias era enviado para este país um novo grupo de pastores formados em Genebra. Quase todos, nascidos em França, provinham da aristocracia ou da classe média; realizaram conversões entre pessoas influentes e fundaram novas igrejas, que procuravam em Genebra direcção e conselho.

6 OLtaàio jpOC J:,. E. iNi~811ie, Elizabeth I and her Panliaments, 1559-1581, Donillres, •1953, p, 5.7.

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Os lobos, como dissera o bispo de Winchester, tinham enviado «OS seus livros à frente». Bíblias, Livros de Salmos, panfletos e cópias dos Institutos de Calvino saíam em grande quantidade das tipografias gene­brinas, que chegaram a produzir 300 000 volumes por ano. Estes livros, em latim ou nas línguas vemáculas, não reconheciam fronteiras. Um grande impressor genebrino como i-Ienri Estienne, filho do impressor régio de Francisco I de França, aceitava grandes encomendas dos livrei­ros da sua Bíblia anotada e de outras obras populares, ou apresentava-as na grande feira do livro de Francoforte. Os bufarinheiros e vendedores ambulantes transportavam-nas pelas rotas comerciais da Europa central e ocidental; fardos de livros surgiam misteriosamente nos porões dos navios; e cópias já gastas passavam subrepticiamente de mão em mão. Mesmo a Espanha, cujas autoridades estavam especialmente alertadas para a ameaça da litertura subversiva, de modo nenhum se encontrava imune. «:É necessário considerar», escreveu Luis de Ortiz, um funcio­nário de Burgos em 1558, <<a quantidade de más obras impressas que entram neste país vindas de fora. Além das que contêm os erros abomi­náveis que Lutero e os seus seguidores semearem ... mesmo as boas obras possuem introduções e notas à margem escandalosas». 7

A fim de contrariar a inundação de propaganda religiosa subver­siva, os príncipes da Europa de meados do século dezasseis foram obri­gados a recorrer a medidas cada vez mais restritivas de censura e proi­bição. Desde a proibição lançada em 1520 pelo Papa Leão X sobre a disseminação e leitura da literatura de tendência luterana, universida­des como a de Lovaina e a Sorbonne publicaram listas próprias de livros proibidos. A Inquisição espanhola. publicou o seu primeiro índex em 1546, e os famosos éditos publicados na Holanda em 1550 por Carlos V proibiam a leitura, cópia ou disseminação da literatura heré­tica sob pena de morte. Agora, no final dos anos 50, eram introduzidas medidas ainda mais duras. Alguns meses após Luis de Ortiz ter escrito o seu tratado, o Regente de Espanha aprovou uma pragmática proibindo a importação de livros estrangeiros e ordenando que todos os livros publicados em Espanha passassem a ser autorizados pelo Conselho de Castela. O primeiro índex papal, o de Paulo IV, surgiu em 1559, e a Inquisição espanhola publicou nesse mesmo ano, para consumo domés­tico, um índex próprio, mais severo.

Apesar das medidas tomadas e das penas cada vez mais pesadas, o contrabando de livros continuou numa escala enorme. Era evidente que o calvinismo estava a ter impacto entre as classes educadas e letradas da Europa. No caso do campesinato iletrado, por outro lado, o apelo de uma religião tão dependente da palavra escrita era relativa­mente reduzido. Era possível, embora difícil, ao calvinismo passar a

7 «E'l Memori•al de Luàs de Orti~». org. M. Fei'IIlández Alvarez, Anales de Econowia XW•I, •11957, p. ]314.

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barreira do analfabetismo que tendia a separar o campo da cidade. É difícil definir critérios para medir o analfabetismo, mas dispomos de uma indicação grosseira através da capacidade do homem de ass_inar o seu nome, on pelo menos as suas iniciais, em vez de fazer um su1~1. Partindo desta base, avaliou-se em 90 % a percentagem da populaçao agrícola da região francesa de Narbonne que ignorava a palavra escrita no final do século dezasseis, contra apenas cerca de 33 % dos artesãos 8•

Isto reflecte-se na distribuição social dos calvinistas na província do Languedoque. Em 15 60 havia 817 participantes registados nos encon­tros calvinistas na cidade de Montpellier, dos quais 561 indicaram o seu estatuto profissional.

Profissão Número Percentagem

Artesãos 387 69% Profissões liberais (advogados, médicos, notários, etc.) 87 15,4% Comerciantes 24 4,3% Burgueses 23 4,2% Nobres 13 2,3% Agricultores e trabalhadores rurais 27 4,8%

Os ausentes óbvios são os trabalhadores rurais, que constituíam pelo menos um quinto da população total de Montpellier mas que têm fraca representação na lista huguenote.

Estes números de Montpellier sugerem que o calvinismo também se ressentia nas cidades da distinção entre cidade e campo, entre os artesãos letrados ou semi-letrados e os trabalhadores agrícolas iletrados. Foram os artesãos de Montpellier, particularmente os trabalhadores dos têxteis e das peles, que se manifestaram a favor do calvinismo em iní­cios da década de 60. Os camponeses e trabalhadores rurais, por outro lado, mostraram-se recalcitrantes ou activamente hostis à religião refor­mada. Já em 1561 protestavam iradamente contra as tentativas hugue­notes de abolir a missa e de os privar dos dias santos, das festas e da dança. Só lentamente, e com extrema dificuldade, acabou por ser este ancestral mundo católico do campo conquistado e colonizado pelas forças conjuntas do calvinismo e da instrução. A sociedade camponesa das rudes regiões montanhosas das Cevenas, tomou-se fervorosamente calvinista- em grande parte, segundo parece, devido à influência da elite artesanal dos trabalhadores de peles que viviam no seu seio. Mas a conversão da região das Cevenas chegou a espantar Beza, pois era

s !Elstla e a indlortmação que se segue :são .reti.oo.dials do n.otãvel :esbuoo de Enunalil'lllel Le Roy Ladur.IJe, Le.s Paysans de Langu1Jlàoc, 'V'Oil. [, Pal'lis, 196'6, ipip. 3313-356.,

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normalmente considerado impossível espalhar a Palavra com êxito em terreno tão estéril. O calvinismo, pelo menos nos seus primeiros anos, definiu-se essencialmente com uma religião para a população urbana e letrada.

É possível definir em geral . as classes sociais que se deixaram atrair pelas doutrinas de Calvino - os artesãos qualificados, os merca­dores, os advogados, a pequena nobreza e as profissões livres das cida­des. Mas a popularidade do calvinismo não pode ser explicada, e ainda menos completamente esclarecida, por simples referência às cate­gorias económicas. As suas qualidades intrínsecas - o seu claro apelo ao evangelho, a insistência em elevados padrões éticos, a ideia de uma confiança sem limites nos propósitos de um Deus omnipotente- eram de um tipo que atravessava as fronteiras de riqueza e de classe. Pos­tulavam um desejo de auto-melhoramento e de auto-disciplina que podia ser encontrado a todos os níveis da sociedade, se bem que o seu alcance social fosse indubitavelmente restringido pelos requisitos de instrução e de disponibilidade de tempo para o estudo das Escrituras. Talvez a aptidão para preencher estes requisitos ajude a explicar o seu considerável êxito entre as mulheres das classes média e superior- fre­quentemente, foi através das esposas e mães que a aristocracia e a pe­quena nobreza entraram em contacto com os ensinamentos de Calvino. Em alguns locais, como em Espanha, em Itália ou na França oriental, onde a repressão era invulgannente severa, o calvinismo não conse­guiu estabelecer-se. Noutros, beneficiou do progresso educacional do século dezasseis e da dificuldade da Igreja Romana, que só lentamente acordava da sua letargia, em compreender e satisfazer as necessidades espirituais do seu rebanho.

Como poderia ser contrariado eficazmente o desafio lançado pelo calvinismo? Um método duro, mas indubitavelmente compensador, con­sistia em perseguir os lobos até ao seu covil, esse lar da heresia, a ci­dade de Genebra. A posição geográfica da cidade tornava-a bastante vulnerável, em particular do ponto de vista do seu vizinho ambicioso e desconfortavelmente próximo, o duque de Sabóia. A recuperação das suas terras em 1559 transformara uma vez mais o duque numa poderosa figura europeia, e o momento parecia oportuno para renovar as tradicionais pretensões da Sabóia a Genebra, tanto mais que os súbditos Vaudois do duque tinham recentemente abandonado a sua anterior heterodoxia para abraçar as doutrinas mais perigosas do cal­vinismo genebrino. Os planos de Manuel Felisberto para resolver simul­taneamente o caso dos Vaudois e de Genebra podem ter suscitado um interesse caloroso no Papado e em Espanha, mas a Coroa francesa, nesse momento numa posição delicada entre os católicos e os protes­tantes, não quis cooperar. Como resultado, o momento de acção pas­sou. Uma revolta dos Vaudois contra o duque terminou em 1561 por um acordo de compromisso, segundo o qual Manuel Felisberto, demons­trando uma sabedoria política infelizmente rara entre os seus contem-

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porâneos, concedeu liberdade de consciência dentro de limites geográ­ficos estritos. E a cidade ele Genebra manteve-se durante algum tempo intocável, vigiando prudentemente o mundo por trás dos seus muros bem defendidos.

Tendo fracassado o extermínio de Genebra, a única resposta adequada ao avanço calvinista consistia na reforma da Igreja Católica Romana. AJ ordens religiosas recentes ou reformadas, particularmente os jesuítas, tinham já conseguido algum êxito no combate ao calvinismo, em particular na Europa central e oriental. Mas a Igreja permanecia no seu todo obstinadamente avessa à reforma, e o Concílio de Trento, convocado para iniciar esse trabalho, mantivera-se suspenso, pratica­mente sem interrupção, desde 1548. Enquanto as grandes potên­cias se mantivessem em guerra, não havia perspectivas de retomada elos trabalhos, e só com Cateau-Cambrésis se tornou novamente possível reunir o Concílio.

No entanto, alguns obstáculos impediam uma nova sessão em Trento. Um dos obstáculos principais, Paulo IV, foi misericordiosa­mente removido pela sua morte, em Agosto de 1559; mas só em fins de Dezembro saiu do conclave um novo Papa, de carácter bem dife­rente, Pio IV. Um pontífice cómodo, mais notável por ser tio de S. Carlos Borromeu do que por quaisquer virtudes· excepcionais, Pio dificilmente parecia o guia apropriado da Igreja Romana nesse mo­mento de crise. Mas era suficientemente perspicaz para compreender que a continuação dos trabalhos do Concílio era imprescindível e que só era possível fazê-lo se conseguisse libertar a Igreja do emaranhado político em que vira envolvida pelo seu irascível e severo predecessor. «Desejamos este concílio», anunciou, «desejamo-lo fervorosamente, e gostaríamos que fosse universal... Que tudo aquilo que deve ser refor­mado o seja de facto, mesmo que seja a nossa própria pessoa e os nossos assuntos».

Eram palavras corajosas, mas os príncipes seculares não as rece­beram com o entusiasmo que seria de esperar. Filipe li considerou que se tornava desnecessária uma nova reunião do Concílio no que dizia respeito à Espanha, e que poderia mesmo provocar complicações tendo em conta a delicada situação religiosa na Holanda; mas se o Papa convocasse de novo o Concílio, este deveria ser considerado como uma continuação do antigo e não como um novo Concílio. No entanto, a simples continuação do antigo era considerada fora de questão tanto pelo Imperador como pelos franceses. O Imperador temia que a sua simples continuação afectasse o delicado acordo de Augsburgo de 1555. Apoiou, portanto, a exigência francesa de convocação de um novo Concílio Geral que pudesse lançar as bases da reunião da cristandade - a fervorosa, apesar de ilusória, ambição de uma monarquia francesa que não via outra saída para as divergências religiosas que a preocupa­vam. Se fracassasse este novo Concílio Geral, o cardeal da Lorena ameaçava convocar um Concílio nacional francês, juntando católicos e

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calvinistas numa tentativa de obter um compromisso mútuo numa base exclusivamente nacional.

Confrontado com pontos de vista tão inconciliáveis, Pio IV pouco mais podia fazer do que esperar pelos acontecimentos, fazendo simultaneamente o possível no sentido de levar os príncipes a aceitarem a ideia de uma nova sessão em Trento. A própria diversidade de opi­niões acabou, finalmente, por resolver a situação. A perspectiva de um Concílio nacional francês alarmou de tal modo Filipe 11 de Espanha que no verão de 1561 retirou finalmente as suas objecções ao propó­sito do Papa. Agora que uma das principais potências concordava formalmente com a participação dos seus bispos, Pio sentiu-se suficiente­mente forte para aplicar o seu esquema. O Concílio reabriu oficial­mente em Trento a 18 de Janeiro de 1562; o trabalho de reforma eclesiástica ia finalmente ser retomado.

O êxito de Pio IV na organização de uma nova sessão do Con­cílio de Trento foi muito importante para a definição do carácter dos acontecimentos verificados no meio século que se seguiu à paz de Ca­teau-Cambrésis. A Igreja Romana não se apresentaria, afinal, sem chefe e desorganizada no campo de batalha contra o calvinismo internacional; e se Roma ainda era fraca e havia de se manter durante muito tempo fortemente dependente do auxílio do poder secular, o seu tardio desejo de pôr a casa em ordem constituía ainda a melhor, e talvez a única, esperança de um dia vir a recuperar das suas pesadas baixas. Com efeito, estavam agora lançadas as linhas básicas da grande luta religiosa do fim do século dezasseis- uma luta em que duas fés rivais, com os seus centros internacionais em Roma e Genebra, iriam competir, usando todas as armas ao seu dispor, pelo alívio dos homens e a sal­vação das almas.

Este amargo conflito confessional surgiu num momento em que toldou todos os aspectos da vida europeia. Os indivíduos e as nações viram-se confrontados com problemas de lealdade que criaram doloro­sos dilemas e torturaram as consciências sensíveis. O primeiro dever de cada indivíduo era para com o seu rei ou para com o seu Deus? A política externa de um Estado deveria guiar-se por considerações de interesse nacional ou de dever religioso quando, como tantas vezes aconteceu, não coincidiam? Poderia a Espanha, por exemplo, contem­porizar legitimamente nas suas relações com a Inglaterra protestante, quando o derrube de Isabel redundaria em benefício da França? Deve­ria Catarina de Médicis apoiar os protestantes franceses na sua política anti-espanhola, ou fazer causa comum com o tradicional rival da França, a Espanha, contra os inimigos da Sacra Igreja Católica?

O simples facto de estes problemas não poderem ser resolvidos criou novas tensões, e serviu para elevar ainda mais a temperatura do debate internacional. Toda a Europa se viu nele envolvida- incluindo regiões periféricas como a Escandinávia e a Europa oriental, que até então tinham conduzido os seus assuntos num isolamento relativo frente aos Estados ocidentais. Uma das ironias da nova situação consistiu, no

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entanto, no facto de a incorporação do leste e do norte no sistema de Estados europeus de modo a criar pela primeira vez algo de seme­lhante a uma única comunidade diplomática europeia ter coincidido com o colapso da própria vida internacional. Com efeito, a principal vítima das lutas confessionais foi a comunidade internacional - esse corpo comum de cristandade que continuava a ser exaltado por pala­vras mesmo muito depois de ter deixado de ter qualquer fun­damento real.

O colap:;o podia ser detectado em campos muito diferentes. Os mercadores, sempre os primeiros a serem afectados pela deterioração das relações internacionais, viram-se sujeitos a novos perigos quando as autoridades estrangeiras começaram a mostrar um interesse tão grande nos seus credos como nas suas cargas. Os estudantes, habitua­dos a viajar pelo continente para prosseguirem os seus estudos na uni­versidade escolhida, começavam agora a descobrir que já não era tão l'ácil fazê-lo como tinha sido para os seus pais. O jovem suíço Félix Platter encontrava-se suficientemente seguro em Montpellier em 1552 desde que não apregoasse as suas crenças protestantes 9, mas as universidades curopeias começavam já a dividir-se segundo correntes confessionais. Os nobres calvinistas da Holanda ou da Hungria enviavam os filhos para a Academia de Genebra, enquanto os católicos os enviavam para Pádua ou Lovaina. Em 1559, Filipe 11 proibiu os espanhóis de estuda­rem no estrangeiro, excepto em certos colégios bem especificados, em Bolonha, Roma, Nápoles e Coimbra. Em 1570, cartas régias dirigidas ao Parlement em Dôle proibiam os habitantes do Franco-Condado de «estudarem, ensinarem, aprenderem ou residirem em quaisquer univer­sidades ou escolas públicas ou privadas fora deste país ou de outros países, Estados e domínios que nos sejam obedientes, excepto em qual­quer caso a cidade e a universidade de Roma». As proibições gover­namentais eram muitas vezes contrariadas e ignoradas, mas isso não impedia que as cerca de oitenta universidades da Europa de meados do século dezasseis se transformassem de instituições internacionais em nacionais, e que a comunidade de eruditos fosse fragmentada pela nova disputa confessional.

As instituições e procedimentos diplomáticos dos Estados euro­peus, que evoluíram dolorosamente ao longo de séculos, encontravam-se igualmente sujeitos a tensões quase intoleráveis. À medida que o con­tinente se dividia em dois campos inimigos, tornava-se cada vez mais difícil manter as tradicionais cortesias internacionais, ou continuar o diálogo entre os Estados soberanos. Num mundo em que o Papado não aprovava as relações diplomáticas entre católicos e hereges era inevitá­vel que as relações diplomáticas normais quase desaparecessem e que

9 Ver B eloveà Son Felix (tralduzido .por Stelaiil JeDD!etJt, Londres, 19ôl) .• qUJe llliO•s dá uma sugestiva dlescriçãlo oontemporâlnea da vLda estuda!11til no séCIUI!o diezaJS~Seis.

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as embaixadas, onde sobreviviam, se transformassem em centros de propaganda religiosa e de subversão política no coração do território estrangeiro. Actuando num clima de intensa desconfiança e suspeita, os diplomatas transformavam-se em conspiradores e espiões, enquanto as suas embaixadas abrigavam agentes e informadores secretos, assim como uma haste de caracteres dúbios que se deslocavam no submundo csconso da vida internacional. O governo anfitrião respondia da mesma maneira. As malas de correio eram misteriosamente violadas, decifra­vam-se códigos cada vez maiJ difíceis, os mensageiros eram subor­nados e por vezes encontrados mortos.

À medida que as tradicionais ligações entre os Estados eram eli­minadas, uma a uma, e que as lealdades se polarizavam em torno de Genebra ou de Roma, era natural que a nostalgia pela antiga cris­tandade unida aumentasse. Os desejos de reconciliação e reunião reli­giosas do século dezasseis parecem ter fundamentos tão débeis à luz do que de facto aconteceu, que são facilmente desprezados como meros sonhos de excêntricos ou visionários, desprovidos de qualquer signifi­cado no cenário de então. Mas, na prática, eram largamente, mesmo desesperadamente, alimentados por figuras influentes em muitos Estados, incapazes de se habituarem a aceitar uma divisão permanente da socie­dade em que viviam; e como eram alimentados e entravam nos cál­culos dos estadistas, mesmo dos mais intransigentes, desempenharam de facto um papel na evolução dos acontecimentos. Cateau-Cambrésis fora, apesar de tudo, concebida para trazer uma paz duradoura a uma Europa cansada da guerra. Se o súbito aparecimento das lutas confes­sionais destruía esse desígnio, isso não significava que o desígnio em si fosse erróneo, ou que o mal não tivesse remédio. De facto, só as gerações posteriores puderam compreender que os homens que conce­beram o tratado de Cateau-Cambrésis também já tinham passado o ponto de onde não há retorno; que a união da cristandade se perdera definitivamente, e que a Europa que a substituía se manteria dividida nos anos que se seguiriam.

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A ECONOMIA EUROPEIA

I. O Báltico e o Leste

As guerras da década de 50 tornaram-se um fardo intolerável para as economias dos Estados da Europa ocidental. As rotas comer­CtalS estavam despedaçadas e as regiões fronteiriças devastadas, e os pesados encargos militares produziam grandes tensões no delicado meca­nismo das finanças internacionais. Os resultados viram-se em 1557-59, quando as grandes casas banqueiras europeias foram abaladas nos seus fundamentos pela decisão, primeiramente da Coroa espanhola e depois da francesa, de repudiarem as suas dívidas. Algumas instituições ban­cárias, com bases mais fracas, faliram; outras, mais firmemente insta­ladas, sobreviveram à tempestade. Mas, depois de se limparem os des­troços, verificou-se que os contornos da paisagem se tinham definitiva­mente alterado. Quando Anton Fugger morreu, em Setembro de 1560, deixando os negócios da família nas mãos de uma nova geração sobre cuja competência sentia justificadas dúvidas, a sua morte significava mais que o simples desaparecimento de um príncipe dos banquei­ros-mercadores - um homem que durante trinta anos orientara os ne­gócios da maior casa europeia com uma habilidade exemplar. Simbo­lizava, com efeito, o fim de uma época. Novos banqueiros, em especial genoveses, alcançariam uma notoriedade internacional, mas o final do século dezasseis não podia competir com essa época de íntimas rela­ções entre os reis e os grandes mercadores que passou orgulhosamente à história sob o nome de «Era de Fugger».

No entanto, se bem que os grandes príncipes-mercadores tives­sem desaparecido e deixassem de existir figuras de proa no mundo das finanças internacionais, isso não implica necessariamente que a segunda metade do século dezasseis fosse um período de «crise» para o cres­cimento do capitalismo. A década de 50 foi inegavelmente difícil, mas a actividade económica europeia recuperou rapidamente assim que a paz foi assinada. Nos dez anos que se seguiram a Cateau-Cambrésis, as trocas comerciais entre a França e a Espanha atingiram, segundo se crê, o nível mais elevado do século, e as condições em toda a Europa

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atlântica e de noroeste foram geralmente favoráveis ao comércio inter­nacional. A situação deteriorou-se no final dos anos 60 como resultado das perturbações verificadas na Holanda; mas mesmo uma região tão sensível para a economia europeia como os Países Baixos não ditou, nesse momento, todo o padrão da . vida económica. Na prática, as maio­res restrições ao crescimento económico europeu mantiveram-se iguais às da primeira metade do século - a debilidade das suas instituições financeiras, a inadequação e o elevado custo dos métodos de transporte prevalecentes e a natureza primitiva da maior parte das suas técnicas agrárias e industriais. No entanto, dentro dos limites impostos por estas deficiências, algumas regiões mostraram uma maior vitalidade económica, apesar de a de outras ter diminuído; e, na perspectiva geral do desen­volvimento europeu, os anos entre Cateau-Cambrésis e o final do século parecem menos notórios pelas suas hesitações e incertezas no plano económico do que pelo êxito da assimilação de duas vastas áreas na órbita do sistema económico da Europa ocidental - o Novo Mundo, do outro lado do Atlântico, e o mundo praticamente tão novo como o anterior, a leste do Elba.

Se bem que só na segunda metade do século dezasseis a economia da Europa oriental começasse a ser efectivamente integrada na do oci­dente, isso apenas constituiu o culminar de um processo que se iniciou muito antes. As suas origens podem ser encontradas no período de lenta recuperação da Europa ocidental que se seguiu à Peste Negra e às suas sequelas. À medida que os números relativos à população começa­vam novamente a aumentar no final do século quinze, a pressão sobre a terra - que em algumas regiões tinha sido extensamente reservada à criação de ovelhas - aumentou inevitavelmente. Os grandes pro­prietários de terras a leste do Elba e, particularmente, os que viviam perto do Báltico ou dos rios que nele desaguavam, viram na crescente procura de cereais uma opmiunidade de melhorar a sua situação e de adquirirem os artigos de luxo e as mercadorias manufacturadas que só o ocidente podia fornecer. Consequentemente, à medida que aumen­tavam as necessidades alimentares no ocidente, maior era a quantidade de terras lavradas no oriente. Mas a exploração da terra obri­gava a uma exploração do trabalho, cujos efectivos tinham dimi­nuído pela migração dos camponeses para as cidades. Como resul­tado, houve uma colisão entre os nobres e as cidades de toda a Europa oriental em finais do século quinze e inícios do século dezasseis a pro­pósito do destino a dar aos camponeses em fuga, acabando por sair derrotadas as cidades. Portanto, no preciso momento em que a ser­vidão estava a desaparecer na Europa ocidental, iniciava uma nova carreira no leste. Uma série de medidas cada vez mais duras prenderam os camponeses aos solos, impondo-lhes pesadas obrigações e colo­cando as suas vidas praticamente à disposição dos senhores da terra.

O carácter da vida no oriente da Europa começou portanto a divergir claramente, no século dezasseis, do que era típico do ocidente.

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l-:1 11 grande parte da Europa ocidental, a organização econômica c social ll'ntlta a tornar-se mais variada e complexa. A expansão do comércio 1nanlimo conduziu a um aumento das importações de produtos como o :1\'t'rcar, que necessitava de ser tratado e comercializado; as indústrias tradicionais, p1incipalmente os têxteis, alastraram a novas regiões c cks~.:nvolveram ramos especiais destinados a satisfazer as necessidades da minoria; novas indústrias de alta qualidade procuraram satisfazer os I',DStos cada vez mais sofisticados dos europeus ricos. O século viu não :,o um aumento notório da dimensão das cidades, particularmente das dc dimensões médias, como ainda o aparecimento de um novo fenó­n• ·no- a cidade verdadeiramente grande, com mais de cem mil habi­tantes. No início do século, provavelmente apenas quatro cidades en­travam nesta categoria: Paris, Nápoles, Veneza e Milão. No final, tinham surgido mais oito ou nove, incluindo Londres, Lisboa, Roma, l'a lermo e Sevilha.

O notável desenvolvimento da civilização industrial e urbana não significa que a Europa ocidental se tivesse transformado, em finais do s6culo dezasseis, numa sociedade «burguesa». Pelo contrário, de alguns pontos de vista era mais aristocrática em 1600 do que o fora nos cento l' ci nquenta anos anteriores 1• Mas era evidente o contraste com as ll:ITas. para além do Elba, onde a maioria das cidades mostrava ten- · dênc ia para estagnar ou decair desde os primeiros anos do século. Por Dutro lado, as aristocracias oriental e ocidental não se encontravam em ~ituações estritamente comparáveis, ainda que partilhassem muitos 1n tcresses e gostos. Os nobres ocidentais, se bem que ainda imensamente P?clerosos, tinham visto a jurisdição senhorial desgastada pelo desenvol­VImento da justiça régia; e mesmo tendo conseguido introduzir na socie~ad~ urbana muitos dos seus valores, viam-se a competir com os seus mfenores em termos sociais, tanto a pequena nobreza como os homens das cidades, pelo controlo efectivo do poder num Estado mo­nárquico. Os magnatas orientais, por outro lado, pouco temiam a con­corrência .. Sendo os .reis e as cidades demasiado fracos para contestar a sua autondade, dommavam uma sociedade esmagadoramente agrária, na qual a sua pre.dominância económica enquanto grandes proprietários de terras era apmada por direitos jurídicos exclusivos sobre os servos dos seus domínios.

. A situação não era, evidentemente, uniforme em toda a Europa onental; nem sequer as suas causas eram as mesmas em áreas de desen­volv~m~nto social semelhante. O carácter dos prí~cipes individuais, a pro~m~1dade da Turquia, a distância das principais vias marítimas, ou a Vltahdade de algu~as _cidades (como ac.~ntecia na Transilvânia), pro­vocavam grandes vanaçoes entre uma regmo e a seguinte. A Moscóvia em particular, obedecia a leis próprias. Aqui, e ao contrário do qu~

1 V1elr iEI!Júon ob. cit. ,,

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acontecia noutras regwes da Europa oriental, não se punha a possibi­lidade de uma exportação em grande escala para o ocidente. Os con­tactos comerciais, tanto através de Arcângel como do Báltico, eram fortemente limitados, e as exportações russas incluíam quantidades muito reduzidas de cereais. Mas, apesar disso, várias características da vida nos países limítrofes da Europa repetiam-se no solo russo. A ex­pansão territorial da Moscóvia no século dezasseis, juntamente com o aumento natural da sua população, tinham criado um grande mercado interno de cereais. Tratava-se essencialmente de um mercado urbano, pois as cidades moscovitas, ao contrário do que acontecia nas suas congéneres orientais, aumentaram em número e importância ao longo do século. Muitos proprietários de terras responderam às novas oportu­nidades económicas do mesmo modo que os da Alemanha ou da Poló­nia - cultivando uma maior extensão de terras e exigindo maiores serviços aos seus camponeses. Simultaneamente, o poder do Estado aumentava na Moscóvia, um pouco ao contrário do que acontecia na Europa oriental. Em 1556, Ivã IV ordenou a todos os proprietários de terras que servissem o Estado; e a nova nobreza ao serviço do Estado, possuindo pequenas propriedades atribuídas pelo czar, dependia para a sua sobrevivência do controlo do trabalho camponês. Isto teve como resultado uma série de decretos cada vez mais restritivos, que definiti­vamente instalaram a servidão na Rússia em finais do século.

Esta sociedade baseada na servidão manteve-se porém, na Mos­cóvia, como um mundo à parte, ameaçador para os seus vizinhos devido ao seu crescente poder militar, mas ainda economicamente estranha ao mundo europeu. Por outro lado, a Polónia, a Silésia, o Brandenburgo e a Prússia eram inexoravelmente arrastados para a órbita da vida da Europa ocidental; e, ironicamente, foi este processo de maior associação ao ocidente que se tornou o principal responsável pela divisão da Eu­ropa em duas metades distintas. A oeste do Elba surgia uma sociedade cada vez mais variada e complexa; a leste, uma sociedade consistindo essencialmente em senhores da terra e servos. E quanto mais se apro­ximavam, tanto mais se afastavam entre si. A Europa oriental estava, com efeito, a cair num tipo de relação colonial com o ocidente, com grande parte das consequências que este tipo de relação implica. Os Junkers prussianos e os nobres polacos responderam naturalmente às suas novas oportunidades em termos de mercado através da exploração intensiva das suas propriedades, com vista a fornecer ao ocidente ali­mentos e matérias-primas. Em troca, adquiriam as manufacturas e artigos de luxo produzidos pelo ocidente. A importação destas merca­dorias a preços vantajosos tendia a prejudicar a produção doméstica e a provocar uma estagnação do desenvolvimento industrial das cidades do leste europeu. As regiões orientais viram-se consequentemente sujeitas a um longo período de atraso económico e de estagnação social, numa época em que algumas partes da Europa ocidental começavam a apre­sentar os primeiros indícios da sua capacidade de mudança.

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Porém, as perdas do oriente foram os lucros do ocidente. A Eu-ropa ocidental podia obter no leste não só matérias-primas essenciais - madeira, fibras, metais- como ainda a quantidade de cL:reais que ·m algumas áreas representava a margem de segurança entre a sobre­

vivência e a fome de uma população urbana em rápido desenvolvimento. Entre 1562 e 1569 nada menos de 23 % do cereal consumido na llolanda era importado do Báltico. Se bem que as necessidades da I r~landa fossem excepcionais, era extremamente importante a Europa octdental no seu todo poder recorrer em momentos de emergência ao sL:u celeiro a leste do Elba. Mas a crescente interdependência económica da Europa oriental e ocidental foi benéfica para o ocidente ainda de outros pontos de vista. Estimulou o crescimento industrial, na medida em que proporcionava um escoamento valioso para as manufacturas ocidentais, e deu um poderoso impulso ao transporte marítimo e ao comércio. A madeira e os cereais polacos e alemães orientais, trans­portados por navios a partir de Danzigue e de outros portos no Báltico, erarr: conduzidos através do Estreito dinarmaquês até Antuérpia ou, a pat1Lr dos anos 50, cada vez mais até Amesterdão. Daqui eram muitas vezes reexportados para outras regiões do continente, em particular para o sul. Os principais transportadores eram as empresas de navega­ção da Holanda, que tinham adquirido, através do Tratado de Speyer de 1544, um estatuto privilegiado no pagamento de direitos e porta­gens no Estreito da Dinamarca. Os mercadores dos Países Baixos utili­zaram ao máximo esta vantagem: em 3 000 navios que passaram pelo Estreito entre 1560 e 1569, 75 % eram holandeses.

A crescente importância do comércio no Báltico e das rotas marí­timas norte-sul ajudou a deslocar os centros de gravidade económica da Europa à medida que o século progredia. O mundo de Carlos V fora dominado pelo eixo financeiro e comercial de Antuérpia e do sul da Alemanha mas, por volta dos anos 50, a importância deste eixo come­çava a diminuir. As minas de prata do centro da Europa tinham sido f~talmente atingidas pela concorrência da prata americana e a prospe­ndade do sul da Alemanha foi ainda mais reduzida pela irresponsabili­dade financeira do imperador, que trouxe o desastre não apenas ao mercado de moeda de Antuérpia como também aos banqueiros de Augs­burgo. O declínio da economia continental do sul da Alemanha no entanto, foi acompanhado pelo desenvolvimento da economia marÍtima do norte da Alemanha, à medida que os portos do norte - Hamburgo, Bremen, Emden, Riga e Reval - beneficiavam da crescente vitalidade do comércio no Báltico.

Poderia parecer que a prosperidade marítima do norte permitiria a Antuérpia conservar a sua orgulhosa posição como capital comercial da Europa. A concorrência, no entanto, acabou por ser demasiado forte. No início dos anos 60, uma série de disputas comerciais entre a Ingla­terra e a Holanda conduziu a um desvio do comércio de pano inglês de Antuérpia para Emden e em seguida para Hamburgo e outros portos

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do norte da Alemanha. Tornou-se claro, simultaneamente, que Bremen e Hamburgo se encontravam melhor colocados que Antuérpia para o comércio com o interior da Alemanha e para o comércio transcontinen­tal com a península italiana, enquanto o êxito de Amesterdão no con­trolo do trânsito leste-oeste de cereais crescia. Mas o declínio de An­tuérpia foi gradual, e não repentino. Se não conseguiu manter a sua posição como principal entreposto europeu do cereal do Báltico, conse­guiu no entanto participar ainda no próspero comércio do Báltico como principal centro exportador das mercadorias do sul da Europa e das manufacturas locais em direcção às regiões do nordeste europeu. Dado o vigor das suas exportações industriais, por exemplo do linho flamengo, pareceu durante um momento, cerca de 1559, que a cidade poderia vencer a tempestade. A sua população aumentou para 90 000 habitantes durante os anos 60 e a indústria de construção civil registou um grande desenvolvimento. Mas esta renovação era ilusória, e o avanço do início dos anos 60 não pôde ser mantido. Num momento em que a sua pro­eminência comercial era ameaçada pela sinistra combinação de con­trariedades económicas e políticas, descobriu que perdera igualmente a sua posição financeira privilegiada. De facto, Antuérpia veio a ser a primeira e espectacular baixa provocada pelo mais importante de todos os desenvolvimentos económicos de finais do século dezasseis - a in­corporação do Novo Mundo americano na vida europeia.

2. O Atlântico e o Mediterrâneo

Se bem que o México caísse nas mãos dos espanhóis nos anos 20 e o Peru nos anos 30, só depois de 1550 se pode dizer que come­çou a exploração eficaz dos recursos do Novo Mundo. Era impossível evitar um certo atraso, pois a descoberta e a conquista, por muito he­róicas que fossem, não eram suficientes em si mesmas. Os territórios recentemente descobertos tinham de ser subjugados, consolidados e, pelo menos, nominalmente cristianizados antes de os espanhóis e os portu­gueses poderem criar do outro lado do Atlântico sociedades viáveis à imagem de si mesmas. Até isso ser feito, a América seria apenas um território limítrofe da Europa, uma fronteira avançada que alargava cada vez mais, devido à existência de grupos guerreiros rivais. Mas, cerca de 1550, o processo de instalação e consolidação estava já bem avan­çado. Na esteira dos soldados tinham vindo os missionários e os administradores, com a missão de organizar, converter e governar; e nos meados do século a Nova Espanha e o Peru estavam equipados1 com todo o aparelho uo governo espanhol, sob a forma de vice-reis, audien­cias ou tribunais judiciais, e toda essa horda de funcionários convertida no apêndice indispensável do Estado do século dezasseis. A época do con­quistador terminara, tendo-se iniciado a época menos espectacular do burocrata.

Os funcionários que governava~ as «ín?ias», co~o _os espanh~is insistiam em designar as suas possessoes amencanas, nao tmham qums­qucr dúvidas sobre as razões ou a justificação da pres~nça espanhola no outro lado do, Atlântico. O Novo Mundo fora conftado por Deus ao cuidado especial dos Reis de Espanha, a fim ~e que os gentios ~ud~­sem ser levados a uma compreensão da verdade1ra Fé; e esta obngaçao era acompanhada de uma recompensa, _sob a forma ?o ouro_ c da prata q uc estas terras dadas por Deus produzmm em quantldades tao cOI;npen­sadoras. Dado que os desígnios da Providência eram tão ineqmvoca­mcnte claros não se punha a questão de a Espanha partilhar os seus deveres, ou ~s suas recompensas, com qualquer outra nação. O Novo Mundo manteve-se portanto, pelo menos aos olhos castelhanos, pertença ·xclusiva da Coroa de Castela, apesar de outros Estados europeus ten­tarem contestar a validade das bulas papais de doação de 1493. Mas, de facto verificou-se uma discrepância considerável, e cada vez maior, entre a teoria e a prática. Desde os anos 20 que nas Caraíbas se infil­lravam com crescente sucesso comerciantes e corsários estrangeiros, e os piratas franceses conseguiram pôr fim, para sua satisfação, à guerra entre a França e a Espanha através da captura e do incêndio de Carta­gcna, em 1559. O Tratado de Cateau-Cambrésis foi significativamente omisso quanto à questão da América, pois a cláusula da trégua de Vau­cclles de 1556, através da qual a França renunciava explicitamente às suas pretensões de comércio com as índas, foi eliminada do acordo final ~e paz - em parte, sem dúvida, devido a ter-se verifi~ado que _n_ão podia ser posta em vigor e em parte porque os conselhe1r?s de Fil1pe pare­cem ter sentido que qualquer referência específica às Indias num acordo internacional poderia levar a pôr em questão os direitos absolutos dos espanhóis. Em vez de uma cláusula negocia?a, por~anto, as_ p~tências apenas concordaram em discordar quanto a questao das Ind1as em 1559. Enquanto a Espanha insistia nos seus direitos absolutos, funda­mentando-se na primazia da descoberta e na doação papal, as suas rivais insistiam, não menos firmemente, no princípio da liberdade dos mares (um princípio pelo qual algumas delas mostravam menos e~tu­siasmo noutras circunstâncias). Achou-se uma solução de comprormsso na aceitação tácita da ideia das «Linhas de Demarcação», fixadas a ocidente das Ilhas Canárias e para sul do Trópico de Câncer pelo tra­tado de Tordesilhas entre a Espanha e Portugal, em 1494. A sul e a oeste destas Linhas as potências europeias não se actuariam segundo as mesmas normas de conduta válidas para as suas relações na Europa. Se os franceses escolhessem entrar em águas americanas, a Espanha poderia igualmente tratar este abuso da maneira que melhor enten­desse. Os resultados do compromisso eram previsíveis. O tratado de Cateau-Cambrésis pode ter trazido a paz à Europa ocidental, mas «não houve paz para além da Linha» nos anos que se seguiram.

Se bem que as intrusões estrangeiras nas Caraíbas fossem uma fonte de constantes e crescentes preocupações para a Coroa espanhola,

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eram demasiado fracas e esporádicas em meados do século para impe­dir o desenvolvimento desse grande sistema comercial hispano-ame­ricano em que assentava em última análise o poder de Filipe 11. Este sistema decorria, logicamente, das necessidades mútuas da Espanha e das suas colónias. A população colonial do México e do Peru, em franca expansão- talvez cerca de 118 000 habitantes em 1570-, dependia fortemente da mãe pátria para o abastecimento dos alimentos, do ves­tuário e dos artigos de luxo que lhe permitiriam manter uma vida idêntica à que 03 bem-nascidos e os ricos possuíam no mundo que tinham deixado para trás. A Espanha, por outro lado, necessitava da produção do Novo Mundo - as pérolas, os corantes e, principalmente, o ouro e a prata, que lhe permitiriam satisfazer os seus pesados compromissos e prosse­guir as suas guerras no estrangeiro. Nos primeiros anos do século, as remessas de ouro e prata, se bem que constituíssem uma nova e des­lumbrante fonte de rendimentos para um Carlos V necessitado, tinham flutuado em função da descoberta de filões fáceis de explorar e de tesouros escondidos. Mas estas fontes de rendimento estavam a dimi­nuir, e só foi possível assegurar um fornecimento volumoso e contínuo de metais preciosos quando foram descobertas as minas de prata de Potosí, (na actual Bolívia), em 1545, e as de Zacatecas, no México, em 1548. Estas des.cobertas dos anos 40, no entanto, não asseguraram por si só uma expansão rápida e regular das remessas de prata para Espa­nha. Era necessário explorar as minas, e a sua exploração eficaz em larga escala só se tornou possível cerca de 1560, com a introdução de um novo método de extracção da prata a partir do minério usando um composto de mercúrio. Mesmo então, foi necessário tempo para instalar o novo sistema. Na primeira metade do reinado de Filipe 11, como sob Carlos V, a contribuição da América para o tesouro régio, se bem que imensamente valiosa porque vinha sob a forma de prata, era ainda relativamente pequena quando comparada a outras fontes de rendimento. Foi apenas nos anos 80 que o rio de prata se tornou cau­daloso, permitindo a Filipe gastar dinheiro com um à-vontade que ante­riormente teria sido impensável 2• Mas já em 1560 a Espanha e as suas colónias se tinham tornado mutuamente interdependentes, com o estabelecimento de facto de uma verdadeira economia hispano-atlântica.

No coração desta economia encontrava-se o porto de Sevilha, que dispunha de direitos de monopólio sobre o comércio americano da Espa­nha. O monopólio, vigorosamente apoiado por um dos mais poderosos grupos de pressão da Europa do século dezasseis - o Consulado dos Mercadores de Sevilha - , tinha a experiência e a lógica do seu lado. Sevilha era de todos os portos espanhóis o melhor colocado e equipado para o comércio com as índias, e as cargas de metais preciosos neces­sitavam de cuidadosa vigilância durante a viagem e de um registo oficial

2 iVru- adlilamJbe, crupWtul~ 9.

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num umco porto quando os navios voltavam. A capacidade de Sevilha para satisfazer estas necessidades do comércio americano trouxe-lhe um estatuto privilegiado, uma prosperidade por vezes febril, c um rápido aumento da população, que a transformou numa das maiores cidades do seu tempo, com mais de 100 000 habitantes nas últimas décadas do século. A vasta e imponente catedral, a Câmara do Comércio (a Casa de la Contratación), onde as cargas eram discriminadas e registadas e se preparava o envio das frotas, a Lonja ou palácio do Consulado dos Mercadores - são testemunhos da riqueza e do prestígio de uma das cidades mais espanholas e, no entanto, mais internacionais, cujas ruas regurgitavam de mercadores, marinheiros e trabalhadores portuários de todas as nacionalidades: flamengos, alemães, portugueses, genovescs, negros e mouros. A vida destes tal como a da cidade, decorria em torno da partida e da chegada das frotas que ligavam o Velho Mundo ao Novo por um ténue rio de prata.

Foi nos anos 60 que o sistema de navegação entre a Espanha e a América adquiriu a sua forma definitiva. O mês de Maio via a partida de San Lúcar, o porto de Sevilha, da flota com destino a Vera Cruz, no México. Em Agosto era a vez dos galeones, uma segunda frota, pro­vavelmente constituída também por sessenta ou setenta navios, com des­tino a Nombre de Dios (Portobello), no istmo do ·Panamá. Depois de

,_...descarregar as suas cargas ao cabo de uma travessia transatlântica de cinco ou seis semanas, os galeones retirar-se-iam durante os meses de Inverno para o porto protegido de Cartagena, no continente sul­-americano. Depois, na primavera, voltariam ao istmo para reconhecer as cargas de prata laboriosamente trazidas por terra e mar de Potosí e do Peru, viajando novamente para Havana e encontrando-se a, com a flota mexicana, que regressava. As frotas combinadas, viajando num comboio bem guardado, tentariam estar em Sevilha o mais tardar no princípio do Outono.

O elaborado mecanismo do comércio com as índias, se bem que tivesse uma importância imediata e esmagadora para os colonos espa­nhóis na América e para os mercadores de Sevilha, mostrou não ser menos importante para a vida económica e o bem-estar do conjunto da Europa. Ainda que o volume do comércio entre o Báltico e a Europa ocidental e do sul fosse consideravelmente superior ao do comércio transatlântico, certas características do tráfego com as índias davam-lhe uma posição única na vida europeia. Em particular, este trazia à Europa um fornecimento regular da prata de que os europeus necessitavam desesperadamente para as suas próprias transacções comerciais e para inverterem o balanço comercial adverso com o Extremo-Oriente. Enchia os cofres dos reis de Espanha, que a utilizavam para saldar os seus compromissos com os banqueiros, para pagar aos soldados que se encontravam no estrangeiro, untar as mãos dos clientes de outros países e adquirir no estrangeiro os fornecimentos militares ou navais que a própria península não podia proporcionar. A prata servia ainda para

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pagar aos comerciantes as mercadorias que enviavam para o Novo Mundo, e permitia-lhes pagar por sua vez as suas dívidas aos fabri­cantes, tanto espanhóis como estrangeiros, dos artigos que lhes tinham comprado. Assim, espalhava-se por todo o continente uma vasta rede de obrigações mútuas a partir de um ponto de partida, Sevilha; e a che­gada da frota provocava um repentino aumento de actividade nas feiras de Medina del Campo, nos escritórios comerciais de Génova, nas bolsas internacionais em Lião ou Antuérpia, pois equivalia a uma nova en­trada de prata que pennitia lubrificar um sistema económico provavel­mente votado à estagnação na ausência de fornecimentos regulares de bulhão fresco.

A Europa ficou pmianto, forte e perigosamente, dependente do funcionamento regular do sistema comercial transatlântico e da chegada pontual da frota a Sevilha. Um grande atraso no regresso dos galeões podia provocar uma série de falências entre os mercadores sevi­lhanos, o que, por sua vez, poderia ter repercussões internacionais à medida que as ondas de choque avançassem pela Espanha e por toda a Europa ocidental. Por outro lado, a preparação das frotas das índias adquiriu um ritmo próprio, pois a única maneira de obter mais prata da América consistia em vender mais mercadorias aos seus habitantes; mas esta maior quantidade de mercadorias exigia mais navios, e estes um maior investimento nas frotas das índias, o que, por sua vez, signifi­cava uma premente necessidade de lucros ainda mais elevados. Mas existia um limite para a quantidade de mercadorias europeias que as índias podiam absorver num dado momento, pelo que as mercadorias destinadas à exportação facilmente se acumulavam nos cais de Sevilha, enquanto os navios que as iriam transportar esperavam nas índias que houvesse quantidades suficientes de bulhão e carga para justificar o seu regresso a Espanha. Quando isso acontecia, todo este delicado sis­tema era perturbado, e uma Europa esfomeada de prata espreitava uma América farta de mercadorias, ambas separadas por um oceano que então servia mais para dividir do que para unir dois mundos interde­pendentes 3•

A extensão em que a Europa se viu afectada pelas flutuações do comércio americano é sugerida pela grande depressão dos anos 50. Muitos dos problemas desta época- que viu a bancarrota das Coroas francesa e espanhola - foram o resultado de condições especificamente europeias, em particular o custo e a devastação da guerra entre os

3 o funcionrumenJto deste Sli\Sitem.a lti'Ian:satlânrtvco foi dJe:sc:rtto com lffilellliJClUilioso IJ]001ffilem/Oil' IPIOir iH. 'e IP. Oh!amu, Séville et 1! Atlantique (;8 1\'0<Lumes, :Paris .1955 ). Se bem que Chaunu dies,crwa rus fbutuações do comé•l'cdo ame­vi=b e as surus e10nse.quências com um II'i.gor esóa,tístLco que tende a suscdbar ·a,lgum oept-icismo entre os s1eus leitores, as 8U81S descobertas têm .gro.ndle interesse e importâJnc:i.a pal'a a c:omp:reensão da ecol!llol!lllia europeia do s:éC'Uilo dJeZJaJSISeds.

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llabsburgo e os Valois. Mas coincidiram com uma nítida recessão do comércio transatlântico. Esta foi parcialmente causada p ' b actividade dos piratas franceses nas Caraíbas e ao longo das rotas atlânticas, mas também pelo inevitável processo de ajustamento no próprio N vo Mundo, num momento em que a economia de depredação das primeiras d6cadas do século dava lugar a um sistema económico novo c mais sólido baseado na exploração dos recursos agrícolas e minerais. Esta transfor­mação necessitava de algum tempo, e provocou uma quebra de dez ou doze anos no comércio transatlântico, reflectida numa diminuição notó­ria do valor do frete e do número de navios que cruzaram o Atlântico entre 1550 e 1562. Agora que a prata era momentaneamente menos fácil de obter na América e que a actividade dos piratas franceses punha em perigo a segurança nos mares, os mercadores de Sevilha reagiram nervosamente, recusando-se a transportar as cargas; e durante vinte c dois meses, entre 1554 e 1556, nem uma frota partiu de San Lucar para os portos do Novo Mundo. Por sua vez, as remessas de prata mingua­ram, a confiança dos banqueiros e financeiros cedeu e tornou-se difícil c finalmente impossível, a Carlos V obter mais crédito para uma guerra em que já tinha gasto demasiado.

A partir de 1559, no entanto, a confiança ressurgiu. A restau­ração da paz e a rápida expansão da produção de ·prata na América, trazendo consigo um renovamento da procura de mercadorias europeias e uma capacidade cada vez maior de as pagar, fez mais do que qual­quer outra coisa para reanimar o comércio americano de Sevilha. Cerca de 1562 iniciou-se um movimento ascendente do volume e do valor do transporte marítimo entre a Espanha e a América - movimento que se manteve, com algumas interrupções e flutuações, praticamente até ao fim do século dezasseis. O período entre os anos 60 e a década de 90 representou, portanto, a primeira grande era do mundo atlântico, uma era de expansão comercial entre a Espanha e as suas possessões coloniais que trouxe a prosperidade e uma crescente actividade eco­nómica não só à própria Sevilha como também a regiões mais afastadas.

Inevitavelmente, este crescimento da economia atlântica provo­cou novas alterações na vida europeia. Em particular, ajudou o conti­nente a inclinar-se para a sua periferia, afastando-se de uma Europa central cujas minas de prata já não podiam competir com as de Zaca­tecas e Potosí, e afastando-se também de uma economia baseada na terra para outra baseada no mar, em benefício dos portos ingleses e franceses no Atlântico e no Canal da Mancha. Sevilha substituíra Antuérpia como centro do mundo ocidental, mas era ela própria apenas um elo, se bem que crucial, numa cadeia intrincada. Foi isso que permi­tiu a regiões que de outro modo· teriam sofrido com a alteração dos padrões comerciais participarem de facto na economia atlântica, mesmo que em segunda mão.

A primeira vista, era o Mediterrâneo que mais perdia. Aparente­mente ultrapassado pela abertura de novas rotas comerciais, primeira-

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mente para a As1a e depois para o Novo Mundo, dificilmente podia deixar de perder a sua primazia, em favor da nova Europa atlântica. Mas, pelo menos no século dezasseis, a sua sorte foi muito menos negra do que seria talvez de esperar. Durante algum tempo pareceu que a pri­meira vítima seria Veneza. Nas primeiras décadas do século dezassei3, esta começava a assemelhar-se menos à Rainha do Adriático do que a uma duquesa viúva e decadente rodeada de um círculo cada vez menor de admiradores e amigos. Mas a velha senhora não perdera ainda a sua capacidade de surpreender. Num momento em que outras regiões da Europa dedicavam cada vez mais a sua atenção e recursos ao comércio marítimo, Veneza preferiu actuar exactamente no sentido oposto. A frota veneziana começou a declinar nos anos que se seguiram a 1560 e a sua actividade marítima desapareceu das águas do norte, e até das do Mediterrâneo ocidental, para se confinar aos portos do Adriático e do Levante. Porém, esta retirada marítima coincidiu com uma forte deslo­cação do capital veneziano da navegação para o interior continental. Foi usado aqui não para o comércio, mas para a aquisição de terras e a construção de uma indústria têxtil em grande escala, capaz de com­petir com êxito com as indústrias têxteis do norte de Itália e da Ho­landa, que tinham sofrido com as guerras na Europa. Esta política, pelo menos a curto prazo, deu óptimos resultados. Durante o resto do século, com apenas breves interrupções, a produção veneziana de tecidos finos foi elevada, e a cidade que possuía cerca de 170 000 habitantes antes da peste de 1576 ostentava um esplendor opulento que levava a crer no regresso miraculoso dos seus velhos tempos de glória.

Enquanto Veneza virava claramente as costas ao Atlântico, se bem que guardasse avidamente toda a prata americana que lhe apa­recia, a sua rival, Génova, escolheu uma via diferente e mais em­preendedora. Os mercadores genoveses tinham há muito compreendido as perspectivas de grandes lucros do ocidente; já em finais da Idade Média tinham derrotado os seus rivais catalães na luta pelo controlo dos mercados do Mediterrâneo ocidental, entrincheirando-se nas princi­pais cidades comerciais de Castela e do Sul de Espanha. Era natural que aproveitassem a oportunidade da descoberta e conquista da América para alargar as suas actividades ao outro lado do Atlântico e pene­trarem no comércio de Sevilha com a América; e o acordo de 1528 através do qual Andrea Doria colocou as galeras genovesas ao serviço de Carlos V representou um reconhecimento tácito por parte de Génova de onde se encontrava o seu futuro . Daí em diante os genoveses seriam os leais, mas também indispensáveis, aliados de Espanha, oferecendo à Coroa os seus serviços, tanto navais como financeiros, e esperando em troca um estatuto preferencial que facilitasse a sua exploração de Espanha e das suas possessões.

Não ficaram desiludidos. Os banqueiros genoveses instalaram-se juntamente com os Fugger como credores de Carlos V e, à medida que a influência destes últimos declinava, após a bancarrota régia de 1557,

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aumentava a dos genoveses. Os nomes de Justiniano, Spinola, Negro e Ooria surgem com crescente frequência nos asientos de i'ilipc n-os t.:ontratos formais assinados pelo rei e pelos financeiros referentes a empréstimos reembolsáveis pelo rei em locais específicos c numa data definida sob condições igualmente específicas e em geral on ·rosas. Estes h~mens recebiam o pagamento devido pelos seus serviços sob a forma de monopólios , concessões especiais e uma série de _privilégios que, gradualmente, lhes permitiram obter um controlo da v1da ccon6-mica da península hispânica. Com efeito, nos últimos anos. d? século tornou-se possível falar de sistema «hispano-genovês», constltumdo um dos elementos dominantes da economia europeia. Este sistema contribuía para assegurar que o mundo mediterrânico não fosse completamente excluído dos benefícios do comércio transatlântico, pois parte da prata que passava de Sevilha para Génova seguia depois para Ven_eza eA p~ra os portos do Levante. Se o d~senvolvim~nto de_ uma ~cono~ma atlantt~a trouxe primeiramente uma VIda nova as franJ~S oc1de!lta_1s do c_ontl­nente a sua prosperidade nos anos de expansao de fma1s do seculo ctezas~eis foi tal que podia até espalhar-se liberal e indiscriminadamente por toda a Europa.

3. A prata e os preços

Se bem que a expansão comercial entr.e a Europ~ ~ a Améri~a se reflectisse num crescimento em todos os tlpos de act1v1dade econo­mica- construção naval, produção de têxteis, artigos de metal, vinho, cereais e óleo para um mercado americano cada vez mais extenso - , a sua manifestação mais espectacular foi, obviamente, a prata extraída das minas americanas. A segunda metade do século dezasseis foi antes do mais a idade da prata na Europa, durante a qual o metal branco inundava o continente e o ouro se tornava cada vez mais raro. As quantidades de prata que entraram na ~uropa foram c~nsi~eráveis, como sugerem os números das chegadas reg1stadas em Sev1lha :

4 Números -cOOJ:ve~tidos em dmC<aJOOs esp~Mlhóis a paJrllir da tabela for­·re~da lll!a plig. 34 àJe IE!!lii"l J . HiaJin!hllt:xm, American Treasure anà the Price Revolut.ion in Spain, CalmibriàJg~e, Mruss., 1004

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Período Para a Coroa espanhola

(em ducados espanhóis)

1556- 1560 1 882 195 1561- 1565 2 183 440 1566- 1570 4 541 692 1571- 1575 3 958 393 1576- 1580 7 979 614 1581- 1585 9 060 725 1586- 1590 9 651 855 1591- 1595 12 028 018 1596- 1600 13 169 182

Para indivíduos privados

7 716 604 11 265 603 12 427 767 10 329 538 12 722 715 26 188 810 18 947 302 30 193 817 28 145 019

Total

9 598 798 13 449 043 16 969 459 14 287 931 20 702 329 35 249 534 28 599 157 42 221 835 41 314 201

Esta prata de modo nenhum se manteve permanentemente em mãos europeias, go_is parte dela dirigiu-se para leste, pagando os pro­dutos de luxo asmtrcos. Por outro lado, nem toda a prata que ficou na Europa foi automaticamente convertida em moeda, enchendo de capital os tesouros exauridos. O século dezasseis foi, de facto, o século· de Ben­ven~~o Cellini, e. gran~es quantidades de prata e ouro passaram às mãos habJh~o.sas ~os _JOalheiros e artífices da prata, cuja produção de cálices e crucifrx?s mtnncadamente trabalhados, de candelabros e saleiros, aju­dou a estlillular, mas não a satisfazer, o apetite insaciável da elite euro­peia pelos objectos mais espectaculares e extravagantes de um modo de vida civilizado.

. O crescente gosto pelo luxo ajudou sem dúvida a manter a prata relativamente rara em termos de valor circulante, tanto mais que nunca se encontrava profusamente distribuída em toda a Europa. A massa da população rural europeia raramente ou nunca punha os olhos numa n:oeda de our~ ou prata, pois as transacções ao nível da aldeia, quando nao eram reahzadas usando o crédito e a troca de géneros, utilizavam pequenas moedas de cobre e de liga, cujo número aumentou rapida­mente, com uma consequente perda de valor. A prata que circulava sob a forma de moedas concentrava-se em princípio nas cidades maiores sendo usada em particular para os negócios do Estado e para a com~ pr~ ~e produtos de luxo ao estrangeiro. Existia, porém, em quantidades suficientes para sugerir, a um pequeno mas crescente número de obser­vadores, ter sido pelo menos uma das causas do fenómeno mais des­concertante da época- a subida do custo de vida.

. Em m~ados do s~culo dezasseis, o elevado nível de preços fora obJecto de vrvas e ansiosas discussões em muitas partes da Europa. O debate _era partic~larmente in~enso em Espanha, onde os preços nos anos 50 tmham subido para mars do dobro relativamente ao início do século. Não só o elevado custo de vida era um motivo constante de

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queixa nas Cortes de Castela, como ainda se tornava preocupante o I a c to de os artigos produzidos no país se terem tornado relativamente mais caros que produtos semelhantes importados do estrangeiro. Os círculos universitários de Salamanca tinham já começado, em meados do século, a tentar estabelecer uma conexão entre o descrescente va lor de troca da moeda espanhola e a sua relativa abundância na península; e num tratado publicado em 1556, um do3 professores mais distintos de Salamanca Martin Azpilcueta Navarro, relacionou direc­tnmcnte o nível de preços em Espanha com a prata americana: «A ex­periência ensina-nos que em França, onde a moeda é mais escassa que l'm Espanha, o pão, o vinho, as roupas e o trabalho valem muito menos. E mesmo em Espanha, em tempos em que o dinheiro foi menos abundante, as mercadorias e o trabalho vendáveis eram-no por preços muito inferiores aos praticados depois da descoberta das índias, que inundou o país de ouro e prata» 5

Estes primeiros vislumbres do quantitativo tiveram um repre­sentante mais famoso em 1568, quando Jean Bodin publicou a sua f{ esponse à M. de Malestroit, sobre as causas do aumento dos preços em França. As ideias de Bodin começaram a correr em Inglaterra cerca de 1581 o mais tardar, e a partir de finais do século dezasseis a relação entre o bulhão americano e a inflação europeia transformou-se num lugar comum. Este argumento só adquiriu, porém, um rigor esta­tístico em 1934, com a publicação pelo professor Earl J. Hamilton de American Treasure and the Price Revolution in Spain, que sugeria uma correlação, demasiado estreita para constituir uma simples coincidência, entre as importações de prata registadas em Sevilha e o movimento dos preços espanhóis.

Nem Azpilcueta nem Bodin, no entanto, afirmaram que a prata americana era a única causa do aumento dos preços, opinião que deparariam se alguns obstáculos. Em Itália, por exemplo, o maior aumento de preços de todo o século ocorreu entre 1552 e 1560, num momento em que a prata americana, aparentemente, entrava na penín­sula numa quantidade demasiado pequena para produzir qualquer efeito cspectacular nos preços. Nos anos que se seguiram a 1570, quando grandes quantidades de prata passavam de Espanha para Itália, os preços neste país baixaram 6• Seria portanto perfeitamente possível explicar o aumento de preços em Itália nos anos 50 sem ter em conta

s Ver Ma,rjorü,e Gri·ce-Hutc'hin:son, The School of Balamamca R ea­dings in Spanish Monetary Theory, 1541,-1605, Oxfocd, '19~2, iP!P· ' !H-9:6.

6 C. M . Cippo~a. «La .pré.bemidoo réviOlutiOIIl dies P'rix», Annales (Parrls), lJ955, rpp. 5lJ3~·51lJ6 . Pode :eDJCOI!l.rtr.a;r-se :urrn;a. <llilscussãio bruSibamlte úrt:d[ dle to.do o ~olbileuna àlo aUllilletn'tlo de preços em fnnçálo dia qu:amltitatirv11LSill110 ~ Ingrid HiarrnmaJrsbrõm, «The pri<()e revoilutiolll. o:f fue .sixlt~eln.<t:h cemrtJwry» The Scan­dinaviam Economk History Review, vol. V, •19.517, pp. U'1J8J]M. '

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a prata americana, apenas em termos da restauração da paz, da recupe­ração da população e do desenvolvimento da construção depois das devastações produzidas pela guerra.

Poderiam ser fornecidas explicações comparáveis para outras re­giões da Europa. Uma das características mais notáveis da grande inflação do século dezasseis foi ·a tendência para os preços dos alimen­tos, em particular dos cereais, aumentarem mais drasticamente do que os dos produtos manufacturados. Isto seria de esperar numa sociedade cuja população aumentasse a um ritmo superior ao da capacidade da terra para a alimentar. Infelizmente, as estatísticas populacionais do século dezasseis são bastante especulativas, existindo uma natural ten­dência, na ausência de provas sólidas, para o argumento vicioso de que o crescimento populacional constitui a principal causa do aumento de preços, os quais, por sua vez, constituem uma prova evidente de que a população está a aumentar. O crescimento da população nas cidades pode ser razoavelmente bem documentado, mas é muito mais difícil descobrir provas estatísticas de confiança relativas ao movimento da população nos campos. O balanço geral das deduções e provas existen­tes, no entanto, indica um aumento substancial do total da população europeia entre meados do século quinze e o final do dezasseis - talvez de cinquenta ou sessenta milhões para cerca de noventa milhões de pessoas em 150 anos. A distribuição nacional desta população por volta de 1600 parece ter sido da seguinte ordem:

País de Gales e Inglaterra Escócia e Irlanda Holanda Escandinávia Polónia e Lituânia Alemanha França Itália Espanha e Portugal Turquia (Europa e Ásia)

4,5 milhões 2 milhões 3 milhões

1,4 milhões 8 milhões

20 milhões 16 milhões 13 milhões

9 milhões 18-30 milhões

Se bem que todos estes números representem um aumento dos números avaliados para o princípio do século, verificaram-se necessa­riamente grandes variações no ritmo e grau de crescimento populacional. Em algumas regiões, como o Languedoque, o rápido crescimento de inícios do século dezasseis abrandou cerca de 1560-70. Noutros locais, como a Catalunha, do outro lado da fronteira do Languedoque, o cres­cimento parece ter-se mantido em inícios do século dezassete. Mas quais­quer que sejam as variações locais, o século dezasseis foi predomi­nantemente um século de aumento populacional- um século em que foram preenchidos os hiatos deixados pela Peste Negra e em que

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dl! novo passou a existir um número excessivo de pessoas na Europa, demasiadas bocas para alimentar.

O crescimento da população europeia tinha inevitavelmente pro­fundas consequências sociais e económicas. Pressionou cada vez mais o abastecimento de alimentos e a terra. Aumentou ainda mais as fileiras miseráveis do maior exército da Europa- o dos famintos e desem­pregados. Provocou uma amarga competição na procura de emprego, a que as guildas e corporações responderam fechando as portas aos recém­-vindos e aumentando as suas quotas de entrada. Tornou mais nítidas afl distinções entre os privilegiados e os não-privilegiados, exacerbando ns antipatias sociais e criando frustrações. E transformou os homens l'ffi nómadas- que como mercenários pagos por chefes militares estran­geiros, quer como emigrantes à procura de novas oportunidades, ou ainda como simples vagabundos. As cidades, os exércitos, as colónias da Europa do século dezasseis são testemunhas eloquentes de uma população em movimento.

Contribuiu ainda para a descida dos salários e o aumento dos preços, se bem que seja impossível determinar a extens.ão da sua responsabilidade na grande inflação. O próprio Bodin consi­derou o aumento da população como uma das causas do aumento elos preços em França. Mas não o considerou uma· causa tão signifi­cativa como o afluxo dos metais preciosos. Este afluxo, atri­buiu-o à expansão do comércio externo, ao desenvolvimento de uma bolsa internacional em Lião e à migração sazonal dos traba-1 hadores do sul da França para Espanha, onde podiam ganhar salários superiores que gastavam ao voltar. Apontou ainda para o aumento do consumo de prestígio- os crescentes gastos dos príncipes, comer­ciantes e cidadãos ricos com as suas casas, roupas, e alimentos, assim como com todos esses produtos de luxo que recentemente se tinham tornado essenciais para os homens de posição social elevada.

Para o opositor de Bodin, Malestroit, o «mau da fita» era a depreciação da moeda. É certo que em alguns países, por exemplo a própria França, a desvalorização da moeda de prata provocou violentas perturbações dos preços; mas em Espanha, por outro lado, Filipe 11 conseguiu resistir com êxito à tentação de desvalorizar a prata e as explicações para o aumento dos preços neste país devem ser procura­das noutro lado. A própria variedade das circunstâncias, de uma esta­ção para outra, de um país para o seguinte, sugere que nenhuma expli­cação concreta está completamente certa ou errada. Em certos momen­tos, grande parte das causas referidas por Bodin ou pelos seus contem­porâneos entrou certamente em jogo, sob uma ou outra forma e em diferentes proporções, pelo que a procura de uma explicação única que cubra todas as variações locais, de Madrid a Francoforte ou à Cracó­via, se revela de facto impotente. Mas, em geral, parece razoável admi­tir que, após um longo período de preços relativamente estáveis no final da Idade Média, estes começaram a elevar-se sob o estímulo de

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uma procura crescente - uma procura provocada pelo aumento da população, pela expansão da ~ct~vidade com.ercial : pelas muda~ças nos hábitos de consumo dos pnncipes e da anstocracia. A prata, VInda primeiramente das minas da Europa centr~l,. e depois cada vez mais das índias, contribuiu parcialmen,te para ahVIar a desesperad.a escassez de capital líquido criada pelo aumento da procura. Mas, simult~n~a­mente, provocou drásticos aumentos loc~is dos pre~os quand~ foi m­jectada repentinamente em grandes quantidades em areas antenormente desprovidas de prata; e à medida que se espalhava pela Europa, era geral o seu impacto sobre a estimulaçã.o da actividade ~urante os momentos de expansão, bem como a descida dos preços abaixo de um certo nível quando o comércio afrouxava.

Em comparação com os aumentos de preç.os do século vinte, . a inflação do século dezasseis não era, de facto , mmto .gr~nde; mas ,atram a atenção dos contemporâneos, em parte por constlturr um fenomeno novo após um longo período de estabilidade dos preços. e,. e~ _parte, porque foi acompanhada d.e alteraçõ~s espectac~~ares na diStríb?Içao dos rendimentos, o que parecia dramatizar a fragdidad~ e o caracter pre­cário dos negócios humanos. Certos sectores da sociedade ~os an.os 60 encontravam-se substancialmente mais mal do que os seus avos, e tmham consciência disso. Em particular, os assalariados, quer se trate de traba­lhadores rurais quer de artífices urbanos, foram fortemente afectados. Em toda a Europa os salários coxeavam atrás dos preços, se bem que por vezes se elevassem repentinamente quando, por alguma raz~o, . a procura de trabalho se tornava intensa, como aconteceu em Antuerpm no final da década de 50. Nas grandes cidades europeias de finais do século dezasseis fervilhavam os artífices semi-especializados ou não especializados e os trabalhadores eyentu~is, c?jo empreg_o. flutu~va co~ o nível geral de prosperidade e CUJO baiXo mvel de salanos nao podia de modo algum absorver um aumento súbito do preço do pão provo­cado por uma má colheita ou pelo atraso do fornecimento de cereais ao mercado. Como as autoridades municipais vieram a aprender à sua custa, esta grande massa de cidadãos d~sempregados ou sub-emp_:e­gados cuja subsistência dependia, exclusivamente ou quase, do pao, repre~entava uma constante ameaça para . a paz pública. ~s autorid~des das cidades armazenavam grandes quantidades de cereais em celeiros municipais, preparando-se assim para uma P.ossível eme~gência súbita, sabendo que a alternativa era o motim e a pilhagem realizada por uma multidão esfomeada.

Se os assalariados eram as principais vítimas do aumento de preços no século dezasseis; os seus princ~p~is. beneficiários eram- ou, pelo menos, deveriam ter si?o - os. propnetanos de terras e os produto· res de alimentos. O campones, o agncultor e o nobre terratenente estavam aparentemente em condições de ganhar, com um am;nento abr_upto do preço dos cereais. Mas, se bem que o seculo dezasseis tenha si.do uma época de lucros agrícolas, não existia de facto qualquer garantia auto-

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rnática de que estes lucros fossem para as algibeiras daqueles que pos­suíam ou trabalhavam a terra. Normalmente, era o intermediário - o administrador, o cobrador de rendas, o rendeiro- quem mais benefi­ciava com a prosperidade agrária. O pequeno camponês via-se muitas vezes em má situação devido ao fracasso das colheitas e ao peso das dívidas. O proprietário da pequena nobreza e da aristocracia via-se preso a contratos de arrendamento fixados pelos seus antepassados em épocas em que o dinheiro valia mais.

Mesmo quando os senhores da terra conseguiam receber as suas rendas e direitos, o ganho era facilmente neutralizado pelos aumentos do custo de vida e pela sua incapacidade ou recusa de adaptar as neces­sidades ao orçamento. A pobreza da nobreza francesa devia ser princi­palmente atribuída, segundo o dirigente huguenote François de La Noue 7, aos «erros que cometeu no dispêndio da sua riqueza». Vastas somas eram esbanjadas em vestuário e construção («pois só nos últimos sessenta anos a arquitectura foi restabelecida em França»), em alimentos c mobiliário, e em todos os símbolos visíveis do seu estatuto e nível social. Agora que a educação legal ou universitária se tornava um passaporte indispensável para o desempenho de cargos junto da Coroa, os nobres encontravam-se sujeitos às pesadas despesas com a educação dos filhos. Suportavam ainda os custos do serviço militar, que o pró­prio La Noue não considerava ruinosos, partindo curiosamente do princípio de que os nobres seriam adequadamente recompensados por um rei reconhecido. Muitos indivíduos da pequena nobreza, no entanto, tanto franceses como flamengos ou castelhanos, encontraram no serviço das armas uma maneira de fugir, mesmo que temporariamente, aos pro­blemas que os preocupavam. Para estes oficiais empobrecidos, a paz não trazia qualquer benefício. Muitos senhores franceses e holandeses encontraram-se repentinamente «em seco» quando da desmobilização dos exércitos após Cateau-Cambrésis, num momento em que as pres­sões consumistas aumentavam, tal como os custos.

Os problemas económicos que se manifestaram como consequên­cia do aumento dos preços tinham-se portanto transformado, cerca de 1560, numa fonte de descontentamento potencial. Talvez se tenha iniciado uma nova fase de expansão económica com o final do conflito entre os Habsburgo e os Valois- expansão estimulada pelo cresci­mento da procura na Europa e pelo desenvolvimento do comércio da Europa ocidental com as regiões da Europa oriental e o Novo Mundo, do outro lado do Atlântico. Mas os benefícios desta expansão não foram igualmente distribuídos. Sem dúvida que era possível ganhar muito dinheiro- no comércio, na agricultura, na actividade de crédito, no governo e nas leis. Mas existia igualmente miséria, empobrecimento e

7 Discours politiques et militaires du seign-eur de la Noue, Basillei:a, 1!587, nova ed. Gerrebra, 196·7, c. vm.

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fome numa escala já vasta, e cada vez maior. O burguês endividado, o assalariado empobrecido, o pequeno camponês que procurara refúgio na cidade -todos eles foram as principais vítimas do século e os amar­gurados recrutas potenciais dos exércitos da agitação social. No clima religioso e social da década de ~0, não seria certamente muito difícil mobilizar tais exércitos, que só eram sustidos pela autoridade sempre frágil do Estado europeu.

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111

O PROBLEMA DO ESTADO

I. A monarquia

Durante a primeira metade do século dezasseis, o poder dos mo­narcas da Europa ocidental aumentara no seu conjunto. Exércitos mais fortes, maiores facilidades financeiras, uma organização administrativa mais eficaz e o exercício de um controlo mais apertado sobre a igreja nacional - todos estes factores acentuaram a autoridade pessoal dos reis e a coerência dos seus Estados. Ao mesmo tempo que os advogados apresentavam argumentos sofisticados em favor da prerrogativa régia, nenhum esforço era poupado no sentido de sublinhar a suprema majes­tade dos reis como regentes em nome de Deus e perfeitos representantes da vontade nacional. O estilo e os adornos da monarquia tenderam, assim, a caracterizar-se por um cresente formalismo, à medida que o século avançava. O título de «Majestade», que tradicionalmente era reservado ao imperador, foi adoptado por Henrique 11 de França e por Filipe 11 de Espanha, sendo usado com uma frequência cada vez maior em Inglaterra, juntamente com ou em vez de «Sua Alteza» e <<Sua Graça». Em 1548, a corte espanhola adaptou o elaborado cerimonial tradicional da Casa de Borgonha. Em França, na segunda metade do século, o <dever» e o «coucher» transformaram-se em cerimónias formais para as quais eram necessários convites especiais. E mesmo os estrangeiros habituados ao estilo dos Habsburgo e dos Valois deixaram-se deslum­brar pelo formalismo elaborado da Corte isabelina.

O desenvolvimento deste cerimonial rígido e estereotipado cons­tituiu sem dúvida um reconhecimento do maior poder e majestade dos reis do século dezasseis. E, evidentemente, era isso que visava. No entanto, estes rituais bizarros, dos .quais o mais estranho era sem dúvida a prática francesa de servir refeições cerimoniais à efígie funerária de um monarca morto até o seu sucessor ser coroado, eram talvez um sinal tanto de fraqueza como de poder régios. A pompa e o cerimonial, como Catarina de Médicis depressa compreendeu, eram um meio útil de afir­mar o que não era automaticamente aceite como dado. Conveniente­mente empregues, podiam ser usados para impor a súbditos natural-

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mente turbulentos a autoridade única e o esplendor da coroa; e, subli­nhando a majestade da instituição, poderiam ajudar a esconder a fra-queza do homem. . .

Com efeito, independentemente dos ganhos consegmdos na pn-meira parte do século, a monarqui~ ~an~inha-se pateti~amente ~ulne­rável aos caprichos da sorte: a contmgencia da personalidade, a mcer­teza da sucessão e, principalmente, a morte súbita. Em nenhuma década os homens poderiam estar mais conscientes disso do que nos a~os 50 - uma década que viu não apenas a morte acidental de Hennque li de França, como ainda uma mortalidade generalizada em todas . ~s casas reais europeias. De facto, no final da década eram raros os dm­gentes importantes tanto na Europa nórdica como central ou ocidental que já estivessem no trono no seu início.

Subidas ao trono, 1550-60

(O final do reinado é indicado entre parêntesis, a seguir ao nome do governante)

1550- Duque Alberto da Bavária (1579) Duque Cristóvão de Württemburg (1568)

1553 -Duque Augusto I da Saxónia (1586) Maria I de Inglaterra (1558) Duque Manuel Felisberto de Sabóia (1580)

1556- Imperador Fernando I (1564) Filipe li de Espanha (1598)

1557- Sebastião de Portugal (1578) 1558- Isabel I de Inglaterra (1603) 1559- Frederico li da Dinamarca (1588)

Frederico UI, Eleitor Palatino (1576) Francisco li de França (1560)

1560- Eric XIV da Suécia (1568) Carlos IX da França (1574)

Inúmeras dúvidas e incertezas rodeavam esta nova geração de príncipes que acediam ao poder. Maria e Isabel de Ing~aterra, e Maria, rainha da Escócia, eram consideradas como estando senamente em des­vantagem devido ao seu sexo. Sebastião de Portugal, Francisco li e Carlos IX de França também estavam em desvantagem, devido à sua juventude. Carlos IX tinha dez anos e meio quando sucedeu ao irmão; e só cooperando com Antoine de Bourbon, o primeiro príncipe deste sangue, conseguiu a rainha-mãe Catarina de Médicis assegurar ~s pode­res de regência que viriam a transformá-la, apesar de estra~geira e. de mulher, na figura dominante da vida franc~a durante mais de vmte anos. Sebastião de Portugal era mentalmente mstável. O mesmo aconte­cia com Eric da Suécia, se bem que neste caso a instabilidade fosse

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pardaimente redimida por niori:ientos em que se manifestavã ó gênio hereditário dos Vasa. Mesmo nos países onde o monarca mostrou ser um governante capaz, a incerteza era muitas vezes perpetuada pelas dúvidas relativas à sucessão. Até ao nascimento de Carlos Manuel em 1562, não havia herdeiro na Sabóia. Isabel de Inglaterra não viria a casar nem designaria o seu sucessor. O único filho de Filipe 11, Don Carlos, revelou uma crescente anormalidade que o tornou inapto para o trono; e após a sua morte, em 1568, Filipe teve de esperar mais dez anos até ao nascimento de um filho que sobrevivesse à infância.

Qualquer enfraquecimento momentâneo do poder régio, como o que poderia verificar-se facilmente com a ascensão de um rei que ainda não tivesse dado provas das suas capacidades, poderia desfazer em poucos meses os resultados de um trabalho laborioso de anos. O mo­na~ca d? século dezasseis era, apesar de tudo, pouco mais do que pnmus mter pares, estando a sua autoridade permanentemente sujeita ao desafio de nobres que se considerassem com maior legitimidade de acesso. ao trono. Mesmo que os seus direitos não fossem contestados, necessitava da lealdade e da boa vontade dos seus notáveis para se manter no poder. Em Inglaterra, onde a Coroa perdera terreno desde a morte de Henrique VIII, o destino de Isabel no início do seu reinado dependia da lealdade de uma mão cheia de nobres - Pembroke e Norfolk, Northumberland e Shrewsbury que, entre si, dominavam o País de Gales e a East Anglia, assim como o sempre perigoso norte. A França de Catarina de Médicis encontrava-se de facto dividida em esferas de influência controladas por três grandes redes familiares - os Bourbon no sul e no ocidente, os Guise a leste, e a união Montmorency­-Châtillon no centro do país. Dado que os Guise dispunham de um control? praticamente indisputado sobre as províncias orientais, qual­quer atitude da Coroa que contrariasse o duque de Guise e seus amigos poderia pôr em causa a autoridade régia num terço da nação. Filipe li encontrava-Ge em geral em melhor posição do que Isabel e Catarina, pois a transferência do governo central para as mãos de funcionários régios pagos progredira mais em Castela do que em Inglaterra ou França. Mas mesmo Filipe verificou ser útil recorrer ao auxílio de um nobre com grande influência local, como o duque andaluz de Medina Sidónia; e nunca pôde ignorar as pretensões das grandes famílias nobres a posições lucrativas e poderosas na Monarquia Espanhola.

Nestas circunstâncias, não é de surpreender que alguns dos novos governantes dos anos 50 ostentassem uma cautela e um conservado­rismo marcados nos seus primeiros anos. A Isabel foi-lhe recordado, certamente sem necessidade, o «perigo de proceder a alterações na religião, em particular no início do reinado de um príncipe:l) 1• En-

I ,A.rnn:rugtld lWa!rucli, 'cli<baldto piOr íPiaJtrt:clt IOOil~on. The. Etlizabe,than Puriltan Movemewt, [AOIIlidJries, llJ9i6/7', IP· 1310.

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quanto novos governantes, tanto Filipe como Isabel ou Catarina de

Médicis, apesar de se deixarem tentar em questões de política externa,

foram geralmente cuidadosos e procuraram evitar riscos desnecessários

tanto interna como externamente. No conjunto, bastava- e já era

difícil- preservar o status quo. Para Manuel Feli.!Sberto de Sabóia,

herdeiro de um Estado destruído, a situação era diferente. Neste caso,

estando as classes dirigentes desintegradas e desmoralizadas após meio

século de ocupação estrangeira, não havia alternativa para uma política

radical de construção do Estado, pessoalmente dirigida por um duque

absolutista. Mas o Piemonte era uma excepção; noutros sítios, era mais

inteligente observar e esperar. E aqueles que não o fizeram pagaram

pelo seu erro. Maria da Escócia antagonizou-se fatalmente com os

nobres e o povo devido ao seu comportamento pessoal e às suas ten­

dências matrimoniais, sendo obrigada a abdicar em 1567. Eric XIV da

Suécia, que albergava uma desconfiança crónica relativamente à alta

nobreza, alienou-a deliberadamente através do seu sistema de governo

dirigido de cima, e pagou por isso ao ser deposto em 1568. Tanto na

Escócia como na Suécia as circunstâncias eram, sem dúvida, excepcio­

nalmente difíceis. Na Escócia a Coroa enfrentava uma revolta protes­

tante bem organizada; na Suécia, o próprio êxito de Gustavo Vasa na

ênfase dada ao poder régio convidava a uma reacção assim que o seu

domínio firme terminou. Mas as circunstâncias excepcionais exigiam

qualidades excepcionais. Os nobres eram objectos perigosos, que deviam

ser tratados com cuidado. O poder dos notáveis, tanto em Inglaterra como em Espanha ou

França, decorria das suas possessões territoriais e da sua enorme

influência local, o que, por sua vez, lhes conferia uma posição de

comando no centro da vida nacional. Em vez da antiga estrutura

feudal, baseada na vassalagem e no feudo, existia agora em toda a

Europa ocidental uma rede complicada de clientelas, ligada por rela­

ções mais subtis de lealdade e interesse. Os gentis-homens rurais empo­

brecidos, desejosos de colocar um filho, procuravam um patrono aristo­

crata que lhe permitisse ir mais longe na sua carreira. «Daqui», como

François de La Noue achou neces.3ário explicar, «decorre da parte

do pai e do filho uma grande obrigação para com quem lhes faz esta

cortesia» - uma obrigação expressa pelo seu desejo de serem conhe­

cidos como suas «criaturas» e de promoverem os interesses daquele

nas comunidades onde eles próprios exerciam influência e tinham clien­

tela própria. Esta relação recíproca de obrigação e favor vigorava ao longo

de toda a escala social. O patrocínio dava indubitavelmente uma maior

coesão a sociedades fortemente divididas em estratos horizontais pelo

conceito de «estados sociais», e rigidamente baseadas nos princípios da

hierarquia e do grau social. Mas o sistema de clientelas, apesar de

desempenhar um papel crucial na articulação vertical da sociedade,

também podia em certas ocasiões ser cruelmente desmembrador. Com

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efeito, existiam potencialmente vanos sistemas de clientela num mesmo

Estado. Os Guise, os Montmorency, os Bourbon em França, os Toledo

e os Mendoza em Espanha, constituíam clãs rivais que tentavam ultra­

pa~sa~ os outros e~ influência e poder. Como cada família possuía a sua

propna rede de chentes espalhada pelo país, uma colisão na Corte ou a nível local podia ter rápidas repercussões nacionais.

Era aqui que o poder e o carácter do monarca se tornavam decis~V_?S .em rel~ção à coesão da comunidade. O rei ocupava o cume

da p1ram1de nacwnal. Era a fonte suprema de patrocínio e favor: es­

tava nas suas mãos mel~orar o estatuto de um Montmorency ou piorar

o de u~ duq_ue de ~wse. Mas tendo em conta o grande apoio, e as expect.ativas amda m~Iores, das casas nobres mais importantes, favorecer

~xcess1vame~te uma a custa da outra equivalia a provocar um desastre

a .e~cala nacwnal. O bom governante do século dezasseis foi aquele que

u.tili~ou as suas rese:vas de patrocínio e poder para arbitrar as perenes

nvahdad~s das facçoe~ em confronto, ao mesmo tempo que explorava

os seus Sistemas de chentela para satisfazer os interesses da Coroa. De facto, as clientelas aristocratas eram um facto da vida diária e sem a

- ' sua cooperaçao pouca esperança havia de fazer obedecer as ordens ré-

gi~s nas provír:cias. Não se punha, portanto, a questão de governar

acima das facçoes. A arte da governação consistia em governar através

~elas, como I~abel demonstrou em Inglaterra. «A principal caracterís­

t~ca do seu rem~do», notou_ um contemporâneo, «é ter governado prin­Cipalmente atraves das facçoes e dos grupos, que ela própria construiu,

sustentou ou er;tra9.l:leceu deixando-se aconselhar pelo seu próprio e ele­

vado parecer» . Fihpe II, confrontado com a rivalidade entre o duque

d,e ~lba e Ruy Gomes da Silva, príncipe de Eboli, utilizou a mesma

tecmca. O mesmo fez, com menor êxito, Catarina de Médicis, na corda bamba entre os Bourbon e os Guise.

Ao desempenhar este. papel de equilíbrio, os príncipes dispu­nham de vantagens substanciais se bem que muitos deles nunca tenham

apr~n?ido a explorá-las c~~pletamente. Conferir- ou retirar- o pa­trocmw era uma arma pohtica poderosa, que um mestre como Filipe II

er~ capaz de usar com consumada habilidade, como mostrou na ma­

n~Ira como tratou a casa italiana de Farnese. Os Farnei3e tinham atin­gido a sua actual posição privilegiada através do Papa Paulo III um

Farnese que lhes cedera perpetuamente os ducados de Parma e 'Pia­

cenza, ~orno feudos hereditários da sé papal. A meia-irmã de Filipe,

Marganda, casou em 1538 com o neto de Paulo III Otávio Farnese

e o filho Alexandre, futuro príncipe de Parma, nasced em 1545. Com~ príncipe italian~ potencialmente importante, era essencial prendê-lo com

segurança aos mteresses espanhóis, e uma disputa em 1557 entre os

2 OiillaK:lio por LaJWrei1Cle Stollle, The Criosis of the Aristocracy, Oxford, -1005, IP· 257.

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Farnese e Henrique li de França fomeceu uma boa ocasíão pàra ta1. Filipe apressou-:se a conferir a sua protecção à família, em troca de duas condições que iriam dominar a vida desta durante muitos anos. O jovem Alexandre deveria ser educado na Corte espanhola, onde, aliás, os seus contemporâneos falavam abertamente dele como um refém que garantia a lealdade de sua mãe, Margarida de Parma; e a instalação de uma guarnição espanhola na fortaleza de Piacenza. Mar­garida e Alexandre prestaram daí em diante serviços leais à Espanha, enquanto Filipe agitava Piacenza diante deles como um isco tentador, para a retirar de novo quando pareciam prestes a alcançá-la.

O jogo do gato e do rato praticado por Filipe em relação aos Farnese era-o igualmente, com inúmeras variantes e a inúmeros níveis, em todos os Estados europeus. Mas, apesar de indispensável como meio de controlo político, o patrocínio não era ainda suficiente. Para ser eficaz, necessitava do apoio da autoridade régia, em termos de com­petência administrativa e judicial, e da sanção última do poder militar. Na última ou nas duas últimas gerações antes de Cateau-Cambrésis, o poder monárquico ganhara autoridade, à medida que oo procedimentos burocráticos e administrativos eram ampliados e praticados por adminis­tradores com uma mentalidade profissional, muitas vezes treinados nas universidades ou na magistratura. Estes homens imprimiam o seu cunho a tudo o que faziam. O século dezasseis foi a primeira grande época do governo através de papéis. Por toda a parte se acumulavam pilhas de documentos, à medida que um número crescente de assuntos governa­mentais era registado em arquivos cuidadosamente organizados por um exército cada vez mais extenso de funcionários. O governo por papéis era coutada dos profissionais - amanuenses, secretários, funcionários públicos treinados cuja filosofia de vida nunca foi tão bem expressa como por esse modelo do funcionário público, Antoine Perrenot, car­deal Granvelle, em 1567: «Estou contente por me dar bem com o meu senhor, e não sou mais flamengo do que italiano. Sou de toda a parte, e o meu credo consiste em olhar pelos meus assuntos e dedicar-me aos do meu senhor e aos do público, na medida em que isso seja necessário e não mais» 3•

De todas as monarquias europeias, a da Espanha desenvolvera a monarquia governamental mais elaborada de meados do século. As dis­tâncias no interior da Monarquia espanhola eram tão vastas, os terri­tórios que a constituíam encontravam-se tão dispersos, que a Coroa se via obrigada a enfrentar problemas administrativos sem par em qual­quer outra parte da Europa. Numa tentativa para resolver estes pro­blemas, os Habsburgo espanhóis tinham elaborado um sistema de go­verno que combinava o controlo central por conselhos e o governo

3 iOittaidlo IP:& Hieln!rli: l1Jrerurre, H .fstoi'Tte de la Belgique, 'VIoll. íiiili, iBiru­XIala~s, 119213, íPIP· 14!00 1e 1seg1S.

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local por vice-reis e audiencias (tribunais judiciais que possuíam poderes consultivos e até administrativos). Sob Filipe li existiam nove vice­-realezas na Monarquia espanhola: na própria península, Aragão, Cata­lunha, Valência e Navarra; na Itália, Sardenha, Sicília e Nápoles; e nas índias, a Nova Espanha (México) e o Peru 4• As actividades de cada vice-rei eram vigiadas, e a sua correspondência estudada, pelo conselho respectivo - de Aragão, da Itália ou das índias - que respondia nomi­nalmente perante o rei. Acima destes conselhos territoriais existia o de Estado, rodeado de câmaras para assuntos de especialidade, como as finanças ou a guerra.

Apesar da proeminência nominal do Conselho de Estado, nem Carlos V nem Filipe li o tinham em grande consideração. Para eles, constituía uma útil caixa de ressonância e um fórum que lhes permitia desembaraçarem-se sem consequências de animosidades peGsoais e aris­tocráticas. O trabalho verdadeiramente sério de governo era realizado noutros locais - nas mesas dos conselhos, nas casas dos secretários, e pelo próprio rei. Os secretários, quer ligados à pessoa do rei ou ser­vindo um conselho, eram figuras de crescente importância na máquina administrativa, como intermediários entre o rei e os seus conselhos, por um lado, e entre estes e os vice-reis, por outro. No momento em que subiu ao poder, Filipe dependia dos serviços de um único secretário de ' Estado, mas quando Gonçalo Pérez morreu, em 1556, o seu secreta­riado foi dividido em dois departamentos, um dos quais foi dado ao seu filho mais famoso, António 5• António Pérez e oo colegas nunca obtiveram verdadeiramente o estatuto de ministros, pois Filipe, prefe­rindo ser o seu próprio secretário e ministro, vigiava de perto o tra­balho daqueles - quando não o fazia em seu lugar. Mas conseguiram, inevitavelmente, obter um grande poder atrás dos bastidores, insinuan­do-se, sugerindo e aconselhando activamente um rei que, apesar de consciencioso, era por vezes praticamente esmagado pelas pilhas de papel que se acumulavam na sua secretária.

A elaborada máquina através da qual a Monarquia espanhola era administrada provocou admiração e exasperação em partes pratica­mente iguais. Estava dominada pela rotina, era extremamente pesada, os seus atrasos eram notórios, mas no conjunto funcionava. Por vezes recebeu, até, o elogio da imitação. Foi aparentemente depois de um dos secretários de Henrique li, Cláudio de Laubespine, ter oooervado os seus colegas espanhóis em funções durante as negociações de Cateau-Cam­brésis que o título de <<secretário de Estado» começou a ser usado em França. Mas, em geral, dir-se-ia que problemas do mesmo tipo conduziam os Estados da Europa ocidental a soluções seme-

4 A Holamda em õJir.tgfuda pro.r um goVIernrudlor, cujos dweres eram C:OinjpiaJI'áVIeis aos dJe UJm vioe>-rei.

5 Ver aJdiamrbe, C.lalpíltulo 9.

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lhanteí3, e que mais não era preciso do que uma rápida olhadela por sobre o ombro ao que se fazia nos outros locais. O aparecimento do cargo de secretário de Estado, em particular, constituiu uma solução caracte­rística do século dezasseis para um problema universal. Os reis necessi­tavam de funcionários discretos e de confiança, mais leais perante a Coroa do que em relação a qualquer grupo social ou facção no inte­rior do Estado. Necessitavam de homens que soubessem dominar os novos processos burocráticos e possuíssem aptidões especiais para a elaboração de documentos e o tratamento destes. Deveriam ainda ser capazes de acompanhar os assuntos dos conselhos e de actuar como in­termediários entre o governo centn~l e os seus gabinetes locais.

Todas estas funções podiam ser preenchidas, em maior ou menor grau, pelo secretário. Em França foram designados quatro secretários especiais em 1547. Acompanhavam o rei nas sessões do conseil des affaires que, juntamente com o mais extenso conseil privé, constituía o principal órgão de governo no reinado de Henrique li. Não só ser­viram, como em Espanha, de elo essencial entre o rei e os conselheiros, mas também de ligação entre o governo central e os treze gouverne­ments locais em que o país se encontrava dividido. O mesmo acontecia em Inglaterra, onde o secretariado, exercido primeiramente por Thomas Cromwell e mais tarde por William Cecil, incluía uma estrita vigilância pessoal dos assuntos de governo mais importantes e a manutenção de contactos próximos com os Governadores e os Juízes de Paz. Mas, como em todas as esferas da vida do século dezasseis, em última aná­lise era o homem que contava, mais que o seu cargo. O secretariado era potencialmente um cargo de enorme influência, mas só ganhou esta importância através das qualidades dos homens que o desempenhavam - Cecil em Inglaterra, De Laubespine ou Villeroy em França- e depressa caía na mediocridade quando entregue a homens medíocres.

Através do uso de secretários e burocratas profissionais, normal­mente laicos provenientes da pequena nobreza e dos níveis intermédios da sociedade, os primeiros governantes do século dezasseis conseguiram fortalecer a autoridade do governo régio face aos tradicionais rivais da monarquia- a igreja e a aristocracia. Neste sentido, é razoável con­siderar a primeira metade do século como um período de construção do Estado, se bem que a expressão «construção do Estado» apresente hoje conotações certamente pouco familiares para as mentes do século dezas~ seis. O governo era o governo do rei, e os funcionários régios considera­vam-se essencialmente como servidores do rei. Um ou dois deles, como Cecil ou Granvelle, talvez dessem ao serviço um sentido que excedia o rei, englobando todo o Estado; mas a palavra «Estado», usada para descre­ver todo o corpo político, parece só se ter tornado corrente nos últimos anos do século. Mesmo então, foi mal recebida em alguns sectores -por exemplo, pela rainha de Inglaterra. «Nos últimos tempos da Rainha Isabel, usou-se a frase 'rezar pela Rainha e pelo Estado'. Esta palavra 'Estado' foi aprendida com os nossos vizinhos e no comércio

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com os Países Baixos, como se fôssemos ou fingí~scmos ser governados por Estados. A Rainha viu e odiou istO>> 6•

Quaisquer que fossem as ambiguidades c incertezas que impe­diam uma clara formulação da ideia do «Estado», não podia haver dúvidas de que o forte profissionalismo da nova classe de funcionários de Estado aumentava a eficácia doo governos e, portanto, acentuava as possibilidades de governo absolutista. Em meados do século, isto trans­formara-se numa fonte de grande insatisfação entre as classes gover­nantes tradicionais em muitas partes da Europa. Viam os seus privil6-gios usurpados por funcionários de baixa condição, que apresentavam todos os sintomas da arrogância do poder. Viam-se excluídos de cargos que consideravam seus por direito próprio e receavam a imposição de um governo arbitrário de «homens novos» servindo de instrumentos de uma vontade régia impossível de controlar.

Estes receios, que viriam a constituir uma poderosa fonte de agi­tação interna na segunda metade do século, não eram inteiramente des­providos de fundamentos. Eric XIV da Suécia parece ter visto no poder dos secretários um meio ideal de promover os seus objectivos absolu­tistas, e a sua deposição foi realizada por uma aristocracia legitima­mente receosa de ficar sujeita a um governo tirânico. Mas, quaisquer que fossem as aspirações dos governantes do século dezasseis, as suas verdadeiras realizações tendiam a manter-se dentro de limites relativa­mente restritos. Para além dos problemas insuperáveis da comunica­ção e da distância, faltavam-lhes os meios necessários para imporem a sua vontade, face à resistência ou ausência de cooperação da classe governante local. E estorvavam-nos, igualmente, as lealdades divididas dos homens que escolhiam para servidores. Numa sociedade em que o indivíduo tinha um papel secundário relativamente à família e em que o título e posição social eram considerados os critérios primordiais do êxito, o funcionário régio pensava naturalmente no seu cargo como um meio de promoção social, que poderia vir a colocar a sua família entre as grandes casas do país. Se procurava satisfazer os interesses do seu soberano, também tentava r;atisfazer os seus, o que o conduzia a uma relação equívoca com os grandes nobres que o rodeavam na corte. Por um lado, devia proteger os interesses da Coroa contra os dos indivíduos privados; por outro, devia evitar desagradar a essa nobreza a cujas fileiras tinha esperanças de vir a pertencer.

Era inevitável um certo grau de corrupção, na medida em que o cargo era visto como propriedade privada, em vez de ser associado à

6 Oiltado a P'aJrtilr de um do-currueíni1Jo anommo de oerca de ]1')26 por G. N. Clark, «The Bi.rlth of the Du1Jch Republic», Proceedings of the British Academy, vol. XXXII, 19146, p. 9. Ver taan~bém pp. 27-31 prura uma dii.s­•aUJSsãio inlteneSIS'ante d:a palaVI'Ia «Estado».

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ideia de serviço público. Mas a corrupção era exacerbada pela incapa­cidade dos monarcas do século dezasseis de pagarem bem e regular­mente aos seus funcionários. Vivendo de salários inadequados e pagos tardiamente, os funcionários desejavam naturalmente ofertas e gratifica­ções que viessem aumentar os seus ,parcos rendimentos. Num certo _sen­tido, estas gratificações eram simples honorários, e tendiam a ser vistos como tal tanto pelo dador como pelo recebedor. Mas a sua aceitação significava que a dependência do funcionário relativamente à Coroa não era total, e que o tecido do governo régio se via correspondentemente enfraquecido.

Os monarcas faziam o possível por reduzir as tentações. Tenta­vam compensar a sua incapacidade para pagar aos servidores regular e razoavelmente garantindo favores ocasionais e prometendo a passagem dos cargos para os filhos ou sobrinhos dos seus actuais detentores. Mas isso também enfraquecia, até certo ponto, o controlo régio sobre a maquinaria da govemação, transformando os cargos em patrimónios familiares e criando dinastias regulares de funcionários ou secretários, como os Pérez em Espanha ou os De Laubespine em França. Esta foi, no entanto, apenas uma das muitas maneiras como a eficiência do go­verno régio foi prejudicada pelo eterno problema das monarquias do século dezasseis, a falta de dinheiro. Tornou-se cada vez mais comum criar e vender novos cargos como meio de aumentar os rendimentos régios. Em Espanha, se bem que a Coroa conseguisse conservar nas suas mãos a atribuição dos principais cargos administrativos e judi­ciais do Estado, viu-se cada vez mais forçada a criar e vender postos menos importantes do governo local e municipal. Em França, a Coroa tinha menos inibições. Em 1554, ordenou a venda de cada novo cargo a dois compradores, que se encarregariam dele alternadamente, por períodos de seis meses. Nos últimos anos do século a administração francesa passara virtualmente das mãos da Coroa para as de uma enorme casta de detentores de cargos, que se consideravam uma corporação privilegiada no corpo político e viam os seus cargos como uma parte valiosa do património familiar.

As aspiraçõeG dos monarcas no sentido de um governo autoritá­rio mais eficaz foram portanto contrariadas pela falta de confiança em muitos dos seus funcionários e pela incapacidade de lhes pagarem o que exigiam. Poucas possibilidades havia de aumentar o poder régio à custa dos nobres se a Coroa se via forçada, devido a uma má situação fi­nanceira, como acontecia na Sicília, a alienar terras e a vender feudos a que se encontravam ligados direitos de jurisdição privada. As finan­ças constituíam a chave de um governo eficaz, e por toda a parte o estado das finanças da Coroa, em meados do século, atingia um ponto de crise. As monarquias tinham-se dilatado excessivamente através de guerras longas e nervosas e os seus rendimentos não tinham acompa­nhado o aumento de preços de uma época inflacionária. Na época de Cateau-Cambrésis tomava-se evidente a necessidade de uma actuação,

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l a breve prazo, que permitisse conservar o que havia sido ganho na primeira metade do século.

2. Os Estados Sociais

Como poderiam os reis restaurar a sua solvência e aumentar os seus rendimentos? A resposta convencional consistia ainda em apelar~m para os seus súbditos, reunidos em Estados. Sabe-se que as assembl~Ias representativas da Europa tinham sofrido algumas bmxas desde ? fu:_al da Idade Média. Em França, em particular, os Estados Gerais n_ao eram convocados desde 1484, se bem que os diversos Estados provm­ciais continuassem a reunir-se. O mesmo acontecia com o parlement de Paris e com os sete parlements provinciais, que eram nominalmen~e tribunais soberanos que aplicavam a autoridade régia mas tinham adqm­rido ao longo do tempo tendências particularistas próprias. Mas _quando Francisco li procurou o conselho de Carlos de Manllac, arcebispo de Viena este incitou-o a seguir o exemplo de outros monarcas europeus e a c~nvocar uma assembleia nacional que constituísse uma sólida base de apoio para as políticas financeira e religiosa que viessem a s~r adoi?­tadas pela Coroa. Este conselho foi aceite e os :&tados ~erms reum- , raro-se em Orleães em Dezembro de 1560, depms de maJS de setenta anos de inactividade. A decisão da monarquia francesa de usar a sua varinha de condão para dar vida ao corpo dos Estados Gerais não foi, porém, universalmente aclama~~· No seu. discurso de abertura, o chan: celer, L'Hôpital, achou necessano contranar o argument~ d~ que «O rei diminui o seu poder ao aceitar o conselho dos seus subditos quando não é obrigado a fazê-lo; e também se familiariza demasiado com eles, o que gera desprezo e diminui a dignidade e majestade da reale~a». Pelo contrário, considerava que «não existe qualq~er outro acto digno de um rei, e tão próprio dele, como a co~vo~açao dos Estados, dar audiências gerais aos seus súbditos e render JUStiça a cada um deles» 7

Infelizmente a Bela Adormecida mostrou ser menos bela do que L'Hôpital desejar~. Os representantes dos Estados Gerais estavam dis­postos a reconhecer Catarina de Médicis como regente, mas recusa­vam-se a reconhecer novos impostos, com a justificação de que não tinham recebido poderes daqueles que representavam para discutir os assuntos financeiros da Coroa. Catarina, sem se deixar perturbar, deu ordens em Março de 1561 para a convocação de uma nova reunião dos Estados Gerais em Pontoise; e, desta vez, não só ofereceu reparar os agravos em troca de auxílio fin~nc.eiro como ainda I?ropôs que os pró­prios Estados controlassem a maquma da colecta de Impostos. Mas esta

1 i0i~a1d:o' !Pk>II' w. IF. ICihiuJIKlh, Oo1'1J8ti,twtionarz Tho.ught iln Slüvtheen.th Oentury ·Fra111ce, IOall.lllbmidg,e, IMass., .194ll, pp. llJ60~.l:611J, 111.o 9\4..

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proposta, que teria colocado uma arma poderosa nas mãos dos repre­sentantes, foi ignorada, e o Terceiro Estado recusou-se a oferecer qualquer dinheiro à Coroa. O clero, por outro lado, reunindo-se sepa­radamente em Poissy, deixou-se aterrorizar pelos negros avisos de ex­pansão da heresia, acabando por se oferecer para pagar as hipotecas dos domínios régios e votando um· donativo de 17 milhões de livres. A diferente resposta dos dois Estados definiu um padrão que se repetiu durante o resto do reinado de Carlos IX. O clero, como seria de espe­rar, foi frequentemente convocado, e os subsídios eclesiásticos foram muito úteis para manter a monarquia à superfície durante os anos de guerra civil. Os Estados Gerais, pelo contrário, só voltaram a ser con­vocados em 1576. Por outro lado, a Coroa não hesitou em impor um imposto sobre o vinho em Setembro de 1561, se bem que não tivesse obtido o acordo dos representantes.

As dificuldades da Coroa francesa com os seus Estados Gerais foram muito superiores às de Filipe II com as Cortes de Castela. A assembleia representativa de Castela, ao contrário da francesa, con­tinuara a reunir-se durante a primeira metade do século, mas perdera gradualmente terreno face ao poder régio. Depois de os nobres deixa­rem de participar, após 1538, as Cortes castelhanas viram-se reduzidas a uma única câmara, composta por trinta e seis representantes de dezoito cidades. As pequenas dimensões desta assembleia e o âmbito limitado da sua representatividade tornaram-na bastante vulnerável à pressão régia- e mais ainda por nunca ter conseguido assegurar pode­res legislativos ou estabelecer o princípio de a reparação dos agravos dever preceder os fornecimentos de dinheiro. Em 1561 Filipe II per­suadiu-a, sem grandes dificuldades, a votar um forte aumento do valor da alcabala, ou imposto sobre as vendas; e conseguiu, simultaneamente, aumentar de modo considerável o valor dos seus rendimentos extra­-parlamentares, sob a forma de direitos alfandegários, direitos sobre a exportação e monopólio. A posição financeira da Coroa espanhola começou portanto a mostrar indícios de melhoria a partir do início dos anos 60, num momento em que se tomavam necessários rendimentos mais elevados para a construção das novas galeras para a guerra naval contra a Turquia.

Mas Filipe II foi menos afortunado noutros reinos e províncias. O parlamento da Sicília, é certo, votou cmbsídios regulares, mas apesar dos donativos especiais e da tributação· extra-parlamentar o au­mento dos rendimentos governamentais mal acompanhou a subida dos preços durante a segunda metade do século. Mais perto de casa, Filipe obteve ainda piores resultados. As três Cortes da Coroa de Aragão - os reinos de Aragão e Valência e o principado da Catalu­nha - tinham atrás de si uma longa tradição de independência e haviam desenvolvido salvaguardas institucionais que lhes davam um poder eficaz em questões financeiras. Carlos V adaptara o hábito de convocá-las simultaneamente, e conseguira obter donativos regulares, se bem que não muito grandes. Mas cada novo subsídio só era conseguido pelo

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preço de novas conceGsões reg1as, o que continuamente diminuía o controlo da Coroa em termos de jurisdição e governo. Dado que os rendimentos provenientes da Coroa de Aragão apenas cobriam os cus­tos, Filipe II só convocou as Cortes gerais duas vezes- em 1563 e l585- contentando-se, normalmente, com apelar para uma coopera­ção voluntária.

Nos Países Baixos, onde estava em jogo mais do que na Coroa de Aragão, as dificuldades tinham-se ultimamente agravado. Não só existiam aí, tal como em França, vários Estados provinciais (Flandres, Holanda, Brabante, Artois e Hainault), como existiam- também como em França - Estados Gerais, que constituíam essencialmente uma assembleia de delegados dos Estados provinciais. Se bem que os Estados. Gerais fossem ardentes defensores das liberdades e privilégios dos Países Baixos, Carlos V não dispensara os seus serviços, em parte porque constituíam uma máquina muito útil para um tratamento conjunto de unidades políticas que de outro modo ficariam fragmentadas. Mas, à medida que a situação na Holanda se deteriorava, durante a década de 50, sob a pressão da guerra e das dificuldades económicas, os deputados dos Estados Gerais passaram a defender cada vez mais os agravos generalizados. Concordaram, em 1557, com votar um contributo anual de 800 000 florins durante nove anos, mas apenas com a condição de os seus próprios representantes controlarem o aparelho de colecta e dis­pêndio do dinheiro. Ganhando deste modo o controlo das finanças, os Estados Gerais transformaram-se num corpo formidável- tão formi­dável aliás, que Filipe passou a só recorrer a eles quando todos os outros dispositivos fiscais falhavam.

As dificuldades de Filipe nos Países Baixos e de Catarina em França eram bastante típicas do:; problemas criados por estas assem­bleias. Em toda a Europa, os príncipes viram-se obrigados a en­frentar parlamentos cujos poderes podiam variar consideravelmente de um Estado para outro, mas que tendiam todos a colidir mais tarde ou mais cedo com os cálculos políticos da Coroa. Na Suécia, o Riksdag - que se fazia notar por possuir uma quarta câmara formada por camponeses, juntamente com as do clero, da nobreza e dos burgueses -sobreviveu à revolução administrativa de Gustavo Vasa, vindo a contra­balançar nos últimos anos do século os poderes reforçados da monar­quia. Em Inglaterra, onde Henrique VIII associara o parlamento à sua reforma da igreja, Isabel considerou necessário e prático seguir o seu exemplo em 1559. Na Saxónia, no Brandenburgo, em Vurtemberga e nos ducados do Reno, os Estados conseguiram, tal como a Câmara dos Comuns inglesa, manter ou reforçar a sua influência política, auxiliados pelo acaso do aparecimento de menoridades régias e pelos habituais embaraços do tesouro régio. O mesmo aconteceu nas terras dos Habs­burgo -Áustria, Boémia e Hungria- onde a situação do imperador face aos Estados era desvantajosa, devido à sua própria debilidade fi­nanceira e à perigosa proximidade dos turcos.

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Confrontados por um lado com problemas financeiros graves e, por outro, com Estados Gerais truculentos, os príncipes da Europa do século dezasseis podiam sentir-se tentados a dispensar estas enfadonhas assembleias e a lançar novos impostos por decreto régio. Um deles, Manuel Felisberto, fez precisamente isso. As suas infelizes experiências no governo dos Países Baixos levàram-no a não desejar partilhar o poder com os seus súbditos quando lhe foi restituído o ducado, em 1559. No ano seguinte, quando o entusiasmo pela restaurada Casa de Sabóia ainda era grande, convocou os Estados do Piemonte e obteve dcle3 um contributo vasto e incondicional, suficiente para manter um exér­cito de 24 000 homens. Daí em diante nunca mais convocou os Estados, tendo conlseguido força suficiente, com o auxílio do seu exército, para lançar impostos à sua vontade.

Se o Piemonte de finais do século dezasseis era um país miserável, com o campesinato esmagado sob o peso dos impostos, isso era talvez de somenos importância. O duque «testa de ferro» aumentara os seus rendimentos de menos de 100 000 para meio milhão de ducados por ano, e os seus contemporâneos estavam fortemente impressionados. Mas admirar era uma coisa, e imitar outra. No Piemonte, após longos anos de ocupação estrangeira, não existia centro sólido de oposição a um governo absolutista. O novo duque podia começar praticamente a partir de uma tabula rasa, se bem que mesmo ele considerasse necessário a conciliação com os nobres, procurando não intervir nas suas relações com o campesinato. Mas nos outros países a situação era diferente, e os Estados encontravam-se em geral excessivamente entrincheiradoo para serem suprimidos sem dar nas vistas. Aliás, mesmo que isso tivesse sido politicamente possível, não era necessariamente considerado como um objectivo desejável. Os reis tinham as suas obrigações e os parlamentos a sua utilidade, e nem aquelas nem esta podiam, nas circunstâncias do século dezasseis, ser desprezadas. Quando L'Hôpital disse em Orleães, em 1560 que «não existe nada tão digno de um rei, e tão próprio dele, como a convocação dos Estados», apenas repetia um lugar-comum da época. O diálogo continuado entre o rei e o povo era considerado como um aspecto normal da vida política e o encontro, em conclave solene, do monarca e dos Estados da nação era tido como o mais ele­vado exemplo do funcionamento harmonioso desse organismo delicado, a comunidade perfeita.

Também havia benefícios práticos que não podiam ser ignorados. A convocação de uma assembleia representativa era, com efeito, um meio conveniente de associar a massa da nação a uma política fiscal ou religiosa que podia não ser popular. Os Estados podiam ser usados para lançar novos impostos, para pressionar o clero ou outros grupos de inte­resses e para unir a nação por detrás da Coroa em questões de política interna ou externa. A sua existência não implicava a partilha do poder entre o rei e os súbditos (se bem que a isso pudesse conduzir em momentos de menoridade régia), pois era universalmente aceite que o governo e a aplicação da justiça eram prerrogativas régias. Mas impli-

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cava a disponibilidade do rei no sentido de ouvir c dar remédio aos agravos populareG e que o povo estava pronto a auxiliâ-lo através das suas pessoas e do seu dinheiro.

Um rei cauteloso hesitaria em desprezar estas vantagens. Os Es­tados, no conjunto, eram desejáveis- mas deviam ser Estados submis­sos, como as Cortes de Castela. Infelizmente, isso era mais fácil de desejar do que de conseguir. Quanto mais frequente era a convocação dos Estados, mais estes tendiam a aumentar o seu sentido· de identidade c a ganhar confiança em si e capa.cidade de actuação. Era isso que acontecia na Câmara dos Comuns inglesa e em algumas das Dietas ale­mãs, o que, inevitavelmente, obrigava a uma perícia cada vez maior na arte da gestão parlamentar por parte do príncipe. Porém, essa gestão já era ,suficientemente difícil mesmo nos melhores momentos e, nos anos 60, tornou-se ainda mais difícil devido a dois eventos particularmente sérios - o crescimento da oposição· religiosa e o descontentamente aris­tocrático.

As assembleias representativas da Europa do século dezasseis deram aos dissidentes religiosos oportunidades que eles souberam explorar rapidamente. Uma campanha protestante bem organizada na primeira Câmara dos Comuns do reinado de Isabel levou a rainha a aceitar um acordo religioso mais radical do que o que pretendia. O parlamento escocês de 1560 levou a cabo uma revolução religiosa, desafiando os desejos de Maria, rainha da Escócia, e do seu marido Francisco 11. Na Baviera, durante os anos 50, os luteranos usaram a sua influência nos Estados para arrancarem concessões ao novo duque, Alberto V. Mas desta vez foi o príncipe, e não o parlamento, que ganhou. Comprando parte dos principais nobres e dividindo a oposição, esmagou a «cons­piração» luterana em 1564. Os Estados Sociais bávaros nunca recupe­raram deste golpe decisivo. Receosos e submissos, desistiram do desa­fio à autoridade ducal, e a Baviera acabou por se transformar no pro­tótipo do «Estado da Contra-Reforma»- um país sufocado sob a pesada mão de uma vasta instituição clerical e de um príncipe abso­lutista.

Nos anos 60, portanto, era evidente que o aumento da dissidên­cia religiosa realçara as possibilidades de conflito entre os príncipes e os Estados. O mesmo era verdadeiro relativamente ao descontenta­mento aristocrático. Nos Estados locais a câmara dos nobres era um fórum ideal para a expressão de ressentimentos profundos contra o domíno dos secretários e a usurpação dos direitos aristocráticos pela prerrogativa real. Os Estados constituíam ainda um meio mais seguro e sofisticado de oposição à política régia do que a revolta dos barões. Uma assembleia representativa dispunha, de facto, da respeitabilidade que só o tempo podia conferir. Possuía direitos e privilégios «imemo­riais» - por exemplo, o direito de aconselhar o governo do reino du­rante a menoridade de um rei, como foi exigido pelos nobres nos Estados Gerais de Pontoise, em 1561.

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Mesmo que esta ex1gencia fosse ilu>ória, podia apesar de tudo ser justificada por «provas» históricas. Com efeito, o crescente mal­-estar da nobreza europeia perante a aparente consolidação e extensão do poder régio coincidiu com, e até certo ponto alimentou, um movi­mento histórico e legalista de âmbito e importância progressivamente maiores. Em França, em particular, ganhava força uma reacção contra o Direito Romano, juntamente com uma renovação do interesse pelas leis consuetudinárias do reino. Ao aplicarem aos textos do Direito Ro­mano as novas técnicas críticas e filológicas ensinadas pelos humanistas, os juristas académicos franceses aperceberam-se cada vez mais de que o Direito Romano ensinado nas univer.sidades medievais de modo ne­nhum era, Direito Romano tal como Justiniano o· entendera; e, igual­mente, compreenderam que a própria codificação de Justiniano não era nem perfeita nem completa. Durante os anos 60, nada menos de três diferentes juristas franceses - Baudouin, Hotman e Bodin - publi­caram importantes tratados sugerindo que não era possível construir uma jurisprudência sistemática baseando-se apenas no Direito Romano, e mostrando um renovado respeito pelo direito consuetudinário enquanto expressão natural do desenvolvimento histórico e político da nação francesa 8• As implicações políticas destas conclusões não podiam ser menosprezadas. Onde o Direito Romano tendia a beneficiar o príncipe por fornecer um código geral capaz de superar as tradições regionais e locais, o costume beneficiava grupos e corporações privilegiados no inte­rior do Estado, definindo os seus privilégios com base em direitos irre­vogáveis. E, mesmo quando esta base era fundamentalmente pouco só­lida, alguma erudição podia ajudar a ocultar este facto inconveniente.

A revolução legal e histórica de meados do século dezasseis for­java portanto uma arma poderosa para u<;o tanto dos nobres como dos Estados Sociais. Tanto em França como na Suécia, na Coroa de Ara­gão ou nos Países Baixos, a aristocracia podia reclamar um direito consagrado pelo uso, baseado no direito consuetudinário e na consti­tuição, para as liberdades e os privilégios que estavam a ser ataca­dos. Este «constitucionalismo aristocrático» de finais do século dezasseis era considerado, pelo menos inicialmente, como um meio de defesa. Mas os direitos históricos podiam ser alargados quase indefinidamente depois de se ter ganho o ponto inicial. As assembleias representativas podiam ser dotadas de um passado mítico que justificava uma maior participação no governo do Estado. Os notáveis podiam encontrar nas leis consuetudinárias e nas constituições da sua nação, um direito, con­sagrado pelo uso, a agirem como conselheiros da Coroa. Daqui à oligar­quia ia apenas um curto passo. A Veneza do século dezasseis, com efeito,

s Para um exa,me útil desta tendêncda entre os juri1Sitas fr81Il'ceses, ver J.wlilan H . Framklin, Jean Bodin and the Sixteenth-Oentury Revolution in

th-e Metodology of Law and Historu, Nova Iorque, 196.3, parte I.

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era um modelo eficaz de governo estável e bem sucedido sob controlo aristocrático, e poucos nobres europeus reagiriam com pesar à trans­formação do rei em doge.

3. A unidade nacional e a diversidade religiosa

Em circunstâncias normais, os reis poderiam provavelmente ter contido um ataque aristocrático realizado através dos Estados Sociais, pois era de esperar que outros grupos se aliassem à Coroa num esforço de auto-defesa contra qualquer ampliação do poder senhorial. Mas as circunstâncias dos anos 60 estavam muito longe de ser normais, dado que em muitos Estados as tarefas dos príncipes, já excepcionalmente difíceis devido aos seus problemas financeiros e à agitação provocada pelo constitucionalismo aristocrático, se tornaram ainda mais complexas devido a um terceiro problema- a desunião religiosa.

A religião era universalmente considerada como a base de uma sociedade bem organizada e a preservação da unidade religiosa era tida como essencial para a sobrevivência do próprio Estado. O adágio francês popularizado na década de 1560 - un roi, une foi, une loi- cor­respondia a um sentimento natural numa época em que só a uniformi­dade parecia garantir a ordem pública em Estados que se encontravam sob o controlo ainda incipiente de um poder central. A unidade da cristandade fora já destruída pela dissensão religiosa. Parecia agora que a unidade precária dos Estados nacionais viria a ser igualmente destruída. A maior parte das pessoas dos anos 60, qualquer que fosse a sua fé, teria concordado com o posterior veredicto de um padre espa­nhol: «Nunca foi bem governada ou pacífica uma república onde pre­valece a divisão e a diversidade de fé, nem de resto o pode ser. A razão disto é que ... todos consideram que o seu próprio Deus é o único ver­dadeiro... e que os demais estão cegos e se encontram iludidos ... E quando existe um tal rancor e fogo interior, não pode haver solidarie­dade ou paz duradoura» 9•

Foi em nome da «solidariedade» e da «paz duradoura» que os homens de finais do século dezasseis perpetraram as crueldades mais bárbaras contra os seus iguais. Mas, pelo menos durante algum tempo, a cruel ironia da situação quase passou despercebida. À medida que a temperatura subia, que católicos e protestantes começaram a odiar-se e temer-se mutuamente, a sociedade começou, como por um reflexo automático, a insistir com crescente histeria na preservação de uma unidade que lhe fugia por entre os dedm. Os pequenos desvios, que poderiam ser tolerados ou ignorados em tempos normais, tornavam-se

9 .Pedro Corrnejoo, Compendio ·y brev6 relación de la Liga, Bruxeillas, 1'59.1, f. 6 .

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agora fonte de profundas e frenéticas suspeitas por parte dos governos e dos seus súbditos. A polarização da fé em Genebra e Roma não deixou um espaço intermédio para o tolerante, o indiferente, o céptico. O con­formismo transformara-se no preço da sobrevivência. As actividades persecutórias do Estado e da Inquisição, a revivescência crescente e assustadora da caça às bruxas 10 e, finalmente, as próprias guerras reli­giosas, eram os sintomas de uma sociedade dividida, tão aterrorizada com a perspectiva da sua própria dissolução que já não ousava tolerar os elementos que não conseguia absorver.

Contra este fundo de profundos receios sociais, os governantes que não se deixavam afectar pela histeria prevalecente enfrentavam uma tarefa quase sobre-humana. Não era fácil resistir, como Isabel estava decidida a resistir em Inglaterra, à insistente exigência de abrir janelas nas almas dos homens. Nem era, aliás, necessariamente seguro. Com efeito, uma das grandes tragédias dos finais do século dezasseis foi o receio da :subversão política e social ter revelado possuir uma base real. Os grupos minoritários fanáticos, tanto católicos como pro­testantes, constituíam uma ameaça genuína à estabilidade e coesão do Estado. Face a esta ameaça, «um rei, uma fé, uma lei» parecia oferecer algumas garantias -talvez a única garantia- de sobrevivência. Mas esta doutrina acabou por se revelar rígida e, em última análise, auto-destruidora, conduzindo à morte muitos homens e mulheres ino­centes.

Se bem que a crescente virulência das animosidades religiosas pusesse inevitavelmente em risco a unidade nacional, a maior ameaça às monarquias da Europa de meados do século era outra. Os príncipes tinham enfrentado, havia já muitas décadas, diversas manifestações de dissidência religiosa. E tinham enfrentado havia mais tempo ainda a oposição aristocrática, tanto aberta como sob um disfarce constitucio­nal. A verdadeira novidade dos anos de meados do século foi a fusão de ambas - a alarmante convergência dos protestos religiosos e aristocrá­ticos de modo a criar um movimento combinado dotado de um poder formidável.

A fusão realizou-se em pouco mais de uma década, pois foi durante os anos 50 e inícios da década de 60 que a aristocracia euro­peia começou a passar-se em números significativos para a fé calvinista. Em toda a Europa, desde a Escócia até à Polónia, os nobres e a pe­quena nobreza juntavam-se abertamente à causa protestante. Nos Países Baixos, onde os movimentos protestantes tinham tendido, como em Inglaterra, a confinar-se às camadas inferiores da sociedade, as pri-

10 V·er o bi'iihamte ensaio sobre «The Eu.rop•ean Witch-craze of the SiXJteenth and s .eventeenth CentUJrjes», em H. R. Trevor~Roper, Religion, the Re~orrmatlilorn ·arnd •Sacfial 'Ohang,e, i.<Oindir1es, ·119&7, IPIP· 90~111912 i(ltraJcli. na \Eidlilbo­lrli:al /Presença).

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meiras conversões significativas observaram-se no final da década, quando os dois irmãos João e Filipe de Marnix se converteram a~ calvinismo após uma visita a Genebra, em 1560. O seu exemplo fo1 seguido por um número cada vez maior de elementos da pequena nobreza, que começaram a enviar os filhos para a Academia de Gene­bra a fim de completarem a sua educação. Mas foi entre a nobreza fra~cesa que o calvinismo conseguiu os seus êxitos mais notórios. Em fins da década de 40 o protestantismo só podia reclamar uma mão-cheia de nobres franceses. Nos anos 60, talvez já metade da aristocracia tivesse abandonado a obediência a Roma, contra uma taxa de conversões no país de talvez dez ou vinte por cento.

As razõe::> desta conversão em massa dos aristocratas e da pe­quena nobreza são, pela sua natureza, complexas e obscuras. Em criança, o futuro propagandista huguenote Filipe Du Plessis-Mornay teve um tutor luterano escolhido pela mãe, que era semi-protestante, e esco­lheu com firmeza o protestantismo quando tinha dez anos. A conversão desse volúvel carácter que era o príncipe de Condé verificou-se aparen­temente durante uma doença de que sofreu em 1558, devido à influên­cia de sua mulher, Leonor de Roye, uma das muitas nobres conver­tidas que se encontravam entre a aristocracia mais elevada. Dos três irmãos Châtillon, foi o mais novo e impetuoso, Francisco d' Andelot, quem primeiro mudou de fé. O irmão do meio, Coligny, virou-se len­tamente para o protestantismo em 1556-7, confirmando aparentemente a sua nova fé através de um intenso estudo da Bíblia durante o período de cativeiro que se seguiu a St. Quentin. O mais velho, Odet de Châ­tillon, um cardeal que nunca fora ordenado padre, seguiu, o exemplo dos irmãos em 1561, sem no entanto abandonar o seu tltulo ou os rendimentos eclesiástico::; principescos.

Decisões pessoais, justificadas em termos pessoais, e certamente bastante diversos... Convicção e conveniência, dolorosas dúvidas do espírito e súbitos movimentos do coração, tudo contribuiu para a renún­cia à antiga lealdade religiosa, entretanto tornada enfadonha ou ofe~­siva. Muitos aristocratas e elementos da pequena nobreza de mentali­dade liberal e humanista, que em circunstâncias normais teriam esco­lhido um caminho intermédio, nos anos 60 sentiram talvez que Gene­bra oferecia o melhor porto para uma tempestade que se aproximava. O clericalismo, sob todas as suas formas, era para eles um anátem~, tal como para grande número de leigos europeus. Mas os tempos ex•­gem a firme ligação a uma causa; e o clericalismo de Genebra pode ter parecido menos detestável, e susceptível de um controlo laico mais aberto, que a maciça organização hierárquica da igreja católica ro­mana.

O próprio Calvino não tinha qualquer dúvida quanto à grande importância de ganhar a nobreza para a sua causa. Tanto ele como o seu homem de confiança, Teodoro Beza, tinham consciencia de que a conversão de um só nobre podia multiplicar as conversões entre os seus fa-

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miliares dependentes, e de que os nobres podiam oferecer respeitabilidade e protecção à sua ainda jovem igreja. «Ele prometeu-nos coisas mara­vilhosas», escreveu o pastor que relatou a conversão de Condé a Calvino. «Queira Deus que cumpra metade das suas promessas». Beza, filho de uma família nobre pouco importante de Vézelay, na Borgonha, encon­trava-se idealmente equipado, tanto em educação como em tempera­mento, para apelar para os membros da sua própria classe social. Nas suas visitas a França demonstrou ser um propagandista persuasivo e bem sucedido da sua fé, conseguindo obter algumas conversões especta­culares, incluindo a da futura heroína protestante Joana d' Albret, mulher de António de Bourbon, rei de Navarra. E conseguiu igualmente atrair recrutas para o ministério de entre as boas famílias: dos oitenta e oito pastores enviados de Genebra para França entre 1555 e 1562, sabe-se que dez eram de nascimento nobre, existindo provavelmente mais 11•

:É certo que é discutível a sinceridade de muitos dos nobres con­vertidos. Com efeito, havia muito boas razões, para além da convicção religiosa, para se ser calvinista nesses anos. A moda e o exemplo desempenhavam um importante papel. A conversão dos Bourbon e dos Châtillon acelerou inevitavelmente a percentagem de conversões entre os elementos da nobreza provinciana que não estavam ligados à facção rival- e inabalavelmente ortodoxa- dos Guise. Por outro lado, muitos membros da pequena nobreza francesa estavam empobrecidos e sem ocupação, particularmente após a desmobilização do exército em 1559. Alguns deles tinham entrado em contacto com soldados protestantes, durante as suas carreiras militares; todos eles lançavam olhares cobiço­sos para a riqueza e as propriedades da igreja. «Muitos», segundo o chanceler L'Hôpital, «refugiam-se sob o manto da religião, se bem que não tenham Deus e sejam mais ateus que religiosos: entre eles existem almas perdidas, que consumiram e gastaram tudo o que tinham e apenas podem sobreviver aproveitando as perturbações do reino e as posses dos outros homens» 12•

Os motivos inevitavelmente complexos subjacentes a esta conver­são em massa de grandes e pequenos nobres são a longo prazo menos importantes do que o facto de ela ter ocorrido. O seu resultado foi uma transformação radical do equilíbrio do poder político no Estado. Um grupo de nobres, muitos dos quais já se opunham a diversos aspec­tos do governo e da política régios, ligavam-se assim entre si, e a outros grupos da sociedade, através da fé escolhida. Este grupo explo­rava naturalmente todos os meios ao seu dispor, incluindo as oportuni-

11 'R!obeJI'It M. Kmgd()l]l, Geneva and the Coming of the Wars of Reli­gion in France, 1555-1563, Genebra, 195>6, i[>. 6.

12 Citado por Lucü·en Romd1e1!', Le Royaume de Cathérine de Médicis, vol. II, 3.• edição, P~a~ris, Cl.t925, p. 21.61.

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dades proporcionadas pela reumao dos parlamentos, para influenciar a política religiosa da Coroa e alcançar, se possível, posições de poder no Estado. Não é portanto de surpreender que a década de 50 e o início da que se seguiu tenham visto a formação de «partidos» protestantes em diversos países europeus e a organização de campanhas protestantes, apoiadas pela aristocracia, nos seus parlamentos e Estados Sociais.

A pressão simultaneamente política e religiosa exercida por uma parte influente da nobreza cortesã da província criou novos e perigosos problemas aos monarcas, já em má situação. Isabel teve a so·rte de a causa de Roma estar já demasiado desacreditada em Inglaterra, devido aos acontecimentos do reinado de Maria, para que pudesse haver qual­quer resistência eficaz e organizada às concessões aos protestantes radi­cais que sentiu necessidade de fazer. Mas mesmo ela foi incapaz de evitar a alienação de um grupo influente de nobres ainda ligados à velha religião, que se retiraram à espera de oportunidade. Em pelo menos dois Estados continentais, no entanto - a Polónia e a França -existiam fortes perspectivas de conflito entre os sectores religiosos rivais se a Coroa mostrasse algum indício de se inclinar para um deles; e num terceiro, os Países Baixos, verificou-se um agoirento crescimento de oposição religiosa e política ao regime espanhol.

Os príncipes em causa - Filipe 11, Catarina de Médicis e Segis­mundo 11 Augusto da Polónia- adoptaram diferentes modos de defron­tar o problema. Filipe 11, decidido a não governar hereges, aplicou desde o início nos Países Baixos uma vigorosa política de repressão 13• Segis­mundo, se bem que não fosse menos sincero no seu catolicismo do que Filipe, compreendeu que a repressão na Polónia estava fora de questão. A Sejm ou dieta, dominada pela pequena nobreza, tinha uma mentalidade protestante ou, pelo menos, fortemente anti-clerical. Uma tentativa precipitada da dilapidada Igreja Romana na Polónia no sen­tido de fazer vigorar as leis contra a heresia provocou uma tempestade na dieta de 1552, e o rei só conseguiu acalmá-la aceitando um com­promisso temporário segundo o qual as cortes clericais deveriam ser suspensas durante um ano, enquanto a pequena nobreza deveria, em troca, continuar a pagar a dízima. Se bem que Segismundo se sentisse suficientemente forte para resistir a novas exigências protestantes nos anos que se seguiram, considerou necessário prolongar o compromisso de 1552. Como resultado, o catolicismo romano e as diversas seitas pro­testantes começaram, ainda que com dificuldade, a aprender a difícil arte da coexistência; e num momento em que a maior parte do conti­nente se encontrava dividido em dois campos opostos em matéria de fé, os polacos começavam já a deslocar-se, com alguma hesitação embora, para a aceitação da tolerância como uma máxima do Estado.

13 V,er rudlliante, cap. 4..

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Parecia ser necessano escolher entre a repressão e uma qualquer forma de tolerância, mesmo que tácita. Qualquer delas, ou nenhuma delas, poderia ser viável. Mas nos anos 60 parecia não existir outra alternativa, se bem que Catarina de Médicis ainda se agarrasse à espe­rança de esta existir. Ela própria indiferente às subtilezas da teologia, que considerava matéria desconcertante e incompreensível, tinha dificul­dade em acreditar que outros as pudessem ver a uma luz diferente. O cardeal de Lorena alimentara durante muito tempo desejos de reunir um concílio . nacional francês, como meio de proporcionar uma solução especificamente galicana para os problemas de uma igreja galicana sempre suspeitosa de Roma. Por sugestão· do cardeal, Catarina aperce­beu-se das possibilidades de uma reconciliação doutrinai completamente ilusória a um nível internacional; e começou a desenvolver a ideia de um concílio nacional, com toda a energia à sua disposição.

As contrariedades e infortúnios de Catarina na prossecução do seu objectiv:o sugerem até certo ponto a enorme dificuldade envolvida na concepção de uma fórmula religiosa geralmente aceitável, em parti­cular quando o equilíbrio das forças políticas era desfavorável à tenta­tiva. Nos primeiros meses de 1560 a situação em França era já crítica. Desde o primeiro sínodo nacional calvinista francês, que tivera lugar em Paris em Maio de 1559, que o governo de Francisco li, dominado pdos Guise, adoptara uma série de medidas anti-calvinistas cada vez mais repressivas. A medida que a perseguição se intensificava, os nobres calvinistas mais impetuosos começaram a conspirar. Condé manteve-se na sombra, enquanto um elemento de menor nobreza, João de Barry, senhor de La Renaudie, fazia os planos para um coup em que o rei seria capturado, os Guise presos ou mortos, e o seu regime substituído por um novo governo de nobres simpatizantes da causa protestante. Mas o golpe, planeado para Março de 1560, abortou; e Condé não reco­nheceu os conspiradores, que foram perseguidos e mortos.

A conspiração de Amboise tornou a tentativa régia de conciliação ainda mais necessária, se se desejava salvar a França de uma sangrenta guerra civil. No Verão de 1560 Condé conspirava de novo, e parecia iminente um levantamento nacional dos protestantes. Em 31 de Outu­bro os Guise mandaram prender Condé e condenaram-no à morte por traição, mas a súbita morte de Francisco li, a 5 de Dezembro, salvou a vida a Condé, transformando completamente a cena política. Apesar de terem conseguido dominar Francisco li, os Guise não conseguiram uma influência comparável junto do irmão mais novo·, que agora subia ao trono sob o nome de Carlos IX. A morte do irmão mais velho deu a Catarina uma possibilidade de diminuir o poder dos Guise junto da Coroa. Aproveitando a oportunidade, assumiu os poderes e deveres de regente do jovem rei e começou a associar ao seu governo o irmão mais velho de Condé, António de Bourbon, rei de Navarra. Como príncipe de sangue, Navarra estava em condições de assumir uma posição pro­eminente durante a menoridade do rei, e os Estados Sociais reconhe­ceram-no como lugar-tenente geral do reino.

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Catarina encontrava-se bem colocada, como rcgt:nll:, pnra apli ·ar os seus grandes projectos de reconciliação política · r ·ligiww. Mas a antipatia entre os Guise e os Bourbon, exacerbada pelos Sl:ll fl di I' ·rL•ntes credos religiosos, dividiu a nação política em. dois campos hostis. Ml'SIIIO que fosse possível conceber uma fórmula religiosa conciliatória, tor­nar-se-ia necessário um terceiro grupo forte para ajudar Catarinu a im pô-la. O dirigente óbvio, e aliás único, de um tal grupo era Montmo rency, ligado por parentesco aos nobres protestantes e pela rcligiao ao grupo dos Guise. Agora que estes tinham perdido parte do suu poder, Montmorency recuperou a sua influência na corte. Mas, sendo sem­pre mais forte em lealdade e sentido do dever do que em imaginaçao política, não esteve à altura da oportunidade que lhe foi dada, c que talvez nunca tenha sequer compreendido bem. Apesar do seu ódio aos Guise, colocava-se do lado destes na raiva pelo recente êxito de António de Bourbon na aquisição de uma importância que ele próprio e o duque de Guise estavam habituados a partilhar no passado. Manteve-se igualmente inflexível no seu ódio à heresia, não sendo homem para encorajar um compromisso religioso. Em vez de ocupar portanto uma posição intermédia, tendeu gradualmente para um rapprochement com os seus antigos rivais, os Guise.

Este notável alinhamento das forças políticas foi completado em Abril de 1561, quando se formou um triunvirato constituído pelo duque de Guise, por Montmorency e pelo colega deste em Cateau­-Cambrésis, o marechal de Saint-André. Criado a fim de salvar a França de cair sob o controlo protestante, o triunvirato, pela sua simples exis­tência, colocou o país mais próximo da guerra civil. As possibilida­des de Catarina formar agora uma terceira força eram praticamente nulas, mas a regente manteve a sua decisão de realizar o concilio nacional, nutrindo ainda esperanças de reconciliar Condé e Guise. Em fins de Agosto de 1561 Teodoro Beza, escolhido como porta-voz pro­testante, chegou a França vindo de Genebra, e foi convocado para uma entrevista em Saint-Germain com a rainha-mãe e o cardeal de Lorena. Alguns dias mais tarde, a 9 de Setembro, o colóquio de Poissy abriu com a presença do rei.

O colóquio foi organizado menos como um concílio do que como um tribuna onde os protestantes faziam figura de réus. Mas Beza, pro­pagandista inteligente se bem que muitas vezes violento, apresentou cuidadosamente os seus argumentos e conseguiu que a audiência lhe fosse favorável até ao momento em que utilizou uma imagem infeliz para explicar a concepção calvinista da Real Presença. «Blasphema­vit! », gritaram os bispos católicos escandalizados, e Catarina viu-se obrigada a afirmar que não :eretendia quaisquer inovações em ques­tões de fé. O incidente revelou a extrema fragilidade de qualquer base de compromisso e, apesar de as discussões continuarem durante as semanas seguintes, não conseguiram aproximar minimamente os dois sectores. Pelo contrário, o cardeal de Tournon, porta-voz das forças

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conservadoras, apelou para o rei no sentido de recusar aos hereges o direito de resposta, de acordo com a fórmula un roi, une foi, une loi.

O próprio cardeal de Lorena estava agora sujeito a fortes suspeitas devido à sua atitude conciliadora, e a ortodoxia assegurou o triunfo final quando o jesuíta General Laynez interveio a 25 de Setembro denun­ciando todo o objectivo do colóquio e insistindo em que o único ver­dadeiro concílio estava então reunido em Trento.

A intervenção de Laynez, que levou Catarina às lágrimas, signi­ficava de facto que o colóquio estava condenado. A faculdade de teolo­gia na Sorbonne rejeitou a proposta de compromisso em 9 de Outubro, e o colóquio propriamente dito terminou formalmente a 14. O seu encer­ramento foi seguido da retirada dos notáveis católicos da corte - o duque de Guise e o cardeal de Lorena a 19 de Outubro, Montmorency a 23. Mas Beza ficou, pregando em Saint-Germain e aconselhando os diri­gentes protestantes, que Catarina via agora como possíveis defensores da monarquia contra uma revolta dos Guise. A partida destes permitiu­-lhe e aos seus conselheiros retomarem uma política moderada que culminou no famoso Édito de Janeiro, de 1562. Segundo este, garan­tia-se aos huguenotes liberdade total de culto fora das cidades e o direito ao culto privado dentro destas. Era-lhes igualmente permitido reunir sínodos e os seus pastores eram oficialmente reconhecidos desde que fizessem juramento de fidelidade à coroa. Este édito foi um triunfo para Beza e Coligny, mas veio demasiado tarde. Os Guise esta­vam decididos a resistir à moderação. A 1 de Março de 1562 o duque de Guise, que se dirigia armado para Paris, permitiu aos seus acompa­nhantes que atacassem um grupo de protestantes em Vassy, na Cham­panha. Setenta e quatro foram mortos, e cem ou mais feridos. Guise mostrou o que pensava do édito, e deixava de ser possível fugir à guerra civil.

A desesperada tentativa de Catarina no sentido de obter uma reconciliação doutrinai estava de facto destinada a fracassar muito antes até de ter sido convocado o colóquo de Poissy. O momento de união confessional passara há muito. As únicas alternativas eram agora a repressão, ou uma forma de tolerância. Mas a repressão não seria pro­vavelmente eficaz, quando os aristocratas dissidentes viessem em defesa dos hereges. Por outro lado, a tolerância tinha inimigos poderosos, como o comportamento do duque de Guise demonstrara. Qualquer que fosse a solução escolhida - repressão ou tolerância - seriam portanto necessárias uma cuidadosa direcção e condições políticas basicamente favoráveis para alcançar um grau de êxito razoável. Este era, no en­tanto, essencial; o fracasso da tentativa de pôr fim à discórdia de um modo ou de outro conduziria à desintegração gradual do Estado. O Estado de meados do século dezasseis era, de facto, uma instituição vulnerável, desprovida de uma base financeira sólida e com um fun­cionalismo inadequado. A sua integridade era posta em perigo por dis­sidentes religiosos e por nobres indisciplinados, que viam no «consti-

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tucionalismo» e na discordância religiosa uma oportunidade de promo­ver os seus objectivos privados. Em momentos como este havia razões suficientes para os príncipes recearem a combinação da agita­ção aristocrática, popular e religiosa. Ser-lhes-iam necessários timoneiros de outro nível para poderem navegar com êxito por entre os escolhos da rebelião e escaparem aos baixios das lutas confessionais.

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PARTE 11

1559-1572

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IV

PROTESTANTISMO E REVOLTA

1. Guerras religiosas?

Os anos 60 foram uma década de revolta. Em França, houve guerra civil desde 1562. Nos Países Baixos, um movimento de protesto da alta nobreza foi seguido de um levantamento e revolta populares em 1566. Na Escócia, a rainha foi deposta em 1567 e fugiu derrotada para a Inglaterra em 1568. Em Inglaterra, verificou-se um levanta­mento dos condes do norte em 1569. Em Espanha, a população mou­risca de Granada pegou em armas no final de 1568 e só foi derrotada ao fim de dois anos de uma guerra selvática. Todas estas insurreições estiveram directamente ligadas ao descontentamento religioso, ou foram directamente inspiradas por ele. A revolta nos três primeiros países foi inspirada pelos protestantes. A rebelião no norte de Inglaterra foi uma insurreição católica. A revolta de Granada foi o último protesto deses­perado de uma minoria racial e religiosa contra um domínio cristão e católico que se tomara intoleravelmente opressivo 1•

O facto de estes levantamentos terem assumido uma forte colora­ção religiosa é, nas circunstâncias dos anos 60, bastante natural. Roma contra Genebra; cristãos contra mouros... A crescente intolerância religiosa destes anos alimentou inevitavelmente a desconfiança e o ódio e exacerbou o descontentamento político e social. Mas a relação entre a religião e a política nunca se apresenta clara. Para muitos, tanto na época como mais tarde, as guerras da segunda metade do século dczas-

I Sobne a l'leiV.O.] ba g~ra:nJaJdililla veT wdia.n~be, crupílt.U!l'O 6. im~·UI. hoje em m oda :estuJdrur os «mCJIVÚlmemtos J:1ev<ohuc:i!onálriios da d écaidia dl' 1<640» como eXJemp'los de •UJma «•crise g~era:l ewr.op.eliia». Mas aJS I1C'VOI !..a'-':1 dll t •tll· r!l\<'ln;.~ !!ichnru- j,ootamremte com o !levantamento na C6rsega .em ·1'504 ,P'I Ili~\Cü J tl merecer J,guaJimem'l:ie •e<SSie trat•aan:en1Jo, sob o título «a crise g •rflll fi'l\ dC.c:t,ftra de :15\60». Uma oompaTação entre o dM1erente traita:mento drudo r~t• rl ·c~·~ hriL'l t.o­rilaJdocr.es aos a:con>beelian.emtos detsbrus duaJS décadas porde setr ~hllllll•LLJm~·w11~nrt;e esolarrec:e:dora e i.nSibrutirva.

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seis foram essencialmente «guerras religiosas». «Esta guerra», escreveu o pastor protestante francês Pedro Viret, «não se assemelha a outras guerras, pois mesmo o mais pobre dos homens tem um interesse nela, dado que lutamos pela liberdade de consciência (la liberté de nos cons­ciences)» 2• Por outro lado, o embaixador veneziano conseguiu analisar as guerras em termos de pura motivação secular: «Do mesmo modo que César não pensava ter igual e Pompeu superior, estas guerras civis nas­ceram do desejo do cardeal de Lorena de não ter igual, e do Almirante (Coligny) e da casa de Montmorency de não terem um superior» 3

O facto de estas guerras serem ou não «religiosas» depende até certo ponto da guerra que se considere. Um pastor calvinista dificil­mente via o conflito do mesmo modo que um Condé, nem um Condé o veria como um artesão. Se, para alguns, a salvação e o triunfo da sua fé era o único objectivo da luta, para outros pode ter constituído apenas um pretexto conveniente. No entanto, todos aqueles que lutaram nas fileiras protestantes possuíam, quanto mais não fosse por serem com­panheiros de armas, uma mesma visão do mundo. Tratava-se de um mundo onde o cristão mantinha uma luta sem tréguas contra o poder de Satã; onde o próprio Papa - o filho de Satã - era o anti-Cristo e as suas obras eram obras de idolatria, trevas e superstição. As for­ças das trevas lutavam contra as forças da luz mas, finalmente, o reino de Deus triunfaria sobre o dos homens, e Satã seria derrubado.

Era no ponto em que esta visão cósmica chocava com os assun­tos humanos que as diferenças de ênfase e opinião tinham início. Que atitude deveria adaptar o homem de fé face a este terrível conflito? Como deveria considerar o poder civil? Qual era o seu verdadeiro dever, tanto em relação a Deus como ao homem? Para os seus oposito­res, tanto católicos romanos como luteranos, o calvinismo conduzia por natureza à desordem civil. «A sua religião», declarava um típico pan­fleto católico romano da época, «tende a isentá-los da sujeição aos homens, de modo a poderem viver na liberdade do suíço, e a fecha­rem-se em cantões» 4• Existe sem dúvida um elemento de verdade nisto - havia certamente determinadas tendências «democráticas» inerentes a uma religião que tanto exigia do indivíduo leigo e lhe dava tantas oportunidades de participação activa na vida da igreja. Mas onde esse elemento «democrático» entrava em contacto com a vida política, os acontecimentos mostraram que os seus efeitos não eram de modo algum previsíveis. Observava-se uma constante tensão no interior do movi­mento calvinista entre os ministros e parte do laicado. João Knox e os seus

2 Ciltadlo pt<llr Vitto11io de Capra'I1iis, Propaganda e p·ensiero político in Francia durante le guerre di religione, vol. I, NápO'le.s, ·1959, p. J.06.

3 Citado por A. W. Whitehead, Gaspard de Coligny, Loodres, 1904, p. 33.

4 Capralriis, ibid., p. 100.

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correligionários estava decididos a levar a cabo uma revolução religiosa democrática, que conseguiria o (algo improvável) fcit de aproximar o reino da Escócia do reino dos céus na terra. O conde de Moray, por outro lado, não aceitaria a Kirk * para o seu senhor. Esta resistCncia dos ho­mens laicos influentes e, particularmente, da nobreza laica ao domínio ·lcrical e ao controlo «democrático» percorreu toda a história do calvi­nismo nos finais do século dezasseis. Ocasionalmente, um chefe ca lvi­nista - em particular Coligny em França- partilhava tantos idea is dos ministros da fé quantos fossem necessários para trabalhar em ín tima har­monia com eles. Mas, mais vulgarmente, a chefia laica olhava de sos­laio para os pastores devido às suas tendências radicais, ao seu perigoso desrespeito pelas realidades sociais e políticas e ao seu autoritarismo ·lerical, enquanto estes criticavam os dirigentes por negligenciarem as coisas de Deus e preferirem as riquezas terrenas.

Seria no entanto enganador pensar que os pastores desempenha­vam necessariamente 6 papel de radicais. O calvinismo podia ser, c era-o muitas vezes, uma religião activista. Mas qualquer fé funda­mentada na doutrina da predestinação tendia a sublinhar fortemente a necessidade da paciência e da resignação cristã. A aliança entre o cal­vinismo e as forças de protesto político ou social não era, portanto, uma consequência previsível. Dependia, em primeiro lugar, de uma vitória do elemento activista dentro da própria igreja calvinista. Levados a juntarem~se pela necessidade mútua, o calvinismo militante e o des­contentamento político e social militante faziam então causa comum. Mas, mesmo no auge das lutas, nunca existiu uma relação fixa e inva­riável entre os três elementos mais dinâmicos das forças de protesto - calvinismo, oposição aristocrática e descontentamento popular. Os elementos tornaram-se interdependentes, mas as suas relações viram-se sujeitas a constantes variações da ênfase relativa, em função dos tempos e dos homens.

No início dos anos 60 existiam semelhanças notórias entre a si­tuação em França, na Escócia e nos Países Baixos, mas o movimento revolucionário nestes três países evoluiu segundo diferentes ritmos e de modos diversos. Na Escócia, a revolta desenvolveu-se e triunfou rapi­damente porque Maria, Rainha da Escócia, conseguiu afastar de si todos os sectores de opinião, e não dispunha do poder militar necessá­rio para resistir. Mas em França e nos Países Baixos a história foi muito diferente, porque aos rebeldes deparou-se-lhes uma resistência eficaz e a luta tornou-se prolongada.

Foi a situação das igrejas em França que primeiro obrigou Gene­bra a redefinir a sua atitude relativamente às autoridades seculares e às facções no interior do Estado. A política de Calvino, tal como a de Lutero antes dele, consistia de facto na não resistência face à perse-

* Igreja na. Escócia (N. R .) .

S3

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guição. Em 1559, quando as perseguições movidas contra os calvinistas franceses se tornavam cada vez mais severas, o homem de confiança de Calvino, Beza, escreveu a Bullinger, em Zurique: «Perguntam-nos muitas vezes se nos é permitido pegar em armas contra aqueles que são inimi­gos não só da nossa religião corn.o também do reino ... Até agora, a nossa resposta tem sido sempre que a tempestade só deve ser enfren­tada com as armas da oração e da paciência» 5• Esta doutrina, no entanto, era mais fácil de pregar em Genebra do que de ser posta em prática pelos seus seguidores. E também não agradava a alguns dos fogosos jovens nobres que recentemente tinham entrado para as fileiras calvinistas em França. La Renaudie e os seus apoiantes desviavam-se completamente da política declarada por Genebra quando planearam a conspiração de Arnboise, em Março de 1560. Por outro lado, havia indícios de que até em Genebra o estado de espírito começava a alterar-se. Um tribunal genebrino absolveu explicitamente Calvino e Beza de acusações de cumplicidade na conspiração de Arnboise, mas podia-se deduzir urna certa aprovação do facto de Beza ter enviado a La Re­naudie, através de Francisco Hotrnan, um pequeno livro que denunciava os Guise, acompanhando a oferta com a sua própria tradução do per­tinente Salmo 94: «Ó Senhor Deus, a quem a vingança pertence, mostra-Te ... »

A verdade é que, se se desejava que o calvinismo sobrevivesse, tornava-se cada vez mais difícil manter a atitude tradicionalmente pas­siva de Genebra. O golpe de La Renaudie foi mal concebido e mal organizado, mas mais tarde ou mais cedo seria necessário opôr a força à força. Agora que as igrejas surgiam às claras sob a protecção aristo­crática e que os nobres calvinistas se encontravam fortemente envolvidos nas contendas entre facções na corte, a religião viu-se inevitavelmente misturada com a alta política, bem corno forçada a recorrer a armas políticas - a intriga, a conspiração e, finalmente, a revolta. Após o fra­casso da conspiração de Arnboise, Condé juntou-se ao irmão, o rei de Na varra, um protestante pouco inflamado, nas suas propriedades em Nérac. A pedido de Navarra, Beza dirigiu-se de Genebra para Nérac a 20 de Julho de 1560, a fim de tornar parte nas suas discussões, que abordaram o estado em que se encontravam as igrejas reformadas em França e a atitude que deveria ser adoptada relativamente ao governo dominado pelos Guise, à luz dos acontecimentos recentes.

A primeira decisão tornada no encontro de N érac parece ter sido estabelecer contacto com os líderes protestantes em toda a Europa. Durante 1561, partiu da corte de Navarra urna série de embaixadas secretas aos cantões suíços, à Inglaterra e à Alemanha, onde o jurista francês Francisco Hotrnan conduziu negociações secretas com os prínci-

s Ciltado puT P. F. Gedsendm:f, ThéOdore de Beze, Genebra, Q949, p. !1!1'6.

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pes protestantes que deviam part1c1par na Dieta Imperial. Simultanea­mente, pelo menos parte dos dirigentes huguenotcs parece ter tornado precauçóes militares contra a eventualidade de urna guerra. Dificilmente poderia ser considerado acidental o facto de urna grande encomenda de pólvora, fabricada em Genebra por companheiros de Calvino, ter sido vendida em Lião em Julho de 1561-presumivelmentc a nobres do sudeste de França que mais tarde comandariam os exércitos hu­guenotes.

Foi nos meses que se seguiram ao colapso do colóquio de Poissy, em Outubro de 1561, que Beza e os líderes calvinistas aceitaram final­mente compromissos que conduziriam inevitavelmente a um recurso às armas. A posição de Catarina de Médicis durante estes meses foi excep­cionalmente difícil. A sua tentativa de conseguir uma reconciliação em Poissy fracassara- em parte porque as diferenças religiosas eram incon­ciliáveis e em parte porque as duas grandes facções dos Guise e dos Bourbon já tinham adaptado atitudes que não estavam dispostas a aban­donar. Os choques entre os dois grupos tornavam-se cada vez mais frequentes, e era evidente que ambos se estavam a preparar para a guerra. Se as actividades dos Bourbon se tornavam cada vez mais ameaçadoras, o mesmo acontecia com as dos Guise, que se retiraram da corte, sem autorização régia, antes de finais de Outubro.

O poder dos Guise era formidável, não só devido à riqueza e grande influência da família, como ainda devido à sua vasta influência no clero e às ligações internacionais. Através da aquisição de arcebis­padoo e bispados e da hábil utilização do patrocínio eclesiástico, os Guise tinham assegurado uma posição dominante na igreja galicana. Encontravam-se ligados pelo casamento às dinastias no poder na Escócia e na Lorena e estavam em condições de negociar em pé de igualdade com os mais importantes príncipes europeus. Enquanto Condé procurava aliados nas cortes estrangeiras, os Guise procediam do mesmo modo. Reforçaram a sua ligação à corte espanhola; fizeram o rei de Navarra desinteressar-se dos seus amigos protestantes; e, explorando a mútua antipatia de luteranos e calvinistas, conseguiram chegar a um acordo com o duque luterano de Vurtemberga, que contrariava os pro­jectos de Condé de aliança com os príncipes protestantes alemães.

Mas o maior perigo enfrentado por Catarina consistia no facto de os Guise controlarem o exército e a artilharia reais, talvez os me­lhores na Europa. Sem tropas próprias, e sem dinheiro para as formar, o seu único recurso face à intimidação dos Guise consistia em pedir auxílio aos inimigos destes. Em finais de 1561 e princípio de 1562, ela convocou secretamente Beza e o Almirante Coligny, perguntando-lhes quantos soldados poderiam os huguenotes colocar à disposição da Coroa em caso de necessidade urgente. Coligny informou-a de que existiam 2 150 comunidades protestantes que estariam dispostas a vir em seu auxílio, desde que pudessem exercer tranquilamente o seu culto. O :E:dito de Janeiro de 1562, essa expressão de moderada política cortesã que garantia aos calvinistas uma liberdade de culto condicionada, viria a

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Hansformâ-ios ein defensores da órdem 1egaimente estabelecida. êonse­quentemente, quando a França entrou em guerra civil em Março de 1562, após o massacre de Vassy, os calvinistas tinham um excelente pretexto para os seus preparativos militares e haviam conseguido respeita­bilidade como apoiantes da causa régia. Mesmo a mais delicada consciên­cia calvinista se tranquilizava com a afirmação de Condé de que ele e os seus seguidores defendiam a «autoridade do rei, o governo da rainha e a tranquilidade do reino».

Condé, no entanto, não esteve à altura da oportunidade que se lhe deparara. «A prisão do rei ou a tomada de Paris», escreveu um contemporâneo, <<equivale a meia vitória na guerra civil». Condé perdeu ambos. Os huguenotes sofreram durante as guerras civis as consequên­cias da fraqueza do protestantismo em Paris, as quais se manifestaram assim que foi disparado o primeiro tiro. Em 15 de Março o duque de Guise, desafiando as ordens régias, entrou em Paris com dois ou três mil homens. Sentindo-se em desvantagem na capital, Condé abandonou-a a 23, dirigindo-se a Meaux, onde, quatro dias mais tarde, Coligny se juntou relutantemente a ele. Condé poderia ter ido, solicitado ou não, em auxílio da rainha-mãe, que se encontrava em Fontainebleau com o jovem Carlos IX, mas não compreendeu esta óptima oportunidade de tomar a iniciativa política. O facto de não se juntar a Catarina em Fontainebleau é tão inexplicável como foi desastroso para a sua causa. Com efeito, se tivesse colocado a família real sob a sua protecção, poderia ter associado convincentemente o calvinismo à manutenção da autoridade real. Dadas as circunstâncias, porém, a rainha, como cató­lica, não podia abandonar Fontainebleau e colocar-se à mercê dos seus súbditos huguenotes. Ficou portanto onde estava, esperando o inevitável - o pedido dos triúnviros de que voltasse para Paris, que agora con­trolavam completamente. Sob a pressão de Guise e das suas coortes armadas, ela e o rei acabaram por empreender a lenta e relutante viagem para a capital, onde entraram a 6 de Abril. Daí em diante, Guise e os católicos seriam os guardiães da Coroa.

Se bem que o êxito dos triúnviros na apropriação das pessoas de Catarina e Carlos IX privasse os huguenotes das duas peças mais valiosas do tabuleiro, deixou pelo menos a estes alguma justificação para recorrerem às armas. A 8 de Abril, Beza publicou um manifesto segundo o qual a acção militar de Condé era necessária para libertar a rainha regente e o rei do controlo de Guise. A 2 de Abril, Condé já tinha ocupado Orleães, agora transformada no quartel-general da causa huguenote. Durante o resto do mês, os huguenotes revoltaram-se nas províncias, aparentemente para enviar auxílio a Condé em Or­leães mas de facto, num maior número de casos, para saldar agravos locais. A rebelião armada estava portanto na ordem do dia e coube a Beza, primeiro como ajudante e cúmplice de Condé e depois como su­cessor de Calvino, quando este morreu em Maio de 1564, formular para os fiéis uma teoria da resistência armada.

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Se bem que a ficção conveniente de uma defesa da autoridade real fosse útil durante algum tempo, começou a parecer demasiado gasta devido à pressão dos acontecimentos. Mas o desenvolvimento de uma doutrina amadurecida da resistência foi um processo· lento c hesitante, dado que todo o peso da tradição favorecia as forças da autoridade. O próprio Beza detestava o iconoclasmo que varria as igrejas francesas nas regiões sob controlo huguenote e não desejava dar aos seus segui­dores mais zelosos uma justificação para os excessos religiosos ou polí­ticos. A teoria continuou portanto claudicando atrás da acção, se bem que o passo decisivo tivesse sido dado em 1562. A igreja calvinista, tanto a nível nacional como internacional, encontrava-se agora prepa­rada, em certas circunstâncias, para se associar à revolta armada. Depois de dado este passo, abria-se a possibilidade de a rebelião de Condé assumir pelo menos algumas das características de um levanta­mento religioso, e de os seus líderes utilizarem todo auxílio que a igreja e a fé pudessem fornecer.

2. Os Huguenotes em guerra

O auxílio de Genebra e das igrejas nacionais aos dirigentes da insurreição Bourbon-Châtillon foi decisivo de muitos pontos de vista - e, principalmente, evitando que esta constituísse apenas mais uma tentativa abortada e de fácil eliminação da tomada do poder por um grupo de aristocratas insatisfeitos. Enquanto membros de um movi­mento religioso internacional, Condé e os seus amigos verificaram que se encontravam agora abertas muitas portas para além das fronteiras fran­cesas. De início, houve alguma hesitação em auxiliar a revolta armada. Frederico, o Eleitor Palatino, que mais tarde viria a ser tão activo na causa calvinista, exprimiu a sua discordância da rebelião e insistiu em que se recorresse à oração. Mas Beza, figura conhecida e respeitada internacionalmente, em toda a Europa protestante, negociou com os príncipes alemães a requisição de tropas de Reiter, que nos anos seguin­tes viriam a transformar-se no núcleo de um exército móvel protestante, pronto a aceitar actuar nos Países Baixos ou em França.

Também foi Beza quem actuou como ligação entre Condé c Genebra durante os primeiros e cruciais meses da guerra, Genebra aju­dou a fornecer armas e munições às forças de Condé e tomou parte na negociação dos empréstimos obtidos em Lião, Basileia e Estras­burgo para o financiamento das suas campanhas. O financiamento dos huguenotes' transformou-se assim numa operação internacional, na qual a Inglaterra, receando as consequências de uma vitória de Guise, também estava disposta a cooperar, mas com um preço. Através do tratado de Hampton Court, de Setembro de 1562, Isabel ofereceu um substancial empréstimo em troca da cedência imediata do Havrc, que deveria ser trocado por Calais no final da guerra.

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A entrega de território francês à Inglaterra prejudicou bastante a causa de Condé mas, de outros pontos de vista, as suas ligações inter­nacionais foram altamente vantajosas. No entanto; foi o apoio das igrejas locais que transformou siinultaneamente o carácter e as pers­pectivas da insurreição de Condé. Tradicionalmente, um nobre revol­toso baseava-se no apoio da sua própria clientela e dos seus partidários, assim como em todos os descontentes que pudesse convencer a apoia­rem a sua causa. Tal como os seus predecessores, Condé apressou-se a convocar os seus vassalos e clientes, que juraram formalmente «pres­tar-lhe serviços leais». Mas, paralelamente a este corpo tradicional de aderentes vindos das fileiras dos Bourbon-Châtillon, voltou-se para um outro . exército potencial de extensão ainda maior - os membros das igrejas e comunidades calvinistas que constituíam, no seu conjunto, a Igreja Reformada Francesa.

A organização destas igrejas e comunidades seguia um padrão bem definido. Cada igreja local tinha o seu próprio «consistório» de sacerdotes e anciãos leigos e - quando suficientemente grande- a sua própria companhia de pastores. Os consistórios de um certo número de igrejas vizinhas agrupavam-se num «colóquio», que exercia uma vigilân­cia genérica sobre os assuntos religiosos da região. Acima destes, ao nível provincial, encontravam-se os «sínodos» e, finalmente, no cume, o sínodo nacional, que se reuniu pela primeira vez em Paris em 1559. Em finais do século dezasseis, já tinham sido realizados onze destes sínodos nacionais, tendo sido num deles, o de La Rochelle de 1571, que a Igreja Reformada francesa adoptou a sua definitiva confissão de fé - a Confession de La Rochelle ou Confessio Gallicana.

Este sistema de organização eclesiástica demonstrou ser ideal para as tarefas que era agora chamado a cumprir. rroporcionava uma rede coerente de corpos fortemente disciplinados que abrangia todo o país de modo a incluir franceses de todas as camadas sociais; e encai­xava perfeitamente no sistema de clientela de Condé. Durante 1560 e 1561 a maioria das igrejas, particularmente as das regiões mais afectas aos huguenotes - o Delfinado, o Languedoque, a Guiena e a Pro­vença - colocaram-se sob a «protecção» formal dos notáveis locais ou da pequena nobreza rural, que se comprometeram a defendê-las em caso de ataque. Estes «protectores» faziam por sua vez parte de uma hierarquia social dirigida pela pessoa de Condé, «protector geral das igrejas de França» a partir de 1562.

Entre 1560 e 1562, portanto, a facção Condé sobrepôs a sua própria organização militar à organização meramente religiosa das igrejas calvinistas francesas. Este facto transformou naturalmente o carácter tanto do calvinismo francês como da sua relação com a Coroa. Em vez de se virarem instintivamente para os funcionários régios que, aliás, eram cada vez mais incapazes de as proteger, as igrejas pro­curavam agora o apoio de Condé e dos seus clientes nobres. Isto enfra­queceu, por sua vez, a influência tanto dos sacerdotes como de Gene­bra, que empreenderam uma longa batalha perdida no sentido de evi-

tar que toda a autoridade lhes escapasse das mãos. Os sacerdotes, que sem dúvida não souberam prever as consequências ao recorrerem ini­cialmente à ajuda dos nobres, viam-se agora cada vez mais postos de lado no governo das suas igrejas, que se estavam a converter em instru­mentos de uma facção nobre dissidente. Esta capitulação das igrejas perante a liga Bourbon poderia ter culminado na total subordinação dos objectivos religiosos aos fins políticos, se não fosse a integridade religiosa de uma parte da nobreza e, particularmente, do Almi rante Coligny, que nunca perdeu de vista aquilo que para ele constituía o principal objectivo da revolta- a salvação da igreja de Deus. l•'oi Coligny, mais do que qualquer outro homem, que manteve unidos os mo­vimentos político e religioso e impediu as ambições seculares de dis­torcerem irremediavelmente uma causa autenticamente religiosa.

A longo prazo, apesar de todos os esforços de Coligny, a forte ligação entre as igrejas e uma facção aristocrática em armas, trouxe pre­juízos irremediáveis ao movimento calvinista em França. As igrejas dependiam mais das cidades do que da aristocracia em número de apoian­tes, e a tomada das igrejas pelos nobres - alguns deles pouco melhores do que gangsters- conduziu inevitavelmente a uma diminuição do apelo calvinista aos homens sinceros e convictos, contribuindo para refrear o movimento de conversão que ganhara força em finais da década de 50. Mas, a curto prazo, a aliança entre Condé e as igrejas calvinistas mos­trou ser inegavelmente benéfica para ambos. As igrejas obtiveram pro­tecção militar à escala nacional, num momento em que o poder dos Guise as ameaçava de extinção. Pelo seu lado, Condé ganhou um ins­trumento de extraordinária eficácia civil e militar para a prossecução dos seus objectivos.

Depressa se tomou evidente que a intrincada organização das igre­jas huguenotes as tomava idealmente apropriadas para o trabalho de subversão e revolta. Enquanto os governadores das províncias, despro­vidos de quaisquer instruções coerentes da corte, observavam o desen­volver dos acontecimentos com indiferença ou apostavam prudentemente na facção mais conveniente, os huguenotes tinham grandes oportuni­dades de se infiltrar e subverter. Obtendo um controlo sistemático dos organismos públicos, conseguiram construir uma ,hierarquia de fun­cionários huguenotes paralela à da Coroa. Sempre que possível, procura­ram igualmente controlar o governo municipal e provincial. Um exemplo clássico desta técnica é fornecido pelo controlo de Lião no início da guerra. Este foi planeado e organizado, para grande infortúnio de Cal­vino, pelos pastores locais. Depois de a cidade estar nas suas mãos, estes empreenderam sistematicamente a eliminação das imagens nas igrejas, a expulsão dos monges e freiras e a instalação de represen­tantes huguenotes na administração municipal. Independentemente da justeza destes métodos, não se pode negar o valor dos resultados ohticlos. A posse de Lião, um importante centro das finanças internacionais, muito fez no sentido de facilitar a obtenção de empréstimos para as

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campanhas huguenotes. Condé podia ainda contar com o apoio finan­ceiro dos banqueiros e mercadores calvinistas e com as contribuições voluntárias das igrejas.

O espírito militante das igrejas foi expresso melhor do que nunca pela comunidade calvinista de Valel).ciennes, na fronteira de Hainault. «Estamos decididos», declararam em 1562, «a aguentar e a manter-nos constantes em e pelo nome de Jesus Cristo; de outro modo, se nos voltarmos contra a fé, nunca entraremos no reino dos céus» 6• Os cal­vinistas franceses partilhavam esta apaixonada determinação de se man­ter fiéis até ao fim em defesa de uma causa para a qual pensavam ter sido chamados por Deus; e mostraram-se bastante aptos na procura de meios práticos de realizarem os Seus especiais desígnios. Em particular, foi através da. exploração inteligente da sua organização religiosa que com uma rapidez exemplar conseguiram mobilizar um exército para uso do Condé. O exército real, controlado por Guise, era essencial­mente um exército mercenário, com os defeitos característicos desse tipo de organismo. O exército de Condé, por outro lado -se bem que r~forçado por regimentos mercenários estrangeiros - dependia éssen­cmlmente das tropas fornecidas pelas igrejas.

Estas tropas depressa começaram a ser mobilizadas de forma sis­temática 7• Enquanto os sacerdotes exortavam do púlpito os seus reba­nhos a juntarem-se às forças de Condé, era concebido um sistema de m~bilizaçã~ que tinha em conta as dimensões da população. Cada paró­qma devena fornecer a sua quota de soldados, os quais formavam «colóquios» por sua vez combinados em regimentos, alguns dos quais se juntavam ao exército, enquanto outros eram destinados à defesa local. Estes regimentos, largamente recrutados entre os artesãos urbanos, eram de grande qualidade, e os seus chefes não tinham as hesitações quanto a armá-los que eram habituais na Europa do século dezasseis. Normalmente, a organização de uma força de infantaria nacional era estorvada pelo receio das perigosas consequências de armar indiscrimi­nadamente as camadas mais baixas da sociedade. Era vulgar, por exem­plo, que metade dos soldados dos exército reais fossem de cavalaria. Nos exércitos huguenotes, por outro lado, existiam três soldados de infantaria par.a cada soldado de cavalaria, e os comandantes dependiam antes do mms do poder de fogo dos seus regimentos de infantaria ligeira, armados com arcabuzes. Tinham à sua disposição uma elevada quantidade de homens- em 1569 o exército tinha efectivos de 25 000

6 IOiitaJdo IP;OII' tHlel!lli'.iJ P~neilllllie, HiSitOiirrie de BeZgiqUel, !Vloll. I]Jl 3.• 'eid. BruXJelas, :]9123, pp. 4128 e segs. '

7 A O!'ganização m!i>li:trur e navrul huguenote foi estud3!da por Jean de PabLo •em dois all'it'igos intituJ•aoos «Con<tribUJtion à l'étude de I'histoire des in:stitut!ions militaives Huguoo•ots» Archiv für Reformationsgeschichte vols 47-48, 1956-57. ' '

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homens, dos quais 14 OóO eram franceses de origem- que lutavam por uma causa na qual acreditavam apaixonadamente. T ratava-se de um exército formidável que avançava para a batalha ca ntando os Salmos traduzidos por Marot e Beza e, particularmente, o mais famoso de todos os Salmos de Beza, «Que Di eu se montre seulement».

Observava-se o mesmo espírito na frota huguenote criada em La Rochelle no decurso da década de 60. Muitos dos marinheiros dos portos franceses do Atlântico tinham desenvolvido as suas qualidades de navegação e de combate, e exacerbado o seu ódio ao catolicismo, em surtidas no Atlântico e nas Caraíbas espanholas, durante os anos do conflito entre a França e a Espanha. Estes homens foram os recrutas da frota de quarenta navios sob o comando de Joaquim de Sores. A frota patrulhava a costa desde o Cabo Gris-Nez até Baiona, e desempenhou um papel vital no esforço de guerra huguenote, actuando nas rotas ma­

rítimas inimigas, protegendo os navios protestantes e o abastecimento de sal aos Países Baixos e mantendo abertas as linhas de comunicação entre La Rochelle e a Inglaterra protestante.

Entre 1562 e 1570, estas forças militares e navais ajudaram a manter a causa huguenote ao longo de três períodos de guerra aberta, durante os quais se tornou cada vez mais evidente que o calvinismo não controlava, e tinha cada vez menos esperanças de controlar, a leal­dade da maioria dos franceses. A primeira guerra, que teve início em Abril de 1562 e terminou com a Pacificação de Amboise em 19 de Março de 1563, foi principalmente travada no vale do Loire entre as tropas de Condé e Coligny, com base em Orleães, e as de Guise e Montmorency, com o quartel-general em Paris. Felizmente para Cata­rina, a guerra eliminou alguns dos cabecilhas das facções mais respon­sáveis pelos seus embaraços políticos. O rei de Navarra morreu das feridas recebidas em Novembro de 1562. Condé e Montmorency foram feitos prisioneiros na batalha de Dreux 8• O duque de Guise, de modo mais dramático, foi assassinado por um fanático protestante durante o cerco de Orleães, em Fevereiro de 1563. Nos anos que se seguiram, o assassínio de Guise mostrou ser uma nova e poderosa fonte de ódio e tensão, pois Coligny, se bem que oficialmente ilibado em 1565 de

cumplicidade no crime, regozijara-se com o acontecimento, continuando a ser considerado responsável pela família de Guise e seus seguidores. Mas, a curto prazo, a morte de Guise e a remoção de tantos dirigentes

facilitou o caminho para um acordo. Catarina aproveitou a oportuni­dade para aplicar o Édito de Amboise, que, - ao mesmo tempo que reconhecia a liberdade de consciência a todos os seus súbditos - fazia

B .Ao ser (~'!1COrJ:1ectamente) illlformruda de que Dreux era uma vitória huguenote, OataJI'ina reag~u ia:IJteiramJemte de acoli'do com o sCJu caráctetr: «Eh bien!», terá d!ito, «désormais nous prierons Dieu en trançais».

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11111a distinção entre os nobres, que tinham liberdade absoluta de culto c o rest.o .dos huguenotes, cujo culto era restringido a uma cidade e~ cada bazlilage. . . _A Paz. de Amboise foi seguida de um período de suposta recon­

cthaçao nacwnal, durante o qu~l ambas as facções se uniram para recup~rar o Havre aos ingleses. Mas as tréguas revelavam-se difíceis e Catar~n~,. com um i~stinto típico para dramatizar a majestade da rea­leza, mtcwu em Ma10 de 1564 uma viagem pela França com o jovem Ca:los IX, cuja maioridade fora declarada nove meses antes. A rainha­-~~e deslocou-se lentamente, com grande aparato, e deliberadamente ll:trh~ou mascaradas ~ festivais espectaculares para juntar as facções nva:s e pregar as vtrtudes da paz. O clímax surgiu em Baiana no Vera? de. 1565, onde Catarina se encontrou com a filha Isabel de v.a~ms, ramha de Espanha, que já não via desde o casamento desta com Fthpe li em 1559. Enqua~to. espectá~ulo, o encontro das cortes espa­nhola e francesa teve ~m extto sem tgual. Mas, politicamente, foi um desastre. Em vez de vtr pessoalmente, Filipe li enviou 0 duque de ~lba e_?t sua rep~esentação. Não só os encontros de Alba com Cata­nua nao consegurram restabelecer a relação próxima entre a França e a Es?~ha mom~ntaneamente obtida após a assinatura de Cateau­-Cambrests, como atnda suscitaram entre os huguenotes a desconfiança de que as mo~ar<_!uias católicas estavam a preparar um golpe contra eles e os seus trmaos noutras partes da Europa.

Os pior~ receios dos protestantes sobre os encontros de Baiana pa~ec~ram c?nfirmar-se 9~ando o duque de Alba em pessoa dirigiu um ex~rctto e?vtado P?r Fihpe para esmagar a dissidência religiosa nos ~aises Baixos. An,swso por tomar a iniciativa antes que fosse dema­Siado tarde, Conde p~gou novamente em armas em finais do verão de !567 e tentou, sem ext!o, prender Catarina e o rei em Meaux. Desta vez as fo!ças huguenotes tmha-se reunido um formidável corpo de Reiter * alema~s sob o ~omand? de João Casimira, o segundo filho de Frederico ~-El~Itor Palatmo, CUJOS escrúpulos originais quanto a auxiliar a rebe~ l:ao .tmham desaparecid? devido ao que pareciam ser as provas da exis­tencia de u~, v~st<; proJecto papal. A guerra civil em França, portanto, apresentava Ja mdicios de se poder transformar num conflito internacio­~al. Mas est~ segunda guerra religiosa, durante a qual foi morto 0 Idoso condes~avel Montmorency, chegou a uma rápida conclusão com a paz de LongJumeau de Março de 1568.

A paz, no entanto, acabou por ser ainda mais curta do que a guerra que a ~recedera. Catarina fora finalmente afastada dos hugueno­tes pela tentat;va. de c?~P de Condé, e começava a perder as ilusões sobre a sua propna pohtrca de conciliação. Sob a crescente influência do

* Soldados de cavalaria (N. R .).

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cardeal de Lorena, o rei despediu o seu chancelcr L'H pita!, símbolo de moderação. Os Guise estavam de novo no poder, o irmão mais no·vo do rei, o duque de Anjou, exigia uma acção severa contra os rebeldes; e, em Setembro de 1568, atnbos os grupos pegaratn novamente em armas. Na terceira e mais violenta das guerras religiosas, que durou até Agosto de 1570, Anjou derrotou os huguenotes em duas batalhas importantes , Jarnac e Montcontour, ganhando entretanto uma falsa reputação de grande comandante.

Os huguenotes nunca tinham sofrido reveses como os de 1569. O próprio Condé foi morto em Jarnac em Março, e a direcção do mo­vimento huguenote passou para Coligny. Mas sob a direcção deste, o movimento aguentou a tempestade, adquirindo uma nova unidade c coesão. Este grande homem- simbolizado para os seus contemporâ­neos por um inseparável palito, preso à barba ou atrás da orelha

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-conseguiu granjear um respeito e admiração populares que Condé nunca obteve. Faltava-lhe sem dúvida subtileza, e um certo sentido político. Era propenso a encarar as dificuldades de frente, onde outros procurariam rodeá-las. Mas talvez isso fosse apenas uma falha nas suas qualidades, como homem de perseverança a toda a prova, como figura pensativa, austera e um tanto solitária, que vivia para a sua fé e para o seu país e era incapaz de artifícios.

Coligny era um chefe natural, com o dom único de saber captar e manter a confiança tanto da pequena nobreza como das igrejas. E con­seguia igualmente uma boa relação de trabalho com Beza e com Joana d' Albret, a viúva do rei de Na varra. Como comandante, mostrou-se singularmente incapaz de vencer grandes batalhas, mas possuía notáveis dons de estratega. No decurso de 1569, quando os huguenotes eram fortemente pressionados, conduziu uma hábil campanha móvel no Lan­guedoque, enquanto o melhor dos seus ajudantes, Francisco de La Noue, conseguia consolidar a posição huguenote no Poitou. Ambos salvaram os huguenotes da derrota. No verão de 1570, era evidente que os exér­citos reais -mal conduzidos e, como habitualmente, com pouco di­nheiro - tinham sido tristemente incapazes de explorar as vitórias de 1569, e ambos os lados procuravam desesperadamente um acordo. A paz de St. Germain, concluída a 8 de Agosto, de modo nenhum era desfavorável aos huguenotes, introduzindo a novidade de lhes permitir manter guarnições em quatro cidades como medida de segurança (de sureté)- Cognac, La Charité, Montauban e La Rochelle. Enquanto os Guise abandonavam a corte, em sinal de reprovação pelo regresso de Catarina a uma linha moderada, parecia que, após oito anos de guerra e tréguas alternadas, os huguenotes, se não tinham alcançado a vitória, pelo menos não tinham lutado em vão.

9 Rec:ordie-<Se o grito dos se•us opooi.to<reS: «Deus nos sal·ve do paJ11to do A..lrrilli·ran1le! »

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3. A revolta dos Países Baixos

As experiências dos huguenotes na França dos anos 60 mostraram o que os movimentos religiosos e políticos minoritários unidos podiam conseguir, em vez de lutarem isoladamente. A oposição aristocrática ao.s Guise lançara um manto protector sobre as igrejas calvinistas per­seguidas, enquanto estas tinham, por sua vez, dado à facção Condé uma vasta base de apoio popular e o grande benefício de poder utilizar os diversos recursos de uma organização nacional - e internacional. Nos Países Baixos espanhóis, no entanto, a aliança entre a oposição aristo­crática e o calvinismo militante foi muito mais lenta do que em França e, mesmo depois de realizada, revelou algumas diferenças. Isso não era de admirar, dado que apesar de alguns curiosos paralelismos entre a situa­ção em França e nos Países Baixos no início dos anos 60, muitas vezes as semelhanças eram apenas superficiais.

Politicamente, tratava-se de uma coincidência estranha o facto de tanto a França como os Países Baixos serem governados, no início dos anos 60, por um regente do sexo feminino. Margarida de Parma, encar­regue do governo quando Filipe partiu, em 1559, viu-se perante pro­blemas semelhantes aos de Catarina: um declínio da autoridade e pres­tígio da Coroa, um tesouro vazio, Estados Sociais fraccionados e difí­ceis de conduzir, e uma grande nobreza dividida e desejosa de obter o controlo da administração régia. Existia no entanto uma diferença essen­cial entre os regimes em França e nos Países Baixos, que veio a afectar profundamente o carácter das respectivas oposições políticas. Catarina era meio estrangeira, mas dirigia um governo que continuava a ser um símbolo da unidade nacional num país dividido. Margarida, como filha de Carlos V e de origem flamenga, era natural dos Países Baixos; mas dirigia um governo crescentemente visto como estrangeiro. Este facto acabou por ter a longo prazo uma importância incalculável, pois permi­tiu à oposição surgir - ao contrário do que poderia acontecer na França dos anos 60 - como defensora das tradições nacionais contra as inovações estrangeiras.

A situação religiosa, por outro lado, parecia à primeira vista semelhante. Os governos de ambos os países tinham sido colocados na defensiva pela expansão da heresia e, particularmente nos últimos anos, pela crescente actividade e êxito dos calvinistas. Também aqui, no entanto, existiam diferenças. Já em 1560 o calvinismo se encontrava bem estabelecido em França, tendo-se transformado numa organização na­cional. Mas, nos Países Baixos, encontrava-se ainda nesse momento numa fase de imaturidade, sendo muito localizado. O número total de protestantes activos era reduzido - talvez não muito mais de 5 % da população - e entre estes os calvinistas, apesar da actividade de Guy de Bres e seus correligionários, eram uma pequena minoria. O anabaptismo, que ganhara bastantes aderentes no início dos anos 30, possuía ainda um número significativo de seguidores, e em particular nas províncias do

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norte: Holanda, Zelândia, Groningen e Overijssel.. N cs;as. província~, que viriam a ser um dia os bastiões da revolta, a .mflucncta d? calvi­nismo foi durante muito tempo notavelmente reduztda. O seu 1mpacto confinava-se em grande medida, nos primeiros . an~s da década, às cidades do sul industrial- região que, grande 1roma da revolta nos Países Baixos, acabaria por afirmar a su~ leald~de a Espan~a c a Roma.

O progresso do calvinismo nos Pmses Bmxos pode ate cc:to ponto ter sido dificultado pelo facto de out!as formas d:: protesta~tlsmo, .~m particular o luteranismo e o. anabaptlsmo; terem Ja. ~onsegmdo c,n~un­cheirar-se, apesar de persegmdas. E tambem os calvrni~tas eram vlttmas das medidas repressivas das autoridades. Mas, ap~sar dts~o,. os seus pre­gadores nas sociedades do sul começavam a anganar apoto ~o~ando c,om os sentimentos anti-clericais da população urbana. ~ao. exist13:, porem, qualquer comparação entre a sólida organi~ação da. IgreJa ca~Vln~s!a em França no início da década de 60 e o movi,men~o arn.d3: embnonano em Hainault no Brabante e na Flandres. Tambem nao existia qualquer para­lelo com' a conversão em massa dos aristocratas e da peq~ena no?~eza, que transformara o carácter e as perspec~ivas d~s IgreJaS calVImstas francesas. As classes governantes nos Pmses Baix?s e?c~ntravam-se fortemente imbuídas de tradições humanistas e antl-clencms; se bem que o calvinismo depressa começasse a g~nhar con~·ertJdos, parece~ qt~e muitos terão considerado a nova fé excessiVamente rntolerante e a~ton­tária, acabando por a adoptar apenas sob a pressão dos aconteCimen-tos- e com reservas. . ~ Na medida em que a alta nobreza considerava que a sltuaç~ao religiosa nos Países Baixos piorava, tendia a ser a favor da moderaçao. Muitos dos seus elementos estavam fortemente ligados à nobreza do Império, e a soluçção alemã cuius regia eius religio atraía-os naturalment~. Mas no início dos anos 60, interessavam-lhes menos os prob~emas reli­gios;s do que os políticos. O magna~a mais rico ~ i?flu~nte, Gmlherme de Nassau, príncipe de Orange, sentia-se sem duVIda I_ncomodado pelas tensões religiosas no seu país, mas não protestou publicamente. ~~ntr~ a perseguição até finais de 1564. 9uai~quer _que fossem as oprn10es. n~­timas, parece que ele e os seus Igums !erao devotado as suas prrnct­pais energias à impo~i~ão dos se?s. ~eseJOS a um governo que se mos­trava muito menos docil do que Imctalmente se esperara.

O Conselho de Estado reunido por Filipe em 1559 para aconse­lhar Margarida de Parma incluía o príncipe de Orang~, o conde ?c Egmont, um advogado da Frísia, Viglius, um nobre valao na penúna, Berlaymont, e António Perrenot, bispo de Arras,, el~vado à -púrpu~a como cardeal Granvelle em 1561. Se bem que a propna Marganda nao fosse irrelevante Perrenot era a figura dominante deste grupo. Era ele quem tomava a; decisões importantes, tanto por si como no scgrc~o de um conselho reduzido (conhecido pelo nome de consulta) , constttuído por Berlaymont, Viglius e ele próprio. . .

Não se podem negar as grandes qualidades de Gt a~vcllc , ou a sua enorme lealdade ao seu senhor, Filipe 11. Não há dúvtda de que,

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tal como os seus contemporâneos nos cargos importantes, sabia como aproveitar as oportunidades que lhe surgiam. Sempre penosamente cons­ciente das suas origens sociais (o bisavô fora ferreiro em Besançon, o avô notário, o pai inicialmente notário e depois principal conselheiro do Imperador Carlos V), estava deci<fido a viver, e ser visto viver, como um senhor. Possuía belas casas na cidade e palácios de campo nos Países Baixos e na sua terra natal, o Franco-Condado, coleccionava quadros, livros e estátuas e organizava festas com grande prodigalidade, tudo ali­mentado pelm seus copiosos rendimentos eclesiásticos. O seu interesse pela religião parece ter sido moderado; não apreciava forma alguma de fanatismo, pensava que a melhor defesa contra o protestantismo consis­tia numa regeneração espiritual da Igreja Romana e espiritualmente aproximava-se mais de Erasmo que dos violentos partidários religiosos da sua própria geração. E também isto era típico do homem. Por tem­peramento e educação pertencia a uma era passada - a época de Car­los V- e nunca conseguiu adaptar-se verdadeiramente ao espírito e método de Filipe li. A sua visão do problema dos Países Baixos era mais borgonhesa que espanhola, e o seu ideal era o sistema de governo firme, mas de modo nenhum inflexível, aplicado nos Países Baixos pela irmã de Carlos V, Maria da Hungria - um sistema concebido para reduzir por fases cautelosas a autonomia das dezassete províncias e para erigir a administração régia como poder centralizador eficaz.

Um governo vigoroso e eficaz nas condições do início, dos anos 60 não era de modo algum tarefa fácil. Existia um ressentimento por o rei ter abandonado o país, enquanto o tercio de soldados espanhóis, trazido para a Flandres em 1553, era deixado de lado. As dificuldades financeiras e religiosas aumentavam e o governo era minado pelas lutas entre facções da alta nobreza, que procuravam controlar os cargos do Estado. Margarida e Granvelle gozavam do apoio do duque de Aerschot, cabeça da casa valã de Croy; mas um grupo rival, constituído por Orange e Egmont, o conde Horn e o barão de Montigny, mostrava sinais cada vez mais claros de antagonismo relativamente ao regime do cardeal Granvelle.

Quaisquer que fossem as suas relações políticas, Orange e Gran­velle mantiveram-se em boas relações pessoais até 1561. As duas famí­lias encontravam-se associadas desde há muito, com base em interesses comuns no Franco-Condado e na corte, e foram necessários vários acontecimentos, tanto políticos como pessoais, para pôr fim à amizade entre ambos. Orange, apesar de toda a sua simpatia pessoal e requin­tada cortesia, era uma personalidade complexa, cuja inteligência e capacidade Granvelle constantemente menosprezou. Bastante sensível à sua própria dignidade e reputação, ressentia-se dos métodos de Gran­velle de governo pessoal e da sua própria exclusão das decisões vitais do Estado. Gradualmente, à medida que os dois homens entravam em conflito numa gama cada vez maior de assuntos, começou por identificar Granvelle como símbolo de um sistema de governo absolutista que

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poderia minar progressivamente os direitos e privilégios da nobreza e do povo nos Países Baixos.

O que exactamente provocou o corte final nunca ficou inteira­mente claro. Orange ficou aborrecido com a aberta desaprovação mani­festada pelo cardeal em relação ao seu casamento, em 1561, com Ana, filha e herdeira desse famoso luterano, o Eleitor Maurício da Saxónia. E entrou igualmente em conflito aberto com Granvelle, nesse mesmo ano, a propósito de uma vaga de governador no Franco-Condado, em que ambos os homens tinham grandes interesses. Desde 1559 que Simão Re­nard, ilustre personalidade- e tal como Granvelle um borgonhês e antigo embaixador imperial na Inglaterra e em França - conduzia no Franco­-Condado uma campanha privada contra Granvelle, anteriormente seu benfeitor, mas que não o designara para o conselho de Estado. Ao longo desta sua intriga cultivou e ganhou a amizade de Egmont e de Orange, cuja influência viu como passível de contrabalançar a dos partidários de Granvelle na administração do Franco-Condado. Quando o governador morreu, em 1561, Orange, instigado por Renard, pediu para si a su­cessão, sabendo que de outro modo ela iria para um nobre local ligado a Granvelle. Se bem que fosse alcançado um compromisso, sob a influên­cia de Margarida, essa questão ajudou a aumentar o afastamento entre Orange e o cardeal.

O acontecimento de 1561 que excedeu todos os outros, no en­tanto, foi a publicação de uma bula papal que tornava evidente a determinação de Filipe avançar com os planos para uma reorgani­zação eclesiástica radical nos Países Baixos. Já em 1525, e novamente em 1551-52, tinham sido feitas propostas de aumento do número de bispados e de redução da autoridade eclesiástica estrangeira, a fim de fortalecer a igreja dos Países Baixos contra a expansão da heresia. Quando Carlos V transferiu o governo dos Países Baixos para o seu filho, em 1555, nada fora ainda feito, mas Filipe tornou claro desde o início que tencionava continuar a guerra do seu pai contra os hereges. Os jesuítas foram autorizados a estabelecerem-se nos Países Baixos em 1556. Os éditos contra os hereges foram rigorosamente postos em vigor pela Inquisição local- em certos aspectos mais· detestável do que a variante espanhola, pois condenava à morte mesmo o herege arrepen­dido. Em 1559, foi assegurada uma bula papal para a fundação de uma nova universidade em Douai, a qual viria a desempenhar um grande papel na renovação do catolicismo dos Países Baixos. Uma outra bula do mesmo ano abria caminho à reorganização dos bispados.

Segundo os termos das bulas de 1559 e 1561, deveriam ser acrescentadas catorze novas dioceses às quatro já existentes. Em vez de fazer parte das províncias eclesiásticas de Rheims e de Colónia, os Países Baixos seriam de futuro divididos em três províncias independen­tes sob os arcebispados de Cambrai, Utreque e Malines. As novas sés seriam dotadas com os rendimentos de um certo número de abadias ricas e os bispos e principais cónegos seriam escolhidos pelo rei entre teólogos qualifiCados e juristas canónicos. O esquema era ftmda-

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mentalmente racional e, tal como muitos outros do mesmo tipo, enfren­tou imediatamente toda a sorte de dificuldades. Os nobres viram os seus filhos mais novos despojados de lucrativas sinecuras eclesiásticas por juristas e clérigos de baixa condição. Egmont e Orange viram Gran­velle, como arcebispo de Malines e cardeal da igreja, ter primazia sobre eles próprios na mesa do conselho, em vez de ocupar o quarto lugar, como até então. Os Estados Sociais de Brabante viram os seus abades serem substituídos por três bispos realistas, tendo à cabeça o bispo que se tornou abade de Affligem - nada menos do que o cardeal Granvelle. Isto constituía prova suficiente das sinistras intenções do governo - a sua determinação em interferir com direitos de proprie­dades sacrossantos, em exercer um poder arbitrário e ultrapassar arro­gantemente o privilégio.

O desventurado Granvelle, que não estava interessado na reorga­nização eclesiástica e fizera os possíveis por a adiar, viu-se agora trans­formado em bode expiatório dos pecados do seu régio senhor. Era habitual culpar os maus conselheiros do rei, em vez do próprio rei, pelas decisões e políticas impopulares; mas esta tendência pode ter sido intensificada nos Países Baixos pelo facto de se tratar de um rei absen­tista. Numa época em que a realeza tinha ainda um carácter intensa­mente popular, um rei absentista era uma contradição nos seus próprios termos, e a sua ausência exigia de uma nobreza de mentalidade tradi­cional difíceis ajustamentos psicológicos. Quase como compensação para a sua ausência, a nobreza dos Países Baixos - e, em particu­lar, o próprio Orange- aparentava, e parece ter sentido, uma pro­funda lealdade pessoal para com Filipe 11. Mas restava um vácuo que Margarida, que de qualquer modo não possuía dignidade real, mostrou ser incapaz de preencher. Agora, em 1561, o rancor de uma aristocracia carenciada e desiludida, bem como a ira dos Estados Sociais, transfor­maram-se em vitupério contra tudo o que era espanhol e numa cam­panha de ódio e aviltamento contra o principal ministro do rei ausente.

O próprio Granvelle manobrou da melhor forma possível para fomentar a política do seu senhor preservando a sua própria posição. Levou Filipe a retirar o tercio espanhol dos Países Baixos, mas viu-se mesmo assim denunciado e caricaturado, para seu tormento, como um «diabo vermelho» e um «porco espanhol». Os próprios membros da alta nobreza, sob a direcçção de Orange, formaram uma liga contra ele, e enviaram um dos seus, Montigny, à corte espanhola para pedir o seu afastamento, no Outono de 1562. Quando Montigny voltou da sua missão de mãos vazias, Orange e Egmont retiraram-se, em Março de 1563, dos encontros do Conselho de Estado. Mas as suas expressões públicas de desaprovação relativamente a Granvelle poderiam não ter tido grande resultado senão fossem apoiadas por uma activa intriga em Madrid pelo ubíquo Simão Renard, agora principal dirigente de uma vasta campanha anti-Granvelle que estava a ser conduzida simultanea­mente no Franco-Condado, nos Países Baixos e na corte. Finalmente, e apesar de o duque de Alba aconselhar firmeza, Filipe cedeu à pressão

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c decidiu cortar com o seu ministro. Uma carta secreta de 22 de Janeiro de 1564 deu a Granvelle autorização para abandonar os Países Baixos <<por algum tempo» (acabou por ser para sempre), a fim de visitar a sua mãe em Besançon. O regime de Granvelle chegara ao fim; a vitória dos Estados Sociais e dos magnatas fora completa.

A alta nobreza dos Países Baixos tinha posto em prática a ambição de todos os grandes aristocratas - controlar a adminis­tração real. Não teve, porém, um êxito notável no exercício do poder recém-obtido. As lutas de facções continuaram, e os Estados Sociais não votaram mais impostos para o novo regime do que para o antigo. A sua posição era ainda dificultada pelo facto de uma recente suspensão das importações de tecido não tratado de Inglaterra ter aumentado o nível de desemprego e dado origem a uma crescente penúria social. A agitação popular e o entusiasmo religioso coexistiam tradicionalmente nos Países Baixos, e 1564 não foi uma excepção. Encorajados pela fraqueza do novo governo, os sacerdotes calvinistas começaram a realizar encontros ao ar livre, para os quais eram atraídas imensas multidões.

O aparecimento de calvinistas militantes incitando a uma resis­tência activa contra os Éditos e a Inquisição colocou o Conselho de Estado numa posição bastante delicada. Se impusesse a aplicação da legislação anti-herética, afastaria de si o povo; mas se diminuísse a perseguição, antagonizar-se-ia com o rei. Parece ter sido neste ponto que Orange, ainda nominalmente um católico romano (ao contrário do irmão mais novo, Luís de Nassau, que fora educado como luterano) 10

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começou a ver-se no papel de protector dos protestantes. Talvez fosse possível introduzir nos Países Baixos uma forma de tolerância; mas, em Agosto de 1564, chegaram ordens de Filipe 11 para a promulgação dos decretos do Concílio de Trento. Se os decretos em causa fossem aplicados, a tolerância ficaria fora de causa. A execução das ordens de Filipe foi, portanto, deliberadamente postergada pelo Conselho de Es­tado, enquanto as várias províncias insistiam em que não deviam ser aplicadas sem salvaguardas expressas dos respectivos privilégios. Egmont foi então enviado em missão à corte espanhola, para pugnar pela mo­deração na política religiosa do rei, e iniciou-se um grande debate sobre a questão da tolerância tanto nos Países Baixos como em Madrid. Os teólogos que aconselhavam Filipe 11 não eram, aparentemente, tão hostis à ideia de tolerância como se poderia esperar, mas o rei não se deixava convencer; e um segundo encontro de teólogos realizado em

!lO IOOimlo [JI!úiniciijple tdlo !IlmiPtérlio. lúuá.s ídle INalststalU [plotdia ~Ser tltm!PU11Ierrtl1Cilllto luteramro. A evoluçãJo I"eH.giosa dle GUJirlhrerme não é i.nrtei~amerute o'lana. ALnda ia à missa -em 156,6, ma,s era luteram.o <em finra'hs de 1r567, tOirnando-HO cSJJrVIi­Illiistta rem 1573. Até qu:e ponto estlaJs conVJersões emm t ã.crt.IJcas, c atO que ponto C:Oirresp'OndiJrum a urna .evolução genuma drus su!I!S c11ença.~ l'eJrl,glosas, não é hojre p.os.shnel det~:IUlJI'.

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Bruxelas após o regresso de Egmont rejeitou a tolerância, com a justi­ficação de que a existência de duas religiões num único Estado pode­ria conduzir ao desastre.

Durante 1565 e 1566, Orange e os seus partidários continuaram a pressionar, através de petições e panfletos, procurando obter alguma forma de liberdade religiosa. Se bem que houvesse uma forte tradição liberal nos Países Baixos, o pedido de tolerância neste momento parece ter estado mais ligado a considerações tácticas imediatas do que a uma crença nas suas virtudes intrínsecas. Já em França, cerca de 1564, o termo «politique» começava a ser usado para descrever o crescente corpo de opiniões intermédias que, apesar de não aceitarem as novas doutrinas religiosas, consideravam que a repressão apenas precipitaria os desas­tres que tentava evitar. Catarina de Médicis e o seu chanceler L'Hôpital, ao permitirem o culto huguenote num estado católico, estavam de facto a fazer a distinção entre cidadania e ortodoxia religiosa que está no cerne do pensamento politique. Ao apelar para a tolerância, Orange era profundamente influenciado pelo exemplo francês - em particular pelo Édito de Amboise de 1563- e também pela fórmula de Augsburgo, que pensava poder ser alargada aos Países Baixos através da influência dos seus amigos no Império.

Infelizmente para Orange, no entanto, as reacções de Filipe foram muito diferentes das de Catarina e de L'Hôpital. Nas suas famosas cartas de Segóvia, escritas em Outubro de 1565, Filipe instruiu Marga­rida no sentido de serem aplicados os Éditos contra os hereges e de a Inquisição punir severamente os recalcitrantes. Não surpreende que Margarida, desolada e preocupada, levasse uma semana a arranjar a coragem necessária para revelar as instruções do rei. Os seus receios justificavam-se completamente, pois a notícia das ordens vindas de Espanha produziram uma onda da indignação e ira em todo o país já de si agitado. O crescente ódio contra a Espanha e a Inquisição foi vigorosamente explorado pelos pregadores calvinistas, e pode ter ex­traído novas forças das arrepiantes histórias da Inquisição espanhola assiduamente propagadas pelo pequeno grupo de marranos - judeus ibéricos- que se instalou nos Países Baixos 11• Por outro lado, e pela primeira vez, a pequena nobreza fez sentir a sua presença. Durante as festividades realizadas em Bruxelas, em Novembro, a propósito do casamento do filho de Margarida, Alexandre Farnese, com Maria de Portugal, um grupo de nobres, incluindo os irmãos calvinistas João e Filipe de Marnix e o conde de Brederode, um aventureiro fanfar­rão, encontrou-se com Luís de Nassau a fim de planear um programa

11 Para interessantes pO!I'merrrones sobre cer.t:oo membros desta cornu­mdade ver Paul J. Ha;uben «Marcus Pê11ez and Marrano Calvi:nism :illl the Dutch 'Revolt and the ReformatlÍIOil», Bibliot.heque d'Humanisme et Renais­sa:nce. Tr1111Jaux et Documents, vol. XXliX, ]91617, pp. 121-1.32.

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de acção. O resultado deste e de outros encontros foi a formação de um Compromisso, ou liga, de nobres -tanto católicos com pr tcstantcs -que exigiram numa carta aberta ao rei o fim das actividadcs da Inqui­sição e uma mudança da política religiosa.

A combinação do de.scontentamento popular e do protesto orga­nizado dos aristocratas tornou crítica a posição de Margarida. Em finais de Março de 1566 esta convocou um grande encontro de notáveis para lhes pedir conselho. A 3 de Abril os nobres confederados, cerca de duzentos, dirigiram-se para Bruxelas; e a 5 um grupo deles foi em pro­cissão ao palácio, a fim de apresentar o seu requerimento formal à Go­vernadora. Quando Margarida, incomodada, os recebeu, o seu conse­lheiro Berlaymont apressou-se a tranquilizá-la. Não havia, disse, neces­sidade de temer esses pedintes - «ces gueux». Se bem que a maior parte dos nobres falasse holandês, o nome francês «pegou». No decisivo banquete realizado a 8 de Abril para celebrar a concordância de Mar­garida em suspender a perseguição até chegarem novas instruções, o dirigente confederado Brederode fez um brinde: « Vivent les Gueux!». Egmont, Orange e Horn, que se tinham mantido à parte do Compro­misso, tomaram imprudentemente parte nas ruidosas celebrações, e ouviram os seus nomes associados ao brinde. «Vive le prince d'Orange! Vive Egmont! Vivent les Gueuxf». Nesse momento a sua sorte estava selada, e nascia o mito dos Gueux.

Quando Granvelle, agora em Roma, ouviu a notícia do Compro­misso, fez uma dedução natural. «0 estilo», escreveu, «é retirado da Liga que os Huguenotes construíram em França, e tem os mesmos objectivos». A comparação era correcta, na medida em que a autori­dade real era abertamente desafiada em ambos os países por um movimento organizado da oposição que incluía nobres de regiões muito diferentes. Mas também existia uma importante diferença, na medida em que a oposição aristocrática francesa era composta de nobres que, na sua maioria, eram pelo menos nominalmente calvinistas, enquanto a Liga dos Países Baixos abrangia membros de todos os credos, e não tinha qualquer relação formal com a causa calvinista. A questão cru­cial nos Países Baixos nos tensos meses da primavera e verão de 1566 era, portanto, se a oposição aristocrática faria ou não causa comum com a oposição religiosa, como em França. Já havia indícios de que a secção mais radical da Liga gostaria de unir as suas forças às das comunidades calvinistas. Se esta política tivesse um apoio generalizado, Margarida ver-se-ia frente a problemas tão graves como os de Catarina e Carlos IX.

A crise da autoridade régia era agora evidente, e foi nesse mo­mento que a população se revoltou. As condições económicas nos últimos três anos tinham sido más. O início da Guerra Nórdica dos Sete Anos, em 1563 12, afectara o comércio do Báltico c fechara o Estreito à navegação, ao mesmo tempo que dificuldades comerciais e políticas com a Inglaterra tinham posto em causa o comércio de tecidos

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ingleses e lançado no desemprego muitos assalariados. A juntar a tudo isto, surgiu a fome. O Inverno de 1565-6 foi mais rigoroso do que habi­tualmente. As grandes geadas continuaram até Fevereiro e o conflito sue­co-dinamarquês reteve duzentos navios de cereais em Danzigue, à espera de autorização para passarem o Estreito. Na primavera de 1566, quando os navios chegaram finalmente e o preço do pão começou a descer, a miséria dos meses de Inverno produzira enorme amargura e sofrimento nas cidades têxteis do sul dos Países Baixos e fornecera aos pregadores calvinistas audiências receptivas.

No entanto o protesto, quando surgiu, pareceu ter nascido menos de uma miséria total e insuportável do que de um profundo receio pela perda das vantagens recentemente ganhas, com tanta dificuldade. A fome de 1565-6 foi menos rigorosa do que a de 1556-7, à qual se seguira um aumento geral dos salários. Pelo menos em Antuérpia, a marcada falta de mão-de-obra impedira qualquer diminuição dos salários no final dos anos 50; e dado que os preços do cereal eram então baixos, verificou-se um aumento substancial do nível de vida, que se manteve pelo menos até ao final de 1562. Os empregadores queixavam-se agora dos salários elevados, mas à medida que os problemas económicos e o desemprego aumentavam, nos anos que se seguiram, a situação come­çou a alterar-se. Em bons anos, os gastos com os alimentos consumiam cerca de 30 a 40 % do rendimento de um assalariado de Antuérpia. Em maus tempos, este valor podia chegar a 80 %, e a manteiga e a carne eram substituídas por uma dieta menos variada constituída por alimentos mais baratos, como os vegetais e o centeio 13• Agora, em 1566, os artesãos especializados viam os seus salários diminuir e ameaçado o nível de vida recentemente adquirido. Encontravam-se ainda em melhor situação do que os pais, no reinado de Carlos V; mas, talvez por essa mesma razão, não estavam dispostos a aceitar sem protestos uma descida do nível de vida.

A situação política e religiosa era também muito diferente da que existira nos tempos das agitações anabaptistas nos primeiros anos de Carlos V. Então, uma populaça subalimentada, subempregada e mal paga, conduzida por visionários com anseios apocalípticos, tinha-se visto confrontada com o poder do Estado, apoiado por uma classe governante unida que de modo nenhum toleraria qualquer alteração violenta da ordem existente. Agora, a populaça era conduzida por sacerdotes calvinistas treinados, com objectivos imediatos que podiam ser atingidos por meios práticos; a autoridade do Estado deixara pra-

12 V e<r caJpítulo 1. 13 Os dadiO's sobre os assalarLados de Antué11Ji:a foram obtidos no

estudo 3JdmiiJI:aV1elrrnien.1le me!JiiCIUhJts:o óe E. Sch:oarlii·ers. De Lemensstandard in de XV• en XVI• ~eww te Antwerpen, Amtuélr1pwa, 196!0, que c:o!llltétm um mgo r.esurno €IIll fram:ces das descobertas àJo aubor.

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ticamente de existir; e a própria classe governante encontrava-se em aberta oposição ao sistema de governação religiosa c política da Coroa espanhola.

O momento era portanto propício a uma tentativa calvinista de derrube da velha ordem religiosa- uma tentativa que, apesar dos avisos de Orange, certamente conseguiria o apoio de pelo menos uma parte da nobreza. Mas parecia não existir qualquer ligação, nesse mo­mento, entre os calvinistas franceses e os dos Países Baixos. Talvez nunca venha, pois, a saber-se até que ponto os acontecimentos de Agosto de 1566 foram o resultado de uma organização, ou de um mo­vimento popular espontâneo.

Todos sabiam que a agitação se aproximava. Em Junho e inícios de Julho, as multidões que iam ouvir os pregadores nas cidades e aldeias flamengas aumentavam todos os dias. Enquanto homens armados mon­tavam guarda contra uma possível intervenção dos magistrados, os pre­gadores excitavam os seus ouvintes com violentas denúncias da opulência clerical e da idolatria praticada nas igrejas. Margarida de Parma enviou mensagens urgentes às cidades no sentido de organizarem as suas defe­sas e colocarem uma guarda nas igrejas, mas foi morna a resposta das cidades. Em Gand, que parece ter constituído um exemplo razoavel­mente típico 14, os magistrados provinham de uma casta fechada e exclu­sivista, que não gozava de simpatia entre os outros cidadãos. Os mem­bros da milícia especial recrutados nas guildas estavam dispostos, a pedido do magistrado, a jurar lealdade ao governo, mas assim que lhes foi pedido que se comprometessem a defender as igrejas, começa­ram as prevaricações. De 17 67 homens cuja resposta é conhecida, ape­nas 332 - 18 %-se declararam dispostos a fazer tudo o que esti­vesse ao seu alcance para defender o clero católico em caso de ataque. Parece evidente que a Igreja Romana perdera a lealdade da massa da população nas cidades e aldeias da Flandres, antes mesmo de os calvi­nistas terem chegado.

Os esmagadores sentimentos anti-clericais da população tomaram a Flandres um solo fértil para os pregadores. Começavam a conseguir conversões, particularmente entre as camadas média e superior dos cidadãos: artífices especializados, lojistas, advogados e mercadores ricos. Dos 12 000 agregados familiares em Gand, cerca de 1500- ou 13% -podiam ser considerados calvinistas em 1566-7. Mas, para além do núcleo de convertidos, os pregadores podiam contar ainda com a simpatia e boa vontade de uma vasta proporção da população, hostil ao catolicismo ou religiosamente indiferente e que odiava o clero, tal como odiava os magistrados, devido à sua arrogância e riqueza.

14 M. Delmotte, «HOit C!ll1vinisme in de verschlHendl'l bevO'lkimgsl!llge!lllte Gent •(1]516'6-6'7)», Tijdschrift voor Geschit:Jdenis, voil. '76, 1953, pp. lA5-1'76

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Na camada inferior desta população encontravam-se os panas, os pobres e os desempregados. Também estes tinham sido tocados pelas palavras dos pregadores, que lhes deram um vislumbre de esperança. Em AgoGto, quando os preços do trigo recomeçaram a subir, a sua ira desencadeou-se repentinamente. A 10 desse mês, em Steenvoorde, na Flandres ocidental, uma multidão enfurecida penetrou nas igrejas, esmagando as abomináveis imagens e pilhando os ornamentos de ouro e prata. A fúria iconoclasta espalhou-se de aldeia em aldeia e de cidade em cidade, alcançando Antuérpia a 20 de Agosto, Gand e Amesterdão a 23. Entre os iconoclastas encontravam-se calvinistas convictos e agi­tadores, mas actuavam contra as ordens e desejos dos pastores. Tra­tou-se, essencialmente, de uma revolta espontânea do povo que se encontrava fora da estrutura da vida municipal corporativa, dos tra­balhadores eventuais das indústrias da construção civil e têxtil e dos explorados e oprimidos.

Enquanto as multidões iradas pilhavam e profanavam as igrejas, os magistrados de muitas cidades limitavam-se a observar, demasiado re~eosos para intervir. Por sua vez, Margarida de Parma, sem tropas, e msegura da lealdade das classes dirigentes, também não podia em­preender qualquer acção imediata. Mas era evidente que muitos dos membros mais moderados do Compromisso estavam aterrorizados pela violência da insurreição popular. A fim de ganhar tempo, e para reunir à sua volta a opinião moderada, Margarida concordou, a 23 de Agosto, em realizar um «Accord» com os líderes do Compromisso, segundo o qual a perseguição seria suspensa se o culto católico não fosse moles­tado e o povo largasse as armas.

Guilherme de Orange, que, com algumas hesitações, fora enviado pela Governadora para ajudar a manter a ordem em Antuérpia, sabia que não dispunha de muito tempo. O seu objectivo imediato era alargar o Acordo, transformando-o numa paz religiosa formal entre calvinistas, católicos e luteranos. A inclusão dos luteranos era essencial, em parte porque encorajaria os príncipes luteranos da Alemanha a apoiarem com o seu peso, esta solução de compromisso, mas também porque a crescente tensão entre os luteranos e os calvinistas nos Países Baixos ameaçava destruir a frágil unidade do movimento contra o regime. Em Antuérpia, durante o Outono, Marcus Pérez, um rico comerciante marrano que se convertera ao calvinismo, trabalhou desesperadamente com alguns outros calvinistas de espírito liberal, procurando manter um diálogo com os luteranos. Mas a continuação da violência dos calvinis­tas radicais e a sua intolerância em relação ao culto de quaisquer igre­jas além da sua tornou esta tarefa impossível.

Ao ouvir falar do Acordo, o cardeal Granvelle escreveu ao rei, em Setembro, avisando-o de que «O expediente francês de permitir duas religiões» num mesmo Estado destruiria a Igreja Romana nos Países Baixos. Nem Filipe nem Margarida, no entanto, davam muita importância a um acordo obtido sob coacção, e sabiam que a violência dos apoiantes do calvinismo estava a fazer o seu jogo. Margarida, após um

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pânico momentâneo, recuperava a coragem, sob a imperturbável influên­cia de um membro ·da velha geração dos nobres da Borgonha, o conde Mansfield, um devoto católico que agora era o seu con. clheiro de maior confiança. Com a chegada de dinheiro vindo de Espanha, pôde armar tropas capazes de contrariar os grupos armados de insurrectos sob o comando de Brederode. Enquanto a Governadora reafirmava a sua autoridade, as classes governantes juntavam-se à sua volta - em parti­cular a nobreza valã, que ajudou a perseguir os bandos errantes de iconoclastas e rebeldes e a cercar os calvinistas em Valenciennes. En­tretanto, a oposição era isolada e dividida, tal como Margarida e Mans­field tinham planeado. A opinião moderada sentia-se ultrajada pelos contínuos excessos calvinistas. Orange, não querendo identificar-se com os calvinistas, não estava disposto a tomar atitudes, a menos que tivesse a certeza do apoio dos príncipes alemães. Egmont, demasiado co~fiante na boa-fé real, virava-se de novo para o regime. Estando o moVlillento tão dividido e sem chefes, a sua derrota era apenas uma questão de tempo.

Em Fevereiro de 1567 os rebeldes fizeram a sua última e desepe­rada aposta no sucesso. Mas Orange recusou-se a abrir-lhes as portas de Antuérpia e os luteranos e católicos da cidade uniram as suas forças contra os insurrectos calvmistas. A 13 de Março, as forças rebeldes de João de Marnix sofreram reveses frente às tropas governamentais e aos seus apoiantes de Antuérpia, fora desta cidade, em Osterweel. Pouco depois, Valencienn~s rendeu-se após um cerco de três meses e Guy de Bres, que im,!:.nrara a resistência, foi enforcado.

A posição pessoal de Guilherme de Orange era agora excepcio­nalmente perigosa e difícil. A sua atitude equívoca fizera-o aparecer como traidor tanto aos olhos do governo como dos calvinistas. Sentiu-se incapaz de fazer um novo juramento de fidelidade à Coroa. Entretanto, surgiram rumores de que Alba seria em breve enviado aos Países. Bai­xos à frente de um exército, a fim de esmagar a revolta. Em Fevereiro, o moribundo landegrave de Hesse enviou um aviso urgente a Guilherme e a Luís de Nassau no sentido de não terem confiança nos espanhóis, e ainda menos no duque de Alba, que vira em acção na Alemanha, em 154 7. Guilherme aceitou o aviso e retirou-se prudentemente em Abril para um exílio voluntário na sua mansão alemã, em Dillenberg.

Orange não foi o único a abandonar o país. Alguns grupos ar­mados continuaram a resistir, escondidos nas florestas, mas Brederode fugiu para a Alemanha, onde muitos dos seus apoiantes se lhe junt~ram. Durante a primavera e o verão de 1567, uma corrente de refugiados saiu dos Países Baixos, procurando refúgio em Emden, Colónia, França ou Inglaterra. Vindos de todas as classes sociais dos Países Baixos, tinham estado activamente envolvidos na rebelião ou eram calvinistas convictos que temiam pelo futuro da sua fé e do seu país. A emi­gração foi um testemunho vivo do carácter decisivo da sua derrota. Parecia que a revolta dos Países Baixos estava terminada quase antes de se ter iniciado.

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As razões do fracasso do movimento de oposiçao nos Países Baixos devem ser procuradas precisamente onde o movimento francês obtivera êxito- no ponto de encontro da oposição aristocrática e reli­giosa. Em França os calvinistas e a nobreza tinham~se juntado num mesmo movimento revoltoso, principalmente porque cada um deles necessitava do outro face a opositores decididos. Mas, nos Países Bai­xos, o movimento religioso escapara numa primeira fase às mãos da nobreza; um regime isolado cedera no momento crucial; e o calvinismo militante tornara-se de tal modo incontrolável que perdera as simpatias públicas e, portanto, se privara de qualquer possibilidade de êxito. Só uma repressão particularmente severa poderia juntar novamente os patrícios e o calvinismo popular numa aliança baseada -mesmo que precariamente- no reconhecimento das necessidades de ambos. Mas a repressão severa já não era necessária; Margarida fizera o que tinha de ser feito. Contudo, apesar do seu êxito, Alba saiu de Espanha em direcção a Itália em Abril de 1567. A sua missão consistia em reunir os tercios em Milão e conduzi-los à Flandres. Filipe, aparentemente, não estava disposto a correr o risco- aliás diminuto- de ver um dos seus domí­nios transformado numa nova França ou Escócia. Os iconoclastas de­viam ser punidos, e os súbditos revoltosos e heréticos seriam tratados da maneira que mereciam.

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v CATOLICISMO E REPRESSÃO

1. O Concílio de Trento e a Reforma católica

«A religião católica deve defender-se sem hesitações, mas através da pregação, da reforma da disciplina e do bom exemp~o do clero obterá melhores resultados do que com o uso das armas» . O cardeal Granvelle escreveu estas palavras em 1583, muito depois de a política de repressão do duque de Alba nos Países Baixos ter sido reduzida a escombros. Mas no início dos anos 60, quando tanto a França como os Países Baixos eram vítimas da heresia, a igreja romana não estava, muito simplesmente, preparada para se defender da I?laneira que Gran­velle sugeria. É um facto que os ventos da reforma tmham começa~o a soprar, mesmo em Roma. A_s n?vas ordens ~eligiosas ~omeçavam já a deixar as suas marcas e os jesmtas, em particular, haviam-se transfor­mado numa força poderosa da revivescência religiosa no momento em que Loyola morreu, em 1556 2• A Igreja fizera também algum progresso, ao definir nas primeiras sessões do Concílio de Trento os dogmas que a separavam dos protestantes. Mas, 9-uando o C~mcíli? reabriu, a 18 d.e Janeiro de 1562, era ainda necessano fazer mmta cmsa, e as perspecti­vas não eram muito satisfatórias.

Encontravam-se presentes na sessão de abertura 109 bispos, qua~c exclusivamente de origem italiana ou ibérica (86 italianos, 13 espanhóiS, 3 portugueses), pois só em Novembro o cardeal de Lorena s.e apresen­tou, como um príncipe renascentista, com a sua f~lange de btspos fra_?­ceses, comportando-se aparentemente como se :~vesse ganho, c nao perdido, a sua batalha contra a re~b~r_!:ura do Concth?: A che~ada do car­deal só serviu para extremar as dtvtsoes, num Conctlw que já se encon­trava fortemente dividido. Entrincheirado contra o pequeno grupo de

1 Oi>truilo po.r Va>n Dlllt'1mle, El Caràemal Gramvela, Baii1CCiliOI!'lla, IL915f7, iP!P· 403-4.

2 Vier Elton, A Europa àa Reforma, Ed. IPlriels\EmÇa..

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moderados que primeiramente tinham iniciado a batalha a favor de uma reforma eclesiástica durante o longo pontificado de Paulo III (1534--1549), encontrava-se o grupo curial do cardeal Simonetta, fortemente tradicionalista. Enquanto o influente contingente espanhol, dirigido pelo arcebispo Guerrero, de Granada, exigia que a nova assembleia fosse considerada como uma continuação da anterior, o partido imperial dese­java que a Igreja começasse do nada. Este desacordo sublinhava uma divisão de opinião fundamental a respeito da natureza e objectivo do Concílio. Os alemães, mais tarde apoiados pelos franceses, estavam obce­cados pela necessidade de preservar a paz religiosa nos seus países, e tinham ainda esperanças de levar representantes protestantes a partici­par no Concilio, colaborando nas discussões que conduziriam a uma reunião cristã. Os bispos espanhóis e os teólogos de Lovaina, por outro lado, estavam convencidos de que os tempos dessa reunião já tinham passado e de que a tarefa imediata consistia em trazer a reforma às regiões da Europa que ainda eram leais a Roma.

A principal preocupação dos bispos espanhóis -não afectados pela presença de protestantes na sua terra natal - era definir os dogmas da igreja na sua forma mais pura e realizar, finalmente, uma reforma eclesiástica, mesmo à custa de ofender o Papa e a Cúria. Considerava-se geralmente que a chave da reforma era a questão da residência epis­copal. Ainda em 1560, e apesar das numerosas tentativas de levar os bispos a residirem nas suas dioceses, nada menos de setenta bispos italianos viviam em Roma, e esta situação repetia-se em todo o lado. Como todas as tentativas de eliminar o absentismo episcopal tivessem falhado até então, os espanhóis começaram a insistir em que a resi­dência dos bispos nas suas dioceses era uma obrigação divina. Mas os funcionários curiais detectaram nesta exigência uma ameaça à supre­macia papal, pois levantava a delicada questão de os bispos exercerem a sua autoridade como representantes do papa ou de a receberem directa­mente de Deus. Dado que isto poderia levar o Concílio a resvalar para perigosas areias movediças na discussão da sua própria relação com o poder papal, havia razão para alarme. O infeliz cardeal-legado Seri­pando sujeitou-se à fúria papal por ter imprudentemente apresentado o artigo sobre a residência perante o Concílio, e uma grande pressão foi exercida sobre os espanhóis no sentido de moderarem a sua linha de actuação.

O problema da residência episcopal, no entanto, não foi o único a provocar agitação no Concílio, pois os representantes do Imperador estavam decididos a obter concessões importantes no ritual e na doutrina que facilitariam a resolução do problema das relações com os protes­tantes alemães. Tanto o Imperador Fernando como o duque Alberto da Baviera pensavam que concessões sobre o casamento dos padres e o uso do cálice pelos laicos trariam muitas ovelhas transviadas ·de volta ao rebanho católico. Os bispos espanhóis opunham-se a qualquer con­cessão quanto ao cálice, mas a chegada da delegação francesa trouxe reforços aos representantes imperiais, que foram particularmente bem-

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vindos. A questão acabou por ser apresentada a~ Papa com? um pro­blema de disciplina prática relacionado com a vtda d_a lgrcja na A].e­manha. Mas o problema mais vasto persistia, e a ahança _das naç?es ultramontanas acabou por ultrapassar inevitavelmente a qucstao do cáltse, envolvendo toda a reforma. . Durante os meses do verão de 1562, a posição do papado tor-nou-se crítica. Enquanto as forças de oposição se uni_a~ ~m to~no da pessoa do cardeal de Lorena, a batalha sobre a residencia ept~copal surgiu de novo, desta vez levantando todo o problen~a dos poderes d~ papa e da constituição' da Igreja. Eram fo~tes os sent~mentos contra o~ legados papais e se o cardeal de Lorena t1vesse pres~wnado ~a vota ção por nações e não por pessoas, o papado podena ter sofndo ~a série de derrotas humilhantes. Fernando recebeu e~ Innsb~uck a vtslta do cardeal de Lorena e a 3 de Março de 1563 en~i?U a Pio uma ~ar~a exprimindo a sua grande insatisfa~ã? com o ~oncll10 e com o propno Papa. Parecia, então, bastante proxtmo um Cisma. .

Coube ao cardeal Morone, designado legado e presidente do Concílio após a morte dos cardeais Seripafl:d.o e Gonzaga _em !'1arço: descobrir que a chave para a solução das dtflculdades .~ap~iS devta ser procurada em Innsbruck, e não em Trento. Trento }~ ~ao era. uma assembleia de prelados e teólogos, mas um grande concllw. mtern~cwnal, no qual delegações nacionais votavam de acordo com as i,n~truçoes dos respectivos príncipes. O que se tornava port;ant? nect;ss~no era uma negociação directa com os príncipes; e o pnm~iro pnncipe a _ter em conta deveria ser o próprio Imperador. Em Abril, Morone partm para Innsbruck, onde veio a encontrar Fernando com um humor truculento. Mas Morone era um diplomata hábil e, ~o~. a promessa ?o reconhe­cimento papal do filho de Ferr:a~do, Maxm~ihano, como, r~i dos roma­nos e da cedência no uso do cahce pelos laicos nos dommws do Impe­rador, conseguiu ganhar o Impera?or para .a causa pap~l. Restava ainda o cardeal de Lorena, mas tambem ele podta ser per.s.uadid_o .. E~ Fe­vereiro, com o assassínio do seu irmão, o duque de Gmse,_ dimmmra o poder dos Guise na corte francesa, estando o cardeal deseJOSO por res­taurar a influência, agora em declínio, da Casa de Lorena. ~o Outono, tinha no bolso uma oferta da ligação para a França, e deixou de se opôr aos desejos do Papa. . ,

Filipe II não se deixaria conve?c~r com tais met~?os, mas era agora uma figura isolada entre os prmcipes e estava, a!tas, profunda­mente interessado em que se chegasse a uma conclusao. Estando .a oposição enfraquecida e dividida, muitos dos probl~mas que tanto 11-nham atrasado o Concílio foram rapidamente resol~i~~s; e rumores. de uma grave doença do Papa e da consequente. possibilidade da reahza­ção de um novo conclave contribuíram maravll?osam~ny:e par~ conc:en­trar as mentes dos delegados, já cansados das mtermm~veis. discussoes. A 4 de Dezembro de 1563, na presença de 254 cardeais, bispos e teó­logos, o Concílio de Trento foi. formalmente encerrado. Mas a reforma propriamente dita ainda nem tmha começado.

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Os decretos do Concílio foram publicados com aprovação papal em Janeiro de 1564. Cobriam uma vasta gama de problemas nos cam­pos tanto do dogma como da disciplina, como o bispo, veneziano J erónimo Ragazzoni reconheceu num entusiástico discurso aos seus colegas na última sessão do Concílio: «Tendes proscrito toda a superstição e avareza, e toda a irreverência na celebração da missa ... Tendes removido as can­ções e músicas sensuais dos templos do Senhor... Os grandes cargos eclesiásticos serão no futuro preenchidos por aqueles em quem a vir­tude prevalece sobre a ambição... e os bispos manter-se-ão no seio dos seus rebanhos ... »

Palavras líricas- mas até que ponto se justificariam? As deci­sões do Concílio tinham de facto uma importância excepcional, dando respostas firmes a problemas que haviam provocado um longo e áspero debate religioso. Tornaram claro, por exemplo, que a igreja ulterior ao Concílio ficaria completamente subordinada às decisões do Papa, pois o papado saíra dele com o seu poder intocado e reforçado. Seria uma igreja dedicada à luta contra os protestantes, definidos agora os seus dogmas de acordo com o espírito e a letra da teologia escolástica. Além disso, os seus servidores encontrar-se-iam muito melhor equipados para a batalha do que os seus colegas pré-tridentinos, dado que os bispos passa­riam a residir nas suas dioceses e seriam fundados em todas as dioceses seminários para a educação do clero.

No entanto, havia uma grande diferença entre publicar decretos e aplicá-los. Os que tinham a ver com a disciplina dependiam da boa vontade dos príncipes seculares, e esta não existia necessariamente, mesmo nos Estados mais católicos. Filipe Il, cioso dos direitos da Coroa, mostrou a maior relutância em publicar os decretos tridentinos em Esp~nha e fê-lo, finalmente, com a reserva expressa dos direitos régios, particularmente no que se referia às nomeações eclesiásticas. Veneza, Portugal e sete cantões suíços aceitaram-nos de imediato, tal como o Imperador e vários príncipes alemães. Mas as Dietas Imperial e polaca recusaram-se a aceitá-los; e a Coroa francesa e o parlement de Paris, fiéis às suas tradições galicanas, mostraram-se igualmente recalcitrantes. No que se referia ao dogma, no entanto, os decretos tiveram maior êxito. A nova ortodoxia católica romana eliminou gradualmente os desvios mais detestáveis, incluindo a comunhão de ambos os tipos que o Papa concedera à Alemanha. Dispensas para o uso do cálice laico eram recusadas pelo papado dez anos depois do encerramento do Concílio.

No entanto, mesmo os decretos sobre o dogma levantaram pro­blemas que levariam pelo menos uma geração a resolver. Os limites do ~ovo dogma eram teoricamente definidos pelo índex papal. Mas o Index de Paulo IV, de 1559, era tão severo que colocava a maior parte das versões da Bíblia fora do mercado, juntamente com muitas edições famosas dos clássicos e dos Padres da Igreja. O Concílio de Trento reco­mendou uma modificação do índex; mas este trabalho, confiado a uma

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congregação especial, foi árduo e lento, e o índex, finalmente publicado em 1596, acabou por ter o dobro das dimensões da lista tridentina ~e livros proibidos de 1564. No entanto, o índex não era, ~a melhor das ht­póteses, mais do que uma resposta negativa ao desaf1~ prot~s~antc, e era crescente a consciência da necessidade de algo mms pOSitiVO. Em 1559, o protestante da Dalmácia Flacius Illyricus tinha publicado o pri­meiro volume de Os Séculos de Magdeburgo- uma grande obra colcc­tiva, que veio a ser completada em 1574, concebida p~ra provar me­diante argumentação histórica que a igreja luterana, e nao a de Rom~a, era a legítima herdeira da igreja dos Apóstolos. A esta argumentaçao só podia responder-se adequadamente num plano histórico, e depressa se tornou evidente que a erudição católica roman~ es~ava mal prep~­rada para tal tarefa. Eram escassos os eruditos na tgreJa com conhect­mentos históricos e com bagagem crítica e linguística suficientes para dar ao dogma recém-definido um fundamento sólido. Por outro lado, mesmo que existissem, não poderiam ter publica.do os seus livr~s em Roma. Um impressor vezeniano, Paulo Manuz10, fora conduztdo a Roma em 1561 por sugestão do cardeal Seripando, a fim de montar uma tipografia romana; mas as obras dos eruditos tardavam a a~arecer, e Manuzio abandonou a cidade desiludido quando a morte de P10 IV res­taurou o poder dos conservadores, que sempre tinham desconfiado dos seus esquemas.

De facto, só em 1587 foi fundada uma tipografia no Vaticano; e só em 1592 surgiu finalmente a muito discutida nova edição da Vul­gata. Só nos últimos anos do século começo~ Roma a pr'?duzir homens como o cardeal Bellarmine, capazes de desaftarem os eruditos protestan­tes no seu campo de eleição. Não há dúvida de que os anos que se se­guiram imediatamente ao encerramento do Concílio viram surgir algumas obras notáveis. O famoso Catecismo do Cardeal Borromeo surgiu em 1566, o novo Breviário em 1568 e o Missal em 1570. Mas estas obras eram produzidas para o crente. Responde~ ao~ pro~~tantes e recuperar aqueles que estavam pe~didos para a tgreJa ex1g1~ um enorme trabalho de educação - e, parttcularmente, de auto-educaçao -que praticamente ainda não se iniciara. Se o clero e os leigos cató~icos desejam defender-se com êxito dos calvinistas formados em Hetdel­berga ou dos luteranos formados em Wittenburgo deveriam armar-se com as mais modernas armas do debate teológico. E estas apenas podiam ser fornecidas se se fundassem. novas es~ol~s e sem.inários e se reformassem as universidades. Era aqm que os Jesmtas podtam dar um contributo especial. Quando Pio IV fundou o seminário romano, recor­reu aos jesuítas; e foi com as escolas e colégios jesuítas que grande parte da juventude europeia foi recuperada por Roma.

Os numerosos problemas envolvidos na defesa e difusão do cato­licismo ulterior a Trento sugerem as dimensões e a dificuldade da tarefa que a Igreja enfrentava. E apontam igualmente para a extrema complexidade do movimento conhecido (se bem que apenas desde o

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século dezanove) pelo nome de Contra-Reforma. O Concílio de Trento e o seu programa de reforma visavam contrariar a ameaça protestante. E isto deu-lhes, inevitavelmente, uma aparência, defensiva, mesmo nega­tiva. Uma igreja preparada para a batalha recorria naturalmente a armas defensivas como a Inquisição e o Índex; e era arrastada para uma reafir­mação quase compulsiva da sua crenÇa nos artigos de fé - como o culto da Virgem Maria- que constituíam 03 principais alvos do ataque protestante. Mas os reformadores tridentinos também tinham, por outro lado, a tarefa mais positiva de recuperar o conteúdo e a vitalidade de uma fé enfraquecida. Ao tentar cumprir esta tarefa, foram levados muito além das limitações inerentes a um movimento que nada mais é do que a resposta ao desafio de outro movimento. Com efeito, a reforma da igreja romana, por mais que tivesse sido ·concebida como resposta ao desafio protestante, brotou da mesma vasta conente de renovação espiritual que revitalizara a Europa desde os últimos anos do século quinze.

A subtil e complexa inter-relação da Contra-Reforma e da re­forma católica pode ser encontrada em todas as esferas da vida da Igreja, não sendo a arte a menm importante. A igreja romana viu-se confrontada com dois inimigos principais - o protestantismo e o paganismo. O protestantismo atacou os mais acarinhados dogmas da igreja e mostrou o seu ódio pelos objectos da veneração católica nas explosões iconoclastas que desnudavam as igrejas da Escócia, dos Paí­ses Baixos e da França. O paganismo, se bem que não fosse um oposi­tor menos decidido, era também de certo modo mais subtil. O estilo artístico em moda na Europa de meados do século era o maneirismo: um estilo que se desenvolvera como uma extensão lógica de certos aspectos das realizações artísticas da Alta Renascença - particular­mentes as de Rafael e de Miguel Ângelo- e que cultivava o virtuosis­mo, a estilização, a artificialidade. «Maneirismo» é uma palavra que tem sido muito usada, com diferentes graus de convicção, para descrever outras artes do período - a música polifónica e os madrigais e o estilo literário conhecido pelo nome de «Bembismo» em Itália e «Eu­phuismo» (devido ao Euphues de João Lyly) em Inglaterra. Quaisquer que sejam os méritos da transferência de uma descrição estilística das artes visuais para as não visuais, um aspecto era comum a todas as obras «maneiristas», fossem artísticas, musicais ou literárias: a ênfase na maneira em detrimento do assunto.

As implicações desta tendência na vida religiosa são suficiente­mente óbvias, e foram expostas numa obra intitulada Dialogo degli errori delta pittura, de André Gilio da Fabriano, publicada em 1564, imediatamente após o encerramento do Concílio de Trento. Gilio criti­cava os artistas modernos por preferirem os efeitos artísticos à honesta representação dos temas sacros, por deformarem o corpo humano dan­do-lhe elegantes distorções e por o representarem nu em vez de decente­mente vestido. O que se tornava necessário, na opinião de Gilio, era um

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regresso à iconografia rigorosa das gerações anteriores a Miguel Ângelo, se bem que incorporando os progressos técnicos e estilísticos dos últimos tempos. O resultado seria uma mistura judiciosa (rego/ata mescolanza) do antigo e do novo, que produziria uma forma de arte religiosa puri­ficada apropriada às necessidades da época 3•

As opiniões de Gilio reflectiam as dos padres reunidos em Trento, se bem que as indicações artísticas do Concílio fossem um tanto limitadas, e tivessem um carácter essencialmente negativo. Toda a sensualidade deveria ser proibida; o desonesto e o profano deveriam ser evitados; e não deveria haver uma elegância excessiva nos adornos das imagens. Observava-se o mesmo espírito puritano na discussão da música. Um sector, para o qual se inclinava o próprio Pio IV, favorecia a supressão de toda a música na igreja, mas os espanhóis, em particular, insistiram na antiguidade do canto gregoriano e na sua eficácia como auxiliar da devoção. Os partidários da música na igreja saíram vitoriosos, sendo constituída uma comissão sob a direcção do cardeal Borromeo para estudar as reformas apropriadas. O Vaticano teve a felicidade de ter ao seu serviço um grande músico, Palestrina, que na sua Missa Papae Marcelli mostrou como era possível combinar satisfatoriamente a música com as exigências de espiritualidade expressas em Trento. Foi na prossecução deste ideal que Gregório XIII viria a ordenar o regresso à pureza do canto gregoriano e que, mais tarde, os compositores desen­volveram a oratória.

Se bem que o Concílio de Trento não impusesse qualquer estilo específico aos artistas e arquitectos, certas consequências artísticas de­corriam naturalmente das necessidades da igreja pós-tridentina. As igre­jas deviam encontrar-se bem iluminadas, a fim de que os crentes pudes­sem seguir os ofícios pelos seus livros, começando portanto a desapare­cer a janela de vitral. O Concílio insistira na necessidade de pregar para combater a heresia e, portanto, o púlpito deveria ser colocado numa posição proeminente, de tal modo que o pregador pudesse ser conve­nientemente visto e ouvido. Dado que os protestantes contestavam certos dogmas fundamentais da igreja, estes deveriam receber uma ênfase espe­cial nas pinturas e imagens encomendadas daí em diante. Os hereges rejeitavam o sacramento da penitência e consideravam a confissão inútil? Então os artistas deveriam mostrar Maria Madalena e um S. Pedro penitente. Contestavam a necessidade das boas obras para alcançar a

3 O gr8JI1d:e sliignific:ado arlísrt:ieo e · r.elig.ioso desta oOO'a é mostrado em Jnede!I'~oo Zeri, Pittura e Controrijorma, Turim, 1957, IPIP· 2r1 e s•egs. O ltiMrto de Ziertl, rup•estrur die a;1gumas hirpóteS~e~S dúbilas, é die cwtos p!O'll•Ws die VlitStla IUim •gluia marus iÚittl p\!lll'a ats rl:ielilid!êalJcliiaiS iaJrltiJsrt:liioos rda RiOI!llla dio SéCiUllto deztaJSISei:s do qrue a ·om-a mais comecidia de iiDmlil Mâle, L' Art Religieux apres le Concile de Trente, 2.• edição, Paris, 19611. Sob!'le o mamJeliriSJI110, rucemaa do qual jã se escr:eveJram mui1los 31biSUll'dos, ê baiSitaJnlte ID~twessrunrt:Je a obra Mannerism, ,LoinJd'J:1es, 19!67, J'ohn Shteammam.

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salvação? Então os santos deveriam ser apresentados praticando todos os tipos de actos caritativos. Negavam a Imaculada Conceição? Então dever-se-ia glorificar a Virgem Maria utilizando todos os meios à disposição. O artista tornou-se, assim, um participante tão activo como o padre na batalha de Roma contra a heresia.

Dir-se-ia, a partir do Dialogo. de Gilio e das indicações artísticas do Concílio, que o maneirismo deixava de ser favorecido, pelo menos nas obras religiosas. Mas o movimento de oposição ao maneirismo não pode ser atribuído apenas ao Concílio de Trento, pois muito antes do seu encerramento já alguns pintores tinham reagido contra os temas pagãos da arte da Alta Renascença e começado a passar a produ­zir obras mais especificamente devotas. Os artistas já estavam, por­tanto, a ser afectados pelo clima de espiritualidade -o desejo de uma Reforma católica- que tanto influenciou as discussões do Concílio. Simultaneamente, se bem que o Concílio encorajasse sem dúvida certas tendências anti-maneiristas já existentes, não se observou um corte claro entre os estilos artísticos· das eras anterior e posterior a Trento. Nas artes seculares, em particular, o maneirismo manteve-se na moda até finais do século. Na pintura religiosa observou-se a partir dos anos 60 uma deslocação no sentido da simplicidade e da piedade. Mas os velhos artistas não adoptam facilmente novos métodos. As influências manei­ristas mantiveram-se infiltradas na arte religiosa durante muitos anos após o encerramento do Concílio, e a melhor maneira de caracterizar o estilo artístico dominante pode ser a expressão de Gilio regolata mesco­lanza.

Era natural que a obra de Gilio fosse dedicada a esse príncipe dos patronos, o cardeal Farnese, pois o gosto dos patronos era pelo menos tão influente na definição dos estilos como o gosto dos próprios artistas. O cardeal Farnese (1520-1589), neto do Papa Paulo III, foi sem dúvida o mais influente patrono de artistas e eruditos da Roma do século dezasseis. Na sua pessoa ligou os mundos do Renascimento e da Contra-Reforma e, devido à sua sensibilidade às aspirações de ambos, acabou por fazer talvez mais do que qualquer outro no sentido de assegurar que a arte e a cultura da igreja pós-tridentina incorporasse, em vez de eliminar completamente, muitos dos valores humanistas que tinham prevalecido na sua juventude. Houve sempre algo de inteligente­mente ecléctico nos gostos de Farnese, e os artistas que procuravam a regolata mescolanza - a judiciosa mistura do antigo e do novo - agra­davam bastante ao seu temperamento. Apoiou-os com todos os recursos de que dispunha como patrono e os subsídios que concedeu contribuíram para deixar em Roma a marca do novo modo de pensar. Foi também Farnese quem colocou os jesuítas sob sua protecção, quando eles e o seu fundador se viram objecto da hostilidade de Paulo IV. Como seu protector e patrono, deu-lhes algo dos seus próprios sentimentos instin­tivos pela cultura e a erudição. Deu-lhes, também, a famosa igreja de Gesú em Roma, cujo eclectismo estilístico cuidadosamente concebido,

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tão típico do gosto pessoal de Farnese, definiria o padrão de algumas das mais influentes tendências artísticas na igreja posteri r a Trento.

Atribui-se geralmente aos jesuítas o estabelecimento do barroco como o estilo preferido da igreja da Contra-Reforma. Mas, de facto, os jesuítas não favoreceram qualquer estilo específico e nesta época a sua ordem era ainda pobre, dependendo da boa vontade, e do gosto, dos seus patronos. O barroco foi, por sua vez, a resposta de uma nova geração de artistas e patronos às necessidades de um catolicismo cada vez mais confiante em si mesmo e às limitações e possibilidades artísti­cas da arte maneirista. O puritanismo e a austeridade dos papas e car­deais tridentinos revelou-se como um fenómeno passageiro. A geração seguinte de papas partilhava os gostos extravagantes dos príncipes secula­res seus contemporâneos, tornando-se simultaneamente a Igreja mais indulgente em relação ao aparato artístico. Por que não deveriam OB templos de Deus ser mais ornamentados do que os palácios dos homens? Assim, as grandes igrejas da .Contra-Reforma foram concebidas como reflexos da beleza celestial construídos pelo homem - uma pro­fusão de luz, de cor e de ornamentos, de pilares de mármore e de retablos dourados, rejubilando com a nova liberdade que o maneirismo trouxera à arte, mas apresentando triunfalmente esses elementos de dinamismo e unidade que tão claramente faltavam ao maneirismo.

Todo o desenvolvimento artístico da igreja romana, desde um maneirismo refinado e depurado até às espectaculares afirmações do barroco, sugere até que ponto a Reforma católica era muito mais do que uma simples reacção defensiva contra as forças do protestantismo e do paganismo. Participando nesse mesmo movimento de regeneração espi­ritual que dera origem ao próprio protestantismo, a Reforma católica enfrentava muitos dos mesmos problemas e encontrava-se sujeita a tensões semelhantes. Ambas as religiões estavam perante o problema fundamental da sua relação com as realizações e os valores do Renas­cimento. Ambas foram, pelo menos parcialmente, inspiradas por uma reacção contra os ideais do Renascimento, como se pode verificar pela sua primeira reacção austera ao sensualismo da arte renascentista e pela sua ênfase na depravação e dependência do homem, onde os renas­centistas tinham proclamado a sua autonomia e infinitas possibilidades. Um sector influente da opinião conservadora em ambas as religiões viu a única esperança de salvação na total rejeição de tudo que o Renas­cimento defendera. Mas, contra isto, afirmava-se um corpo de opinião mais moderada, que desejava incorporar pelo menos parte das con­quistas do Renascimento numa vida cultural purificada e renovada pela reforma religiosa.

Na segunda metade do século, esta luta foi travada em toda a Europa, tanto protestante como católica. Foi travada, por exemplo, em Espanha, onde escritores e eruditos, face à amarga oposição con­servadora, procuraram aplicar os instrumentos da erudição renascen­tista à teologia tradicional, ou tentaram descobrir algum compromisso

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entre o idealismo neo-platónico dos primeiros humanistas e o novo sen­tido desesperante do carácter pecaminoso do homem. Muitas vezes foi impossível conseguir um compromisso, mas a simples tensão envolvida na tentativa de conciliar o inconciliável poderia criar tensões artistica­mente criativas. No seu sentido mais vasto, a arte e a cultura da Contra-Reforma foram a arte e a · cultura de uma Reforma católica, inevitavelmente aguçadas pelo conflito com o paganismo e a heresia, mas respondendo a um impulso mais profundo que procurava levar o mundo humano a uma mais íntima associação com o do espírito. O equilíbrio entre os dois mundos era muitas vezes desigual. O mundo humano podia ser decididamente rejeitado nas formas mais extremas de misticismo: ou podia expulsar o espiritual, nos próprios excessos do embelezamento barroco. Os êxitos, os fracassos, as infinitas variações, tudo serviu, no entanto, para sugerir a extraordinária complexidade tanto da Contra-Reforma como da Reforma católica- um movimento que inspirou as deliberações de Trento e, simultaneamente, foi inspi­rado por elas.

2. A Contra-Reforma e o poder secular

Era sintomático de um movimento que estava a travar as suas próprias batalhas internas, além da grande batalha contra a he­resia protestante, o facto de o próprio carácter dos sucessivos pontí­fices ter alternado continuamente, como se reflectisse as divergentes tendências no interior da própria igreja. Paulo IV (1554-1559) fora a imagem de um papa da Contra-Reforma, defensor militante de uma igreja em luta contra as forças das trevas. Pio IV (1559-1565), por outro lado, tinha um pouco do estilo tranquilo dos papas do Renasci­mento. Prestara um incomparável serviço à Igreja ao conduzir o Concí­lio de Trento a um encerramento afortunado, mas um papa tão preo­cupado com o bem-estar dos seus numerosos familiares dificilmente poderia ser considerado como símbolo do espírito de reforma. Por ironia, a última floração do desacreditado sistema de nepotismo papal produzia agora um sobrinho papal que era genuinamente tanto sobrinho como santo. O cardeal Borromeo simbolizava, como o seu tio nunca conseguiu, as esperanças e aspirações da igreja posterior a Trento, sendo lógico que Pio lhe confiasse a desagradável tarefa de proceder à reforma da Cúria. Mas houve sempre algo de incongruente nos heróicos esforços reformadores de Borromeo por incumbência de um papa cuja corte de estilo renascentista incluía mais de 1400 pessoas; e era típico de Borro­meo o facto de, quando o tio morreu em 9 de Dezembro de 1565, ter votado em Miguel Ghislieri, cuja eleição como Pio V conduziu ao trono papal um homem cujo carácter era a antítese do seu predecessor.

Pio V (1566-1572) parecia espiritualmente mais próximo de Paulo IV do que de Pio IV, e a sua eleição foi acolhida com aclamações

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pelos partidários de Paulo. Mas se Pio possuía uma firmeza c intransi­gência comparáveis às de Paulo IV, também aceitava muito mais o espírito da Reforma Católica. Um homem de extrema austeridade pessoal, acalentava uma visão idealizada do objectivo e das funções espi­rituais da igreja, que nunca permitiria que fossem manchados ou com­prometidos devido à intervenção de contingências meramente materiais. Isto fez dele um bom pastor de almas, mas um mau diplomata; um homem decidido a continuar o trabalho de reforma eclesiástica c de recuperação da cristandade para o controlo de Roma, quaisquer que fossem os obstáculos e o preço a pagar.

Este homem desagradável e pouco dado a compromissos não se interessava pelos servidores do seu predecessor, mas estava disposto a adoptar qualquer das políticas deste, contanto que servissem para pro­mover os interesses da igreja. Pio IV já fizera alguma coisa para me­lhorar e modernizar as instituições do governo papal. Em particular, começara a alinhar a administração papal pela prática secular contem­porânea, designando Ptolomeu Galio, o seu anterior secretário privado, para o cargo de secretário doméstico do papa. Se bem que Gallio per­desse o seu cargo com o novo pontificado e se retirasse para a sua diocese de Como à espera de melhores dias, os seus anos nesse cargo ajudaram a estabelecer o hábito de designar um cardeal secretário doméstico, que assumiria o papel do sobrinho cardeal na administração papal, e teria uma responsabilidade especial na condução dos negócios externos.

O aparecimento do secretário de Estado papal constituía apenas um dos aspectos do processo de modernização lançado por Pio V e continuado pelos seus sucessores. Foi Pio quem, ao criar as duas pri­meiras congregações especiais - as do índex e do Concílio -lançou o precedente da organização de grupos de cardeais em comissões de fun­cionários públicos eclesiásticos. Também utilizou bastante os núncios especiais para a condução da diplomacia papal, se bem que fosse dei­xada ao seu sucessor, Gregório XIII, a formalização do sistema de repre­sentação papal através de núncios nas cortes dos reis católicos.

No entanto, apesar destes melhoramentos, a impressão geral criada pela igreja nos anos 60 é a de uma enorme inadequação administrativa e diplomática à grande tarefa em que estava empenhada. Tratava-se de uma igreja que perdera, e desejava recuperar, as Ilhas Britânicas e a Escandinávia, a maior parte da Alemanha, metade da Polónia e da Suíça e consideráveis partes da França. Mas a sua ignorância do carácter destes territórios era por vezes abissal. Chegou até a endereçar uma bula de convocação para o Concílio de Trento ao Suetiae et N orvegiae Rex, aparentemente desconhecendo que, desde 1450, a Noruega fazia parte da Coroa da Dinamarca, e não da sueca. Não é de surpreender que os primeiros exilados escandinavos que se refugiaram em Roma tivessem sentido a necessidade de iniciar a campanha pela reconversão das suas terras natais dando à Cúria algumas lições básicas de geografia.

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Muito podia ser, e foi, feito por legados notáveis como o cardeal Estanislau Hosius, que teve um papel decisivo na recuperação da Polónia para Roma; e a intensa actividade dos jesuítas começava a reduzir o domínio do protestantismo em grandes áreas da Europa central e orien­tal. Mas mantinha-se o facto de a .igreja estar desesperadamente fraca e de, até poder melhorar substancialmente as suas próprias agências de conversão, ser tão dependente como as igrejas protestantes nas primeiras fases da Reforma, dos favores e da assistência do poder secular.

Se bem que um príncipe católico devoto, como Alberto V da Baviera, pudesse dar à igreja uma assistência valiosa, era evidente que o principal peso deveria cair sobre os ombros de Filipe li de Espanha. Maximiliano li, que sucedera a Fernando como imperador em 1564, era considerado um cripta-luterano, e não era evidentemente de con­fiança. Filipe li, por outro lado, era um príncipe de ortodoxia irrepreen­sível; e só Filipe possuía suficientes recursos militares para lutar ao lado da Igreja contra o protestantismo e o Islão. Os inimigos de Filipe tam­bém eram inimigos da igreja - os turcos no Mediterrâneo, os protestan­tes nos Países Baixos. Dado que Filipe necessitava, pelo seu lado, do apoio moral de Roma e dos substanciais subsídios clericais que Roma devia autorizar, parecia que uma aliança entre a Espanha e o papado beneficiaria ambos.

No entanto, aliança era uma coisa, subordinação outra. O próprio Filipe mostrou-se decidido desde o início a ser o dono da sua casa, mantendo um firme controlo das amplas prerrogativas e patrocínios pertencentes à coroa. É certo que em 1566 foi obrigado a permitir a transferência para Roma do infeliz arcebispo de Toledo, Bartolomeu de Carranza, que em 1559 fora preso pela Inquisição espanhola por suspeita de heresia. Mas os embaixadores de Espanha em Roma conseguiram assegurar que o caso de Carranza fosse indefinidamente adiado, sendo necessários nove anos - até apenas dois meses antes da morte de Carranza -para alcançar o veredicto final, um tanto ambíguo.

Na sua luta por manter os direitos régios, Filipe podia contar com a Inquisição espanhola e com o apoio um tanto embaraçado do episcopado, que sabia que as suas perspectivas de promoção dependiam inteiramente do rei. Em 1572, os breves papais convocando espanhóis para se apresentarem perante tribunais estrangeiros que julgavam casos eclesiásticos foram declarados nulos e sem valor; e Flipe teve sempre o cuidado de insistir no direito da Coroa de examinar todas as bulas papais e de recusar a sua publicação no caso de contrariarem as leis e costumes espanhóis. Deste modo, conseguiu assegurar que os decretos de Trento fossem aplicados nos seus reinos nos seus próprios termos e nos momentos que ele próprio escolhesse. O agente que escolheu para esta tarefa foi o prudente e conservador Gaspar de Quiroga, cuja car­reira como Inquisidor Geral e como arcebispo de Toledo de 1577 a 1594 dificilmente faz jus a esse ardente zelo pela fé que normalmente é associado à Espanha da Contra-Reforma. Quiroga era essencialmente um

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administrador, mais interessado na definição de normas clericais e na aplicação das provisões cerimoniais e disciplinares de Trcnto, do que no intenso surto espiritual do catolicismo espanhol contcmporflnco. Só no seu patrocínio de El Greco, o maior dos artistas que trabalharam na sua diocese de Toledo, se uniram momentaneamente o administrador c o visionário.

O controlo de Filipe sobre o processo de reforma eclesiástica em Espanha conduziu a constantes fricções com o papado, exacerbadas por conflitos de jurisdição tanto em Espanha como nos domínios italianos do rei. Em Nápoles e na Sicília, Filipe mantinha um forte controlo sobre a igreja e, normalmente, obtinha o que queria. Mas os piores choques entre o rei e o papa ocorreram em Milão, cujo arcebispo era esse zeloso reformador, o cardeal Borromeo. O conflito sobre jurisdição entre o arcebispo e o governador espanhol, em 1567, conduziu a uma disputa longa e acrimoniosa, que a própria designação do amigo de Borromeo, Dom Luís de Requesens, para governador de Milão em 1571, se mos­trou incapaz de resolver. «Já não defendo a jurisdição do rei», escreveu Requesens após ter sido excomungado em 1573, «mas estou a tentar impedir a perda completa deste Estado, para o qual o cardeal Borromeo constitui um perigo maior do que um exército de cem mil franceses às portas» 4• Para um homem no calor da batalha, a agitação é compreen­sível. Mas na perspectiva mais vasta dos anos 60 e 70, as diferenças entre Espanha e Roma relativamente a problemas de jurisdição tinham uma importância reduzida em comparação com os perigos que os amea­çavam a ambos.

Os constantes motivos de irritação podem ter afectado, mas nunca poderiam destruir, essa essencial comunidade de interesses entre Espanha e Roma que inexoravelmente colocaram Filipe no papel de defensor secular da igreja. Este papel não implicou, no entanto, a subordinação de Filipe aos ditames de Roma numa cruzada comum contra as forças da heresia. Pelo contrário, Filipe prosseguiu a sua própria política ex­terna, tal como a interna, sem se preocupar excessivamente com as sus­ceptibilidades do papa. O papado suspeitava, tal como os protestantes, de que Filipe fomentava os seus próprios interesses políticos sob o manto da religião e, até certo ponto, essa suspeita era correcta. No entanto, manteve-se o facto de os inimigos naturais de Filipe serem muitas vezes também inimigos da igreja; pelo que Filipe pôde com alguma credibili­dade sublinhar os seus grandes serviços prestados à igreja, apesar de o êxito na luta redundar tanto em seu benefício como no de Roma.

No entanto, era diferente marchar ao lado do papado e conseguir manter a mesma passada. Os papas, apesar de tudo - e particularmente

4 !CiiJt;BJd)o IPIQII" IT. IM;. ·Mlajoch, Dom L:uils dJe R-eguesl€'ns, IZ.• ted!h;;a.~. !M adtril!dl, 119l1)6' JP. 1214 7.

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os papas com o carácter de Pio V - podiam permitir-se ter um hori­zonte mais largo e eliminar um obstáculo, por grande que fosse, com um simples gesto de mão. Mas Filipe, um simples rei, via-se obrigado a preocupar-se com problemas tão mundanos como quantos soldados e quanto dinheiro tinha à sua disposição. Esta diferença nas respectivas posi­ções do rei e do papa não podia deixar de conduzir a maiores diver­gências tanto em questões de política como na definição dos momentos apropriados para a sua aplicação, o que, por sua vez, aumentava a exas­peração mútua e as áreas de conflito. Pio V, por exemplo, preocupava-se de modo quase obsessivo com a luta contra os turcos. Esta era também uma grande preocupação de Filipe II nos anos 60, que muito fez para intensificar a guerra no Mediterrâneo 5• Mas, para Pio, nada do que Filipe fazia era suficiente.

Nos Países Baixos, no entanto, apó3 uma divergência inicial, Pio e Filipe mantiveram-se em geral de acordo. A quebra da autoridade nos Países Baixos e as perturbações iconoclastas de 1566 tinham colo­cado Filipe perante a angustiante necessidade de se decidir. Margarida de Parma desejava uma política conciliadora. O mesmo pretendia o grupo do Conselho de Estado espanhol liderado por Ruy Gómez, príncipe de Eboli- um grupo que parece ter tido fortes relações com a nobreza dos Países Baixos e que favoreceu um tipo de solução federal para os complexos problemas constitucionais da Monarquia espanhola. Na época, era generalizado o sentimento de que a melhor solução para o problema dos Países Baixos seria uma visita pessoal do rei. Os próprios nobres holandeses a desejavam e, de facto, tal visita foi sugerida a Filipe por Pio V e pelo cardeal Granvelle. Mas parece ter sempre havido alguma coisa que reteve o rei. Talvez se tenha deixado influenciar por infelizes recordações da sua anterior estadia nos Países Baixos; mas, mais pro­vavelmente, preocupava-o o comportamento cada vez mais estranho do seu filho e herdeiro Dom Carlos, temperamentalmente demasiado instável para lhe ser deixado a cargo o governo da Espanha enquanto o pai se encontrasse longe.

Filipe acabou finalmente por se deixar persuadir pelo duque de Alba de que a sedição e heresia dos rebeldes mais que justificavam o uso da força, e de que qualquer visita régia deveria ser precedida do envio de um exército para os Países Baixos. Dada a impossibilidade de o rei fazer uma visita pessoal em 1566, os argumentos de Alba eram realmente irrefutáveis. Um axioma da governação do século dezasseis consistia em as rebeliões incipientes deverem ser rapidamente suprimidas, e a França e a Escócia constituíam terríveis avisos do que podia acontecer se este axioma fosse ignorado. Além disso, a posição geográfica dos Países Baixos aumentava bastante os riscos normais de revolta. Filipe e Alba nunca puderam esquecer-se da longa faixa de fronteira entre os Países

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Baixos e a França. A menos que esta fosse fortemente defendida, os hereges franceses dariam auxílio e refúgio aos seus irmãos da Flandres, e o teatro de conflito francês acabaria inevitavelmente por se estender de modo a incluir os Países Baixos.

A decisão de enviar Alba à frente de um exército para os Países Baixos era, portanto, consideravelmente lógica; e a chegada da esquadra a Sevilha com uma quantidade recorde de prata, no Outono de 1566, tornou possível a acção militar. A instâncias de Alba, esta acção deve­ria ser considerada como uma campanha para esmagar a rebelião, c não, como Pio V desejava, como uma guerra santa contra os hereges. Apresentar esta expedição aos Países Baixos como uma cruzada reli­giosa envolvia, aos olhos de Alba, um risco de intervenção dos prínci­pes protestantes alemães e da Inglaterra. Além disso, o que era bastante aborrecido, privá-lo-ia da oportunidade de recrutar para o seu exército mercenários luteranos alemães. Mas Filipe não se poupou a esforços no sentido de convencer o papa da motivação religiosa que o levara a tomar essa decisão. O rei disse a Requesens, na época seu embaixador em Roma, que <<negociar com esta gente é tão pernicioso para o serviço de Deus ... que preferi expôr-me aos acasos da guerra ... em vez de permitir a mais pequena deterioração da fé católica e da autoridade da Santa Sé» 6• Estas palavras foram sem dúvida pensadas para os ouvidos do papa, mas representavam com suficiente rigor a crença pessoal do rei. Quaisquer que fossem os objectivos ostensivos da expedição de Alba, o inimigo era, para Filipe, «OS rebeldes e os hereges», e o seu exército transformou-se no ejército católico.

O último encontro entre Alba e o rei verificou-se em meados de Abril de 1567, tendo aquele navegado para Itália em finais do mesmo mês. Depois de ter reunido um exército de 9 000 homens em Milão, marchou para norte em Junho. Contornou o Mont-Cenis, passando Genebra e atravessando depois o Franco-Condado, a Lorena e o Lu­xemburgo.

A marcha de Alba teve um efeito traumatizante sobre os protes­tantes europeus. Ninguém podia ter a certeza quanto aos objectivos desse exército, e suspeitava-se de que o seu primeiro objectivo era a própria Genebra. A destruição de Genebra era um projecto acarinhado pelo papa Pio V, e ele insistiu com Filipe para tomar uma atitude que redundaria em glória própria e na da sua fé. Mas Filipe não estava preparado para comprometer o êxito dos seus planos nos Países Baixos dedicando-se a uma empresa que lhe parecia inadequadamente prepa­rada e surgir no momento errado. Enquanto a guarnição de Genebra, apressadamente reforçada por contingentes de huguenotes franceses, de­fendia as muralhas da cidade, o imponente exército de Alba passou

6 Oi'llaldlo ~or íBiemlalrd dle :Mieester, Le Saint-:Biege et les Troub~ àes Pays.JBas, ILKllV'8JimJaJ, 119814, p. 14'7.

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por ela e desapareceu da vista, sem ter sido disparado um único tiro. Genebra, pelo menos por enquanto, estava salva. Mas a passagem dos tercios de novo acordara todos os receios de Roma e da Espanha que tinham agitado os protestantes desde o encontro de Baiana 7• Não podia agora haver dúvidas de que a .chegada ao norte daquela formi­dável máquina de guerra constituía a primeira parte de um imenso pro­jecto espanhol de reconquista da Europa para a igreja. Em França, os huguenote;;, decididos a atacarem primeiro, pegaram em armas em Se­tembro. No Palatinado, o Eleitor Frederico, convencido da realidade de uma conspiração espanhola, começou a planear com os seus conselheiros calvinistas uma grande aliança contra a Espanha de todas as potências protestantes. Por toda a parte, como resultado da marcha de Alba, a identidade do papado e da Espanha foi automaticamente aceite. Catarina de Médicis ficou perturbada, os protestantes amedrontados. Em conse­quência, a tensão internacional elevou-se repentinamente a partir de 1567, à medida que a sombra do duque de Alba avançava ameaçadora pelo norte da Europa.

Os objectivos de Alba eram, na realidade, muito mais limitados do que os protestantes julgavam, dado que a sua única preocupação ime­diata era o problema dos Países Baixos. A 22 de Agosto entrou em Bruxelas, dirigindo-se ao palácio para saudar Margarida de Parma. Aos olhos de Margarida a sua presença era desnecessária e a sua chegada imperdoável, como afirmou claramente nas suas cartas ao rei antes de abandonar os Países Baixos em direcção a Parma, no final do ano. Mas os conselhos de Margarida já não eram ouvidos em Madrid, e Alba começou a aplicar os seus planos de submissão total dos Países Baixos. Estes planos incluíam a punição dos chefes rebeldes, a centralização do governo, uma reorganização fiscal generalizada e a imposição de uma disciplina religiosa eficaz. De facto, era uma reconquista dos Países Bai­xos que se pretendia- uma Reconquista no estilo espanhol- , substi­tuindo as liberdades das províncias por uma autoridade régia central, e o catolicismo erasmiano tolerante vigente nos Países Baixos pelo intran­sigente catolicismo tridentino praticado no mundo mediterrânico.

A 9 de Setembro Alba prendeu Egmont e Horn, ambos cavaleiros da privilegiada e reservada Ordem do Tosão de Ouro; e constituiu o «Conselho dos Distúrbios», concebido para perseguir e punir todos aqueles que fossem considerados responsáveis pelas desordens: clérigos e membros de consistórios calvinistas, juntamente com iconoclastas e rebeldes que tivessem pegado em armas contra o rei. A intenção de Alba, nas suas próprias palavras, não era «eliminar este vinhedo, mas sim podá-lo»; e, aparentemente, esperava limitar o derramamento· de sangue. Mas o estabelecimento de um tribunal especial foi inevitavel­mente considerado como a instauração de um regime de terror. Em

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Maio de 1568, o exilado Guilherme de Orang , utili 7.ando soldados alemães desmobilizados no final da segunda guerra civil franc sa, orga­nizou uma invasão dos Países Baixos, lançada a partir da Alemanha. Mas o país estava demasiado amedrontado para responder a esta atitude, e a invasão acabou por se transformar num vergonhoso fracasso. Nem uma única cidade importante se manifestou espontaneamente em apoio de Orange, que mais não conseguiu do que dar a Alba um pretexto para novas medidas repressivas. Em 1 de Junho realizaram-se dezoito exe­cuções, principalmente de signatári03 do Compromisso dos nobres; c a 5 de Junho, Egmont e Horn foram executados publicamente na praça do mercado de Bruxelas. O mal organizado exército de Luís de Nassau foi derrotado algumas semanas mais tarde, e uma última tentativa de invasão caíu por terra em Novembro. O próprio Guilherme, sonhando ainda com a resistência, preferiu lutar com o exército huguenote en­quanto esperava melhores dias.

As notícias da execução de Egmont e de Horn tiveram uma pro­funda repercussão nos Países Baixos. Mas em Roma foram recebidas com satisfação, e confirmaram a crença do papa de que o governo dos Países Baixos se encontrava finalmente em mãos seguras. Parecia, de facto, que o triunfo de Alba era total. A resistência fora vencida, e o «Conselho dos Distúrbios» - o «Conselho do Sangue» -prosseguiu de modo sistemático a sua actividade sinistra. Entre 1567 e 1573 tratou 12 203 casos. Destes, 9 000 parecem ter sido condenados, e um pouco mais de 1 000 executados. A carnificina não foi portanto tão selvática como por vezes se afirma; mas deve também ter-se em conta o facto de muitos dos implicados na agitação terem conseguido fugir do país, e de talvez 60 000 pessoas - ou 2 % da população total- terem emigrado dos Países Baixos durante os seis anos do governo de Alba.

Estando a política de repressão a chegar com êxito ao seu fim, viera o momento de reorganizar o sistema fiscal dos Países Baixos, de tal modo que o governo régio e o exército pudessem ser pagos sem re­correr a subsídios espanhóis. O plano de Alba consistia em lançar um imposto definitivo de um por cento - o centésimo péni - sobre a pro­priedade de terras, um imposto permanente de cinco por cento - o vigésimo péni- sobre as vendas de propriedades e um imposto per­manente de dez por cento - o décimo péni- sobre os artigos de ex­portação e a venda de mercadorias. Mas o lançamento destes impostos requeria a aprovação e cooperação dos Estados Sociais e apesar de os Estados Gerais, que se reuniram em Março de 1569, estarem dispostos a aprovar o primeiro imposto, já nada tinham a ver com os outros, que pareciam uma agoirenta reminiscência do imposto de vendas espanhol, a conhecida alcabala. O duque tentou então, com algum êxito, pressio­nar os Estados provinciais, mas fracassou completamente nos Estados de Brabante.

A . oposição ao décimo péni, particularmente entre os mercadores e artesãos, foi violenta e intensa -tão intensa, que mmca chegou a ser

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colectado, pelo menos na Flandres e no Brabante 8• Este imposto era odiado tanto devido ao seu carácter permanente e não parlamentar, como por parecer ameaçar os Países Baixos com a ruína económica. Se bem que Alba reagisse à pressão da opinião pública, primeiro conten­tando-se temporariamente com a oferta de dois créditos de dois milhões de florins por ano e, depois, em 1571, modificando a incidência do décimo péni e reduzindo o valor aplicado às exportações de 10 % para 3,3 %, as consequências políticas e psicológicas da sua proposta foram profundas. Endureceu o sentimento popular contra as oligarquias muni­cipais, já muito impopulares, excepto nas poucas cidades, como Ames­terdão, onde aquelas se tinham mantido firmes sob a pressão de Alba. Intensificou o ódio ao governo, num momento em que a perse­guição religiosa e o comportamento dos tercios espanhóis aquartelados no país tinham criado um clima de amargura e taciturno ressenti­mento. Agora que a organização calvinista dos Países Baixos fora destruída ou paralisada pelas medidas repressivas de Alba, o décimo péni fornecia o óbvio ponto de união da oposição em relação a um regime estrangeiro e opressivo.

A oposição, no entanto, fracassou significativamente em organizar uma revolta aberta. Dir-se-ia que os Países Baixos estavam definitiva­mente acobardados, e a ameaça ao domínio espanhol parecia cada vez mais vir de fora, e não de dentro - da França, das actividades dos corsários holandeses, franceses e ingleses e da política da rainha de Inglaterra, que em Novembro de 1568 detivera no porto de Plymouth quatro navios espanhóis carregados com 85 000 f., para pagamento aos soldados de Alba. Mas Filipe, encorajado pelas notícias dos êxitos de Alba na pacificação dos Países Baixos, começava a pensar que chegara o momento de uma mudança de política e talvez de governador. Em 1568 recusara as propostas do imperador Maximiliano no sentido de pôr fim ao regime de terror e de alargar a paz religiosa da Alemanha aos Países Baixos. Mantinha-se firme na sua recusa de negociar com hereges; mas o cardeal Granvelle e o príncipe de Eboli juntavam agora as suas vozes às do Imperador, pedindo a adopção de uma atitude mais conciliadora. Em inícios de 1569 o rei decidiu lançar uma amnistia geral - se bem que fosse consideravelmente menos geral do que o seu nome sugeria. Mas a amnistia foi considerada prematura por Alba, e só em Julho de 1570 foi finalmente publicada, por entre manifestações oficiais de alegria e indiferença pública.

Com a publicação da amnistia, a tarefa de Alba parecia oficial­mente terminada. Tinha frequentemente pedido ao rei autorização para se retirar, e Felipe sentia-se finalmente capaz de aceder aos seus dese­jos. Nos finais de 1570 o duque de Medina Celi foi designado para

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lhe suceder, se bem que não assumisse o seu novo ca ~go até 1572. As notícias da iminente partida de Alba dos Países Batxos perturbaram grandemente o papa. A paz de Saint-Germain, que pusera fim. à ter­ceira guerra religiosa em França em Agosto de 1570, horro~·J zara-o devido às concessões feitas aos hereges, e enchera-o de prcssenttmentos quanto ao futuro da igreja no norte da Europa. Alba pod~ri a_ ter salv_o o catolicismo nos Países Baixos mas era-lhe ainda necessáno fazer mais -bastante mais. Seria por ex~mplo concebível que a Espanha retirasse da batalha enquanto no trono inglês se sentava uma herege?

Filipe 11 já estava habituado à inquietação que a rainha de Ingla­terra provocava no papa. Interviera duas vezes, em 1561 e 1563, em Roma, impedindo que Isabel fosse excomungada- não porque a ap~o­vasse ou aos seus métodos mas porque a manutençao de relaçoes entre a Inglaterra e a Espanha era essencial para o êxito ?a _sua política relativamente à França e aos Países Baixos. Mas, em fmais dos anos 60, tornava-se cada vez mais difícil manter boas relações com a Ingla­terra. A chegada de Alba aos Países Baixos alarmara este país, tal como alarmara todos os outros Estados protestantes, e os receios ingle~es foram reforçados pelos acontecimentos de 1568. A_ fuga de .:N!~na, rainha da Escócia, para Inglaterra em Maio abriu pengosas possib~hda­des de uma rebelião dos católicos ingleses em conjunção com uma mter­venção militar estrangeira no sentido de colocar Maria no trono inglês. Os êxitos de Alba nos Países Baixos no verão e no outono aumentaram obviamente o perigo e acabaram por persuadir o governo in~l~ a con­cordar com pequenas ferroadas na Espanha e no poder catohco - um pequeno auxílio aos huguenotes em La Rochelle; a tácita aprovação dos marinheiros que se juntaram aos corsários holandeses e france~es no Canal; e finalmente, em Novembro, o apresamento dos nav10s de pagamento.

O caso destes navios, seguido das notícias da expedição esclava­gista de John Hawkins às Caraíbas, onde fora bastante maltratado pelos espanhóis em Setembro, no porto mexicano de San Juan ~e Ulua, pro­vocou uma acentuada deterioração das relações entre os mgleses e os espanhóis. A mútua aversão começava agora a minar os conselho~ de comedimento. Encorajado pelo príncipe de Eboli e pelos seus amigos, Filipe ouvia com a maior simpatia as opiniões do seu embai~ador em Londres, Dom Guerau de Spes, que insistia em que pouco sena de :s­perar de Isabel e em que se ganharia mais apoian~~ Maria ~~ Escóct~. Sob a pressão dos acontecimentos, portanto, a pohtica de ~ilipe relati­vamente à Inglaterra aproximava-se da do papa. Em Fevereiro de 1569 escreveu a Alba dizendo-lhe que sentia uma obrigação de preservar e restaurar a fé em Inglaterra, mas deixava a iniciativa inteiramente ao duque.

Em Novembro de 1569 observou-se o acontecimento que Dom Guerau de Spes aguardava - o levantamento dos condes nórdicos con-

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tra o governo protestante do arrivista William Cecil e seus amigos. Mas Alba nada fez. A sua não intervenção foi parcialmente causada por um desprezo instintivo, que partilhava com o seu senhor, por todas insurrei­ções contra a autoridade legítima- o que o impediu de entrar em contacto directo com os rebeldes. Mas também decorreu da bem funda­mentada convicção de que a situação nos Países Baixos, e a sua própria falta de dinheiro, não lhe permitiam embarcar numa empresa tão arris­cada como a invasão de Inglaterra. A sua reacção à conjura Ridolfi em 1571 foi também pouco entusiástica. Sabia que não podia depositar muita esperança nos católicos ingleses e que só uma invasão maciça e bem organizada poderia ter possibilidades de recuperar a Inglaterra para a igreja.

As oscilações da política de Filipe quanto à Inglaterra ilustram bem a complexidade das suas relações com Roma. Por um lado, a sua falta de confiança na França e as suas preocupações com os Paíeses Bai­os levavam-no a procurar desesperadamente conservar a boa vontade de Isabel; por outro, a constante insistência do papa na necessidade de uma intervenção militar, juntamente com os problemas cada vez mais sérios causados pelas actividades dos corsários ingleses, conduziram-no, embora relutantemente, a adoptar uma política mais agressiva. No entanto, ainda em 1570, quando Pio publicou finalmente a sua bula de excomunhão de Isabel, Filipe exprimiu o seu desagrado por aquilo que lhe parecia um acto particularmente inoportuno, recusando-se a permitir a sua publi­cação nos seus próprios domínios. Pode ter autorizado Alba a intervir em Inglaterra em 1569 e, de novo,em 1571; mas conhecia o seu homem e estava a par das dificuldades, e soube tirar as conclusões adequadas. Estas precauções e hesitações não transformam Filipe num filho da igreja menos obediente. Era ainda, e tencionava continuar a ser, um defensor da fé, mas desejava defendê-la nos seus próprios termos, e no momento que considerasse oportuno.

O comportamento de Filipe suscitou apreensões e suspeitas na mente de Pio V. Mas este sabia, tal como Filipe, que os aconteci­mentos levavam gradualmente a Espanha a uma confrontação aberta com o norte protestante. Filipe viu-se cada vez mais desafiado por inimigos que eram, igualmente, inimigos da sua fé. Nos Países Baixos, a sua autoridade fora desafiada por rebeldes calvinistas. No Novo Mundo, os direitos de soberania da Espanha tinham sido desafiados primeiro pelos huguenotes, que tentaram colonizar a Florida em 1564-65, e em seguida por ingleses protestantes, Hawkins e Drake, em 1568. No Canal e na Baía da Biscaia, as linhas vitais de comunicação com os Países Baixos tinham sido destroçados pela actividade de corsárioS' hereges. Mais tarde ou mais cedo a confrontação entre o sul católico e o norte protestante tinha de acontecer- uma confrontação cujo cenÁrio fora espectacularmente montado pela marcha do exército de Alba para norte. Mas, nesse momento, o norte não era a única frente de batalha, nem sequer a mais importante; nem os hereges protestantes eram o único ini-

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migo da igreja. Com a bênção de um papa imp~ciente, Filipe via-se profundamente envolvido noutra cruzada, ~mda mats urgente: a cruzada no Mediterrâneo contra as forças do Islao.

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VI

A GUERRA CONTRA O ISLÃO

1. Prelúdio do conflito

A revolta dos Países Baixos parece, vista retrospectivamente, ter tido consequências tão graves que é necessário um esforço de imagina­ção para compreender que, ao longo das décadas de 60 e 70 na sua quase totalidade, os Países Baixos foram apenas uma pobre segunda prioridade de Filipe 11, menos importante que o Mediterrâneo. Os êxitos do protestantismo no norte da Europa eram bastante perturbado­res. Mas, se fosse necessário escolher entre a Itália e o norte no que se referia à distribuição de soldados e dinheiro, a Itália tinha de ganhar. Com efeito, esta era o bastião que protegia a Espanha dos turcos; e nenhum governante da Espanha do século dezasseis poderia permitir-se negligência na defesa dos interesses e da segurança da Espanha face às intenções terrivelmente imprevisíveis do poder otomano.

Filipe 11 aprendeu esta lição logo muito cedo no seu reinado. A empresa contra Trípoli, que autorizara talvez irreflectidamente em 1559 t, terminou em desastre, em Maio de 1560. A expedição cristã, constituída por quarenta e sete galés e cerca de doze mil homens, não encontrou qualquer oposição quando conquistou a ilha de Djerba, que guardava a entrada de Trípoli. Mas uma esquadra turca de oitenta e cinco navios sob o comando do Paxá Piali partiu de Constantinopla assim que a notícia foi recebida. Levando apenas vinte dias para atingir Djerba, atacou a 12 de Maio. As forças cristãs entraram em pânico e fugiram desesperadamente para as galés, que não conseguiram atingir o mar alto antes de os turcos as atacarem. Vinte e sete galés caíram nas mãos dos turcos quase sem ser disparado um tiro; e os seis mil homens deixados para trás na fortaleza foram obrigados a render-se dez semanas mais tarde, devido à fome e à sede.

1 'V'eir al!Jrârs, arupituilJo 11.

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O fracasso de Djerba mostrou com suficiente clareza que o Im­pério Otomano dispunha agora da supremacia naval no Mediterrâneo- e, se fossem necessárias mais provas, surgiram em 1561, quando uma esquadra turca foi avistada tão a ocidente como Maiorca. Mas Djcrba foi uma derrota salutar, pois forçou Filipe a tomar medidas no sentido de fortalecer a sua própria esquadra. Depois de Djerba, só podia con­tar com cerca de sessenta e quatro galés para as operações no Mediter­râneo, incluindo as dos Cavaleiros de Malta e dos seus aliados italianos - Génova, Florença e Sabóia. Tornava-se essencial lançar um vasto programa de construção naval, qualquer que fosse o seu custo. As Cortes de Castela mostraram-se razoáveis; as fontes de rendimento extrapar­lamentares foram substancialmente aumentadas; e em 1561 o subsidio anual pago pelo clero foi fixado em 300 000 ducados, sendo aumentado para 420 000 no ano seguinte.

A partir de 1561 os estaleiros espanhóis e italianos tiveram muito trabalho, mas a construção de galés era um processo lento e laborioso, que envolvia o abate de árvores em florestas muitas vezes afastadas da costa, o transporte da madeira por terra ou por rio até aos estaleiros e, em seguida, a perda de algum tempo enquanto a madeira secava. Em 1564, no entanto, o poder naval espanhol renascia, e Dom Garcia de Toledo, designado pelo vice-reino da Catalunha «Capitão Geral do Mar», pôde fazer-se ao largo com uma esquadra de cem navios, dos quais setenta eram espanhóis. O seu objectivo era o Peiíón de Vélez, um conhecido esconderijo de corsários entre Orão e Tânger. A expedi­ção teve um êxito total. No Mediterrâneo ocidental, pelo menos, a ini­ciativa cabia de novo à Espanha.

Mas era no Mediterrâneo central, onde Filipe estava ainda em desvantagem, que os turcos planeavam agora a sua campanha em grande escala. Sabia-se desde há alguns meses nas capitais da Europa que estava a ser preparada uma grande esquadra em Constantinopla, mas ignorava-se se o seu destino era a ilha veneziana de Chipre, ou Malta, a última fortaleza dos Cavaleiros de S. João. O mistério foi decifrado quando a esquadra surgiu repentinamente ao largo da costa de Malta, em 18 de Maio de 1565. O Grão-Mestre dos Cavaleiros de Malta, João de la Valette, fizera o seu melhor no sentido de reforçar as defesas da ilha, com o auxílio de Dom Garcia de Toledo, agora vice-rei da Sicília. Mas La Valette tinha menos de 9 000 homens à sua disposição, e a 18 e 19 de Maio desembarcaram 23 000 turcos na ilha. Durante vinte e três dias, a pequena guarnição do bastião de St. Elmo, a chave das defesas de Malta, repeliu uma série de ataques turcos. A sua extraordi­nária resistência deu a La Valette tempo para reforçar as fortificações de 11 Burgo, a principal fortaleza da ilha, e enviar urgentes pedidos de socorro.

Só dos espanhóis poderia vir um socorro eficaz, e demorou longo tempo a chegar. As razões do atraso foram menos sinistras do que os contemporâneos pensaram. Apesar de toda a energia de Dom Garcia, levou tempo a concentrar tropas e uma esquadra em Messina; e seria

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loucura enviar uma esquadra mal preparada para Malta, arriscando-se a uma derrota que deixaria todo o Mediterrâneo ocidental sem defesa face a um assalto otomano. Só a 26 de Agosto, portanto, se fez ao largo a expedição de auxílio, partindo da Sicília e navegando com ~di­cações estritas do rei no sentido de evitar uma batalha com as supenores forças navais turcas.

Depois de ter tido de voltar à Sicília por causa das tempestades, a esquadra acabou por atingir Malta, a 7 de Setembro, num momento em que tanto os sitiantes como os sitiados estavam próximos da exaus­tão. Dom Garcia executou brilhantemente as ordens do rei e desembar­cou 10 000 homens, sem travar qualquer combate naval. A tão esperada chegada destes reforços pôs fim ao cerco. O Paxá Piali deu ordens aos seus soldados para embarcarem e a 12 de Setembro desaparecia no horizonte o último navio turco. O levantamento do cerco foi celebrado em toda a Europa como um grande triunfo das armas cristãs, embora se pensasse que Filipe II dera o seu auxílio de má vontade e tardiamente; e Pio IV evitou ostensivamente qualquer referência à Espanha nas suas expressões de gratidão pela vitória. No entanto, a verdade era que a esquadra espanhola salvara Malta e o Mediterrâneo central dos turcos e que o poder naval espanhol constituía o único obstáculo eficaz a um avanço otomano.

O idoso Solimão, o Magnífico procurou vingar-se da humilhação sofrida em Malta lançando uma campanha terrestre contra a Europa central, em vez de tentar um novo assalto naval ao Mediterrâneo. Se bem que o Sultão e o Imperador estivessem oficialmente em paz desde 1562, a morte do Imperador Fernando em 1564 fornecera aos turcos um pretexto para exigirem o pagamento de tributos. em atraso. O ~ovo imperador, Maximiliano Il, embora desejoso de evitar a guerra, vm-se irremediavelmente enredado num conflito com o príncipe de Transilvâ­nia, que recorreu ao auxílio do seu patrono em Constantinop~a. E_?l inícios de 1566, tornou-se claro que estava prestes uma nova mvasao turca da Áustria. Maximiliano Il, com o auxílio financeiro do seu primo Filipe, juntou um exército heterogéneo de 40 000 homens; mas Solimão partira de Constantinopla a 1 de Maio, à cabeça de um exército que se dizia ter 300 000 homens. Só após noventa dias de marcha das forças otomanas, estas encontraram resistência séria na fortaleza de Szigeth, no sudoeste da Hungria. Ficaram aqui detidas durante trinta e quatro dias, até 8 de Setembro. Nesse mqmento, a estação boa para a campa­nha tinha praticamente chegado aó fim; e dois dias antes da queda de Szigeth, Solimão morria no seu acampamento.

O grão-vizir Mehmed Sõkõlli conseguiu ocultar durante três se­manas a morte do sultão. Isso deu tempo para a sucessão pacífica do filho de Solimão, Selim II, e para a deslocação deste de Constantinopla até Belgrado, a fim de ser aclamado pelo seu exército. Durante os tem­pos mais próximos, pelo menos, não havia perigo para a Áustria; e apesar de a guerra continuar de modo irregular na Hungria durante

BO

mais um ano, depressa se tornou evidente que nenhum dos lados estava interessado em prolongá-la. Uma embaixada austríaca chegou a Cons­tantinopla em finais de 1567 e Selim concordou, em .Fevereiro de 1568, com uma trégua de oito anos. A trégua dependia do pagamento anual pelo Imperador de um tributo de 30 000 ducados, que - para salvar Maximiliano de uma humílhação excessiva- era eufemisticamcnt des­crito como um donativo.

Se bem que a morte de Solimão levasse a campanha da Áustria a uma conclusão abrupta, outras razões existiam, mais profundas, para o abrandamento da ofensiva turca contra as terras no coração da Europa. Durante grande parte do longo reinado de Solimão, o exército turco fora um aparelho de guerra mais formidável que a frota. Nas suas cam­panhas europeias, este exército fora principalmente usado, nos últ~os quarenta anos, para incursões em grande escala, e não para conqUistas territoriais maciças 2• Estas incursões, no entanto, tinham chegado tão longe da base do exército em Constantinopla que haviam privado o poder otomano de grande parte da sua eficácia. A estação de campanha tornava-se demasiado curta quando eram requeridos noventa dias para movimentar as vastas colunas de homens, camelos e abastecimentos através dos Balcãs, até à Hungria; e os comandantes cristãos depressa concebe­ram uma resposta eficaz ao avanço turco, construindo uma cadeia de fortalezas suficientemente fortes para deter o exército no seu caminho e, frequentemente, para o reter até terminar a estação. A prolongada resis­tência de Szigeth em 1566 mostrara como esta estratégia funcionava bem; mesmo que Solimão não tivesse morrido, o seu exército não pode­ria ter conseguido muito no pouco tempo que restava entre a queda de Szigeth e o início do inverno. Toda a campanha, de facto, ilustrava cla­ramente como o ataque turco à Europa central estava por esta altura fatalmente condenado, e como a guerra por terra entre a cristandade e o Islão estava a atingir um ponto morto.

Mas se a eficácia otomana na guerra em terra contra a Europa estava visivelmente em declínio, os acontecimentos dos anos 60 torna­ram evidente que o poder otomano no mar era agora impressionante. Isso tornava provável que, apesar de terem sido repelidos em Malta, o peso do assalto otomano contra a cristandade fosse deslocado para o Mediterrâneo e dirigido contra Chipre ou a Itália ou até, talvez, contra a própria Espanha. Selim H, para grande alívio da Europa, era mais um poeta do que um guerreiro; mas era habitual que os turcos marcassem o início de um novo sultanato com alguma campanha espectacular. Decerto não falharia, a longo prazo pelo menos, uma empresa no Medi­terrâneo que obrigasse a Espanha a dar uma resposta firme, pois a

2 IDlton, A Europa da Reforma.

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religião, a história e a própria segurança deste país combinavam-se para dele fazer o inimigo natural dos turcos e o inevitável campeão da cristandade contra o Islão. A própria Espanha se forjara no calor do conflito com os mouros. Só ela, de entre todos os Estados europeus do ocidente, possuía uma vasta população mourisca, deixada «em seco» pelo triunfante avanço da Reconquista. E como herança da Recon­quista, também possuía uma posição precária no Norte de África mouro. E os seus interesses vitais viam-se ameaçados pela aliança entre Cons­tantinopla e os corsários norte-africanos, que punham continuamente em perigo as artérias da Monarquia espanhola - as rotas marítimas que ligavam a península às suas possessões italianas e aos celeiros da Sicília.

De todos os Estados mediterrânicos, só a Espanha tinha possibili­dades de conter um ataque otomano. Mas em organização e recursos era, de certo ponto de vista, inferior aos turcos. O Império Otomano era uma vasta máquina militar, com reservas aparentemente infinitas de dinheiro e homens. Num mundo mediterrânico com quase sessenta milhões de habitantes, talvez trinta milhões fossem súbditos da Porta. Se bem que existissem grandes diferenças raciais e religiosas entre estes trinta milhões, o Império Otomano alcançara, através do seu aparelho de Estado e do seu sistema de recrutamento para o serviço do governo, uma coesão e unidade que não podiam ser igualadas pelo ocidente cristão. O embaixador imperial em Constantinopla ficou profundamente impres­sionado pelas oportunidades de promoção de todos os súbditos do sultão, mesmo os mais humildes, e comparou esse facto com a prática europeia, onde tudo dependia do nascimento e não havia lugar para o mérito 3•

Eram as raças conquistadas - gregos e albaneses, arménios e eslavos -que forneciam ao sultão os seus soldados, conselheiros e funcionários: de quarenta e sete grão-vizires entre 1453 e 1623, só cinco eram turcos de nascimento. Era evidente o contraste com a Monarquia espanhola, cujos vice-reis e governadores provinham geralmente de umas poucas grandes famílias de Castela. O império de Filipe era essencialmente um império castelhano fechado. O de Solimão e de Selim era um império aberto, que recrutava indiscriminadamente os seus funcionários de entre as raças dominadas e oferecia oportunidades de altos cargos sem ter em conta a origem.

Se bem que os súbditos do sultão não fossem, pelas normas con­temporâneas ocidentais, muito sobrecarregados de impostos, Solimão gozava nos seus últimos anos de um rendimento anual de cerca de oito milhões de ducados. Tal como Filipe tinha os seus banqueiros alemães e genoveses, também o sultão os tinha gregos. Possuía também, no

3 The Turki8h Letters of Ogi-etr Ghiselin De Busbecq, org. E. S. iFors­ter, Oxforrd, 19127, w. 60-61.

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misterioso judeu português José Nasi ou Micas (mais tarde conhecido pelo retumbante título de duque de Naxos), o mais cspcctacular finan­ceiro de finais do século dezasseis. É certo que o Impéri Otomano não dispunha de um sistema de crédito público comparável ao elaborado sistema espanhol dos juros, que permitia a Filipe JT obter enormes somas em empréstimos a longo prazo. Mas a primeira e mais importante aplicação do crédito entre os reis cristãos era subsidiar a guerra; c o Império Otomano estava organizado para a guerra de uma maneira tão superior à cristandade que era capaz de lutar com custos muito inferio­res. Enquanto os exércitos europeus dependiam do sistema oneroso c ruinoso dos mercenários, o exército otomano formava uma parte inte­grante da Sociedade e do Estado. A classe guerreira dos sipahi vivia de feudos em territórios conquistados; e enquando o exército otomano pu­desse pilhar as terras que rodeavam o Império - como fez, e com lucros, na primeira metade do século - , a actividade guerreira em terra paga­va-se a si mesma. É certo que a esquadra colocava problemas mais sérios. A madeira, os armazéns navais e os remadores podiam ser forne­cidos pelos domínios do sultão, mas a contratação de bons técnicos oci­dentais era extremamente cara. No entanto, nos dias áureos da esqua­dra turca, entre as batalhas de Prevesa em 1538 e de Lepanto em 1571, a guerra no mar, tal como a de terra, tornou-se auto-suficiente através da pilhagem e captura sistemáticas de despojos.

A capacidade guerreira do Império Otomano transformava-o por­tanto num perigoso adversário, mesmo para uma Monarquia espanhola que começava a colher substanciais benefícios da sua conquista da Amé­rica. Existiam inegáveis fraquezas no sistema otomano - a neces­sidade de constantes conquistas para manter a sua coerência e ímpeto; a dependência da pessoa do sultão que, após 1566, raramente pôde satisfazer todas as exigências do seu cargo. No entanto, um grão-vizir competente, como Mehmed Sokolli, podia remediar em grande parte as deficiências do seu senhor. Controlava, ainda, uma notável máquina mili­tar e administrativa, cuja eficácia contrastava fortemente com os vários graus de confusão que se podiam observar nos sistemas administrativos dos Estados europeus. Filipe li foi sem dúvida afortunado por os inte­resses do Império Otomano na Ásia e em África lhe distraírem fre­quentemente a atenção do Mediterrâneo, se bem que também ele tivesse responsabilidades noutros pontos. Teve ainda a sorte de a Europa oci­dental estar nesse momento a gozar de um avanço técnico em constru­ção naval, o que viria a dar uma vantagem decisiva às forças cristãs quando as esquadras do Leste e do Ocidente acabassem por se encontrar em Lepanto. Mas, com as finanças instáveis e com os problemas que se avizinhavam nos Países Baixos, era compreensível a sua precaução em meados dos anos 60, ao recusar ser arrastado prematuramente para um conflito global no Mediterrâneo. Esta confrontação deveria ser adiada tanto tempo quanto possível.

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2. A confrontação dos impérios

Se esse asceta inocente, Pio V, tivesse conseguido o que queria, o novo pontificado de 1566 teria sido magnificamente inaugurado pela formação de uma Liga Sagrada entre a Espanha, a França, Veneza e os Estados italianos, em luta contrá o lslão. Durante os seus seis anos no trono papal, Pio acalentou a visão de uma grande cruzada contra o infiel; e se a visão acabou por ser aceite, foi a ele mais do que a qualquer outro que coube o crédito. Admoestava e. perseguia incansa­velmente os embaixadores das potências católicas. Mas, nos primeiros anos do seu pontificado, apenas conseguiu obter respostas evasivas, tanto dos espanhóis, cuja atenção era desviada pelo problema dos Países Baixos, como de Veneza, desesperadamente preocupada com não pôr em risco as suas precárias relações com os turcos, dos quais dependia a prosperidade do comércio no levante.

As iniciativas papais poderiam ter recebido melhor acolhimento se a ameaça otomana fosse nesse momento mais aguda. Mas os dois ou três anos que antecederam a morte de Solimão foram anos de estranha e agoirenta calma no Mediterrâneo. O funcionamento interno da política otomana é ainda desconhecido. A inesperada calma talvez tivesse sido causada por fracassos agrícolas na bacia oriental do Mediterrâneo, ou por preocupações mais prementes relativamente a outros locais. Os turcos tinham ficado profundamente preocupados com o avanço para sul da MoscóVia, que tinha anexado Cazã e Astracã em meados dos anos 50. Era evidente que estava a nascer uma nova potência na fron­teira nordeste do império otomano, ameaçando a rota dos peregrinos e o comércio da Ásia central, e perturbando o equilíbrio de poder entre os turcos e os seus tradicionais rivais, os persas. Foi aparentemente sob a direcção de Sokolli que os turcos desviaram a sua atenção, em finais dos anos 60, para a ameaça moscovita. Os seus grandiosos esquemas para restaurar o equilíbrio incluíam uma tentativa, abortada em 1569, de construir um canal entre o Don e o V olga, destinado a ligar o Mar Negro e o Cáspio, para facilitar os ataques à Moscóvia e à Pérsia e a libertação de Astracã.

Quaisquer que fossem as razões para as tréguas no Mediterrâneo, estas não poderiam deixar de ser bem-vindas por um Filipe II atormen­tado. 1566 foi o ano da revolta nos Países Baixos. Grande parte de 1567 foi ocupada com os preparativos para a marcha do duque de Alba. O ano seguinte, 1568, foi, tanto de um ponto de vista pessoal como nacional, um ano terrível para Filipe- talvez o pior do seu reinado. Tomara conscienciosamente em mãos o governo da Espanha e o seu estilo de exercer a realeza estava agora bem definido. Ao contrário do pai, era um monarca sedentário, que preferia governar os seus reinos de uma secretária. Em 1561 dera à Espanha uma capital permanente em Madrid; e em 1563 começara a construir nas colinas de Guadarrama o mosteiro e a residência régia do Escoriai, que viriam a ser um motivo de interesse e um passatempo absorventes até estarem terminados, em

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1583. Na solidão do seu estúdio debruçar-se-ia pela noite dentro sobre documentos e despachos governamentais, fazendo interminúveis comen­tários marginais com a sua caligrafia miúda. A atenção aos pormenores era grande e obsessiva- tudo devia encontrar-se perfeitamente ordenado e todas as formalidades deveriam ser observadas. Nenhum rei foi al­guma vez mais consciencioso relativamente ao seu dever perante Deus e os seus súbditos. A governação deveria ser boa (se bem que, infeliz­mente, os seus resultados fossem lentos); devia fazer-se justiça sem ter em conta pessoas ou posições sociais; e todas as decisões, por muito trabalhosas que fossem, deveriam ser tomadas pessoalmente, pois Filipe confiava mais na sua capacidade de avaliação do que na dos seus conselheiros, apesar de em problemas de consciência ter procurado invariavelmente uma direcção teológica.

Toldando o trabalho de Filipe nos primeiros anos do seu rei­nado havia o terrível problema de Dom Carlos, o seu único filho e her­deiro. Não só o comportamento pessoal deste era cada vez mais estra­nho e anormal, como ainda começava a permitir-se perigosas fantasias políticas. Estas levaram-no a entrar em contacto com o barão flamengo de Montigny, que viera a Espanha como representante da nobreza holan­desa no Verão de 1566; e parecem ter acalentado a ideia de fugir para os Países Baixos, para que Carlos pudesse escapar aos constrangi­mentos que sentia em Madrid. Quando Egmont e Horn foram presos, em Setembro de 1567, Montigny foi detido em Espanha. A prisão de Mon­tigny deve ter aumentado o desespero de Carlos, e o seu desejo de se afas­tar a todo o custo da presença de um pai severo e sempre disposto a censu­rá-lo. Filipe conhecia perfeitamente as intenções do filho e, relutante­mente, decidiu que, tanto por razões pessoais como para segurança do Estado, era essencial que Dom Carlos fosse encarcerado. Na noite de 18 de Janeiro de 1568, um grupo que incluía o rei e o príncipe de Eboli penetrou no quarto do príncipe, e o infeliz jovem foi colocado sob uma guarda armada. Seis meses mais tarde, morria no Alcazar de Madrid.

O mistério que rodeou a prisão e a morte de Dom Carlos deu origem a uma enorme quantidade de rumores - avidamente aproveita­dos pelos inimigos de Filipe - de que fora condenado à morte pelo rei. O estrangulamento secreto de Montigny dois anos mais tarde no castelo de Simancas sugere que o assassínio judicial não era uma acção a que Filipe fugisse quando a considerava necessária. Mas o comporta­mento pessoal de Dom Carlos na prisão é por si só suficiente para justificar a morte. Para Filipe II, tanto a vida como a morte do seu filho foram uma terrível tragédia, ainda agravada pela morte em Outu­bro de 1568, três meses depois de Dom Carlos, da sua rainha, Isabel de Valois 4•

· 4 ;Lsa;bel de Va;lois teVIe duas filhas de Fi>Jiip.e, Isa bela Cla!'a E ugênia (futura go·VIer"naJnte ·da <F\la;ndve.s) e Crutarina. Ele casou em 11'570 pe•la quarta vez com Ana de Austria, fi'lha do seu prirrno, o Imp,erador MaximiU8.1Ilo li. O futuro FiHpe III nasceu deste caswmen~to, em 'lõ78.

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O ano de desolação e tragédia pessoais terminou com o desastre nacional que foi o levantamento dos mouros de Granada na noite de Natal. A revolta dos mouros foi o resultado de prolongados problemas raciais e religiosos na Andaluzia e, nesse sentido, foi um acontecimento não relaci?n~do com o conflito entre. o Império Otomano e a Espanha. Mas o propno facto de se tratar de um levantamento mouro no interior da península levava-o a assumir imediatamente um lugar no contexto mais vasto da grande luta entre a Espanha cristã e o Islão. Os espanhóis nã~ conseguiam deixar de ver esta revolta como uma nova prova dos pengos que os ameaçavam enquanto a cruzada contra os mouros não fosse completada. Os turcos, pelo seu lado, tendiam a ver com simpatia a luta dos seus irmãos contra o domínio cristão. Os acontecimentos no sul da Espanha entre 1568 e 1570 tiveram portanto repercussões inevi­táveis no conflito do Mediterrâneo, e deram credibilidade aos olhos de Filipe, aos urgentes avisos de Roma quanto à necessidad~ de uma Liga Sagrada.

A revolta dificilmente poderia ter surgido num momento pior para a Espanha, desprovida de soldados experientes devido à partida de Alba para os Países Baixos. Essencialmente, tratava-se de uma revolta nas­cida do desespero e talvez pudesse ter sido evitada por uma melhor administração. Desde a conquista de Granada em 1492, a população mourisca constituía uma vasta e não assimilada minoria no interior da sociedade espanhola e uma incómoda recordação de uma obra inacabada. Nominalmente, os mouros de Granada eram cristãos desde 1499. Na prática, a frouxa e mal organizada igreja de Granada pouco se interes­sara por ensinar as doutrinas cristãs ao seu rebanho mourisco. Benefi­ciando da negligência do clero, os mouros continuaram subrepticia­mente a seguir a fé dos seus pais, observando os seus costumes e usando as suas vestes tradicionais. Se bem que isto os conduzisse a conflitos esporádicos com a igreja, a Inquisição e a audiencia de Gra­nada, podiam sempre recorrer à protecção dos hereditários capitães­-mores de Grana,da,_ os m~r.9ueses de Mondéjar, que procuravam pre­servar a sua propna pos1çao refreando as autoridades cristãs rivais.

Na década de 1560, no entanto, o precário equilíbrio de cin­quenta anos estava a ponto de ser rompido. Num sentido, os mouros foram vítimas da Contra-Reforma: a igreja espanhola posterior a Trento começava a perder a paciência em relação às práticas mouriscas cada vez mais difíceis de tolerar numa época em que qualquer desvio reiigioso parecia pôr e_m causa a luta_ contr!l a heresia no país e no estrangeiro. A 1 de Janeiro de 1567 fo1 publicada uma pragmática ordenando aos mouros que abandonassem o uso do árabe, juntamente com os seus costumes raciais e religiosos, e adaptassem a indumentária castelhana. Já anteriormente tinham sido publicadas, e ignoradas, pragmáticas seme­~hantAes,. mas desta vez havia verdadeiro risco de ser aplicada porque a mfluenc1a do protector natural dos mouros, o marquês de Mondéjar, era minada pelas intrigas dos seus inimigos na corte.

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Os mouros estavam agora preocupados com o futuro. A Inquisição intensificara as suas actividades. Na audiencia havia muitos inimigos de Mondéjar, dos quais não era possível esperar clemência. E a in­dústria da seda, de que dependiam para a sua sobrevivência, fora dura­mente atingida pelos drásticos aumentos de impostos, desde 1561. Nestas circunstâncias, era natural que procurassem o auxílio dos seus irmãos muçulmanos. No momento do cerco a Granada, foram presos como espiões três mouros, os quais revelaram a existên­cia de planos turcos para uma conquista da costa granadina. Uma incursão costeira de corsários, no Inverno de 1565, aumentara os receios de Filipe de uma insurreição mourisca sincronizada com uma invasão turca. Estes receios eram razoáveis numa época em que a todos os príncipes europeus perseguia a visão de uma intervenção estrangeira em auxílio da revolta doméstica; e o conselheiro mais influente de Filipe, o cardeal Espinosa, persuadiu-o de que a melhor forma de pre­venir o perigo consistia numa aplicação rigorosa da pragmática contra as práticas mouriscas. O marquês de Mondéjar, que conhecia melhor os seus mouros, avisou o rei de que isso poderia dar origem precisamente às consequências que procurava evitar. Mondéjar tinha razão, e os mou­ros revoltaram-se.

O fracasBo dos rebeldes em apoderarem-se da cidade de Granada reduziu grandemente as suas possibilidades de êxito, mas os relatórios que chegaram a Madrid provocaram um alarme justificável. Os mouros atacaram selvaticamente a população cristã, violando as igrejas e massa­crando oo padres. Filipe teve a sorte de dispor, no marquês de Mondéjar, de um comandante muito capaz, que depressa contra-atacou com os ho­mens que as cidades da Andaluzia enviaram em seu auxílio. Mas o país era montanhoso; o avanço era lento; e o rei, sensível às insinuações dos inimigos de Mondéjar, incapaz de não interfir. Primeiro ordenou ao infortunado marquês que partilhasse o seu comando com um magnata rival, o marquês de Los Vélez, e em seguida, quando os dois homens caíram em desgraça, o comando supremo foi dado ao meio-irmão do rei, Dom João de Áustria, de vinte e dois anos de idade.

Durante meses arrastou-se uma guerra cruel nas montanhas de Granada. Eram poucas as galés para proteger a longa costa andaluza, e um desembarque turco em apoio dos rebeldes teria sido relativamente fácil. Mas os turcos não vieram. Os mouros lutaram com grande cora­gem, e a sua luta serviu de fonte de inspiração a outro rebelde, Gui­lherme de Orange, que assistia de longe aos acontecimentos. Se estes mouros, que afinal eram gente pobre, «como um rebanho de ovelhas», tanto conseguiu contra o poderoso rei de Espanha, o que não poderia conseguir o povo dos Países Baixos, <<forte e robusto, que pode contar com auxílio de todas as partes do mundo?» 5 Mas gradualmente, e com

5 \Glwill:h~e de OiMlDigJe pama Jbão de iNaJSSJaJu 00 doe il1evie!'lell:ro de 1570 .(G. Groen Van Plriirusterer, Arch.ives ou OorrespÓndanoe Inéài.te de la Maison de Orange-Nassau, vol. m, :Ueild!a, ·1800, Calrta OCCXXXVID) .

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grande brutalidade, os rebeldes foram esmagados. Em Maio de 1570 o capitão-mor dos mouros concordou com os termos. de rendição ditados por Dom João, se bem que a luta esporádica ainda continuasse nas mon­tanhas durante muito tempo.

Com a vitória, o rei escolheu .uma solução drástica para · o pro­blema de Granada. O reino devia ser esvaziado dos seus habitantes mouros, expulsos das aldeias e dispersos para norte, através de Cas­tela. Se bem que um número substancial de mouros conseguisse fugir às ordens de deportação, a expulsão da maior parte deles- talvez 150 000 ilo total- eliminou de facto o perigo de Granada enquanto ponto fraco da Espanha no seu conflito com os turcos. De futuro não· haveria uma ·repetição dos horrores, ou receios, de 1568-70. Mas a segurança que se seguiu à pacificação de Granada apenas fora conseguida à custa de transformar um problema andaluz local num problema nacional que afectava toda a Castela. Os mouros, espalhados · pelas cidades e aldeias de Castela, deixaram de constituir um perigo militar grave. Mas a sua própria omnipresença numa zona tão vasta criou novos pro­blemas raciais e sociais, que o governo seria obrigado a enfrentar durante quarenta anos, até Filipe III decretar a sua expulsão de Espanha, cor­tando o nó górdio.

Ao deixar de vir em auxílio dos mouros, o Império Otomano perdeu uma oportunidade óbvia de aplicar um golpe decisivo à Espanha. Ainda não é clara a razão por que foi perdida essa oportunidade. Fala-se de discordância entre os conselheiros de Selim, mas talvez acontecesse muito simplesmente serem excessivas as dificuldades, e as distâncias demasiado grandes. Com o fracasso do· projecto Don-Volga em 1569, a atenção do sultão virava-se novamente para o Mediterrâneo oriental, e para as oportunidades de expansão otomana em áreas então dominadas pelos portugueses - a Africa oriental e o · Oceano Índico. Constantinopla há muito deitara os olhos a Chipre - um embaraçoso posto avançado cristão atravessado na vital rota marítima de Constantinopla para Ale­xandria, e cuja conquista era considerada o prelúdio essencial a um avanço otomano em direcção ao sul. Chipre constituía, evidentemente, um alvo mais fácil e vulnerável do que a Espanha.

· Os venezianos tinham até então conseguido evitar um ataque oto­mano à sua rica possessão através de uma hábil diplomacia e dos bons ofícios desses tradicionais aliados do sultão, os franceses . Mas as guerras dvis erri França e a conse.quente diminuição da influência francesa em Constantinopla deixaram os venezianos perigosamente expostos, e em 1569 pouco poderia deter o sultão para além do receio de provocar uma aliança marítima entre Veneza e Espanha. No mesmo ano, o arsenal de Veneza explodiu . e os relatórios que chegaram a Constantinopla suge­riam que a maior parte da esquadra veneziana fora destruída. Estando os recursos espanhóis a ser muito pressionados pela guerra em Granada, o momento parecia ideal para uma tentativa de ataque a Chipre.

Enquanto os preparativos navais prosseguiam em Constantinopla, os venezianos, levados a uma falsa ·sensação de segurança devido a

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trinta anos de paz lucrativa, recusaram-se a acreditar no que se passava diante dos seus olhos. Mas as suas últimas ilusões soçobraram em inícios de Fevereiro de 1570 quando chegou um enviado turco exigindo a imediata cedência de Chipre. As opiniões dividiram-se fortemente den­tro da cidade. A cedência de Chipre significaria o sacrifício da mais rica colónia e do centro do seu comércio levantino; e poderia conduzir à perda de outras possessões venezianas, como Corfu e Creta. Mas a alternativa era a guerra com o Império Otomano, que poderia terminar com a destruição da própria Veneza. Um grupo de senadores, principal­mente preocupado com a manutenção do comércio veneziano, favorecia a conciliação, mesmo que isso significasse a cedência de Chipre; o outro, avidamente apoiado pelo núncio papal, considerava a guerra como a única respmta honrosa. Quando a questão foi votada, o ultimato turco foi rejeitado por 220 contra 199 votos.

Para uma cidade que havia negligenciado as suas defesas militares e navais, a decisão era temerária. Tudo dependia de Filipe II se deixar convencer a abandonar a sua desconfiança relativamente aos venezi­anos e a enviar a esquadra espanhola em seu auxílio. Trava-se da grande oportunidade para Pio V e este agarrou-a, com o seu típico carácter decidido. Don Luís de Torres, um funcionário espanhol ao serviço do papa, foi imediatamente enviado a Espanha para convencer o rei da suprema necessidade de uma participação numa Liga Sagrada com Veneza contra o Turco. Oito dias após conceder uma audiência a Torres, Filipe concordou em princípio com o pedido papal.

As razões para a mudança de posição de Filipe, após quatro anos de evasivas, devem ser procuradas nas profundas alterações veri­ficadas na posição nacional e internacional da Espanha desde o início do pontificado de Pio em 1566. O ano de 1570 foi de facto o primeiro ano em que a Espanha de Filipe II teve a oportunidade, a vontade e algo semelhante à capacidade de se lançar numa guerra total no Mediterrâneo. A oportunidade foi fornecida pelo aparente êxito do duque de Alba na subjugação da revolta nos Países Baixos. A guerra de Granada tornara evidente a gravidade da ameaça colocada pelo Islão- ameaça que de facto levou Filipe, num momento de pânico, a ordenar em 1574 a evacuação das Ilhas Baleares. Por outro lado, o prestígio militar espanhol, já afectado pelo demora da supressão da revolta mourisca, recebera um novo golpe em Janeiro de 1570, quando o rei corsário de Argélia, Euldj Ali, se aproveitou dos pro­blemas internos da Espanha para se apoderar do Estado fantoche espanhol de Túnis. Os sentimentos em Espanha em 1570 compunham­-se portanto de ira, orgulho ferido, entusiasmo religioso e um firme desejo de vingança. Pio V aproveitou o momento adequado para explo­rar esses sentimentos e simultaneamente dar à ideia de uma cruzada a marca da sua própria personalidade extraordinária, que- apesar de todos os problemas causados pelo seu comportamento quotidiano -mantinha Filipe numa espécie de respeito fascinado.

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Se bem que os turcos desembarcassem em Chipre em Julho de

1570 e depressa ocupassem a maior parte da ilha, excepto a fortaleza

de Famagusta, as negociações entre Espanha, Veneza e o Papado

foram indefinidamente adiadas e toldadas, como sempre, por amargas

suspeitas mútuas. Filipe II insistiu, não sem razões, em que a Espanha

devia ter voz de comando nas operações militares e navais para que

daria a maior contribuição. Só a 20 de Maio de 1571, portanto·, nasceu

de facto a Liga Sagrada. A Espanha devia contribuir com metade

dos fundos, soldados e navios, os venezianos com um terço e o papa

com um sexto; e Dom João de Áustria, o vitorioso general da guerra

de Granada, seria designado comandante-chefe.

Famagusta caiu nas mãos dos turcos em 1 de Agosto de 1571,

quando a esquadra de Dom João ainda se encontrava em Nápoles.

As notícias da sua queda levaram dois meses a chegar a Veneza, que

já decidira que a estação estava demasiado avançada para tentar recu­

perar Chipre. Em vez disso, Dom João e os seus colegas concorda­

ram ousadamente em procurar e dar luta à esquadra otomana, mesmo

que isso os conduzisse às águas adversas do Mediterrâneo oriental.

A esquadra mista cristã, agora reunida em Messina, consistia em

cerca de trezentos navi03 e oitenta mil homens, dos quais 50 000

eram marinheiros e remadores. Isso significava que tinha dimensões

idênticas às da esquadra turca, se bem que esta última contivesse uma

maior proporção de galés e tivesse mais soldados a bordo. A esquadra

cristã tinha algumas desvantagens devido à sua composição hetero­

gênea, mas eram compensadas pela ousada direcção pessoal de Dom

João, que mostrou a genialidade necessária para unir homens de dife­

rentes nações como guerreiros de uma grande cruzada.

A 16 de Setembro de 1571 a grande armada, apropriadamente

abençoada pelo núncio papal, fez-se à vela em Messina e dirigiu-se

para Corfu. Soube-se aqui que a esquadra otomana, sob o comando do

Paxá Ali, se encontrava ancorada ao largo de Lepanto, muito no

interior do golfo de Corinto. Havia riscos óbvios em a provocar para

uma batalha, particularmente num momento tão avançado do ano,

e surgiram grandes discordâncias no conselho de guerra. Mas, finalmente,

foi decidido, a instâncias de Dom João, que os cristãos deveriam lançar­

-se ao assalto, e na madrugada de 7 de Outubro as duas esquadras

-as maiores esquadras inimigas que até então se tinham visto envol-

vidas numa batalha- avistaram-se à entrada do golfo de Patras.

Os navios de ambos os lados foram colocados em linha, com

os venezianos na ala esquerda da esquadra cristã, as galés papais e

genovesas à direita, o navio-almirante de Dom João no centro e uma

reserva de trinta e cinco galés venezianas e espanholas sob o comando

do marquês de Santa Cruz na rectaguarda. À medida que a batalha

se aproximava. Dom João, com a sua armadura brilhando ao sol

outonal, transferiu-se para uma galé rápida, da qual podia arengar

às forças cristãs enquanto se deslocava ao longo da frente de batalha.

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Em todos os navios foi levantado um crucifixo c tripulantes e sol­

dados ajoelharam-se nos conveses, rezando. O ataque foi lançado pelas galés venezianas, fortalezas flutuantes

cujos canhões pesados, montados num convés elevado, afundaram várias

galés turcas e quebraram o impacto do primeiro ataque. E nquanto as

duas alas da esquadra otomana tentavam um movimento de cerco, c

conseguiam considerável êxito contra as galés genovesas e venezianas, no

centro empreendia-se a batalha decisiva. Se bem que as flechas turcas

fossem mortais, o fogo de canhão era menos eficaz e rigoroso do

que o dos cristãos, que danificaram bastante o navio-almirante

turco antes de Dom João dar ordem de abordagem. As duas pri­

meiras tentativas de abordagem foram repelidas, mas a terceira teve

êxito, pela popa, onde o Paxá Ali foi morto. A sua cabeça foi imedia­

tamente colocada na ponta de uma lança espetada à proa do navio turco,

e a bandeira da cruz foi içada em vez do crescente.

A morte do Paxá Ali e a captura do seu navio-almirante decidi­

ram a luta entre os esquadrões centrais, e com ela a batalha. O centro

e a ala direita turcos tinham sido quase inteiramente destruídos, mas na

ala esquerda Euldj Ali, o vencedor de Túnis, fugiu à perseguição de

Santa Cruz com cerca de quinze galés. Da esquadra turca original, de

cerca de trezentos navios, 117 caíram nas mãos dos cristãos e cerca de

30 000 turcos foram mortos. Os cristãos perderam quinze ou vinte navios

e talvez 8 000 homens; e houve ainda 15 000 feridos, entre os quais Mi­

guel de Cervantes, que perdeu um braço. Foi uma vitória onerosa mas,

aparentemente, tão total e esmagadora que parecia que todas as humi­

lhações de séculos tinham sido limpas com este único golpe decisivo.

3. As consequências de Lepanto

A vitória de Lepanto foi a maior vitória conseguida pelas armas

cristãs contra o Islão desde a captura de Granada, em 1492. Mostrou

de modo conclusivo que os turcos não eram invencíveis e que os cris­

tãos possuíam a moral e os recursos técnicos necessários para manter o

Império Otomano ao largo. Esta nova confiança da cristandade, que

celebrou os seus triunfos em serviços de acção de graças e numa abun­

dante produção de imagens, medalhas e lembranças, foi talvez a consc­

quência mais importante da batalha, a longo prazo. Quanto às consequ8n­

cias militares e políticas, Lepanto foi infelizmente decepcionante. Como

um desiludido nobre austríaco, Hans Khevenhüller, observou no seu

diário secreto, não permitiu aos cristãos ganharem um único metro de

terreno. A batalha realizara-se muito perto do fim do ano; os abasteci­

mentos eram já reduzidos; e Dom João encontrava-se de volta a

Messina a 1 de Novembro, com a estação de campanha terminada.

Como poderia ser eficazmente aproveitada esta vitória? Dom João,

que a seu modo era um visionário tão grande como Pio V, sonhava com

Constantinopla e Jerusalém. Os venezianos apenas se interessavam pela

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recuperação de Chipre e das possessões que tinham perdido no Adriá­

tico. Filipe li, pelo- seu lado, desejava que as campanhas futuras fos­

sem realizadas no norte de Africa,r-0nde seriam de benefício- imediato

para Espanha. Pio V morreu em 1 de Maio de 1572, mas o seu suces­

sor, Gregório XIII, estava decidido . a manter a Liga Sagrada. Sob a

firme insistência do novo papa e de Dom João, Filipe concordou relu­

tantemente com mobilizar as galés espanholas numa expedição contra

a Moreia. Mas poucos resultados foram conseguidos nesse Outono, e os

venezianos mostravam-se aliados cada vez menos calmos. O seu comér­

cio estava a ser destruído pela guerra e suspeitavam fortemente das in­

tenções espanholas. A 7 de Março de 1573, Veneza assinou com o

sultão um tratado de paz tão desfavorável que quase tornava desneces­

sária a batalha e vitória de Lepanto. A República renunciou às suas

pretensões sobre Chipre e aos territórios que perdera na Dalmácia,

entregou as suas próprias conquistas na Albânia e pagou uma indemni­

zação de 300 000 ducados. Estes termos humilhantes podem ter ofere­

cido a Veneza algumas perspectivas de revivescência comercial, mas

liquidaram completamente a Liga Sagrada. Liberta de qualquer tipo de obrigação para com os seus difíceis

aliados, a Espanha estava agora livre para aplicar os seus planos de

reconquista de Túnis. Uma força expedicionária de 20 000 homens, sob

o comando de Dom João, fez-se à vela na Sicília e tomou a cidade em

Outubro de 1573. Dom João, filho bastardo de um imperador, gastou

grande parte da sua breve e activa vida sonhando com uma coroa, e

talvez tenha albergado durante algum tempo a ideia de vir a ser rei de

Túnis. Mas acabou por deixar a cidade com uma guarnição espanhola

e um governador nativo, e sem que o problema de como se defender no

caso provável de um contra-ataque turco ficasse resolvido, Filipe li

estava compreensivelmente relutante em esbanjar neste posto avançado

vulnerável os recursos da Espanha, já sujeitos a tantas pressões; e em

Julho de 1574 uma grande expedição turca, sob o comando do indo­

mável Euldj Ali, surgiu ao largo de Túnis antes de a guarnição poder

ser adequadamente reforçada. Em algumas semanas, para grande sur­

presa e consternação da cristandade, tanto Túnis como a fortaleza de

La Golleta caíram, e o reino de Túnis fora acrescentado à crescente

lista dos sonhos destruídos de Dom João. Com a queda de Túnis, Filipe li fartou-se das campanhas medi­

terrânicas. O dinheiro estava a acabar e os acontecimentos no norte da

Europa exigiam uma atenção cada vez maior. Os turcos, pelo seu lado,

não se queixavam por se verem livres da guerra no Mediterrâneo, num

momento em que, nas suas fronteiras a leste, o Império persa parecia

estar quase a desintegrar-se. Foi portanto assinada em 1578 uma trégua,

daí em diante renovada periodicamente. As duas potências gigantes do

Mediterrâneo desligavam-se, sendo a mútua hostilidade temperada por

uma crescente consciência dos seus compromissos noutros locais.

O afrouxamento nos anos 70 do ímpeto da expansão turca, tanto

.nas planícies da Hungria como n·as águas do Mediterrâneo, tem levado

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a pensar que o Império Otomano estava já a iniciar o seu long declínio.

.É certo que a grande geração de dirigentes turcos estava a desaparecer

e Meh~ed Sokolli foi assas·sinado em 1579. lmportantL:s mudanças es­

truturais, por outro lado, estavam a alterar gradualmeutc o caráctcr do

Império. A sociedade otomana tornava-se menos móvel e f'lexível à

m~di~a que o exército abria caminho em territórios conquistados e que

a Idem de sucessão hereditária ganhava força no seio da casta militar.

Novos conceitos de propriedade e privilégio, que pareciam constituir

peculiaridades distintivas da cristandade nos grandes dias do Jmpério

~t?mano, co~eçavam a minar a eficácia da administração turca. As

dificuldades fmanceiras aumentavam à medida que a prata ocidental

penetrava na economia otomana, e os dirigentes viram-se face aos mes­

mos problemas de inflação que tanto complicaram a vida dos seus cole­

gas Aoc~dentais. Verificou-se uma obstrução das artérias do Império, uma

ausencm de resposta a novos desafios militares e técnicos, o que, por sua

v~z, .era exa~erbc:do pela rígida estrutura do governo e pela sua depen­

~encia da direcçao pessoal e caprichosa exercida por sultães de espí­

nto fraco. No entanto, apesar destes indícios de mudança e de existên­

c~a de deficiências estruturais, é demasiado simples avaliar o Impé­

no Otomano - tão misteriosamente diferente dos Estados europeus -

segundo os. critérios da experiência ocidental. Excluindo a renovação

pouco convmcente e abortada da guerra com os Habsburgo austríacos

em 1593 e 1606, o Império Otomano virava as costas à Europa no último

quartel do século dezasseis. A guerra com a cristandade já não era tão

lucrativa como o fora anteriormente, tanto- em terra como no mar.

A ~r~s~ão turca ~~s franjas orientais da Europa abrandou portanto, e os

terntor~os frontemços começaram a florescer com alguma hesitação,

construmdo uma vida própria precariamente independente. Mas mais

lon~e, ,a. sul e a ~este, em regiões de que a Europa pouco ou nada sabia,

a histona era diferente. Em 1571 Hejaz, no sul da Arábia, caíu nas

mãos dos otomanos. Na costa leste da Africa, os turcos apressaram-se

a expl~rar a fraqueza de Portugal após a sua grande derrota no norte

de Afnca, em Alcácer-Quibir 6• Principalmente, procuraram tirar vanta­

gem dos problemas dos seus dois poderosos vizinhos - a anarquia na

Pérsia após 1576 e a crise na Moscóvia nos últimos anos de Ivã IV.

A partir de 1577 encontraram-se em guerra com os persas e fizeram

novas conquistas na Geórgia e no Azerbaijão. O balanço dos conheci­

m~ntos militares e técnicos poderia estar a pender lentamente a favor da

cnstandade, mas o Império Otomano ainda estava vivo.

Não há .dúvida de q~e, ~e a Espanha tivesse querido ou podido

e~plorar e~ergica~ente a vltona de Lepanto, os turcos teriam respon­

dido com Igual VIgor. A luta por Túnis foi disso prova suficiente. Mas

6 V;er 8/~al!IJtle, oopiitU!1o 9.

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mesmo que isso tivesse acontecido, é difícil acreditar que o eventual resul­

tado para o mundo mediterrânico tivesse sido muito diferente, se bem

que a capacidade da Espanha para continuar a guerra no norte da

Europa tivesse sido profundamente afectada. Com toda a probabilidade,

o Mediterrâneo ter-se-ia mantido um mar dividido, enquanto o seu

centro se teria transformado - para grande desespero de Veneza - num

domínio dos corsários mouros e cristãos. Como as coisas eram, outros

compromissos e interesses provocaram um final prematuro de uma luta

que dificilmente poderia ter terminado com uma vitória bem definida

para qualquer dos lados. O Império Otomano virava-se para oriente e,

ao fazê-lo, permitia ao império espanhol virar-se para norte e ocidente,

enfrentando um inimigo que começava a parecer ainda mais perigoso

do que o Islão. O foco cl,e conflito deslocava-se já, um ou dois anos depois

de Lepanto, da luta entre o oriente não cristão e o ocidente cristão para

a luta entre o sul católico e o norte protestante.

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PARTEIII

1572-1585

Page 73: J.H. Elliot - A Europa Dividida 1559-1598

VII

A CRISE DO NORTE: 1572

1. A tomada de Brill

Quando o papa Pio V morreu, em 1 de Maio de 1572, ainda não era evidente que o seu sucessor se veria face a um mundo muito dife­rente. O velho papa imprimira a sua própria imagem austera à igreja pós-tridentina. Inspirara uma grande cruzada mediterrânica, que trou­xera uma glória imorredoira às armas cristãs em Lepanto. Vira, com satisfação, a tenaz do duque de Alba fechar-se sobre os hereges nos Paí­ses Baixos; e fulminara - se bem que em vão - a rainha herege de Inglaterra. O caminho a seguir estava portanto claramente marcado para o papa que se lhe seguisse. O cardeal Farnese, esse ,patrono liberal das artes, tinha poucas dúvidas de que seria o sucessor, mas o rei de Espa­nha acalentava outras ideias. A dimensão da facção espanhola no conclave tornou decisivo o veto de Filipe e a escolha dos cardeais caiu sobre Hugo Buoncompagni, que ascendeu ao trono papal sob o nome de Gregório XIII. Tinha setenta anos de idade no momento em que foi eleito; tratava-se de um homem obstinado, caprichoso mas enérgico, que com­binava uma visão legalista da vida, típica de um jurista educado em Bolonha, com uma compreensão adequada do que dele se esperava como herdeiro de um pontífice tão santo como Pio V.

O programa por ele anunciado consistiria em manter a liga contra o Turco, prosseguir a obra de reforma e assegurar a aceitação dos decre­tos de Trento. Não se verificaria portanto uma mudança em relação aos objectivos e prioridades do seu predecessor. Mas o próprio mundo sofria uma mudança; e um pontificado que duraria treze anos, de 1572 a 1585, veria necessariamente uma mudança decisiva na dirccção c nas prioridades da política papal. Esta deslocação tornava-se necessária em resultado do que aconteceu no norte da Europa na Primavera c Verão 1572. Em 1 de Abril os <<Mendigos do Mar» holandeses tomaram o pequeno porto de Brill; e a 24 de Agosto, dia de S. Bartolomeu, tr8s mil protestantes eram assassinados em Paris.

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Uma das ironias da história escrita consiste em tanto a tomada de Brill como o massacre de S. Bartolomeu terem sido apresentados como acontecimentos cuidadosamente premeditados. Mas o debate que em tempos os rodeou morreu, e ambos são agora vistos como resultados de acidentes e não de projectos acalentados a longo prazo. No entant~, apesar de todos os elementos fortuitos envolvidos, o rumo. do.s a.contec~­mentos desde 1570, juntamente com os caracteres dos prmctpats palil­cipantes, transformou-os em mais do que um simples acaso. O a~mtrante Coligny, Catarina de Médici.:; e Luís de Nassau pensaram aproveitar ess~ maré dos assuntos dos homens que, apanhada na enchente, conduz .a fortuna. Apanharam a corrente quando lhes interessava; um ganhou, dms perderam.

Catarina de Médicis não era pessoa para perder a esperança. A conclusão da terceira guerra religiosa francesa com a paz de St. Ger­main, em Agosto de 1570, sugeria que chegara o momento para UJ?a .nova tentativa de conciliação. O novo equilíbrio de forças em França ~ndtcava por si próprio o caminho a seguir. Os huguenotes, ao negocmrem .e obterem quatro «places de sureté», tinham tratado com a monarqma como se fossem virtualmente um poder independente. Por enquant?, pelo menos deviam ser aceites com condescendência, e Coligny devena ser de nov~ colocado na mesa do conselho. Isso concordaria certamente com os de3ejos do grupo cada vez mais influente de politiq;:es que se formava em torno de Francisco de Montmorency. A moderaçao e a con­ciliação estavam agora na ordem do dia, como Carlos IX s~geria criando uma academia régia de poesia e música onde as notas dtscor­dantes dos protestantes e católicos deveriam fundir-se numa nova har-monia. ·

Esta tendência para a unidade, baseada numa tolerância reli-giosa limitada, devia ser reforçada por uma ~Série de alianças_ qu~ mos­trariam ao mundo que a França recuperara tanto ~ sua coesao ~nte~a como a sua credibilidade externa como contrapeso a Espanha. Nmguem era mais hábil do que Catarina a conceber alianças, particularmente quando estavam envolvidos os casament?s dos seu~ próprios ~ilho~ .. Entre 1570 e 1572 construiu uma elaborada tem de proposltos' matnmomats. No país, as guerras civis deveriam ter definitivamente fim atrav~s da união dos Bourbon e Valois, simbolizada pelo casamento da sua filha Marga­rida com Henrique de Navarra, filho do malogrado rei de Navarra. e da sua viúva ardentemente protestante, Joana d' Albret. No estrangeuo, a posição de França seria reforçada pelo casamento de Carlos IX com a filha do imperador Maximiliano, cuja simpatia pelos luteranos o con­vertia numa figura dominante nesse curioso semi-mundo de espera.!!~ e projectos de tolerância religiosa .. Um ?utro casam~nto com~letana este' intrincado esquema. O segundo filho vwo de Catanna, Hennque, duque de Aniou, tornar-se-ia marido de Isabel de In~laterra. .

Foi necessário um ano ao duque de An]OU para descobnr o que outros tinham descoberto antes de si: que a rainha de Inglaterra era mais facilmente cobiçada do que ganha. Mas as longa~S, se bem que agradáveis,

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negociações para uma aliança com a Inglaterra foram acompanhadas por negociações com maior êxito noutros locais. A Carlos JX, casa­ram-no com Isabel de Áustria em Junho de 1570; e o casamento Bour­bon-Valois foi combinado em princípio para o final do ano.

Estes planos correspondiam perfeitamente ao grande objectivo que s~ formava na mente de . Coligny, agora o homem mais poderoso em l•rança. O mundo de Cohgny era um campo de batalha onde os exér­citos da luz e os exércitos das trevas lutavam pela vitória. Como ardente protestante e ardente francês, via as forças das trevas simbolizadas pelo pa~a de ~orna e o re~ de Espanha- o opressor dos protestantes nos Patses Batxos, o assa:3smo dos huguenotes na Florida e o chefe de uma monarquia intensamente hostil à França. Contra estes alinhavam os c l ~itos de ~eus, conduzi?os - mesmo imerecidamente- por si pró­pno, por Gmlherme e Lms de Nassau e pelas duas rainhas protestantes de Navarra e Inglaterra. No centro da luta, puxado para um lado ou pa;·a outro, enco~trava-se o j.ovem rei Carlos IX, dominado por uma mae de quem Cohgny desconfiava, mas não desconfiava suficientemente. A resposta era clara. Uma vez furtado à influência da mãe e colocado sob a direc~ão do Almirante, Car~os poderia trazer de novo o seu país para o cammho da grandeza naciOnal. Como rei guerreiro dirigiria o seu exército de protestantes e católicos para a salvação dos cristãos perseguidos nos Países Baixos. A França adquiriria novos territórios· Cateau-Cambrésis seria vingado; e as facções religiosas em luta reconci~ liar-se-iam no arrebol da vitória sobre a Espanha.

Esta visão heróica, se bem que simplista, podia ser atraente para o carácter impressionável do jovem Carlos IX. Este feroz caçador de coelh?s. e v~~dos começava a procurar caça mais grossa; e o seu desejo de glona mthtar levou-o a escutar com interesse certas propostas avan­çadas em Julho de 1571 pelo confidente e aliado de Coligny, Luís de Nassau. Desde 1570 que Luís vivia em La Rochelle, onde trabalhava d?ram~nte . na organiza~ão do apoio ao irmão, Guilherme de Orange. Ja mmto fizera no sentido de aumentar o desejo de revolta como co­mandante dos corsários holandeses e franceses que atacavam os navios espanhóis desde o Mosa até ao Loire. Mas seria necessário um auxílio cstr~n~eiro maciço para que ~uilherme pudesse satisfazer a sua grande ambtçao de derrubar Alba e hbertar o seu país. O próprio Guilherme enc?ntrav.a-se na ~leJ?anha, onde tentava, como sempre, conseguir o apoto acttvo dos prmctpes protestantes. Luís tinha a esperança de juntar a França e a Inglaterra aos príncipes alemães, numa coligação gerai con­tra o rei de Espanha.

O projecto de Luís harmonizava-se perfeitamente com os planos de Coligny ~ susci~ou a~itudes de simpatia da rainha de Inglaterra, até esta descobnr quar3· senam os seus custos. Mas o auxílio francês era ainda mais necessário do que o inglês, e Luís esboçou com grande êxito as suas propostas em dois encontros com Carlos IX, durante os quais ofereceu à França a metade sul de uma Holanda dividida em troca de auxílio militar.

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A calorosa resposta de Carlos e dos seus conselheiros fizera~ do verão e do outono de 1571 uma época cheia de esperanças para Cohgny e Luís de Nassau. Mesmo Catarina mostrava interesse no reviver de uma política anti-espanhola e a aproximação entre Coligny e a rainha­-mãe tomava-se agora possível com base no plano de c~samen~o Bo~­bon-Valois e de uma campanha na Flandres. Quando.Cohg~y fm a ~loiS em Setembro, pondo de lado as suas suspeitas sobre as mtençoes da rainh~­-mãe viu-se cumulado de gentilezas, e depressa ganhou um extraordi­nárid ascendente sobre o rei. Carlos, sem pai desde há tanto tempo, cumprimentava-o como «Mon pere» e nada lhe. recusa~a. Talvez a euforia do ·momento levasse Coligny e 03 seus amigos a nao se aperce­berem de uma certa ameaça que pairava; talvez a ameaça só fosse notada mais tarde, quando parecia que o afecto do rei pelo ~!mirante não passara de uma encenação deliberada. Mas poucos podenam negar que no outono de 1571 Coligny e os seus amigos huguenotes estavam metidos em altas cavalarias com o rei.

O grande projecto de Coligny, no entanto, foi impossibilitado - como tende a acontecer com todos os grandes projectos -por falta de dinheiro. O resultante atraso no início dos preparativos para lliD:a campanha na Flandres deu a Catarina tempo suficiente para reflectlr melhor. O extravagante entusiasmo do filho pelo Almirante estava a minar a sua autoridade materna. Mas, antes do mais, mantinha-se inco­modamente consciente de uma das suas principais máximas de Estado, segundo a qual a França deveria evitar a guerra com a Espanha,. a menos que pudesse recorrer ao auxílio inglês. Se bem que as negocia­ções anglo-francesas avançassem razoavelmente_ e talvez ~udesse~ dar origem a um tratado, se não a um casamento, nao consegu~a. partilhar ,a crença de Coligny de que o poder espanhol estava em declímo. As noti­cias de Lepanto em Novembro de 1571 confirmaram a ~~a crença. T~a­tava-se de uma vitória, segundo relatou o huguenote Fihpe Du PlessiS­-Momay, que «amedrontou muitas pessoas, que pensa~ que aumentou consideravehnente o poder de Espanha». Para Catanna, pelo menos, não era esse o momento para provocar um corte com Filipe e construir planos para um ataque aos Países Baixos. ·

As notícias de Lepanto serviram, no entanto, para recordar tanto a Catarina como a Isabel o interesse de uma aproximação entre a Ingla­terra e a França destinada a contrariar o poder espanhol. Isabel e William Cecil (agora Lord Burghley) não desejavam ver a dominação espanhola dos Países Baixos substituída pela da Fran.ça. ~or outro l~~o, um acordo com a França que não contivesse uma obngaçao de a auxiliar nos Países Baixos teria vantagens óbvias, particularmente se pudesse impedi-la de interferir na Escócia. Catarina tinha alguns escrúpulos em ' deixar de apoiar Maria, Rainha da Escócia, mas também não era mulher que encontrasse grandes dificuldades em esquecer tanto os seus escrúpulos como os seus amigos, e e~ Abril de 1572 a !'ra!lça e a Inglaterra assinaram o Tratado de Blms. Cada uma das potenc1as co~­prometia-se a auxiliar a outra no caso de um ataque; mas o tratado nao

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continha qualquer referência a essa liga ofensiva contra a Espanha que para Coligny e Luís de Nassau coroaria os seus desígnios.

A primavera de 1572, no entanto, foi uma época em que os acontecimentos começavam a ultrapassar os planos e preparativos dos homens. A 1 de Março, Isabel ordenara a «todos os filibusteiros de qualquer nação» que abandonassem os portos ingleses. O decreto era dirigido aos enxames de corsários que agora infestavam o Canal da Mancha. Após o fracasso da invasão de Groningen por Luís de Nassau, em 1568, parte dos seus apoiantes que possuíam navios tinha-se instalado em Emden e começado a saquear as costas. O número destes «Mendigos do Mar», como vieram a ser chamados, aumentou rapidamente com os novos recrutas dos Países Baixos - exilados calvinistas, nobres e pe­quena nobreza com a cabeça a prémio e pescadores e trabalhadores desempregados da Flandres e do Brabante. Esta heterogénea multidão de exilados e desesperados dedicava-se nominalmente ao derrube do tirano Alba, mas, de facto, era uma ameaça mais ou menos indiscri­minada para os navios de todas as nações que passavam no Canal. Orange, no entanto, viu que podiam ser úteis à sua causa, tanto cortando as rotas marítimas de Espanha para os Países Baixos como fornecendo o dinheiro conseguido com a pilhagem para financiar as suas campanhas. Deu-lhes portanto um estatuto semi-legal em 1570, fornecendo-lhes cartas de corso, enquanto Luís de Nassau começava a organizá-los a partir da base huguenote de La Rochelle. .

Na sua campanha contra o duque de Alba, após este ter adaptado medidas retaliatórias devido à questão dos navios de pagamento, Isabel resolveu reconhecer a legalidade das cartas de corso, baseando-se no facto de Guilherme e Luís possuírem poderes soberanos como príncipes do Império. Mas o Conselho Privado não previu os resultados da sua acção. Os «Mendigos do Mar» reuniram-se nos portos ingleses; o seu comandante, La Marck, não conseguiu controlá-los; e os seus actos de pirataria contra os navios de todas as nações redundaram num grave transtorno para as autoridades inglesas, no outono e inverno de 1571. A proclamação da rainha em Março de 1572 constituíu portanto um acto punitivo lançado por um governo exasperado.

Em resposta à proclamação, La Marck e os seus navios desapare­ceram no horizonte. Foram mais tarde vistos entre Dover e Downs, esperando, segundo parecia, reforços para um ataque à costa holandesa. P.arece não ter havido qua!quer suspeita, mesmo nas mentes dos parti­Cipantes, de que se tratana de algo mais que as habituais incursões rápidas .a um.a cidade costeira à procura de despojos. Mas, nesse mo­mento, mterv1eram os ventos do Canal. Os vinte e cinco navios de La Marck necessitavam de refúgio, e os portos ingleses estavam-lhes fe­chados. Empurrados para Brill, os <<Mendigos do Mar>> verificaram com surpresa que a guarnição espanhola abandonara o porto a fim de acudir à agitação em Utreque. Na noite de 1 de Abril, seiscentos homens desembarcaram e saquearam o porto indefeso. Então, quando se prepa­ravam para levar para bordo o produto do saque, um deles observou que

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não havia razão para não ficarem onde estavam. E foi assim que, sem um plano prévio, os <<Mendigos do Mar» conseguiram a sua primeira base em terra firme.

Era previsível que Alba não se preocupasse com a tomada de Brill, considerando-a inconsequente -:- «no es nada». Mais surpreen­dente foi a reacção de Guilherme, na Alemanha, e de Luís, então em Blois. Ambos mostraram uma clara falta de entusiasmo ao ouvirem a notícia, pois os «Mendigos do Mar» tinham actuado demasiado depressa e cedo, ameaçando pôr em causa todos .os seus planos. O embaraço óbvio dos dois chefes da revolta holandesa constitui por si só uma indicação do carácter não planeado, casual, da tomada de Brill, mos­trando até que ponto o controlo dos acontecimentos lhes escapava. Mas Luís, com o seu fino olho estratégico, depressa compreendeu as possibilidades deste acto prematuro. Se a técnica usada em Brill pu­desse ser reptida em Flushing, a empresa justificar-se-ia a si mesma, dado que Flushing - a chave para a Zelândia- guardava a entrada para o Escalda.

Apenas havia uma pequena guarnição em Flushing e uma semana depois a tricolor de Orange era hasteada na cidade. Reforçados por recrutas ingleses e huguenotes, os «Mendigos do Mar» avançavam agora através da Zelândia, tomando as cidades uma após outra e saqueando as igrejas à medida que passavam. A intenção sempre fora que qualquer ataque naval aos Países Baixos deveria ser apoiado por invasões a partir da França e da Alemanha. Luís de Nassau reunia companhias huguenotes em França, mas não havia tempo para Orange recrutar sol­dados na Alemanha, dado que se esperava que o contra-ataque de Alba aos «Mendigos do Mar» surgisse de um dia para o outro. A 15 de Maio, Luís de Nassau despediu-se apressadamente de Joana d'Albret, rainha de Navarra. Nunca mais tomou a vê-la- ela morreu (envenenada, se­gundo os huguenotes) três semanas mais tarde.

Luís juntou-se a Francisco de La Noue e a outros capitães hugue­notes na fronteira de Hainault e, a 23 de Maio, tomou Mons, enquanto a pequena companhia de La Noue ocupava Valenciennes. No preciso momento, portanto, em que a Holanda e a Zelândia escapavam ao controlo de Alba, este perdia as duas cidades que defendiam a entrada na Flandres a partir de França. Mas os invasores possuíam poucos sol­dados; a população local mostrou-se pouco amistosa, e quando Valen­ciennes foi perdida de novo, seis dias mais tarde, Luís ficou ansiosa­mente à espera, em Mons, que Coligny chegasse com o exército francês e o irmão iniciasse a há muito esperada invasão a partir da Alemanha. Mas nem Coligny nem Guilherme estavam ainda prontos a avançar, e só em 8 de Julho Guilherme cruzou o Reno em Duisberga, avançando para Gelderland.

Nem a invasão de Luís nem a de Guilherme eram em si mesmas muito graves, pois uma tinha poucos homens e a outra falta de dinheiro. Mas na Holanda e na Zelândia os «Mendigos do Mar>> estavam a ter um sucesso extraordinário. Em Julho, ambas as províncias tinham caído

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quase completamente nas mãos dos rebeldes, c Antuérpia - o porto de que Alba dependia para os seus abastecimentos por mar - era sujeita a um bloqueio intensivo.

A explicação dos êxitos dos rebeldes no norte dos Pa(scs Baixos não é tão simples como pode parecer à primeira vista. ú fácil mas enganador descrever os «Mendigos» marchando a caminho da vitória rodeados de uma onda de entusiasmo popular, acompanhados pelos acordes da canção Wilhelmus. Mas, na prática, o seu sucesso foi o resultado de tácticas hábeis, e muitas vezes violentas, praticadas por uma minoria activista, que sabia como tirar partido de um momento favorável. Os calvinistas, de facto, apenas representavam uma pequena fracção da população, particularmente nas províncias do norte, onde a sua influência era bastante inferior à que possuíam no sul. Mas em todas as cidades existia uma mão-cheia de calvinistas e de simpatizantes activos de Orange, com amigos e familiares entre os exilados que constituíam as forças invasoras dos «Mendigos». Quando estas se aproximavam de uma cidade, contactavam com os amigos no interior dela, fazendo planos para nela penetrarem. Por exemplo em Gouda, às quatro' horas da manhã de 21 de Junho, um grupo armado de sessenta e nove homens esperava fora da cidade, junto a uma das suas portas, fechada mas não guardada. Todos eles, excepto catorze, eram naturais de Gouda ou da vizinha Oudewater- alguns deles exilados que voltavam para casa. A porta foi aberta pelos seus amigos que se encontravam no interior, e avançaram sem resistência até à praça do mercado. Aqui, em frente do município encontrava-se uma secção da milícia da cidade, mas foi com­pletamente apanhada de surpresa. Um deles esteve quase a disparar, mas deteve-o o grito de que eram <<nossos conterrâneos». Depois o perigo de conflito desapareceu e a cidade caiu nas mãos dos «Mendigos».

A tomada de Gouda repetiu-se, com inúmeras variantes locais, em toda a Holanda e Zelândia durante os meses de verão; As cidades eram tomadas do exterior por grupos armados, actuando conjuntamente com pessoas bem intencionadas do interior. Em seguida, ocupava-se uma igreja para o culto calvinista; faziam-se juramentos de lealdade a Guilherme de Orange; as igrejas eram despojada3 das suas ima­gens e ornamentos de ouro e prata; e o conselho da cidade era subs­tituído se desse sinais de resistência. O próprio Guilherme se apressou a reforçar a sua posição convocando em Julho uma sessão dos Estados Sociais da Holanda. Seguindo a orientação de Filipe de Marnix de Saiote Aldegonde, confidente e conselheiro de Guilherme, as oito cidades reconheceram unanimemente o príncipe de Orange como Stadtholder

da Holanda, e dedicaram-se à defesa dos Países Baixos contra <<todas as invasões e opressões» . Os católicos e os protestantes deviam gozar de liberdade de culto, votando-se ainda uma vasta soma de dinheiro para a campanha de Guilherme. Através destas decisões, tomadas a 19 e 20 de Julho de 1572, os Estados Sociais da Holanda deram os seus primeiros passos no caminho que os levaria mais tarde a rejeitar o homem que ainda viam como seu soberano natural -Filipe de Espanha.

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No entanto, se bem que a conquista da Holanda e da Zelândia representasse um golpe habilmente preparado por um grupo de activistas, estes nunca teriam conseguido o seu extraordinário sucesso se não dis­pusessem pelo menos da aquiescência passiva da população. Foi aqui que o rumo dos acontecimentos desde 1566 mostrou ser decisivo. Se bem que Guilherme de Orange pudesse contar com o apoio de alguns magistrados e patrícios, a grande maioria desta classe opunha-se a um movimento que ameaçava o seu poder e a sua posição privilegiada. Mas a disposição da massa dos cidadãos era bem diferente. As tensões acumu­lavam-se desde 1566, em que a violência dos excessos iconoclastas ater­rorizara a maior parte dos cidadãos. As medidas repressivas de Alba, a escandalosa conduta dos funcionários régios e dos soldados espanhóis e finalmente, a exigência do décimo péni, tudo contribuíra para aumen­tar a desilusão com o governo régio. O regime era odiado por ser espa­nhol e por ser opressivo e a igreja, fortemente identificada com ele, encontrava-se ainda mais desacreditada. Para além disso, os comercian­tes e artesãos, os trabalhadores dos têxteis, os marinheiros e pescadores tinham sido duramente atingidos pela situação económica, em franca deterioração. Desde 1568, como resultado da disputa anglo-espanhola a propósito da apreensão dos navios de pagamento de Alba, que as rela­ções comerciais com a Inglaterra estavam suspensas. As actividades dos «Mendigos do Mar» tinham prejudicado duramente o comércio, inter­rompendo o abastecimento de sal da Península Ibérica para a crucial indústria do arenque. Existem, ainda, indícios de que os empregadores se aproveitaram do forte governo de Alba para manterem baixos os sa­lários. A miséria e o desemprego aumentavam portanto rapidamente e o inverno de 1571-72 foi de profundo descontentamento.

Como indício da alteração dos sentimentos populares, enquanto em 1567 a classe «regente» dos magistrados aplicou as ordens régias, devido ao medo a Alba, em 1571-72 essa mesma classe não estava dis­posta sequer a colectar o décimo péni modificado, pois agora temia mais o povo do que o duque. Parece, ainda, que os regentes que tinham oposto alguma resistência ao décimo péni tinham agora mais possibili­dades de arrastar as suas cidades contra os «Mendigos» do que aqueles que se tinham rendido ao imposto quase sem protestar. Amsterdão, cujos magistrados se tinham oposto resolutamente ao décimo péni, resistiu firmemente aos «Mendigos» em 1572 e só cedeu na sua lealdade ao rei em 1578. Por outro lado Dordrecht, cujos magistrados haviam cedido às ameaças de Alba, passou sem dificuldade para o lado de Orange. Na maior parte das cidades, a extrema impopularidade da classe privilegiada dos magistrados - aumentada pela pusilanimidade sob o governo de Alba - deixou os conselhos irremediavelmente isolados e expostos, quando confrontados com uma multidão irada que lhes exigia que dei­xassem entrar os «Mendigos». As milícias cívicas mostraram não ser, em geral, de confiança. Tinham mostrado a sua indiferença pela igreja em 1566; mostraram a sua indiferença para com os magistrados em 1572.

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Foi o clima da op1mao popular, que variava da indiferença ao entusiasmo sem disfarce, que preparou o caminho para o êxito dos «Mendigos». O comportamento destes, assim que ocupavam uma cidad~, era muitas vezes suficiente para alienar os moderados ou neutros CUJa aquiescência tornara possível o seu êxito inicial. Ma~ o remédio po~ia tornar-se ainda mais desagradável que a doença, po1s se alguma co1sa havia pior do que um grupo armado de «Mendigos», era um regimento de espanhóis. Assim, as cidades que os tinham aceite por indiferença acaba­ram por aceitar a continuação da sua presença por medo -medo da soldadesca espanhola e da reputação de Alba.

Houve no entanto uma razão crucial para os êxitos orangistas nos meses de Verão de 1572. Se as cidades da Holanda e da Zelândia estivessem bem defendidas por guarnições espanholas, o exército «Men­digo» pouco teria conseguido. Mas Alba tinha poucos homens e pouco dinheiro - a guerra no Mediterrâneo gastara ambos, e o fracasso da colecta do décimo péni arruinara o programa cuidadosamente prep!'l­rado de pagamento ao exército dos Países Baixos com os recursos locaiS. Confrontado com a falta de homens e uma invasão simultânea no norte e no sul, decidiu que o maior perigo vinha da fronteira com a França. Retirou portanto as suas melhores tropas e a artilharia das províncias do norte, e foi assim que os «Mendigos» tiveram a sua oportunidad~ .

Havia todas as justificações para a decisão de Alba. Não sena difícil enfrentar atempadamente os poucos grupos indisciplinados de «Mendigos» . Mas se Coligny viesse com o exército francês em auxílio de Luís de Nassau, seria fácil perder os Países Baixos. Uma força de 6 000 huguenotes dirigidos pelo senhor de Genlis já se aproxim~v_a de Mons. Em fins de Julho, no entanto, as tropas espanholas, aux1hadas por camponeses locais, surpreenderam e derrotaram os homens de Genlis. Entre os despojos encontraram uma carta de Carlos IX que pro­vava sem sombra de dúvida a sua cumplicidade na invasão da Flandres.

A derrota de Genlis teve sérias consequências para a causa protes­tante. Orange, tendo avançado até ao Brabante, sentiu ser mais seguro recuar para o Mosa, perto de Roermonde, e esperar os acontecimentos, em França, a ansiedade de Coligny aumentava, pois o antigo receio do poder espanhol renascera em Catarina e esta estava convencida de que o próprio Alba planeava uma invasão. O Almirante via-se portanto obri­gado a arrancar uma decisão ao rei. Durante as primeiras semanas de Agosto, Coligny e Catarina digladiaram-se em torno da vontade vaci­lante do infeliz Carlos IX. Um dia prometia declarar guerra à Espanha. No seguinte, instado pela mãe, o rosto cheio de lágrimas, mudaria de opinião e retiraria a promessa. Talvez afinal ela tivesse razão, no seu aviso de que a guerra com a Espanha só serviria para o pôr e ao seu reino nas mãos dos huguenotes. Ainda se a Inglaterra viesse em seu auXIlio, a vitória estaria assegurada. Mas Isabel e Burghley não se deixa­riam atrair. O regime do duque de Alba era intolerável mas, do ponto de vista da segurança de Inglaterra, o controlo francês sobre os Países Baixos ainda poderia ser pior. O receio que o governo sentia relativa-

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mente à França era de facto tão grande que Burghley recomendou em Junho, num memorando secreto, que a Inglaterra deveria chegar ao ponto de oferecer o seu auxílio à Espanha se Alba não conseguisse pro­teger dos franceses os portos do Canal. Raisons d' état, e não a religião, ditaram a política inglesa na questão dos Países Baixos em 1572.

Coligny afastou as hesitações de Carlos IX. Mesmo sem o auxílio inglês ou alemão, assegurou-lhe, os huguenotes podiam mobilizar um número de homens suficientes para derrotar o exército espanhol. Foi Coligny e não Catarina quem, finalmente, ganhou a batalha. A 11 de Agosto, Carlos escreveu a Guilherme de Orange dizendo que um exér­cito de 15 000 homens sob o seu próprio comando entrava dentro em pouco na luta. As forças de Guilherme encontravam-se nesse momento perto de Bruxelas, mas ele decidiu aguardar a entrada do exército· francês na Flandres antes de iniciar um cerco. Porém, a mensagem que a seguir recebeu de França trazia-lhe a esmagadora notícia de que os hugue­notes tinham sido massacrados em Paris e Coligny estava morto.

2. O massacre de S. Bartolomeu

Olhando retrospectivamente para os terríveis acontecimentos da noite de 23 para 24 de Agosto de 1572, parece que os huguenotes não tiveram dificuldade em acreditar que o massacre dos seus irmãos era o culminar de um golpe cuidadosamente imaginado e longamente prepa­rado. Viram-no como o final lógico da história que se iniciara com o famoso encontro em Baiana, em 1561 1. Alba, segundo estavam con­vencidos, propusera a Catarina de Médicis a exterminação dos dirigen­tes huguenotes; e desde então a rainha-mãe, utilizando todas as artes ensinadas pelo seu conterrâneo florentino Maquiavel, construíra cuida­dosamente a sua armadilha. No momento do casamento de Carlos IX, em 1570, suspeitara-se de que ela estivera a projectar juntamente com o cardeal de Lorena o assassínio de Coligny e dos seus amigos. E é certo que a facção Guise não fazia segredo do seu desejo de vingar o assas­sínio de Francisco, duque de Guise, perpetrado em 1563 2• Agora, em Agosto de 1572, quando a nobreza huguenote se reunia para o casa­mento de Henrique de Navarra, os Guise conseguiam a sua vingança e a armadilha era accionada.

Ironicamente, foi a própria expectativa de algum acontecimento horrível que tornou mais fácil a sua ocorrência. Seja o que for que Alba possa ter dito a Catarina em Baiana, ela era suficientemente perspicaz

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1 Ver oopírt:ulo 4 .. 2 Ver oa,pitu1o 4.

para saber que a eliminação dos chefes de uma das facções a entre­garia, tal como à monarquia, nas mãos da outra. A sua política sempre consistira na manutenção de um equilíbrio entre ambas, utilizando as forças e fraquezas de cada uma em benefício da coroa. O massacre dos huguenotes em 1572 constituiu portanto um desvio (aliás fatal) de uma política persistentemente aplicada, devendo ser visto como um acto de desespero de uma mulher inteligente que momentaneamente perdeu a cabeça. Mas teria ela adaptado essa solução, e ousado aplicá-la, se não tivesse já sido esboçada e prevista nos conselhos tanto dos seus amigos como dos seus inimigos?

O verdadeiro problema quanto ao massacre do dia de S. Bartolo­meu consiste portanto em saber como é que Catarina acabou por se encontrar numa posição tal que este acto desesperado parecesse o único escape. A resposta, tanto quanto alguma vez se ·saberá, tem a ver tanto com o seu próprio carácter como com as tensões produzidas na corte pela actuação de Coligny. Em Agosto de 1572, o Almirante conseguira uma influência aparentemente inabalável sobre os sentimentos do rei. Por outro lado, utilizara o seu formidável poder de persuasão no sentido de uma invasão francesa dos Países Baixos - acção que, do seu ponto de vista, poria fim à luta civil em França, enquanto para Catarina signifi­cava um convite ao desastre. Quando Coligny e Du Plessis-Mornay apresentaram o seu plano, estavam de facto a produzir, muito simples­mente, uma nova versão de uma antiga política, e a seguir uma antiga máxima de governação. Anteriormente, já o cardeal de Lorena apresen­tara uma proposta semelhante, mas sendo a Inglaterra e não a Espanha o objecto do ataque. Numa época em que as facções da aristocracia e da pequena nobreza constituíam uma fonte perene de agitação doméstica, parecia uma medida inteligente de goverríação distrair as energias em excesso das lutas intestinas para as internacionais.

Pode perguntar-se, no entanto, se as disputas domésticas em França não se teriam entretanto tornado demasiado complexa-s para ser resolvidas deste modo. As guerras civis em França representavam, de facto, algo mais que rixas entre facções nobres, e os apaixonados ódios religiosos não poderiam ser sumariamente exorcisados por uma campa­nha no estrangeiro. Aliás, também não havia qualquer garantia de que o exército francês saísse vitorioso. O duque de Alba certamente ficaria embaraçado perante uma invasão em grande escala pela França, e Gui­lherme de Orange poderia conseguir conquistar as províncias do norte. Mas seria a França suficientemente forte para desafiar com êxito a Espanha, em particular sem o auxílio inglês?

A oposição de Catarina e grande parte dos conselheiros reais aos planos de Coligny tinha portanto fundamentos sólidos. Mas quanto mais forte era a oposição, maior era a determinação de Coligny, o que obrigou por sua vez Catarina a ficar numa posição em que dispunha de um espaço de manobra cada vez menor. A situação foi ainda exacerbada pelo facto de os frenéticos esforços de Coligny no sentido de con­seguir os seus objectivos o levarem a ultrapassar a perigosa área deli-

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mitada pela grande preocupação de Catarina pelos seus filhos. Os três irmãos reais -Carlos IX, Anjou e Alençon -empunhavam agora as

suas armas. As rivalidades fratricidas deste miserável trio serviam natu­

ralmente aos propósitos das facções. Coligny já tinha o rei do seu lado,

e parecia ter atraído Alençon para o campo huguenote. Anjou, pelo seu lado, reagiu aproximando-se dos Guise e dos católicos; mas a morte do

rei da Polónia em Julho estimulou as esperanças huguenotes em que ele viesse a sair rapidamente do país como rei eleito de um trono vazio 3•

Explorando as rixas entre os irmãos, Coligny brincava com o fogo. Devia saber que, ao afastar a rainha-mãe, embarcava numa aventura

perigosa. O seu desejo de correr o risco pode explicar-se de diversas maneiras. A sua sólida mistura de patriotismo e protestantismo ajudou-o certamente a convencer-se de que a guerra com a Espanha era simulta­

neamente honrosa para a França e correspondia aos desejos divinos. Acreditava ainda que uma campanha bem sucedida o transformaria no braço direito indispensável de um rei vitorioso. Valia portanto a pena

lutar por paradas tão elevadas. Mas mantém-se discutível até que ponto a. iniciativa se encontrava nas suas mãos. Apesar do seu enorme prestí­giO entre os nobres e as igrejas huguenotes, nem mesmo ele conseguiria

travar indefinidamente as paixões e ódios de alguns dos seus seguidores.

Talvez, de facto, só uma campanha no estrangeiro pudesse evitar uma explosão. ·

A própria agressividade das exigências de Coligny pode portanto ter decorrido, pelo menos em parte, da consciência da fraqueza funda­mental da sua própria posição. Paciente e persistentemente, tinha de

refrear aqueles dos seus partidários que se mostravam mais combativos. Simultaneamente, devia ganhar e conservar algo que era vital para o seu

futuro e o da sua causa - a confiança do rei. Paradoxalmente, foi o

se~ próprio êxito neste campo que mais contribuiu para a sua queda final,

pms valeu-lhe o ódio de Catarina e deu-lhe uma confiança injustificada na sua própria capacidade para continuar a dominar os acontecimentos.

O comportamento de Coligny no verão de 1572 sugere uma combinação infeliz de desespero e confiança agressiva, que o tornaram curiosamente cego aos perigos que o rodeavam.

Na segunda semana de Agosto, estes perigos tornavam-se reais. Num arroubo de cólera cuidadosamente planeado, Catarina trocara Paris

pelo castelo de Monceaux, onde podia meditar nos seus planos futuros sem ser incomodada. Tudo apontava agora para a eliminação de Coligny

como a melhor, e talvez a única, forma de preservar a paz doméstica e no estrangeiro. A resolução da rainha-mãe foi provavelmente refórçada

3 Ver arlliJa.nte, oaa:>ituilio 8.

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pelas insistências do duque de Anjou, invejoso c temeroso de um irmão

mais velho que, dependendo de Coligny, estava a dar mostras de uma independência própria recentemente adquirida. No momento em que

Catarina voltou para Paris, para as festividades do casamento real, de

16 a 21 de Agosto, tinha tomado uma decisão e preparado os seus pla­

nos. Os Guise haviam anunciado publicamente o seu desejo de verem

Coligny morto. No caso de um assassínio ela podia portanto cscond~r a sua própria cumplicidade por detrás da conveniente máscara das nxas entre facções. Aliás, não ficaria demasiado preocupada se os hugucnotes,

vendo o seu chefe morto, decidissem vingar-se nos Guise. Alguns golpes ousados de cada um dos lados, e a monarquia ver-se-ia livre do domínio

desses súbditos demasiado poderosos que tantas pressões faziam em

volta do trono. Henrique de Navarra e Margarida de Valois casaram-se com todas

as honras em 18 de Agosto. As festividades foram esplêndidas mas

demasiado prolongadas, na opinião de Coligny, ansioso por se lan~ar na campanha da Flandres. Porém, na manhã de 22 de Agosto era atm­

gido por um tiro de arcabuz quando saía do Louvre em direcção a casa,

embora não tivesse morrido. O facto de o assassino poder falhar a sua missão não ocorrera

aparentemente a Catarina ao traçar os seus planos. Estava agora na pior

posição possível, com a sua vítima ainda viva e arriscando-se p~~va­velmente a ver a sua cumplicidade vir a público. Os huguenotes mam

certamente vingar-se, e essa vingança poderia estender-se a si própria e

a Anjou. Não é portanto de surpreender que neste momento tenha en­

trado em pânico. A sua única esperança consistia agora em actuar primeiro, o que requeria o consentimento do rei. A ira de Carlos a pro­

pósito da tentativa de assassínio de Coligny tornou-o momentaneamente insensível aos argumentos da mãe. Mas, mais tarde, ela voltou ao

ataque. Os huguenotes, insistia, estavam a planear um coup; Coligny era um traidor, e estava em causa a segurança do trono de França.

Apelou para a honra do rei e, mais sagazmente, para a sua ~oragem;

estaria ele com medo dos huguenotes? Desta vez, acertou em che1o.

Foi preparada uma lista dos chefes huguenotes, encabeçada pelo

Almirante, preso à cama pelos ferimentos. As execuções dev~riam ser

em número limitado, e cuidadosamente preparadas. Mas Catarma errou novamente nos seus cálculos, subestimando tanto o desejo de vingança

dos Guise como os instintos anti-huguenotes da populaça parisiense. Se mudou de ideias quando os sinos tocaram na madrugada de 24 de

Agosto, era já demasiado tarde. Algumas horas depois, Coligny e

dois ou três mil dos seus correligionários huguenotes tinham sido dego­

lados na capital, e não demorou muito que o furor anti-protestante come­çasse a alastrar por toda a França. Todos os receios e previsões de vio­

lência, que por si mesmos ajudaram a alimentá-la, tinham sido horroro­samente confirmados.

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S. Bartolomeu constituíu portanto um exemplo clássico de um processo de escalada, cujas consequências finais Catarina nem desejara nem previra ao dar a ordem de assassínio de Coligny. Confrontada com as consequências indesejadas da sua própria decisão, o seu instinto natural - como seria de esperar de uma mulher com o seu carácter -levou-a a sentir mais pesar pelo erro do que remorso pelo crime. Con­corda também com o seu carácter o facto de, ao mesmo tempo que se lançava na tarefa de trazer a monarquia ao caminho certo, procurar aproveitar-se tanto quanto possível da situação. Foram portanto prepa­radas versões alternativas da história de S. Bartolomeu para as diferen­tes cortes europeias. Em Espanha, não prejudicava Catarina sugerir que o massacre fora cuidadosamente preparado. Também em Roma, uma história de premeditação foi assiduamente propagada pelo cardeal de Lorena, que deste modo esperava aumentar o crédito dos Guise, ao mesmo tempo que arrastava Catarina para mais perto da causa católica.

Gregório ·XIII ficou evidentemente encantado e mandou cunhar uma medalha especial para comemorar o grande acontecimento. Nestas circunstâncias, não surpreende que os príncipes protestantes e os seus súbditos tivessem visto confirmadas as suas suspeitas de que o massacre fora o resultado de um golpe cuidadosamente preparado por Catarina, Filipe e Roma. Os embaixadores de . Catarina aos Estados protestantes tiveram portanto de se esforçar por fornecer explicações mais respeitá­veis do que acontecera. Sugeriram que Coligny tinha conspirado contra a vida do rei e o massacre fora uma contra-medida necessária tomada no momento oportuno. Alternativamente, o massacre era apresentado como um incidente infeliz da conhecida inimizade entre Coligny e os Guise, que nada tivera a ver com Carl03 IX. Não era de esperar que no norte protestante estas explicações fossem levadas muito a sério. Era mais fácil, e mais interessante, ver Catarina como arqui-conspiradora e Carlos IX como um homem da mesma linhagem; e se era esta a im­pressão geral, Catarina só a si se podia culpar do seu desvio.

Por mUito que Catarina se esforçasse por minimizar o massacre, restava o facto de que o que estava feito nunca poderia ter emenda. O primeiro resultado de S. Bartolomeu foi, inevitavelmente, o alas­tramento do terror e da confusão. Ao longo do mês de Setembro houve massacres em muitas cidades, e muitos huguenotes que sobreviveram fugi­ram, procurando refúgio em Genebra ou Estrasburgo'. Outros, particular­mente entre a nobreza, consideraram mais prudente abandonar uma fé que parecia ameaçada de extinção, e voltaram, pelo menos nominalmente, a obedecer a Roma. Esta deserção da aristocracia nos meses que se seguh-­ram ao massacre alterou drasticamente o carácter do movimento hugue­note, tal como a adesão da nobreza o transformara também na década anterior. Privado da protecção e direcção aristocráticas, o movimento recorreu à orientação dos pastores, recuperando parte do espírito que o animara durante os últimos anos de vida de Henrique II. De novo o protestantismo se tornou em França uma causa genuinamente popular

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c religiosa. Sob o impacte de S. Bartolomeu, os hug11cnoll:s do s11l · do ocidente juntaram-se na defesa da sua fé, e rcvoltaralll Sl ' l'nnlrll 11111

rei que ordenara o assassínio dos seus irmãos e colaborara d e pr lprio no massacre.

Portanto, longe de provocar o fim das guerras, o massacre npcnas serviu para que elas se reiniciassem. Em todo o lado os hugucnotcs p •ga­vam em armas. Em Setembro La Rochelle recusou-se a aceitar um go­vernador real e preparou-se para aguentar um cerco que se iniciou cm Dezembro e se manteve durante sete meses. Os huguenotes lutavam agora pela sobrevivência e a consciência disso tornou mais firme a sua resistência que, pela primeira vez, começava a ser apresentada como uma resis­tência aberta ao poder da coroa. Até 1572 tinham sempre afirmado que lutavam para proteger os interesses de um rei sujeito à maligna influên­cia dos Guise. Mas depois de S. Bartolomeu tornou-se impossível man­ter esta ficção conveniente, e por toda a parte os calvinistas se viram forçados a enfrentar o problema que tanto tinham tentado evitar - o da legitimidade da resistência à autoridade legalmente estabelecida.

Se bem que nos Institutos de Calvino fosse possível encontrar uma sanção da organização da resistência contra os tirano3, Calvino in­sistira em que qualquer decisão sobre uma questão tão importante deve­ria ser tomada tendo em conta as leis e a constituição do Estado em causa. Beza sempre tivera uma atitude menos legalista e em 1573, sob o impacte de S. Bartolomeu, escreveu um tratado sobre o problema geral da obediência e da resistência. Recentemente, os padres da cidade de Genebra tinham tido problemas com a coroa francesa devido à publicação do Franco-Galia do huguenote Francisco Hotman- um exame da antiga constituição francesa que propunha a subversiva tese de que a autoridade última assentava nos Estados Sociais e não no rei. Recusaram, portanto, uma licença de publicação, e o trabalho de Beza surgiu anonimamente em Lião em 1574, numa versão francesa inti­tulada Du Droit des Magistrats sur leurs Subjets.

João Knox já defendera em finais dos anos 50 o direito de resis­tência nas suas formas mais radicais. Mas o livro de Beza foi a pri­meira indicação clara, de um ponto de vista calvinista oficial, dos limites considerados apropriados para o poder monárquico. O poder absoluto só pertencia a Deus; a realeza baseava-se num pacto com o povo; e se o rei se transformasse num tirano, era dever dos magistrados (em França, os Estados Gerais) refreá-lo e, em último caso, depô-lo. Se bem que a ausência do nome de Beza privasse o livro de parte da sua autoridade, representava um importante acrescento às teorias da resistência que surgiam em França desde o dia de S. Bartolomeu. O mas­sacre provocara um caudal de panfletos protestantes, alguns dos quais apenas contavam a horrível história, enquanto outros - como o conhe­cido Réveille-Matin- apresentavam certas ideias democráticas de revolta popular. Mas a obra de Beza apresentava a doutrina da resistência da forma que tinha mais probabilidades de aceitação pela nação política em

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França. Atribuindo a responsabilidade aos magistrados e não ao povo

em geral, conferia um grau de respeitabilidade a uma teoria altamente

explosiva. Foi esta formulação «aristocrática» da teoria da resistência

que veio a ser adaptada por Du Plessis-Momay na mais conhecida de

todas as obras do século dezasseis sobre as obrigações dos reis e os direi­

tos dos súbditos- a Vindiciae contra Tyrannos, de 1579. As teorias de

Beza alcançaram aqui a sua conclusão lógica: existia um contrato for­

mal entre o rei e o povo e competia aos magistrados autorizar a resis­

tência a um dirigente tirânico e procurar o auxílio, em caso de necessi­

dade, de potências estrangeiras. Ao forçar uma reavaliação da questão fundamental dos direitos e

obediências, o massacre de S. Bartolomeu prestou um serviço memorá­

vel à causa da liberdade política. Mas o constitucionalismo calvinista

do período que se seguiu ao massacre tinha também as suas limitações.

Colocava uma arma poderosa nas mãos das vítimas e dos perseguidos,

mas fazia-o igualmente em relação aos oportunistas, que constituíam

um exemplo de necessidade menos genuíno. Os nobres poderiam retomar

a sua posição de permanente vendetta contra o poder régio, confortavel­

mente seguros de que actuavam como guardiães do direito do povo

designados divinamente. Por isso, era improvável que o novo constitucio­

nalismo agradasse ao crescente número de politiques, que viam na res­

tauração de um forte poder monárquico a única esperança de um futuro

para a França. Os argumentos baseados em contratos e as doutrinas do

tiranicídio eram um anátema para os homens que davam maior impor­

tância à unidad·e política do que à religiosa e cultivavam uma profunda

veneração pela prerrogativa régia. Foi Jean Bodin quem, nos seus

Seis Livros da República, de 1576, melhor formulou a politique ideal

da sociedade justa. A justiça constituía para Bodin uma ordem ideal, na

qual os homens obedeciam a um príncipe que governava de acordo com

as leis de Deus. Este ideal incontestável era susceptível de ser subscrito

por todas as facções. Mas a ênfase de Bodin na natureza e nos recursos

da verdadeira majestade e a sua insistência no facto de a desobediência

passiva constituir o único recurso contra a tirania separaram-no nitida­

mente dos teóricos huguenotes e forneceram uma doutrina política alter­

nativa que correspondia bastante às ideias politiques.

No entanto, por muito que as concepções politiques do Estado

diferissem das teses contratuais mais extremas dos huguenotes, a situação

da França após S. Bartolomeu tomou inevitável uma aliança huguenote­

-politique. Muitos dos principais politiques tinham estado em perigo en­

quanto inimigos dos Guise, e haviam perdido amigos e familiares no dia

de S. Bartolomeu. Um deles era Montmorency-Damville, segundo filho

de Montmorency. Como católico e primo de Coligny, estava disposto

a apoiar qualquer movimento que destruísse o poder dos Guise e con­

duzisse as guerras religiosas ao seu fim. Utilizando a sua posição estra­

tégica como governador do Languedoque, começou a lançar os funda-

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mentos de um Estado huguenote-politique semi-ind ·p ·ntiL:niL: no sul d ·

França. Outros nobres partilhavam as ideias de Montmoren ·y-l>amvill ·;

c como Henrique de Navarra e o jovem Condé estavam agora fml •

mente limitados na corte, procuraram a liderança do duque de Alunçon,

o mais novo e insatisfatório filho de Catarina. Este príncipe neurótico,

com as suas enormes ambições, ficou deleitado ao arranjar sequaz ·s

pessoais e políticos próprios. Era bastante fácil, para este grupo de nobres descontentes c de

politiques genuínos, fazer causa comum com um nobre huguenote como

Francisco de La Noue, agora comandante de La Rochelle. Catarina viu-se

portanto, em resultado da sua acção disparatada e terrível, exactamente

na situação que sempre procurara evitar. A coroa era uma vez mais

presa de uma facção - agora a dos Guise - e enfrentava uma coli­

gação cada vez mais poderosa de nobres huguenotes e anti-Guise. Os

huguenotes estavam talvez mais decididos e unidos do que alguma vez

o tinham estado, e a sua organização era agora mais sólida e extensa,

abarcando desde o Delfinado no sudeste até à Provença, o Languedo­

que e o Béarn no sul, e depois através da Guiana até La Rochelle.

Mas não era apenas internamente que Catarina hàvia feito a si própria

danos incalculáveis. A sua política externa sempre fora concebida para

contrabalançar o poder do Imperador e de Filipe II. Mas S. Bartolo­

meu fizera-a perder a sua reputação precisamente nos Estados de quem

mais dependia - a Inglaterra, a Polónia e os principados protestantes

da Alemanha. Não foi de facto ·Catarina, mas sim FiÜpe, quem mais veio a

lucrar com o massacre. Entre a tomada de Brill, a 1 de Abril, e os

acontecimentos de 24 de Agosto, a posição de Alba nos Países Baixos

deteriorara-se rapidamente. A Holanda e a Zelândia tinham caído nas

mãos dos «Mendigos do Mar» ~ Bruxelas estava ameaçada de um

dos lados pela invasão de Guilherme de Orange a partir da Alemanha e,

do outro, por Luís de Nassau e os franceses. Era uma surpreendente

mudança relativamente ao que Filipe ouvira sobre os êxitos da política

de pacificação de Alba; e o duque de Medina Celi, que chegara em

Junho para o substituir, sublinhou bem os desastres nos seus relatórios

para Madrid. A verdadeira causa dos problemas, escreveu ele ao seu amigo

Ruy Gómez, não era a heresia mas a cupidez dos funcionários de Alba

c o medonho comportamento dos seus soldados. Tendo diagnosticado

a doença do modo que lhe convinha, Medina Celi recusou o cargo de

governador e partiu para Espanha, deixando a Alba a tarefa de en­

t.:ontrar a cura. Foi o massacre de S. Bartolomeu que salvou Alba e transformou a

situação militar de um dia para o outro. «Que golpe grave e imprevisto

(quel coup de massue)», escreveu Guilherme de Orange ao irmão, ao

saber a notícia. <<A minha única esperança residia na França.» Agora já

nfío haveria exército francês para socorrer Luís de Nassau em Mons, c

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Guilherme não dispunha de · recursos para ir em seu auxílio. A 21 de Setembro os espanhóis permitiram a Luís que abandonasse Mons com honras de guerra, enquanto Guilherme se retirava desconsolado de Malines: O duque de Alba, animado pelo encorajamento papal, pro­curou aproveitar da melhor maneira a mudança da sua sorte. Malines foi tomada e saqueada pelas suas tropas e o punho de ferro do seu go·verno fez-se novamente sentir no Hainault, no Brabante e na Flandres. Restavam apenas as províncias do norte, e Alba não estava disposto a mostrar clemência. Uma força comandada pelo filho, Don Fradique de Toledo, dirigiu-se para o Zuiderzê, enquanto outra era enviada para re­conquistar a Zelândia. Por toda a parte os soldados espanhóis se com­portaram com inacreditável brutalidade. O saque de Zutphen a 16 de Novembro foi seguido do incêndio de Naarden e do massacre dos seus habitantes. Foi como se no «Massacre dos Inocentes» Peter Breughel tivesse previsto as desgraçaçs da sua terra natal.

Em inícios de Dezembro, as forças de Toledo avançavam sobre Haarlem. A cidade encontrava-se bem protegida pela água, a sua guar­nição era forte e a população via-se obrigada a uma resistência deses­perada pelos relatos das atrocidades espanholas. Um primeiro assalto fracassou a 21 de Dezembro, tal como um segundo em Janeiro. A resis­tência de Haarlem obrigou Toledo a iniciar um longo e custoso cerco, que apenas terminou em Julho de 1573, quando a fome obrigou a cidade a render-se.

O ano de 1572, portanto, terminou nos Países Baixos, tal como em França, com as misérias e as frustrações de um cerco. La Rochelle e Haarlem: dois baluartes protestantes sujeitos a ataque. À primeira vista, poderia parecer que a revolta protestante em ambos os países estava destinada a fracassar. Mas o quadro era sempre menos negro do que parecia na época. Se bem que fosse um ano de terríveis tragé­dias, 1572 foi também um ano de êxitos. O optimismo do verão fora brutalmente anulado por S. Bartolomeu, mas nem mesmo o massacre podia obliterar completamente o triunfo de Brill. O simples facto de tanto o regime de Alba como o de Catarina terem sido obrigados a compridos e enfadonhos cercos era por si só um indício da respectiva bancarrota política e militar. A resistência protestante endurecera de­baixo de fogo. Os calvinistas estavam agora firmemente estabelecidos, tanto em França como nos Países Baixos, numa base territorial, e em ambos os países as tentativas de a eliminar revelaram-se contraprodu­centes a longo prazo. Nos Países Baixos, a selvática campanha de reconquista de Alba acabara por alienar de Filipe li as simpatias daqueles que não apreciavam Orange nem os seus «Mendigos». Em França, o massacre teve consequências semelhantes - e Catarina, ao contrário de Alba, não acreditava no que estava a fazer. Fosse como fosse, depois da aberração de S. Bartolomeu, tinha de reconduzir a monarquia ao seu caminho, pois uma guerra prolongada com os hugue-

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notes apenas serviria para a colocar nas mãos d s Ouis · c de Filipe li. Aliás, ela tinha agora entre mãos um novo projccto umbi ·ioso. FI ·xívcl e cheia de recursos como sempre, desejava o trono vago da Pol nia para o filho favorito, o duque de Anjou.

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VIII

UMA VIA INTERMÉDIA?

1. A Polónia e o Ocidente

A política de repressão religiosa em França e nos Países Baixos estava visivelmente a falhar. A guerra e o massacre não tinham trazido uma solução para o problema político mais agudo da época: como preser­var a autoridade da coroa e a coesão do Estado numa época de luta con­fessional. Filipe li nos Países Baixos e Catarina em França podem ter-se visto mais vigorosamente confrontados com este problema do que alguns dos seus colegas, mas uma rainha de Inglaterra e um príncipe da Tran­silvânia não estavam menos conscientes das suas complexidades. Em toda a Europa dos anos 70 os reis e os seus ministros procuravam, com diferentes graus de habilidade e êxito, o ilusório ponto de equilíbrio entre as contraditórias exigências de consciência, autoridade e ordem pública que lhes poderiam dar algumas tréguas relativamente aos pro­blemas da época.

O fracasso da repressão em 1572-3 aumentou inevitavelmente o interesse por possíveis soluções alternativas para este grande dilema. Em alguns círculos, particularmente na corte imperial, os movimentos tendentes a uma união confessional, que vinham dos tempos de Erasmo, tinham ainda fervorosos defensores; e em certos momentos das últimas décadas do século as suas conciliadoras aspirações recebiam um inespe­rado alento. Mas, como as experiências alemã e sueca viriam a demons­trar, o clima não era propício a um movimento ecuménico eficaz. Dir­-se-ia que uma religião sincrética, apesar de exercer um encantamento enganoso sobre uma mão-cheia de espíritos, deixava impa>3sível a grande massa do clero e dos leigos europeus. A única alternativa à união confessional - além da repressão - era a coexistência. Mas seria ela sequer desejável? E, mesmo que o fosse, poderia ser alcançada? Existia um país que talvez pudesse fornecer a resposta- um país que, devido a um acidente dinástico, chamara repentinamente a atenção da Europa. Talvez no exemplo da Polónia houvesse algumas lições a tirar para o ocidente.

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O acontecimento que repentinamente despertou o interesse ociden­tal pelos assuntos polacos fm a morte, em Julho de 1572, de Segis­mundo li Augusto, não deixando herdeiro. Se bem que o trono polaco fosse electivo, a coroa passara sem dificuldade, durante os (lllimos dois séculos de um membro para o seguinte da dinastia Jagiello. Mas agora a dina;tia estava extinta no seu ramo masculino, e a eleição não podia deixar de ser algo mais do que a habitual formalidade. Seria ainda um acontecimento cujo interesse não era simplesmente doméstico, pois não estavam excluídos candidatos de qualquer nacionalidade, e os anos 70 foram um período com uma quantidade mais que razoável de jovens príncipes Gem trono- Anjou, Alençon, D. João de Astria e o arqui­duque Ernesto, o filho do Imperador- ambicionando uma coroa c um pedaço de terra a que pudessem chamar seu.

Não havia portanto falta de candidatos, só restando o problema d_a escolha. As rivalidades internas entre os magnates polacos depressa eli­minaram qualquer possibilidade de o rei da Polónia vir a ser oriundo deste país, mas o problema da filiação religiosa do novo monarca não era tão fácil de resolver. A situação religiosa na Polónia durante os últimos anos tornara-se excepcionalmente delicada. Se bem que o pro­testantismo tivesse conseguido alguns êxitos espectaculares, não se en­contrava tão firmemente estabelecido como os seus apoiantes deseja­riam. Fizera muitas conversões entre as pessoas de nível elevado, parti­cularmente entre a alta e a média nobrezas, e entre a pequena nobreza em certas regiões. Mas o seu impacte nas cidades era menor, e quase não tocara nos campos. Por outro lado, tratava-se de um protestantismo dividido em muitas seitas -luteranos, calvinistas, irmãos da Boémia, anabaptistas e anti-trinitários. . O contra-ataque romano iniciou-se seriamente em 1563, com a chegada à Polónia do cardeal Commendone, enviado como núncio papal encarregado de insistir junto do rei e do senado na aceitação dos decre­tos tridentinos. Se bem que fracassasse nesta missão, em 1565 conven­ceu Segismundo Augusto a consentir numa acção que viria a ser crucial para o futuro do catolicismo polaco - a admissão dos jesuítas. Em 1571, foram fundados quatro colégios jesuítas na Polónia, e a Ordem tinha já realizado algumas conversões significativas entre as grandes famílias aristocráticas. Os protestantes, cujas intermináveis querelas eram uma fonte de mal escondido deleite para o cardeal polaco Hosius, despertaram repentinamente em fins dos anos 60 por a maré começar a voltar-se contra eles. Uma nova tentativa de pôr fim a estas disputas conduziu em 1570 ao Consenso de Sandomir, um acordo entre luteranos, calvinistas e irmãos da Boémia. O Consenso, que representava um sério esforço no sentido de preservar a paz religiosa entre os protestantes com base numa garantia mútua dos direitos confessionais, suscitou a esperança de, pelo menos na Polónia, homens de diferentes crenças po­derem aprender a viver lado a lado no interior de um mesmo Estado. Não há dúvida de que esta tolerância o era por defeito - corrcspon­dendo a renunciar à . busca de uma unidade religiosa, pela mera ne-

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c~ss id ad c de sobreviver. Por outro lado, as próprias peculiaridades da v1da polaca - a longa experiência de coexistência entre as igrejas ro­mana e ortodoxa, a multiplicidade de seitas, a profunda influência da educa~ão humanista ent~e a aristocracia - contribuíam para produzir u~ clima em que a delicada planta da tolerância poderia vir a florir. J a nos anos 60 o secretário humanista do rei, Andrew Modrzewski, t~ntara convencer o seu senhor da futilidade da coacção em questões de fe - «O que pertence à mente e ao espírito não pode ser arrancado pela tortura ou as ameaças» . Este sentimento começara a atrair números cada vez maiores de nobres e elemento3 da pequena nobreza -tanto protestantes como católicos - durante os últimos e enevoados anos do reinado de Segismundo.

. Mas quando o rei morreu, repentinamente, nada fora ainda deci-dido ou acordado. A tolerância ainda não era reconhecida na constitui­ção e decorria simplesmente da suspensão formal pela Dieta de 1562-63 de todas as sentenças proferidas por tribunais eclesiásticos. Para a nobreza protestante era portanto essencial que o novo rei, se não fosse um protes~a~te, pelo men~s garantisse os seus direitos religiosos, e que estes adqumssem, se possiVel, uma sanção constitucional. Para Roma era não menos essencial que o candidato escolhido fosse um fiel filh~ da igreja, dado. que a eleição de um protestante poderia destruir todo o trabalho realizado por Commendone e Hosius e, talvez, afastar per­manentemente a Polónia da obediência à Santa Sé.

A eleição polaca de 1572-73 transformou-se portanto, tal como todos os outros acontecimentos políticos importantes de finais do século dezasseis na Europa, num medir de forças entre crenças concorrentes. O candidato favorecido por Roma era o arquiduque Ernesto segundo filho de Maximiliano II, já que se esperava que a presença de ~m mem­?ro da família imperial no trono polaco ajudasse a aumentar o hesitante mteresse do Imperador pela guerra santa contra o Turco. Maximiliano no entanto, ~ofria de uma incapacidade congénita para aproveitar a~ suas oportumdades. Na Polónia havia objecções profundamente enrai­zadas a uma sucessão dos Habsburgo, em parte devidas a um sentimento ant-alemão, e em parte por muitos dos aristocratas e dos membros da pequena nobreza t~merem que, sob a direcção dos Habsburgo, a Polónia acaba~se por segmr o caminho da Boémia e da Hungria, perdendo as suas liberdades uma a uma. Mas Maximiliano estava muito melhor pre­p.ar~do no momento da morte de Segismundo do que qualquer dos seus nva1s, e uma demonstração de força no momento certo, como a reco­mendada ~~lo cardeal Co~mendone, poderia ter conseguido a coroa para a sua fam1lia, tal como mms tarde a coroa de Portugal foi para o parente de Maximiliano, (cunhado e genro) , Filipe II de Espanha 1• Mas Maximi-

1 :Ver aJàilan be, ·oapiitu~o 9.

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Jiano hesitou, como lhe era característico, c o infeliz Ernes to iniciou-se na sua carreira manquée como homem que nunca cons ·guiu um trono.

A força de Maximiliano residia na ausência de qualquer outro candidato alternativo suficientemente óbvio. Não existia prlncipc pro­testante adequado que pudesse conseguir a sucessão. A p lítica ex terna praticada por Segismundo baseara-se na amizade com a Suécia c a T ur­quia contra o inimigo comum moscovita; e apesar de Ivã l V ter os seu~ apoiantes entre a pequena nobreza lituana, eram óbvias as objccçõcs à candidatura do czar. Segismundo fizera igualmente a corte à F rança, e Catarina de Médicis deitara durante bastante tempo os olhos à coroa polaca, para o seu segundo filho. Mas a morte de Segismundo apanhou-a desprevenida. O desonesto, egoísta e efeminado Anjou dificilmente parecia um rei muito convincente para uma nação que se orgulhava das suas virtudes militares, mas Anjou era mal conhecido no leste, se o era sequer, como o vencedor de Jarnac e Moncontour. A França, por outro lado, exercia algum fascínio sobre os polacos, além de, ao contrá­rio do Império, estar convenientemente longe da Polónia. Tudo isto, aliado ao inepto comportamento de Maximiliano e dos seus represen­tantes diplomáticos, fez com que a candidatura Valois ganhasse rapida­mente força.

Mas Catarina quase destruiu as pmsibilidades de Anjou logo no início do jogo. As notícias de S. Bartolomeu chocaram a Polónia, tal como o resto da Europa, e ameaçaram a candidatura francesa de perder o apoio protestante, essencial para o seu êxito. Foi necessária toda a finura diplomática do competente enviado de Catarina, Montluc, bispo de Valence, para desfazer os danos provocados. pelos acontecimentos desse odioso dia no prestígio da França. Nos meses de outono e inverno de 1572, em Cracóvia e Varsóvia, as possibilidades de Anjou depende­ram da capacidade de um diplomata altamente sofisticado para superar o hiato de credibilidade entre as palavras e as acções de Catarina de Médicis. Através de uma judiciosa combinação de propaganda e per­suasão, ele conseguiu formar entre os membros da grande e pequena nobreza um grupo pró-francês que parecia suficientemente forte quando se realizou a Dieta de Convocação, em Janeiro de 1573. Compreendendo que as suas possibilidades de excluírem Henrique de Anjou se desvane­ciam, os nobres protestantes decidiram prudentemente concentrar-se em assegurar alterações constitucionais que preservassem as liberdades polacas após a sua eleição e tornassem impossível uma versão polaca do S. Bartolomeu.

Apresentando-se como paladinas das liberdades polacas, as per­sonalidades protestantes conseguiram essa combinação de constituciona­lismo aristocrático e divergência religiosa que tanto fizera para minar o poder real em França e nos Países Baixos na década anterior. Um trono vazio, a ser preenchido por eleição, oferecia irresistíve is oportu­nidades a uma aristocracia ambiciosa, católica e protestante, de realizar o seu sonho de uma «república» aristocrática com um dogc régio - o mesmo sonho acarinhado por Condé, ou por Guilherme de Orange

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quando provocou o afastamento de Granvelle em 1564. A Dieta de Convocação de 1573 adoptou oportunamente certas medidas que reduzi­riam ainda mais os já limitados poderes da coroa na Polónia. O princípio da sucessão hereditária dinástica foi formalmente abolido, concordan­do-se com um processo eleitoral; nenhum novo rei deveria ser coroado antes de jurar a observância das leis e liberdades polacas; Anjou, se fosse escolhido, deveria aceitar a chamada pacta conventa e os articuli Henriciani, que definiam a forma de governo e impunham estritos limi­tes ao poder monárquico. No futuro, a Polónia seria governada pelo Senado, que por sua vez seria responsável perante Dietas reunidas regu­larmente de dois em dois anos.

Além destas cláusulas governamentais, a Dieta de Convocação concordou com a ideia de uma «confederação» que preservasse a liber­dade religiosa- a celebrada Confederação de Varsóvia de 1573. «Como existe grande discórdia neste reino quanto à religião cristã, promete­mos, a fim de evitar a sedição, como a que surgiu noutros reinos ... que todos nós, de diferentes religiões, manteremos a paz entre nós e não derramaremos sangue». Esta notável formulação, que o novo rei deveria prometer observar, não tinha paralelo preciso em qualquer outro ponto da Europa de então. A Paz de Augsburgo de 1555 limitara-se aos cató­licos romanos e aos luteranos e baseara-se no princípio da divisão terri­torial. Tinham-se verificado certos actos de tolerância para seitas indi­viduais, como os éditos condicionais de tolerância no caso dos calvinis­tas em França, ou a garantia de tolerância de Maximiliano II para os nobres luteranos da Austria em 1568. Talvez o acto cujo âmbito pudesse ser grosso modo comparado com este fosse o reconhecimento pela Dieta da Transilvânia de 1571 dos mesmos direitos religiosos para católicos ro­manos, luteranos, calvinistas e unitários. Mas a Confederação de Varsóvia alargava o princípio de liberdade religiosa aos nobres de qualquer fé.

Se se pretendia ou não que os camponeses dos domínios dos nobres fossem incluídos nas cláusulas da Confederação, é um ponto que se mantém obscuro. Talvez se concebesse a tolerância apenas para as ordens superiores da sociedade, ainda que muitos nobres se absti­vessem de interferir nas práticas religiosas dos seus rendeiros e servos. Apesar de todos os seus defeitos e ambiguidades, no entanto, a Confe­deração de Varsóvia sugeriu de facto uma forma de fuga às divergên­cias religiosas da época. A sua aceitação pela nobreza laica de crença católica (se bem que não pelo primaz e pela maior parte dos seus bispos) foi suficiente para assegurar a aprovação da candi­datura Valois pelos nobres protestantes. No início de Abril de 1573, cerca de 40 000 membros da grande e da pequena nobreza- todos elei­tores da coroa polaca- reuniram-se na planície de Varsóvia. O resul­tado da votação, que se iniciou a 4 de Maio, já estava previamente deci­dido, pois a anterior decisão da Dieta de Convocação de reunir a Dieta Eleitoral em Varsóvia e não no centro protestante de Lublin significava que o processo eleitoral seria dominado pela massa dos membros da

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baixa nobreza empobrecidos, pró-franceses c prcc.lominantcmcntc cató­licos romanos, que dificilmente poderiam pagar as despesas de deslo­cação para comparecer numa Dieta reunida em local mais afastado. A 11 de Maio, Henrique de Valois era eleito com todas as honras, c a Confederação de Varsóvia formalmente confirmada.

As notícias da eleição, que chegaram a Paris em Junho, Livcram um impacte imediato na cena doméstica francesa. O duque de Anjou chefiava então pessoalmente o cerco a La Rochelle; mas era impensável que o monarca eleito de uma nação dedicada ao princípio da tolerância religiosa continuasse a perseguir protestantes na sua França natal. A 24 de Junho, portanto, fez-se um acordo, e o cerco a La Rochelle fo i levan­tado. Para os huguenotes a libertação parecia miraculosa: «Deus desejava poupar a· Sua igreja e, salvou La Rochelle chamando o duque de Anjou para o trono polaco» 2• De La Rochelle, Anjou voltou a Paris, a fim de preparar uma recepção à delegação que vinha da Polónia oferecer-lhe a coroa.

A chegada da embaixada polaca em Agosto - doze embaixado­res, protestantes e católicos romanos, acompanhados de duzentos e oinquenta membros da pequena nobreza exoticamente ataviados - cons­tituiu algo mais do que uma mera exibição de trajes. Com efeito, o simbolismo expresso no carácter religioso misto da delegação não deixa­ria de ser notado pelos politiques franceses, postos repentinamente pe­rante um exemplo vivo da unidade fraterna de aderentes a crenças bas­tante diversas.

A unidade não era de facto tão profunda como os observadores franceses mais entusiastas quiseram acreditar. Henrique depressa detec­tou e explorou as divergências confessionais ocultas, tentando assim libertar-se da desagradável obrigação de prestar juramento. Mas os embaixadores cerraram fileiras a tempo, e o severo «lurabis aut non regnabis» de Zborowski não deu a Henrique outra alternativa, senão ceder. A 10 de Setembro de 1573 obrigou-se a fazer tudo o que esti­vesse no seu poder no sentido de manter a paz religiosa no seu novo reino. O corolário natural do seu juramento f<;>i o regresso da monarquia francesa a uma certa tolerância relativamente aos seus próprios protes­tantes, a favor dos quais os embaixadores polacos tinham apresentado uma petição a Carlos IX. Lentamente, sob o impacte da necessidade doméstica e das exigências da sua política externa, Catarina punha fim à era repressiva de S. Bartolomeu.

Anjou tinha um papel óbvio a desempenhar na nova época de compreensão mútua, mas nenhum rei poderia ter demonstrado menor entusiasmo pelas tarefas que o esperavam. Foi com a maior relutância que o persuadiram a deixar as delícias civilizadas da França pelo des-

2 Madame Du Momay, cttada em Raoul Patry, Philipp-e Du Plessis­

-Mornay, Paris, 0.9313, ;p. 29.

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conforto de uma terra bárbara. Entretanto, impunham-se novas possibi­lidades sem limites à fértil mente de Catarina. A França recuperava a influência em Constantinopla, que apoiara a candidatura Valois; um príncipe francês estava agora na Polónia, onde a sua tarefa imediata seria derrubar o czar; Carlos IX, como genro do Imperador Maximiliano, poderia oportunamente apresentar-se como sucessor plausível do trono imperial; e Alençon, com melhor sbrte do que o irmão, talvez se con­vertesse um dia no príncipe-consorte de Inglaterra. Então, a influência francesa estender-se-ia a todo o continente, de Londres a Moscovo; a Espanha ficaria sem aliados e cada um dos filhos. de Catarina teria uma coroa.

Antes de estas deslumbrantes visões poderem ser traduzidas em factos, era ainda necessário um certo trabalho diplomático. Paris deveria retomar a sua tradicional aliança com os príncipes protestantes, tempo­rariamente destruída por S. Bartolomeu. Esta tarefa foi iniciada a 4 de Dezembro de 1573 em Blamont, na Lorena, onde Catarina e Alençon tinham ido despedir-se de Henrique quando este partiu para a Polónia. Além da família real francesa e de uma vasta entourage franco-polaca, também Luís de Nassau se apresentou em Blamont, acompanhado pelo duque Cristóvão, filho do principal calvinista alemão, o Eleitor Pala­tino. Luís trazia consigo instruções de Guilherme de Orange no sentido de reabrir negociações com a França. Em discussões altamente secretas -uma espécie de equivalente protestante do encontro de Baiona- foi acordada a formação de uma aliança entre a França, a Polónia e os príncipes protestantes alemães. Henrique de Valois enviaria a Guilherme de Orange reforços polacos para uma nova campanha nos Países Baixos.

O encontro secreto de Blamont parecia inaugurar uma era nova e mais auspiciosa, na qual a França, inspirada pelo exemplo polaco de coexistência religiosa, combinaria a tolerância relativamente aos seus próprios protestantes com um regresso à cooperação activa com as potências protestantes. Enquanto Henrique realizava o seu juramento em Cracóvia, em Fevereiro de 1574, comprometendo-se a preservar «pacem inter dissidentes de religione» e Luís de Nassau mobilizava as suas tropas na Alemanha, as esperanças da Europa protestante aumen­tavam rapidamente. Mas não puderam sobreviver à primavera. Em Abril, o exército invasor de Luís de Nassau encontrou os espanhóis em Mook, perto de Nijmegen. O combate terminou com um desastre total para a causa rebelde holandesa. Luís de Nassau foi morto na batalha, juntamente com o irmão mais novo, Henrique, e o duque Cristóvão do Palatinado.

O resultado da aventura polaca mostrou-se a seu modo tão de­cepcionante para as esperanças protestantes como a batalha de Mook. O interesse de Henrique pela coroa polaca - que aliás nunca fora muito grande- desvaneceu-se rapidamente, à medida que lhe chegavam relatórios segundo os quais o irmão Carlos IX estava a morrer. A sua posição era aliás pouco invejável, como roi fainéant de uma república

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nristocdtlica, cujos problemas apresentavam alarmante semelh<lll\ 1 • 11111 os que deixara para trás em França. Em vez dos Guise católicos t" d" Bourbon protestantes, havia os Zborowski católicos e os Firlei proll". tantes, e Henrique em breve voltava ao velho jogo Valoi~ de dividir para reinar. Ofendeu profundamente os protestantes confenndo cargos · favores aos Zborowksi, provocando a suspeita de que tentava res­taurar o poder monárquico com o apoio dos magnates católicos romanos. Mas Henrique procurava antes de mais ganhar tempo, fazendo o que podia para evitar qualquer ratificação das leis polacas que pudesse enfraquecer a sua posição quando viesse a tratar com os ~u~uenotes, ~o seu próprio país. A 14 de Junho de 1574 chegou a Cracovm a notl~Ia havia muito esperada da morte do irmão mais velho, em finais de Ma10. Quatro dias mais tarde o novo rei de França saiu de noite de Cracóvia, e encontrava-se já quase fora do país antes de os indignados polacos poderem persegui-lo.

O episódio trágico-cómico de um rei Valois no trono polaco fora uma desilusão para muitos -para os próprios polacos, que tinham desejado um guerreiro e recebido um esteta; para Catarina, que sonhara com uma segunda monarquia Valois no leste; e para os huguenotes e politiques, que tinham visto na ligação à Polónia e no exemplo deste país uma maneira de escapar ao impasse das guerras civis francesas. Um -estranho momento nas relações leste-oeste perdeu-se rapidamente na história, mas a sua memória não foi inteiramente perdida. De facto, a Polónia havia-se transformado para os protestantes ocidentais num símbolo de moderação e tolerância - símbolo a que Guilherme de Orange viria a fazer uma subtil alusão através da oferta de um conjunto de tapeçarias especialmente concebidas, quando em inícios dos anos 80 tentou novamente interessar Henrique e Catarina pelos seus planos de uma aliança politique contra o rei de Espanha 3.

No entanto, até que ponto concordaria esta imagem com a reali­dade? A guerra civil fora evitada na Polónia em 1572, durante o pri­meiro interregno, e uma revolta protestante foi provavelmente evitada pela fuga ignominosa de Henrique. Quando se tornou evidente que este não tinha qualquer intenção de voltar, não houve outra alternativa senão a convocação de nova Dieta. Desta vez, a paciência era mais curta e as divisões mais profundas, parecendo que só um milagre poderia evitar o derramamento de sangue. Uma vez mais Maximiliano entrou nas listas e uma vez mais deixou escapar as suas possibilidades. Em Dezembro de 1575 era proclamado rei da Polónia pelo primaz, e em

3 V·er Frances A. Yat:es, The Valois Tapestries, Londres, 195.9, para um brilhaJt1t/e exemplo do trabalho de deteotive na inv·estigação do simbo­li>smo p•otlític:o o.cuLto nos desenhos destas trupeçarias, incluindo o dos em­baiixadores poJ.aicos.

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nome do Senado; mas a Dieta tinha outras ideias, e escolheu o príncipe da Transilvânia, Estêvão Báthory. . . A escolh~ provou ser extremamente boa. Báthory era um homem mtehgente e c1v1hzado, que completara a sua educação em Pádua e durante toda a vida manteve o seu interesse pelos estudos humanistas. Com o apoio do sultão fora eleito príncipe da Transilvânia após a morte c..L:: Segismundo Zapolyai, em 1571. Sendo um católico romano o seu próprio temperamento combinado com as complexidades da vida reli­giosa no seu próprio principado conferiram-lhe uma visão tolerante bem adaptada às necessidades da Polónia. Assim que recebeu a notícia da sua eleição, . actuou com característico vigor, a fim de tomar posse do seu novo remo. No momento em que Maximiliano decidiu reivindi­car os seus direitos, já era tarde. A 1 de Maio de 1576 Báthory era coroado em Cracóvia após a sua concordância com observar a pacta con­venta, ~asando, como convinha, com Ana Jagiello, a irmã mais velha ~e S~g1smu~do II August.o. Mais tarde, Maximiliano, preparado para mvad1r o pa1s, morreu subitamente, a 12 de Outubro. O seu talento para actuar a despropósito mantivera-se até ao fim. A partir desse momento até à sua própria morte, em 1586, Báthory foi o rei incontestado de uma nação que, sob a sua direcção, gozou de uma espectacular época de glória e êxitos militares.

Báthory compreendeu que a primeira questão consistia em eliminar o espectro de guerra civil que pairava sobre a Polónia. Como fiel filho ~a igreja romana, procurou implantar a reforma eclesiástica segundo as hnhas de Trento; mas manteve a sua lealdade ao espírito da Confede­ração de Varsóvia, insistindo em que a fé devia ser propagada «não pela violência, o fogo e a espada, mas pela instrução e o bom exemplo». Quando a cidade protestante de Danzigue, predominantemente alemã, se levantou em apoio de Maximiliano no início do seu reinado, Báthory teve o cuidado, ao fim de um cerco de seis meses, de confirmar as liberdades religiosas e civis da cidade.

Foi o grande chanceler de Báthory, João Zamoyski, quem fez a conhecida observação: «Daria metade da minha vida para trazer de novo para o catolicismo aqueles que o abandonaram, mas daria toda a minha vida para impedir que fossem recuperados pela violência». Enquanto este espírito prevalecesse entre a nobreza polaca, era possí­vel preservar a paz religiosa. Mas esta encontrava-se sob uma tensão permanente, e Báthory- tal como Coligny -viu a melhor possibilidade de afastar o demónio da sedição desviando as energias nacionais para a guerra no estrangeiro. Tradicionalmente, a Moscóvia era para a Polónia o que . a Espanha era para a França. Mas as situações em que Báthory e Cohgny se encontravam só superficialmente se assemelhavam. Na Polónia parece ter havido uma menor animosidade religiosa do que na França entre a maioria da população, e entre os elementos da pequena e grande nobreza existia uma longa tradição de tolerância mútua, que Báthory podia aproveitar. Além disso, a conquista russa do norte da Livónia em 1575 podia ser apresentada como um perigo maior para o

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interesse nacional do que a presença de e3panhóis nos Países Baixos. Por outro lado, Báthory era melhor general do que Coligny, c as riquezas da sua Transilvânia natal proporcionavam-lhe recursos adequados para

realizar uma guerra com êxito. Em 1578, com a questão de Danzigue resolvida, Báthory estava

pronto a lançar a sua contra-ofensiva contra Ivã, o Terrível. Quatr·o anos de guerra brilhantemente conduzida, começando pela derrota de Ivã em Wenden, em 1578, forçaram o czar a aceitar em 1582 uma tré­gua humilhante, cedendo à Polónia todas as partes da Livónia que não se encontravam em mãos dos suecos. A morte de Ivã em 1584, seguida de gradual entrada da Rússia na sua «Época de Perturbações», elimi­nou a ameaça moscovita ao Báltico e à Polónia durante quase um século. Como resultado das conquistas polacas na Livónia, Báthory via-se agora confrontado com a Suécia de João III. Mas Báthory estava nesse momento envolvido no grandioso projecto de uma cruzada contra o Turco, que deveria ser seguida da incorporação da Poló­nia, da Hungria e da Moscóvia num grande império europeu orien­tal. Evitou portanto o conflito com a Suécia; e quando morreu repen­tinamente, em 1586, não tendo ainda iniciado a sua cruzada, os Guecos c os polacos procuraram resolver os seus diferendos elegendo um prín­

cipe Vasa para o trono polaco 4•

No seu reinado de dez anos, Báthory actuara bem, na opinião dos seus súbditos volacos. Derrotara os seus inimigos, alargara as fron­teiras e preservara-os da guerra civil e das lutas religiosas. Uma boa direcção num momento crucial da sua história, juntamente com uma tradição razoavelmente humana e uma comunidade básica de interesses no seio de uma aristocracia decidida a manter e a aumentar os seus privilégiós à custa da coroa, tinham salvo a Polónia do século dezasseis do destino que abalara a França. Báthory, um ardente católico e patrono dos jesuítas, fez muito para promover a recuperação e eventual êxito da igreja romana na Polónia, mas jogou sempre de acordo com as regras. Existiam defeitos e insuficiências óbvias no compromisso polaco; fun­damentalmente, tratava-se apenas de um acordo entre a grande e a pequena nobreza no sentido de evitarem o recurso à espada nas disputas relacionadas com questões de fé. Mas na quente atmosfera religiosa dos últimos anos do século, mesmo isso representava uma proeza conside­rável e era certamente muito melhor que a simples ausência de tole­rância. Por outro lado, apesar de todas as suas limitações, os seus benefícios nã.o . eram confinados apenas à classe privilegiada. Não existiam então muitos países onde um dirigente, protestante ou católico

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romano, tivesse permitido a Socinus propagar as suas crenças anti­-trini tárias 5•

Mas a possibilidade de o modelo de coexistência religiosa exis­tente na Polónia ser transposto com êxito para outras regiões da Eu­ropa- como Orange e os politiqttes tinham desejado em 1573 - era discutível. Em 1578 não obteve qualquer resposta um apelo dos pro­testantes da Europa no sentido de seguirem o exemplo de conciliação fornecido pelo Consenso de Sandomir. Parecia que cada nação seria forçada a descobrir através da experiência e do erro o seu caminho individual para a salvação.

2. A Suécia e a Alemanha

Parecia não existir uma solução universalmente aplicável para o problema político-religioso da época. Existiam, evidentemente, certos aspectos constantes na vida religiosa de finais do século XVI, que todos os governantes eram obrigados a ter em conta. Um era a revivescência católica pós-tridentina. Nos anos 70, esta afectava um número cres­cente de nações num raio cada vez mais extenso a partir de Roma, ao mesmo tempo que Gregório XIII orientava as suas atenções para a reconversão da Europa central, do norte e oriental 6• O outro era a crise interna do protestantismo, caracterizada por amargas disputas à medida que o calvinismo se tornava cada vez mais militante e o luteranismo perdia o seu ímpeto e começava a estagnar. Mas junta­mente com estas constantes existiam numerosas variáveis, determinadas por condições locais e nacionais e pela interminável interacção das personalidades. O que Estêvão Báthory foi capaz de conseguir, Catarina de Médicis não foi. Os príncipes acabavam todos por descobrir que o seu espaço de manobra estava fortemente restringido e que as melhores intenções depressa ficavam condenadas às mãos dos seus súbditos religio­samente comprometidos. O governante bem--sucedido, nesta época como em qualquer outra, era aquele que- tal como Isabel de Ingla­terra- possuía um sentido bem desenvolvidos do politicamente possível, uma intuição do momento adequado e uma boa dose de sorte.

Dificilmente se poderia dizer que o Imperador Maximiliano II possuía estas características, ou que as possuísse esse erudito opinioso,

s Fausto Süzzin.i (.1539-1604) era oriundo de Süma, tendo-se instalado na Po.lóa:lli..a ecrn 1!579. Exerc:eu aqt11i uma grwnde influência sobre os anaba.ptis­tas anti-trilnitários e, a.pós a sua mot1Je, os Irmãos Polacos pacifistas e anti-trinitári'Os ficararrn conhecidos por «soc:inianos».

6 A sua preocupação por estas regiões é bem ilustrada pela de­cisão de criar uma congregação especial de Qlito cardeais (incluindo o ca~deall Hosius e o seu secretário de Estado Ptolomeu Gallio, cardeal de Como) para a reconversão das nações teutónic:as.

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João III, que em 1568 substituía o irmão deposto, Eric XIV, no trono sueco. Na época da subida ao trono de João, a situaçao da igreja sueca não era muito diferente da que caracterizava a igreja inglesa nos primeiros anos do reinado de Isabel. Originalmente criada, tal como a igreja de Inglaterra, por um acto deliberado da vontade régia, as suas doutrinas mantiveram-se imprecisas e a sua organização deixava muito a desejar. Nos anos 60 começava a sentir as mesmas tensões que então afectavam por toda a parte as igrejas luteranas. Os exilados da França e da Alemanha começaram a introduzir as doutrinas cal­vinistas, e a igreja sueca era inevitavelmente afectada pela amarga disputa que na Alemanha dividia os luteranos ortodoxos, dirigidos pelo temível Flacius Illyricus, e os «filipista» (assim chamados devido a Filipe Melancthon), denunciados pelos seus opositores como cripta­-calvinistas. Por outro lado, era improvável que no interior da Sué­cia se visasse eficazmente a restauração da igreja católica. O cato­licismo sueco, privado da sua direcção e isolado do mundo exterior, enfraquecera mais rapidamente do que o seu equivalente inglês. Qualquer reconquista da Suécia por Roma deveria ser montada a partir do exte­rior, sob a direcção de exilados escandinavos como o jovem converso jesuíta Laurentius Norvegus.

João III, no entanto, tinha várias razões para desejar seguir o rumo correcto. Estava casado com uma mulher católica, a irmã de Segismundo II Augusto da Polónia, e filha de Bona Sforza, de quem herdara uma fortuna considerável. Infelizmente, grande parte desta for­tuna consistia em bens congelados em Nápoles por Filipe II, e João necessitava do auxílio do papa para obrigar Filipe a mudar de ideias. Existia ainda a questão da sucessão polaca. Tanto João· como o filho Segismundo tinham boas possibilidades de serem eleitos para a coroa polaca, mas para tal necessitariam do voto católico romano. As próprias inclinações religiosas de João coincidiam com os requisitos da sua polí­tica externa. Sendo ele próprio um teólogo instruído, deixara-se atrair, quando estivera na Polónia, pela teologia de Jorge Cassander (1513--1566), humanista flamengo de visão erasmiana que advogara a recon­ciliação dos católicos e protestantes partindo de artigos de fé comuns a ambos. João III fez suas as aspirações ecuménicas de Cassander, e -como primeiro passo no ~Sentido dessa união- introduziu em 1576 uma nova liturgia, o «Livro Vermelho», que inteligentemente misturava os serviços romano e luterano.

Enquanto se encontrava ocupado a reformar o cerimonial e a doutrina suecos, o rei também respondia às iniciativas de Roma e de Espanha. Filipe II, estorvado na luta contra os rebeldes dos Países Baixos pela sua fraqueza no mar, tinha os olhos postos na centena de navios da esquadra sueca. Para obter o empréstimo destes navios agitou diante de João III o tentador isco da herança Sforza. As negociaçõ~ entre os dois dirigentes foram iniciadas em 1574 por um jesuíta polaco, capaz simultaneamente de pôr à prova as opiniões religiosas do rei . Os resultados pareceram suficientemente encorajadores para o papa enviar

].2 177

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uma m1ssao secreta jesuíta à Suécia, dirigida por Laurentius Norvegus, disfarçado de clérigo protestante. Foi seguida em 1577 de um legado papal, António Possevino, e na primavera de 1578 o rei converteu-se secretamente a Roma. Parece, no entanto, ter concordado com a con­versão partindo do princípio de que o papa faria concessões especiais à Suécia no que tocava ao casamento dos clérigos, à realização da missa em vernáculo e à comunhão de ambos os tipos. Esta previsão revelou-se sem fundamento: a religião sincrética de João III era totalmente inacei­tável para a Roma da Contra-Reforma. As tentativas de reforma litúr­gica do rei colocavam-no já em dificuldades junto dos seus próprios súbditos e, particularmente, da facção anti-litúrgica dirigida pelo seu irmão neo-calvinista, Carlos, duque de SOdermanland. Desiludido com Roma e confrontado com a exigência do Riksdag no sentido de cortar relações com o papado e de expulsar os jesuítas, João UI vergou-se ao inevitável. Em 1580 a missio suetica era liquidada. Apenas pro­duzira uma mão-cheia de convertidos, e o próprio rei em breve reagia violentamente contra Roma e todas as suas obras.

A tentativa abortada de João III de reconciliar as igrejas mostrou que mesmo os planos mais bem intencionados podiam facilmente fracas­sar. João era suficientemente perspicaz para compreender que o seu país não estava preparado para o seguir, e que uma declaração pública da sua conversão lhe custaria indubitavelmente o trono. De qualquer modo, tinha subestimado grosseiramente os obstáculos teológicos a uma reunião· das igrejas - um erro igualmente cometido pelo Imperador Maximiliano Il. Este fora educado por mestres luteranos, e é possível que no coração se tenha mantido durante toda a vida um luterano. Mas a ·sua posição como imperador e a sua relação extremamente delicada com Filipe II, cujo trono poderia voltar ao ramo austríaco da família se este morresse sem um herdeiro, impossibilitava-lhe chegar ao ponto de cortar com Roma. Consequentemente, durante os seus doze anos no trono imperial viu-se embaraçosamente condenado ao papel de intermediário honesto, mediando desesperadamente entre católicos e protestantes, ao mesmo tempo que tentava evitar ofender uns ou outros.

A situação religiosa na Alemanha teria de toda a maneira exi­gido o máximo das capacidades políticas de qualquer homem, mesmo o mais competente. No momento da subida ao poder de Maximiliano, em 1564, o equilíbrio de forças obtido pelo acordo de Augsburgo começava a ser gravemente afectado. A maior parte dos mais importantes príncipes laicos e das cidades livres era agora protestante, e os luteranos tinham os olhos postos nos ricos principados eclesiásticos. A questão era ainda mais complexa devido à conversão do Eleitor Palatino Frederico ao calvinismo. Assim que a Dieta de 1566 não apoiou o pedido de Maximi­liano de uma acção comum para excluir Frederico dos benefícios do acordo de Augsburgo, a barreira religiosa abriu uma verdadeira brecha. Durante o reinado de Frederico, o calvinismo alastrou para norte desde Heidelberga até à Renânia e à Vestefália, sendo adaptado em inícios dos anos 70 pela terra natal da dinastia Orange, o condado de Nassau.

1178

Confrontado com a babei religiosa na Alemanha - luteranos con­tra católicos, luteranos contra luteranos, c calvinistas contra todos eles - , Maximiliano tentou descobrir uma via intcrm ~dia, que juntasse novamente as igrejas em luta. Tal como João lU ela Su~cia procurou nas obras de Cassander uma solução miraculosa para o enigma da luta confessional. Mas em vão a procurou. O fracasso dos esforços de Maxi­miliano no sentido de uma reconciliação amorteceram, mas não elimina­ram, as aspirações ecuménicas dos Habsburgo austríacos. A Maximiliano sucedeu em 1576 o seu extraordinário filho Rudolfo li, que diferia do pai por ser um filho dedicado da igreja romana. Mas, no estranho mundo que Rudolfo criou para si mesmo na corte imperial em Praga, rodeado de homens de letras e charlatães, astrólogos e alquimistas, também ele prosseguiu a busca familiar de uma ilusória síntese religiosa. Isso reflcc­tia em parte a tendência natural de uma mente especulativa e diletante; mas constituía, igualmente, um testemunho do poder do novo sentido de missão entre os Habsburgo austríacos -uma missão que, restaurando a unidade da fé, poderia igualmente restaurar a coesão do seu fragmen­tado império.

Incapazes de captar simpatias para os seus sonhos de reunião confessional, tanto Maximiliano como Rudolfo acharam conveniente, do ponto de vista político, ceder aos ventos prevalescentes. Os nobres protestantes, actuando através dos Estados, submetiam-nos a fortes pressões nas suas próprias terras hereditárias. Maximiliano respondeu concedendo em 1568 e 1571 aos nobres luteranos da Áustria Inferior e Superior o direito de livremente exercerem o seu culto nas suas propriedades. Por sua vez, Rudolfo teve de aceitar uma forma de tolerância tanto na Hungria como na Boémia, onde o preço da sua eleição para a coroa em 1575 foi a aceitação de uma «confissão boé­mia» à qual os luteranos, os calvinistas, os utraquistas e os Irmãos da Boémia - por uma espécie de milagre - acharam todos possível sub­meterem-se.

A tolerância nos territórios habsburgo constituiu uma necessidade temporária, que reflectiu a relativa força do protestantismo alemão e a fraqueza do catolicismo no momento em que foi concedida. Mas, em meados dos anos 70, a situação começava gradualmente a modificar-se. O catolicismo alemão mostrava finalmente alguns indícios de renovação. Os jesuítas havia algum tempo que obtinham conversões sob a enérgica direcção do holandês Pedro Canisius, director na província superior alemã da ordem jesuíta desde 1556 até 1569. Entretanto, o duque Al­berto da Baviera, reconvertendo o seu ducado a Roma com o apoio dos jesuítas e dos capuchinhos, mostrou o que um governante decidido era capaz de realizar, se ao menos conseguisse quebrar a dominação dos seus Estados Sociais. Pouca esperança havia de o conseguir nos territó­rios habsburgo, mas Rudolfo li deu os primeiros passos hesitantes n sentido de contrariar a difusão do protestantismo. Em 1578 ordenou a expulsão dos pregadores protestantes de Viena e, em seguidA, de outras partes da Áustria.

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Os visíveis progressos da igreja romana na Alemanha durante a

década de 70 eram suficientemente alarmantes para dar um novo ímpeto

aos luteranos, com vista a enterrarem as suas divergências internas. Em

1574, esse patriarca friamente calculista, o Eleitor Augusto I da Saxónia

(1553-1586), mudou subitamente de rumo ao descobrir- pelo menos

para sua própria satisfação -que os teólogos filipistas 7 da sua corte

empreendiam calvinizar o seu Eleitorado luterano. EJsa descoberta con­

duziu a uma feroz perseguição dos cripto-calvinistas e à firme instalação

do seu Eleitorado no campo luterano ortodoxo. O realinhamento reli­

gioso da Saxónia e a morte em 1575 desse tempestuoso líder dos políticos

luteranos, Flacius Illyricus, deram nova força ao movimento de uni­

dade luterana. Em 1580 estabeleceu-se uma «Fórmula de Concórdia»

entre os Eleitores Augusto da Saxónia e João Jorge do Brandenburgo, o

Eleitor Palatino Luís (filho luterano de um pai calvinista) e vinte prín­

cipes, vinte e quatro condes e trinta e oito cidades. Se bem que a Fór­

mula ajudasse a contrariar a desmoralização e desintegração do lute­

ranismo alemão, tornou igualmente mais agudas as divisões entre as

igrejas protestantes, pois os filipistas foram deixados de fora. Isso signi­

ficava o desaparecimento de qualquer possibilidade de reconciliação entre

os luteranos e os calvinistas, que a rainha de Inglaterra procurara obter

ao enviar Sir Filipe Sidney em missão à Alemanha protestante, em 1577.

O endurecimento na Alemanha dos anos 70 das divisões religio­

sas entre um catolicismo renascente, um luteranismo redefinido e um

calvinismo activista aumentaram inevitavelmente as tensões e tornaram

mais agudos os conflitos. O mais sensível dos pontos de conflito eram

os principados eclesiásticos, sujeitos à «cláusula de reserva» do acordo

de Augsburgo, que estipulava que qualquer prelado que deixasse de ser

católico deveria renunciar à sua diocese. Os protestantes nunca

tinham aceite formalmente a «reserva», se bem que houvesse o acordo

tácito de que deveria ser mantido o status quo de 1555. O teste reali­

zou-se em 1577, quando o arcebispo de Colónia, um Eleitor do Império,

renunciou, como devia, a fim de casar. Colónia ocupava uma posição

vital entre os Estados católicos do noroeste da Alemanha, junto à fron­

teira com os Países Baixos, e constituía uma presa tentadora para os

protestantes. Os seus apoiantes no cabido da catedral conseguiram levar a

cabo a eleição de um personagem convenientemente dissoluto com um

passado irrepreensivelmente católico·, Gebhard Truchsess. Em 1582,

Truchsess informou que imitaria o seu predecessor, casando. Per­

suadido pelos protestantes de que podia apesar disso manter a sua

diocese, anunciou a sua conversão ao protestantismo e a sua determi­

nação em conservar o estado eclesiástico. Foi, como era de esperar,

deposto pelo papa, que colocou em seu lugar um irmão do duque da

Baviera -homem cuja moral não era melhor mas de religião segura.

Ver antexi-OI'1TJJell1te neste cap1tulo.

180

Truchsess descobriu demasiado tarde que os Wittclsbuch bávaros esta­

vam dispostos a arriscar por Colónia muito mais do que os protestantes

e após algumas escaramuças vigorosas, que mantiveram o noroeste ela

Alemanha num estado de agitação durante três ou quatro anos, o

lucrativo e influente Eleitorado de Colónia passou para as mão:; ávidas

elos Wittelsbach, que conseguiram apoderar-se desta valiosa presa. Esta questão de Colónia, que marca a viragem da maré protes­

tante na Alemanha, revelou claramente as deficiências do acordo de

Augsburgo e a probabilidade cada vez maior de um conflito armado

entre as fés rivais. Uma orientação imperial mais forte poderia talvez

ter assegurado uma revisão realista do acordo de 1555, que, afinal, não

era mais do que uma trégua. Mas essa orientação não surgiu, ou foi des­

viada para generalidades ecuménicas; e a débil estrutura constitucional do

Império reduziu as possibilidades de emergência na Alemanha de uma

facção politique, disposta a subordinar as convicções religiosas às neces­

sidades do Estado - aliás, não existente. Se a Alemanha escapou à

guerra civil na segunda metade do século, isso deveu-se grandemente ao

facto de o problema constitucional já ter sido discutido e resolvido sob

Carlos y, ao mesmo tempo que a autoridade imperial era demasiado

fraca para impedir cada príncipe de seguir o seu próprio caminho re­ligioso.

3. A França e os Países Baixos

A Polónia e a Alemanha tinham ambas conseguido alguma forma

de coexistência, apesar de precária, entre os aderentes das crenças ri­

vais. Os alemães apoiaram-se na fórmula de Augsburgo da divisão

territorial, cuius regia eius religio, enquanto os polacos conseguiram pelo

menos um certo grau de tolerância. Mas o princípio de tolerância con­

tinuava a ser anátema tanto em Genebra como em Roma. Apesar disso,

no entanto, tanto em França como nos Países Baixos existiam ho­

mens dispostos a desafiar as linhas oficiais das suas próprias igrejas, na

convicção de que se tomara indispensável um qualquer tipo de coexis­

tência religiosa para a sobrevivência da vida política e civil. Em ambos

os países, os anos 70 foram uma década que se distinguiu por vigorosos,

se bem que fracassados, esforços no sentido de assegurar a paz civil por

meio de uma trégua religiosa. No seu demorado regresso a França através da Alemanha e da

Itália, no Verão de 1574, Henrique III teve amplas oportunidades ele

recolher ideias quanto aos possíveis métodos de restaurar a paz c a

unidade no seu reino dividido. Na Alemanha, toda a gente, do Imperador

para baixo, parece tê-lo aconselhado a conceder tolerância aos hugucno­

lcs. Mas o novo rei de França impressionou-se muito mais com o seu

encontro em Milão com esse supremo representante da espiritualidadc

da Contra-Reforma, o cardeal Borromeo. O impacte que teve em Hcn-

181

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riquc a personalidade do cardeal com a sua intensa sensibilidade religiosa c a sua austera dedicação às obras caritativas, foi esmagador e pro­fundo 8• Deu-lhe aparentemente uma visão de um mundo cheio de pecado que só poderia ser redimido através da expiação. Devia trans­formar-se num penitente real, que juntamente com alguns compa­nheiros escolhidos procuraria expiar os seus próprios pecados e os dos seus súbditos através de exercícios espirituais e da mortificação.

Como solução prática para os problemas do seu país, este método deixava algo a desejar, Catarina queria que o seu filho fosse um chefe, assumindo toda a majestade da realeza. Mas Henrique, como no fundo ela bem sabia, não tinha as qualidades de um rei. Este último dirigente da linhagem Valois era uma estranha mistura de contradições. Períodos de severa mortificação altemavam com crises de dissipação efeminada, durante as quais os companheiros de penitência se trans­formavam nos seus mignons- favoritos mimados que se tornaram objecto de desprezo e antipatia universais. Henrique era perspicaz e subtil e tinha uma capacidade intelectual infinitamente superior aos seus inú­teis irmãos, mas a estabilidade temperamental não se encontrava entre os seus muitos dons. Carecia de resistência física e mental, de capaci­dade para tomar uma decisão, seguindo-a até ao fim. Ninguém confiava nele, e ele não confiava em ninguém; era um homem inteligente, tortu­rado e infeliz - coroado em Reims com toda a pompa e ostenta­ção que só um Médicis poderia imaginar- condenado, pelos defeitos do seu carácter, a ver o seu reino minado por uma doença que ele conseguia perfeitamente diagnosticar mas para a qual não era capaz de achar cura.

Catarina preservara o trono para ele enquanto aguardava o seu regresso. Isso fora já um êxito considerável, dado que Alençon fazia o que podia para suplantar o irmão no trono. Mas nesse processo a rainha-mãe antagonizara Montmorency-Damville, líder dos politiques e rei não coroado do sul. Damville reagiu reforçando os seus laços com os huguenotes e convocando uma reunião geral dos politiques e hugue­notes em Nimes, em Dezembro de 1574. Esta assembleia levou à trans­formação do sul de França- Languedoque, Provença e Delfinado -numa espécie de Estado virtual, com instituições e máquina financeira próprias, e um firme acordo entre os seus membros no sentido de se permitirem a liberdade de consciência e de se unirem como «verdadei­ros franceses».

s Qua.nto ao crurdeal Bonomeo, ver anteriormel!lte, capítulo 5. A Íl!l­fluên cia de Borromeo subl!"e H elllii'ique III é exa,minada por Frrunces Yates, The Fr6'nch Academies of the Sixteenth Gentury, Londres, 194'7, caps . VIII e X; segui a brilhalllte descrição que estte autorr faz do <Ca<rá ctecr e da polí­tica de Henrique.

182

Confrontado com a tolerância que existia de facto na metade sul da França, Henrique viu-se obrigado a capitular. Alcnçon c Navarra tinham fugido ao seu cativeiro na corte, juntando-se à revolta de Mont­morency-Damville. Henrique não possuía dinheiro nem amigos c, em Maio de 1576, aceitou os humilhantes termos da <<paz de Mons icur~ 9•

Esta paz, confirmada pelo édito de Beaulieu, representava o acordo mais favorável que os huguenotes tinham obtido até então. Concedia-lhes completa liberdade de culto nas cidades francesas, com a única cxccpção importante de Paris; oito «places de sureté»; e a admissão a todos os cargos, incluindo metade dos lugares nos parlements.

Os termos do édito de Beaulieu deram a impressão de que a França estava finalmente prestes a resolver os seus problemas domésticos na base da igualdade entre as duas religiões. Mas esta esperança reve­lou-se ilusória. A guerra civil estava a converter-se numa maneira de viver, e o rei, rodeado dos seus cães de colo e mignons, não tinha o dom da chefia. A iniciativa coube portanto aos Guise, que se juntaram aos católicos mais radicais para considerarem o acordo completamente inaceitável. O cardeal de Lorena morrera em 1574, mas o jovem Hen­rique, duque de Guise 10, tinha já idade suficiente para ser um verda­deiro chefe de facção, e a oposição católica alinhou sob a sua direcção numa «União Sagrada» ou «Liga» . Já no passado tinham existido ligas católicas locais, mas a Liga de 1576 era uma organização nacional, dependente do apoio da nobreza católica e dos Guise, e da cidade cató­lica de Paris. Mas, tal como a organização nacional huguenote, a que se assemelhava bastante, contava igualmente com um apoio de massas - a dos laicos católicos; e tal como os pastores desempenhavam um papel activo na mobilização dos huguenotes, um papel semelhante era desempenhado na Liga pelos padres das paróquias, pelos monges e pelos frades .

A primeira acção da Liga consistiu em exigir a convocação dos Estados Gerais, que se reuniram em Blois em Dezembro de 1576. A Liga conseguira controlar as eleições para a assembleia e os huguenotes e politiques recusaram-se a participar. Os Estados-Gerais de Blois foram portanto apenas um veículo para exprimir as opiniões da Liga, que já mostrara ser uma formidável organização política. O seu objectivo no­minal era manter a autoridade da coroa e a unidade da fé, mas o seu

9 Asstm charn8Jda diev.ido a «MOI!l!Sieur»- o irmão do r ei, AlCl11 tiO.ll ,

cuja 1tra.ição foi 11ec01mpoetnsrudia com o rico ap!llnágio de B erry, T oural111 I'

Anjou. Sueedeu assim a Helllii'ique n:o titulo de duque de Anjou ; mn.Y, p:wa evitar confusões, é melhor continuarr a designá-lo pe•lo título qu poHtoulti

durante o reinado de OaJnloo IX. 10 Hetnrlque, cujo pai forra assassilllado em 1·5&3 tinha a tlk '" ' " " lLI

«le balafré»- devido a UJma ctcrut11iz que po&Suía na f'ruoe em •omwq u llll'ill

de uma ferida sofrida em b!lltrulha em 1575.

I HJ

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próprio carácter como movimento de alcance nacional com direcção própria transformava-a numa ameaça potencial ao poder régio. Hen­rique III, sabendo-se demasiado fraco para a vencer, decidiu que era melhor juntar-se-lhe. No seu discurso aos Estados de Blois anunciou que no futuro apenas toleraria uma religião no seu reino, e colocou-se à cabeça da Liga. Os Estados pronunciaram-se por sua vez a favor de uma restauração da unidade religiosa, se bem que uma maioria da ter­ceira câmara, votando embora a favor da supressão da religião refor­mada, acrescentasse que isso deveria ser feito por «meios suaves e sagrados».

Apesar de o país estar a cansar-se da guerra, os sentimentos dos Estados de Blois tomaram claro que o princípio de tolerância expresso no édito de Beaulieu era inaceitável para um vasto sector da opinião pública em França. Sem um largo consenso a seu favor e sem uma forte direcção régia para a aplicar, era inevitável que a recente paz fra­cassasse. Iniciaram-se novamente as hostilidades, que de novo tiveram uma pausa temporária com o édito de Poitiers, de Outubro de 1577. Este era menos favorável aos huguenotes que o édito de Beaulieu, dado que o culto protestante era agora restringido aos subúrbios de uma cidade em cada bailliage e às cidades onde fora praticado antes de a guerra ter começado.

Ao édito de Poitiers seguiu-se a dissolução formal de todas as Ligas, protestantes e católicas. Mas o período entre a extinção das Ligas, em 1577, e o seu reaparecimento em 1584 constituiu afinal uma época de paz esporádica e incerta. Se bem que os éditos de Beaulieu e de Poi­tiers fornecessem uma base essencial para um acordo segundo linhas politiques, do tipo finalmente adoptado em 1598, as forças de ruptura eram demasiado fortes e as forças da ordem demasiado fracas para que os éditos oferecessem qualquer saída. Henrique III contava com um possível núcleo de um partido do rei, sem o qual a coroa nunca recupe­raria o seu poder. Mas era incapaz de o dirigir ou usar para qualquer fim e o seu comportamento irresponsável transformou-o num siste­mático impedimento para a própria causa régia. Entretanto, Henrique de Guise e Henrique de Navarra enfrentavam-se como rivais interessados no poder, enquanto o duque de Alençon intrigava e conspirava. Por de­trás das grandes famílias, lutando pelo controlo do governo em Paris e nas províncias, alinhavam os membros empobrecidos da grande e da pequena nobreza, cuja sobrevivência dependia dos lucros da guerra. Com efeito, enquanto existissem em França três regimes - o huguenote, o católico e uma enfraquecida administração régia - a unidade e a ordem nunca poderiam ser restauradas na base inevitável de uma tole­rância religiosa limitada, mesmo que o desejo de tolerância tivesse sido suficientemente forte. No seu desespero perante a situação de impasse, o secretário real Villeroy exprimiu claramente o dilema daqueles que ainda tentavam manter a autoridade da coroa: «Não podemos fazer a

184

paz nem a guerra. É esse o nosso problema, para o qual não há remédio sem o auxílio de Deus» 11 •

... «Não podemos fazer a paz nem a guerra~ . Esta frasl.: pc)(il.:ria ser o cri-de-cceur de um governador espanhol dos Países llaixos, tal como de um secretário de Estado francês. A coroa espanhola, tal como a francesa, viu-se atormentada por uma guerra que não podia ganhar nem conseguia terminar; e nos Países Baixos, tal como em França, parecia ser a religião a bloquear o caminho. Os esforços de Alba no sentido de fornecer uma solução militar tinham fracassado visivclml.:nte. Apesar da supremacia das armas espanholas em terra, Alba via-se fatal­mente limitado pela sua incapacidade de ganhar o controlo dos mares. Os «Mendigos do Mar» mantinham um bloqueio ininterrupto da costa dos Países Baixos - bloqueio que se tomou total com a tomada de Middelburg, após um cerco de dois anos, em Fevereiro de 1574. Os magistrados e cidadãos de Middelburg tinham organizado uma forte defesa contra os «Mendigos», e os espanhóis haviam feito frenéticos esforços para romper o bloqueio. Mas, como a sua tentativa de con­tratar a esquadra sueca sugeria 12, viam-se cruelmente limitados pela falta de navios. Depois da queda de Middelburg, os rebeldes passaram a dominar as rotas marítimas entre os Países Baixos e a península ibérica. Isso significava não só que podiam abastecer-se livremente em Inglaterra ou em La Rochelle mas, também, que tinham a economia castelhana à sua mercê, pois Castela não podia dispensar o comércio nórdico e o cereal do Bático, apesar de estes se encontrarem agora sob controlo dos rebeldes.

O fracasso de Alba em esmagar os rebeldes acabara por o desa­creditar na corte. Na longa luta no conselho entre os falcões de Alba e as pombas de Eboli, estas acabaram por sair claramente vitoriosas. O príncipe de Eboli morreu em Julho de 1573 e a direcção efectiva da sua facção passou para o secretário do rei, António Pérez. Mas as opiniões de Eboli tinham prevalecido junto do rei ainda bastante antes da sua morte; de facto, em final de Janeiro de 1573, Filipe escrevera ao seu governador de Milão, Dom Luís de Requesens 13

, exprimindo a sua profunda preocupação com o estado de coisas nos Países Baixos e designando-o sucessor do duque de Alba. Requesens era um administra­dor e um diplomata, não um soldado, e a sua designação fornecia uma indicação clara da intenção do rei de experimentar uma política de conciliação, já que as medidas militares tinham falhado.

11 C~tado por N . M. Sutherland. The F'rench Secretaries of S!al e it1

th·e Age ot Gatherine d6· Medici, Londres, 1962, p. 22"3. 12 Ver atrás, neste capitulo. 13 Quanto a Requesens, ver aJtrás, crupitulo 5. Requesen.<'l, um nom e

ca.ta.lão, pronuncia-se Rka-sens.

lllS

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Requesens chegou a Bruxelas para substituir Alba em Novem­bro de 1573. Antes de partir para a Flandres obtivera autorização para proclamar uma amnistia (com certas excepções), abolir o famoso Conse­lho dos Distúrbios e abandonar o projecto de colecta do malfadado décimo péni. Mas apesar de Filipe estar disposto a fazer concessões políticas na medida em que a manutenção da sua autoridade régia o permitisse, não tinha intenção de ceder um milímetro em qualquer assunto relacionado com a fé. «Prefiro perder os Países Baixos a reinar sobre eles se deixarem de ser católicos», escrevera no Verão de 1573 14•

As perspectivas de um acordo negociado dificilmente pareceriam pro­missoras, pois os objectivos de luta de Orange, tal como os anunciou numa carta aos irmãos, incluíam importantes concessões religiosas por parte da Espanha. «Apenas aspirei», escreveu, «à liberdade do país tanto em questões de consciência como de governação. Portanto, os únicos artigos que tenho a propor são a autorização do exercício da religião reformada de acordo com a palavra de Deus, e a restauração dos antigos privilégios e da liberdade da República, o que significa que os funcionários estrangeiros, especialmente os espanhóis, devem ser reti­rados» 15•

Ao chegar aos Países Baixos, no entanto, Requesens parece ter tido alguma esperança de que a intransigência do rei na questão reli­giosa não impedisse necessariamente um acordo. Sentiu que a revolta dos Países Baixos era essencialmente uma revolta de um país provocado para além de todos os limites pela exigência do décimo péni e pelo governo tirânico e corrupto do duque de Alba. Se era correcto o seu diagnóstico de que só os líderes da revolta eram animados por preo­cupações religiosas, concluía-se que a firme determinação de abando­nar os métodos do regime de Alba poderia ser suficiente para recuperar para a causa régia todos excepto alguns fanáticos.

A primavera de 1574 parecia, de vários pontos de vista, um mo­mento propício a Requesens para tentar um corte com o passado ime­diato e procurar um regresso ao sistema de governo que existia sob Carlos V. Se bem que a perda de Middelburg em Fevereiro de 1574 fosse uma grande contrariedade para os espanhóis, a sua esmagadora vitória sobre Luís de Nassau e os seus mercenários alemães na batalha de Mook, em Abril 16, pareceu compensar totalmente a anterior derrota. O próprio Orange estava decidido a continuar a luta até ao fim, e redobrou de esforços no sentido de criar uma coligação anti­-espanhola, que via como a única possibilidade de salvação do pro-

14 Citado por Meester, Les Saint-Siege et les Troubles de1s Pays-Bas, p. 95.

15 Orange aos condes d:e Nrussau, 5 de FevereLro de 1573 (Groen van Prinsterer, Oorrespondance, vol. IV, p. 51()).

16 VeT atrãs, neste capitulo ..

186

testantismo não só nos Países Baixos como em toda a E uropa; mas tinha consciência do carácter volúvel dos seus compatriotas, c temia que o desastre de Mook tivesse enfraquecido a vontade de resistir tkstcs.

Requesens, pressentindo a desmoralização dos rebeldes, tinha agora uma óptima oportunidade de experimentar as suas teorias. Mas a possi­bilidade de uma conciliação a partir de uma posição de força perdeu-se tragicamente assim que surgiu. O exército «espanhol» - essa grande máquina militar com cerca de 25 000 alemães, 20 000 valõcs c 8 000 espanhóis - estava cada vez mais agitado devido à falta de pagamento. Rebentaram motins nas fileiras; os amotinados (incluindo os soldados espanhóis) marcharam sobre Antuérpia e ocuparam-na como refém; c se bem que Requesens conseguisse dominar o motim satisfazendo as exigências imediatas dos soldados, os danos já eram irreparáveis. Quando anunciou o seu perdão geral em inícios de Junho de 1574, o impacte deste foi anulado pelo facto de ser anunciado à sombra de um motim e de um possível colapso militar.

A política óbvia de Guilherme consistia agora em tentar ganhar tempo. O · exército espanhol, restaurada a ordem, começara em finais de Maio a cercar Leida. Quanto mais tempo esta aguentasse o cerco, retendo uma parte substancial dos soldados de Requesens, menores se­riam as possibilidades de os espanhóis retirarem benefícios da sua vitória em Mook. Era ainda evidente que as dificuldades financeiras de Filipe aumentavam, e que cada mês de guerra acrescentaria a tensão imposta aos recursos espanhóis, aumentando as possibilidades de uma nova onda de agitação nas fileiras. A heróica resistência de Leida e a decisão de Guilherme e dos Estados Sociais da Holanda de inun­darem os campos em redor, salvaram a situação, e talvez a revolta. En­quanto as barcaças de socorro se aproximavam da cidade sobre as águas que subiam, os espanhóis, mergulhados até à cintura em água e lama, começaram a retirar. A 3 de Outubro de 1574 o cerco foi levantado. Guilherme de Orange, um rebelde transformado em homem de Estado, comemorou a libertação de Leida fundando uma universidade.

Novas perturbações rebentaram no exército espanhol após o fra­casso de Leida. A indisciplina e os excessos dos soldados estavam rapi­damente a afastar os próprios defensores da causa régia, e Requescns via-se agora sob a forte pressão dos Estados Gerais no sentido de retirar as suas forças e restaurar os antigos privilégios dos Países Baixos. Sem dinheiro para continuar a guerra, era imperativo fazer uma nova ten­tativa de acordo com Orange. Através da mediação de Maximiliano 11 iniciou-se em Breda uma conferência, em Fevereiro de 1575, cnt n· representantes de Requesens e os deputados dos Estados Sociais da I lo landa e da Zelândia. Requesens estava disposto a conceder a retirada dos soldados e funcionários espanhóis, mas apenas sob a condição dl' 11

catolicismo se manter como religião única nos Países Baixos. T od JlH

os protestantes seriam forçados a abandonar o país, mas dispo• ia111 tk dez anos para resolver os seus assuntos.

I X/

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Foi a recusa de Requesens de garantir a liberdade de consciência que, após cinco meses de discussão, levou à ruptura das negociações. Havia fortes indicações de que a maioria dos católicos dos Países Baixos não se opunha à tolerância como meio necessário de pôr fim à guerra. Mas Requesens não queria, e 11:ão podia, comprometer o seu senhor numa cedência que era extremamente desagradável a ambos.

O fracasso da conferência de Breda quanto ao problema crucial da tolerância tornou evidente que a questão religiosa se transformara agora num assunto de grande importância aos olhos dos rebeldes. Tal­vez Requesens tenha subestimado o elemento religioso da rebelião assim que chegou; tratava-se de um erro de cálculo compreensível, quando os calvinistas eram apenas uma reduzida minoria -particularmente nas províncias revoltadas do norte- e quando toda a população, incluindo aqueles cujo catolicismo não estava em dúvida, se voltava indignada contra o regime de Alba. Mas a situação alterou-se radicalmente nos Países Baixos nos quinze meses que mediaram a sua chegada e a aber­tura da conferência de Breda. Com efeito, estava a ocorrer uma revo­lução no interior da revolução -uma revolução que na Holanda e na Zelândia conduzia os calvinistas ao poder.

Os calvinistas mais zelosos de entre os rebeldes viram a derrota dos espanhóis na Holanda e na Zelândia como um preliminar essencial à obtenção do seu objectivo principal - o estabelecimento nessas províncias da religião reformada segundo os preceitos de Genebra. Sempre que possível tinham assegurado a entrada dos seus correligionários calvinistas no governo municipal e haviam tomado todas as medidas necessárias para assegurar que a po­pulaça conhecesse a Palavra do Senhor. Em 1574, reuniu-se em Dort um sínodo geral, tendo sido tomadas medidas para o estabeleci­mento de igrejas calvinistas em todas as cidades. Mesmo com todas as vantagens do apoio oficial, no entanto, o calvinismo não obteve o rápido sucesso que talvez fosse esperado - o povo continuava inexplicavel­mente surdo ao evangelho que os ministros pregavam. Seriam necessá­rios quarenta anos de esforços intensos e a imigração de grande número de calvinistas das províncias do sul até metade da população da Holanda e da Zelândia abandonar formalmente a sua obediência a Roma.

No entanto, apesar de todas as dificuldades no caminho da con­versão, as províncias da Holanda e da Zelândia estavam a transfor­mar-se no núcleo de um Estado oficialmente calvinista. Dado o facto de haver uma guerra contra a Espanha, isto era inevitável. Guilherme de Orange, sendo um convertido ao calvinismo, continuava a ser um politique de coração; mas sem o auxílio dos calvinistas, sabia que nunca poderia ter esperanças de ganhar. Só os calvinistas possuíam simultanea­mente o moral e a organização indispensável para o êxito. Dado que o seu credo era um credo militante, adequado a tempos de militância Orange não tinha outra alternativa senão adaptá-los como parceiros. Os calvinistas dos Países Baixos tiveram assim oportunidade de esta­belecer e propagar o seu credo, ao contrário dos seus irmãos do outro

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lado do mar, em Inglaterra, que não as conseguiram obl r. Nos Países Baixos - tal como na Escócia durante a regência de Muria d · Lo­rena 17 - os calvinistas eram identificados com a causa nacional · ·nltn a única seita protestante capaz de mobilizar a populaçã para ílllUI lula prolongada contra um regime estrangeiro. Em Inglaterra, por oulro lado, desde a morte de Maria Tudor que o regime não era católico ro­mano nem estava associado a uma potência estrangeira. A própria lsab ·I identificava-se completamente com a causa nacional e protestant<..:, <..:m especial após a sua excomunhão, em 1570. Ta_m?ém em Inglatcrr.a. n_~to havia guerra civil, o que teria permitido aos calvm1stas agarrarem a mte1a­tiva como organizadores efectivos da revolta. Isabel conseguia portanto manter os seus presbiterianos à distância e prosseguir uma política reli­giosa moderada, o que era impossível para Guilherme de Orange, no auge ela sua luta contra a Espanha.

A necessidade de fazer concessões religiosas aos calvinistas em troca do seu apoio activo na guerra afectava necessariamente as possi­bilidades de Orange atingir os seus objectivos políticos. O seu principal objectivo consistia em assegurar a «liberdade» -religiosa _e c!vil-.para todas as províncias dos Países Baixos. Em 1575 este obJeCtlVO deixara de parecer completamente irrealista. Se bem que o exército de Reque­sens tivesse renovado a ofensiva com algum êxito após o fracasso das discussões de Breda, a suspensão dos pagamentos de Filipe 11 aos seus banqueiros em 1 de Setembro de 1575 18 teve inevitavelmente consequên­cias drásticas para os seus exércitos no estrangeiro. O próprio Reque­sens era um homem doente e morreu em 5 de Março de 1576, deixando um vácuo no centro da go~ernação que o conselho de Estado dos Países B·aixos era incapaz de preencher. Enquanto o exército, ~e~. chefe e sem pagamento, se amotinava novamente, os Estados provmcm1s come­çaram a preocupar-se com a sua própria defesa na ausência de qualquer poder central efectivo.

Era este o momento que Orange esperava. Enquanto os fanáticos calvinistas pudessem ser mantidos sob controlo, ele poderia finalmente realizar a sua grande ambição, que consistia em combinar as dezassete províncias num mesmo movimento unido de revolta. A 4 de Setembro de 1576 organizou a prisão dos membros realistas do conselho de Estado e persuadiu o conselho reconstituído a convocar uma reunião dos Estados Gerais, à qual deveriam estar presentes delegados dos Estados da Ho­landa e da Zelândia assim como deputados das províncias do sul. O mo­vimento no sul er~ dirigido por nobres descontentes, na sua maioria católicos, e não havia garantia de estes se entenderem com os deputados do norte. Mas, a 4 de Novembro, os tercios perderam a cabeça e saquea­ram Antuérpia. Os horrores da «fúria espanhola» - onze dias de

11 Ver atrás, ca;pí.tulo 1. 18 Ver o crupítulo seguinte.

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pilhagem e massacre, em que mais de 7 000 cidadãos e soldados perde­ram a vida- foram suficientes para unir o norte e o sul num mesmo movimento de revolta contra a Espanha. Através da Paz de Gante, de 8 de Novembro, os Estados Gerais e os delegados de Guilherme de Orange e dos Estados da Holanda e da Zelândia concordaram em colaborar na expulsão dos espanhóis. E concordaram ainda, enquanto se esperava por uma reunião especial dos Estados Gerais, que os éditos de Filipe 11 contra a heresia fossem suspensos e que fosse dada aos cal­vinistas liberdade de culto na Holanda e na Zelândia, desde que não interferissem com o culto católico nos outros locais.

A Paz de Gante de 157 6 foi, com efeito, o equivalente nos Países Baixos à paz de Augsburgo de 1555- uma tentativa de resolver as divergências religiosas das dezassete províncias numa base regional. Dado que existiam numerosos protestantes no sul, e ainda mais católicos no norte, era improvável que esta paz constituísse mais do que uma trégua temporária. No entanto constituiu uma base de cooperação, como D. João de Áustria descobriu à sua custa quando chegou aos Países Baixos como sucessor de Requesens em Novembro de 1576. Viu-se imediatamente confrontado com a exigência generalizada de confirmação da Paz de Gante. Para os chefes do norte, isso significava não só a retirada dos tercios mas também a aceitação do acordo religioso. Para o duque de Aerschot e os chefes predominantemente católicos do sul, significava essencialmente a retirada das tropas. Como D. João chegara sem soldados nem dinheiro, não teve alternativa senão concordar. A 12 de Fevereiro de 1577 assinou com os Estados Gerais o Édito Perpétuo, segundo o qual os tercios deveriam abandonar o país. Mas o Édito incluía uma promessa de manter e restaurar em toda a parte a religião católica; e a Holanda e a Zelândia protestaram, evidentemente, recusando-se a reco­nhecer D. João como seu governador geral.

A partida dos soldados dos Países Baixos em Março de 1577 eliminou o principal incentivo à continuação da cooperação entre o norte e o sul, se bem que o comportamento de D. João alguns meses mais tarde os voltasse a juntar temporariamente. Guilherme de Orange tinha completa consciência de que a preservação da unidade estava agora suspensa do delgado fio da tolerância pelos credos religiosos de cada um. Mas verificou ser impossível conter os calvinistas. Nas cida­des do Brabante e da Flandres o calvinismo dispunha de um apoio entusiasta, particularmente entre os artesãos. Existia, por outro lado, uma longa tradição de agitação popular nessas cidades; e em 1577 e 1578 o calvinismo e a agitação popular uniram-se numa série de levan­tamentos contra o governo dos magistrados católicos. Usando as mes­mas técnicas que tinham sido aperfeiçoadas na guerra com os espa­nhóis, os rebeldes calvinistas obtiveram o controlo das administrações das cidades e tomaram a liberdade de crença exclusivamente para si próprios.

Numa tentativa desesperada de preservar a frágil união entre as dezassete províncias, Orange e os seus amigos apresentaram aos Es-

190

lados Gerais, no Verão de 1578, os planos de uma «p~z rcligio~~~ - Filipe Du Plessis-Mornay, que escrevera uma defesa da atttudc P~l~tt1.q11e c~ França na época da <<paz de Monsieur», era agora uttltzado. pot Guilherme para escrever um tratado semelhante p_ara os Puí~cs_ Batxos, o qual deveria mostrar que nenhum credo podena ser St~pnnmlo pela violência ou pela força das armas. Mas o apelo_ à_ razão can~ ~~~1. ~)rei~<~~ moucas. Para Pedro Dathenus- um dos mtmstros calvtntsto~s m.us veementes-, Guilherme de Orange não era melhor d? que ~qu~lqu :r ·1teu pois mudava de religião como quem muda de camtsa. Nao c pot ­~ant~ de surpreender que a paz relig~osa n~sc_esse já morta. _Cal~mtado simultaneamente pelos calvinistas mais radtcats e pelo~ , p~rttdános do catolicismo, Orange verificou por si mesmo o q_ue outros Ja tmham d sco~ bcrto- que a Polónia, afinal, ~ra. sui g;n~ns, e que pelo menos P01

enquanto não existia qualquer via mtermedta.

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IX

O AUMENTO DO PODER ESPANHOl ..

1. Os problemas de Filipe 11

Os anos de meados da década de 70 foram anos de agudas difi­culdades para Filipe II de Espanha. No norte de Africa, as esperanças e sonhos de meio século foram esmagados pela queda de Túnis nas mãos de Euldj Ali, em 1574 1• Nos Países Baixos, Requesens fracassara em reconquistar a confiança de uma população amargamente alienada pela política do duque de Alba e pelo bárbaro comportamento do exército real. Mas em 1574 e 1575 tudo era ultrapassado pela mais premente das dificuldades de Filipe, o aterrador problema de um défice em rápido aumento.

A guerra no Mediterrâneo e nos Países Baixos impunha pressões cada vez maiores ao sistema financeiro da Monarquia espanhola e à economia de Castela. O cardeal Granvelle, vice-rei de Nápoles entre 1571 e 1575, e o duque de Terranova, presidente nativo da Sicília, tornaram claro nas suas cartas a Madrid que as exigências da guerra contra os turcos estavam a criar alarmantes défices orçamentais nos seus territórios e a impôr graves tensões aos recursos locais. Isto, por sua vez, obrigava-os a recorrerem a expedientes financeiros indeGejáveis, como a venda de cargos públicos e da terra e direitos de jurisdição. régios, o que inevitavelmente aumentava o poder das classes privile­giadas à custa da autoridade régia. Muitos dos ganhos obtidos pela coroa nos seus territórios italianos durante a primeira metade do século eram assim reduzidos na sua segunda metade pelas exigências da guerra no Mediterrâneo e pelas inexoráveis exigências da política ex­terna dos Habsburgo. Mas consideravam cada vez mais difícil satisfazer os custos do seu próprio governo e defesa; e Madrid, por seu lado, nunca estava satisfeita.

1 Ver !lltrãs, C!llpítulo 6.

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O facto de os rendimentos das vice-realezas italianas não conse­l',llircm acompanhar o aumento dos gastos apenas servia para aumen­tar o fardo, já considerável, suportado pelos vassalos do rei em Castcla. t•:m meados dos anos 70 o orçamento total da coroa espanhola atingia IIH região os seis milhões de ducados por ano. DeDte número, cerca de 11111 quinto era fornecido pelas contribuições eclesiásticas dos domínios do rei: o subsidio e as tercias reates, que eram impostos aplicados aos rl·ndimentos do clero; a cruzada - os rendimentos das vendas das bulas para a «cruzada», tradicionalmente concedidos pelo papado à coroa (•spanhola; e o excusado, um novo impo3to que consistia no dízimo da parte mais valiosa da propriedade de cada paróquia castelhana, pela primeira vez cedida a Filipe por Pio V em 1567 a fim de o ajudar a pagar a supressão da heresia na Flandres. A maior parte do restante derivava de duas fontes principais : as remessas de prata das ÍndiaG e os impostos pagos por Castela. Estes impo:>tos incluíam os servicios vota­dos pelas Cortes de Castela, e um certo número de fontes de rendimento ·xtra-parlamentares. Mas o imposto mais importante em Castela era agora a alcabala, o imposto sobre as vendas que as cidades castelhanas satisfaziam pagando uma soma por junto designada encabezamiento.

Dado que estas diversas fonteJ de rendimento se tornavam cada vez mais inadequadas para a cobertura das crescentes despesas provo­cadas pela guerra, a Coroa via .. se cada vez mais na dependência dos seus banqueiros para cobrir essa profunda lacuna através do crédito. Estes banqueiros, c particularmente os genoveses, eram indispensáveis à sobrevivência da Monarquia. Os asientos, ou contratos, de Filipe com os genoveses eram a única maneira de garantir a existência de dinheiro para o pagamento ao exército nos Países Baixos no caso de um atraso da esquadra-tesouro, ou de uma diminuição nos pagamentos da alca­bala castelhana. Mas, como é natural, os genoveses exigiam um elevado preço pelos. seus serviços. Exigiam juros elevados - e cada vez mais elevados - pelos seus empréstimos; obtinham da coroa licenças espe­ciais para a exportação de lingotes da Espanha; e manobravam no sen­tido de se colocarem numa posição em que pudessem manipular em seu benefício o elaborado si;;tema de crédito dos juros, ou títulos de cré­dito, através dos quais a coroa procurava satisfazer em Castela as suas necessidades fiscais.

Em inícios dos anos 70 a coroa era fortemente devedora aos seus banqueiros genoveses que, por sua vez, se viram objecto de uma cres­cente hostilidade popular em Castela. Quando em 1574 o rei pediu às Cortes castelhanas um aumento substancial dos impostos, os deputados aproveitaram a ocasião para se libertarem do odiado sistema de asien­tos, que estava a entregar Castela às mãos vorazes dos. genovcses. No entanto, concordaram com um aumento maciço do encabezamiento para satisfação da alcabala, que agora se tornava de facto naquilo que não fora durante muito tempo- o equivalente a um imposto de 10 Yo s brc as vendas. Mas depressa se tornou evidente que o aumento era perfeita-

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mente irrealista em termo.:> da capacidade fiscal castelhana; e em 1577 Filipe foi forçado e reduzir o encabezamiento de um quarto, para cerca de 2 700 000 ducados por ano, mantendo-se neste valor elevado du­rante o resto do seu reinado.

Um futuro aumento das .rendas provenientes dos impostos em Castela, mesmo que pudesse ser colectado, não permitiria aliviar os problemas actuais. Face a dívidas que lhe era impossível pagar, o rei decretou em 1 de Setembro de 1575 a suspensão de todos os pagamen­tos de juros aos banqueiros, e declarou ilegais todos os asientos negocia­dos nos últimos quinze anos. A coroa seguia de facto o precedente de 1557 e recusava-se a pagar as suas dívidas.

Se a coroa tinha a esperança de utilizar este método para enfren­tar as exigências das Cortes e aliviar o estrangulamento genovês das suas finanças e da economia de Castela, depressa se viu desiludida. Os genoveses só podiam ser dispensados se existissem banqueiros em quan­tidade igualmente substancial de outras nacionalidades que pudessem ocupar o lugar daqueles. Mas não existiam. Se bem que o mundo dos negócios de Castela incluísse uma ou duas figuras com alguma estatura, como Simão Ruiz, o bem conhecido mercador de Medina dei Campo, o capitalismo castelhano tinha proporções modestas, não dispondo da perícia e da confiança necessárias para penetrar ousadamente no campo da banca internacional. Para além da própria Castela, Filipe conseguiu recorrer aos portugueses, florentinos e lombardos, bem como aos eternos e resistentes Fugger. Mas nenhum destes, actuando isolada­mente ou em conjunto, se mostrou capaz de obter somas suficientes para manter em boa ordem de funcionamento a complexa máquina finan­ceira destinada ao pagamento regular do exército na Flandres. Conse­quentemente, enquanto os genoveses se punham de fora, com calma satisfação, ou intervinham subrepticiamente procurando sabotar os es­forços dos seus rivais, a estrutura de crédito nos Países Baixos desmo­ronava-se e arruinava--se. O motim dos tercios e o saque de Antuérpia a 4 de Novembro de 1576 deveram-se directamente ao fracasso dos ban­queiros castelhanos e internacionais em colmatar o vazio deixado pelo desaparecimento dos genoveses. Não podia ter havido prova mais deci­siva da verdade daquilo que os próprios genoveses sempre tinhar afir­mado - que eram indispensáveis à coroa espanhola.

Filipe li tirou a conclusão inevitável do fiasco dos Países Baixos. A 5 de Dezembro de 1577 foi conseguido um acordo, conhecido por medio general, segundo o qual ambas as partes faziam concessões e a coroa revogava o decreto de suspensão de 1575. Nas décadas que se seguiram, os genoveses ocuparam uma posição dominante. Se bem que Filipe se lançasse, sempre que possível, em esperançosos namoros com o próspero Grão-Duque da Toscânia, Francisco de Médicis, os recursos de crédito de Florença não se assemelhavam infelizmente aos de Génova. Os genoveses conheciam a força da sua posição e aproveitaram-na da melhor forma possível. Como senhores do bulhão americano que era descarregado em Sevilha, dominavam as rotas da prata na Europa e o

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seu sistema de trocas. Este sistema girava em torno da «feira de Be­sançon», primeiramente estabelecida em Besançon, no F ranco- andado, em 1534, e depois transferida permanentemente para Placência, em 1579. Durante as décadas de 80 e 90 estas feiras trimestrais transformaram-se na grande sala europeia de liquidação das transacções financeiras. Era em Placência que se fixavam as taxas de câmbio, se pagavam as antigas dívidas e se contraíam novas e que os reaTes de prata castelhanos eram comprados, vendidos e trocados por letras de câmbio e pelo ouro neces­~ários a certos pagamentos essenciais, incluindo o do exército na Flan­dres. Do complexo Génova-Placência, novos caminhos monetários se abriam através do continente, ligando a Espanha, a Itália e a Flandres numa apertada rede financeira. No passado, a prata americana desti­nada aos Países Baixos era aventurosamente enviada em navios para Antuérpia a partir de Laredo, ou ocasionalmente enviada por terra através da França. Mas, a partir dos anos 70, começou a seguir cada vez mais a estrada de Sevilha para Madrid e Barcelona, onde era colo­cada a bordo de um navio que a transportava para Génova. Num mundo nnde a prata era rainha, a grande importância da via Barcelona-Génova trouxe de novo a primeira para a principal corrente de actividade eco­nómica, criando um novo· estímulo para os grupos de bandidos que cada vez mais perturbavam a vida da Catalunha.

Com efeito, era a prata das índias o que mais interessava aos banqueiros e aos bandidos; e, em finais da década de 70, esta prata começava a afluir a Sevilha em quantidades sem paralelo. A exploração intensiva das minas americanas e o uso do tratamento de mercúrio para refinar a prata do Perú começavam a dar resultados significativos. No quinquénio de 1571-1575, cerca de quatro milhões. de ducados chegaram a Sevilha com destino à coroa; em 1576-80, oito milhões; e em 1581-85, nove milhões de ducados- isto é, quase dois milhões de ducados por nno 2• A penúria que afectara Filipe TI no início dos anos 70 e o forçara a repudiar as suas dívidas em 1575, começava portanto a desaparecer quando a década se aproximava do fim. À medida que o comércio f ransatlântico atingia novos cumes de prosperidade e cresciam as remes­sas de prata destinadas tanto ao rei como aos mercadores, a confiança renascia. Havia uma nova sensação de disponibilidade e expansão no mundo das finanças internacionais; e também um novo sentido de ex­pansão nos projectos de Filipe TI.

Até meados dos anos 70, Filipe estivera fortemente comprome­f ido numa difícil operação de contensão, destinada a travar a ameaça f urca no Mediterrâneo, ao mesmo tempo que dominava os rebeldes nos Países Baixos. O espaço de manobra estivera grandemente limitado, e o dinheiro sempre fora curto. Mas agora, talvez pela primeira vez durante o seu reinado, havia algumas perspectivas de o rei conseguir tomar a

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iniciativa. Surgiam novas oportunidades, particularmente em Portugal 3•

Talvez apesar de tudo se pudesse restaurar a situação nos Países Baixos e a Monarquia espanhola pudesse finalmente demonstrar todo o seu poder ao mundo. Filipe tinha- ou esperava ter - os recursos financeiros necessários a uma política mais ambiciosa. Poderia ainda, em resultado do seu acordo com os genoveses, contar com uma máquina para a mo­bilização desses recursos e a sua utilização nos locais onde fossem mais necessários. Mas teria igualmente ministros com a visão necessária para o aconselharem, e subordinados suficientemente eficazes para executa­rem com êxito as suas intenções?

A qualidade dos servidores de Filipe II em meados dos anos 70 não era nada impressionante, tanto na corte como nos Países Baixos. O príncipe de Eboli morrera em 1573 e o duque de Alba tinha caído em desgraça. Privados da direcção Eboli, os opositores de Alba tinham reconstituído a sua facção em torno das pessoas de Gaspar de Quiroga, arcebispo de Toledo, e de Pedro Fajardo, o terceiro marquês de Los Vélez. Mas quem verdadeiramente animava a facção era o secretário real, António Pérez. Vaidoso, calmo e insinuante, Pérez adquiria uma notável influência junto do rei desde que sucedera no cargo a seu pai, em 1566. Filipe, apesar de todo o seu infatigável engenho- esses intermináveis dias e noites gastos lidando com documentos que vinham de todas as partes do globo - necessitava de conselheiros e confidentes. Parece ter instintivamente evitado e desconfiado de personalidades enér­gicas, como ·o grande duque de Alba. Em vez deles, recorria a figuras mais discretas e incolores - primeiro o príndpe de Eboli, e agora Antó­nio Pérez. Em meados doo anos 70 o rei e o seu secretário tinham estabelecido uma forte ligação de trabalho e Pérez começara a tomar cada vez maiores liberdades com a confiança do seu senhor. Procurando sempre algum pequeno lucro privado, Pérez sabia tudo o que se passava desde Lisboa até Antuérpia, através de uma rede privada de amigos com cargos elevados e de informadores ubíquos.

Foi sob o conselho de Pérez e dos seus amigos no conselho que o rei designou o meio-Irmão, D. João de Áustria, para suceder a Reque­sens como governador dos Países Baixos, em 1576. Esta designação era, à primeira vista, uma atitude hábil. D. João, como filho de Carlos V e ' vencedor de Lepanto, gozava de um prestígio único. Era neste prestígio que o rei e Pérez punham as suas esperanças de uma solução do pro­blema dos Países Baixos, pois D. João não se apresentaria como um guerreiro mas como um príncipe de sangue real, levando consigo o ramo de oliveira da paz. As suas instruções condiziam com a política tradi­cional da facção Eboli. Devia pacificar e conciliar, reconhecendo for­malmente em nome do rei os direitos e liberdades tradicionais dos Países Baixos.

3 Vier a~dtrunt:Je, Illeste •08.1Píl1rulo.

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O único inconveniente desta ideia, de outros pontos dt: vista admi­rável, ~ra o facto de D. João não ser apropriado para est · pnpl'l . Mlldrid necess1tava de um homem que fizesse a paz, e em vez disso l'llvinu llltt gue~reiro- um guerreiro sem homens nem dinheiro. Nada pudcria ll'r s~rv1do ?Ie~hor para aumentar as frustrações de um homem já l'rustradu. Este pnnc1pe ex.tre~~mente inseguro, desesperadamente à procura do c~rgo e .da respe1tab1hdade de que o seu nascimento ilegítimo parceiaut tc-1<_> pnvado, gastou a vida perseguindo arco-íris que talvez o con­duzissem a uma f~gidia coroa de ouro. Depois de Lepanto, Túnis c a coroa de_ uma Africa conquistada ... Após os Países Baixos, a Ingla­terra e a mao de uma sequestrada Maria, Rainha da Escócia... Cada sonho era mais grandioso do que o anterior, e cada desilusão· correspon­dentemente mais amarga. A António Pérez, que não tinha coração mas possuía uma percepção infalível dos corações dos outros homens agra­da.va-~he deixar D. João, sonhar os seus sonhos. Mas procurava' ser o pnme1ro a saber o contendo destes, dando a D. João um secretário que era um dos seus confidentes, João de Escobedo. . ~esm? que D. João fosse diferente do que era, a sua missão não tm~a a partida qualquer esperança de êxito. A sua chegada aos Países Ba1xos e~ Nove~bro de 1576 coincidiu com o saque de Antuérpia pelos tercws amotmados e por pagar, tendo tido de enfrentar imediata­mente a irada exigência de uns Países Baixos unidos de que as tropas espanholas abandonassem o país. O Édito Perpétuo de Fevereiro de 1577, que foi obrigado a assinar, incluía nos seus termos a evacuação por t~rra dos _soldados, num prazo de vinte dias - cláusula que impe­di~ D. Joao de tentar e~pregá-los na sua mais cara ambição, a con­qmsta de Inglaterra e a libertação de Maria, Rainha da Escócia. Sem tropas não podia invadir a Inglaterra nem impor a paz nos Países Baixos e faltavam-lhe a autoridade e a decisão nece::;sárias para praticar um~ política de reconciliação em que, aliás, ele próprio não acreditava. Dentro em pouco começava a enviar para Madrid urgentes pedidos de h~mens e dinheiro, co~ os quais lhe fosse possível recomeçar a guerra. D1spunha agora do apo1o entusiástico do seu secretário Escobedo - um cão. de guarda transformado em cão de luxo, pois Escobedo·, tal como mmtos outros antes dele, deixara-se cativar pelo fácil encanto pessoal de

D. Jo~o e p~las suas ide~as ":is~onárias. No verão de 1577, enquanto D. J~ao rummava a sua mact1v1dade forçada, Escobedo foi enviado a Madnd para apresentar pessoalmente o seu caso perante Pérez e o rei. ~as c_!legou um momento em que D. João já não aguentava mais a sua sltuaçao, e a 24 de Julho apoderou-se precipitadamente do castelo de Namur.

A acção precipitada de D. João constituía um gesto evidente de desaf~o ~ política d~ ~onciliação declarada por Madrid e, como tal, só contn~mm pa~a a~ duv1das late?tes do rei quanto à confiança que poderia depositar no 1rmao. O aparecimento de Escobedo em Madrid em nada serviu para afastar essas dúvidas. O secretário de D. João trabalhava evidentemente de mãos dadas com o seu senhor. Sabia-se que abordara

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em privado o papa, em nome de D. João, procurando obter auxílio ~ara a inva~ão de Inglaterra; e pedia agora, com insolente avidez, que fossem enviadas tropas e dinheiro para os Países Baixos. António Pérez, que anteriormente vira em Escobedo um útil agente secreto, come­ç~va agora a_pensar ~ele como 11m rival potencialmente perigoso. Além disso, conhecia demasiados segredos -incluindo, talvez, segredos sobre a própria relação entre Pérez e os rebeldes dos Países Baixos, o que daria cabo de Pérez se alguma vez chegasse aos ouvidos do rei. Durante o outono de 1577, Pérez convenceu-se de que a sua própria sobrevivência exigia a morte de Escobedo; e descortinou na natural desconfiança do rei relativamente a D. João e às suas ambições um meio ideal de realizar o seu objectivo.

As sementes da dúvida na mente do rei foram cuidadosamente regadas pelo seu secretário. D. João, como o rei bem sabia, tinha os olhos postos no trono inglês. Estaria inteiramente fora de causa a pos­sibilidade de o trono espanhol também figurar nos seus esquemas? E não seria Escobedo o gênio mau de D. João, subtilmente encora­jando os grandes projectos do seu senhor? Mas tomaram-se todos os cuidados no sentido de não provocar as suspeitas de D. João, ao mesmo tempo que se compilava cuidadosamente o «dossier» contra Escobedo. O próprio Filipe foi forçado a reconhecer o fracasso da sua política conciliadora quando os Estados Gerais dos Países. Baixos retiraram a sua obediência a D. João em Dezembro de 1577, e proclamaram gover­nador-geral ~ arquiduque Matias, o terceiro dos filhos de Maximiliano 11, em sua substituição. Quando D. João, tendo reconstituído o seu exército no Luxemburgo, conseguiu uma notável vitória sobre as forças rebeldes em Gembloux, em Janeiro de 1578, o rei enviou-lhe uma carta de congratulações. Mas, ao mesmo tempo que a escrevia, convencia-se de que razões de estado exigiam a morte de Escobedo. Quando finalmente se decidiu, só comunicou a sua decisão a António Pérez e ao marquês de Los Vélez. Na noite de 31 de Março de 1578, depois de três tenta­tivas de envenenamento terem fracassado, Escobedo foi morto numa rua de Madrid por assassinos desconhecidos.

O assassínio de Escobedo constituiu um golpe esmagador nos pro­jectos e ambições de D. João, que depressa adivinhou quem era o ' verdadeiro responsável. Daí em diante, não enviou mais cartas a António Pérez. Descobriu que, inevitavelmente, a sua influência na corte desa­parecera; o rei deixou de se interessar por ele, mantendo-o à míngua de dinheiro. Desiludido, amargurado, com a confiança destruída, D. João morreu de tifo, com trinta e três anos de idade. No leito de morte confiou o comando do exército ao sobrinho, Alexandre Far­nese, príncipe de Parma. Ele próprio indicou ao confessor o seu amargo epitáfio: «Durante toda a minha vida não tive um pedaço de terra a que pudesse chamar meu. Saí nu do ventre da minha mãe, e nu voltarei a ele».

A morte de D. João não ajudou, ao contrário do que seria de esperar, a enterrar o fantasma de Escobedo. Pelo contrário, a chegada

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a Madrid dos documentos privados de D. João contribuiu para sugerir a um Filipe incomodado que talvez tivesse sido conivente na morte de um homem inocente. Os amigos e familiares de Escobcdo gritavam por justiça; e um outm secretário real, Mateus Vásquez, adivinhando a verdade, pressionou o rei no sentido de ser descoberto o culpado. A dc­.~agradável suspeita de que Pérez poderia tê-lo atraiçoado começou a perturbar Filipe no preciso momento em que iniciava negociações muito delicadas sobre a sucessão ao tmno português. Estas negociações esta­vam a ser conduzidas por António Pérez; e a inquietação do rei cresceu ao saber que Pérez mantinha uma amizade suspeita com a ambiosa viúva do príncipe de Eboli que, também ela, tinha os seus projcctos quanto ao futum da coroa portuguesa. Cada novo dado sobre as intri­gas de Pérez e da princesa de Eboli foi cuidadosamente guardado para uso futuro, até se tomar evidente para Filipe que o seu secretário o traíra sistematicamente.

Num momento em que as negociações portuguesas estavam a atin­gir o clímax, o rei necessitava urgentemente de conselheiros em quem pudesse verdadeiramente confiar. Um nome surgia acima de todos os outros - o do cardeal Granvelle, ligado à embaixada em Roma desde que abandonara a vice-realeza de Nápoles, em 1575. O cardeal possuía a integridade e a longa experiência de política e diplomacia que tanta falta faziam em Madrid nesse momento extremamente difícil para o destino da Monarquia e do rei. A 30 de Março de 1579 Filipe escre­veu a Granvelle, dizendo-lhe que a sua presença era urgentemente requerida na corte. Um outro homem foi 'convocado para o serviço real-Dom João de Idiáquez, filho de um dos secretários de Carlos V, recentemente nomeado em Veneza para a embaixada em Paris. Na noite de 28 de Julho, quando Granvelle se aproximava do Escoriai, a princesa de Eboli e António Pérez foram presos, para sua grande sur­presa e estupefacção da corte. Depois de Granvelle ter sido designado presidente do conselho da Itália e, de facto, primeiro ministro, e de Idiá­quez ser feito secretário encarregue dos despachos, o rei possuía a base de uma equipa administrativa à altura do momento. Eram estes os novos homens de que necessitava à sua volta- homens que viriam a ajudá-lo a aplicar a sua política, agora que as nuvens da bancarrota começavam a dissipar-se.

2. Portugal e os Açores

O cardeal Granvelle trouxe uma nova energia e uma velocidade pouco habitual aos processos de decisão do governo de Madrid. Como homem que paBsara longos anos na solidão, esperando pela convoca­tória régia que só agora viera, tão tarde na sua vida, observava com mal disfarçada impaciência os erros e hesitações de um rei que, clara­mente, não possuía as qualidades de heroísmo do grande Carlos V. Encontrava-se finalmente em posição de conferir uma firme direcção ao

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vacilante rumo da Monarquia espanhola e de aplicar a política vigorosa que durante tanto tempo em vão advogara. O momento, por outro lado, era propício. O contínuo e rápido aumento das remessas de prata americana permitia uma nova latitude nos projectos político3. As grau­das qualidades que Alexandre Farnese demonstrava já no governo dos Países Baixos abriam a possibilidáde de uma restauração de um poder efectivo da Espanha, que Granvelle considerava indispensável como condição prévia para novas tentativas de acordo. E talvez também fosse possível prosseguir uma política mais vigorosa e agressiva contra a França e a Inglaterra. Mas o problema mais premente, e aquele em que Filipe mais necessitava da sua ajuda, era a incorporação de Por­tugal na coroa espanhola.

A crise de sucessão em Portugal fora criada pela morte do jovem rei Sebastião na batalha de Alcácer Quibir, em 4 de Agosto de 1578. A sua morte fora tão desnecessária como a sua curta vida fora des­provida de frutos. Desde a infância que este jovem instável vivera obce­cado com a visão de uma cruzada em África contra os mouros e, final­mente, apresentou-se-lhe uma deslumbrante oportunidade em resultado de uma amarga luta dinástica no reino berbere de Fez. Em 1576 o sultão Mule1 Moamed foi expulso do trono por um tio que conse­guira garantir o apoio dos turcos. O sultão deposto apelou primeira­mente, e sem êxito, para o auxílio de Filipe li numa tentativa de recupe­ração do seu trono e, em seguida, recorreu ao rei de Portugal, cuja resposta foi bastante diferente. Os conselheiros de Sebastião, e o seu tio Filipe li, fizeram o possível por o dissuadir de se envolver pes­soalmente numa luta dinástica em Marrocos, mas Sebastião decidira-se pela aventma africana, e não se deixou convencer. Em Ãlcácer-Quibir, debaixo de um sol africano ofuscante, o exército português sofreu uma derrota desastrosa. A nata da nobreza portuguesa foi capturada ou tru­cidada e Sebastião e Mulei foram abandonados mortos no campo de batalha 4

O sucessor de Sebastião foi o tio-avô, o idoso, celibatário e epi­léptico cardeal Henrique. Poucas possibilidades havia de viver muito tempo, e menos ainda de produzir um herdeiro; e, com a sua morte, o problema da sucessão futura não era de modo algum claro. Os princi­pais pretendentes eram a duquesa de Bragança; Dom António, Prior do Crato, filho ilegítimo do irmão do cardeal Henrique, Luís; e Filipe Il de Espanha, através da sua mãe portuguesa, Isabel. Existiam ainda alguns outros pretendentes estrangeiro3 menos sérios, incluindo Manuel Felisberto da Sabóia, Ranuccio Farnese (filho de Alexandre Farnese)

4 Se bem que o corpo de Sebastião tivesse sido m!llis truroe recupe­rrudo ,pelos mouros e €nterre.do com a di'gnidade devida em Be~ém, o povo terve graiD.de relutância em acT.editar que o corpo fosse verdadeúrame:nte o do rei. Daí o estranho fenô-meno do Sebastianismo- a crença. que se man­teve durante gerações, de que Sebastião ainda se encontrava Vivo e voltaria um dii1a para reclamar o seu reino.

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e, mais improvavelmente, Catarina de Médicis, por th.:scender elo rei medieval portuguê3 Afonso III. Se bem que as pretensões de J1ilipc fos­sem mais fortes do que as dos seus rivais, o número c a irnporLAneia elos pretendentes transformaram imediatamente a sucessão portuguesa numa questão de grande preocupação internacional realçada pelo valor do prêmio. Com efeito, apesar de Portugal ser um pequeno país que passava por um período difícil, o seu valor potencial para qualquer fuluro pos­suidor era incalculável. Lisboa era a capital das. especiarias do mundo ocidental e o centro de um vasto império comercial que se estendia para leste até ao Oceano Índico e às Molucas e, para oeste, até ao Brasil. Se o rei de Espanha acrescentasse as ricas possessões portuguesas às que já possuía, a Inglaterra, a França e os holandeses teriam todas as razões para se alarmarem.

O maior entrave à pretensão de Filipe residia precisamente em já ser rei de Espanha. Portugal e Castela não morriam de amores e a maior parte dos portugueses não desejava ver o seu país incluído entre as muitas possessões de Coroa castelhana. Filipe era portanto obrigado a jogar 03 seus trunfos com grande senso táctico. Mas podia utilizar a habilidade diplomática do cardeal Granvelle, bem como os vastos conhe­cimentos dos homens e dos negócios portugueses de que dispunha Cris­tóvão de Moura, um português de origem que subira bastante nos favo­res da corte espanhola. O Prior do Crato, que fugiu ao cativeiro dos mouros em 1579, era inegavelmente popular na generalidade do país. Mas entre certos sectores influentes da sociedade portuguesa, algumas considerações actuavam a favor de uma associação mais íntima com a Espanha.

O próprio cardeal Henrique era irresoluto e fácil de persuadir. A nobreza encontrava-se desmoralizada pelo desastre de Alcácer Qui­bir, e necessitava desesperadamente da prata espanhola- que Moura se apressava a fornecer -para resgatar os seus muitos membros ainda em mãos dos mouro3. Os jesuítas, mal recebidos em Espanha, começa­ram a trabalhar a favor da causa espanhola, talvez na esperança de esta atitude lhes permitir ganhar a protecção do rei em toda a península e nas possessões ultramarinas de Espanha. Parte dos «cristãos novos» desejavam fugir do seu ghetto pmiuguês para a Espanha natal, apesar de temerem a Inquisição espanhola. Finalmente, as classes comerciais eram aliciadas pela perspectiva de uma maior participação no lucra­tivo comércio de Sevilha e do acesso à prata americana de que necessi­tavam para o seu próprio comércio no oriente.

Filipe II e Moura exploraram cuidadosamente estas oportuni­dades; mas a grande oposição popular e a possibilidade de uma inter­venção estrangeira a favor do Prior do Crato tornaram aconselhável, simultaneamente, manter de reserva um exército. Foram adquiridos arcabuzes e mosquetes em Itália; recrutaram-se soldados em Espanha c na Alemanha; e foram trazidos outros da Flandres; e, por insistência de Granvelle, o duque de Alba foi chamado do seu seu retiro forçado, dando­-se-lhe o comando do exército. Em finais de Janeiro de 1580 morreu o

2Ul

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cardeal-rei Henrique, deixancto um conselho de regentes a governar Portu­gal até ser escolhido um sucessor. Granvelle tinha consciência de que era necessário actuar rapidamente, pois o Prior do Crato estava a mobilizar o apoio popular. Não podia haver qualquer atraso. Instou com o rei para que ordenasse ao exército de Alba que passasse a fronteira. Um ultimato no sentido de aceitar Filipe como ·rei foi ignorado pelos portugueses e, em finais de Junho, as forças espanholas entraram no país. Os partidários de Dom António apenas opuseram uma resistência esporádica, e em quatro meses todo o reino caía nas mãos dos espanhóis.

Granvelle estava ansioso por reorganizar a administração portu­guesa e integrar Portugal na Monarquia espanhola. Mas Filipe, que por educação e temperamento era um grande defensor das garantias cons­titucionais, assegurara já aos seus novos súbditos que respeitaria as suas leis e formas de governo tradicionais. Portugal transformar-se-ia portanto num novo acrescento a essa federação frouxa de Estados e pro­víncias semiautónomos conhecida no mundo pelo nome de Monar­quia espanhola. Em Abril de 1581 as Cortes de Tomar reconheceram formalmente Filipe como rei de Portugal, em troca da garantia de preservação das leis e liberdades do país. O próprio Filipe permaneceu em Lisboa até 1583, mas foi acordado que, nos períodos de ausência do rei, o país seria governado por um membro da família real ou por um vice-rei de origem portuguesa. Também foi acordado que as insti­tuições políticas e representativas de Portugal deveriam manter-se sem modificações e que os castelhanos não deveriam aceder a cargos em Portugal ou nos seus territórios ultramarinos. Por outro lado, os caste­lhanos não poderiam participar na vida comercial de Portugal ou do seu império. Estas concessões de Filipe significavam que, apesar de a península se encontrar agora formalmente unida sob um mesmo mo­narca, Portugal se mantinha, mais ainda do que Aragão ou a Catalunha, um Estado semi-independente, associado à Coroa de Castela mas não integrado nela.

A união das coroas durou apenas sessenta anos, e foi definitiva­mente dissolvida pela revolução portuguesa de 1640. Os últimos anos desta ligação de modo nenhum foram felizes , mas nas primeiras fases ambas as partes conseguiram substanciais vantagens. O Portugal derro­tado em Alcácer Quibir necessitava do escudo de um poder mais forte, por detrás do qual recuperasse das suas feridas. Filipe, pelo seu lado, ganhava um milhão de novos súbditos e um valioso território com uma extensa costa atlântica, cujos portos e estaleiros dispunham de homens do mar experimentados e albergavam uma esquadra de cerca de 100 000 toneladas5• Ganhava ainda, e sem necessidade de lutar, um segundo impé-

s As esqua~diras espanhola e portugUJesa jllilitas tota1izavam agOO"a 250 000 a 300 000 toneladas. Este valor pode ser cO'IT!parllido CQIIll os Paises Baixos, 232 000 toneladas; a Alemanha, :HO 000; a França, 80 000; a Ingla­terra, 42 000. (Consultar A. P. Usher. «Spanish Ships and shipping in the 16th and 17th centuries», Facts and Factors in Economic History, Essa·ys presented by Edwin Gay, Oambridge, Mass, 1932, pp. 1:89-213. )

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rio ultramarino- a índia e a Africa portuguesa~, as Molucas c o Brasil. Tudo isto representava um enorme aumento de poder para a Monarquia espanhola, que agora surgia aos seus rivais como um co­losso invencível, espalhado por todo o globo.

Filipe ainda enfrentava de facto algumas dificuldades, c a viagem de circum-navegação de Sir Francis Drake realizada em 1577-80 recor­dava desagradavelmente que o monopólio ibérico da América c da Asia não estava livre dos corsários. Os súbditos da rainha de Inglaterra provocaram igualmente problemas noutros locais. A partir de 1580 os mercadores ingleses iniciaram o comércio com a Turquia, e Isabel entrou em negociações com El-Mansur, «O vitorioso», para cujo reino de Fez exportou madeira e munições em troca do açúcar e salitr~ de que necessitava. Enquanto os rivais de Espanha procuravam um ahado potencialmente útil em Fez, alimentavam simultaneamente esperanças de inverter o veredicto em Portugal. Foram encorajados a fazê-lo pelo Prior do Crato, que conseguiu fugir aos espanhóis e dirigir-se pri­meiro para a França e depois para Inglaterra. Em todos os lugares para onde ia denunciava o rei de Espanha e a sua perversidade, conse­guindo granjear uma vasta simpatia pelas suas pretensões ao trono.

Já há muito se compreendera nas capitais do norte da Europa que a fraqueza da Monarquia espanhola residia nas frágeis linhas d~ com~­nicação que ligavam entre si possessões espalhadas por uma area tao vasta. A sua sobrevivência dependia das vias oceânicas e, principal­mente do estreito fio transatlântico que ligava as minas de prata do Méxic~ e do Perú à Espanha metropolitana. De facto, havia muitos anos já que Guilherme de Orange sugerira a Gra~v~lle que .a melhor forma de os inimigos de Espanha a derrotarem consistia em pnvarem-na da prata das índias. Com os recentes êxitos de Drake e a fuga de Dom António de novo voltou à vida uma ideia que desde há muito fascinava os homens de Estado e os marinheiros.

Uma das ilhas dos Açores- a Ilha Terceira- declarara a sua obediência ao Prior do Crato. Se esta pudesse ser utilizado, como Dom António sugeria, como base para a conquista dos Açores, os ingleses e os franceses ficariam estrategicamente colocados junto às rotas da prata, e o próprio Dom António ficaria em posição de ~ecuperar Por­tugal. A ideia recomendava-se por si m~ma aos conselheiros de Is~b~l, e na primeira metade de 1581 foram feitos planos para uma expedtçao à Terceira sob a direcção de Drake. Depois de a ilha estar controlada, Drake ficaria em óptima posição para interceptar a frota da prata, ou para lançar um novo ataque nas Caraíbas,: A~temativamente, p~dcr i a utilizá-la como trampolim para a penetraçao mglesa no comérc1o de especiarias do leste - um projecto deslumbrante que já não parecia exceder as suas possibilidades desde a triunfante viagem à volta do globo.

Isabel, no entanto, começou a levantar objecções ao esq uema, c o Prior do Crato considerou conveniente procurar apoio noutro local. As suas ideias agradaram fortemente ao duque de Alençon, aos hugucnotes e aos holandeses, e tiveram uma aceitação surpreendentemente calo-

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rosa na corte de Henrique III, se bem que a discrição sugerisse que o próprio rei fosse mantido escrupulosamente ignorante de todo o assunto. Catarina de Médicis queria vingar-se de Filipe por a ter privado da «sua» coroa portuguesa, e desejava apoiar o plano do Prior do Crato de um ataque aos Açores. Na primavera de 1582 reuniu-se a esquadra em La Rochelle e foi colocada sob o · comando de Filipe Strozzi, um con­dottieri florentino que tinha os favore;; de Catarina. Mas os espiões de de Filipe mantinham-no convenientemente informado das intenções de Strozzi, e o melhor comandante naval espanhol, o marquês de Santa Cruz, recebeu o comando de um poderoso esquadrão que derrotou a expedição de Strozzi em fins de Julho. O próprio Strozzi foi morto; Dom António fugiu; e uma segunda expedição francesa aos Açores, na primavera de 1583, não teve maior êxito do que a precedente. O desafio representado pelo Prior do Crato tivera resposta adequada e, daí em diante, os Aççores transformaram-se na sentinela avançada das rotas da prata do Atlântico ibérico. Durante os restantes doze anos de vida, o exilado Prior do Crato viajou cheio de esperanças de uma corte para outra, fazendo os possíveis por interessar os príncipes europeus na recuperação do seu país natal e da sua coroa. Mas mesmo os mais calo­rosos apoiantes devem ter tido algumas dúvidas quanto aos seus pro­jectos, pois a Monarquia espanhola começava a parecer demasiado poderosa para ser desafiada com probabilidades de êxito.

3. A recuperação dos Países Baixos

Por muito interessante que fosse a anexação de Portugal, os Países Baixos eram «vinte vezes mais importantes do que o reino de Portugal» aos olhos do cardeal Granvelle. O destino da Monarquia espanhola seria, em última análise, determinado pela sua capacidade para resolver o problema dos holandeses. A confirmação pelo rei de Alexandre Far­nese como comandante do exército da Flandres significava que a Es­panha era agora representada nos Países Baixos por um homem de notória competência, que depressa revelou, além da sua capacidade militar, os dons de diplomacia e de homem de Estado que tão clara­mente faltavam a D. João. Apesar de educado na corte espanhola, continuava a ser um príncipe italiano, um perspicaz e flexível político e um patrono generoso. Generosidade, no entanto, que não era habitual nos príncipes do século dezasseis, na medida em que a acompanhava uma notável pontualidade no pagamento das suas dívidas -hábito que lhe tornou possível conseguir vastos créditos para o pagamento do seu exército em momentos em que o crédito do próprio Filipe se encon­trava temporariamente esgotado. Farnese era igualmente um hábil admi­nistrador e possuía o agudo senso prático da mãe, Margarida de Parma, que Granvelle e o rei desejavam associar a ele no governo dos Países Baixos. Margarida estava idosa e doente, e só com grande relu­tância concordou em sair de Itália para o seu antigo posto nos Países

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Baixos. Talvez Filipe a recompensasse finalmente com .a. ~ortalcza de Placência 6• O filho, no entanto, percebeu que qualquer divisao de pode­res nos Países Baixos poderia ter perigosas consequências. Recusou-se a aceitar quaisquer limitações à sua própria autoridade, e o longo c. dolo­roso período de querela entre mãe e filho só terminou com a parttda de Margarida dos Países Baixos, em 1583. , .

A gradual recuperação da boa estrela espanhola ~os. P~atses Ba1xos a partir de 1578 deve ser atribuída, simultaneamente, a. vtsao e compe­tência de Alexandre Farnese e aos crescentes desentendimentos entre as facções quanto à união dos Países Bai:~ws. F~rn~se ,concord__ava com o cardeal Granvelle, atribuindo enorme Importancm a questao do mo­mento mais oportuno. Havia um momento certo para fazer a p~z, e outro para fazer a guerra. Se bem que em 1578 a política de concihação estivesse ainda na ordem do dia, era evidente para Farnese que os er~os e fracassos de D. João tinham, pelo menos por enquanto, destrmdo qualquer possibilidade de uma paz honrosa. A negoci~ç~~ em .. bases razoáveis só se tornaria novamente possível quando· a VItona mllltar e diplomática tivesse começado a restaurar o comba}ido prestí?io da Es­panha. Era também evidente para Farnese 9ue so .era pmsivel ~es~o­brir uma solução para o problema dos Patses Baixos nas provt~cms valãs do sul. Se fosse possível restaurar a obediência destas ao rei em termos mutuamente satisfatórios, as províncias revoltosas do norte pode­riam sentir-se tentadas a seguir o mesmo caminho.

A·s possibilidades de Farnese de restaura~ a obediência no sul foram acrescidas pelo rápido aumento da tensao entre o nor!e e o sul no período que se seguiu à Paz de Gante de 15~6: As ten~a~LVas de Guilherme de Orange no sentido de controlar os calvimstas fanatic?s das cidades do sul fracassara visivelmente. Em Bruxelas, o poder cam ~as mãos de um comité de defesa - o Conselho dos Dez01to - escolhido pelas guildas. Em Gante, uma revolução em Outubro de 1577 de.u aos calvinistas e aos elementos populares o controlo do gov~rno da cidade. Foi constituído um comité segundo o modelo dos Dezmto de Bruxel~s e Gante, sob a direcção do burgomestre João van Hembyze e ~o f.ana­tico ministro calvinista Pedro Dathenus tornou-se o centro do radicahsmo religioso e social no sul. À medida que uma cidade. após outra caía so_b 0 controlo calvinista e popular, a nobreza do sul. ficava cada, ~ez mais alarmada. Foi a aversão a Orange e aos seus amigos democraticos qu.e os levou a, sob a direcção do duque de Aerschot, convidarem o arqm­duque austríaco Matias para substituir o depost.o D .. J?ão como gover­nador dos Países Baixos. Mas Orange consegum ehmmar o seu v~ll~o rival Aerschot. Usando os Dezoito para pressionar os Est!ldos Socm1s, conseguiu ser designado lugar-tenente de Matias em Janeiro de 157H.

6 Ver atrás, capi>tull'O 2.

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No mesmo mês, no entanto, D. João ganhou a batalha de Gem­bloux. A sua vitória trouxe à luz a oposição a Orange, liderada por um certo número de nobres católicos - Lalaing, Montigny, Heze - que co­mandavam as tropas valãs nos exércitos dos Estados. Estes «desconten­tes», como se designavam a si _próprios, preocupavam-se com o bem estar dos seus soldados, a quem os Estados Gerais não tinham pago. Mas partilhavam igualmente a preocupação geral da nobreza do sul pela difusão da ditadura popular e do extremismo calvinista nas cidades da Flandres e do Brabante.

De alguns pontos de vista, a situação do verão de 1578 asseme­lhava-se à do verão de 1566, quando a grande fúria iconoclasta abriu os olhos da nobreza para o:; perigos de uma revolução social que parecia alarmantemente próxima. Mas enquanto em 1566 os nobres podiam unir-se em torno de Margarida de Parma, essa possibilidade não existia em 1578, junto de figura tão descreditada como D. João de Áustria. O arquiduque Matias, por outro lado, mostrou não ser de confiança. Os Descontentes viraram-se portanto cheios de esperanças para o duque de Alençon, para quem os Países Baixos tinham sempre representado uma possibilidade de aplicação das suas frustradas ambições. A convite dos Estados Gerais, Alençon aceitou em Agosto de 1578 o grandilo­quente título de «defensor das liberdades dos Países Baixos contra a tirania dos espanhóis e seus apoiantes». Concordou igualmente em fornecer tropas aos Países Baixos, à sua própria custa.

O apelo dos Descontentes a Alençon e aos franceses repugnava aos calvinistas mais radicais, para quem o verdadeiro espírito dos Países Baixos revoltosos era representado pelo governo da cidade de Gante. Esta recorria agora a João Casimira, do Palatinado, como resposta calvinista ao duque de Alençon. Mas a posição dos calvinistas estava a tornar-se perigosa. Em 1 de Outubro de 1578, o dia da morte de D. João, o barão «descontente» de Montigny e as suas tropas valãs apoderaram-se da cidade de Menin, como preparação para um ataque a Gante. No preciso momento, portanto, em que Alexandre Farnese assu­mia o comando dos Países Baixos, os seus opositores preparavam-se para a guerra civil, apelando um dos lados para as tropas francesas e o outro para os alemães. Dir-se-ia que a união dos Países Baixos, criada por Orange, se estava a desfazer, apesar dos desesperados esforços deste último no sentido de manter o norte e o sul unidos. Numa última tentativa para preservar a unidade quando a sua política de paz religiosa fracas­sava, apoiou os descontentes no seu apelo a Alençon. Mas os excessos dos calvinistas tinham entretanto provocado uma vigorosa reacção cató­lica em todo o sul, e em Janeiro de 1579 as províncias valãs constituíram entre si a União de Arras. O norte, onde os regentes das cidades tinham conseguido controlar os extremistas e já não se encontravam ameaçados pela revolução social, como os seus colegas do sul, respondeu, como era de esperar, com a sua própria união - a União de Utreque. Depois de três difíceis anos o casamento de 1576 terminou em divórcio. De futuro, o norte e o sul dos Países Baixos seguiriam caminhos separados.

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Se bem que as províncias valãs tivessem cortado com Guilherme de Orange, isso não provocou automaticamente o seu regresso. à total obediência a Filipe de Espanha. Para os descontentes, o clomímo espa­nhol e o calvinista eram igualmente odiosos, e a difícil tarefa de Fa_r­nese consistia em vencer a sua antipatia pela continuação do domímo espanhol. Fê-lo através de uma combinação de diplomac_ia astuta c 0xitos militares. Através do tratado de Arra3 de 17 de Mato de 1579, os representantes do Artois, do Hainault e da Flan~res valã con:_orda­ram em respeitar a soberania de Filipe li e garantir a m_a~utençao do catolicismo como sua fé exclusiva. Em troca, Farnese rahflcou os seus privilégios, confirmou a Paz de Gante e o Édito P~rpétuo ~ _Prometeu o afastamento de todos os estrangeiros dos cargos ctv1s e m1htares. Con­cordou ainda com a forma de um exército nacional e com a partida dos tercios destas províncias. A retirada dos tercios tendia a aumentar as dificuldades militares de Farnese, mas esta cedência constituía o preço necessário pela reconciliação dos valãos e permitia-lhe ainda usar as suas tropas nas regiões dos Países Baixos que continuavam a desobedecer ao rei. Contava com um novo êxito militar para reforçar a sua proeza diplomática em Arras e obteve-o em finais de Junho de 15?~·. com a tomada de Maastricht, após um cerco de quatro meses - vtton~ que, como calculara, minou ainda mais o prestígio de Orange, particular­mente nas províncias da Flandres e do Brabante.

Se bem que as vagarosas negociações para um acordo de paz generalizado nos Países Baixos continuassem em Colónia sob a égide do Imperador, Farnese considerava um exercício inútil negociar com alguém tão intransigentemente anti-católico como o príncipe de Orange. A tarefa imediata, a seus olhos, consistia em aproveitar a vitória de Maastricht _e consolidar a autoridade régia nas províncias valãs recentemente reconci­liadas. Foi esta a sua maior e mais permanente realização nos anos que se seguiram. As dificuldades eram consideráveis, pois enfrentava, por um lado, as permanentes suspeitas da nobreza do sul, receosa de que a autonomia conseguida no tratado de Arras se desgastasse _gradual~ent_e , e, por outro, a inaptidão das tropas valãs para reconqmstar terntóno rebelde sem o auxílio espanhol. Chamar de novo as tropas espanholas significaria infringir o tratado de Arras e, porta~to, alienar os Descon­tentes cuja obediência apenas fora ganha precanamente.

'No Verão de 1580 um nobre «descontente», Guilherme de Hor­nes, senhor de Reze, foi descoberto conjurando a favor de Alençon. F~r­nese mandou prendê-lo e executá-lo, mas não confiscou as suas propnc­dades. Era essencial evitar uma repetição da sequência de acontecimen­tos de 1568, quando a perseguição de nobres suspeitos opusera fatal ­mente a Alba a classe dominante dos Países Baixos. Desta vez, os nobres foram acarinhados e subornados, recebendo garantias quanto aos seus títulos e direitos de propriedade. Após a sua experiência de poder popular entre 1576 e 1579, a maior parte deles não estava intcrcssa~a em ser demasiado agressiva. Gradualmente, e com alguma rclutâncta, concordaram com o novo regime - um regime em que a expansão da

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influência espanhola se tornou aceitável através de uma garantia de que os privilégios seriam escrupulosamente preservados. A sua concordân­cia ajudou a definir o carácter do novo Estado que começava a desen­volver-se no sul dos Países Baixos sob a direcção do príncipe de Parma. De têmpera e visão católicas e . aristocráticas, as províncias valãs dos Países Baixos espanhóis acabariam por no momento azado se situar entre as <<sociedades da Contra-Reforma» da Europa do século de­zasseis.

Os êxitos de Farnese, ao recuperar a fidelidade da classe diri­gente valã, abriram caminho para o passo seguinte - chamar de novo as tropas espanholas. Em inícios de 1582, os Estados Sociais de Artois, Hainault, Lille, Douai e Orchies (membros constituintes da União de Arras) foram convocados por Farnese para a cidade de Tournai, recente­mente tomada, onde explicou que nunca seria possível obter a vitória recorrendo apenas ao exército nacional valão. Os Estados acabaram por concordar com o regresso dos tercios e em finais do ano Farnese pos­suía cerca de 60 000 homens sob o seu comando, incluindo 5 000 espa­nhóis e 4 000 italianos. Com um exército destas dimensões, tinha espe­ranças de concretizar o seu plano de uma grande ofensiva que garan­tisse a segurança das províncias valãs e cortasse o comércio dos rebeldes com a Alemanha. Só necessitava agora de dinheiro. É certo que então chegava a Espanha uma quantidade cada vez maior de prata das índias; mas restava ver se seria possível dispor de uma quantidade suficiente para pagar ao exército dos Países Baixos.

A vitória das armas espanholas nos Países Baixos já não parecia tão inconcebível como em 1578. Mas tendia a ser lenta e onerosa, pelo menos enquanto Orange vivesse. Carlos V proscrevera, em tempos, certos príncipes desleais, o duque da Saxónia e o landegrave do Hesse. Porque não havia o seu filho de seguir esse precedente e pôr a cabeça de Gui­lherme a prémio? A ideia foi de Granvelle e Farnese considerou-a inoportuna; mas a sua resistência foi vencida. Em Junho de 1580 Gui­lherme foi proclamado fora-da-lei e atribuído o prémio de 20 000 escudos pela sua cabeça.

A objecção de Farnese à proscrição de Orange mostrou ser com­pletamente justificada. Em vez de inspirar deserções em massa entre os apoiantes de Orange, aumentou no norte a devoção popular a um homem que acabara por simbolizar a defesa das liberdade dos Países Baixos contra a tirania de Espanha. Simultaneamente, ajudou a quebrar os últi­mos laços de lealdade emocional que ainda ligavam Orange ao seu sobe­rano, Filipe li. Agora que fora declarado fora-da-lei pelo seu rei, era­-lhe essencial justificar as suas acções perante o mundo. Em Dezembro de 1580 apresentou aos Estados Gerais a sua famosa Apology, que mais tarde viria a ser distribuída pela Europa como o primeiro disparo de uma campanha de propaganda contra Filipe 11 e os espanhóis. O docu­mento não continha qualquer assinatura, apenas uma divisa usada pela casa de Nassau, a que Guilherme pertencia: Je le maintiendrai. Prepa­rado pelo seu capelão, Villiers, e pelo panfletista huguenote Humberto

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I anguct, constituía uma comovente defesa da carreira política J · Omngc 1 un1a violenta denúncia do rei que pusera a sua cabeça a prémio. A par­tu de verdades, meias verdades e lendas, as palavras emotivas da Apo­lugy criaram triunfalmente a mitologia anti-espanhola que se tornaria num evangelho para várias gerações de protestantes. Nela se poderiam l'llrontrar, descritos com vivacidade, todos os elementos constituintes da

lenda negra»: a crueldade, o fanatismo e a tirania que caracterizavam 1 1s espanhóis; a sua perseguição dos infelizes mouros; a exterminação d~~ «vinte milhões» de índios 7; os horrores da inquisição e a perversi­dade do rei, um parricida que «matara desumanamente o seu filho e hl'rdeiro» e matara a mulher (Isabel de Valois) a fim de casar com a sobrinha. Mas por detrás das denúncias cruas encontrava-se um pouco da filosofia que inspirara Guilherme na sua luta - a sua defesa da liber­dade de consciência, a sua preocupação pelo carácter sagrado dos di­,·citos e privilégios tradicionais, a sua crença numa sociedade aberta cujos habitantes, ao contrário dos de Espanha, seriam livres de estudar no estrangeiro, na universidade que escolhessem.

Apesar de todas as suas corajosas palavras, no entanto, Orange cncontrava-se numa posição extremamente difícil e perigosa. Era um Alvo óbvio para as balas de um assassino. Mesmo que sobrevivesse, quais seriam as perspectivas de êxito contra a maior potência no mundo? Afinal, apenas era o líder de facto de uma confederação mal organizada de cidades que tinham escolhido o desafio à autoridade do seu rei. O desejo destas de continuarem a luta era constantemente posto em dú­vida e, em última análise, dependia da determinação de um núcleo de calvinistas, cujo fanatismo era inaceitável para a própria mentalidade comedida e tolerante de Guilherme. Fracassara na manutenção da frá­gil união entre o norte e o sul dos Países Baixos e tivera de cruzar os braços enquanto o príncipe de Parma recuperava a obediência das pro­víncias valãs e iniciava o processo de controlo sistemático dos territó­rios rebeldes. Guilherme sempre insistira em que a única esperança de revolta nos Pafses Baixos se encontrava no auxílio externo. Agora, em inícios da década de 80, isso era ainda mais verdadeiro do que anterior­mente. Se se desejava deter Farnese, isso só seria possível com o auxí­lio activo da Inglaterra e da França. Mas Isabel continuava a não querer arriscar uma confrontação aberta com a Espanha e Guilherme não teve outra alternativa senão recorrer à figura duvidosa do duque de Alençon, sempre navegando onde as águas eram mais turvas. Em Setembro de 1580, embora com alguma dificuldade, convenceu os Estados1 das pro~ víncias rebeldes a oferecerem a soberania a Alençon, em vez de Filipe 11.

7 As pTimed·r&s edições holrurudeses de Brief Account of the Destruction o f the Indies de II.Jais Oa$~ --ífUtiTIIa. ifonltle 'eSsentdiiM p!alrla 'a ~<ffiemiJa, IDJ!liglt'a» ~ dJo­ram publieadas em '1'5718.

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Havia bom senso e lógica no recurso a Alençon - ou teria havido,

se este não fosse o que era. A rebelião era um anátema para os príncipes

da Europa e se o próprio Guilherme tivesse assumido a soberania, a

revolta continuaria a ser ilegal aos olhos do mundo. Era mais prudente,

e respeitável, recorrer a uma figura internacionalmente aceite, o irmão

mais novo do rei de França. Além disso, Alençon era um católico e pode­

ria talvez exercer alguma influência nas províncias do sul, que Guilherme

ainda não conseguia ver como uma perda irreparável. Alençon encon­

trava-se, por outro lado, envolvido, com surpreendente êxito, na corte a

Isabel. Guilherme detectava sempre rapidamente a mão de Deus nas

inesperadas mudanças de sorte que caracterizavam o rumo vacilante

da revolta holandesa. Não seria Alençon o instrumento escolhido por

Deus para reconstituir, sob a protecção anglo-francesa, uns Países

Baixos borgonheses amantes das suas liberdades tradicionais e dedi­

cados a esses princípios politiques que permitiriam a homens de dife­

rentes fés viver lado a lado em unidade e paz? Alençon, se bem que indiferente às aspirações de Guilherme,

ficou satisfeito por aceitar uma oferta que lhe dava pelo menos algum

do poder que ambicionava havia tanto tempo. Podia naturalmente con­

tar com o apoio de muitos huguenotes, que viam o projecto como uma

maneira de retomar o grande desígnio de Coligny de uma vasta cam­

panha nos Países Baixos que melhoraria a disposição da França. Cata­

rina de Médicis e Henrique III, por outro lado, mostraram-se menos

entusiasmados. Se bem que Henrique gostasse de ver o talento do irmão

para a intriga aplicado noutro lado, ele e a mãe aterrorizaram-se com

a perspectiva da reacção de Filipe II à intervenção francesa nos Países

Baixos. Alençon, no entanto, não se deixaria deter pelas ameaças com

que o embaixador espanhol em Paris procurou enervar a mãe. Mobilizou

um exército em França e cercou e tomou Cambrai, no verão de 1581.

Mas foi este o seu único êxito. As suas tropas, não tendo recebido o

pagamento, desertaram e voltaram para casa, enquanto o próprio Alen­

çon navegou em Outubro para Inglaterra a fim de pressionar Isabel no

sentido de obter a sua mão ou, se isso falhasse, o seu dinheiro.

A posição constitucional de Alençon nos Países Baixos tornara-se

entretanto um pouco mais clara. Quando fora feita a oferta de sobe­

rania a Alençon,- o infeliz arquiduque Matias ainda era nominalmente

governador-geral dos Países Baixos por parte de Filipe 11 - cargo para

o qual os Estados Gerais das dezassete províncias o tinham unilateral

e ilegalmente nomeado, sem a aprovação ou consentimento de Filipe.

Tanto nas províncias do norte como nas do sul, os opositores à polí­

tica de Filipe nunca tinham pensado em substituir o rei, mas sim em

actuar em seu nome. Só quando Guilherme de Orange foi considerado

fora-da-lei pelo rei de Espanha se tornou inútil esta ficção geral. A Apo­

logy de Guilherme constituía, com efeito, um repúdio final da realeza

de Filipe, se bem que esse repúdio ainda aguardasse uma sanção consti­

tucional. Esta verificou-se numa reunião dos Estados Gerais das pro-

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vfncias que constituíam a União de Utreque, convocada para Haia em

Julho de 1581. A 22 de Julho Filipe 11 foi formalmente deposto como

soberano dos Países Baixos, acção que pôs automaticamente fim aos

deveres de Matias como seu indesejado governador-geral. A 24, Gui­

lherme aceitou provisoriamente o título de conde da Holanda c da

Zelândia, dado que ambas estas províncias se mostravam relutantes em

aceitar a soberania de Alençon. Finalmente, a 26, os representantes da

I folanda, Zelândia, Gelderlândia, Frieslândia, Groningen e Overijssel,

Malines, Flandres e Brabante ratificaram solenemente o Édito de Abju­

ração que depunha Filipe. Em todos excepto os dois primeiros, Alençon

converteu-se em soberano hereditário, adaptando a designação de duque,

conde ou marquês pela qual cada uma das províncias tradicionalmente

conhecia o seu senhor.

O Édito de Abjuração traduziu na prática as teorias incorporadas

nesse grande tratado huguenote, o Vindiciae contra Tyrannos 8• Tal

como o Vindiciae, continha as doutrinas-padrão do século dezasseis

sobre a obrigação do príncipe de ser o pastor e pai do seu povo. O prín­

cipe que falhasse neste seu dever não era um príncipe mas sim um tirano,

c os seus súbditos tinham o direito de escolher outro governante que

defendesse as suas leis e liberdades. Os argumentos eram respeitavel­

mente conservadores, mas a sua aplicação a Filipe II em Julho de 1581

era um acontecimento revolucionário. As teorias contratuais medievais re­

vividas pelos huguenotes após o massacre de S. Bartolomeu recebiam

agora a suprema honra de ser postas em prática pelos holandeses. A depo­

sição de Filipe II não era uma teoria, mas um facto; e, enganadoramente

envolvido num traje medieval, surgiu subrepticiamente no, mundo um Estado moderno.

A verdadeira natureza constitucional deste Estado, no entanto,

permanecia um tanto misteriosa mesmo para os seus criadores. Um

panfleto de 1580 considerava «se os Países Baixos se podem manter sem

um príncipe, ou como uma república popular segundo o modelo suíço,

ou como uma aristocracia». Se bem que a ideia de uma república federal

segundo o modelo suíço tivesse sido debatida nos anos 70 e pudesse ter

parecido apropriada às condições especiais dos Países Baixos tendia a

alienar os príncipes estrangeiros cujo auxílio era essencial p;ra que as

Províncias Unidas sobrevivessem. A mesma objecção se aplicava ao

n:odelo alternativo de um Estado sem rei - uma oligarquia vcne­

ztana governada por um doge. Parecia que não havia salvação que não

incluísse um príncipe, no mUndo intensamente monárquico da Europa do

século dezasseis. Mas não há dúvida de que as condições em que Alcn-

B 1Vler art:!I'âs', c'apíltuJIJO 7.

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çon recebia a oferta de soberania das Províncias Unidas as deixavam com uma constituição muito semelhante à suíça e à veneziana. O lento declínio da ideia monárquica, face a repetidos fracassos, viria a seu tempo

a dar-lhes ainda mais. As complexidades constitucionais da sua nova posição exigiam

claramente o máximo tacto da parte de Alençon. E seria ainda neces­

sário mais tacto para reconciliar os calvinistas que se encont~av~m

entre os seus novos súbditos com o governo de um pnncipe católico francês. Alençon, no entanto, era completamente inapto para

o delicado papel que agora era chamado a desempenhar. Só. s~b a pressão dos argumentos e ameaças dos Estados holandeses foi fmal­mente levado a abandonar a Inglaterra, em Fevereiro de 1582, insta­lando a sua residência em Antuérpia, com o título de duque do Bra­bante. Guilherme de Orange fez o que pôde para aconselhar Alençon,

mas nem o comportamento do duque nem o dos seus soldados franceses era o mais aconselhável para o favorecer junto de um povo que ~e ressentia da sua presença desde o início·. Não há dúvida de que a acei­tação de Alençon constituía o preço necessário da amizade de Henri­que III, mas havia um limite para aquilo que mesmo os partidários mais moderados de Orange estavam dispostos a tolerar.

Alençon, pelo seu lado, sentia-se cada vez mais embaraçado. A populaça, que não esquecera os acontecimentos de S. Bartolomeu, depressa se convenceu de que era ele o responsável por uma tentativa contra a vida de Orange que se verificou pouco depois da sua chegada a Antuérpia, pelo que lhe parecia que a sua posição era bastante exposta e insegura. Medroso, neurótico, ressentido pela impotência política a que se via condenado, começou a acalentar ideias de obter pela força a autoridade que considerava sua por direito. Na fria e ventosa manhã do dia de St.0 António, a 17 de Janeiro de 1583, as tropas francesas acam­padas fora da cidade de Antuérpia forçaram a entrada na cidade e ten­taram juntar os habitantes católicos com gritos de «Viva a missa!». Mas os cidadãos tanto católicos como calvinistas, responderam construindo barricadas, ~ os franceses foram derrotados na luta que se seguiu. O dia de St.o António não foi, afinal, um segundo S. Bartolomeu.

A farsa da «furie française» acabou com a carreira política de Alençon. Orange, ainda obcecado pela necessidade de uma aliança com a França, fez o que pôde para fazer esquecer o terrível acon­

tecimento, mas a reputação do duque estava já arruinada. No outono de 1583 ele abandonou os Países Baixos e retirou-se humilhado para França. Aqui, alguns meses mais tarde, foi atacado de febre e morreu a 10 de Junho de 1584. Na oração do seu funeral foi descrito como «Um César nos seus empreendimentos, um Alexandre em inspira­ção, um Hércules em coragem, um Cícero em eloquência, um Jonas em zelo, um Jehu em prudência». Estas frases grandiloquentes podem ter parecido um tanto inapropriadas, mesmo numa época que adorava os

panegíricos.

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Para Guilherme de Orange, o oportuno dcsaparecirn nto de Alençon eliminava um sério embaraço pessoal, mas apenas à custa ela sua substituição por um outro embaraço político que lhe ngradava ainda menos. Alençon sempre fora uma necessidade política para o projecto de Orange para os Países Baixos- um símbolo vivo do prin­cípio monárquico, da concórdia religiosa e da protecção da França c da Inglaterra, aspectos igualmente essenciais para a realização dos seus planos. A ideia Alençon sempre fora mais atraente do que a rcalidadc; ma:; agora, desaparecido Alençon, apenas restava um vazio e uma política em ruínas. Não existia qualquer candidato óbvio que preenchesse o vazio e a relação com a França acabara por ficar fatalmente desacredi­tada pelo comportamento vergonhoso de Alençon. O próprio Orange atraíra a ira popular em 1583 casando com Luísa de Coligny, sua quarta esposa e filha do Almirante. Para Orange, o casamento represen­tava uma nova tentativa de preservar a abalada ligação com a França, que ocupava um papel central na sua política; mas nem sequer o impe­cável passado calvinista da sua nova mulher poderia fazer esquecer o pecado original da sua nacionalidade.

A desconfiança generalizada para com a sua política pró-francesa estava a tornar-lhe a vida em Antuérpia cada vez mais intolerável, e no Verão de 1583 trocou a cidade por Middelburg, antes de se instalar em Delft. A sua partida de Antuérpia não pretendia ser definitiva, mas os êxitos de Farnese reduziam cada vez mais as suas possibilidades de reter fosse que região fosse do sul. A presença de Orange era, aliás, urgente­mente requerida no norte, onde a Holanda e a Zelândia planeavam in­vesti-lo da autoridade soberana com o título hereditário de conde. Se bem que o comportamento de Alençon tivesse enfraquecido o ideal monárquico, este não fora inteiramente destruído; e Guilherme acabara por surgir como o inevitável candidato ao poder soberano que Alençon fizera o possível por desacreditar. Mas Guilherme nunca viria a ser investido na sua nova autoridade. A 10 de Julho de 1584, exactamente um mês após a morte de Alençon, era assassinado por um lealista faná­tico do Franco-Condado·, Baltazar Gérard.

Os Estados Gerais, no lamento da sua morte, descreveram-no como «un pere de la patrie». A palavra «patrie», que muitas vezes surgira nos lábios de Orange, era singularmente apropriada. Através de todas as vicissitudes dos últimos anos mantivera-se leal à ideia de uma mãe-pátria, que exigia uma lealdade ainda superior à que devia ser concedida ao rei. De início, a «patrie» era talvez para Guilherme pouco mais do que uma entidade histórica- o símbolo dos antigos direi ­tos e privilégios que o rei erradamente desafiara. Mas, no decorrer da lula, a concepção original adquirira maior significado e profundidade. As liberdades transformaram-se em liberdade -liberdade relativam •nl. · a um poder arbitrário e liberdade de consciência. O ódio à spanhu · àquilo que esta estava a fazer ao seu país deu força e cocrGncia à vis;10 de Guilherme, contribuindo para lhe conferir significado aos olhos das

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vastas massas populares. Porque tinham compreendido alguma coisa do seu objectivo, homens de classes sociais completamente diferentes ti­nham desejado unir-se sob a sua direcção em defesa de uma causa comum. Guilherme cometera erros; talvez tivesse feito demasiadas con­cessões, se bem que as suas hesitações possam muitas vezes ser atribuídas a um sentido excepcionalmente agudo das realidades do poder, que converteram a busca de aliados estrangeiros num dos fundamentos da sua política. Mas sempre se mantivera, mesmo nos piores momentos, fiel ao seu ideal da «patrie» e, ao fazê-lo, elevara-o acima das personalidades­até de si próprio. E a melhor prova da sua realização está em que, apesar de o pai do seu país ter morrido a 10 de Julho de 1584, esse mesmo país sobreviveu.

Mamix de Sainte-Aldegonde e os outros confidentes de Guilherme procuraram assegurar que não se verificasse qualquer quebra de conti­nuidade nem uma súbita mudança de política. Os Estados Gerais das Províncias Unidas pediram imediatamente auxílio à França e à Inglaterra, oferecendo a Henrique III a soberania, enquanto Isabel- como sem­pre invejosa da excessiva influência francesa nos Países Baixos - es­tava decidida a fazer os possíveis para que aquele recUGasse a oferta. No entanto, apesar de Isabel tudo fazer para evitar ser arrastada para um conflito aberto com a Espanha, não havia, no fim de contas, saída possível. Desde que Alençon declarara o seu desejo de auxiliar os rebel­des, o conflito nos Países Baixos internacionalizara-se a tal ponto que já não era possível voltar atrás. Havia demasiado em jogo nos Países Baixos para que os seus apelos pudessem ser ignorados; e nos meses que se seguiram ao assassinato de Orange, estes apelos assumiam uma nova nota de desespero.

Famese paGsava agora de um êxito a outro, em parte de­vido à sua grande competência e, em parte, à fraqueza e às divergências entre os seus inimigos. À medida que a situação militar dos rebeldes se deteriorava, as suas rixas internas aumentavam. Descobriu-se que

Hembyze, o rei não coroado dos radicais de Gante, se encontrava em negociações secretas com Farnese, pelo que foi executado pelos seus colegas, em Agosto de 1584. Algumas semanas mais tarde a cidade cercada foi forçada a render-se, e a república calvinista chegou ao fim. Em finais do ano, Farnese reconquistava a Flandres e a maior parte do Brabante. Bruxelas capitulou às suas forças em Fevereiro de 1585, e a seguir, após um cerco longo e brilhantemente posto em prática, a pró­pria Antuérpia caiu, a 17 de Agosto. Ao receber a meio da noite a notícia da queda de Antuérpia, o normalmente impassível Filipe II saltou excitado da cama e correu para os aposentos da filha Isabel, para lhe dizer que «Antuérpia é nossa». Em sinal de gratidão deu a Famese o mais cobiçado dos prémios - a fortaleza de Placência, pela qual a sua família esperara durante trinta longos anos. Era uma recompensa verda­deiramente merecida, pois nos sete anos que se tinham passado desde a

sua chegada Farnese obtivera um êxito quase miraculoso. A expetacular

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recuperação. da Espanha no3 Países Baixos constituiu um notável teste­munho da brilhante liderança de um grande comandante e estadista. Mas rcflectiu igualmente uma evolução que por toda a parte dava origem às mais sérias preocupações- o impressionante e alarmante aumento do poder mundial da Espanha.

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PARTE IV

1585-1598

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X

O CONFLITO INTERNACIONAL

I. Os problemas de intervenção

Ambos os heróis mortos da causa protestante, Coligny e Orange, Linham a seu tempo avisado o mundo dos perigos que o ameaçavam por causa das ambições conjuntas da Espanha e de Roma. O objectivo do rei de Espanha, segundo Coligny disse ao agente inglês em Paris imedia­tamente antes de S. Bartolomeu, «é transformar-se no monarca da cris­Landade ou, pelo menos, governar como tal» 1• Orange, por sua vez, instara os príncipes protestantes, e particularmente os da Alemanha, a acordarem antes que fosse demasiado tarde. O poder da Espanha cres­cia; a igreja tomava-se cada vez mais agressiva; e a cristandade poderia ser novamente esmagada por uma tirania romana.

Em 1585 estes avisos pareciam ainda mais correctos do que no momento em que foram pronunciados. Não se tratava apenas de a Es­panha estar a reconquistar os Países Baixos e de o seu poder ter aumen­tado de forma extraordinária pela aquisição de Portugal e do seu império - se bem que isso bastasse para causar um profundo alarme. Talvez ainda mais agoirenta fosse o expandir da conspiração e da subvel.'são em toda a Europa em nome da igreja católica romana, e com o apoio ou a conivência da Espanha. Isso era particularmente evidente nas Ilhas Britânicas, onde os conselheiros de Isabel tinham boas razões para se mostrar inquietos. A Irlanda, em particular, era uma fonte de cons­tante, e crescente, preocupação. Com efeito, a Irlanda representava um exemplo quase clássico dos novos problemas colocados aos governos pelos choques entre credos antagónicos.

O catolicismo na Irlanda, como o protestantismo nos Países Bai­xos, ganhara nova força com a identificação com uma causa nacional. Se bem que a sociedade irlandesa fosse infinitamente meno3 sofisticada do que a dos Países Baixos, a sua luta contra o domínio inglês caracteri­zava-se por muitos dos aspectos associados à luta dos Países Baixos con-

1 Ci'tlruclo por Whl1Jehead, GasPurà àe Ooligny, p . 1214!3 ..

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tra a dominação de Espanha. Em ambas as sociedades uma causa reli­giosa promovia, e era promovida por, um sentido de identidade nacio­nal. Em ambas, a filiaçào dos líderes nacionais num movimento religioso internacional dava-lhes novas oportunidades de assegurarem um apoio externo. Quando até um rebeld.e tão primitivo como Shane O'Neill tinha engenho suficiente para pedir auxílio a Paris, a Roma e a Madrid, no início dos anos 60, era evidente que as lições da nova época de lutas confessionais podiam ser aprendidas até pelos irlandeses. Uma vez aprendidas, essas lições não eram esquecidas. Em 1578, esse notável aven­tureiro, Sir Tomás Stukely persuadiu o papa a fornecer-lhe homens e navios para a conquista da Irlanda; mas, em seguida, desviou as suas forças para Portugal, perdendo a vida juntamente com o rei Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir. Porém, no ano seguinte, uma força condu­zida por Jaime Fitzmaurice Fitzgerald, e acompanhada de um legado papal, conseguiu desembarcar com a conivência de Espanha em terra irlandesa, onde se juntou ao conde de Desmond e aos amigos deste. Os rebeldes mantiveram em seu poder durante mais de um ano parte de Munster, e só no Outono de 1580 as tropas inglesas conseguiram esmagar a insurreição.

Apesar de os rebeldes não terem tido êxito em 1579-80, a Irlanda estava obviamente a transformar-se num novo, e potencialmente peri­goso, campo de batalha, na luta entre os protestantes e Roma. Uma Irlanda que estava a ser arrastada para a órbita do catolicismo da Con­tra-Reforma e que recorria a outros Estados para lhes pedir auxílio contra a Inglaterra constituía um panorama assaz perturbador para Isabel e os seus ministros. Mas iguais perigos, ou ainda maiores, os espreitavam mais perto. Um número cada vez maior de jovens padres educados no colégio de Douai, de Guilherme Allen, estava a penetrar em Inglaterra em finais dos anos 70, e os primeiros jesuítas, Edmundo Cam­pion e Roberto Parsons, chegaram em 1580. Conversão e conspiração não eram facilmente separáveis, mesmo quando existia o desejo de o fazer. Maria, rainha da Escócia, apodrecia na prisão, como comove­dora figura na qual se centravam as simpatias e esperanças da Europa católica. Mais tarde ou mais cedo os padres e os leigos católicos ingle­ses acabariam por se ver envolvidos nos enredados fios da conspiração que conduziam, através de um labirinto europeu, à rainha cativa. À me­dida que o tempo passava, todos se deixaram envolver nesses fios: D. João de Áustria e Gregório XIII; Filipe 11 e o duque de Guise; Esmé Stuart, conde de Lennox, que a partir de 1579 foi a figura dominante na corte do jovem Jaime VI e estava decidido a trazer a Escócia para o campo católico e dos Guise; Bernardino de Mendoza, embaixador de Filipe 11 em Londres; e os exilados católicos ingleses e escoceses, que se moviam esperançosos nas franjas das cortes católicas europeias ou voltavam ao seu país, com risco das próprias vidas, para organizar a insurreição, a invasão e o assassínio de Isabel.

Em 1583, Sir Francisco Walsingham, o principal secretário da rai­nha e especialista em desarmar conjuras, descobriu indícios que condu-

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ziram à prisão de um católico inglês, Francisco Throckmo~ton . . As co~­fissões do prisioneiro sob tortura revelaram .toda a extensao da eonspt­ração e implicaram inegavelmente o embatxad?r e:panhol, M~ndoz~, que utilizara Throckmorton como elemento de hgaçao com Marr~, rat­nha da Escócia. O embaixador foi chamado ao conselho em Jane1ro de 1584, sendo-lhe ordenado que abandonasse o país. A conjura saíra fr ustrada mas as relações entre a Inglaterra e a Espanha sofreram uma nova co~trariedade e o país tomou-se mai3 consciente dos perigos que o espreitavam devido à conspiração católica inter?acional. No entanto, era evidente que os perigos em Inglaterra eram dtferentes dos colocados pelo catolicismo na Irlanda. Enquanto ~esta última Roi?a e Espanha poderiam um dia conseguir um vasto apmo P?Pular? na ?ecada de }580 os católicos ingleses eram uma minoria reduztda e mdecisa, e o pais no seu conjunto apresentava cada vez mais tendências protestantes. Era provável que, em Inglaterra, a ameaça.proviesse não~~ ~m levantamento de leigos católicos reprimidos, mas s1m do acto so!Itano de um ass~­sino que, matando Isabel, pudesse mergulhar o pais numa grave cnse sucessória. A vida e a segurança da rainha transformaram-se portant?, c mais ainda, na principal preocupação dos ministros e da nação. A pr~­pria rainha, figura desesperadamente vulnerável mun. ~undo de trai­ções, representava a única garantia de uma tranq,mhdade e . ordem duradouras. Só a sua vida se interpunha entre o pais e os pengos da guerra civil e do domínio espa~hol e cató~ico .. A lealdade à rainha acabou assim por assumir tonalidades emoc10n_rus, 11:u_m momento em que o nacionalismo inglês era poderosamente l~t~nstftca~?. pelo veloz crescimento do ódio protestante a Roma e do odio patnottco aos es-panhóis. . .

A nova onda de patriotismo protestante na Inglaterra ~acil~tou a tarefa da rainha nas questões internas, ao acentuar a sohdanedade nacional mas simultaneamente tomou mais difícil a condução dos negócios' estrangeiros, ao exigir-lhe cada vez mais uma política mais agressiva. Estas exigências de uma política es~rangeira ~<protestante» ·ram particularmente difíceis de contrariar, pms eram vigorosamente upoiadas por representantes infh~entes 11:o consel~10 e na corte- em particular o conde de Leicester e Str Francisco Walsmgham. ~urante. anos ,·sta facção havia pressionado a rainha e Burghley ~o sentido de mter­virem de modo mais decisivo no continente, em apoto dos rebeldes _ho­landeses e dos huguenotes em França. Foi ainda esta facção que, ~ban­do-se aos mercadores ingleses e à pequena nobreza rural da parte ociden­tal do país, mais fez para promover os empreend~ent?s oc~âni:os, que t<i o importantes se revelaram no reforço do nacwnaltsmo mgle~ e no declínio das relações entre a Inglaterra e a Espanha. Isabel apomra ou 1110strara-se conivente com, os actos de pirataria, quando estes ~teres­savam aos seus propósitos, mas tanto ela como Burghley tudo tm,~am f ~i to para evitar qualquer acção irreversível, que levasse os espanhms a retaliações.

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. , . ~s he~itações ~a política externa da rainha pareceram indignas e fu~e1s a facçao Walsmgham-Leicester. Numa luta pela salvação do pró­pno protestantismo, a Inglaterra não tinha o direito de se manter de fora. A neutralidade não poderia, aliás, ter qualquer resultado útil. A Espanha e Roma haviam-se lançado no grande projecto de extermi­na~ão do protestantismo no continente e o ataque à própria Inglaterra sena ape~as uma questão de tempo. O interesse próprio, portanto, assim como a JUStiça inata da causa, exigiam que a Inglaterra interviesse na Europa para salvar os protestantes. A conspiração de Throckmorton e o assassínio· de Guilherme de Orange tinham mostrado a verdadeira cor das intenções espanholas. E o facto de a revolta holandesa não ser apoiada nesse momento crucial apenas poderia conduzir a um desastre. . Até que ponto as teses de Walsingham se baseavam numa avalia­ção correcta das intençõe3 de Filipe li? O rei de Espanha sofria fortes pressões no sentido de provocar uma confrontação com a Inglaterra. Em 1583 o marquês de Santa Cruz, triunfante nos Açores, aconselhara o rei a empreender uma invasão da Inglaterra no ano seguinte. Mas Filipe afastou tal plano pois, como Isabel, temia uma confrontação aberta. Uma das ironias no início da década de 80 foi que os dois dirigentes, Filipe e Isabel, eram adversários relutantes. Mas ambos se aproximavam cada vez mais da guerra. Enquanto Walshingham e os seus amigos procuravam influenciar a rainha com o fantasma de uma conspiração católica internacional, o cardeal Granvelle e outros acti­vistas em Espanha evocavam com igual plausibilidade o fantasma de uma conspiração protestante internacional. Havia suficientes provas em apoio desta afirmação: um auxílio encapotado dos lingleses aos hugueno­tes e holandeses; as actividades de João Casimira do Palatinado e do Reiter alemão em França e nos Países Baixos; a pirataria dos ingleses no Atlântico e nas Caraíbas; o apoio anglo-francês ao Prior do Crato e aos seus esquemas de reconquista de Portugal e dos Açores. Não seria a época favorável, como sugeria Granvelle, para um golpe preventivo, talvez na Irlanda, que forçaria os ingleses a limitarem o seu auxílio aos holandeses e a manterem os navios ocupados nas suas águas costeiras?

O ano de 1584 foi crítico tanto para Filipe como para Isabel. As mortes, com diferença de algumas semanas apenas, de Alençon e Gui­lherme de Orange alteraram de um momento para o outro o panorama dos assuntos internacionais. Enquanto Isabel se via inexoravelmente atraída para o turbilhão do estado-de-coisas nos Países Baixos, Filipe via-se arrastado não menos inexoravelmente para o turbilhão das lutas intestinas em França. Com a morte de Alençon, o protestante Henrique de Navarra tornava-se o herdeiro provável de um Henrique III sem filhos. Isso já era suficientemente grave, mas os problemas mais imediatos de Filipe centravam-se nos Países Baixos. Desde o início da revolta, o principal objectivo da sua política externa no norte da Europa consis­~ira em impedir os franceses de se imiscuírem nos assuntos dos Países

. Baixos. Agora que Alençon e Orange estavam mortos, os holandeses desesperados ofereciam a soberania dos Países Baixos ao rei de França.

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l ~ ra preciso dissuadir a todo o custo Henrique III d~ aceitar a oferta .~ dl; intervir pelo lado dos rebeldes. A melhor manc1ra de o consegu11 consistia em mantê-lo ocupado no seu próprio país, c Filipe estava até disposto a oferecer a Henrique de Navarra um interes~antc .p.aga~cnto ~ subsídios mensais regulares se pegasse em armas cont1 a o rc1 c tccomc ças·se a guerra civil em França. . .

Existiam porém, em França, aliados mats pro~etedores c prov~-vcis do que o herege de Navarra. Para o duque de Gmse e os católicos, a morte de Alençon era um desastre, na medida em que os punha peran~c a perspectiva de uma sucess~o B<:urbon e protestante. ~as. oferecta também oportunidades que Gmse nao era homem para. e~Je!tar. A casa de Lorena afirmava-se descentente de Carlos Magno e mststla, portanto, (;ffi que tJinha mais direitos ao trono do que os Valois e os Bourbon, meros descendentes do usurpador Hugo ~apeto. ~ssim, a . morte de Alençon não transformaria Henrique de Gmse- e nao Hennque de Navarra-no principal pretendente à coroa? .

O rei de Navarra dispunha da vantagem de ser reco~he~1do ~~mo herdeiro legal por Catarina e pelo rei; e procurava tambem tdentlft~ar habilmente a sua causa com a da sobrevivência do Estado. M~ Gwse era um opositor com um sé9-ui~o: excepcionalmente .poderoso: Dtspunh~ elo apoio dos grandes propnetanos de terras da ahança Gmse-Lorena. o irmão, duque de Mayenne, e o:. d~qu.es de Never~, ~ercoeur, Aum~le c Elboeuf. O embaixador da Sabota md1cou as provmcms da ~ormandta, Picardia e Champanha como particularmente devotadas .a Gms~, e con­siderou que a nobreza em geral era «afecta à c;sa de Gmse,. mwto~ deles descontentes com o actual estado de coisas>> . O duque ti~a amd~ a cidade de Paris do seu lado, juntamente com os clientes da ~hanç~ G~use, c um exército de funcionários mais leais a ele do que ao re1. Podta amda contar com o apoio fervoroso de um vasto sector do clero e da populaça. A perspectiva de uma sucessão yrotestante despertara de _novo os. temores católicos e a Saint-Union ou Ltga, morta desde 1577, fot ressus~ltada em 1584, após a morte de Alençon. Para a Liga, o duque <}e. Gmse era o homem destinado a salvar a França dos horrores do domm10 huguenote.

Se Filipe li tentava impedir Henrique UI de embarcar numa no_va aventura nos Países Baixos, dispunha eVIdentemente de amplo mate~tal na crise doméstica francesa. A agitação da populaça aumentav~, devtd? aos pesados impostos e à crescente miséria ~co~ómica_; os _catóhcos radt­cais pegavam novamente em armas; e os propnos Gmse vrravam-se com desprezo contra um rei que distribuía generosamente presentes e cargos pelos seus favoritos, os duques de Joyeuse e Ep~on. Era .o mo­mento em que um pequeno dispêndio de prata poden~ co!her mteres­santes dividendos. O duque de Guise recebta de facto ~mhetro de agen­tes espanhóis pelo menos desde 1582, mas os acontectmentos de 1584

2 René de lAJiCiinge, Lettres sur les débuts de la Ligue, org. A. Dufour, Genebm, il964, p. 26 (Oarta de 25 die MM'ÇO die '16185).

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tornaram mutuamente vantajoso estabelecer uma relação mais próxima e formal. A 31 de Dezembro de 1584 os Guise assinaram o tratado secreto de Joinville (a sua região natal) com o enviado de Filipe, João Baptista de Tassis. Em troca de um subsídio mensal de 50 000 escudos os Guise comprometiam-se a si próprios e à Liga a trabalhar a favor da exterminação da heresia em FranÇa e pela sucessão do idoso cardeal de Bombon em vez do seu herege sobrinho, Henrique de Navarra. Ainda não se falava de intervenção militar espanhola, mas Filipe dava um grande passo no sentido de um envolvimento nos assuntos intern03 da França.

Bernardino de Mendoza, agora embaixador espanhol em Paris, exerceu fortes pressões sobre Henrique III, durante o inverno de 1584--85, para o impedir de aceitar a soberania dos Países Baixos. As armas diplomáticas de Mendoza eram energicamente secundadas pela demonstração cada vez mais evidente do poder dos Guise. A Liga recebia um apoio maciço da população urbana no norte católico, que odiava os huguenotes e se via oprimida pelo peso dos impostos devidos ao colapso das finanças governamentais. Simultaneamente, Guise con­seguiu aumentar o apoio de que dispunha entre a nobreza explorando a impopularidade do favorito real Epernon e do seu séquito gascão. Como o embaixador da Sabóia explicava, não faltavam os pretextos de que Guise pudesse aproveitar-se para justificar um recurso às armas. Podia afirmar que resistia a um «tirano» - o duque de Epernon - e lutava para libertar o povo «oprimido pelos subsidias e tailles».

Face a um exemplo clássico de exploração do descontentamento popular e religioso por uma facção aristocrática, o pertmbado Henri­que III não podia deixar de prevaricar e recuar. Em finais de Fevereiro de 1585 recusou finalmente a oferta de soberania dos holandeses. Em Março a Liga publicou, em nome do cardeal de Bourbon, a declaração de Péronne, que protestava contra a má administração e as tendências protestantes. da coroa e chamava todos os verdadeiros católicos às arma\3. Tratava-se de uma manobra óbvia dos Guise pelo controlo do governo e Henrique não possuía o vigor e os recursos para resistir. Em Julho, apesar dos esforços de· Isabel, assinou o tratado de Nemours, pelo qual cedia às exigências dos Guise de revogação de todos os anteriores éditos de pacificação e de proscrição da heresia. O duque de Guise brincara com o rei do mesmo modo que o rei e os seus nobres haviam brincado durante esse ano com ioiôs 3• Era uma humilhação que Henrique nunca mais lhe perdoaria.

3 Nancy L. R~elke~r, The Paris oj Hemry oj Navarre as seen by Pierre de Z'E'stooile, Crumbridge, Mruss., 0.:958, p. 111:3. Esta pasSialgem fo.i-me gentH­meiillte ref•ePida pelro Profess01r Frrunkl.Jin Foro da Un.i·versidalde de Havvard.

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A rendição do rei à Liga foi completamente inaceit~vel p~ra Henrique de Navarra, dado que significava um regres~o aos pwres d1~s da repressão católica. Mas Navarra via-se agora obngado a lutar nao só pela sua fé como ainda pelos seus direitos. Ao tratado de Nemours seguiu-se um édito privando-o da sucessão ao tr?~o e em Setembr? de 1585 o novo papa, Sixto V, excomungou-o precipitadamente. A mtava e última guerra religiosa francesa, que agora rebe~tava - ~ «Guerra dos três Henriqques» (o rei, Guise e Navarra)- fm, ~a r~ahdade uma guerra de sucessão. Tal como as suas. predecessoras, fo~ ahmentad~ por antipatias religiosas, ~a~ c:;nquanto . mtere~sa':a a ~mse_ exace.rba-las, convinha a Navarra d1mmmr a sua 1mportanc1a. Gmse nao podia pres­cindir do problema religioso, tanto para consegui: o apoio cat~lico popular, como para justificar, baseando-se na heres1~ do seu oposltor, a sua própria intromássão no problema da sucessa<?. Navarra; por outro lado necessitava de retirar ao duque de Gmse o apo1o da opinião católica moderada. A menos que se convertesse imediatamente - o que lhe retiraria o apoio dos huguenotes sem assegmar o dos católicos devotos - , apenas poderia conseguir esse resultado apr~~n­tando-se como o defensor da legitimidade e do Estado. A sua pohtlca consistiu portanto em arrefecer sempre que possí_vel _o entu~iasn_1.0 reli­gioso e em apresentar-se como o símbolo das as~;nraçoes nac1on~1s fran­cesas contra a casa estrangeira de Lorena, que d1spunha do apo1o espa­nhol e contra um papado que fizera imprudentemente reviver as velhas susp~itas galicanas interferindo nas leis de sucessão_ em França.

Uma das ironias do momento, no entanto, fm que, para manter a sua luta contra os Guise, Navarra se viu obrigado a combinar a sua posição patriótica com apelos ~o ~uxílio ext~r~o. Só a rainha de Ingl~­terra poderia fornecer-lhe o dmherro necessano para pagar a mercena­rios alemães. Isabel viu-se portanto, em 1585, confrontada com urgentes pedidos de auxílio dos protestantes dos Países Baixos e d~fr~nça. Isso não era novo e ela já adquirira, através ~e uma longa expene~c1a, uma espe­cial habilidade para afastar os pedidos de homens e dinheim. Mas a situação no continente era agora tão grave que se tornava claramente necessária uma resposta mais positiva. Antuérpia estava quase a render-se e a necessidade de enviar tropas inglesas para auxiliar os holandeses toma­va-se premente. As notícias da ali~nça_ entre _os <_!uise e. Filipe II e da capitulação de Henrique III face a L1ga ma1s nao pod1am que refor­çá-la. Se fosse estabelecido em França um regime fantoch~, controlado pela Espanha, os espanhóis teriam pratica~ente a heg_emoma. em t~do _o continente, e o exército de Farnese, vitonoso nos Pa1ses Baixos, f1cana livre para a invasão de Inglaterra. . , .

I·sabel e Burghley viram-se portanto levados a aceitar a poltt t.ca havia muito defendida pela facção Leicester-Walsingham de um com­promisso mais activo co~ os protestantes con!inentais. Nos últimos dez anos esta facção constrmra uma forte relaçao pessoal com o círculo de Guilherme de Orange- homens como Joaquim 01icll c Paulo Buys,

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que tinham chegado a pensar na Inglaterra como única fonte de salvação dos Países Baixos. Estando o terreno portanto bem preparado, foi en­viada uma embaixada a Isabel em Junho de 1585, oferecendo-lhe a soberania dos Países Baixos. A aceitação da oferta teria vinculado a rainha a um apoio ilimitado aos holandeses, que ela continuava a ver como rebeldes sem direito a negociar um título que pertencia ao rei de Espanha. Mas declarou-se desejosa de os proteger e, partindo dessa base, acabou por vir a negociar um acordo. A 20 de Agosto de 1585, três dias após a queda de Antuérpia, foi assinado o tratado de N onsuch. A rainha concordou em fornecer um exército de 5000 homens a pé e 1000 cavaleiros, sob comando inglês, durante toda a guerra. Como garantia de pagamento das despesas, os portos de Flushing e Brill seriam guarnecidos com soldados ingleses.

O conde de Leicester, designado comandante da força expedicio­nária aos Países Baixos, desembarcou em Flushing em Dezembro de 1585. Chegou num momento em que a sorte dos rebeldes se encontrava no ponto mais baixo. Antuérpia caíra; só as quatro províncias da Holanda, Zelândia, Utreque e Frieslândia ainda se aguentavam, juntamente com parte da Gelderlândia; e mesmo essas encontravam-se desunidas e des­moralizadas. Os católicos continuavam fortes e constituíam potenciais fontes de tralição; a perda para os realistas, em 1580, da província nor­destina de Groningen, devido à deserção do seu stadtholder católico, o conde de Rennenberg, infligira profundas chagas psicológicas que esta­vam longe de saradas. O perigo católico, por outro lado, fortalecera a posição dos calvinistas mais radicais. Os regentes das cidades estavam em disputa com os poderosos pregadores calvinistas, e as províncias mais pobres com a Holanda, que suportava o principal peso financeiro da guerra e exigira uma correspondente primazia na formulação da política. Foi neste pântano que o conde de Leicester veio cair.

Depressa se tornou dolorosamente claro que o homem primeira­mente aclamado como salvador dos Países Baixos não possuía o tacto e a subtileza para aquilo que, nas condições existentes, constituía uma missão excessivamente delicada. Enfureceu Isabel aceitando sem sua autorização o título de governador-geral, e antagonizou-se com a classe regente da Holanda e da Zelândia iniciando uma aliança com o popular partido calvinista extremista de Utreque. Em particular, entrou em colisão com os Estados da Holanda e o seu Protector, João van Olden­barneveldt, quanto a uma tentativa de proibir todo o comércio com a Espanha- política que foi entusiasticamente apoiada pelos pregadores de Utreque mas que lançou a ruína sobre os mercadores da Holanda. Também não conseguiu o êxito militar que poderia ter reposto a sua reputação. A morte de Sir Filipe Sidney em Zutphen em 1586 conferiu um toque de bravura a uma útil mas mal conduzida campanha que exi­gia demasiado dos limitados recursos do tesouro de Isabel. A interven­ção podia ser um negócio caro, como Filipe também o descobria em França.

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2. À beira da guerra

Independentemente do seu êxito ou fracasso, o simples facto de a expedição de Leicester se ter realizado sugeria que Isabel aceitava a inevitabilidade da guerra com a Espanha. A drástica intensificação da nctividade marítima inglesa em 1585 dava a mesma impressão. Se bem que a guerra continuasse a não ser declarada, foi nesse ano que a lngla­lcrra e a Espanha iniciaram de facto a sua luta pelo domínio dos mares. Em Abril Sir Ricardo Grenville navegou para a ilha de Roanokc para fundar a primeira colónia inglesa nas Américas. Em Maio, Filipe apreendeu todos os navios ingleses em portos ibéricos, esperando enfra­quecer o poder comercial inglês. Esta apreensão provocou uma violenta resposta dos mercadores ingleses que se dedicavam ao comércio ibérico, os quais exigiram e receberam do governo o direito de retaliação. I\ partir do verão, os mercadores e a pequena nobreza dedicada à mari­nharia juntaram-se numa campanha de pilhagem e pirataria ao largo da costa ibérica. Em Setembro, a rainha autorizou uma nova viagem de Sir Francisco Drake. O objectivo nominal desta expedição era libertar os navios embargados; mas o seu real objectivo era interceptar a frota da prata e fazer incursões nas rotas espanholas.

No entanto, mesmo enquanto Drake atacava Vigo e navegava no 1\.tlântico para pilhar São Domingos e Cartagena, a própria Isabel ten­t·ava ainda aproveitar qualquer iniciativa que oferecesse a mais pequena ·sperança de evitar a guerra aberta. Actuava menos por duplicidade do que por ter um prudente sentido das realidades do poder. Uma coisa ra permitir a Drake realizar uma expedição que podia ser considerada

como uma represália legítima. Outra era procurar uma confrontação total com o Estado mais poderoso no mundo. Em tal confrontação, a Inglaterra encontrar-se-ia claramente em desvantagem. Os seus recursos financeiros eram reduzidos comparados com os da Espanha, se bem que Burghley tivesse conseguido acumular uma reserva de 300 000 f, ·m 1585. A expedição de Leicester e os subsídios a Henrique de Navarra esgotaram o tesouro; e Dra:ke e Hawkins fracassaram em trazer a prata espanhola que poderia compensar as perdas. Apesar dos ricos saques conseguidos pela pirataria, a guerra significava uma perda de prospe­ridade e a consequente miséria. Também não era possível confiar na capacidade da Inglaterra como potência militar. É possível que a mari­nha inglesa fosse equivalente à dos espanhóis, mas ninguém sabia se o país dispunha da capacidade necessária para uma guerra naval pro­longada. E, em terra, uma milícia inexperiente, formada a partir de uma população com metade das dimensões da espanhola, não parecia poder competir com os tercios da Flandres.

Era portanto mais provável que uma atitude bélica decisiva viesse da Espanha e não da Inglaterra, apesar da crescente exigência popular em Inglaterra a favor de uma política vigorosamente anti­-espanhola. O cardeal Granvelle havia muito que pressionava Filipe para uma actuação mais enérgica, tanto contra Henrique III como

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contra Isabel. Com a sua habitual v1sao das realidades estratégicas, compreendera que o desvio das atenções do Império Otomano para o que acontecia ao longo da sua fronteira com a Pérsia dava a Filipe uma oportunidade única de se voltar para o Atlântico e o norte - oportuni­dade que podia ser melhor explorada a partir de Lisboa. Mas Filipe começava a fartar-se do seu incómodo ministro. Na primavera de 1583 trocou Lisboa por Madrid, onde começou a consultar cada vez menos o cardeal. Quando em 1585 o rei ficou gravemente enfermo e criou um corpo especial conhecido pelo nome de Junta de Noche para o acon­selhar, Granvelle viu-se excluído. Os homens que agora detinham o poder em Madrid eram Cristóvão de Moura, que planeara a sucessão portuguesa; Mateus Vásquez, o secretáro do rei; e João de Idíáquez, confidente e colega de Granvelle, que p~ssaria a suportar o peso da governação à medida que o rei envelhecia e piorava a sua saúde. O pró­prio Granvelle limitava-se a acompanhar de fora, desiludido, o que se passava, vindo a morrer - quatro anos depois desse outro homem forte do reino, o duque de Alba- em Setembro de 1586.

No entanto Filipe, como lhe era característico, apropriava-se lenta e hesitantemente da política do cardeal, apesar de o rejeitar pessoal­mente. Os argumentos a favor da prudência nas suas relações com a Inglaterra tinham sido visivelmente enfraquecidos pelos acontecimen­tos de 1584-85. Não só a intervenção inglesa nos Países Baixos amea­çava impedir o sucesso final da campanha de reconquista orientada por Farnese, como ainda os piratas ingleses punham cada vez mais em causa a segurança das índias e as rotas transatlânticas da Espanha. Entre a comunidade mercantil espanhola a evolução da ofensiva marítima inglesa conduzia agora à crença em que a melhor maneira de proteger a eco­nomia atlântica da península consistia em lançar um ataque directo à Inglaterra. É certo que a situação internacional era agora mais favorável a um empreendimento desse tipo do que jamais o fora. O rece!io da reacção francesa sempre inibira Filipe na sua atitude para com a Ingla­terra; mas agora, com Henrique III neutralizado pelos Guise pró-espa­nhóis, o perigo de intervenção francesa em apoio de Isabel parecia ter finalmente passado.

A partir de fins do verão de 1585, portanto, Filipe começou a acarinhar as propostas de Santa Cruz acerca da «empresa de Inglaterra». Mas necessitava ainda de um evidente pretexto legal e moral para uma acto de guerra. Este foi fornecido na primavera de 1586 por Maria, Rainha da Escócia. Em inícios do ano, Walsingham, tentando obter uma prova irrefutável da cumplicidade desta nas conjuras contra Isabel, arranjara maneira de lhe permitir comunicar com França. Numa carta de 20 de Maio dirigida a Mendoza, em Paris, ela declarava-se pronta a transfe­rir no seu testamento os direitos de sucessão ao trono inglês do seu filho herege, Jaime, para Filipe de Espanha. Em troca, Filipe assegura­ria a protecção pessoal e a vingança dos actos cometidos contra a rainha ofendida.

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A resposta favorável de Filipe à carta de Maria ohdgav:a-n 11

apoiá-la; mas parecia que tanto os interesses dela como de Filip · :wriíllu melhor servidos pelo assassínio de Isabel do que por uma on • ro~;u l '

difícil invasão de Inglaterra. Em Julho Mendoza foi informado l ' f11

privado da preparação por António Babington de uma conjura, sun­do-lhe perguntado se seria possível dispor do auxílio de Espanha no caso de se verficarem levantamentos católicos em Inglaterra c na Escócia. Mas além de Mendoza, também Walsingham teve conhecimento da conjura, e Babington e os cúmplices foram presos e executados. Manti­nha-se o angustiante problema da própria Maria. Aqueles que desejavam ver terminada a sua incómoda vida, viram-se grandemente ajudados pelo derrube na Escócia, no Outono de 1585, da facção francesa for­mada por Esmé Stuart, duque de Lennox, que morrera em 1583. A assinatura com Jaime VI do tratado de Berwick, em Julho de 1586, deu-lhes ainda maior encorajamento. Através deste tratado a Inglaterra e a Escócia prometeram mútuo auxílio em caso de invasão estrangeira, sendo dado a Jaime um subsídio de 4 000 f. por ano. O delicado tema da sucessão inglesa manteve-se como sempre tabu, mas Jaime tinha boas razões para pensar que, se se conduzisse de modo circunspecto aos olhos de Isabel, acabaria por obter esse prémio. Se um dia tivesse de escolher entre a coroa inglesa e a vida da mãe, poucas dúvidas restavam quanto à escolha que faria.

Em Outubro de 1586 foi constituída uma comissão para o julga­mento de Maria, Rainha da Escócia, que a considerou culpada. Isabel não conseguia convencer-se a matar uma rainha irmã, e os pedidos de clemência de Jaime fortaleceram a ,sua resistência às exigências do con­selho e do povo no sentido de Maria ser executada. Mas quando Jaime deu a entender, em correspondência privada, que não anularia o tratado de Berwick para salvar a mãe, Isabel ficou sozinha na defesa de uma causa sem esperança. Durante semanas sofreu a angústia da indecisão mas, finalmente, foi-lhe arrancada a ordem de execução e Maria foi enviada para o cadafalso em Fotheringay, em 18 de Fevereiro de 1587.

Enquanto o destino de Maria ainda não era claro, João de Idiáquez enviou uma nota a Filipe esboçando os argumentos a favor e contra uma invasão da Inglaterra. Admitia que os custos do empreendi­mento pudessem exceder os seus lucros, em termos dos rendimentos de uma Inglaterra conquistada. «Mas se aprofundarmos a questão, a em­presa parece ser inevitável, quanto mais não seja como medida defen­siva desprovida de intenções agressoras ou ambiciosas. Possessões tüo dispersas como as de Vossa Majestade não podem ser protegidas ott preservadas sem uma punição rigorosa de todos os que ousarem al :a cá-las». Se a Inglaterra fosse conquistada e a Rainha da Escócia l ·. ll i

vesse já morta, Filipe seria livre de dispor do país como quiHt', ,., «pois é deste modo que os monarcas aumentaram sempre o seu pndn

e as monarquias cresceram-não apropriando-se de tudo pa ra . a I"" prios, mas distribuindo grande parte pelas suas criaturas c dqll'ntl• aat• ·.

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Se Vossa Majestade colocar um representante no trono de Inglaterra, que agora agita os Países Baixos, perturba as índias e infesta o oceano, não haverá mais ninguém na cristandade que o possa provocar, parti­cularmente por a França (que é a única com capacidade para tal) veri­ficar então terem passado as suas oportunidades». A conveniência da invasão era portanto óbvia. Por outro lado a causa era justa, e o rei podia indubitavelmente esperar de Deus esta justa recompensa.

O memorando de Idiáquez revela brilhantemente as considerações que regiam a política madrilena nesses meses cruciais anteriores à to­mada de uma decisão quanto à empresa de Inglaterra: o profundo sentimento de frustração devido à incapacidade do poder espanhol de esmagar a revolta nos Países Baixos e garantir a segurança da econo­mia marítima espanhola: a concepção de uma forma de hegemonia de acordo com a qual clientes fiéis do rei de Espanha governassem os Es­tados europeus, e o seu inimigo tradicional, a França, fosse firmemente neutralizado; e a crença numa coincidência da vontade de Deus e dos interesses de Espanha. As notícias da execução de Maria apenas refor­çaram uma hipótese que já parecia suficientemente forte. De certo modo, no entanto, facilitaram a tarefa de Filipe. Enquanto· Maria vivesse, seria a herdeira legal do trono inglês, e a conquista de Inglaterra que a transformasse em rainha seria menos vantajosa para a Espanha do que para a França e para as relações de Maria com o·s Guise. Mas agora que estava morta, mesmo se tragicamente, o herdeiro por ela designado era Filipe. O rei podia portanto apresentar-se ao mundo como vingador de uma rainha martirizada, defensor da legitimidade e paladino da causa católica contra dois governantes hereges- Isabel de Inglaterra e Jaime VI da Escócia. . Ao lutar pela causa católica, Filipe necessitava não só da bênção espiritual do papa como ainda do seu apoio financeiro. Durante o longo pontificado de Gregório XIII, observara-se a habitual fricção entre Filipe e o papado; mas o papa, se bem que impaciente e hesitante, vira-se, embora com relutância, forçado a aceitar que, afinal, fosse o rei de Espanha a definir o tom. Se protestasse, como muitas vezes fez contra as prevaricações e atrasos de Filipe, arriscava-se a ver-se posto no seu lugar pelo igualmente irascível conde de Olivares, que viera para Roma como embaixador espanhol em 1582 4• Mas a 10 de Abril Gregório mor­reu com a idade de oitenta e três anos, e Olivares viu-se perante Sixto V, um papa de temperamento muito diverso.

Tal como outros antes dele, Olivares tendera a subestimar Sixto em parte, sem dúvida, por falar demasiado. Mas foi a extraordinária fluência dos seus sermões que primeiro afirmou Félix Peretti, filho de um camponês-jardineiro de ascendência eslava, na sua espectacular

4 Emba;ixa;dor entr,e 15812 e 1591, Henrique de Guz.mán, conde de Olivares, era pai do grande ministro e favorito de Filipe IV, Gaspar de Guz­mân, o coode-duque de Ollvwres, que nasceu em Roma em 15·87.

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carreira eclesiástica. Ao entrar na ordem franciscana adquiriu fama atra­vés da pregação, sendo elevado à pú~pur~ s.ob o nome de cardeal Montalto por Pio V. As disputas domesttc~s. Itahanas foram leva?as para o conclave que se segu'iu à mmie de Gregono, e 9-~e. se caractenzo~ por uma amarga luta entre os cardeais Farnese e MediCIS. A declaraçao de neutralidade do rei de Espanha sugeria que talvez '? desafo~una~o car­deal Farnese conseguisse finalmente a tiara; e fm para Impedir este resultado infeliz que o cardeal de Médicis, subrepticiamente- mas com êxito - encaminhou os apo'ios para o cardeal Montalto. .

Ao elevarem Montalto, de sessenta e quatro anos de Idade, ao trono papal, os cardeais compreendiam qut~ tinham escol~ido ~m suces­sor de Gregório relativamente jovem e VIgor~s?, mas nu~guem estava preparado para a tempestuosa energia do pontificado de cmco anos de Sixto V. Tratava-se de um homem que não só falava, como actuava; que não só falava, como actuava; que se lançou com uma energia tum.ultuosa em todos os tipos de empreendimentos, desde a ref<:rma da~ ~man?as papais . até à revisá~ da Vulgata, ?a reconstru~ao ,a?llllmstratlv.a dos estados temporais do papado a reconstruçao ftsica da CI­dade Eterna. Se alguma acção isolada simbolizou o carácter do novo pontificado, foi a construção do grande obelisc? na praça de S. Pedro, em 1586. Todos lhe disseram que era proeza tmpossiVel. Mas sob as ordens imperiosas de Sixto, um projecto sonhado pelos papas havia cento e trinta anos foi realizado no mesmo número .de di!ls pel.o arquitecto papal, Domenico Fontana. Não podia haver conftrmaçao mats notável da firme convicção de Sixto de que a vontade humana, so~ o impulso divino, podia superar qualquer obstáculo. Se o balanço fmal do seu pontificado não confirma integralmente a verdade da sua con­vicção- se, por vezes, parece ter existido mais som e fúri~ do q~e resultados sólidos -isso deveu-se ao facto de, mesmo para Stxto, exis-tirem certas coisas que são, afinal, impossíveis. .

Por exemplo, para S'ixto foi uma infelicidade que tanto H.ennque de Navarra como Isabel de Inglaterra fossem hereges.. Acelt~va-.os como chefes, e gostaria de os ver ac~lherem-se a~ sew da IgreJa. Isso devia-se não apenas às grandes qualidades pess?ats de ~mbos, mas também porque o papa neles via aquilo de que mais necessitava - um contrapeso eficaz ao poder esmagador da Espanha: Tal co~o o: seu~ predecessores, considerava-o intoleravehnent~ opressivo, e a sltua.ç~o fot ainda exacerbada pelo casamento, · no primerr? ano do seu pontificado, da filha mais nova de Filipe, Catarina, com o JOVem Carlo~ .Manuel, que sucedera ao pai, Manuel Felisberto, como duque da Sabota em 1580. o casamento, que ameaçava estender a influência es~anhola ao norte ~a Itália encheu-o de maus presságios, e levou-o a aproximar-se da Toscama e de 'veneza, que temiam tanto como ele yrópri? o domínio espanhol.

No entanto não havia forma de fugrr ao dtlema que os seus pre­decessores tinha~ enfrentado. Ao desagrado e desconf~ança 1nstintivs>s do papa relativamente à Espanha opunham-se a promoçao c a cxpansao de fé , infelizmente dependente da força das armas espanholas. Em

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11rança, o zelo de Sixto pela promoção da fé levou-o no início do seu pontificado a aplicar uma política de que mais tarde veio a arrepender-se Compreendeu demasiado tarde que o seu apoio à Liga e a exco­munhão de Henrique de Na varra apenas tinham servido para refor­çar a influência de Filipe, aproximar Navarra ainda mais de Isabel e provocar as perigosas forças do galicanismo. E, no entanto, enquanto a Liga lutasse quase sozinha pela fé, e Navarra rejeitasse a ideia de con­versão, que outra coisa poderia Sixto fazer? O mesmo aconteceu com a Inglaterra, onde as suas iniciativas junto de Isabel foram ignoradas - o que não surpreende. A quem podia recorrer contra aquela J ezabel, a não ser Filipe?

Foi a execução de Maria, Rainha da Escócia, que finalmente levou Sixto a cooperar com os planos espanhóis. Enfureceu-se no con­sistório contra a rainha inglesa e, num gesto de desafio, fez Guilherme Allen cardeal. Já no final de 1585, tinha renovado a cruzada espanhola por mais sete anos. Agora, em Julho de 1587, chegou a um acordo com Olivares no sentido de fornecer um subsídio de um milhão de ducados, sob condição de ser enviada uma expedição a Inglaterra antes do final do ano e de Filipe colocar no trono inglês um príncipe que res­taurasse a fé romana. A partir desse momento, portanto, a empresa de Inglaterra parecia ter garatindo o apoio papal. Enquanto os navios para a expedição eram preparados nos estaleiros espanhóis, dir-se-ia que as linhas de divisão secular e religiosa convergiam finalmente. Alinhadas contra os protestantes ingleses, franceses e dos Países Baixos encontra­vam-se, agora, as forças de Espanha e da «Contra-Reforma». No en­tanto, esta descrição dá a ideia de uma combinação muito mais mono­lítica do que o era na realidade. Se as forças principais da «Contra­-Reforma» eram a Espanha, o papa e os jesuítas, era ainda verdadeiro que mesmo nesse momento de crise a aliança dificilmente poderia ser considerada muito firme. O papa não gostava dos jesuítas e odiava os espanhóis; ansiava desesperadamente pela restauração do catoli­cismo na Inglaterra, mas via com angústia a consequente colocação no trono inglês de um cliente de Filipe II; e suspeitava, e talvez quase o deGejasse de que o empreendimento a que dera a sua bênção terminaria com o fracasso e a derrota. O triunfo da fé era o ideal mais elevado tanto do rei como do papa. Mas se por uma vez, em 1587-88, a diplo­macia e o dogmatismo iam de mãos dadas, era mesmo assim difícil não ansiar pelo afastamento dos dois caminhos.

3. A Armada e a Liga

A preparação da Armada espanhola foi laboriosa. O marquês de Santa Cruz pensara originalmente numa esquadra de cerca de 500 navios que transportariam 60 000 soldados e custaria um total de quase quatro milhões de ducados. Os navios deviam ser construídos nos esta­leiros de Espanha e de Itália; era necessário preparar contratos para

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o armamento, a madeira e os abastecimentos, grande p:11 k dt,,. qtt ti • só podiam ser obtidos, e a elevado custo, no norte da E11mp t t' nt• Báltico. Então, em Abril de 1587, Sir Francisco Drake, havia poueo vi11dt1 da sua expedição de saque nas Caraíbas, fez a sua famosa incursilo t•n• Cádis. Destruíu aqui vinte e quatro navios e grande quantidade de abns tecimentos, antes de se dirigir para o Cabo de S. Vicente, onde acos~-;ou a frota espanhola e se apoderou de grande quantidade das aduclas necessárias para guardar os abastecimentos da frota.

O efeito da expedição de Drake a Cádis foi o adiamento até 1588 de uma invasão programada para 1587. As actividades de Dra:ke não só interferiram seriamente nos preparativos da Armada, como ainda obrigaram Santa Cruz a navegar em Junho para os Açores, a fim de proteger a frota da prata. Se bem que esta chegasse em segurança a Sevilha, Santa Cruz e os seus homens não se encontravam em condi­ções, ao voltar a Lisboa, de embarcar de imediato para uma ex­pedição a Inglaterra. O envio da esquadra foi portanto adiado e esta ainda não se encontrava preparada em Fevereiro de 1588, quando Santa Cruz morreu em Lisboa. O seu relutante sucessor foi o duque de Medina Sidonia, cuja longa experiência de preparação de esqua­dras na Andaluzia o convertia na escolha óbvia para a organização final da Armada, senão para o seu comando. Ao chegar a Hsboa tomou as últimas medidas, sob a distante mas atenta vigilância de um rei estra­nhamente impaciente; e, a 30 de Maio, a sua Armada de 130 navios fazia -se ao mar.

A estratégia que orientava a expedição da Armada fora definida pelo rei após longas consultas a Santa Cruz e a Alexandre Farnese, durante as quais modificava constantemente os planos. Na sua versão final, incluía a conjunção da Armada e do exército de Farnese, que seria embarcado em batelões e escoltado pela Armada na travessia do Canal da Mancha. Isso exigia um grau de coordenação fortemente im­provável nas condições do século dezasseis, e o esquema foi afectado desde o princípio pela inexistência de um porto de águas profundas nos Países Baixos, para os galeões. Farnese, com a sua capacidade para compreender o essencial, tinha consciência dos problemas estratégicos e logísticos envolvidos. Sempre sentira uma certa angústia em relação a um empreendimento incerto e arriscado que provocaria a relegação dos seus próprios planos de controlo dos Países Baixos para um papel secundário. A invasão de Inglaterra, por outro lado, privava-o dos reforços e do dinheiro de que já se considerava injustificadamente des­pojado. Insistiu portanto, na sua correspondência ao rei, em certos requisitos antes de a esquadra invasora se fazer ao mar: deveria haver segredo absoluto quanto aos seus objectivos; o sul dos Países Baixos deveria encontrar-se bem defendido a fim de deter quaisquer tentativas de invasão vindas de França; e esta deveria encontrar-se imobilizada devido aos seus próprios problemas internos, de modo a Henrique III se ver impedido de dar qualquer tipo de assistência a Isabel.

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O atraso do envio da Armada já pusera em causa o segredo, em yue . ~arnese tanto insistia. Por outro lado, a sua condição quanto à passiVIdade da França fora largamente conseguida em resultado dos acontecimentos de 1587. Durante algum tempo, a situação não parecera prometedora. Os subsídios de Isabel a Henrique de Navarra tinham per­mitido a este contratar uma vasta força de mercenários suíços e ale­mães, que passaram as fronteiras da Lorena em Agosto de 1587 sob o comando do barão von Dohna. A fim de impedir o encontro das forças de Navarra com o exército de reforço de Dohna, o próprio Henrique 111 se instalou no Loire com o corpo principal das tropas reais. Daqui enviou Guise contra os alemães, pensando que aquele seria derro­tado, e o favorito Joyeuse contra Navarra, supondo que este não se dei­xaria envolver numa batalha. Infelizmente para o rei, os seus cálculos saíram novamente errados. Navarra derrotou e matou Joyeuse em Cou­tras a 20 de Outubro e a 24 de Novembro, em Auenau, Gu:ise derrotou Dohna e os seus Reiter alemães, a quem Navarra não conseguira jun­tar-se. Como resultado disso, o vitorioso duque de Guise foi recebido com grandes aclamações como o herói da França católica, enquanto a Liga promovia por toda a parte uma agitação contra Henrique 111 e o seu favorito, o duque de Epernon.

A vitória de Guise em Auneau parecia ter consequências mais imediatas do que a de Navarra em Coutras, e o embaixador espanhol em Paris, Mendoza, tinha razões para se sentir satisfeito. Havia agora todas as possibilidades de a Liga ficar em posição de controlar Henrique 111, como certamente desejaria tanto por interesse próprio como por con­vicção. A Liga poderia ser pouco mais que uma coligação mal coorde­nada da Casa de Lorena, de membros da pequena nobreza insatisfeitos, de clérigos extremistas e de cidadãos descontentes, mas constituía um vigoroso movimento de protesto que a Espanha poderia esperar apro­veitar em seu benefício.

O duque de Guise merecia suficiente confiança enquanto houvesse prata espanhola para o atrair. Apreciaria sempre o auxílio estrangeiro, desde que aumentasse as suas possibilidades de assegurar a sucessão; e o interesse de Espanha em explorar as fraquezas da monarquia coinci­diam lindamente com os seus. Podia contar com o apoio do seu nume­roso séquito, que se manteria leal onde quer que o levasse, assim como das cidades do norte e do leste de França, onde existia um grande descontentamento. Quase trinta anos de agitação e guerra tinham afec­tado o comércio e a indústria, e algumas regiões tinham sido devastadas por bandos de salteadores. Por cima de tudo isto, a insolvência régia dera origem a impostos excessivos - só a taille subiu de sete milhões de livres em 1576 para dezoito milhões em 1588. Os impostos afectavam principalmente as cidades; e isso significava, na prática, as cidades do norte de França, dado que o sul se afastara de facto, formando um Estado huguenote-politique separado. Chamadas a suportarem um fardo tornado ainda mais pesado pela deserção do sul, as cidades do norte

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prodigalizavam o seu ódio aos huguenotes, que não pagavam impostos, e ao dissoluto rei em cujo nome eram colectados.

Nas cidades, certos sectores da população tinham boas razões para explorar, por sua vez, o descontentamento geral. Até à década de '10, a venda pela coroa de crescentes quantidades de cargos jurídicos e administrativos tornara possível um considerável grau de mobilidade social; mas sob Carlos IX e Henrique 111, a crescente tendência da monarquia para sancionar a sucessão hereditária nos cargos começara a transformar os seus detentores numa casta fechada e vitalícia. As oportunidades de acesso a eles diminuíam, . portanto, no preciso mo­mento em que as difíceis circunstâncias económicas tornavam o cargo jurídico ou governamental uma alternativa bastante desejável à indús­tria ou ao comércio. Isso significava que todas as cidades importantes nos anos 80 possuíam cidadãos ambiciosos e descontentes. Em particular, os advogados e notários olhavam invejosamente para as posições in­fluentes de que dispunham as famílias detentoras de cargos.

Privados de cargos nos parlements e na administração régia, mui­tos desses advogados tinham no entanto conseguido abrir caminho para cargos municipais e em corporações urbanas. Em 1578 essa classe de ambiciosos avocats dominava os governos de muitas cidades. Dispunham de algum poder, mas este era insuficiente para satisfazer as suas ambi- · ções. Começaram a pensar cada vez mais em si mesmos como paladinos de comunas virtualmente autónomas, defendendo os interesses do mu­nicíppio e do povo contra os seus inimigm e opressores - os mem­bros da pequena nobreza, os detentores de cargos e os agen­tes çle uma autoridade régia cada vez mais posta em causa. Ao procu­rar aliar a populaça à sua causa, encontraram aliados nos curés e nos frades mendicantes -franciscanos, dominicanos e carmelitas, que denunciavam a riqueza da instituição eclesiástica e pregavam a neces­sidade de um retorno à absoluta pureza da fé e da moral com uma paixão e eloquência só igualada pelos seus rivais calvinistas dos Países Baixos. Foram ainda os pregadores que- como nos Países Baixos -actuaram como agitadores e organizadores da revolta. Forjaram entre si os elos de uma cadeia conspirativa que, em fins de 1587, unia num único movimento subversivo a Liga de Paris e as suas congéneres nas pro­víncias.

Inevitavelmente, os pregadores e agitadores foram mais longe e mais depressa do que as corporações municipais. Mesmo onde estas eram dominadas por simpatizantes da Liga, o instintivo receio da agitação popular característico de todos os conselhos municipais levou-os durante 1587 a travar a Liga. Mas enquanto o governo das cidades provinciais se mostrava pelo menos receptivo às ideias da Liga, o da capital, apesar de desiludido com o rei, mantinha-se-lhe hostil. A hostilidade do go­verno da capital forçou a Liga de Paris a atitudes extremistas desde o início. Advogados, notários, clérigos e doutores da ultra-católica Sor­bonne eram os chefes naturais da revolta, enquanto os artesãos e lojistas eram mobilizados para uma organização militante que no momento ade-

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q uado poderia ser lançada contra o rei e as autoridades municipais. A cidade foi dividida em sectores, em número de dezasseis; um conselho secreto, que acabou por ser conhecido por Conselho dos Dezasseis, foi constituído; e foram enviados agentes para entrar em contacto com as cidades provinciais, propagando também os ideais da Liga entre a população parisiense.

Ao longo de 1587, os habitantes da capital mantiveram-se agitados e excitados. O preço dos alimentos era elevado; a cidade tinha fome; e os padres e frades alimentavam o entusiasmo religioso recor­rendo por exemplo ao relato, com sangrentos pormenores, dos sofri­mentos de Maria, Rainha da Escócia, e dos mártires católicos ingleses. Henrique Ill tinha consciência dos perigos que uma capital hostil repre­sentava para si próprio, e mandou prender três dos pregadores mais ousados, em 2 de Setembro de 1587. Mas ao sinal de alarme a Liga desafiou em força a autoridade régia, e Henrique Ill furtou-se a tomar medidas enérgicas, que, no entanto, talvez tivessem podido restabelecer o seu controlo sobre a cidade. A Liga de Paris tinha agora consciência da sua força, e a vitória do duque de Guise em Auneau aumentou a sua confiança. Já não podia haver qualquer dúvida quanto ao seu valor tanto para Guise como para Mendoza. Manipulada com êxito, era capaz de aplicar uma pressão decisiva sobre Henrique Ill, num momento cru­cial para os assuntos tanto da França como da Europa. Para Guise, podia ser usada para destruir o intolerável favorito do rei, Epernon. Para Mendoza, podia contribuir para imobilizar o rei, enquanto a Armada navegava contra Inglaterra, impedindo-o de ir em defesa de Isabel.

Nos primeiros meses de 1588 Guise e Mendoza trabalhavam em íntima colaboração. Guise ficou satisfeito por apoiar o projecto de inva­são de Inglaterra. Vingaria a morte da prima, Maria da Escócia; e seria bem recompensado pelos espanhóis. Os tenentes de Guise rece­beram portanto instruções no sentido de controlar os portos do Canal, que poderiam ser usados como refúgio da Armada em caso de emer­gência. Mendoza e Guise encontravam-se também em íntimo contacto com o Conselho dos Dezasseis. Este há muito que tinha preparado planos para a tomada do poder em Paris, e Mendoza desejava que um movimento desse tipo fos·se sincronizado com a viagem da Armada.

Mas o embaixador espanhol e o duque de Guise não eram os únicos homens com projectos ambiciosos na primavera de 1588. Hen­rique III considerou intolerável que a sua autoridade fosse desafiada pelos cidadãos de Paris, constatando com uma ansiedade cada vez maior a consolidação do poder dos Guise e os preparativos espanhóis para a conquista da Inglaterra. Chegara o momento de tomar contra-medidas eficazes para se salvar e à Inglaterra. Desta feita, em vez de fazer al­gumas prisões, utilizaria as suas tropas em Paris. Entretanto, o duque de Nevers, a quem acabara de nomear governador da Picardia, forçaria o duque de Aumale, adepto dos Guise, a abandonar as suas recentes con­quistas; e o duque de Epernon, como governador da Normandia, desim-

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pediria os portos do Canal e iria em auxílio de Inglaterra, quer directa­mente, quer indirectamente através de. um ataque à Flandres:

Em fins de Abril de 1588 Henrique deslocou quatro mil soldad~s suíços para o Faubourg Saint-Denis. Os chefes da Liga estavam sufi­cientemente preparados para desencadear uma revolta popular em qual­quer momento. É possível que se contivessem a pedido de Mendoza, que não desejava qualquer acção decisiva até a ~rmada se ~aze: a~ ~a~; mas o grau de cooperação entre Mendoza e a Ltga de PariS nao e f~c1l de calcular. Os Dezasseis podem muito simplesmente ter tentado ~vltar os riscos de uma insurreição popular. Se fosse possível traze~ Gmse ~ Paris, a sua simples presença poderia ser suficiente para i!ltimtdar .o re1. Em resposta aos urgentes apelos dos Dezasseis, no sentido de. v1r em apoio da cidade, o duque partiu de Soissons e~-direcção.~ ~ans, onde entrou a 9 de Maio acompanhado por multldoes entustashc~. que o aclamaram pelo caminho. O seu primeiro acto ~o!1~1stm em apresentar cumprimentos à alarmada Catarina de MedtciS e? e~ seguida, com uma fanfarronice típica, dirig~u-se para. uma aud~êncm com o rei, que o proibia de entrar na capital. Hennque. poden~, _se tivesse querido, ter morto Guise· nesse momento; mas ~av!a .multldoes delirantes no exterior do Louvre, e evitou esse acto de vwlencta.

Em vez disso, o rei planeou um coup militar que poria nas suas mãos os chefes da Liga de Paris e o próprio duque. A ~ilícia da cidade deveria ocupar os pontos estratégicos como prepar~çao para a entrada das tropas suíças e dos guardas franceses estaciOnados nos subúrbios. A milícia já não merecia de facto confiança; mas as tropas do rei marcharam sobre uma cidade silenciosa, na manhã de 12 de Maio, sem encontrar oposição. Dir-se-ia que o rei tinha tomado a sua capital ,c;em sequer disparar um tiro.

O único bairro que mostrou sinais de estar pronto ~ defe~der-se foi o Quartier Latin, cujos habitantes começaram a constrmr barricadas. Entretanto os suíços mantiveram-se nas posições de combate, esperando por ordens que nunca vieram. Vendo qu.e nada a~ontecia, a populaça ganhou coragem. Por toda a parte surgiram ~arncadas; _e sob o sol quente da tarde, os ânimos começaram a excitar-se. Entao, enquant? tocavam os sinos as multidões lançaram-se sobre os soldados, que VI­

ram a retirada i~pedida pelas barricadas. Sob uma sa~aivada de pro­jécteis, muitos dos soldados depuseram as ar~as. O rei, por sua vez, foi completamente ultrapassado pelos acontecimentos, e apelou deses­peradamente para Guise para que salvasse os suíços e aplacasse uma multidão que só ele tinha força para controlar. Enquanto o duque se deslocava desarmado pela cidade, a rebelião transformav~-se numa tririnfante celebração de vitória. As barricadas foram desfettas, permitiram aos regimentos do rei, derrotados? que abandonassem _a cidade; e arderam fogueiras durante toda a n01te. Mas enqua_nto Pans celebrava, o rei saía calmamente pela Porte Neuve, que nao estava guardada, afastando-se de uma capital que, durante algumas horas, pensara ser sua.

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Apesar da fuga do rei, o resultado do Dia das Barricadas foi tão satisfatório para os espanhóis que se justifica a suspeita de que tenh:a sido organizado pelo embaixador espanhol. Talvez fosse. Mas mais provavelmente foi a consequência, meio acidental e meio planeada, de uma série de acontecimentos desencadeados pela própria decisão do rei de em Abril enviar tropas para os ~Subúrbios de Paris. Depois disso ter acontecido e de m chefes da Liga terem pedido o auxílio de Guise, difi­cilmente se poderia evitar uma explosão popular numa cidade em que as emoções eram excitadas havia meses. Mas, de qualquer modo, Men­doza tinha todas as razões para recordar com satisfação esse im­portante dia. Significava que, como escreveu a Filipe 11, «O rei francês será incapaz de auxiliar os ingleses seja de que maneira for» S. Esta opinião revelou-se correcta. A fuga de Henrique deixara-o sem poder, e Epernon abandonou o seu governo da Normandia e retir?u-se _para Angoulême. Quando, finalmente, a Armada começou a subrr m~Jes~o­samente o Canal da Mancha, na última semana de Julho e na pnmeira de Agosto, Farnese nada tinha a recear da fronteira da Flandres, nem Medina Sidonia da costa francesa.

O destino de Inglaterra dependia agora dos seus marinheiros e navios. A marinha da rainha tinha sido bem alimentada pelo seu tesoureiro, João Hawkins, mas os comandantes ingleses não tinham expe­riência de uma batalha naval em grande escala e não havia certezas quanto à sua reacção ou ao resultado do confronto. Quando os nav~os de Howard e Drake perseguiram a formação em cresc~nt~ dos na':10s espanhóis que subiam o Canal, viram-se confron~ados dms Sistem~ dife­rentes de guerra naval. As duas esquadras eqUiparavam-se em numero e tonelagem. A Armada possuía 130 navios, cujo núcleo era formado pelos vinte galeões dos esquadrões castelhano e português e por quatro grandes navios da Nova Espanha. Existiam ainda 41 navios mercantes e numerosos navios mais pequenos e de abastecimento; e a esquadra transportava ainda 2431 peças de artilharia e 22 000 marinheiros e sol­dados. O núcleo da esquadra inglesa - cerca de um sexto do seu total - consistia em trinta e quatro navios da marinha real, de tonelagem e poder de combate muito variados. Juntamente com estes en;ontra­vam-se cerca de trinta navios mercantes, cujo poder era comparavel ou pouco inferior ao dos navios da rainha da mesma classe.

Se bem que os combatentes fossem grosso modo equivalentes em número e dimensão, diferiam bastante em capacidade de navegar e de combate. Filipe II pusera prudentemente de lado o plan? d~ Santa Cruz de utilização de galés mediterrânicas nas águas mais vivas do norte. As galés, com a sua grande liberdade de movimento, podiam ter ganho Lepanto, mas encontravam-se mal equipadas para enfrentar as

5 Citado por De Larrnar Jerusen, <<Ji'ro.n:co-Spami:s!h D~y am:d the Armada» From the Renaissance to th·e Counter-Rejormatton, org. C. H.

carier LÓ<ndJres, 19'6'6, p. 219.

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ondas atlânticas e não estavam à altura dos grandes veleiros ingle­ses, fortemente armados, cujo advento acabaria por conduzir ao triunfo da vela sobre o remo. Filipe optara assim pelos galeõos, idealmente equipados para lançar os arpéus, imobilizando os navios inimigos, c para as abordagens. Estes galeões foram equipados com artilharia pesada mas de curto alcance, que seria usada para diminuir a capacidade de movimento dos navios ingleses, facilitando a sua abordagem. Os navios ingleses, por outro lado, transportavam armas de longo alcance, a fim de evitar a aproximação dos galeões e a abordagem. Os navios ingleses acabaram por mmtrar-se muito mais móveis e capazes de apro­veitar os ventos, mas os seus canhões de longo alcance não penetravam facilmente os galeões.

Os grandes navios de Medina Sidonia mantinham uma soberba disciplina enquanto subiam o Canal, mas o defeito original dos planos de Filipe tornou-se cada vez mais evidente à medida que se aproxima­vam de Calais. Com um esquadrão inglês e os rápidos barcos holan­deses patrulhando os baixios ao largo de Dunquerque e Nieuwport, era impossível que as barcaças invasoras de Farnese saíssem para o mar sem protecção. Mas era igualmente impossível aos galeões aproximarem-se suficientemente da costa para as poderem escoltar. Como resultado, nunca se verificou o encontro entre as barcaças e os galeões; e a Armada esperou inutilmente ao largo de Calais as barcaças que Farnese não se atreveu a enviar. Então, os ingleses enviaram os seus navios brulotes contra os galeões. Quando aqueles se aproximaram, a Armada desfez a a sua garbosa formação, e os navios espalharam-se, numa tentativa de fuga. Se bem que Medina Sidonia conseguisse juntá-los novamente ao largo de Gravelines, a 8 de Agosto, constituíram alvos perfeitos para a esquadra inglesa - suficientemente próximos para serem alcançados pela artilharia desta, mas demasiado longe para a artilharia espanhola surtir efeito. Mesmo então, no entanto, o poder de fogo dos canhões ingleses não era suficiente para destruir a esquadra espanhola. Se bem que a Armada tivesse sofrido danos, pelo menos sobrevivia; mas deixou de ter qualquer poosibilidade de se reunir a Farnese, e ficou inelutavelmente exposta aos perigos do vento e do mau tempo. Apanhada pelo vento de sudoeste, a esquadra danificada foi arrastada para o Mar do Norte, de onde fez o que pôde para contornar as Ilhas Britânicas, dirigindo-se para os portos espanhóis. Uma soberba marinharia evitou um desastre total, e talvez dois terços do seu poder de combate foram pre­servados; mas os destroços coalhavam as costas da Escócia e da Irlanda e as baixas foram pesadas.

Em termos de poder de combate, portanto, a derrota da Armada representou um golpe grave, mas não esmagador, para a Espanha. Só se haviam perdido quatro galeões e, passados dois anos, Filipe tinha reconstruído as suas frotas das índias. O poder naval espanhol nos anos 90 - como Drake e Hawkins descobriram à sua custa - era ainda mais formidável que antes. O golpe assestado à marinha mercante espanhola foi porém muito mais pesado, incluindo a perda de dezoito

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dos quarenta e um navios mercantes e grande número de marinheiros experimentados. Mas, se bem que a vitória permitisse aos ingleses recu­perarem a iniciativa no Atlântico, o monopólio es~an~ol do ~omércio americano mantinha-se, e as suas rotas para as Indms contmuavam intactas.

As consequências políticas e psicológicas da vitória inglesa, por outro lado, tiveram uma importância incalculável. Filipe li recebe": as notícias do desastre com a sua impasividade característica, mas elas tive­ram um efeito esmagador no moral de Castela. Como era possível que um povo eleito tivesse sido abandonado pelo seu Deus? Os ingleses, os holandeses e os huguenotes, pelo seu lado, exultavam na mesma me­dida. A vitória da Inglaterra era vista como a salvação da Europa pro­testante. «Sempre acalentei a esperança», escreveu o chefe protestante La Noue, em grande excitação, a Sir Francisco Walsingham,, «~e que tivésseis vantagem sobre os nossos inimigos no mar ... O pnnc1pe de Parma viu os seus planos frustrados, e viu com os seus próprios olh?s os carros do Egipto submergidos sob as ondas ... O espanhol quena tomar a Flandres através da Inglaterra, mas é agora a vós que cabe tomar a Espanha através das índias... Ao salvar-vos, salvásteis o resto ... » 6

A nova confiança demonstrada pelos chefes da Europa protestante foi também sentida num outro sector, um tanto inesperado. Desde a humilhação do Dia das Barricadas que Henrique III era um homem amedrontado e abjecto, cujos últimos vestígios de autoridade haviam sido brutalmente arrancados. «A partir desse dia», escreveu o histo­riador francês contemporâneo, De Thou, «a majestade do trono mante­ve-se, por assim dizer, mergulhada em profundo esquecimento até ao reinado de Henrique IV» 7• Mas se a majestade tinha desaparecido, o homem propriamente dito mantinha-se, moral e politicamente derrotado, sim, mas albergando, no fundo da sua torturada mente, secretos sonhos de vingança contra o duque de Guise, esse fanfarrão aventureiro que agora se comportava como o rei não c~roado da F~ança ~atólica .. ~os meses que se seguiram ao Dia das Bamcadas, Hennque v1ra-se suJeito a toda uma série de humilhações. Ao assinar o Édito de União de Julho de 1588, fora forçado a ceder a todas as exigências da Liga. Fora obrigado a designar Guise tenente geral do reino e a nomear o cardeal de Bourbon primeiro príncipe de sangue e principal su.cessor ao trono. Mas com as notícias da derrota da Armada, o seu v1gor e coragem rena;ceram. Talvez pudesse, afinal, derrubar a tirania dos Guise, os arrogantes fantoches de um derrotado rei de Espanha.

6 Oalr1ta ,de 1'7 de A<gOisltio die üJ51818, ilm[llrlessa <CIOOIIIO aJpêlndliloe em Hien.ri HaJuser, François de La Noue, 1531-1591, PaJris, 1892, pp. 315-3119.

7 J. A. De Thou, Histoir-e · Universelle, ed. Loruc1res, 11734, vol. X, p. 26.1.

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As dificuldades financeiras da coroa tinham tornado necessária a convocação de uma nova reunião dos Estados Gerais em Blois, no mes de Setembro. No início do mês, o rei despediu repentinamente os seus ministros- o chanceler, Cheverny, o surintendant des finances, Bcllic­vre, e os três secretários de Estado, Brulart, Pinart e o indispensável Villeroy. Esta atitude inesperada nunca foi satisfatoriamente explicada. Talvez tenha constituído um acto repentino de um homem que agora desconfiava de todos os que o rodeavam. Talvez desejasse protegê-los da ira dos Estados Gerais. Mas, mais provavelmente, tratou-se de uma tentativa de afirmar a sua independência contra a mãe, cujas opiniões os ministros tendiam naturalmente a acatar. A política de Catarina consistia agora em ligar a sorte da monarquia à estrela dos Guise. Se Henrique desejava afastar-se dos Guise, deveria primeiramente cortar os laços que o prendiam à mãe.

À reunião dos Estados Gerais de Blois assistiram inúmeros ade­rentes à Liga e, particularmente, os ambiciosos avocats que dominavam os municípios franceses e constituíam nada menos do que metade dos membros do Terceiro Estado. Dos 505 deputados presentes, 380 perten­ciam à Liga. Não se encontrava presente nenhum huguenote. Uma assem­bleia deste tipo constituía um fórum óbvio para a apoteose do duque de Guise, que repudiou os avisos de Mendoza quanto aos perigos da sua presença pessoal. Sendo temperamentalmente um aventureiro frívolo e gos­tando de se exibir, Guise era incapaz de compreender que mesmo o ho­mem com mais sorte não podia arriscá-Ia demasiado. A reunião ini­ciou-se, no entanto, sob a sombra de uma humilhação nacional cujas consequências podiam ter alertado um homem mais prudente para os riscos da posição a que a sua política o conduzira. O sobrinho de Filipe li, Carlos Manuel da Sabóia- um outro jogador inveterado dessa conturbada época - marchou à frente das suas tropas sobre o marquesado de Saluzzo, um enclave francês dentro das fronteiras do Piemonte. Ocupava-o, dizia, para o salvar dos huguenotes do Delfinado. Esta explicação pouco plausível não convencia ninguém. A ocupação de Saluzzo, que fechava a entrada da Itália para a França, tinha uma vantagem evidente para Filipe li; e o duque de Guise, como aliado de Filipe, caía naturalmente sob suspeita de cumplicidade e intentos trai­çoeiros.

A perda de Saluzzo juntou temporariamente o rei e os Estados Gerais num mesmo sentimento de choque, mas não pas·sou muito tempo até que os velhos ódios renascessem. Henrique fora suficiente­mente corajoso para criticar a Liga no seu discurso de abertura, mas a pressão de Guise e dos Estados forçou-o a jurar novamente o ];dito de União. Apesar desta cedência, os deputados mostraram-se tão obsti­nados como sempre na recusa de subsídios, e insistiram na redução da taille para o nível que tinha em 1576. O comportamento, negativo dos Estados foi atribuído pelo rei aos Guise, aumentando a sua determina­ção de se libertar desse ninho de víboras que existia no seio do seu reino.

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Enquanto Henrique reflectia, durante esses dias de inverno em Blois, sobre as indignidades a que se encontrava sujeito, longos períodos de amarga melancolia foram interrompidos por repentinos acessos de raiva contra o duque tirano. Guise sabia tudo isso, mas recusava-se a deixar-se perturbar. O rei era um ·cobarde; e, aliás, não era possível voltar atrás no caso de um homem cuja vida consistia numa série de riscos calculados. «Quem abandona o jogo, perde-o», terá dito 8• Mas existiam várias maneiras de perder esse jogo. Na manhã de 23 de Dezembro o duque foi convocado na câmara do conselho para uma audiência com o rei, e dirigiu-se directamente para a armadilha que fora cuidadosamente preparada. Na antecâmara régia, quase à porta do gabinete do rei, foi cercado e morto por assassinos. O irmão, o cardeal de Guise, foi preso juntamente com o cardeal de Bourbon, sendo assas­

sinado pelos seus guardas na noite de Natal. Henrique III sentiu-se aliviado com a morte dos seus inimigos.

Agora, era finalmente o rei- ou, pelo menos, foi isso que se apressou a dizer à mãe. Catarina era mais prudente, e avisou-o de que devia a todo o custo controlar as cidades. A sua percepção das realidades do poder era tão aguda como habitualmente, mas estava velha e mortalmente doente, e já nada podia fazer pela monarquia e pela dinastia que tão tenazmente tentara preservar. Esmagada pela recente sequência ter­rível de acontecimentos, morreu a 5 de Janeiro de 1589. Ninguém, segundo De Thou, ficou muito alegre ou muito triste ao ouvir a notícia

da sua morte. A exaltação de Henrique pelo assassínio dos Guise depressa se

mostrou tão deslocada como o profundo desespero de Mendoza. Guise poderia estar morto, mas a Liga sobrevivera- de início aturdida pelo assassínio do seu chefe, mas depressa gritando por vingança contra o «tirano assassino». Em Paris, a populaça levantou-se numa explosão de ira espontânea; e desta vez, ao contrário .do que acontecera no Dia das Barricadas, o exemplo da capital foi seguido nas províncias. Uma cidade após outra, todas se levantaram em apoio da Liga dirigida pelo seu novo chefe, irmão de Guise, o duque de Mayenne. Todo o pagamento de impos­tos aos funcionários régios foi proibido pela Liga. O Conselho dos Dezas­seis, em Paris, iniciou um julgamento formal do rei na sua ausência, e a Faculdade de Teologia da Sorbonne declarou os cidadãos franceses libertos do seu juramento de obediência e livres de pegar em armas con­tra o tirano. Uma das maiores ironias do momento foi as doutrinas da resistência, anteriormente concebidas e elaboradas pelos huguenotes, serem agora apropriadas pelos católicos. A partir de 1589 as imprensas católicas publicaram panfletos insistindo em que o poder estava com o povo e que um rei que quebrava o seu contrato devia ser combatido,

deposto e morto.

s Citado por De La;maJr Jensen, Diplomacy and Dogmatism, Carrn­

lbJ:1irllgle, iMlaJSS, rJ\9,614, ipl. lli&8.

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As_ chamas de violência ateadas pela Liga na primavera de 1589 foram ahmentadas p~r. Roma, onde Sixto V, com uma imp0tuosidade que ,l~e era ~aractenstica, responde~1 aos assas.sínios à maneira de um ponhfice medieval- ordenando a Henrique III que se· apresentasse em Roma pessoalmente ou atravé~ de um se,u ~epresentante para responder pela mort~ do cardeal de Gmse, um pnncipe da Igreja. A ameaça d<.: excomunhao, no entanto, era apenas um, e talvez não o maior, dos problemas que agora_ afli~iam o infor_tun<~:do rei. Metade do país revol­tava-se _contra ele; nao dispunha de dmheiro; e os seus inimigos exigiam a sua VIda.

~esmo antes _da chegada da convocatória de Sixto, só lhe restava u~ ca~lflh?- a a~m~ça com H_enrique de Navarra. Em Abril de 1589, apos diftceis ~egoctaçoes, os dms reis chegaram a um acordo. Navarra declarou-se dis~os.to a enviar as suas tropas em apoio de Henrique e em Julho o. exerci~o r~al, reforçado por mercenários suíços e alemães, cercava Par~s. ~o mte.n~r da capital sitiada o ódio ao rei atingira novos cumes de histena. Existiam fanáticos bastantes nas ruas de Paris e a 1 d_e Agosto- um dia antes de Navarra planear o seu assalto final à CI~ade - um deles, um jovem frade jacobino, Tiago Clément, conse­gur~I ~er acesso a H_enrique III em Saint-Cloud e apunhalou-o. Henrique, o ultimo dos Valms, morreu na manhã seguinte.

Antes ~e ~orrer, Henr·i_que reconheceu o rei de Navarra como seu s.u~essor. Instmtivamente, o ultimo dos filhos de Catarina aprendera a hçao que ela _lhe t~l!tara ensi~ar: era necessário preservar a todo o c~to a suc.essao leg~tima, o proprio fundamento da: autoridade monár­q~Ica. A Liga podena continuar a proclamar o cardeal de Bourbon seu rei,, ~ob o, nome de «Carlos X», mas Navarra possuía nos seus direitos legltimo.s a coroa uma arma de incalculável valor. E os anos vindouros mostranam que era suficientemente perspicaz para saber usá-la.

No momento de ascender ao trono, no entanto, Navarra ainda era um protestante. Devido à sua religião, muitos nobres e cidades só lhe concede~am uma obediência provisória e condicional; e uma grande parte . d,o pais,_ 9ue colocava a religião antes da legitimidade, recusou-se <1: aceita-lo. Filipe II, pelo seu lado, sempre se recusara a cortar defini­tivamente ~om Henrique III, que era, afinal, o rei legítimo e consagrado. Mas Hennque de Navarra, a seus olhos, não tinha o mesmo direito à coro~. De.sde a morte de Guise que Filipe se preparava para uma inter­vençao '!_rrecta . em França. Agora que também Henrique III estava morto, nao ~avta q_ualquer razão. para a adiar. Farnese, que se encon­trava nos P_mses Baixos, recebeu mstruções para preparar as suas tropas para a, acçao .. Uma. vez mais, como em 1588, a supressão da revolta no,s. Paises ~ai:cos tmh~ ~e ser subordinada a um grande, e talvez qui­menco, desigmo, com mumeras ramificações. Mas se Farnese se tivesse dado ao trab~l~o de per~~tar qual o objectivo desse desígnio - manter a .~rança catohca, ou deixa-la fraca e dividida-, talvez nem o próprio Fihpe soubesse responder-lhe.

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XI

A DERROTA DE ESPANHA

1. A França e a Espanha

<<A questão da França>>, escreveu Filipe 11 a Farnese no outono

de 1589, «é neste momento a principal» 1• Apesar do apoio de João

de Idiáquez, as objecções de Farnese ao emprego do seu exército em

França não foram aceites por Madrid. O outro conselheiro importante

do rei, Cristóvão de Moura, parece ter argumentado, com êxito, que a

luta pelos Países Baixos seria decidida em França. A Flandres encon­

trar-se-ia em perigo imediato se Henrique de Navarra se tornasse rei

de França, dado que o rei herege iria sem dúvida em auxílio dos seus

companheiros hereges, os holandeses. Se, por outro lado, a Liga saísse

vitoriosa, a reconquista total dos Países Baixos não deveria ser difícil.

Contra Moura, Idiáquez parece ter afirmado que os recursos

espanhóis não eram suficientes para permitir a Espanha uma luta simul­

tânea em duas frentes; e concordou com Farnese em que seria melhor

empregá-los na recuperação dos Países Baixos. Não cabia, por outro

lado, ao rei de Espanha arriscar-se ao ódio universal actuando como

defensor do catolicismo em todo o continente. Essa tarefa cabia de

facto ao papado. As facções francesas rivais deviam ser deixadas entre­

gues à sua luta, e o desgaste consequente deixaria o caminho livre à

Espanha. O dilema de Filipe, resolvido a favor da intervenção, nada era

comparado com o de Sixto V. Para a Santa Sé, a perda de França seria

um desastre de grandeza sem paralelo, e tornaria irreversível a vitória

do protestantismo no norte e no centro da Europa. A consequência ime­

diata do assassínio de Henrique III foi, portanto, um rapprochement

entre Sixto e os espanhóis, ambos igualmente aterrados pela perspectiva

de um rei protestante. O cardeal Cajetan foi enviado como legado papal

a França, a fim de trabalhar pela «conservação da sagrada fé católica

1 ·L. Van Der E ssen, Alexandre Farnese, vai. V, Brux€1Ia;s, 1937,

p . 2180.

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em todo o reÍ110» . e de afastar de Henrique o apoio dos católicos, pas­

~~n~o-o para a Liga. No entanto, mal Cajetan iniciava a sua missão,

J~ ~~to começava a sentir-se apreensivo. Uma vitória para a Liga era uma

VItona para ~ Espanha, como os venezianos se apressaram a demons­

trar quando Sixto os admoestou por receberem um embaixador de J len­

ri<~ue. Já Filipe aspirava a ser reconhecido como «protector» oficial do

remo; e quando «Carlos X», o cardeal de Bourbon morreu em Maio

de 1590, Filipe apresentou as pretensões da filha 'mais velha Isabel

Clara Eugénia (neta de Henrique II e Catarina de Médicis) em' desafio

fr.o!ltal à l~i sálica qu~ regia a sucessão francesa. O compdrtamento de

Pil~I?e confumou o~ pwres. recei.os de Sixto quanto aos desígnios espa­

nhms. E quando Sixto se msurgm contra o conde de Olivares recusan­

d?-se a apoiar a política de Filipe em França, isso deu lug;r a cenas viOlentas.

Uma vitória dos protestantes em França podia significar o fim do

cat?licism? europe~. ~ma vitória espanhola em França podia significar

o fim da mdependencm papal. Era portanto essencial a Roma manter a

França si~ultane~mente católica e forte. Era evidente que o apoio total

a u~a L~ga dommada pela Espanha, como Cajetan. recomendava, não

podm satisfazer o segundo destes objectivos. Só existia uma maneira

~e . fugir ao dilema: a conversão de Henrique de Na varra. Durante os

ultimos e turbulentos meses da sua vida, Sixto convenceu-se cada vez mais

de que Henrique devia, e podia, ser trazido de novo ao seio da igreja.

Qu~ndo morreu, a 27 .~e Agosto de 1590- bastante a propósito, no

mew d~ tempes~ad~- Ja se afastara o t;astante da sua primeira posição

de apow total a Liga para tornar possivel aos seus sucessores inverte­

rem a política do papado.

. P~ssaria, no entanto, al~um tempo até surgir um sucessor que

tivesse .simultane~men~e ?· desejo e a capacidade para penetrar na terra

prometida que Six~o mdica~a de longe., O ano e meio que se seguiu à

mor~e de SIXto f~I ?m peno~.o de notavel mortalidade papal. A Sixto

seguu.:a~-se, em rapida sucessao, Urbano VII (papa durante doze dias),

Gregono XIV (dez meses) e Inocêncio IX (dois meses). Só com a

eleição do cardeal Aldobrandini como Clemente VIII, em Janeiro de

1592, se quebrou o feitiço, iniciando-se um pontificado que viria a durar

treze anos. Mas a morte súb'ita não foi a única característica infel iz

deste estranho interlúdio. Nos anteriores conclaves do seu reinado

Fj!i~e 11 pou~o ~ais fizera do que dar a saber quais eram as suas prefe~

:encias e ~nti~atias. Mas os conclaves de 1590-92 distinguiram-se pda

mtervenççao duecta da Espanha. Filipe não podia permitir o apareci­

mento de outro Sixto V, e os seus embaixadores receberam instruções

para trabalhar activamente a favor da eleição de candidatos em quem

se pudesse depositar confiança. Os conclaves mostravam-se cada vez

ma~s re~sentidos com a _interferência da Espanha, mas só na dcição,

mmto disputada, de Janeiro de 1592 foi finalmente derrotado o pr ·ten­

dente apoiado pela Espanha, sendo escolhido um papa que não p ssuía

quaisquer ligações com este país.

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Clemente VIII era um homem hábil e inteligente, tão prudente

quanto Sixto fora agitado e imprevisível. Conseguiu desligar o papado

dos compromissos com a Espanha forjados pelos ·seU3 predecessores

imediatos retomando a política advogada por Sixto nos últimos meses

da sua vida. Mas viu-se obrigado a actuar com infinitos cuidados e

grande diplomacia, sabendo que o êxito da sua política seria, em

última análise, ditado pela decisão pessoal de Henrique de Navarra, e

não por si próprio. Converter-se-ia Henrique num católico genuíno e,

se sim, quando e como? Se bem que tivesse, sem dúvida, consciência de que a lógica dos

acontecimentos o obrigaria um dia a renunciar à sua fé protestante, Hen­

rique era suficientemente perspicaz para compreender que devia tentar

usar o tempo a seu favor. As pressões de que era alvo no sentido de

anunciar a sua conversão eram consideráveis, mas uma abjuração preci­

pitada fá-lo-ia certamente perder os seus leais apoiantes huguenotes, e

não lhe traria compensação suficiente sob a forma de apoio dos cató­

licos. A sua filiação religiosa era, aliás, bastante dúbia. Baptizado como

católico e tendo recebido na corte uma educação religiosa ambígua,

fora instruído nas doutrinas calvinistas durante os primeiros anos da ado­

lescência pela sua notável mãe, Joana d'Albret. Na época do Massacre de

S. Bartolomeu vira-se forçado a voltar-se para Roma, mas abjurara nova­

mente quatro anos mais tarde, tornando-se chefe dos huguenotes. Aos

olhos dos católilcos era portanto um duplo apóstata, e uma nova con­

versão repentina seria obviamente considerada imincera. Henrique já mostrara ser um homem de recursos e de grande pers­

picácia política, e começava agora fazer o seu difícil jogo com uma habi­

lidade excepcional. Na sua proclamação de 4 de Agosto de 1589, após

a morte de Henrique III, prometeu manter e preservar a fé católica

romana em França e seguir a direcção espiritual de um «conselho geral,

ou nacional, livre e legal». Ao fazer renascer a velha ideia galicana de

um conselho religioso nacional, Henrique estava a apostar inteligente­

mente num apoio católico moderado, num momento particularmente

propício. A bula de excomunhão de Sixto, de 1585, provocara em

França uma violenta controvérsia quanto ao carácter e à extensão do

poder papal. Uma geração que conhecia a opinião de Bodin quanto

a esse atributo essencial da soberania que era a liberdade relativamente

a interferências externas, decerto não mostraria muito entusiasmo pela

adesão de Sixto a princípios enunciados em 1302 por Bonifácio VIII,

segundo os quais o papado reclamava um poder supremo na esfera

tanto temporal como espiritual e afirmava o seu direito a fazer e a

desfazer reis. O jesuíta Roberto Bellarmine publicou em 1586 uma des­

crição mais moderada da posição papal, reclamando para o papado

apenas uma jurisdição temporal indirecta, se bem que ainda incluísse o

poder de deposição relativamente a príncipes que infringissem os direitos

espirituais dos seus súbditos. Mas Sixto V denunciou estas cobardes dou­

trinas e ordenou que o primeiro volume das Controversies de Bellar­

mine fosse colocado no índex.

24'6

A própria teoria de Bellarmine sobre o poder iudirecto do papado

tendia a provocar suspeitas qm~nto às intenções de Roma. Parecia óbvio

ao clero e aos leigos franceses mais moderados que o poder papal estava a

aumentar, em claro desafio aos decretos dos Concílios de Constância

e de Basileia, a que a igreja galicana sempre estivera fortemente ligada.

A repressão da heresia começava a parecer uma política contra-produ­

cente, que ameaçava a independência tradicional da igreja nacional fran­

cesa. Além disso, e apesar das rixas de Sixto com o embaixador e3panhol ,

Roma estava demasiado identificada com as ambições políticas de Es­

panha . . E estava também muito· identificada com doutrinas que procura­

vam justificar a subversão da autoridade e a revolta popular. O horrí­

vel acto de regicídio de 1589 não podia ser atribuído aos monstruosos

ensinamentos dos jesuítas sobre os direitos de resistência e de soberania

popular? O desencantamento atingiu o seu clímax quando o papado

desprezou as leis fundamentais da monarquia francesa que definiam a

ordem directa de sucessão ao trono. Este desprezo pela lei fundamental

era uma afronta aos parlementaires de mentalidade legalista, que se

consideravam a si mesmos os guardiães da tradição constitucional fran­

cesa. Assim, quando Henrique IV fez o seu apelo aos sentimentos gali­

canos, acordou fortes ecos entre aqueles a quem alarmavam as cres­

centes interferências de Roma na vida nacional francesa e que temiam

que uma vitória da Liga a colocasse sob domínio estrangeiro e obrigasse

a França a aceitar à força os decretos de Trento. Se bem que um certo número de católicos moderados possa ter-se

sentido encorajado pelo manifesto de Henrique a ver nele o havia

tanto tempo esperado salvador da França, a posição deste era excepcio­

nalmente difícil nos primeiros anos do seu reinado. É certo que possuía

qualidades magnéticas de chefia, que nenhum outro rei de França mos­

trava havia talvez mais de meio século. Mas faltavam-lhe os rendimen­

tos dos impostos que tinham mantido uma aparência de autoridade

régia até aos últimos trágicos meses do reinado de Henrique III, e

via-se perante a revolta declarada de Paris e de metade da população.

Em Março de 1590 obteve uma grande vitória sobre Mayenne e as

forças da Liga em Ivry, mas os resultados desta vitória foram triste­

mente desapontadores. O seu exército marchou sobre Paris, havendo

grandes esperanças de as guerras civis terminarem com a rápida sujei­

ção da capital. Mas não foi tida em conta a fanática dedicação dos

parisienses à Liga e a capacidade de Farnese de os auxiliar a partir da

Flandres. Sob o enérgico mas cada vez mais repressivo governo do Conselho

dos Dezasseis, a capital preparava-se para o cerco. Os jesuítas e os frades

incitavam os cidadãos a resistirem firmemente às forças da impiedade c

da heresia. O embaixador espanhol, Mendoza, era incansável na distri­

buição de alimentos e na organização do socorro público. Os sofrimen­

tos da cidade eram horríveis, quase para além do crível. «Perseguem os

cães e comem as ervas que nascem nas ruas», relatou Pedro de L'Estoile,

esse crítico observador da vida parisiense e das loucuras da L iga.

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«A única coisa barata em Paris são os sermões, através dos quais os pregadores enchem a barriga dos pobres com ... mentiras e idiotices» 2•

Em Agosto, com cerca de 13 000 habitantes mortos de fome, Paris estava quase a render-se. Mas, nesse momento em que Henrique parecia ter a capital ao seu alcance, Farnese atra~essou a fronteira e forçou-o, numa campanha brilhante, a levantar o cerco e a retirar para a Normandia.

A intervenção de Farnese alterou radicalmente o carácter do conflito. Até esse momento a guerra em França fora primordialmente uma guerra civil, que trouxera vantagens aos notáveis locais e a um ou dois vizinhos ambiciosos. Gradualmente o país estava a ser desmembrado em diversos fragmentos. O duque de Mercoeur dominava a Bretanha, e o duque de Mayenne a Borgonha; a Champanha era cobiçada pelo duque de Lorena e a Provença foi invadida pelo irreprimível Carlos Manuel de Sabóia no verão de 1590. Mas agora, pela primeira vez, tinham intervido tropas espanholas. Se bem que o auxílio à Liga fosse o pretexto nominal da intervenção, a política genérica de Filipe e a sua tentativa de obter o trono para a infanta Isabel sugeria que as suas ver­dadeiras intenções fossem assegurar o domínio espanhol sobre toda a França. Em Outubro de 1590, 3 500 espanhóis desembarcaram na Bre­tanha, relativamente à qual a infanta reclamava o título de duquesa. A posse da Bretanha forneceria à Espanha um entreposto na rota marí­tima Lisboa-Antuérpia e uma valiosa base para a continuação da guerra com a Inglaterra. Mas a intervenção militar espanhola não se limitou à Bretanha. Na primavera de 1591 as tropas espanholas invadiram o Languedoque, sendo introduzida uma guarnição espanhola em Paris. Em Agosto, Alexandre Farnese recebeu ordens de realizar uma nova campanha em França, obrigando Henrique a levantar o cerco de Ruão em Abril de 1592.

A Espanha parecia ter-se lançado no caminho da agressão decla­rada, com a aprovação entusiástica de um papado seu cliente. Nestas cir­cunstâncias, Henrique podia apresentar-se como o defensor, não apenas da França mas de toda a Europa, contra as grandiosas ambições de Filipe 11 e da Santa Sé. Uma vez mais, portanto, um conflito local era internacionalizado. Isabel teria preferido limitar as suas guerras contra os espanhóis ao mar alto, particularmente após o fracasso da expedição inglesa enviada a Portugal em 1589. O objectivo da expedição, condu­zida por Drake e Norris, fora a tomada de Lisboa e o incitamento a uma rebelião popular que colocasse o Prior do Crato no trono. Mas a campanha fora desastrosamente conduzida e os portugueses não se tinham revoltado. Pior ainda, a expedição falhara a suprema oportunidade de prosseguir com a derrota da Armada, atacando de modo decisivo a danificada esquadra espanhola, enquanto esta estava a ser reparada em Santander.

2 The Paris of Henry of Navan·e (m.g. N. L. Roelli:er), :p. 190.

248

Em resultado do fracasso inglês de 1589, o poder naval espanhol dos anos 90 tornou-se demasiado formidável para ser desafiado frontal­mente, e Filipe tinha suficiente confiança no seu poder naval e finan­ceiro para arriscar uma intervenção em larga escala em França. A pre­sença de exércitos espanhóis na Normandia e na Bretanha constituía uma ameaça aos interesses ingleses, que Isabel não podia ignorar. Se os portos do Canal caíssem sob o controlo espanhol, as Ilhas Britânicas e os Países Baixos estariam imediatamente em perigo, e de novo Filipe ficaria próximo da dominação universal. Relutantemente, portanto, Isabel viu-se obrigada a promover onerosas campanhas terrestres no continente. Uma força expedicionária sob o comando de Norris foi en­viada para a Bretanha em 1590, e uma outra, comandada pelo conde de Essex, para a Normandia em 1591.

O poder espanhol nunca pareceu mais formidável do que em 1591 e 1592. Observavam-se, no entanto, crescentes indícios de que a sua expansão era excessiva. No país, as tensões provocadas pela guerra começavam a fazer-se sentir. Filipe gastava agora mais de doze milhões de ducados por ano. Cerca de um quarto deste quantitativo era forne­cido pela prata das índias, e o resto provinha da colecta de impostos, principalmente em Castela. Em 1590 as Cortes de Castela foram per­suadidas a votar um novo imposto, o millones, aplicado a artigos de consumo e que visava fornecer à coroa oito milhões de ducados num período de seis anos -um imposto de novo tipo, na medida em que incidia sobre todas as classes sociais. Estas novas exigências fiscais provocaram angustiantes debates nas Cortes tanto sobre o interesse como sobre os custos da guerra. O nacionalismo messiânico de Castela tinha ainda os seus fervorosos defensores, como o representante de Múrcia, que afastou o argumento da exaustão económica com um aceno da mão - «Se estamos a defender a causa de Deus, como estamos, não há razão para a abandonar com uma justificação de impossibilidade, pois Ele dar­-nos-á novas índias e um novo Potosí». Mas outros representantes pre­feriam a economia à metafísica, e manifestaram as suas opiniões. Se o resto da Europa desejava destruir-se a si mesma, então deixassem-na fazê-lo. Não havia qualquer justificação para deixar Castela exangue só para salvar os Países Baixos ou a França.

Enquanto a política de Filipe era sujeita a uma crítica surpreen­dentemente forte nas Cortes de Castela, o rei via-se simultaneamente confrontado com distúrbios em Aragão. Enquanto o governo régio estava solidamente estabelecido em Castela, e o rei mantivera aí um nível relativamente elevado de justiça, as liberdade da coroa de Aragão ti­nham sempre submetido os vice-reis a fortes constrangimentos consti­tucionais e administrativos. No próprio reino de Aragão, os fueros ou privilégios davam amplas possibilidades à aristocracia e à pequena nobreza locais para abusarem dos seus vastos poderes de jurisdição . em receio da intervenção do vice-rei. Quando em 1590 Filipe tent u domi­

nar a situação, enviando nm nobre não aragonês pan governar o reino, verificaram-se firmes protestos da classe dirigente aragonesa con-

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tra essa tentativa injustificável de a privar das suas liberdades. A situa­ção ainda piorou quando António Pérez fugiu da cadeia em Ma?ri~ e passou a fronteira para Aragão, pondo-se fora do· alcance da JUStiça real. Os esforços desesperados de Filipe no sentido de recuperar o seu secretário e os documentos em sua posse provocaram um tumulto em Saragoça, em Maio de 1591. Pérez foi libertado pela multidão quando era conduzido à prisão da Inquisição e o marquês de Almenara, o representante especial do rei, perdeu a vida em resultado da violência popular, quando o seu palácio foi invadido. .

Filipe não podia permitir-se quaisquer riscos ~nquanto Antómo Pérez estivesse presente para dirigir a revolta. Pérez era suficientemente inteligente para pensar em transformar Aragão numa república inde­pendente sob a protecção de França e, se tal aconteces6e,, a .Espan}la teria de enfrentar uma segunda Flandres, mas dentro da propna pemn­sula. Foi mobilizado na fronteira um exército real de 12 000 homens que entrou em Aragão em Outubro de 1591. Não encontrou pratica­mente resistência, e os chefes da revolta foram capturados e executados. Mas o fugidio Pérez novamente escapou, e desta vez atravessando as montanhas para o Béam. Era o início de uma longa e desiludida ~ida de exílio, durante a qual o antigo secretário do rei se deslocou patetica­mente entre as cortes de França e de Inglaterra, procurando recuperar os favores do seu senhor através de ameaças de venda aos inimigos da Espanha dos preciosos segredos do Escoriai. . , ..

Tendo reprimido a revolta com sevendade, hl~pe re~olveu o problema de Aragão com moderação. Em vez de destrmr as hberd~des de Aragão preferiu manter a promessa de preservar as suas leis e privilégios, apenas fazendo algumas alterações institucionais ~enores. Retrospectivamente, as perturbações ~m Aragão parec~m rel~~Ivam~nte reduzidas e localizadas. Mas, de mmtos pontos de vista, Fihpe tinha tido sorte. Os aconteCimentos em França e nos Países Baixos tinham mostrado as perigosas possibilidades do constitucionalismo aristocrático defendido pelos aragoneses. Felizmente para Fi.lipe, a ade~ão popul~r ao protesto aristocrático foi reduzida; não havm um sentn~ento sufi­cientemente forte de nacionalismo aragonês, nem um movimento de dissensão religiosa, que unisse as diferentes classes sociais numa rebelião generalizada. Por outro lado, Henrique de Navarra não se encontrava em posição de fornecer o auxílio externo de que as. rebeliões do século dezasseis pareciam necessitar para ser bem sucedida. Mais a revolta de Aragão revelou que até a Espanha era vulnerável- e que um Filipe 11 que encorajava revoltas armadas contra os seus colegas monar-cas não poderia esperar ma~ter-se imune a elas. A • • ,

A necessidade de acudir ao problema aragones mterfenu ate certo ponto nos projectos de Filipe · de intervenção em França. Mas a sua principal dificuldade não residia na rebelião interna, mas no exces­sivo peso dos seus empreendimentos no estrangeiro. Ao longo de 1591, Farnese, a braços com a falta de dinheiro, avisou repetidamente .Filipe das graves consequências da sua política de intervenção em França. Os

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pressentimentos de Farnese mostraram ser completam ·nte jnstificados. Nos Países Baixos, Maurício de Nassau, o jovem filho de Uuilhenn ·, o silencioso, fora designado capitão-general em 1588, e empn.;endum a re­forma dos exércitos das Províncias Unidas sob a din:cçuo du primo, Guilherme-Luís de Nassau. A conselho do primo, dedicara-se uo estud d · tratados militares romanos e bizantinos, assim como da mulcm(•ti ·a · dll geometria. Inspirado por ideais militares clássicos, começou a instilar alguma disciplina nos andrajosos grupos de mercenários, dividindo-os em batalhões de 550 homens, que eram mais manobráveis c mais l:con ,_ micos em termos numéricos do que os grandes terei os espanhóis. Junta · mente com as suas reformas organizativas e administrativas, deu ainda treino especializado aos corpos de sapadores. A intervenção de 11am ·s · em França tornou possível a este exército reformado e reorganizado assumir a ofensiva. Na primavera de 1590 os holandeses capturaranl Breda e em 1591 Maurício lançou uma espectacular ofensiva que lhe permitiu ganhar Zutphen, Deventer e Nijmegen, restaurando assim as comunicações entre o nordeste dos Países Baixos e o conjunto das Pro­víncias Unidas.

As circunstâncias destes sucessos de Maurício eram notavelmenli: semelhantes às de quase vinte anos antes. Em 1572 os rebeldes tinham conseguido a sua primeira base de operações quando Alba fora obri­gado a voltar-se para o sul, a fim de contrariar a ameaça de invasão vinda de França. Agora, em 1590-91, os rebeldes consolidavam decisi­vamente a sua posição e asseguravam a independência holandesa porque Farnese se viu obrigado a virar-se para sul, tal como Alba, a fim de intervir em França. A interdependência das questões holandesa e francesa - esse tema recorrente na história europeia de finais do século dezas­seis- revelava-se uma vez mais, e a avaliação de Famese da situação demonstrava ser correcta. Mas não obteve gratidão em troca da sua previsão ou dos seus esforços. Filipe 11 suspeitava cada vez mais do seu comandante e em Fevereiro de 1592 decidiu chamá-lo. Mas a Provi­dência, como tantas vezes acontece, moveu-se mais depressa ao que o rd de Espanha. Na primavera de 1592, imediatamente após socorrer Ruão Farnese foi gravemente· ferido no braço. A sua saúde já fora minada pelo esforço despendido, e no Outono era manifesto que estava quase a morrer. Nestas condições não era necessário ao seu sucessor, o condi: de Fuentes, apresentar a sua carta de chamada; Famese morreu em Arras a 3 de Dezembro, a caminho da sua terceira campanha expedi­cionária em França.

A morte de Farnese, com a idade de quarenta e sete anos, privou Filipe de um grande comandante e de um conselheiro· perspicaz e realista. Com o seu passamento, as possibilidades de êxito em França ficaram ainda mais reduzidas. Mas, a longo prazo, o destino da política francesa de Filipe não seria determinado pela habilidade dos seus comandantes, mas pelo êxito ou fracasso de Henrique IV em conseguir a obediência da maioria dos seus súbditos. A vitória miliLar poderia ajudar Henrique, mas não seria suficiente. Era necessário convencer a

2S.l

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• maior parte da nação de que os seus interesses estavam com a causa de uma realeza legal e consagrada.

2. A união em torno do rei

Um movimento de massa em apoio de Henrique podia ser pro­vocado tanto pelos erros e fracassos da Liga como por qualquer acção positiva de Henrique. Um grande debate agitava a França católica no início dos anos 90, e era do resultado desse debate que dependia a sorte de Hemique. Os argumentos de ambas as partes foram particular­mente bem expostos num brilhante diálogo ficcionado publicado em 1593, o Dialogue d'entre le Maheustre et le Manant, escrito por um membro da ala radical da Liga contra a sua ala aristocrática dirigida pelo duque de Mayenne. O Manant, o pequeno-burguês parisiense com simpatias radicais pela Liga, explicava que ele e os seus amigos lutavam pela «conservação da religião católica, apostólica e romana», a extir­pação da heresia e a reforma da injustiça, da impiedade e do vício. Em resposta, o cavalheiro fanfarrão, o Maheustre, expunha as suas razões para apoiar Henrique de Navarra - razões que revelam bem que o apelo de Henrique seria o longo prazo ma~3 forte do que o dos seus inimigos.

O Maheustre afirmava primeiramente que apoiava o «rei legítimo e natural de França». Colocava assim o dedo numa fraqueza mortal da Liga: o seu desprezo pelo princípio da sucessão hereditária por linha masculina. É certo que ainda sobreviviam resíduos da ideia de monar­quia electiva, os quais adquiriam uma nova vida nos panfletos da Liga. Mas a ideia de uma realeza mística fora cuidadosamente explorada pelos Valois e por Catarina de Médicis. A maioria dos franceses de finais do século dezasseis tendia portanto a olhar de soslaio para a ideia de eleger o seu rei à maneira dos polacos. «Queremos um rei e um chefe natu­ral- e não artificial» -observa o representante do Terceiro Estado num outro panfleto famoso de 1593, a Satyre Ménippée 3• Contra esta predilecção nacional pela sucessão hereditária, não era fácil persuadir o país de que Henrique perdera os seus direitos devido à heresia. E isso tornava-se ainda mais difícil devido à ausência de qualquer alternativa crível. A extensão do embaraço em que a Liga se encontrava foi dolo­rosamente revelada pela reunião dos Estados Gerais, convocada por Mayenne para Paris em Janeiro de 1593. Quando os representantes de Filipe II avançaram a ideia de que a lei sálica devia ser revogada e a Infanta aceite como rainha, obtiveram a resposta irada dos delegados, que não queriam no trono nem um estrangeiro nem uma mulher.

3 Citado por Robert Mandrou, Introduction à la France Moderne, Pan:'lis, 1·961, p . .169.

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Além disso, o desprezo da Liga pelos direitos legítimos ultrajava os interesses instituídos, além dos instintos nacionais. Paralelamente à antiga aristocracia e aos membros da pequena nobreza existia uma pode­rosa haute bourgeoisie, constituída por famílias que tinham obtido a sua riqueza através do comércio, da finança ou da aquisição d~ ~argos. Os presidentes, juízes e conseillers dos parlements, que cons~lt?Iam o elemento dominante nesta classe, estavam interessados profissiOnal e pessoalmente na sobrevivência de uma monarquia forte e com funda­mento legal. Como guardião da tradição consuetudinária homens como Pedro de L'Estoile e Jaime-Augusto de Thou viam a lei como sacros­santa· como detentores de cargos que agora podiam ser transmitidos por suces~ão hereditária, consideravam a monarquia hereditária como a defensora natural dos seus direitos. Legalistas por temperamento gali­canos e católicos moderados em questões de religião, tradicionalistas na sua visão genérica da política e da sociedade, antipat~zavam pr~f~n­damente com a aparente determinação da Liga de destrmr os pnnc1p10s fundamentais da ordem e da legalidade.

Com efeito, nada poderia ter sido melhor para alarmar o sector mais próspero da comunidade e para afastar as simpati~s dos aristocratas do que o desafio da Liga à ordem social estabelec1d~. O Ma_heustre referia significativamente como segunda razão para apmar Henn9-ue de Navarra o seu horror à violência popular. «Deseja estabelecer-se a custa do privilégio aristocrático, que deve ser abolido e s~bsti~uído P?r uma democracia». O temor cada vez maior da democracia «a maneira dos suíços» provinha em parte, das tendências comunais das cidades da província, que se' haviam mostrado fortemente hostis à .nobreza lo~al, ~ em parte das actividades da ala popular radical da Liga de Pans. J a em 1588 o Conselho dos Dezasseis revogara a carta de Paris e reservara para si próprio as funções do governo municipal. Os seus me~bros eram recrutados entre as fileiras dos advogados e pequenos comerciantes des­contentes que se ressentiam do domínio da nobreza e da gens de robe na vida nacional e local. Jurando defender a palavra de Deus, tal como era revelada na linguagem inspirada da Faculdade de Teologia da Sor­bonne, estes homens e os frades e curés constituíram o coração e a alma da resistência parisiense durante o terrível cerco de 1590. .

Durante o cerco e imediatamente depois deste, os Dezasse1s aumentaram o seu controlo sobre a cidade. A Paris descrita por Pedro de L'Estoile é uma cidade sob o império do terror, governada por um bando muito unido de novos-ricos fanáticos que planeavam deitar abaixo todos aqueles de quem suspeitavam ou que desejavam compro~etidos com Henrique de Navarra. O duque de Mayenne, chefe nommal da Liga, não possuía nenhuma das qualidades dinâmicas do irmão, e. foi-lhe impossível manter unidas as alas radical e aristocr~tica do m.ovJ~C~l~O. O único travão aos radicais era o parlement de Pans - uma mstttmçao que constituía para eles o símbolo do exclusiv~smo ol~gárquico .. Dllrante o outono de 1591 tornou-se evidente que nao pod1a ser adtado por muito mais tempo um medir de forças entre os membros radicais c

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politiques da Liga. Os Dezasseis fizeram os seus planos tendo esse facto em conta. Foi formada uma comissão de segurança pública constituída por dez homens,. e os pregadores da Liga receberam instruções no sentido de mobilizar a opinião pública contra os traidores existentes na cidade. A 15 de Novembro o presidente moderado do parlement de Paris, Barnabé Brisson, foi preso e executado juntamente com dois outros magistrados.

Desta vez os Dezasseis tinham ido longe demais, mesmo para alguns dos. seus mais fervorosos apoiantes. O continuado domínio da cidade por um grupo de demagogos e fanáticos era mais do que Mayenne estava disposto a tolerar. Deslocou as suas tropas para a capital, prendeu e executou quatro dos cabecilhas e declarou os Dezasseis dissolvidos. João Bussy-Leclerc, um dos chefes mais fanáticos, foi poupado, e o duque de Mayenne não se atreveu a tocar nos pregadores; mas o reinado do terror terminara. Para a nobreza e a haute bourgeoisie tratara-se de uma terrível experiência, e souberam aproveitar a lição. «A democracia ameaça-vos ... os mendigos (les gueux) estão no comando», era com estas palavras, que um panfleto contra a Liga publicado em 1590 avi­sava a aristocracia. «Conspiraram contra as vossas vidas e aspiraram a libertar-se da sujeição a que Deus os obrigou» 4• Era este o seu imper­doável crime. Em França, tal como nos Países Baixos, o colapso da autoridade agravara as tensões sociais e estimulara o aparecimento de teorias perigosamente igualitárias. Quando o Manant podia dizer que era a virtude, e não o nascimento, que devia constituir o critério dos títulos de nobreza, chegava o momento de parar. Se a Liga ia pôr em causa o princípio da hierarquia - o próprio fundamento da ordem social - , era tempo de cerrar fileiras em torno do defensor natural dessa ordem, o rei, mesmo que este fosse um herege.

O Maheustre tinha ainda uma outra razão para se voltar para Henrique de Navarra: «expulsar o espanhol que foi chamado a França». A reacção dos Estados Gerais da Liga na primavera de 1593 à proposta de uma rainha espanhola mostrou que muitos dos apoiantes da Liga não conseguiam aceitar a perspectiva de entrega do seu país nas mãos do seu maior inimigo. Henrique de Navarra estava bem informado destas dúvidas e dissensões no interior da Liga, e o seu impecável sentido do momento propício ·sugeria-lhe que chegara a hora de fazer a inevitável concessão. A 25 de Julho de 1593, abjurou da sua fé em Saint-Denis.

A renúncia de Henrique ao protestantismo eliminou o último fundamento racional para a recusa do reconhecimento da sua condição de rei. Mas Clement VIII duvidava da sinceridade da sua conversão e tinha demasiado medo dos espanhóis, para se sentir capaz de pronun­ciar a sua imediata absolvição. A hesitação do papa deu uma ilusória justificação àqueles elementos da Liga que queriam continuar a lutar.

1< Oiltlaldo pm ICiom'ladio IVwJalnlti. Lo>tta politwa e pace treli.gi!o·sa in F.ran­cia tra Cinque e S6·icento, Turim, 1963, p. 46.

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Mas o infeliz paradoxo da sua posição foi vivamente sugerido pela pro­fissão de fé do Manant: «Prefiro ser um católico espanhol vivendo na minha religião e obtendo a minha salvação, do que um herege frances c perder a minha alma».

Com a passagem dos meses, as deserções da Liga aumentavam. Seguindo os seus princípios galicanos, a igreja nacional desafiou Roma c os jesuítas, consentindo na coroação de H~nrique e~ Chartr_e~, em Fevereiro de 1594. No mês seguinte, Hennque sentm-se suficiente­mente forte para tomar posse de uma capital que já merecia uma missa, c a guarnição espanhola marchou para fora de Paris sem ser disparado um tiro. A própria Sorbonne reconhecia agora Henrique como rei legal de França. Onde anteriormnte exigira resistência e regicídio, insistia agora na obediência absoluta; e quando um jovem estudante chamado João Chastel, educado no colégio jesuíta de Clermont, atentou c~ntra a vida de Henrique em Dezembro, a Sorbonne juntou-se ao movimento de massas de repúdio daqueles considerados responsáveis pelo horrendo crime de pôr as suas mãos sobre o ungido de Deus. Os jesuítas nã? tinham de facto conhecimento das intenções de Chastel, e os seus ensi­namentos sobre a execução dos tiranos não eram diferentes dos forne­cidos pela generalidade dos teólogos escolásticos. Mas tinham-se recu­sado a rezar pelo rei até este ter recebido a absolvição papal. Nestas circunstâncias, o crime de Chastel constituíu um pretexto suficiente para expulsar de França uma Ordem cujas tendências ultramontanas levan­tavam fortes suspeitas entre os galicanos.

A dramática mudança de sentimentos na capital em 1593-94 reflectiu-se em todo o país. A população rural francesa estava cansada de uma guerra sem fim. A fome e a peste faziam sentir a sua ameaça e numa Bretanha devastada, grandes matilhas de lobos rondavam as suas presas. Para o campesinato apenas existia «um inimigo: o capitão; um protector: o rei». Era para a figura idealizada de um rei. patriar~al , o defensor da justiça, o paladino da ordem, que agora se virava~? ms­tintivamente. Numa província após outra, os camponeses umam-se contra a Liga e os nobres, obrigando as autoridades municipais a che­garem a acordo com Henrique IV. Foi um extraordinário movimento es­pontâneo, composto de ódio à anarquia e à ?pressão social, e de uma reunião do povo francês em torno do seu re1. No sudoeste de França, em finais de 1593, vastas massas de camponeses juntaram-se.sob o nome de croquants e decidiram enterrar as suas diferenças e JUntar-se na luta contra a nobreza opressiva e em defesa do rei <<nosso senhor>>. Era como se o país se estivesse a purgar dos ódios religiosos de meio século. «Prometemos todos, e juramos perante Deus, amar e querer bem uns aos outros». Não deveria haver «mais luta entre eles, nem críticas pela diversidade de religiões, e todos deveriam ser livres de viver como desejassem».

Enquanto o país se unia em torno de Henrique, a resistência da Liga desmoronava-se. A 17 de Setembro de 1595 Clemente VIII con­cedeu finalmente a sua absolvição, sob certas condições, algumas delas

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impossíveis de garantir nos tempos mais proxtmos, como a aplicação dos decretos do Concílio de Trento. A absolvição papal revelou a futi­lidade da continuação da resistência, e Henrique conhecia todas as artes necessárias para transformar os inimigos em amigos. Os seus leais apoiantes huguenotes- homens como Filipe Du Plessis-Mornay­ficaram amargamente desiludidos com os recentes acontecimentos. Mas Henrique era um homem que esquecia tão depressa como perdoava, e o perdão interessava mais nesse momento do que o esquecimento. Subor­nos pródigos conquistaram chefe após chefe da Liga, até que o próprio Mayenne se rendeu, em Janeiro de 1596. O auxílio papal seria ainda necessário para levar os restantes fanáticos a largarem as armas, parti­cularmente na Bretanha, onde o duque de Mercoeur continuava a resistir. Mas, para todos os efeitos, as guerras civis chegavam ao fim. Henrique fora aceite pela sua nação. Restava-lhe agora expulsar os espanhóis, e restaurar a paz religiosa.

3. Nantes e Vervins

Henrique declarou formalmente guerra à Espanha a 17 de Ja­neiro de 1595. Dado que o colapso da Liga privara Filipe 11 da maior parte dos aliados, de quem dependia para levar a guerra ao centro da França, nos dois ou três anos que se seguiriam as hostilidades seriam confinadas às províncias fronteiriças: Bretanha, Borgonha, a região fron­teiriça de nordeste e a Provença. Mesmo onde existia uma forte resis­tência local a Henrique IV, como acontecia na Bretanha, havia pouca ou nenhuma cooperação eficaz entre os espanhóis e os rebeldes, e a actividade militar depressa degenerava em banditismo e pilhagem. Mas o perigo representado pela Espanha não podia ser desprezado. En­quanto estivessem estacionadas tropas espanholas em solo francês, ou estas pudessem entrar em França com relativa impunidade, as brasas da guetTa civil manter-se-iam acesas e a segurança de todo o noroeste da Europa continuaria em risco.

Filipe 11, já no fim da vida, mobilizava agora todos os seus recursos financeiros, militares e navais para um golpe maciço contra os seus inimigos no norte. A Inglaterra e a França, como sempre, constituíam a chave para os Países Baixos; e a determinação de Filipe de manter o catolicismo e a primazia espanhola no norte da Europa tornara-se inextrincavelmente confusa. Apesar da exaustão de Castela, no início da década de 90 ainda podia obter grandes somas de dinheiro, e foi isso que o levou a jogar num último golpe dramático. As minas americanas nunca antes tinham sido mais produtivas, nem os ban­queiros europeus mais dóceis. Paradoxalmente, o repentino afluxo de riqueza decorria tanto da pobreza como da abundância. Em Castela e em Antuérpia a história era a mesma: as condições de guerra tinham reduzido drasticamente o interesse do investimento interno. Desde a sua reconquista por Farnese em 1585, Antuérpia deixara de ser um

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centro do comercio marítimo internacional. A sua indústria fora des­truída; a sua população diminuíra, em resultado da emigração da fome de 1585-86, de 80 000 para apenas 42 000 almas em 1589. Com as suas perspectivas comerciais arruinadas, os mercadores de Antuérpia não dispunham das saídas habituais para o seu capital. Tal como os banqueiros genoveses e castelhanos, verificaram que os empréstimos à coroa constituíam agora o negócio mais lucrativo.

O caudal de prata americana e a docilidade dos banqueiros per­mitiram a Filipe, no início da década de 1590, deitar algum dinheiro no poço sem fundo da Flandres. Nunca havia, evidentemente, dinheiro suficiente para satisfazer os comandantes do exército, nem mesmo suficiente, dizia-se, para o conde Mansfield, o governador temporário, pagar uma refeição 5• No entanto, as quantidades desembolsadas eram enormes. Atingiram o seu máximo em Julho de 1595, com a negociação de um asiento com um grupo de banqueiros pelo vasto total de 4 milhões de escudos, depositado na Flandres à razão de 280 000 por mês. Fez-se coincidir este prodigioso esforço com a chegada à Flandres de um novo governador-geral. Após a morte de Farnese, Filipe 11 escolhera como seu sucessor o infeliz arquiduque Ernesto, irmão mais novo do Imperador Rudolfo. Esta escolha reflectia o desejo de Filipe de manter ligados os ramos austríacos e espanhol dos Habsburgo; estava pla­neado casar Erne-;to com a infanta Isabel. Mas Ernesto, que chegou aos Países Baixos em 1594, morreu no início do ano seguinte, dei­xando pouca> recordações da sua vida abortada excepto um montão de dívidas que Filipe e o Imperador se recusaram a pagar. Filipe subs­tituiu-o depois pelo mais novo e hispanizado dos arquiduques austríacos, Alberto, que utilizara anteriormente como governador de Portugal. Com a chegada de Alberto aos Países Baixos, no início· de 1596, o conde de Fuentes, que actuara como governador interino, foi chamado a Espa­nha. Com Fuentes o exército perdeu um bom comandante; mas, pelo menos, foi enviado dinheiro suficiente para uma campanha de prima­vera. Sob o comando de um general francês refugiado designado por Alberto, o exército avançou subitamente sobre Calais, que se encontrava completamente desprevenida e tomou-a sem grande dificuldade em Abril de 1596.

Com Calais em mãos espanholas, a ameaça para a Europa do norte parecia tão grave como o fora em qualquer momento dos últimos anos. Não surpreende que o «alarme de Calais» mantivesse o idoso Lord Burghley acordado toda a noite, e lhe sugerisse «muitas cogitações» 6•

Outros problemas ainda tiravam o sono a Burghley. Rebentara uma revolta no Ulster em 1593, à qual se juntou em 1595 o mais poderoso

s H. L9.~Yire, Simon Ruiz et les Asientos de Philippe 11, P&r<Ls, ,1'!)!53, p. 87.

6 Cc~ny.ers Read, Lord Burgh,ley and Queen Elisalleth, LODJdres, 1960, p. ' 5116.

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dos nobres irlandeses, Hugo O'Neill, conde de Tyrone. Os rebeldes

pediram de imediato auxílio a Filipe II e alguns relatórios secretos

sugeriam que estava a ser preparada em Espanha uma nova Armada

para auxiliar os irlande3es ou para um novo «empreendimento inglês».

Foi por essa razão que Drake e Hawkins foram impedidos de gastar

mais de seis meses quando propuseram uma nova expedição ao istmo

do Panamá, em finais de 1595- seriam necessários no país na prima­

vera para defender as costas inglesas contra uma invasão provável.

Mas a incursão nas índias foi um fracasso desastroso, pois os espanhóis

tinham sabido dela com antecedência e reforçado as suas defesas. Os

ataques ingleses foram repelidos com êxito, e o próprio Dra:ke morreu

no mar em Fevereiro de 1596. Uma semana ou duas após Calais ter

caído em mãos espanholas, chegou a Inglaterra uma expedição derro­

tada e desmoralizada. Se bem que Isabel estivesse escandalizada pela «grande apostasia»

de Henrique IV, o risco que ambos corriam na primavera de 1596 foi

suficiente para aproximar a Inglaterra e a França uma vez mais. Segtmdo

um tratado assinado a 24 de Maio, Henrique prometia não concluir

uma paz separada com a Espanha, em troca de uma força de 2 000

homens e de um empréstimo pouco generoso. Foi igualmente permitido

aos holandeses que entrassem nas negociações como parceiros. com

direitos iguais. Com grande relutância, Isabel engolira o seu habitual

desprezo pelos rebeldes, e as Províncias Unidas ocuparam pela primeira

vez o seu lugar entre os Estados soberanos da Europa.

Em 1596, portanto, o sonho de Guilherme de Orange de uma

coligação politique contra o poder espanhol era postumamente consu­

mado, se bem que, infelizmente, sem a adesão dos príncipes alemães.

A participação inglesa na coligação seria mais que uma simples formali­

dade; o novo favorito da corte de Isabel, o conde de Essex, garantiria

que tal acontecesse. Como líder da belicosa facção anti-espanhola,

Essex estava decidido a assumir a iniciativa antes de a Armada se

fazer ao mar. O seu ataque a Cádis em fins de Junho de 1596 foi um

êxito retumbante. Os espanhóis, apanhados completamente de surpresa,

sofreram a experiência, para eles nova, de verem o seu próprio terri­

tório saqueado e devastado durante duas semanas por um exército

estrangeiro. Desejoso de responder, em Outubro, Filipe enviou a sua

nova Armada em auxílio dos rebeldes irlandeses, mas um temporal

obrigou-a a voltar à costa espanhola com pesadas baixas. Uma outra

grande esquadra encontrou os mesmos problemas no Outono de 1597,

quando uma tempestade dispersou os navios, que se aproximavam do

Canal da Mancha. Parecia que Deus não favorecia a empresa de

Inglaterra. Os custos da preparação destas vastas expedições navais e de

prosseguir as campanhas em França e na Flandres estavam a tomar-se

cada vez mais insustentáveis. A 29 de Novembro de 1596 Filipe sus­

pendeu repentinamente os pagamentos aos banqueiros - uma vez mais,

como em 1575, a Coroa não respeitava as suas dívidas. Desta vez foi

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necessário um. ano, em vez de dois, para um acordo de compromisso

com os banqueiros da casa real, mas a delicada máquina de crédito viu-se

entretanto seriamente danificada. As grandes feiras castelhanas de Me­

dina dei Campo nunca recuperaram verdadeiramente dessa nova catás­

trofe. A situação piorou ainda devido à coincidência do colapso finan­

ceiro com, uma sé~ie de desastres naturais. O tempo frio e húmido pro­

vocara mas colheitas e em Castela e na Andaluzia os preços aumen­

taram fortemente a partir de 1596. Durante quanto tempo seria pos­

sível a um país exausto suportar o peso da guerra no norte da Europa?

Arranjou-se ainda dinheiro suficiente para uma nova campan)la

em França, e as forças espanholas tomaram Amiens em Março de 1597.

Mas cada novo esforço militar dos espanhóis em França envolvia um

desvio das forças dos Países Baixos. O arquiduque Alberto, tal como

~ar:nese ante~ dele, viu . que lhe estava a ser pedido o impossível, e

IJ?-Cltou Madrid a que deixasse de esbanjar os seus cada vez mais redu­

Zidos recursos. Desta vez os argumentos vindos de Bruxelas obtiveram

uma resposta mais compreensiva. Filipe estava cansado, doente e cruel­

mente desiludic;Io. O tempo, de que tanto dependera no passado, deixara

de .ser um amigo. para passar a inimigo. Sabia que já não dispunha de

mmtos anos de vida e que o jovem filho estava infelizmente mal apetre­

chado, ·em termos de temperamento e de intelecto, para suportar o

pesado fardo da governação da Monarquia. Os vastos compromissos -de

Espanha deveriam ser reduzidos antes que fosse demasiado tarde.

Convinha começar pela França, onde se tomava cada vez mais

difícil manter uma presença espanhola no seio de uma população hostil.

Se bem que Henrique tivesse conseguido recuperar Ainiens em Setem­

bro de 1597, também ele tinha as suas razões para desejar o fim da

guerra. O cerco de seis meses a Amiens, mesmo que no final tivesse

sido bem-sucedido, mostrara claramente a alarmante vulnerabilidade da

p~óp~a posição de Henrique. Grande parte . do país fora devastada; o

dmheiro era pouco; e estava a tomar-se difícil ou mesmo impossível

obter auxílio financeiro e militar no estrangeiro. Ainda mais grave era

a a~eaça de uma nova guerra civil; agora instigada pelos seus antigos

ap01antes huguenotes. Henrique prometera aos huguenotes, no seu :f:dito de Nantes de

1591, revogar os decretos anti-protestantes dos últimos anos de Henri­

que I~I. e voltar à situação relativamente favorável criada pelo Édito

de P01t1ers de 1577. Como solução temporária isso poderia ter satisfeito

os huguenotes, se não tivesse sido seguida em 1593 pela abjuração de

Henrique. A traição do rei à sua causa levantou entre os huguenotes

grandes receios quanto aos seus direitos. Em 1595 reuniram-se sem

autorização régia em Sainte-Foy, a fim de estudar a melhor maneira

de obter garantias adequadas do rei e de dar ao seu movimento uma

sólida organização política. Pretendiam que o rei lhes cbncedessc um

novo édito, e depressa se aperceberam de que a guerra com a Espanha

aum~ntav~ as suas p~ssibilidades de obterem concessões. Ao vcrom que

o rei hesitava, aproximaram-se dos ingleses e dos holandeses. c retira-

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ram do exército régio os seus contingentes, a meio da campanha. ~om a sua recusa de enviar soldados a Henrique durante o cerco de Amiens, parecia que a guerra civil estava de novo .a ap:oxima~-se. .

No outono e inverno de 1597 a situaçao naciOnal e a mtema­cional reagiram uma sobre a outra .. Henrique necessitava da paz co~ os huguenotes para continuar a sua guerra com a Espanha, e necessi­tava da paz com a Espanha para enfrentar o desafi<? ~uguenote. Nestas circunstâncias, o argumento a favor das negociaçoes, tanto internas como no estrangeiro, tomava-se muito forte. Clemente V~II exprimira com crescente intensidade o seu receio· de que o confhto entre a França e a Espanha acabasse por redundar em vantagens para o norte da Europa, protestante, e tanto Henrique como FiliJ?e estavam agora dispostos a ouvi-lo. Enquant? s~ inic.ia_v~ ~ma nova ~~ne de n~go­ciações com os huguenotes, as pnme1ras IniCiativas de Fihpe recebiam respostas compreensivas. A 30 de Abril de 1598, quan~o ?S delegados espanhóis e franceses ainda se encontravam em conferencias em Ver­vins, Henrique assinou o Édito de N antes promovendo a «untao, con­córdia e tranquilidade» dos seus súbditos, tanto huguenotes como ca­tólicos.

O Édito de N antes era uma medida civil, um acto de Estado imposto a um país onde duas religiões em co~p~tição t~nham ~omen­taneamente atingido um ponto morto. Se o rei tiv~sse s~do mais !~rte, não teria sido necessário; se fosse mais fraco, nao tena sobreviVIdo. O Édito, concebido como medida provisória, adquiriu por defeito um certo grau de permanência. Tal como a paz de Augsburgo de 1555, era essencialmente uma trégua religiosa entre credos em guerra, nenhum dos quais estava disposto a abandonar as suas exigênci.a~ ?e uni~ers~li­dade; mas diferia do acordo de Augsburgo por a dlVlsao territonal, lógica na Alemanha, ser impensável em França. Em França o protes­tantismo manteve-se uma religião minoritária - talvez um em cada dez franceses no máximo, fosse huguenote, e o seu número diminuía à ' . . medida que as guerras civis continuavam. Esta !fi~nona encontrava,:se por outro lado muito dispersa, se bem . que existls~em concentraçoes significativas de huguenotes na Normandia, n?. Delfmado, ~o .~an~e­doque e na Aquitânia. Não eram, porém, sufic~en~ement~ . significativas para justificar uma divisão territorial segundo cnténos rehgwsos, mesmo que essa solução fosse politicamente viável. Nem, por outro lado, o número total de huguenotes franceses era suficiente para justificar a garantia de absoluta igualdade entre as duas. fés, pois só em raras cidades os protestantes constituíam a maiori~. Como resultado disso, Henrique, tal como os seus predecessores:, VIu-se forç~do a procurar uma solução que reconhecesse o frac~~.? do: pr?t~.tantls~o em trru;s­formar-se em algo mais do que uma rehgmo mmontana, aceitando porem simultaneamente a sua existência.

De facto, os huguenotes conseguiram tanto quanto ~ereciam, mas bastante menos do que desejavam. Grande parte do Édito de Nantes pouco mais era do que uma repetição do Édito de Poitiers, se bem que o

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direito de culto público fosse marginalmente alargado. Um ou dois lugares de cada bailliage * ou sénéchaussée foram acrescentados às cida­des designadas em 1577. Permitia-se igualmente aos hugucnotcs que retivessem as suas places fortes. Garantia-se-lhes a admissão aos cargos públicos e aos colégios e universidades. Deviam gozar de todos os direitos civis, que deviam ser protegidos por câmaras especiais nos parlements. E podiam realizar reuniões religiosas sem autorização régia. De muitos pontos de vista estes termos eram bastante liberais, se bem que existissem inúmeros problemas relativos à interpretação exacta de um texto muitas vezes ambíguo. No entanto, o Édito pode também ser considerado como uma derrota drástica dos huguenotes ou, pelo menos, das suas esperanças futuras. Apesar de lhes conceder direitos e garan­tias, impunha limitações tão restritas ao seu culto que tomava impos­sível a sua expansão futura, enquanto o culto católico romano era per­mitido em todas as circunstâncias. Dado que o catolicismo francês já apresentava indícios de renovada vitalidade, havia fortes probabilidades de os huguenotes virem a transformar-se com o tempo numa minoria apenas tolerada, sendo a sua religião condenada a uma estagnação definitiva.

No momento em que o Édito foi assinado, no entanto, houve tanta agitação nas fileiras católicas como nas protestantes. Do ponto de vista de Roma, o Édito era bastante desagradável, dado que sancionava formalmente a existência de duas religiões no mesmo Estado. Apesar de tudo não se estava na Transilvânia ou na Polónia, mas sim em França, no coração da Europa católica. Clemente VIII estava aterrado: «O pior édito que poderia ser imaginado... Um édito que permite a liberdade de consciência, a pior coisa do mundo». Nantes, com efeito, constituía um desafio directo à exigência de Roma de ser uma igreja exclusiva e universal, tal como representava um desafio directo ao axioma político tradicional das monarquias do século dezasseis - un roi, une foi, une foi. Representava ainda a derrota das esperanças de Filipe quando à França. Desejara uma França católica e fraca; mas, agora, via perante si um rei que legalmente sancionava a heresia e aumentava activamente o poder do Estado·.

A assinatura do Édito não teve, porém, qualquer efeito nas nego­ciações de paz entre as duas potências. Dois dias mais tarde, a 2 de Maio de 1598, foi assinado um tratado em Vervins. Este restabeleceu de facto o tratado de Cateau-Cambrésis assinado quase quarenta anos antes. Os espanhóis concordaram em abandonar a Bretanha e Calais, tal como as suas conquistas junto à fronteira com os Países Baixos.

* Bailliage, tribuna.! que jUJlgava em n'Ome àxJ rei e SOib a presLdênc!a de um bailli, fun.ci'onãrio que tinha poli' missão representar a re·afreza 3lJaiS p.ro­vinc.W.;s .e ocmrtrolalr as fl.llillc:i:o:nário;s loc:ai:s die origem feudal, e ouja.s a:tvibuições se a:ss•em;eiha:va.m llK) sul às do sénéchaZ (N. R.). ·

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-A ~rança rec:_uperava, portanto, a sua integridade territorial, e o período de mtervençao espanhola era encerrado.

Filipe II estava agora livre para se concentrar na sua guerra com 0 3 Estados protestantes - a Inglaterra e as Províncias Unidas - ne­.nlium del~.s inter~sado em j~tar-s~; à França nas negociações de' paz. , Quatro dms depois de Vervms, Filipe entregou os Países Baixos ao arquiduque Alberto e à sua futura mulher, a Infanta Isabel. Deveriam goyernar os Países Baixos como «príncipes soberanos», mas existia uma

.,certa a~big~ida~e deliberada quanto ao significado destas palavras. Não P:et.~ndiam Imphcar, qualqu~r renúncia por parte de Espanha aos seus direitos sobre os Pmses BaiXos e o governo em Bruxelas deveria estar seml?re suave, ~~s solidamente, ligado ao governo de Madrid. Filipe deseJava , sem duvida assegurar por este meio uma sucessãn mais fácil .a?_seu filho. Ou talvez visse no governo dos «arquiduques» um meio vmvel de preservar a presença de Espanha no sul dos Países Baixos ao mesmo tempo que continuava a guerra contra os rebeldes do n~rte. _Mas ª transferência de so?erania nos ~aí~~s Baixos, qua1_1do vista junta­, m~p.te com a paz de Vervi~s, marca o u_uc1_o da ~enta retirada espanhola do norte da Europa - retrrada que sena mtens1ficada pela paz com a .Inglaterra em 1604 e pelas tréguas com os holandeses em 1609. •. r· Era . um final decepcionante para os prodigiosos esforços castelha­n.os nos últimos anos de Filipe II. De facto, a França não fora perdida -a f~~or dos ~~reges, o que podia ser considerado uma consequência da pohtlca de F1hpe. ~~s a Esl?an~a não derrotara a Inglaterra de Isabel, e f~acassara n~Apr~nc1pal obJectlvo da sua política nórdica- a restau­raçao da obed~enc1a dos rebeldes holandeses ao seu rei. Na tentativa de alcançar este objectivo, Filipe gastara tudo o que tinha mais ainda e reduzira .à ~séria o. seu reino de Castela. Era tempn de parar. E~ Junh~ o re1 fo1 aco~etldo pela doença insistiu em sair de Madrid para o ;Esconal, onde deseJava acabar os seus dias. Preparou-se para a morte _do m7smn modo que se preparara para todos os outros acontecimentos d.a sua vida, com uma atenção aos pormenores infinitamente meticulosa. Após uma longa agonia, sofrida sem queixas, morreu a 13 de Setembro d.e 1598, com a idade de setenta e um anos. Por vezes deve ter pare­_cido, a uma ~uropa qu~ dur~nte tanto tempo· viveu à sua sombra, gue nunca morrena. Mas ate o re1 de Espanha se revelou afinal um mortal.

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XII

O CONTINENTE DIVIDIDO

1. O mundo mediterrânico

«É certo», escreveu o historiador francês Jaime-Augusto de Thou em 1604, «que os impérios, tal como 0:3 homens, têm o seu início, o seu crescimento, a sua decadência e o seu fim; e que a Providência fixou certos limites que nem a força nem a prudência podem ultrapas­sar» 1• Em finais do século dezasseis muitos acreditavam que para a Es­panha e o seu império havia passado o melhor momento e se iniciara o seu inexorável declínio. Nem a força nem a prudência tinham servido a Fi­lipe Il. A derrota da Armada: o fracasso nos Países Baixos; a paz de Vervins; a prevista exaustão das minas americanas __:__ não sugeriria tudo isso que o sol se estava a pôr lentamente sobre o esplendor de Espanha?

Na própria Espanha- a do jovem Filipe III- começavam a ouvir-se vozes alarmadas. O país estava cansado· e psicologicamente derrotado. O fecho- do século foi um período terrível, em que a bancar­rota e o fracasso das colheitas foram acompanhados da marcha da fome para o norte e da peste para sul. Já os arbitristas- especuladores, eco­nomistas e panfletários -trabalhavam duramente no diagnóstico da doença e na prescrição de remédios para um corpo político envelhecido. Era fácil ver que as coisas iam mal; e era natural que uma Castela mantida a boiar tanto tempo por uma fé profunda na sua missão pro­videncial se abandonasse a uma orgia de intl·ospecção nacional quando se descobriu defraudada.

Uma política estrangeira extravagantemente ambiciosa, que não teve em conta a capacidade do país para suportar os custos, afectara

, bastante Castela, como é óbvin. O peso dos impostos, particularmente nos últimos anos de Filipe II, fora esmagador; e todo n caráctcr das finanças régias contribuíra para distorcer a economia castelhana e limitar as oportunidades de aumentar a riqueza nacional. Os elevados rend i­mentos ou juros dos empréstimos que alimentavam a dívida régia afasta-

1 Histoire Uwi.verseUe i(•!Jood,nes,, .t7\M), rv.ol. [, LiiVil'D' w. IP· Jlf7.

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ram o capital privado do investimento mais. arriscado mas potencial­mente mais útil nos empreendimentos agrícolas e industriais. O recurso da coroa aos banqueiros estrangeiros colocara muitas das fontes de riqueza em mãos estrangeiras e minara a força e o moral da classe empresarial autoctone. No entanto,_ apesar das drásticas consequên­cias da política externa dos Habsburgo para a vida económica caste­lhana, é fácil sobrestimar- como os próprios castelhanos tenderam a fazer - a extensão e o carácter único das dificuldades de Castela no final do século.

Se as aventuras imperiais de Castela a colocaram numa categoria própria, muitos dos seus problemas erain comuns a todo o mundo medi­terrânico. A população desse mundo ultrapassara já drasticamente a capacidade da região de fornecer alimentos e trabalho. Talvez tivesse duplicado em cem anos- de cerca de trinta milhões em 1500 para aproximadamente 60 milhões em 1600 2• Se bem que este aumento fizesse parte de um fenómeno mais vasto, europeu, criou problemas que foram sentidos com particular intensidade nas regiões mediterrânicas. O sol mediterrânico era quente e grande parte das terras era monta­nhosa e árida. Os transportes, a irrigação e a exploração agrícola constituíam desafios ao engenho e à determinação que tendiam a ser mais violentos do que os existentes nos climas mais temperados do norte da Europa. É discutível que estes desafios pudessem ter sido enfren­tados com os limitados recursos da tecnologia do século dezasseis; mas o conservadorismo, o interesse próprio e uma visão fatalista podem muitas vezes ter impedido o lançamento ou a realização de projectos que não se encontravam além das capacidades técnicas contemporâneas. Um projecto para tomar o rio Tejo navegável de Toledo até Lisboa foi iniciado com algum êxito por um engenheiro italiano nos anos 80, mas abandonado no final do século em grande parte devido à oposição de interesses locais. Dir-se-ia que se tomava necessária uma revolução mental antes que os recursos da natureza pudessem começar a ser siste­maticamente dominados pelos homens. Alguns espíritos esclarecidos, como Olivier de Serres, agricultor huguenote, admitiam a possibilidade de os homens melhorarem o seu próprio meio ambiente, e fizeram pro­postas com esse fim. Mas o próprio Serres era mordaz na sua denúncia dos apáticos camponeses do Languedoque entre os quais vivia. Contra o peso morto da tradição numa sociedade ainda largamente analfa­beta, e o interesse próprio criado por noções exageradas de propriedade, poucas possibilidades havia de introduzir a mudança.

Incapazes de dominarem as causas da pobreza e da fome, os Estados mediterrânicos enfrentaram as suas consequências da melhor

2 Ver F. Bra;udel, La Méditerranée, (2.• €d., Paris, 19,56) , vol. I. prp. 3168 e segs., quanrt:o a este e OO'tros númeJros p:opulwCiiona1s na região nredi­terrânica. O autor sublinha co.rrec.tannente a grande incerteza €xistenrt;e quanto a estes númeJroo.

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maneira que podiam. Os homens esfomeados, como os governos sabiam à sua custa, transformavam-se facilmente em vagabundos c bandidos - particularmente numa parte do mundo onde as venclettas vinham já de tempos imemoriais, onde a mão do governo mal chegava além das muralhas das cidades e onde os membros empobrecidos da grande c da pequena nobreza dominavam os campos com os seus grupos de pat1idários. Nas últimas décadas do século, o flagelo do banditismo parece ter-se tomado mais agudo em todas as regiões mediterrânicas. Só Castela se mantinha relativamente isenta, talvez porque os esfomeados e desempregados podiam encontrar escape para a sua situação nos tercios da Flandres ou nos grandes espaços vazios das índias, e porque a justiça estava assegurada, e por vezes era célere, enquanto Filipe 11 se sentasse no trono espanhol. Mas também Castela possuía os seus vadios profissionais, os seus pícaros; e fora de Castela, na Catalunha ou no Languedoque ou na Itália, o pícaro transformava-se, devido ao desespero ou à fanfarronice, em bandido - o fora-da-lei que vivia com os seus companheiros segundo um código privado que regulava o com­portamento do seu estado dentro do Estado.

O banditismo era particularmente violento nessa época nas terras do papado, que apresentavam, como num microcosmo, todos os pro­blemas de ordem social e política do mundo mediterrânico. Em geral, os Estados papais foram exportadores de cereais até cerca de 1575, mas no último quartel do século a situação alterou-se. A Itália, tal como grande parte da Europa mediterrânica, parece ter sofrido modificações climáticas nesse período. Alguns anos viram chuvas fortes e inunda­ções desastrosas e foram frequentes as más colheitas, como em 1589 e 1590, quando o banditismo alcançou novo auge. Mas as condições climáticas não foram as únicas responsáveis pelo fracasso do abasteci­mento de cereais. Tal como em Castela, o pesado fardo dos impostos despovoou os campos e reduziu a oferta de trabalho rural barato. Além disso, o crescimento de Roma como grande capital - de 30 000 habi­tantes de 1500 para 100 000 em finais do século- criou um lucrativo mercado· de carne e de cereal. Isto provocou uma forte competição no uso das terras para cereais e para criar gado, que requeria uma reduzida quantidade de trabalho. Enquanto grande parte das terras de cultivo passava a ser utilizada para pastos, outras boas terras deixa­vam de ser cultivadas devido à propagação da malária; e apesar de Sixto V ter feito heróicos esforços para secar os pântanos do Pontino, os sistemas de drenagem eram caros e tecnicamente difíceis, só dando resultados lentamente. A Campagna, portanto, e tal como os campos castelhanos, não conseguiu corresponder ao desafio do aumento da procura.

A Campagna era dominada por barões feudais que se ressentiam com a prosperidade da capital e temiam a lenta mas contínua extensão do controlo papal sobre as suas terras. Os domínios temporais do papado eram administrados pelo cardeal, tesoureiro através de governadores colocados nas principais cidades e de um crescente exército de funcio-

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uanos c colectores de impostos. Tal como os seus colegas seculares,

os papas do século dezasseis tinham feito grandes esforços no sentido

de aumentar a eficácia do seu governo e os rendimentos provenientes

dos impostos cobrados nos seus próprios domínios, num momento em

que a secessão protestante diminuíra .drasticamente as suas fontes tradi­

cionais de rendimento noutras regiões da Europa. Em finais do século

tinham conseguido progressos consideráveis em ambas as frentes. Os

impostos cobrados nos Estados papais aumentaram dez vezes ao longo

do século (bastante mais que os preços); e a crescente tendência dos

papas para designarem eclesiásticos para os cargos administrativos supe­

riores conduzia a inúmeras queixas a respeito da tirania de um governo

de padres. No decurso da procura, por parte dos papas, de novas fontes de

rendimento, em 1578 Gregório XIII começou a investigar de modo sis­

temático os títulos de propriedade que conferiam os feudos aos barões.

Numerosos castelos foram reclamados pela Câmara Apostólica aos seus

indignados mas ilegais ocupantes, que responderam às tentativas de

expropriação recorrendo à violência. A conjugação das más colheitas

e da fome com esta revolta da aristocracia rural provocou um vio­

lento surto de banditismo, que constituiu a um tempo uma rebelião dos

campos contra a capital e uma rebelião das forças indomáveis do

regionalismo contra as exigências do poder central. Tratava-se de um

banditismo tipicamente mediterrânico - um movimento de agitação

social instigado e explorado por uma aristocracia descontente e retró­

grada tendo em vista os seus próprios fins. Mas também se pode reco­

nhecer nele um irmão bastardo dos movimentos que tinham provocado

a revolta em Aragão e as guerras civis em França. Ser-lhe-ia apenas

necessário um maior grau de sofisticação para que o banditismo aristo­

crático se transformasse num levantamento em defesa das «liberdades»,

e um pouco de patriotismo e religião para transformar os bandidos em

Gueux. Durante todo o século dezasseis a linha divisória entre. a anar­

quia e o constitucionalismo aristocrático era bem estreita e acidental­

mente pisada e repisada tanto pelo bandido como pelo descontente ou

o patriota. A partir de 1578 e até 1595 os Estados papais foram submersos

pela onda de banditismo que, por vezes, atingia as muralhas da própria

Roma, cortando a estrada para Nápoles. Durante um momento dir­

-se-ia que Sixto V levara a melhor sobre os bandidos, na sequência de

uma maciça campanha e de sentenças impiedosas contra os que eram

apanhados. Mas a escassez e a fome dos últimos anos deste pontificado

de novo os trouxeram; e até o conhecido bandido-nobre Afonso Picco­

lomini, que fora perdoado por Gregório XIII, reapareceu em Julho de

1590, um mês antes da morte de Sixto. Só cerca de 1595, durante o

pontificado de Clemente VIII, começou a desaparecer o intenso movi­

mento de banditismo que se iniciara em 1578. Uma vigorosa e persis­

tente actuação policial conseguiu gradualmente os resultados dese­

jados. Um após outro, os bandidos encontraram a morte na forca, e os

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nobres que os escondiam e incitavam foram pcrs\.:pllilht ,. d•·1·1 111 1d•111

Muitos dos seus clientes e seguidores foram incorporad11~1 1111 l'Xi ' li 'ilu

papal, ou amnistiados sob a condição de irem para a ll11111'1 11, .111

tando-se na guerra contra os turcos. Enquanto a acção militar submetia os campos, a prup1 i11 l(•mlll

prendia a nobreza cuja conivência e apoio tanto fizera no Nl'ntid" d,•

manter vivo o banditismo rural. Quando os papas lançaram a llhHia du

embelezamento da sua capital, os nobres começaram a rivali:t.:11 l' lltn·

si na construção de dispendiosos paláci03 urbanos. Os elevados niVl'l

de conforto e luxo definidos pela nova aristocracia das famílias pop111.

desafiavam os hábitos da antiga nobreza romana e envolviam-na l ' lll

pesadas despesas, que a sobrecarregavam de dívidas. Foram cslas 'I"'' obrigaram famílias famosas, como os Orsini, a vender os seus castdos

rurais e a recorrer ao patrocínio papal para sobreviver. Gradualmenll: ,

portanto, a velha nobreza foi dominada e civilizada, e presa por fiofi

de seda à corte dos papas. Ao dominar e civilizar a velha aristocracia militar, os papas não

estavam a fazer mais que os seus colegas seculares, que por toda a

parte tentavam, através de uma judiciosa combinação de douceur e vio­

Jência, subjugar as manifestações mais perigosas da agitação aristocrá­

tica. O próprio regresso à paz no final do século apressaria o processo,

permitindo desviar os gastos dos exércitos para as cortes. Tentada pelo

patrocínio e seduzida pelo luxo, a nobreza europeia seria gradualmente

persuadida a libertar-se de antigos hábitos menos adequados à vida na

corte do que no campo. Mas abaixo da nobreza estava o povo, amon­

toado em cidades que cresciam rapidamente, e propenso a tumultos e

rebeliões quando os impostos se tornavam insuportáveis e o pão dema­

siado caro. Aqui os problemas eram tão grandes que desafiavam a

possibilidade de solução no mero contexto do Mediterrâneo. A sal­

vação, a surgir, vinha de fora, trazida pelos navios-celeiros do norte

da Europa. A partir do início da década de 1570 aumentou sistematicamente

o número de navios nórdicos nos portos mediterrânicos. Os ingleses,

na sua busca de novos mercados para o vestuário e o estanho, mostra­

ram-se cada vez mais activos a partir de 1573. Essa mistura peculiar

de comércio e pirataria, que já criara tantos problemas no Atlântico

espanhol, causava uma grande ansiedade em Veneza em finais dos

anos 70; e a concessão de facilidades comerciais pelo sultão mostrou-se

suficiente para justificar a fundação de uma Companhia do Levante em

1581. Os holandeses, pelo seu lado, persistiram vigorosamente no seu

comércio com a península ibérica, sem se deixarem demover pelo

facto de estarem em guerra com a Espanha. Quando o conde de Lei­

cester tentou proibir o comércio ibérico dos holandeses 3, verificou que

todos os mercadores e proprietários de navios da Holanda se puseram

3 V'er am.telrlmimente, c:rupÍitullo 10.

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contra ele, defendendo colericamente a sua actividade lucrativa como fornecedores de alimentos vindos do norte e de mercadorias navais para os seus inimigos espanhóis. Cobiçavam também o lendário comér­c_io sevilhano. A crescente preocupação d~s genov;ses em relação às fm~nças da Coroa espanhola deixara um vazio parcial no comércio sevilhano, que os holandeses estavam decididos a preencher. Através dos seus agentes clandestinos, particularmente os judeus portugueses ou marrqno~, os mercadores holandeses penetravam com êxito no comércio das Indias, com o acordo tácito de um governo espanhol dolorosa­mente consciente da sua. ~ependência dos rebeldes enquanto compra­dores de produtos colomais e fornecedores de mercadorias nórdicas.

Com os ingleses claramente interessados nos mercados mediter­rânicos e os holandeses secretamente estabelecidos em Lisboa e Sevilha a penetração em grande escala dos mercadores nórdicos no Mediterrâ~ neo era apenas uma questão de tempo. Foi a crise do cereal na bacia mediterrânica que precipitou essa invasão. No Império Otomano, o cereal escasseou em meados dos anos 60 e, depois, entre 1572 e 1581 e novamente de 1585 a 1590. Em Nápoles tiveram lugar seis anos de fome entre 1560 e o final do século. Até a Sicília o celeiro do Medi­terrâneo-, passou por uma fase de más colheitas en'tre 1575 e 1580 se bem que continuasse a ser um grande exportador de cereal ainda' no sécu~o d:z~ssete. Incapazes de se alimentarem a si próprios, os países mediterramcos procuraram o auxílio da Europa do· norte e do leste. Em resposta, os navios ingleses, holandeses e hanseáticos apareceram como enxames no Estreito de Gibraltar, transportando o cereal do Báltico que podia significar a diferença entre morrer de fome e a sobrevivência.

A penetração dos navios nórdicos no Mediterrâneo nos últimos anos do século alterou inevitavelmente o equilíbrio comercial e econó­mi~o do sul da Eur~p~ .. A Toscânia, sob o governo competente do antigo. cardeal de M7dicis, agora grão-duque Fernando (1587-1609), aproveitou a oportumdade e declarou Livorno porto livre em 1593. Transformou-se portanto no porto italiano mais favorecido pelos mer­cadores nórdicos e num grande centro distribuido·r do cereal nórdico. Com os lucros desta nova actividade comercial, o grão-duque transfor­mou-se talvez no príncipe mais rico da Europa.

Onde a Toscânia ganhou, Veneza perdeu. Já so·frera bastante com a. perda de _Chip,re para os, ~urcos em 1571 e com as depredações dos pi~~tas - na? so os corsanos berberes mas também os piratas espanhms, florentmos e malteses e os bandidos do Adriático, os Uskoks, que operavam a partir da sua inexpugnável base de Segna perto de Fiúme. Agora, no final do século, os piratas nórdicos -o' excedente não assimilado, como os bandidos italianos, das sociedades demasiado populosas -juntavam-se aos seus irmãos do sul no mesmo jogo. Um ~úmero crescente de merc~dores venezianos era atacado por bertoni mgleses ou holandeses: naviOs altos e largos de três mastros. e tonela­gem média que aguentavam bem o mar e transportavam vinte canhões ou mais. Veneza mostrou-se singularmente incapaz de enfrentar este

desafio dos piratas. A tradicional frota de galeras estava tecnicamente mal equipada para enfrentar os bertoni, demasiado altos para permiti­rem uma abordagem fácil a partir dos cascos baixos das galeras. E Veneza tinha ainda dificuldade em recrutar tripulações. Enquanto o desenvolvimento industrial em terra começava a atrair o interesse do homem de negócios veneziano, mais do que o tradicional comér­cio ?larítimo, o serviço naval perdia o seu prestígio e o moral do.3 mari­nheiros. baixava. Antes do mais, a própria Veneza se tornara dema­siad? rica e negligente. A oligarquia fechada que se perpetuava a SI mesma, perdera aparentemente o desejo e a capacidade de conceber novos métodos adequados às novas circunstâncias. Veneza, tal como Castela, em finais do século dezasseis apresentava todos os sin­tomas de esclerose.

Se bem que a resposta variasse de porto para porto e de um Estado para outro, não havia escaptória para esse facto crucial da vida no sul da Europa em finais do século - a transformação do Mediterrâneo num lago anglo-holandês. Era nesse contexto que à Espanha de finais do século dezasseis se deparavam as suas dificuldades. Todos os Es­tados mediterrânicos eram vítimas, em maior ou menor grau, de uma situação em que parecia não ser possível fugir à dependência relativa­mente ~o norte. Verificaram-se, evidentemente, tentativas desesperadas de reagir. Em 1585 Filipe lançou o seu primeiro embargo aos navios nórdicos nos portos ibéricos. Em 1595, e novamente em 1598, apresou cerca de quinhentos navios holandeses ancorados em portos espanhóis e portugueses. Mas 03 embargos acabaram por ser contra-producentes. Era impossível a Península Ibérica viver durante muito tempo sem o cereal e os abastecimentos do norte, e os espanhóis não dispunham da marinha mercante necessária para procederem eles próprios ao aprovi­sionamento. Viram-se portanto obrigados a voltar à dependência dos seus inimigos. Aliás, a cura podia até ser mais drástica do que a doença. Quando os holandeses foram impedidos em 1598 de ter acesso ao sal português em Setúbal, reagiram muito simplesmente dirigindo-se para as Caraíbas e para as salinas de Araya, ao largo da costa da Vene­zuela. Parecia que, qualquer que fosse a atitude de Espanha, esta estava destinada a perder. Não tendo conseguido derrotar os ingleses e esmagar a revolta holandesa, estava agora condenada a observar impotente o espectacular avanço do3 seus inimigos nórdicos à custa das suas pró­prias possessões ultramarinas e da sua vida económica.

A derrota de Espanha fez portanto parte de uma derrota mais vasta, a da Europa do sul pela do norte. Os países mediterrânicos, que durante tanto tempo tinham dado o tom à Europa, pareciam agora entrar numa nova fase da sua vida, caracterizada pela subserviência económica em relação aos Estados do norte da Europa. Mas, no final do século, esta transformação ainda tendia a ser disfarçada pelo pres­tígio do poder militar espanhol e da civilização mediterrânica. A Mo­narquia espanhola era ainda vista pelos seus contemporâneos como a maior potência mundial, e a influência cultural espanhola nunca foi

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maior que nos primeiros anos do século, num momento em que o ver· dadeiro poder militar e político de Espanha já iniciara o seu declínio. Além do mais, a civilização do Mediterrâneo italiano continuava a exercer um profundo fascínio sobre um continente habituado a olhar para o sul, em busca da sua arte e. das suas ideias. O norte deixou-se impressionar, como se pretendia, pelos esplendores barrocos da cidade de Sixto V e de Clemente VIII. Deixou-se estimular, tal como a pró­pria Itália, pelos novos estilos anti-maneiristas de Aníbal Caracci e de Caravaggio. E um continente em turbilhão espiritual continuava a sentir a sedução de Roma.

2. Roma e o Norte

A grande reconstrução de Roma, que drenou a riqueza da Cam­pagna, constituiu uma afirmação triunfante da fé da igreja no seu pró­prio futuro, num momento em que estava quase a redescobrir as ale­grias da independência. Durante mais de uma geração, Roma vivera à ·sombra do poder da Espanha dos Habsburgo. Mas durante a década de 1590, essa sombra começou a dissipar-se, e toda a Itália descortinou o sol durante tanto tempo ausente. As anteriores tentativas de libertação da influência espanhola apenas tinham conduzido à frus­tração e à desilusão: Sixto V encolerizara-se em vão contra o conde de Olivares, e pouco resultara da luta de 1582-83 no interior da oligar­quia veneziana entre os anciãos, os vecchi, que continuavam a defender a sua política de aplacar Filipe II, e os giovani, que desejavam que a República mostrasse maior firmeza nos seus negócios com Espanha. Se bem que os líderes dos giovani, Leonardo Donà e Nicolau Contarini, tivessem tido algum êxito nas suas tentativas de introduzir reformas governamentais, verificaram- tal como os mais idosos já tinham des­coberto a seu tempo - que havia poucas possibilidades de aplicar uma política externa genuinamente independente enquanto a França estivesse demasiado fraca para contrabalançar o poder espanhol. Mas quando Henrique IV surgiu como o forte rei de uma França nova­mente unida, a situação internacional foi drasticamente alterada. Os seguidores e panegiristas de Henrique depressa aproveitaram a oportu­nidades, e apresentaram o seu rei ao mundo como o Hércules gaulês, que quebraria as cadeias espanholas que mantinham escravizada a cris­tandade.

A Veneza, a Toscânia e Roma viram em Henrique IV o seu potencial salvador da dominação espanhola, mas foi a Santa Sé que mais lucrou com a recuperação da França. Depois de Henrique IV e de Clemente VIII terem feito as pazes, o papado encontrava-se em posição de voltar à política de equilíbrio do poder que tão bem lhe servira antes de a Espanha adquirir tal supremacia. As possibilidades da nova situação foram claramente reveladas em 1597, quando Afonso II d'Este, duque de Ferrara, morreu sem herdeiros. Ferrara

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era um feudo papal e Clemente VIII estav~ dec~dido a recuperá: lo, se bem que a Espanha fizesse notar a sua stmpatla pelas pretcnsoes de César d'Este. Os precedentes das décadas anteriores apontavam ~ara o êxito do candidato espanhol, mas Clemente recorreu ao apoio d~.: Henrique IV. O Hércules gaulês, ansioso por demonstr~r que era t~m filho dedicado da igreja, declarou-se pronto a conduzu· um exércitO através dos Alpes em defesa da causa papal. Pera~te. e~ta ameaça d~.: Henrique IV, Filipe II não estava preparado para mststlr, e o ducado de Ferrara voltou portanto para a Santa Sé. .

O êxito papal em Ferrara sugeriu em certa medtda as novas oportunidades criadas a Roma pelo renascimento da França sob um rei forte e católico. Mas a possibilidade de explorar estas oportumdades de recuperar a obediência da Europà central e. do norte sem recorrer à embaraçosa assistência da Espanha dependena da boa vontade ~os seus apoiantes seculares não espanhóis e ~a . eficáci~ dos se?s própr_l0.3 agentes de conversão. Neste campo, nas ultimas decadas, tmham sido realizados · progressos consideráveis. Na própria Roma as r~for~as de Sixto V tinham lançado um demorado processo de reorgamz~ç.a~ que concentrara a autoridade suprema nas mãos do papa e dtvtdtra a tarefa da burocracia eclesiástica em departamentos especializados, cada um deles com uma função distinta. Existia agora um corpo diplomá­tico papal bastante eficaz e a secretar i~ de ~stad~ foi liga_da . à condu­ção dos negócios externos. Os cardems, cuJo numero fm f~xado em setenta por Sixto V; foram divididos em quinze «congrega~~es», que de facto constituíam comissões permanentes com deveres espectficos rela-tivos à vida espiritual e administrativa da igreja. _ .

Com congregações especiais para a Inq~Iisição, o !ndex, os bispos e as ordens religiosas, Roma encontrava-se mais bem eqmRada para. pro3-seguir políticas sistemáticas capazes de serem ~daptadas as necessidades locais. Simultaneamente, a Santa Sé teve o cmdado de reforçar as suas ligações com os bispos e o clero em regiões distantes da Europa e utilizou cada vez mais os núncios papais para representar os s~us interesses nas cortes dos príncipes seculares e para coo~d~nar as ván~s agências locais de conversão e reforma. As _ordens rehgwsas, e parti­cularmente os jesuítas, tinham um papel vital . a desempenhar , neste campo regional. Em finais do século a Companhia de Jesus possma um total de 13 112 membros e encontrava-se dividida em trinta e duas provín­cias. Através dos seus numerosos colégios, 372 em 1600, começara ~ trazer a nova geração de volta ao domínio ~spiritual d~ _Roma. Foi notável por exemplo a maneira como o catolicismo adqumu um novo ímpeto 'na Borgonha 'do duque de Mayenne após a chegada dos jesuítas e a sua instalação no College des Godrans, em 1581. É certo. que os jesuítas sofreram um revés temporário com o decreto de Hennque lV que os expulsou do país, em 1594 4• Mas o decreto parece nunca ter

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sido aplicado em diversas zonas da França e ~ Ordem _d~u um contributo significativo para a educação de uma geraçao que vma a promover a revivescência católica francesa do princípio do século dezassete.

A história foi semelhante nas terras alemãs e austríacas. Em todos os locais onde as ordens religiosas conseguiam entrar, o trabalho de recatolicização era energicamente iniciado. Mas a opo~ição m~nti­nha-se forte e as dificuldades ainda eram enormes. No seiO da ansto­cracia das terras dos Habsburgo, o protestantismo encontrava-se bem entrincheirado: ainda em 1609 os Estados Sociais do arquiducado da Áustria possuíam trezentos membros protestantes contra apenas oito católicos. Por outro lado, não eram apenas os protestantes que resistiam; foi pelo menos essa a experiência de Melchior Khlse~, filho convertido de um padeiro vienense, que foi encarregue do moVI­mento de reforma católica na Áustria superior e inferior em 1590 e se tornou bispo de Viena em 1598. Existiam intermináveis rixas entre as diversas ordens; e o clero das paróquias, que durante ta11;to tempo fo:a negligenciado por Roma, mostrou-se extremamente recalcitrante face as tentativas de elevar as suas regras de conduta moral e os seus conhe­cimento:> até ao nível compatível com a igreja pós-tridentina.

Nestas circunstâncias, a atitude do príncipe secular podia acarre­tar o fracasso ou o êxito. Mas, como aliás o papado constatava, com inquietação, era neste ponto que uma grande interrogação recaía so~re as terras da Europa central. O comportamento dos Habsburgo austria­cos não era de modo algum tranquilizador. O catolicismo das novas gerações dos Habsburgo, felizmente, não e,st~va em ~úvi_da: em parti­cular, o arquiduque Alberto era um _de:v?to filho d~, I~reJa, e o gover­nador do Tirol, o arquiduque Maximiliano, entusrastico ~at~on~ dos Capuchinhos, era conhecido pela sua piedade. Mas o propno Impe­rador Rudolfo II se bem que simpatizando em geral com a reforma católica tinha u~ temperamento tão melancólico e instável que se tornava' alarmantemente pouco merecedor de confiança. Para a~ém ~~s suas idiossincrasias pessoais, Rudolfo estava também bastante Identifi­cado, como Imperador, com uma tradi~ão _de med_iação que levant~va em Roma as maiores suspeitas. A aphcaçao cont~nl!a~a de m~a s~n­tese religiosa superior que reconciliaria os credos 1mmig~s no mte!'10r do impérito, e a maneira equívoca como ?s Habs_burgo austna~os consid~­ravam o problema da heresia nos Pa1ses Baixos -tudo Isso sugena uma ausência de vinculação dogmática que incomodava profundamente o papado. . . . _ . .

Para um papado CUJO catohc1smo nao era o de ~adn~, tornava-se particularmente desconfortável também não poder simpatizar com o catolicismo de Viena e Praga. Cada ramo dos Habsburgo, o esp~nhol e o austríaco, considerava-se investido do Santo Graal da ver~adeira t~a­dição católica, e em nenhum dos casos o papado, se resol':1a a ap01ar tal pretensão. As esperanças de Roma de escapar a protecçao constran­gedora de Espanha foram port~nto . ~rustradas, na Europa central, devido à ausência de uma alternativa VIavel. Se bem que os Habsburgo

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austríacos afirmassem repetidamente o seu apoio ao trabalho de reforma católica, a não urgência, e até mesmo a passividade, da sua atitude, alarmavam Roma e Madrid. Quase por defeito, portanto, a tarefa de endurecimento da reacção católica nos territórios dos. Habsburgo ficou a cargo dos espanhóis; e o papado encontrou-se numa posição em que pouco mais podia fazer além de aquiescer. . . .

Sempre fora tarefa do embaixador espanhol na corte 1mpenal insistir com o Imperador no sentido de adoptar uma política mais firme e militante. A tarefa era delicada e ingrata, devido à mútua inveja dos Habsburgo espanhóis e austríacos e à inevitável divergência dos seus respectivos interesses. O carácter e a extensão da intervel!ção imperial nos Países Baixos alarmavam Filipe II. Pre_ocup~~a-o amda a possibilidade de a influência do Imperador ser msuficiente para impedir os príncipes alemães de fazerem alianças com a França e. ~s holandeses; e sentia-se profundamente incomodado com as excentncl­dades pecsoais e a potencial insegurança religiosa do seu sobrinho Ru­dolfo II. O embaixador espanhol em Praga nas décadas de 1580 e 1590, um vigoroso diplomata de origem catalã, Guillén de San Cle­mente, ocupava portanto uma posição de excepcional importância. Tal como o seu colega Mendoza em Paris, era responsável por defender os interesses e o catolicismo espanhóis numa corte onde o catolicismo do monarca deixava muito a desejar.

Durante os últimos e ambiciosos anos do reinado de Filipe Il, a política espanhola na Europa cent;al e o!ient~l.,_ ta_l com~ foi con?u~ida por San Clemente, tinha um caracter tao dmam1co e mtervenc10msta como na Europa ocidental. Madrid interveio na eleição polaca que se seguiu à morte de Estêvão Báthory em 1586, e pôs todo o seu peso -se bem que sem êxito- no apoio da candidatur~ . do arquiduque Maximiliano. Quando em 1593 rebentaram as hostilidades entre o Império e os turcos, Madrid fez o possível por arrancar ao imperador uma decisão dura, enviando-lhe um subsídio para o ajudar na cam­panha. Nos últimos meses da sua vida, Filipe II considerava mesmo o envio de uma expedição da Itália para os Balcãs, a fim de aliviar a pressão otomana nas fronteiras do império. Mas não foi apenas o renascimento das ambições turcas que alarmou o rei de Espanha. Per­turbavam-no os relatórios de San Clemente sobre a fraqueza da res­posta de Rudolfo à ameaça pr?testante nas terra~ . dos Hai;>s?urgo c na Boémia. Se Rudolfo nada fizesse, a responsabilidade cama sobre a Espanha. San Clemente formou portanto em Praga, durante os anos 90, um forte grupo pró-espanhol entre a nobreza católica da Boémia, o qual começou a exigir uma política anti-protestante mais v~gorosa.

Assim, no momento em que o papado começava fmalmcntc a emancipar-se da Espanha na Europa ocidental, via-se ainda muito dependente da iniciativa espanhola nos territórios impe~iais. Este infe­liz estado de coisas continuaria enquanto Rudolfo· remasse. Mas ns perspectivas futuras pareciam, felizmente, um pouco mais hrilhanlcs . Nenhum dos cinco filhos de Maximiliano II tinha herdeiros, c o futuro

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da dinastia repousava no primo destes, o arquiduque Fernando, que de facto viria a suceder a Matias como Imperador em 1619. Em Fer­nando da Estíria a igreja encontrou finalmente um Habsburgo austría­co do tipo desejado. Educado pelos jesuítas em Ingolstadt, Fernando era o protótipo do príncipe católico de novo estilo - tacanho, devoto, rígido, e que inspirava confiança. Após assumir o governo dos terri­tórios da Áustria central em 1596, Fernando realizou uma peregrinação a Loreto e a Roma. Em Ferrara ajoelhou-se aos pés de Clemente VIII e jurou dedicar a sua vida à restauração do catolicismo nas suas terras hereditárias; e, ao voltar à Áustria, mostrou que não faltava à sua palavra. Desafiando a aristocracia e ignorando os avisos de Rudolfo li, expulsou os pastores e professores protestantes do seu principado e da sua capital, Graz. Era o início de uma carreira que terminaria com o triunfo do catolicismo da Contra-Reforma nos territórios dos Habs­burgo.

Para além da Áustria e da Boémia encontravam-se a Polónia e o Norte. Também aqui, eram essenciais dirigentes de confiança para uma reconversão sistemática dos territórios e do povo que Roma perdera. O reinado de Estêvão Báthory na . Polónia mostrara o que podia ser conseguido por um monarca bem intencionado, mesmo quando limi­tado por qrásticas restrições constitucionais. O patrocínio dos jesuítas por Báthory começava já a dar resultados; no final do seu reinado existiam 360 membros da ordem na Polónia, e doze colégios jesuítas. Roma estava portanto profundamente interessada em que Báthory tivesse um sucessor que seguisse os seus passos. O papado, tal como Madrid, apoiava o arquiduque Maximiliano. Muitos dos nobres pola­cos., no entanto, incluindo os anteriores apoiantes de Báthory, apoia­vam as pretensões do jovem príncipe Segismundo Vasa, filho de João III da Suécia e da sua mulher Jagiello. Existia ainda uma leal­dade sentimental na Polónia à velha dinastia Jagiello; e o grupo Bá­thory esperava que a eleição de um Vasa envolvesse a Suécia nos seus planos para a conquista da Moscóvia.

Na dieta eleitoral de 1587, Segismundo obteve o voto da maioria. Mas uma minoria resolveu proclamar Maximiliano rei, com o apoio entusiástico de San Clemente. Auxiliado por um vasto subsídio espa­nhol Maximiliano decidiu lutar pelo trono; mas foi derrotado e feito prisi~neiro no ano da Armada, 1588, e Roma e Madrid acharam mais prudente abandonar a sua oposição a um dirigente Vasa, agora Segis­mundo III. Ao apoiar originalmente Maximiliano, Sixto V tomara uma vez mais como lhe era característico, uma atitude precipitada, pois do ponto' de vista de Roma, Segismundo era de certo modo uma figura mais prometedora que Maximiliano. Tal como Fernando da Est!ria, fora educado por jesuítas, e era excepcionalmente devoto. Além d1sso, como herdeiro do trono da Suécia, poderia vir a ser o instrumento apropriado para a recuperação de toda a Escandinávia. A aristocracia sueca tinha consciênccia de que a eleição de Segismundo para . o trono da Polónia católica ameaçava conduzir de novo o seu própno

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país para a órbita de Roma. Mas as vantagens políticas para a Suécia da _política dinástica de João III poderiam superar os riscos religiosos. Joao III, tal .como Eric XIV, aplicara uma política externa orientada para a expansão da Suécia em direcção a leste; e uma maior associação entre a Suécia e a Polónia fortaleceria ambos os países contra o inimigo comum, a Rússia. Os nobres suecos também se aperceberam da possi­bilidade de obtenção de vantagens privadas nos longos períodos de absentismo régio que seriam de esperar quando o novo rei da Polónia fosse também rei da Suécia. Mas tiveram o cuidado de nada deixar ao acaso. Antes de partir para a Polónia no outono de 1587, Segis­mundo foi levado a assinar os Estatutos de Kalmar, que visavam asse­gurar que a umao das coroas não colocaria em perigo a independência do país nem prejudicaria a sua fé. Os direitos da igreja sueca foram garantidos; não seria permitida a propaganda do catolicismo romano; e a Suécia deveria ser governada por um conselho de regência aristo­crático constituído por sete elementos durante os períodos em que Segis­mundo se encontrasse ausente na Polónia.

Apesar do obstinado luteranismo da aristocracia sueca, o papado mostrava-se confiante nas perspectivas de reconversão. Em 1592, Cle­mente VIII designou para a Polónia um núncio papal, Germânico Malaspina, cuja tarefa específica consistia em preparar o caminho para a recuperação da Suécia. A morte de João III em Novembro desse ano levou à sucessão de Segismundo e o núncio e um séquito católico acom­panharam o novo rei na sua visita a Estocolmo em 1593. Mas este, ao chegar, verificou que enfrentava essa mesma combinação de oposição religiosa e aristocrática que atormentara a vida dos seus colegas. príncipes noutras partes da Europa. O receio da aristocracia sueca de um poder arbitrário aumentara devido ao uso por João III de secretários de baixa condição para a condução dos assuntos do governo. Esta era uma queixa já habitual na aristocracia; mas os nobres suecos da década de 90 eram uma geração mais sofisticada do que os pais, que tinham deposto Eric XIV em 1568. Tinham viajado e lido mais e conheciam bem os resultados das investigações sobre o passado da Suécia e a lite­ratura política mais recente da Europa ocidental, incluindo as obras de Du Plessis-Mornay, Hotman e Buchanan. Sob a liderança de Eric Sparre, começaram a pensar em si próprios como guardiães históricos das leis e privilégios suecos e apresentaram, antes da morte de João IH, uma exigência de maior intervenção no governo.

Quando Segismundo foi coroado, em 1594, realizou-se em Uppsala uma reunião decisiva dos Estados Sociais ou Riksdag. Durante a ausên­cia de Segismundo o país fora de facto governado pelo tio, o último dos filhos de Gustavo Vasa, o duque Carlos de Sodermanland. Este formidável carácter, um luterano com tendências neo-calvinistas, apa­receu na reunião dos Estados com um forte séquito armado. Os pró­prios Estados, firmemente luteranos, estavam decididos a refrear o cato­licismo de Segismundo, enquanto a aristocracia estava igualmente deci­dida a impor novas restrições aos poderes da coroa. A derrota de

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Segismundo às mãos dos Estados Sociais representou uma vitória tanto do protestantismo como da ideia de governo contratual baseado no poder da lei. O rei voltou desiludido à Polónia, deixando a Suécia nas mãos de uma difícil coligação do duque Carlos com o rad, ou conselho, dominado pela alta aristocracia.

Os anos que se seguiram viram na Suécia uma confusa luta tri­partida entre o duque Carlos, a aristocracia e Segismundo, que em 1598 voltou da Polónia com um exército. Finalmente, foi o duque Carlos que saiu vitorioso. Segismundo, após algumas vantagens iniciais, desistiu subitamente e voltou de novo para a Polónia. Foi formalmente deposto pelos Estados Sociais em 1599- o segundo rei sueco a ser deposto em menos de meio século. O duque Carlos, como único repre­sentante sobrevivente da dinastia e da coroa, lançou-se então contra os aristocratas opositores ao poder régio. Eric Sparre e três dos seus companheiros foram executados em 1600 por actividades «de traição» e o duque aceitou a coroa quatro anos mais tarde, sob o nome de Car­los IX da Suécia.

A vitória do duque Carlos sobre o constitucionalismo mostrou no fim de contas não ser mais do que um êxito transitório, pois a nobreza conseguira da coroa suficientes concessões, ao longo dos anos, para poder dificultar aos futuros governantes o desafio a um sistema consti­tucional baseado nos Estados Sociais representativos e numa relação contratual entre governante e governado. Mas a vitória sobre Segis­mundo foi permanente e decisiva. A abortada união das coroas sueca e polaca foi irreversivelmente dissolvida e as esperanças de Roma de uma recuperação da Escandinávia viram-se correspondentemente defrauda­das. Carlos via-se a si mesmo, e era visto pelos seus súbditos, como o salvador do protestantismo• na Suécia, tal como o seu filho, Gustavo Adolfo, seria um dia visto como o salvador do protestantismo na Europa. A possibilidade de o catolicismo vir a ser restaurado na Suécia se Segismundo se tivesse mantido no trono é, porém, discutível. O lute­ranismo mostrara ser uma planta mais resistente no solo sueco do que noutras regiões da Europa, e é duvidoso que o rei ou o núncio tivessem conseguido des~Ynraizá-lo. Mas o triunfo do duque Carlos traçou deci­sivamente a linha divisória entre os protestantes e Roma. Enquanto a Polónia dirigida por Segismundo III voltou gradualmente à obe­diência católica, a Escandinávia manteve-se daí em diante firmemente agarrada ao campo protestante.

Em finais do século, este campo abrangia- além da Escandi­návia- a Inglaterra, a Escócia, as Províncias Unidas, sete cantões suíços e regiões consideráveis da Alemanha. Os protestantes eram ainda muito fortes na Boémia e na Transilvânia; e menos fortes, mas ainda influentes, na Polónia, em França e nas terras hereditárias dos Habs­burgo. Mas a igreja romana podia contemplar a série de sólidos êxitos que obtivera desde o encerramento do Concílio de Trento em 1563. Os territórios mediterrânicos, a Irlanda celta e grande parte da França

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tinham-.se mantido leais à, fé . Al~um terreno perdido fora recuperado na Baviera, no sul dos Pa1s_es Ba1xos, na Alemanha c na Austria; c os reinos de França e da Polónia tinham sido arrancados comn bra­sas à fogueira quando tudo já parecia perdido. A própria igreja encontrava-se melhor equipada, e o seu moral era infinitamente mais elevado, em relação ao que acontecia meio século antes. A fase de sobrevivência terminara: a recuperação estava na ordem do dia. Mas para Roma seria uma loucura descansar sobre os louros, pois a cristan­dade encontrava-se mais que nunca dividida.

3. Divisão e unidade

Para ver até que ponto os europeus se encontravam divididos no final do século é sugestiva a sua incapacidade de concordarem sequer com a data. O Concílio de Trento foi o último de uma série de concílios da igreja que considerou a disparidade entre os calendários juliano e solar -disparidade que significava que a Páscoa e outros dias santos já não concordavam com as instruções dada11- pelo Concílio de Niceia no ano de 325. O calendário juliano alongara o ano em 11 minutos e 14 segundos e os efeitos cumulativos desta diferença tinham provocado uma divergência de dez dias ao longo dos séculos. A pedido do Concí­lio de Trento, Gregório XIII entregou o estudo do assunto a distintos matemáticos e astrónomos. O seu labor culminou com o novo calendá­rio «gregoriano», sancionado por uma bula papal de Fevereiro de 1582, e que envolvia a supressão de dez dias entre 5 e 15 de Outubro desse ano. Infelizmente, a superioridade técnica do calendário gregoriano rela­tivamente ao juliano não conseguiu superar, do· ponto de vista dos protestantes, o atroz pecado original da sua proveniência papal. Conse­quentemente, enquanto os Estados católicos, incluindo a França, o adaptaram neSJSe ano, nem o leste ortodoxo nem o norte protestante estavam dispostos a fazê-lo. Só em 1700 a Alemanha protestante, a Suíça, a Dinamarca e as Províncias Unidas 5 decidiram alterar a sua atitude; e a Inglaterra e a Suécia mantiveram uma heróica resistência até 1752 e 1753.

O cisma cronológico constituía evidentemente uma das doenças menos graves de que a Europa sofria. Ml:ts era sintomático das divisões mais graves provocadas pelo conflito entre credos. A compreensão mútua tornara-se mais difícil e as mútuas antipatias tinham sido exa­cerbadas em resultado de quase meio século de guerra. No entanto ainda subtlistia, transcendendo todas as divergências, uma civilidade europeia. Apesar de todos os choques dos últimos anos, as comunidades europeias de mercadores de eruditos sobreviveram mais ou me-

s Excepto a Hoirunda e a Zelândila, que ad01ptaram o novo calendá­rio em 1582.

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nos intactas. As universidades podem ter-se tornado mais nacio­nais e paroquiais, mas os eruditos de reputação europeia conti­nuavam a ser requestados por patronos, e até por universidades, inde­pendentemente da sua fé. O moralista e fil&ofo nascido nos Países Baixos Justus Lipsius (1547-1606), .um protegido do cardeal Gran­velle, aceitou um cargo na universidade protestante alemã de Jena oferecido pelo duque de Saxe-·Weimar. Mais tarde, no auge da revolta holandesa, passou da Lovaina católica para a Leida calvinista, onde escreveu um tratado sobre política que advogava até a extreminação dos hereges. De Leida passou em 1591 para o meio preslimivelmente mais compatível dos jesuítas de Mainz, antes de aceitar, de entre um grande número de ofertas, a cadeira de história e literatura na sua antiga universidade de Lovaina.

A comunidade europeia, parcialmente destruída pela guerra, res­tabeleceu-se rapidamente quando a paz voltou. Mas as ideias e atitudes tinham sido profundamente afectadas pelas dissensões nacionais e internacionais dos anos anteriores. Com efeito, dificilmente poderia ser doutro modo, dada a extrema severidade e violência da época. Trata­va-se de uma. sociedade em que a sobrepopulação, com a consequente escassez de ahmentos e empregos, criara tensões que a estrutura social e. política era incapaz de conter. As classes possidentes reagiram insis­tmdo com renovada decisão na natureza exclusiva dos seus direitos e privilégios, enquanto os desapossados respondiam recorrendo à vio­lência em qualquer das suas múltiplas formas - pirataria e banditismo, tumulto e rebelião, saque e pilhagem e frenético iconoclasmo. A violên­cia era sem dúvida um modo de vida normal no início da Europa moderna, e a guerra era considerada como uma instituição aceitável e não como uma infeliz aberração após um longo ciclo de paz. Mas a própria insolubilidade dos problemas sociais e económicoG criados pelo excesso de população, juntamente com o colapso do consenso religioso europeu e a fraqueza fortuita de muitas monarquias, haviam criado uma situação em que o Estado deixara de ser capaz de cumprir a sua missão de confinar a violência a limite() aceitáveis. A consequência disto foi a passagem da ordem (modificada) para a desordem total, de cujos horrores Shakespeare falava com a sua característica eloquência:

«A discórdia civil é um verme viperino, Que rói as entranhas da comunidade.» 6

A resposta comum a esta aterradora situação era previsível: um extremo conservadorismo político e social. A voz radical dos humanis­tas do início do século dezasseis, protestando contra os privilégios e a propriedade, estava silenciosa nos últimos anos do século. Uma era de experimentação social cedera o seu lugar a uma era que se fazia notar

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pela sua mentalidade de cerco. Não foi por aca'>o que os três espíritos mais criadores da segunda metade do século- Montaigne, Bodi11 c Shakespeare -se mostraram profundamente conservadores nas suas ati­tudes para com o governo e a sociedade. Os homens inteligentes consi­deravam necessário um bom governo - sinónimo de realeza forte -como resposta à desordem pública. Num mundo como este, onde a ordem tinha a cabeça a prémio, a inovação pouco valor tinha.

Paralelamente ao extremo conservadorismo das sociedades de finais do século dezasseis, . manifestava-se um outro fenómenO' muito característico da época -um sentido realçado de nacionalismo. Uma sociedade em que as divisões eram profundas - onde a própria família de Montaigne era em parte protestante e em parte católica - pode inconscientemente ter procu:rado uma compensação para as suas divi­sões nos laços comuns da nacionalidade. Se bem que o nacionalismo pudesse trazer uma nO'va coOJão a uma comunidade ameaçada de disso­lução devido à discórdia religiosa, também poderia extrair uma nova vitalidade do entusiasmo religioso de uma comunidade que sentia as suas crenças postas em perigO' por inimigos externos e internos. A Es­panha católica e a Inglaterra protestante aprenentavam ambas uma intensa forma de nacionalismo pmvidencial sO'b Filipe 11 e Isabel. Ambas se cO'nsideravam especialmente escolhidas por Deus para man­ter içada a sua bandeira. Não há dúvida de que esta convicção con­duziu os naturais de ambos os países a terríveis desumanidades e a absurdos trágicos, como aquando o historiador espanhol João de Mariana censurou cuidadosamente os seus próprios escritos a fim de não trazer consolo aot> inimigos de Espanha. Mas o nacionalismo· pmvidencial desempenhou um papel na criação de um clima em que Cervantes e Shakespeare puderam construir penetrantes análises da sociedade a que pertenciam, sendo levad03 a cevar profundamente nas tradições popu­lares e vernáculas em busca de novas fontes de inspiração.

A ordem intelectual europeia, tal como a sua ordem social e política, foi duramente atingida pelas amargas lutas de finais do século dezasseis. As exigências da controvérsia religiosa inevitavelmente ali­mentaram mentes tacanhas, dogmáticas. Como resultado, a frutuosa especulação humanista da primeira parte do ,século desapareceu muitas vezes, nas últimas décadas, sob uma ortodoxia sufocante. Cada fé -lu­terana, calvinista, católica- pretendia deter o monopólio da verdade, e cada uma delas criava a sua escolástica privada que colocava a fide­lidade à letra antes da originalidade do espírito. Tratou-se de uma época, no entanto, que mostrou tendência para colocar o método acima do conteúdo; uma idade propensa a preferir a classificação do!; factos antigos à descoberta de novos. O seu tom foi definido por Petrus Ramus- Pedro de la Ramée (1515-1572)- o dialéctico pro­testante francês cujo famoso Método, com os seus curiosos esquemas mnemónicos, procurava arrumar as ideias em grupos apropr.iados c fornecer deste modo· à juventude eumpeia um sistema educativo em que a lógica fosse a chave para todas as artes. Não há dúvida de que

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o Ramismo foi um produto autónomo de uma tradição escolástica con­tinuada, mas a sua popularidade decorreu pelo menos em parte da pro­funda preocupação pela ordem sentida por uma geração condenada a viver a sua vida num mundo desordenado.

A perene procura de uma ordem no interior do universo parece de facto ter sido intensificada pelo desejo de fugir às desordens de uma Europa dividida religiosamente. Era natural que os eruditos e filósofos que desejavam decifrar através do ocultismo e da magia os mistérios do universo se associassem também às tentativas de reunião religiosa, pois da compreensão da harmonia cósmica resultaria uma síntese reli­giosa mais elevada. Foi, pelo menos, essa a esperança de Guilherme Postei (1510-1581), o orientalista e erudito místico francês que dedicou a sua vida à procura da concordia mundi. E era também a esperança dessa figura ainda mais notável, Giordano Bruno (1548-1600). Ambos os homem pertenciam a esse estranho terceiro mundo entre o catolicismo e o protestantismo dogmáticos, cujos cidadãos se podiam encon­trar nas cortes dos Valois e dos Habsburgo, na Londres de Sir Filipe Sidney e na Antuérpia do impressor Cristóvão Platin e do teólogo espanhol Benito Arias Montano. Era um mundo cujos segredos se encontravam encerrados nos mistérios do neo-platonismo e da magia «egípcia»; um mundo de afinidades e de harmonias, controlado pelos movimentos dos corpos celestes. A sua procura esotérica de uma har­monia cósmica contribuiu afinal -por intermédio das suas preocupa­ções matemáticas e mágicas -para o desenvolvimento da ciência euro­peia; e o próprio Bruno deu um salto imaginativo da teoria de Copér­nico para a concepção de um universo infinito. Mas nem o mistério nem a magia poderiam encontrar uma resp03ta para o problema da divisão religiosa na Europa.

Os homens de letras estavam tanto à mercê das consequências desta divisão como qualquer outra pessoa, e talvez até corressem algum risco extra. Ramus perdeu a vida no massacre de S. Bartolomeu; o poeta e teólogo espanhol Luís de Léon foi encerrado nas celas da Inquisição; e Giordano Bruno foi queimado sob acusação de heresia. Não surpreende que Justus Lipsius, que vira os seus Países Baixos natais devastados pela guerra, tivesse dedicado tanto do seu pensa­mento à atitude a adoptar pelo erudito face à guerra e aos conflitos. Deu a sua resposta ao mundo em De Clementia, de 1583. Como Séneca, aconselhava a resignação: <<Somos obrigados a suportar as novidades, e a evitar perturbarmo-nos com aquilo que não podemos impedir». O neo-estoicismo cristianizado de Lipsius mostrou ser uma filosofia apropriada ao seu tempo. Ofereceu aos seus contemporâneos uma fé racional dotada de uma ancestralidade clássica altamente respeitável e proporcionou um código moral autónomo baseado numa resignação fatalista, mas com suficiente veneração pelo cristianismo para desarmar os escrúpulos do devoto.

Nem todos, porém, conseguiram uma satisfação duradoura no humanismo estóico. O grande Miguel de Montaigne (1533-1592) sen-

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tiu-se atraído por ele durante algum tempo, mas o seu entusiasmo já desaparecera quando publicou os Ensaios, em 1580. A veneração daquele pelos poderes da razão humana parecia-lhe arrogante e presun­çosa. Para um homem com o espírito céptico de Montaigne, era mais interessante a doutrina pirrónica segundo a qual era impossível ao homem atingir a certeza do conhecimento. Foi como pirronista que fez a si próprio a memorável pergunta: «Que sais-je?» Mas o princípio da sabedoria devia ser encontrado não no estudo de Pirro ou Cícero mas no estudo de si próprio. O estudo de si próprio, concluiu Montaigne, é o único meio capaz de ensinar ao homem a complicada arte de viver. Dificilmente poderia ser coincidência que uma época em que o colapso da coesão .social deixava o indivíduo só e sem defesas tivesse visto as primeiras tentativas de exploração da psicologia individual. Os Ensaios de Montaigne - o título, usado neste contexto, foi de sua invenção e era característico dele - sondavam com subtileza os recessos do carác­ter com vista a encontrar as origens da acção humana. Com Montaigne, o homem do século dezasseis, tendo descoberto· o mundo, embarcou na viagem ainda mais arriscada que o conduziria à descoberta de si próprio.

A concepção da humanidade de Montaigne- céptica, despren­dida e agudamente aberta às loucuras do homem e à sua infinita diver- ' sidade- conduziu-o inevitavelmente a desprezar e a desconfiar dos extremos. Se bem que se mantivesse um católico leal, não lhe interessava o fanatismo apaixonado da Liga. Por outro lado, desaprovava os éditos de tolerância, pois a inovação em religião conduziria à dissolução da sociedade. No entanto, a sua própria visão humana e o elevado valor que atribuía à consciência individual fizeram dele um moderado natural numa sociedade despedaçada pela violência das suas disputas religiosas. Nisto, como em muitas outras coisas, assemelhava-se ao seu compatriota Jean Bodin, cuja mente sólida tanto contrasta à primeira vista com a agudeza de espírito elegante e incisiva de Montaigne. Mas Montaigne e Bodin estavam unidos no seu horror à desordem civil e no seu desejo de ver um governo eficaz. Partilhavam a opinião de que a religião era o cimento natural da sociedade, mas ambos tinham alcançado na sua concepção da sociedade um certo relativismo que os levava a afastarem-se do dogma ao considerar a forma que a religião deveria assumir. O extraordinário Heptalomeres de Bodin alarga a dis­cussão religiosa de modo a incluir o céptico, o judeu e o muçulmano, assim como representantes dos credos cristãos em disputa. Nas areias movediças da história e da religião comparadas, poucos fundamentos restavam para a fé dogmática.

No entanto, devido a uma ironia típica desta época complexa, o Bodin que conseguiu um tão notável desprendimento no campo reli­gioso era o mesmo que exigia a morte das bruxas. Subsistiam abismos negros na mente humana que requeriam mais de um Montaigne para explorar. A tolerância e a moderação eram qualidades fugidias, difíceis de adquirir e precárias quando atingidas. Mas, num momento em que

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tudo parecia conspirar para as extinguir, existiam forças profundas trabalhando para as manter vivas. A descoberta de socied~d~s ext~a­-europeias possibilitou ao homem europeu abordar a s~a propna. soctç:­dade segundo perspectivas novas e um novo despre.r:~tmento. ~rmulta­neamente uma consciência cada vez . maior da futthdade e mconse­quência do conflito religioso levou-o a uma ,c:escente aceitaç~<? ~a necessidade de tolerância em termos pragmaticos. «A expenencta ensina-nos», escreveu De Thou em 1604, «que a espada e as chamas, o exílio e a proscrição, tendem mais a exacerbar uma doença q':'e a curá-la» 7• A compreensão disto podia bastar para transformar a liber­dade de consciência num facto muito antes sequer de se transformar num artigo de fé.

Mas poderia uma planta tão frágil como a liberdade de co.r:s­ciência sobreviver num mundo obcecado pelo dogma? Nem as socie­dades católicas nem as sociedades calvinistas dogmáticas pareciam aju­dar ao seu crescimento. A maior esperança residia nessas socie­dades onde os princípios politiques estavam suficienteme.r:te estabele­cidos para manter os fanáticos sob controlo; e estas sociedades, por volta de 1600 encontravam-se mais facilmente no norte protestante do que (exceptuando, em parte, Veneza) no sul católico. Nei?- .na Inglaterra de Isabel e na Escócia de Jaime VI, nem na~ Provmctas Unidas de Guilherme de Orange e de Oldenbarnevelt consegmram os pre­gadores calvinistas obter o poder supremo no Estado; e a Suécia lute­rana resistiu com êxito às tendências calvinizantes de Carlos IX. Em todos estes países foi preservado o controlo laico e a reforma protes-tante foi parcialmente secularizada. . .

Poder-se-ia esperar que uma sociedade lmca protestante tendena na prática, senão em teoria, a adaptar uma visão da vida ~a~oavel­mente tolerante e moderada. Havia menos lugar para a supersttçao e o fanatismo numa sociedade educada, e a própria insistência do protes­tantismo no estudo das Escrituras encorajava a promoção da educação e a generalização dos letrados. Não surpreende que Cata~na de M~­dicis confrontada com uma galáxia de talentos huguenotes, tivesse admt­tido 'que três quartos dos seus súbditos mais letrados eram hu~uenote~ 8•

Mas parece ter estado em causa algo mais do que o g~au educaciOnal ~tm­gido. O protestantismo de finais do século dezassets parece ter cnado em toda a Europa uma nova e identificável linhagem de .líderes da sociedade- Coligny, Walsingham, Oldenbarnevelt, Du PlessiS-Mo~nay, La N oue- que se distinguiam pela seriedade dos. objectivos e ~ mte­gridade intelectual. Eram homens dispostos a dedicar a.s s_uas vtdas a uma causa, mas que o fizeram partmdo d~ uma avahaçao do ~al?r moral e do juízo individual dos seus assoctados. De facto-, a propna

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da Editorial Presença.

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estrutura da igreja protestante encorajava a participação individual e a tomada de decisões colectivas através da discussão- processos que tendiam a ser transportados para os assuntos seculares. A auto-dis­ciplina exigia respeito pela opinião dos outros numa comunidade, religiosa ou secular, assente na fé no primado da lei e na importância da aquiescência individual.

Se bem que a segunda metade do século dezasseis fosse em muitas zonas da Europa um período que se distinguiu pela revivescência das ideias constitucionalistas, dificilmente seria por coincidência que estas apareceram mais firmemente estabelecidas, no final do século, naqueles Estados onde o protestantismo se convertera em fé nacional. A con­cepção do poder como derivando de Deus através do povo e a ideia de uma relação contratual entre governante e governado - eram princí­pios que tinham sido confirmados e reivindicados nos grandes levanta­mentos em França e nos Países Baixos. A liberdade política, garantida pelos Estados e instituições parlamentares, era uma condição prévia necessária para a aceitação da liberdade de consciência. O constituciona­lismo na fonna que adaptou no século dezasseis pode ter sido social­mente conservador e até repressivo mas, pelo menos, permitiu uma maior gama de opiniões individuais do que um poder monárquico absolu­tista.

A mudança foi lenta e hesitante, mas talvez as velas dos navios do norte em águas mediterrânicas fossem um indício do que estava para vir. De facto, o turbilhão de finais do século dezasseis não deixou a Europa como a encontrou: já se podia observar uma mudança de ênfase da Europa mediterrânica para o norte atlântico. Nestas socie­dades nórdicas viria a ser detectado um novo dinamismo, à medida que começavam a adquirir certas características próprias - um certo grau . de representatividade e de liberdade [>Olíticas, uma insistência na grande prioridade a dar à actividade comercial e ao' empreendimento econó­mico, um interesse pelo rigor e pela observação exacta e uma nova aceitação da diferença intelectual e religiosa. Já e.m 1600 se observa­vam indícios de uma crescente divergência de carácter entre estas socie­dades e as existentes no sul da Europa. Mas uma cristandade dividida continuava a ser um continente essencialmente unido. Existia ainda uma civilidade europeia; e toda a Europa continuava a sentir-se amea­çada pela presença dos turcos às suas portas. É certo que as suas guerras civis tinham sido horrivelmente bárbaras e suscitado divisões; mas transmitiram a uma sociedade basicamente unida a herança mais revitalizadora de todas - diversidade de culturas e de crenças.

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REFERÊNCIAS BffiLIOGRAFICAS

1. Obras gerais

. Por . razões qu~ col?preendi cad~ vez ~elhor à medida que escre-via este livro, os h1stonadores do seculo vmte tenderam a evitar as sínteses da história europeia na segunda metade do século dezasseis. Talvez a única síntese com interesse seja a de Henri Hauser, La Pré­ponderance Espagnole (1559-1660), 3.2 ed., Paris, 1948, cuja primeira parte constitui uma tentativa inteligente de tratar este período como um~ unidade, Roland Mousnier, Les XVI" et XVII" Sit~cles (5.a ed., Pans, 1965), contém ideias e observações valiosas, particularmente quanto à história social e intelectual, mas é esquemática e apressada, e abstém-se da narrativa. A antiga série francesa <<Clio» está a ser subs­tituída por uma nova série, organizada numa base diferente, e de certos pontos de vista menos satisfatória. Mas o volume 31 da «N ouvelle Clio», H. Lapeyre, Les Monarchies Européennes du XVI" siecle, (Paris 1967) é um livro útil, que contém uma discussão das controvérsias moder~as. H. G. Koenigsberger e G. L. Mosse, Europe in the Sixteenth Century (Londres, 1968), adopta uma abordagem analítica e é particularmente renovadora n~ tratamento da literatura e das artes. A de há muito esperada publica­çao do vol. III de The New Cambridge Modem History (org. R. B. Wernham, Cambridge, 1968) forneceu finalmente, numa forma acessível e resumida, os resultados da investigação e erudição recentes. O nível genérico de competência é elevado, e alguns capítulos - particularmente o longo capítulo de H. G. Koenigsberger sobre «A Europa Ocidental e o poder de Espanha» -são notáveis. Quanto à história económica, o vol. IV de The Cambridge Economic History of Europe (org. E. E. Rich e C. H. Wilson, Cambridge, 1967) contém bons capítulos sobre diver­sos aspectos da vida económica neste período. Tanto esta como T he N ew Cambridge Modem History sofrem até certo ponto com o lapso de tempo entre o ~omento em que os capítulos foram escritos e aquele em que foram publicados; e enquanto obras colectivas têm as vantagens e desvantagens que delas são típicas.

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2. História social e econômica

. A maior contribuição dos historiadores do século vinte para o estudo do século dezasseis verificou-se no campo da história económica ~ social e das suas relações com os desenvolvimentos políticos. Três hvros -todos eles fruto da erudição francesa- são particularmente notáveis. Lucien Febvre, Philipe li et le Franche-Comté (Paris, 1912) é uma soberba obra pioneira, muito mais vasta nas suas implicações do que se poderia inferir a partir da área relativamente pequena que estuda. Fernand Braudel, La Méditerranée et le Monde Méditerranéen à l'épo­que de Philippe li (Paris, 1949) faz até certo ponto para toda a bacia mediterrânica aquilo que Febvre fez numa escala menor para o Franco­-Condado. Literariamente pode não ser um êxito total, em parte por­que o próprio empreendimento é extremamente ambicioso. Mas contém uma grande riqueza de ideias e observações sobre a vida das regiões mediterrânicas, e fez mais do que qualquer outro livro publicado nos últi­mos cinquenta anos para enriquecer o estudo da história de finais do século dezasseis. A segunda edição (2 vols., Paris, 1966) foi revista de modo tão radical que constitui praticamente um livro novo; e, ao con­trário da primeira edição, contém mapas, quadros e diagramas, alguns dos quais são por si sós obras de arte. A terceira obra francesa de g~ande importância, e talvez o melhor de muitos bons estudos produ­Zidos pela famosa VI" Section de Paris, é Les Paysans du Languedoc (2 vols., Paris, 1966), que lança uma nova luz sobre a sociedade rural do sul de França no século dezasseis.

Somos infelizmente obrigados a admitir que nem todos os pro­dutos recentes da erudição francesa atingem este nível elevado. Alguns deles traem uma preocupação com a metodologia que os «anglo-saxó­nicos» podem considerar excessiva; e alguns são escritos num jargão privado, semi-metafísico, que as torna imediatamente pouco atraentes à vista e incompreensíveis ao espírito. Mas, juntamente com algumas monografias de desnecessária ostentação, muito foi escrito de grande importância para a história social e económica do século dezasseis. A monumental Sév'ille et l'Atlantique de Pierre Chaunu foi mencionada no texto. Os leitores que recuam ao pensar nos oito volumes que a constituem poderão gostar de saber que estão resumidos de modo bas­tante eficaz em cerca de oito páginas de L'Amérique et les Amériques, do mesmo autor (Paris, 1964), pp. 88-99.

3. História religiosa e história das ideias

Emile G. Léonard, A History of Protestaritism, vol. II (Londres, 1967), faz um relato útil se bem que irregular do desenvolvimento do protestantismo neste período. Infelizmente não existe um estudo verda­deiramente satisfatório da Contra-Reforma, se bem que L. Willaert, La Restauration Catholique, 1563-1648 (vol. 18 de A. Fliche e V. Mar-

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tin, Histoire de l'Église, Paris, 1960) seja útil, tal como a monumental History of the Papes, de L. von Pastor, vols. 15 a 24, em tradução inglesa de 1928-33. The History of the Papes, de Leopold von Rank (tradução inglesa em 3 vols., Londres, 1907) continua a ser soberba. É completada por V ie Économique et Social e de Romme dans la seconde moitié du XV/e Siecle (2 vols., Paris, · 1957-59), de Jean Delumeau, que é uma narrativa interessante, se bem que desnecessariamente longa, da vida urbana e dos problemas da Roma dos papas da Contra-Reforma. O quarto centenário do Concílio de Trento produziu um conjunto de estudos em diversas línguas e de diversos autores (li Concilio di Trento e la Riforma Tridentina, 2 vols., Roma, 1965), mas a melhor e mais completa introdução à espiritualidade da Contra-Reforma poderá ser encontrada nas subtis Conferências de Birkbeck do falecido H. O. Even­nett, publicadas pela Cambridge University Press sob o título de The Spirit of the Counter-Reformation (1968).

Talvez a obra mais original dos últimos anos sobre a história religiosa de finais do século dezasseis tenha sido a dedicada à fronteira religiosa entre o catolicismo e o protestantismo dogmáticos. Um dos pioneiros neste campo foi o Dr. Frances A. Yates, cuja The Art of Memory (Londres, 1966) é a última de uma longa série de notá­veis estudos dos campos mais esotéricos da história intelectual. Parti­cularmente valiosos para a compreensão do clima religioso entre aqueles que continuavam a pensar em termos de tolerância e ecumenismo são, da mesma autora, The French Academies of the Sixteenth Century (Londres, Warburg Institute, 194 7), T he V a/ois Tapestries (Londres, Warburg Institute, 1959) e Giordano Bruno and the Hermetic Tradition (Londres, 1964). William J. Bouwsma, Concordia Mundi (Harvard Uni­versity Press, 1957) explora as ideias de uma outra figura na mesma tradição, Guilherme Postei. Quanto às atitudes para com a tolerância, J. Lecler, Toleration and the Reformation (em tradução inglesa de T. L. Westow, 2 vols., Londres, 1960) contém muito material útil.

H. R. Trevor-Roper, Religion, the Reformation and Social Change (Londres, 1967), * é uma colecção de ensaios que fornecem uma visão bastante luminosa da complexa interacção entre as ideias, a política e a sociedade no ilúcio da Europa moderna. Peter Gay, The Enlighten­ment: an lnterpretation (Londres, 1967), é uma carga de cavalaria imen­samente erudita, pessoal e estimulante através da história intelectual oci­dental, com vivas reflexões (e muita informação bibliográfica) sobre muitos aspectos do pensamento do século dezasseis. Não menciona, porém, o Ramismo, sobre o qual existe um difícil mas compensador estudo de Walter J. Ong, Ramus. Method and the Decay of Dialogue (Harvard University Press, 1958). Sobre o renascimento do estoicismo, ver Léontine Zanta, La Renaissance du Stoicisme au XVle Siecle (Paris,

* TrlaJd!ooildlo !Pieilla ·Ednl:iolliaU íPirle!selnJÇà, Religião, Reiforma '81 Trans­form•açÕio rSoc,ÜlJl.

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1914). Quanto às ideias políticas, os melhores estudos gerais são L'Essor de la Philosophie Politique au xvze Siecle, de Pierre Mesnard (Paris, 1936), e A History of Política[ Thought in the Sixteenth Century, de Walter J. Allen (3.a ed., Londres, 1951). Os ensaios sobre os finais do século dezasseis em J. N. Figgis, From Gerson to Grotius (Cambridge, 1907), ainda abundam em vida e originalidade. Existe uma versão resu­mida inglesa de M. J. Tooley da obra de Jean Bodin Six Books of the Commonwealth (Oxford, s. d.) O Vzndiciae contra Tyrannos foi reim­presso em 1924 numa tradução do século dezassete intitulada A Defence of Liberty Against Tyrants, com uma longa introdução histórica por Harold Laski. Não existe infelizmente qualquer edição moderna inglesa da Apologia de Guilherme o Silencioso.

4. Relações internacionais

O melhor estudo sobre os procedimentos diplomáticos neste pe­ríodo é o de Garrett Mattingly, Renaissance Diplomacy (Londres, 1955). Gaston Zeller, no segundo volume de Histoire des Relations lnternatio­nales (org. Pierre Renouvin, Paris, 1953) fornece uma boa descrição das relações internacionais neste período. A política externa inglesa é lucidamente estudada por R. B. Wernham, Before the Armada (Lon­dres, 1966). Quanto às relações entre os huguenotes, os ingleses e os holandeses, considerei particularmente útil, apesar dos seus preconceitos óbvios, Les Huguenots et les Gueux de Kervyn de Lettenhove (6 vols., Bruges, 1883-85). Bernard de Meester, Le Saint-Siege et les Troubles des Pays-Bas, 1566-1579 (Lovaina, 1934), contém informações sobre a política papal relativamente aos Países Baixos.

De Lamar Jensen, Diplomacy and Dogmatism. Bernardino de Mendoza and the French Catholic League (Harvard University Press, 1964) mostra o trabalho de um famoso embaixador espanhol. A diplo­macia espanhola na Europa central e oriental é observada de modo irregular mas interessante em Bohdan Chudoba, Spain and the Empire, 1519-1643 (Chicago, 1952).

5. Biografias

Uma das melhores maneiras de compreender o final do século dezasseis na Europa consiste em estudar as biografias das principais figuras. Existem algumas tristes falhas - não há uma biografia satis­fatória de Filipe II, e Catherine de Médicis, de Jean Héritier é confusa­mas existem muitas biografias boas, e algumas notáveis, para o período. Segue-se uma lista arbitrária: James Brodrick, Robert Bellarmine (Lon­dres, 1961); Gaetano Cozzi, li Doge Nicolà Contarini (Veneza, 1959); Léon Van Der Essen, Alexandre Farnese (5 vols., Bruxelas, 1933-37) -um soberbo estudo de Farnese como comandante; H. O. Evennett,

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The Cardinal of Lorraine and the Council of Trent (Cambridge, 1930); Paul F. Geisendorf, Théodore de Beze (Genebra, 1949, 2.a ed., 1967); Gordon Griffiths, William of Homes, Lord of Heze and the Revolt of the Netherlands (1576-1580) (Berkeley, 1954)- útil quanto ao movi­mento «Descontente»; Henri Hauser, François De La Noue 1531-1591 (Paris, 1892)- um admirável estud·o de um líder huguenote; A. De Hubner, Sixte-Quint (2 vols., Paris, 1870) -não está à altura do seu tempestuoso tema; Grevario Marafi.ón, Antonio Pérez (Londres, 1954)­uma tradução inglesa resumida de uma fascinante história policial; Raoul Patry, Philippe Du Plessis-Momay (Paris, 1933); P. O. De Tome, Don luan d'Autriche et les Projets de Conquête de l'Angleterre (Helsínquia, 1915); M. Van Durme, El Cardenal Granvela (tradução espanhola do flamengo, Barcelona, 1957); C. V. Wedgwood, William the Silent (Londres, 1944); A. W. Whitehead, Gaspard de Coligny, Admirai of France (Londres, 1904).

6. Histórias nacionais

Segue-se uma lista de um certo número de estudos particularmente úteis sobre diversas nações e regiões na segunda metade do século dezasseis. Quanto às Ilhas Britânicas, que omiti da lista, ver G. R. Elton, England under the Tudors (Londres, reimpresso em 1962 com nova bibliografia).

França

N. M. Sutherland, Cathaine de Medici and the Ancien Régime (texto da Historical Association, Londres, 1966) é uma introdução inte­ressante a alguns dos problemas do período e contém uma útil nota bibliográfica. A melhor obra geral é ainda J. Mariéjol, La Réforme et la Ligue (Vol. VI, I, de E. Lavisse, Histoire de France, Paris, 1904). Lucien Romier, Le Royaume de Catherine de Médicis (2 vols., Paris, 1922), é de grande importância. G. Livet, Les Guerres de Religion (Paris, «Que Sais-Je?», 1962), é um útil resumo. C. Vivanti, Lotta politica e pace religiosa in Francia fra Cinque e Seicento (Turim, 1963), fornece­-nos uma nova visão da fase final das guerras civis e do reinado de Henrique IV (a respeito de quem ver igualmente R. Mousnier, L' Assas­sinat d' Henri IV, Paris, 1964).

Existem duas séries de conferências publicadas em inglês sobre as guerras civis: Edward Armstrong, The French W ars of Religion (Lon­dres, 1892), que ainda mantém o seu interesse; e J. E. Neale, The Age of Catherine de Medici (Londres, 1943; reimpressão em brochura em 1963). N. M. Sutherland, The French Secretaries of State in the Age of Catherine de Medici (Londres~ 1962) estuda um aspecto importante da administração régia. H. G. Koenigesberger, «The Organization of revo-

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lutionary parties in France and the Netherlands», Jou.mal of Modem History XXVII (1955) é um ensaio útil de história comparada.

Quanto à Liga, Maurice Wilkinson, A History of the Leagu.e (Glásgua, 1929) é informativo mas de leitura difícil. H. Drouot, Mayenne et la Bourgogne, 1587-1596 (2 vols., Paris, 1937) é uma notável mono­grafia sobre a Liga na Barganha. Quanto à Liga parisiense, a tradução de uma selecçção do diário de Pedro de l'Estoile por Nancy L. Roe~ker, The Paris of Henri of Navarre (Harvard University Press, 1958), é mara­vilhosamente viva.

Robert Mandrou, Introduction à la France Modeme, 1500-1640 (Paris, 1961) é uma tentativa inteligente de explorar a psicologia nacio­nal francesa no século dezasseis. Estienne Pasquier, Lettres Historiques (1556-1594), org. D. Thickett (Genebra, 1966), fornece o comentário notavelmente perspicaz dos acontecimentos feito por um inteligente observador da cena contemporânea.

Genebra

E. William Manter, Carvins Geneva (Nova Iorque, 1967), tem um capítulo final sobre Genebra depois de Calvino, e pode ser comple­mentado pela biografia de Beza por Geisendorf, indicada já nas Bio­grafias. Robert M. Kingdon, Geneva and the Coming of the W ars of Religion in France, 1553-1563 (Genebra, 1956) fornece novas e im­portantes informações sobre as relações entre Genebra e os huguenotes. Um volume que o acompanha, Geneva and the Consolidation of the French Protestant Movement 1564-1572 (Genebra, 1967) dedica uma atenção particular à luta entre os elementos laicos e clericais na igreja calvinista francesa.

A Alemanha e o Império

Haja Holbom, A History of Modem Germany. The Reformation (Londres, 1965) é um estudo bastante completo. F. L. Carsten, Princes and Parliaments in Germany (Oxford, 1959) é essencial para o estudo dos Estados e das instituições representativas. Claus-Peter Clasen, The Palatinate in European History, 1559-1660 (Oxford, 1963) é um pe­queno e valioso livro sobre um dos locais mais agitados da Europa. Quanto a Maximiliano 11 e a Rudolfo 11, ver Bohdan Chudoba, Spain and the Empire (Chicago, 1952), mas os Habsburgo de finais do século dezasseis ainda aguardam o seu historiador.

Itália

Encontra-se um estudo geral no vol. 11 da Storia d'Italia (org. Nino Valeri, Turim, 1959). Quanto às drásticas medidas de Manuel Felisberto ·no Piemonte, ver H. G. Koenigsberger, «The Parliament of Piedmont during the Renaissance, 1460-1560», Travaux d'Histoire et

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de Filologie, sene III, vol. 45 (Lovaina, 1952), pp. 69-122. A obra do mesmo autor The Government of Sicily under Philip li, (Londres, 1951) é um excelente estudo da administração dos vice-reis espanhóis. Quanto aos aspectos navais do declínio de Veneza, Alberto Tenenti, Piracy and the Decline of Venice, 1580-1615 (tradução inglesa, Lon­dres, 1967), tem bastante valor.

Países Baixos

P. Geyl, The Revolt of the Netherlands (Londres, 1932) é ainda o melhor estudo geral da revolta, se bem que deva ser submetido a revisão e correcção à luz das investigações holandesas mais recentes. Sobre estas, ver em particular J. W. Smit, «The Present position of studies regarding the revolt of the Netherlands», Britain and the Nether­lands, I (Org. J. S. Bromley e E. H. Kossmann, Londres, 1960) e I. Schóffer, «Protestantism in Flux during the Revolt of the Netherlands», Britain and the Netherlands, li (1964). Ao estudo de Geyl devem acres­centar-se os estudos sobre Guilherme de Orange, Famese, etc., indi­cados nas Biografias e a conferência de G. N. Clark à Academia Bri­tânica, «The Birth of the Dutch Republic» (1946).

H. Van der Wee, The Growth of the Antwerp Market and the European Economy (3 vob., Lovaina, 1963), é extremamente informativo sobre o declínio de Antuérpia -um tema sobre o qual a introdução a V. Vásquez de Prada, Lettres Marchandes d'Anvers, vol. I (Paris, 1960), também lança alguma luz.

Império Otomano

Todas as histórias da Europa do século dezasseis serão incom­pletas até a história otomana deste século ser correctamente estudada. É curioso que pouco mais se saiba sobre o Império Otomano do que na época em que Raake escreveu o seu brilhante e pequeno estudo The Otto­man and the Spanish Empires (tradução inglesa Londres, 1843- um livro raro que deveria ser reimpresso). Braudel, La Méditerranée, con­tém, como seria de esperar, brilhantes observações sobre o governo e a sociedade turcos, tal como um notável livro de W. E. D. Allen, Problems of Turkish Power in the Sixteenth Century (Londres, Central Asian Re­search Centre, 1963), muito ilustrativo quanto aos acontecimentos nas fronteiras asiáticas do Império Otomano. Dorothy M. Vaughan, Europe and the Turk (Liverpool, 1954, 2.a ed. 1967) é um estudo cuidadoso das relações turcas com o o.cidente. Ver igualmente Paul Coles, The Ottoman Impact on Europe (Londres, 1968).

Polónia e Europa Oriental

Sobre a eleição polaca utilizei especialmente H. de Noailles, Henri de Valois et la Pologne en 1572 (3 vols., Paris, 1867) e P. Cham­pion, Henri III, Roi de Pologne (Paris, 1943). Diversos aspectos da vida

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de Báthory são estudados em Etienne Báthory, Roi de Pologne, Prince de Transylvanie (Cracóvia, 1935). O curto ensaio de A. F. Pollard The Jesuits in Poland (Oxford, 1892) tem algum interesse. Ver também The Cambridge History of Poland (2 vols., Cambridge, 1941). William H. McNeill, Europe's Steppe Frontier (Chicago, 1964), é uma análise viva dos problemas e da evolução na Europa oriental. J erome Blum, Lord and Peasant in Russia (Princeton, 1961) estuda a evolução económica e política na Moscóvia.

Espanha

J. Lynch, Spain under the Habsburgs, vol. I (Oxford, 1964) toma em conta a considerável quantidade de investigações realizadas desde o vol. IV de The Rise of the Spanish Empire, de R. B. Merriman, publi­cado pela primeira vez em 1918 (Nova Iorque, reimpressão em 1962). Ver também J. H . Elliott, Imperial Spain, 1469-1716 (Londres, 1963). Quanto ao desastre português em Marrocos, E. W. Bovill, The Battle of Alcazar (Londres, 1952), é um relato indevidamente negligenciado.

Quanto ao conflito anglo-espanhol, The Defeat of the Spanish Armada, de Garrett Mattingly (Londres, 1959), adquiriu merecida fama sendo particularmente valioso pelo exame das relações entre o conflito anglo-espanhol e os acontecimentos em França. É completado no campo da técnica naval por Michael Lewis, The Spanish Armada (Londres, 1960). Encontram-se muitas informações interessantes sobre a guerra naval em K. R. Andrews, Elizabethan Privateering (Cambridge, 1964) e na sua re-avaliação de Drake, mais conhecida, Drake's Voyages (Londres, 1967).

Quanto ao «deslocamento·» da Espanha do Mediterrâneo para o Atlântico, Braudel tem uma importância fundamental. Existe um nú­mero cada vez maior de obras sobre a América espanhola, cuja melhor abordagem é J. H. Parry, The Spanish Seaborne Empire (Londres, 1966).

Suécia

Quanto às tentativas de reconversão da Suécia ao catolicismo ver O. Garstein, Rome and the Counter-Reformation in Scandinavia, vol. I (Oslo, 1963). Michael Roberts, Essays in Swedish History (Londres, 1967) contém ensaios de grande interesse e importância, particularmente sobre a história militar e a ideia de constitucionalismo aristocrático. As anteriores histórias sobre a Suécia do século dezasseis foram ultrapassadas pela magistral obra do mesmo autor The Early Vasas (Cambridge, 1968), que agradeço ter podido consultar ainda em manuscrito.

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