joão candido - a luta pelos direitos humanos
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Projeto Memória, em sua 11ª edição homenageia João Cândido, principal líder da Revolta da Chibata ocorrida em 1910. Acreditamos na importância da valorização de personagens que contribuíram para a formação nacional brasileira – seja através de obras escritas, como de ações concretas, exemplos, palavras e gestos criativos e transformadores. Este livro fotobiográfico, distribuído para mais de 5 mil bibliotecas públicas em todo o país, resulta de pesquisa em importantes acervos documentais (textos e imagens) que trazem à tona a história, nem sempre bem divulgada, das condições de vida da maioria da população brasileira e dos caminhos encontrados para sobreviver e, mesmo, alterar tais situações. Está claro que não se pode mudar o que já passou, mas é possível modificar nossa percepção sobre este passado. Ler mais em Portal Capoeira - www.portalcapoeira.comTRANSCRIPT
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A Luta pelos Direitos Humanos
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A Luta pelos Direitos Humanos
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Marinheiros a bordo do encouraado Bahia.
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FUNDAO BANCO DO BRASIL
PresidenteJACQUES DE OLIVEIRA PENA Diretores ExecutivosELENELSON HONORATO MARQUESJORGE ALFREDO STREIT Gerente de Educao e CulturaMARCOS FADANELLI RAMOS AssessorCLAUDIO ALVES RIBEIRO BRENNAND PETROBRAS PresidenteJOS SERGIO GABRIELLI Gerente Executivo deComunicao InstitucionalWILSON SANTAROSA
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A Luta pelos Direitos Humanos
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Quero dizer quedaqui para o ano 2000e para adiante ainda vai ter Joo Cndido.JOO CNDIDO - DEPOIMENTO NO MUSEU DAIMAGEM E DO SOM EM 1968
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O Projeto Memria, uma iniciativa da Fundao Banco do Brasil
em parceria com a Petrobras, associando-se neste ano Associao
Cultural do Arquivo Nacional (ACAN), reconhece que a histria de um
pas ponto chave para compreendermos o presente e prepararmos o
futuro. Trazer tona a permanncia das teias do passado (gerado, pri-
mordialmente, pelo trabalho escravo e baseado na grande agricultura
monocultora de exportao) tocar em preconceitos, desigualdades
e violncias ainda hoje mal resolvidos, apesar das conquistas e me-
lhorias. E tal escolha do tema aponta, sobretudo, para a disposio em
transformar democraticamente tal realidade, valorizando a a rmao
dos Direitos Humanos no Brasil em suas variadas dimenses.
Este livro faz parte dos materiais do Projeto Memria, in-
terligados mesma temtica e distribudos em alcance nacional:
vdeo documentrio, conjunto pedaggico (Almanaque Histrico,
Guia do Professor e DVD-rom), exposio itinerante e stio na in-
ternet www.fundacaobancodobrasil.org.br (Programas e Aes/Edu-
cao/Projeto Memria).
Tal iniciativa ocorre num momento em que o Estado nacional
brasileiro comea a assumir postura expressiva diante do legado de
Joo Cndido e dos marinheiros que participaram da rebelio - e que
pode ser resumida na concesso de anistia pstuma a estes persona-
gens, aprovada por unanimidade no Congresso Nacional e sancionada
pelo presidente da Repblica em 23 de julho de 2008, alm de outras
iniciativas o ciais e, sobretudo, da sociedade civil.
responsabilidade coletiva garantir que os Direitos Huma-
nos sejam realidade para todos, independente de posio social, nvel
de instruo, gnero, religio, cor da pele, opo poltica, etc. Aproxi-
mando-se o centenrio da Revolta da Chibata, podemos constatar
que a vida de Joo Cndido traz muitas lies para aprendermos e
ensinarmos: virar as pginas de sofrido passado em direo a um
futuro melhor.
ACAN . PETROBRAS . FUNDAO BANCO DO BRASIL
o escolher o homenageado deste ano o marinheiro Joo
Cndido, principal lder da Revolta da Chibata ocorrida em 1910 o
Projeto Memria, em sua 11 edio, mantm sintonia com as ten-
dncias que procuram ampliar a conquista de Direitos Humanos bsi-
cos numa sociedade tradicionalmente marcada por desigualdades e
injustias sociais.
Acreditamos na importncia da valorizao de personagens
que contriburam para a formao nacional brasileira seja atravs
de obras escritas, como de aes concretas, exemplos, palavras e
gestos criativos e transformadores.
Este livro fotobiogr co, distribudo para mais de 5 mil biblio-
tecas pblicas em todo o pas, resulta de pesquisa em importantes
acervos documentais (textos e imagens) que trazem tona a hist-
ria, nem sempre bem divulgada, das condies de vida da maioria da
populao brasileira e dos caminhos encontrados para sobreviver e,
mesmo, alterar tais situaes. Est claro que no se pode mudar o
que j passou, mas possvel modi car nossa percepo sobre este
passado. Pretende-se assim, ao lado do importante trabalho de divul-
gao, uma contribuio historiogra a sobre o assunto.
Homenageando pela primeira vez um negro no Projeto Me-
mria, apresentamos a trajetria marcante deste indivduo nascido
em 1880, lho de escravos, e inclumos referncias ampliadas: ao
conjunto dos 2.300 marinheiros participantes do episdio que ter-
minou com os castigos corporais na Marinha de Guerra, ao contexto
da poca, s questes mais abrangentes da cultura, da Histria do
Brasil e de temas atuais.
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O Mar Meu Amigo
JOO CNDIDO
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1. O DRAGO DO MAR REAPARECEU...
2. NASCIMENTO: O FIM DA ESCRAVIDO
3. O NAVEGANTE NEGRO
4. EXPLODE A REVOLTA DOS MARINHEIROS
5. A REPRESSO CHEGA COM FORA
6. TRAJETRIA DOS HERIS DA PLEBE
7. HOMENAGENS EM VIDA
8. JOO CNDIDO VIVO NAS MEMRIAS
9. DESAFIOS ATUAIS
PARA SABER MAIS
CRONOLOGIA
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NDICE
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Quem conhece o sentido exato da cano ao lado pode entender melhor
os laos simblicos e histricos entre a Revolta da Chibata e as lutas contra a es-
cravido realizadas pelas camadas pobres da populao. Tal comparao foi criada
pelo escritor cearense Edmar Morel que, em 1949, lanou o livro Drago do Mar
o jangadeiro da abolio (reeditado como Vendaval da Liberdade). Ao publicar na
dcada seguinte A Revolta da Chibata, em vrias passagens o autor no resiste
em assinalar semelhanas entre os dois heris da plebe por ele estudados e
valorizados: ambos trabalhadores do mar, oprimidos do ponto de vista racial e so-
cial e que encabearam movimentos de grande repercusso e vitoriosos em seus
objetivos imediatos de combate ao escravismo e suas permanncias. Analogia bem
aproveitada na msica O Mestre-Sala dos Mares, de Joo Bosco e Aldir Blanc.
H muito temponas guas da GuanabaraO Drago do Marreapareceu...
MSICA DE JOO BOSCO E ALDIR BLANC, MESTRE-SALA DOS MARES
1.O DRAGO DO MAR REAPARECEU...
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1716 J O O C N D I D O A L u t a p e l o s D i r e i t o s H u m a n o s
Essa alegoria assinala um ponto-chave em nossa Histria: o de que a Aboli-
o no se realizou apenas por cima, isto , pela iniciativa das elites parlamenta-
res, de abolicionistas ilustres, dos proprietrios esclarecidos e da Coroa Imperial
(ou, mais simplesmente, da princesa Isabel), mas foi um longo e penoso processo
de embates no qual participaram, tambm, setores variados da populao, como as
camadas mdias, pobres livres, libertos e os prprios cativos. De forma direta ou
indireta, as aes individuais ou coletivas dos escravos ajudaram a minar o sistema
escravista.
Drago do Mar era o apelido do jangadeiro cearense Francisco Jos do Nascimento:
caboclo, classi cado como pardo livre, um dos principais lderes do rduo movi-
mento que culminou com a extino do cativeiro no Cear em 1884, ou seja, quatro
anos antes da Lei urea.
Foram trs anos de lutas duras. Quando nalmente decretou-se a Abolio
cearense em 25 de maro de 1884 (inclusive com apoio do presidente da Provncia),
o modesto Francisco Jos do Nascimento, Drago do Mar, junto com sua jangada,
des lou em triunfo pelas ruas da cidade imperial do Rio de Janeiro, sendo apoiado
e aplaudido por abolicionistas como Jos do Patrocnio e Joaquim Nabuco. O evento
teve grande destaque na imprensa e repercusso internacional. E 26 anos trans-
correram desde a Abolio nos verdes mares do Cear at o reaparecimento do
Drago do Mar nas guas da baa da Guanabara, na gura de um bravo marinheiro.
CASTIGOS CORPORAIS
A histria dos castigos corporais na Marinha de Guerra brasileira longa e
repleta de episdios violentos. Na realidade, no se trata de caracterstica isolada
dessa instituio, mas das foras armadas em geral e situa-se, em linha de conti-
O uso do aoite nos escravos,
habitual durante mais de trs
sculos, foi proibido por lei
de 1886, 24 anos antes da
Revolta da Chibata.
Drago do Mar era o apelido
do jangadeiro cearense
Francisco Jos do Nascimento:
caboclo, classi cado como
pardo livre,
Capas da 1. edio (
esquerda) e 3. edio do
livro de Edmar Morel sobre
outro heri da plebe e
trabalhador do mar que
lutou contra a escravido.
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No raiar da Repblica e crepsculo do sculo XIX, os castigos corporais na
Marinha foram logo suprimidos, em 16 de novembro de 1889. Porm, na poca em
que Joo Cndido serviu na Armada, a situao era semelhante do perodo colonial
sob esse ngulo. Tal fator explica-se pelos antigos costumes aristocrticos, pelo
preconceito racial, pelo sistema de dominao que se reproduzia e pela reintroduo
legal das punies por meio do Decreto 328, de outubro de 1890, que substitua os
regimentos coloniais, mas renovava e justi cava a permanncia dos referidos casti-
gos na Repblica brasileira.
nuidade, nos variados contextos de uma sociedade que viveu mais de trs sculos de
escravismo e tradio autoritria, deixando permanncias at hoje. A estrutura so-
cial no Brasil construiu-se de forma arraigada sobre o famoso trip: produo agrria
monocultora, exportadora e escravista embora as hierarquias sociais e a produo
de subsistncia fossem cada vez mais complexas, sobretudo a partir do sculo XVIII.
Em suma, a Marinha fazia parte da sociedade, com seus paradoxos, limites e possi-
bilidades de transformaes.
A revista Ilustrao Brasileira,
na poca da Revolta da Chibata,
mostra como os castigos
corporais eram antigos e
inadequados.
O lorde, almirante e marqus
Thomas Cochrane, chamado
de Pirata por Joo Cndido,
reforou o uso da chibata na
Marinha brasileira na poca da
Independncia.
Ao longo do sculo XIX, a disciplina na Marinha foi baseada em regras do
perodo colonial, sobretudo no Regimento Provisional para o Servio e Disciplina das
Esquadras e Navios da Armada Real de 1796, complementado com os Artigos de
Guerra. O artigo 80 decretava que os marinheiros seriam corrigidos por meio de
pancadas de espada, e chibata.
Momento marcante ocorreu com o processo de Independncia no Brasil,
quando a Marinha se reorganizou, inicialmente, sob a liderana de um experiente
militar e mercenrio internacional de guerra, o almirante ingls Thomas Cochrane,
contratado por d. Pedro I e Jos Bonifcio para atuar nas guerras de Independncia.
Com essa reestruturao da Marinha os castigos corporais foram mantidos e at
reforados pela tradio aristocrtica inglesa (que viria a ser responsvel por pro-
cessos de colonizao particularmente violentos como os da frica do Sul e ndia).
A presena de lorde Cochrane, conde de Dundonald e marqus do Maranho seria
decisiva nessa triste permanncia em poca de algumas mudanas.
1918 J O O C N D I D O A L u t a p e l o s D i r e i t o s H u m a n o s1 J O
A chibata na revolta, na Marinha do Brasil, aqueles o ciais
ingleses, Cochrane e outros que eram piratas na Marinha
inglesa, expulsos de l, andaram pelo mundo roubando. Aqui
no Brasil eles impunham.(Joo Cndido, depoimento ao Museu da Imagem e do Som)
Note-se que essas regras republicanas sobreviveram ao uso do aoite nos
escravos que, pelo menos legalmente, fora proibido pela lei de outubro de 1886, por-
tanto ainda no Imprio, aps intensa presso dos abolicionistas que denunciavam
maus-tratos, inclusive pela imprensa.
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Filho de escravos, Joo Cndido no nasceu em senzala, mas numa chou-
pana onde moravam seus pais, Joo Cndido Felisberto e Igncia Felisberto, em
24 de junho de 1880. A modesta habitao cava na fazenda de Vicente Simes
Pereira (localidade de Coxilha Bonita, serra do Herval, interior do Rio Grande do
Sul), prxima da casa-grande mas fora de suas vistas. Mantinha-se pequena rea
prpria para cultivo de horta de subsistncia e criao de animais domsticos. A
condio de vida dessa famlia cativa explica-se por motivos pessoais e, tambm,
pelo contexto histrico.
2.NASCIMENTO:O FIM DA ESCRAVIDO
221
Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. So dotadas de razo e conscincia e devem agir em relao umas s outras com esprito de fraternidade.ARTIGO I DA DECLARAO UNIVERSAL DOSDIREITOS HUMANOS
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Uma das raras fotos que mostra
Joo Cndido com meia idade,
nos anos 1930: serviu de capa
para o livreto escrito por Ado
Pereira Nunes e apreendido
pela polcia.
Os costumes da escravido,
arraigados na sociedade
brasileira (como mostra
esta pintura do alemo J. M.
Rugendas), se faziam sentir
de maneira ntida ainda no
comeo do sculo XX.
Os pais do futuro marinheiro haviam conquistado, no interior da propriedade
rural escravista, uma certa autonomia, chamada de liberdade, numa espcie de
acordo com o proprietrio (que alguns chamam de benevolente) situao que no
era incomum em outras partes do Brasil, onde cativos, com diferentes graus de au-
tonomia em relao ao trabalho e direito de locomoo, formavam famlias estveis
dentro do sistema escravocrata. Tal condio requeria boas doses de habilidade
recproca na convivncia dos escravos com os senhores e consentimento de alguns
aspectos na dominao pelos cativos, para que estes pudessem se liberar de ou-
tras opresses.
2322 J O O C N D I D O A L u t a p e l o s D i r e i t o s H u m a n o s2 J O
Alm do mais, Joo Cndido Felisberto, o pai, era tropeiro, isto , participava
da conduo de tropas de gado, o que lhe dava possibilidades amplas de locomo-
o uma das caractersticas da escravido no Brasil meridional to marcado pela
pecuria, mas que no exclua outras formas de coero inerentes ao sistema es-
cravista. Em vrias ocasies, seu lho Joo Cndido acompanhou-o nas cavalgadas
pelos pampas, comendo arroz carreteiro ou charque (carne salgada) com farinha. J
Igncia Felisberto, a crer em testemunhos orais tanto dos prprios descendentes
quanto de familiares do fazendeiro, tinha personalidade marcante: era parteira e
praticava medicina artesanal com amplo conhecimento do uso da ora. Alm de sete
lhos (trs homens e quatro mulheres), teve vrios lhos de peito, ou seja, crian-
as que amamentou. Era tambm exmia caadora e embrenhava-se com freqncia
nos matos, trazendo tatus e outros animais tpicos da regio.
Observe-se que a dcada de 1880, quando nasceu Joo Cndido, marcou
momento peculiar na histria da escravido no Brasil. O futuro marinheiro j nascera
aps a lei de 1871, que declarava livres todos os lhos de escravos nascidos a partir
daquela data. Embora, na maioria dos casos, as crianas continuassem nas fazen-
das vivendo do mesmo modo que os pais. O sistema escravista estava em crise.
No se pode esquecer: no Rio Grande do Sul a escravido foi abolida em boa parte da
provncia a partir de 1884 (quatro anos antes da Lei urea), num processo equivalen-
te ao que ocorrera no Cear e no Amazonas, ou seja, em reas perifricas do centro
escravista do Imprio. A Abolio proclamou-se em julho de 1884 em Porto Alegre e
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por todo o litoral gacho, solenemente e com repercusso nacional, realizando-se a
seguir, aos poucos, em alguns municpios do interior, embora em vrias localidades o
cativeiro permanecesse at a Lei urea. Assim, o futuro marinheiro nasceu e passou
os primeiros anos numa provncia onde a escravido fora seriamente abalada antes
mesmo da iniciativa da Coroa Imperial. Por mais arraigadas que fossem a escravido
e suas conseqncias, elas no apareciam aos moradores do Rio Grande do Sul na
dcada de 1880 como fatais e inquestionveis. Esse foi, digamos, o bero histrico
daquele que seria o lder da Revolta da Chibata.
Se Joo Cndido, por um lado, esteve marcado desde seu nascimento pe-
las relaes escravistas, por outro, vivenciou na tenra infncia a crise e derrocada
desse sistema, acompanhado por diversas formas e estratgias de luta, por parte
dos cativos e diferentes aliados, para alcanar as liberdades: pac cas ou violentas,
alternando confronto e negociao, tentativas de ruptura e de insero na ordem
vigente. Experincias histricas complexas e intensas que, mesmo quando no
verbalizadas pelo personagem, fariam parte de seu repertrio social e de uma me-
mria coletiva ainda recente. Basta ver que muitos dos adversrios o acusariam,
sugestivamente, de submisso aos superiores ou, ao contrrio, de radicalidade nas
atitudes que tomou. Tal julgamento poderia parecer paradoxal, mas refere-se a
posturas que integraram o vasto conjunto dos caminhos de sobrevivncia e supe-
rao do escravismo.
O PERODO PS-ABOLIO
A situao de Joo Cndido e dos demais marinheiros da Revolta da Chibata
deve ser compreendida no contexto Ps-Abolio. Hoje sabemos ser um equvoco
considerar que o Brasil do sculo XIX estava dividido entre uma maioria negra e es-
crava e uma minoria branca e senhorial e, tambm, que a maior parte da populao
negra e parda no Brasil era cativa. Ou seja, a rebelio de 1910 no seria realizada
apenas por um contingente recm-sado da escravido ou de seus descendentes
2524 J O O C N D I D O A L u t a p e l o s D i r e i t o s H u m a n o s2 J O
Joo Cndido nasceu
nas serras gachas hoje
pertencentes ao municpio
Dom Feliciano.
AS TRSCIDADES NATAIS
Joo Cndido costumava se apresentar como natural de Rio Pardo e, algumas vezes,
de Encruzilhada do Sul. Manteve por toda a vida o sotaque gacho. Mas a fazenda onde nasceu
pertence hoje ao municpio de Dom Feliciano. Essa, digamos, trplice naturalidade, originou-
se de certa tendncia de municipalizao nacional e, deste municpio, em particular. Desde
que Rio Pardo foi erigida em vila, em 1809 (tinha a maior extenso da provncia), at hoje, se
desmembraram de seu territrio cerca de 300 municpios.
Rio Pardo, o principal ncleo urbano nesse conjunto, era cidade porturia uvial (rio
Jacu), portanto, local de encontro e escoamento do comrcio da regio pelo menos desde
o sculo XVIII, com a destruio da Misso de So Nicolau (que abrigava os aldeamentos in-
dgenas organizados pelos jesutas) e reconquista portuguesa do territrio. Acolhe at hoje
casario colonial e oitocentista. Foi certamente a que o futuro marinheiro, ainda criana, viu
o primeiro cais e suas embarcaes e conheceu sobrados. Ambiente central e constante em
sua formao inicial, da se considerar tambm um rio-pardense.
J Encruzilhada do Sul emancipou-se de Rio Pardo em 1849, quando se fundou uma
vila que passou a ter Cmara Municipal: logo, na poca do nascimento de Joo Cndido, a
fazenda na qual veio ao mundo situava-se em Encruzilhada. O lugar fora alvo de violentas
batalhas durante a Revoluo Farroupilha (18351845) e a Guerra do Paraguai (18641870)
e, um ano depois da emancipao, o pelourinho da praa principal, para castigar sicamente
criminosos e escravos, havia sido retirado por representar um vergonhoso smbolo de violn-
cia o que no signi cou que os castigos tivessem desaparecido.
Quanto ao municpio de Dom Feliciano, criado em dezembro de 1963, desmembrou-se
de Encruzilhada do Sul. Estima-se que 70% da populao tm origem na imigrao polonesa
e a padroeira da cidade Nossa Senhora de Czestochowa.
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2726 J O O C N D I D O A L u t a p e l o s D i r e i t o s H u m a n o s2 J O
Joo Cndido conheceu
a Marinha tradicional,
com embarcaes
herdadas do Imprio.UM PROTETORNA MARINHA
Joo Cndido se valeria de laos de proteo em momentos decisivos de sua vida. Ainda
em Rio Pardo, conheceu o futuro almirante Alexandrino de Alencar, tambm natural da cidade
(protegeu meus pais e minha famlia, relataria o marujo) e que o encaminhou para a Marinha aos
14 anos de idade. O almirante Alexandrino, gura expressiva, lutara na Guerra do Paraguai sob as
ordens dos almirantes Barroso e Tamandar. Participou da Revolta da Armada (189394), gerada
pela pouca ateno dada Marinha no governo Floriano Peixoto. Posteriormente, Alexandrino seria
ministro da Marinha em cinco governos, ocasio em que foi procurado por Joo Cndido, que j
sofria duras perseguies pela Revolta da Chibata. Ao tentar ganhar a vida navegando, o ex-marujo
teve documentos arbitrariamente apreendidos pela Capitania dos Portos e procurou o conterrneo
para pedir justia. Alexandrino telefonou para o capito responsvel e ordenou-lhe: Entregue os
papis de Joo Cndido imediatamente; eu tambm j fui revoltoso e hoje sou ministro da Marinha.
Esse almirante faleceu em 1926. Registre-se que tais protees ocasionais podem ter arrefecido,
mas no impediram as numerosas perseguies que se abateram sobre Joo Cndido.
imediatos, embora estes estivessem presentes. Basta assinalar que, no incio do
sculo XIX, as estimativas demogr cas (no havia ainda Censo organizado) apon-
tavam que um tero da populao brasileira era composta de pardos livres.
Do ponto de vista dos ex-escravos, isto , considerando-os como agentes
histricos, o tempo do Ps-Abolio tinha um duplo signi cado: liberdade e cidada-
nia, conforme assinalam historiadores como Hebe Mattos e Flvio Gomes. Ou seja,
colocava-se no apenas a superao do cativeiro, mas a busca de insero na socie-
dade que se transformava.
Com a Lei urea, os pais de Joo Cndido saram da fazenda e ele fez a migrao
do campo para a cidade: morou em Rio Pardo e Porto Alegre at a adolescncia. Assim,
as relaes pessoais baseadas na identidade regional (pertencimento a uma mesma
localidade ou regio) so marcantes na sociedade brasileira e, em geral, ultrapassam as
diferenas sociais ou polticas e geram atitudes de proteo ou compadrio.
A iniciao do futuro marujo na vida pblica deu-se atravs de Pinheiro
Machado, o famoso caudilho gacho com grande domnio poltico sobre o Brasil na
Primeira Repblica e atuao decisiva diante da Revolta da Chibata. Joo Cndido
narrou em suas memrias na Gazeta de Notcias que, por motivos de fora maior,
lutou nas tropas governistas da Diviso Norte sob o comando de Pinheiro Machado
durante a Revolta Federalista em 1893 (que eclodiu contra o governo de Floriano
Pinheiro Machado, importante
lder poltico, comandava a
primeira tropa na qual Joo
Cndido serviu, aos 13 anos.
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Peixoto), tendo participado de batalhas importantes, como a de Passo Fundo (RS).
Desse modo, o futuro marujo, aos 13 anos, aparentemente com alistamento forado
(o que era comum entre jovens de sua condio social), estreou as atividades pbli-
cas numa rebelio, combatendo-a. Vale assinalar que o navio de guerra do governo
central, Maraj, bombardeou Porto Alegre na ocasio, gerando pnico, destruio,
feridos e morte. Portanto, a ameaa dos marinheiros rebelados em 1910 de fazer o
mesmo com a capital federal tinha antecedentes recentes e exemplos o ciais.
O adolescente Joo Cndido viu-se alistado inicialmente no Arsenal de
Guerra do Exrcito, em Porto Alegre, em agosto de 1894. No ms de janeiro de 1895
transferiu-se como aluno para a Escola de Aprendizes de Marinheiros, na mesma
cidade, cursando-a durante 11 meses. Mas, devido expulso de grande nmero de
marujos aps a Revolta da Armada e conseqente falta de efetivos, foi enviado
para a 16 Companhia da Marinha, Quartel Central da ilha de Villegaignon, na capital
federal. Chegou sozinho ao Rio de Janeiro em 5 de dezembro de 1895 e, depois de
ter sido inspecionado e julgado apto para o servio da Armada, cinco dias depois
tornava-se grumete, recebendo o nmero 85.
Grumetes (ao centro) na porta da
Igreja Candelria (RJ): alistados
para serem corrigidos ou para
terem uma colocao.
Rio de Janeiro no comeo do
sculo XX: cidade cosmopolita e,
ainda, capital imperial do pas.
2928 J O O C N D I D O A L u t a p e l o s D i r e i t o s H u m a n o s2 J O
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No momento da inscrio na Marinha, constatou-se que havia um subo cial
chamado Joo Cndido Felisberto e, para evitar um homnimo, suprimiu-se o sobre-
nome do novo auxiliar. No s os corpos, mas tambm os nomes eram castigados.
En m, Joo Cndido entrou para a Marinha por causa de uma rebelio que presenciou
e o impressionou mas na qual no teve qualquer participao e seria excludo da
a 17 anos por outra revolta, da qual foi lder.
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A entrada para a Marinha e as viagens consecutivas representaram, para
Joo Cndido, a exploso de nitiva do mundo rural e escravista em que nasceu.
Segundo suas palavras: Eu entrei na Marinha com 14 anos e entrei bisonho. Toda
luz que me iluminou, que me ilumina, graas a Deus, que pouca, foi adquirida,
posso dizer, na Marinha. Bisonho, no custa lembrar, signi ca pouco adestrado,
novato, recruta inexperiente.
Joo Cndido percorreu todo o litoral brasileiro, as principais bacias hi-
drogr cas (Prata e Amaznica) e navegou por trs continentes (frica, Europa,
Amrica do Norte e Amrica do Sul). Conheceu e presenciou personagens e even-
tos histricos. Instruiu-se e instruiu nas artes militares; recebeu elogios, promo-
es, rebaixamentos e punies. Aprendizados mltiplos marcados pela presena
das guas, presena soberana do mar.
31
3.O NAVEGANTENEGRO
Ns que vnhamos da Europa, em contato com outras marinhas, no podamos admitir que na Marinha brasileira ainda o homem tirasse a camisa para ser chibateado por outro homem.
JOO CNDIDO - DEPOIMENTO NO MUSEU DAIMAGEM E DO SOM EM 1968
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Em setembro de 1897, Joo Cndido servia no cruzador Andrada quando a
embarcao transportou da Bahia para Santos (SP) soldados sobreviventes da guer-
ra de Canudos, ms em que os rebeldes seguidores de Antnio Conselheiro foram
de nitivamente derrotados.
A experincia mais marcante parece ter sido a Bacia Amaznica que ele
percorreu durante sete meses, quando se incorporou otilha Amaznica e viajou da
foz do Amazonas ao Acre, atravessando o grande rio e os principais a uentes. Apre-
ciou os portos, a populao ribeirinha, as fazendas e seringais, a grandeza das matas
e rios. Embrenhando-se em meio oresta e atento paisagem social, Joo Cndido
recordaria em depoimento j no m da vida no Museu da Imagem e do Som: Eu co-
nheci o Amazonas em criana e a mesma coisa de hoje, escravatura, escravido
aqui na mo dos seringueiros. O marujo no se cansava de apontar as permanncias
do escravismo na sociedade brasileira. Os acontecimentos saltavam-lhe aos olhos,
o aprendizado poltico amadurecia. No Acre de 1903, Joo Cndido presenciou a luta
antiimperialista do gacho Plcido de Castro (no era militar de carreira, nem apoia-
do de incio pelo governo brasileiro) que arregimentara um exrcito improvisado para
garantir a permanncia dessa parcela do territrio ligada ao Brasil. Impressionou ao
marujo a rebelio bem sucedida e, no nal, reconhecida o cialmente.
3332 J O O C N D I D O A L u t a p e l o s D i r e i t o s H u m a n o s3 J O
Joo Cndido conheceu
terras e guas em quatro
continentes.
Marinheiros viajam
no bonde eltrico:
o Rio de Janeiro,
cosmopolita,
modernizava-se.
O cais Pharoux (atual
Praa XV, Rio de Janeiro,
RJ) era porto para viagens
nacionais e internacionais.
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Em julho de 1909, o marujo gacho viajaria em novo itinerrio europeu, desta
vez, para acompanhar o m da construo e compor a tripulao do encouraado
Minas Gerais, em Newcastle-on-Tyle, Inglaterra. Viajou por terra de Marselha a Paris
a Cidade Luz, no esplendor da Belle poque. Em fevereiro de 1910, o Minas Gerais
faria a viagem inaugural at Hampton Roads, EUA, para acompanhar o traslado ao
Brasil dos restos mortais de Joaquim Nabuco, um dos grandes lderes abolicionistas,
dentro de suas convices e peculiaridades. O corpo de Nabuco seria sugestivamen-
te seguido pelos marinheiros que, nove meses depois, enterrariam a prtica dos
castigos fsicos, um dos resqucios do escravismo no Brasil.
VIGIAR, PUNIR E ELOGIAR
No s pelas viagens, mas sobretudo no interior dos navios, a tripulao
vivenciava as mais diversas experincias. Joo Cndido sofreu castigos (embora
nunca tenha sido chibateado, o que indicava, nos padres da poca, bom comporta-
mento). E mereceu elogios e promoes. Trata-se de um complexo jogo de relaes
de poder que envolvia o ciais e subalternos.
O marinheiro Joo Cndido surgiu, efetivamente, no dia 23 de julho de 1898,
quando foi promovido 2 classe dessa condio, deixando de ser grumete. Em 11
de dezembro de 1900, teve anotado na sua cha que completara cinco anos de
servio sem nada que o desabone, sendo ento alado a marinheiro de 1 classe.
Estava com 20 anos de idade. Porm, antes disso, sofrera duas punies. A primeira,
novembro de 1897, em que foi castigado com quatro dias de solitria, sendo dois
a po e gua, por haver tentado ferir com um garfo a seu companheiro. Veja-se a
dureza do castigo para um gesto que sequer se concretizara. A segunda, em outubro
de 1898, castigado com trs dias de solitria rigorosa por entrar em luta corporal
com um seu companheiro.
Promovido a cabo-de-esquadra em maro de 1903, Joo Cndido exerceu
tal funo por mais de quatro anos, sendo ento rebaixado a marinheiro de 1 classe
de nitivamente. Nesse perodo, recebeu mais trs punies: dois dias de solitria
rigorosa porque por ter esbofeteado um colega em 1904 e, a mesma penalidade,
no ano seguinte, por introduzir um baralho de cartas a bordo; alm de ter o salrio
diminudo durante dois meses por compartilhar cachaa a bordo.
Ao longo dos 15 anos em que navegou, Joo Cndido foi preso seis vezes,
num total de 17 dias. Durante o servio na Marinha, o marujo gacho contraiu tuber-
culose, cando quatro meses hospitalizado entre 1900 e 1903, quando teve alta
por curado. Entretanto, essa doena o acompanharia durante anos aps deixar o
servio militar.
Joo Cndido, em 1906, partiria para outras longitudes: esteve em Cabo Ver-
de, no continente de seus ancestrais africanos, no dia 1 de junho. Nessa viagem
conheceu os canais de Kiel (Alemanha) e da Mancha (entre o mar do Norte e o oce-
ano Atlntico), os mares do Norte e Bltico e vrias cidades, como So Petersburgo
(Rssia). Anote-se a proximidade com a famosa revolta dos marinheiros do encou-
raado Potemkin, ocorrida um ano antes no porto de Odessa, mar Negro (Rssia), e
que seria tema do lme de Sergei Eisenstein, 20 anos depois. Os comentrios sobre
o evento ainda recente no poderiam deixar de circular pelos portos da regio.
3534 J O O C N D I D O A L u t a p e l o s D i r e i t o s H u m a n o s3 J O
A modernidade no alcanava
a todos: cocheiros e
carroceiros ainda ocupavam
as ruas cariocas no incio do
sculo XX.
O lder da Revolta da Chibata
esteve nos mares russos
um ano aps a rebelio no
encouraado Potenkim.
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No decorrer do perodo, constam elogios formais em sua cha (os chama-
dos Assentamentos). Por aviso do ministrio da Marinha de 5 de outubro de 1907,
foi elogiado nominalmente pelo zelo, dedicao e patriotismo de que deu provas,
mantendo as honras e tradies da Marinha nacional. Recebeu menes de bom
comportamento em janeiro, fevereiro e maro de 1908 e, consecutivamente, janeiro,
maro, junho, agosto e setembro de 1910, ou seja, nos meses anteriores revolta.
Elogios e punies dependiam, muitas vezes, da ligao pessoal que cada
marujo tinha com o ciais ou comandante a bordo. Mantinham-se relaes que se
tornaram arcaicas, seja pela violncia das penalidades, seja pelos motivos dos elo-
gios. A Marinha modernizava-se em termos tcnicos e de aparelhagem com a aqui-
sio de navios possantes e de ltima gerao mas a mentalidade que a regia
era ainda semelhante dos tempos coloniais, assim como a legislao referente
Armada, no apenas interna, mas tambm a gerada pelos poderes Executivo e Legis-
lativo. Desse modo, surgia uma contradio mais aguda da Armada com a sociedade
brasileira e com o padro de outros pases.
Alguns o ciais da Marinha de Guerra apontavam os marujos como brutos,
brbaros, violentos, ignorantes e intratveis. Porm, ao contrrio, foram justamente
os marinheiros que, antenados com a modernidade e sentindo no corpo os efeitos do
arcasmo, iriam impor novos rumos instituio. A luta pela a rmao dos direitos
humanos estaria no cerne dessas mudanas.
3736 J O O C N D I D O A L u t a p e l o s D i r e i t o s H u m a n o s3 J O
Sobre as guas da baa da
Guanabara, marujos do Minas
Gerais no momento em que a
bandeira vermelha da rebelio
foi retirada do mastro.
Dias antes da Revolta
da Chibata os cariocas
lotavam as praias.
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Ao explicar as origens da Revolta da Chibata, Joo Cndido, em seu depoi-
mento no Museu da Imagem e do Som, fez uma sntese do aprendizado das viagens
e experincias daquela gerao de marinheiros brasileiros: A revolta nasceu dos
prprios marinheiros para combater os maus-tratos e a m alimentao da Marinha
e acabar de nitivamente com a chibata na Marinha. E o caso era este. Ns que v-
nhamos da Europa, em contato com outras marinhas, no podamos admitir que na
Marinha brasileira ainda o homem tirasse a camisa para ser chibateado por outro
homem.
A populao carioca e os o ciais da Marinha sequer suspeitavam que uma
rebelio estava para eclodir.
3938 J O O C N D I D O A L u t a p e l o s D i r e i t o s H u m a n o s3 J O
UM MARUJO INSTRUDO E INSTRUTOR
Ao contrrio do esteretipo que
identi cava Joo Cndido como um homem
sem instruo, ele foi, sim, instrudo e ins-
trutor. Por um ano, freqentou a Escola de
Aprendizes de Marinheiros em Porto Alegre,
em 1895. Depois, j engajado, esteve lotado
na mesma Escola em Recife, durante quatro
meses em 1903, como instrutor. Alm disso,
exerceu as seguintes funes em diferentes
navios: artilheiro, maquinista, faroleiro, sina-
leiro, gajeiro e timoneiro. Dominava saberes
complexos. Lotado na Diviso de Instruo
do navio-escola Benjamin Constant, partici-
pou de atividades variadas, como: artilharia,
torpedo, evoluo, tiro ao alvo, bloqueio de
portos, levantamento hidrogr co e reco-
nhecimento de portos. O marinheiro gacho
serviu como instrutor na Diviso Naval de
Instruo do navio-escola Primeiro de Mar-
o, quando ensinou exerccios militares para
aspirantes da Escola Naval, em agosto de
1908. Ou seja, no lhe faltou instruo.
O encouraado Minas Gerais,
o mais poderoso da Marinha
brasileira, recm-chegado
da fbrica na Inglaterra,
em dia de gala na baa da
Guanabara: fora do crculo
dos marujos, ningum sabia
da conspirao.
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A CONSPIRAO
A idia de rebelio amadureceu entre os marujos desde 1908. Passaram
fase da conspirao e, nalmente, organizao. Pode-se situar o fracasso
de nitivo das tentativas de negociao e acordo com as autoridades quando,
em maio de 1910, Joo Cndido foi recebido gentilmente pelo ento presidente
da Repblica, Nilo Peanha e pelo ministro da Marinha, seu velho conhecido,
almirante Alexandrino de Alencar. Apesar da cordialidade, no houve nenhuma
disposio ou medida concreta das autoridades mximas do pas para atender
s demandas, com destaque para o m da chibata e demais castigos corporais. O
dilogo pac co no levava a nada.
41
4.EXPLODE A REVOLTA DOS MARINHEIROS
441
Ningum ser submetido tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante. ARTIGO 5 DA DECLARAO UNIVERSAL DOSDIREITOS HUMANOS
-
Em cada guarnio a conspirao tinha dinmicas prprias: os encontros
ocorriam de modo informal ou em comits clandestinos e locais variados. Reuniam-se
entre si e com integrantes dos demais navios, mas em pequeno nmero. A partir da,
as informaes circulavam entre os marujos que no compareciam aos encontros. As
tripulaes remetidas para ocupar as novas embarcaes fabricadas na Inglaterra
formaram a base principal do movimento. O levante esboou-se com rmeza na
tripulao do cruzador-ligeiro Bahia, onde estavam Francisco Dias Martins, Ricardo
Freitas e Adalberto Ribas, homens brancos e com bom domnio da cultura letrada:
o primeiro era cearense de famlia com alguns recursos e, o outro, posteriormente
se tornaria professor. Dias Martins costuma ser apontado como mentor intelectual
do movimento. No Bahia estava tambm Marcelino Rodrigues de Menezes, o ltimo
marujo a receber chibatadas na Marinha brasileira. Os integrantes do Minas Gerais,
entre os quais Joo Cndido, eram mais numerosos e, ao retornarem primeiro ao
Brasil vindos da Inglaterra, deram os passos iniciais na organizao do levante.
O primeiro grozinho foi na organizao dos comits,
j com ttulo de comits revolucionrios. A inteno
era aquela, logo que tivssemos o elemento inicial para
impormos s autoridades, a revolta teria que vir.(Joo Cndido, depoimento ao Museu de Imagem e do Som)
A guarnio do So Paulo mostrou-se aguerrida, e nela estavam o alagoano
Manoel Gregrio do Nascimento e o baiano Andr Avelino de Santana, ambos negros.
J os tripulantes do Deodoro eram bem politizados e consideravam os conspiradores
como membros de uma Diviso Revolucionria, entre os quais, o marujo Jos Alves
de Souza.
No havia o ciais envolvidos: apenas marinheiros, cabos e sargentos.
A hierarquia no interior do levante no seguiria a mesma lgica da hierarquia
institucional. A estada na Inglaterra, seja pelo menor controle exercido sobre os
marujos, seja pelo exemplo de conquista de direitos, estimulou o desenrolar do
projeto. Foi o perodo da conspirao que se estendeu na volta ao Brasil.
A organizao, propriamente, da revolta efetivou-se em trs encontros
preparatrios em 12 de setembro, 23 e 25 de outubro de 1910, no chamado Comit
Revolucionrio que se formou com todo sigilo, sem que as autoridades pudessem
saber, como narrou Joo Cndido, reunindo-se cada vez num ponto diferente: na Vila
Ruy Barbosa, situada na rua dos Invlidos, 71, no Centro do Rio de Janeiro e, ainda, na
rua do Livramento e no bar Jogo de Bola, que cavam nos bairros prximos ao porto,
como Sade e Gamboa.
4342 J O O C N D I D O A L u t a p e l o s D i r e i t o s H u m a n o s4 J O
Nilo Peanha, presidente
da Repblica, recebeu
Joo Cndido cordialmente
seis meses antes da
rebelio, mas no se disps
a acabar com a chibata na
Marinha brasileira.
Os marujos do recm-
construdo encouraado
So Paulo formaram uma
das principais bases da
Revolta da Chibata.
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Tal Comit congregava representantes das variadas tripulaes e era
che ado por Vitalino Jos Ferreira e, com ele, estavam no comando Pedro Lino dos
Santos, Jos Eduardo de Oliveira, (Ni) Cssio de Oliveira e Manoel da Silva Lopes.
Todos tripulantes do encouraado Minas Gerais.
A segunda reunio preparatria, em 23 de outubro, a nica que contou com
agentes de todas as guarnies rebeldes (nos demais encontros sempre um navio
estava em viagem), ocorreu num dos muitos cortios da cidade, na vila Ruy Barbosa, e
se revestiu de certa solenidade: houve um juramento de que, cobertos com a bandeira
da Repblica, fariam todo o possvel para o bom cumprimento da causa, conforme
narrou Joo Cndido nas memrias publicadas na Gazeta de Notcias. O cortio, ou
casa de cmodos, era habitao tpica das classes populares urbanas no sculo
XIX e incio do XX. No local da reunio residiam muitos marinheiros, na sua quase
totalidade msicos, os quais faziam parte direta do movimento, como testemunhou
Joo Cndido. Entre os marinheiros, de fato, havia msicos exmios, como Manoel
Gregrio do Nascimento, e cou famosa a sesso de maxixe apresentada rainha
d. Amlia (esposa de d. Manuel II, ltimo rei de Portugal), quando esta recebeu a
tripulao do navio-escola Benjamin Constant que visitava Lisboa, em 1909.
4544 J O O C N D I D O A L u t a p e l o s D i r e i t o s H u m a n o s
RIO DE JANEIRO:AS VRIAS CIDADES
O Rio de Janeiro pelo qual se moviam preferencialmente os marinheiros conspiradores ainda tinha
fortes traos coloniais e africanos, sobretudo os bairros porturios de Sade e Gamboa que, somados
rea do morro da favela local e da praa Onze, formavam o que j foi chamado de Pequena frica carioca.
Pelas vielas tortuosas, casarios antigos, ladeiras e desvos, havia cortios, sobrados e construes
encravadas na rocha. A regio, considerada bero do samba, abrigava tambm os primeiros grupos de
choro, ao lado do maxixe e do lundu. Os temidos capoeiras ponti cavam por ali. Cemitrios como o dos
ingleses e o dos escravos haviam cado em desuso e davam a medida de um tempo que cava para trs.
No longe desses locais, o Rio de Janeiro se modernizava vertiginosamente, com a abertura da
larga avenida Central (hoje Rio Branco) inspirada nos bulevares franceses: prdios suntuosos estilo Belle
poque, calades largos e lampies so sticados. Foi a era da demolio do morro do Castelo, en m,
do bota-abaixo de antigas casas e vielas, com o afastamento das classes pobres do Centro da capital
federal, empurradas para os morros e periferias. O ano da Revolta da Chibata foi o da inaugurao de
prdios monumentais e europeizados, como o da Biblioteca Nacional e do Teatro Municipal, ambos na
Cinelndia que, como o nome diz, este abrigava a ltima palavra em tecnologia do entretenimento, o
cinematgrafo.
Apesar da proclamao da Repblica, o Rio continuava a exercer, na prtica, o papel de cidade
imperial da nao.
Uma parte do Rio de Janeiro
se modernizava com rapidez:
a avenida Central (Rio
Branco) era exemplo ntido
dessas mudanas.
Marinheiros msicos
participaram da Revolta da
Chibata, como este grupo
a bordo do encouraado
Minas Gerais.
Marinheiros freqentavam
a parte mais tradicional da
cidade, como o mercado
prximo ao cais Pharoux
(Praa XV).
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A REVOLTA SOBRE O MAR
Cerca de 2.300 marinheiros, entre os dias 22 e 27 de novembro de 1910,
tomaram quatro possantes navios de guerra e, apontando os canhes sobre a capital
do Brasil da poca, exigiram o m dos castigos corporais vigentes na Marinha. O
movimento, que caria conhecido por Revolta da Chibata, trouxe para a cena
pblica setores oprimidos da populao, como agentes histricos transformadores.
Rebelar e revelar j foram uma s palavra, em portugus antigo. A rebelio revelou
rostos, nomes, falas e gestos de homens at ento annimos, destacando-se,
como smbolo maior, a gura do marinheiro negro Joo Cndido. Foi uma revolta
multitnica (com expressiva presena da populao negra) e de carter poltico (se
entendemos poltica, alm da viso tradicional de atividade parlamentar, partidria
ou governamental, como a gesto das relaes de poder na sociedade).
4746 J O O C N D I D O A L u t a p e l o s D i r e i t o s H u m a n o s4 J O
A Revolta da Chibata ampliou
a conquista de Direitos
Humanos no pas. A bandeira
vermelha da rebeldia (mastro
direita) manteve-se
hasteada no So Paulo e
demais embarcaes.
Os marujos, de armas na mo,
conseguiram acabar com a
chibata na Marinha.
Capito Batista das Neves,
comandante do Minas Gerais e
conhecido por aplicar com rigor
a chibata, foi morto durante a
rebelio e passou a ser considerado
heri por setores da imprensa.
A Ilha Fiscal, que abrigara 31
anos antes o ltimo baile da
Monarquia, foi um dos cenrios
da Revolta da Chibata.
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4948 J O O C N D I D O A L u t a p e l o s D i r e i t o s H u m a n o sJJ OJ OJ OOJ OOOO
Naquela noite o clarim no pediria silncio e sim combate. (Joo Cndido, depoimento a Edmar Morel)
A palavra liberdade era
gritada e escrita pelos marujos.
Foto de Augusto Malta.
O pessoal de baixo da rebelio:
maquinistas do encouraado
So Paulo.
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Compuseram a Revolta da Chibata os encouraados Minas Gerais, So Paulo
e o cruzador-ligeiro Bahia (recm-construdos na Inglaterra) e o antigo encouraado
Deodoro. Dessas embarcaes ouviam-se gritos de Viva a liberdade e Abaixo a
chibata. A tripulao do cruzador Repblica abandonou-o e se distribuiu entre os
navios rebelados. Os marujos do cruzador-torpedeiro Timbira tambm se insurgiram
e expulsaram os o ciais, mas tal embarcao no acompanhou os movimentos dos
demais navios em rebelio. O estopim do movimento: a sesso de chibatadas no
marinheiro Marcelino Rodrigues de Menezes, no dia 21 de novembro.
5150 J O O C N D I D O A L u t a p e l o s D i r e i t o s H u m a n o s50 J O
Os tiros de canho dos
navios rebeldes causaram
medo e correria.
Duas crianas morreram, no
alto do morro do Castelo,
atingidas pelos disparos de
advertncia dados durante
a revolta. Os marujos
zeram subscrio para
indenizar os familiares.
Famlias abastadas, com
a criadagem, foram as
primeiras a sair da cidade
quando a rebelio eclodiu.
A fuga da cidade de setores
da populao deu-se por
vrios meios, conforme a
charge em O Malho.
Saldo da exploso revolucionria: cinco o ciais mortos (quatro combatendo
os marujos e um suicdio), vrios marinheiros feridos e, pelo menos, dois mortos
(alguns defendendo os o ciais, outros do lado da revolta), alm dos tiros de
advertncia dados pelos rebelados que mataram duas crianas no morro do Castelo,
destruram algumas casas comerciais e atingiram dependncias do mosteiro
de So Bento. Os o ciais mortos foram: capito-tenente Jos Cludio da Silva
Junior, capito-de-mar-e-guerra Joo Batista das Neves, e os primeiros-tenentes O
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Mario Lahmayer, Mario Alves de Souza e Amrico Sales de Carvalho (acuado pelos
revoltosos, suicidou-se).
Os marujos enviaram um manifesto e diversos telegramas ao governo com
suas reivindicaes. Na declarao, manuscrita em bela caligra a, apresentavam-
se como cidados brasileiros e republicanos e exigiam: desaparea a chibata.
Caso no fossem atendidos, estavam dispostos a bombardear a capital do pas e as
embarcaes que os hostilizassem. Pediam, tambm, anistia.
O governo do marechal Hermes da Fonseca, empossado h uma semana, e
o Congresso Nacional, acuados, aceitaram todas as condies.
O capito da Marinha e deputado federal Jos Carlos de Carvalho, a pedido
do senador Pinheiro Machado ( gura poltica dominante no Brasil, lder do recm-
criado Partido Republicano Conservador), serviu como intermedirio e negociador.
O emissrio do governo, ao perguntar aos tripulantes do encouraado So Paulo
quem era o responsvel pela revolta, ouviu a resposta: Todos. Acertadas as
5352 J O O C N D I D O A L u t a p e l o s D i r e i t o s H u m a n o s5 J O
Outra parte dos cariocas foi
para o cais acompanhar a
revolta e admirar a evoluo
dos navios. No faltou quem
aplaudisse.
Nem mesmo do alto do morro
do Castelo as tropas do
Exrcito conseguiram atingir
os navios rebeldes.
O ciais do Exrcito, reprteres
e curiosos observam, de longe,
a revolta.
Capito Jos Carlos de
Carvalho, tambm deputado,
negociou com os marinheiros
o m do levante.
Na Praia de Santa Luzia, um
Krupp em descanso. Populares
esperam a hora do combate.O
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5554 J O O C N D I D O A L u t a p e l o s D i r e i t o s H u m a n o s5 J O
Manifesto dos
marinheiros contra a
escravido na Marinha,
reivindicavam direitos
sagrados de cidadania.
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5756 J O O C N D I D O A L u t a p e l o s D i r e i t o s H u m a n o s56 J O
condies de parte a parte, o capito Pereira Leite, frente de outros o ciais, foi
enviado para assumir o comando dos navios, em 27 de novembro. Joo Cndido e os
demais marujos receberam o o cial batendo continncia. As bandeiras vermelhas da
insurreio foram retiradas dos mastros. A chibata estava o cialmente abolida da
Marinha de Guerra brasileira.
SURGE O ALMIRANTE NEGRO
O marinheiro de 1 classe Joo Cndido, da 16 Companhia da Marinha
nacional foi, incontestavelmente, o principal lder da Revolta da Chibata, seja
pela atividade que exerceu durante a rebelio, seja pelo reconhecimento dos
companheiros de Armada que o aclamaram como lder. Tambm o ciais, governo,
parlamentares, imprensa e a populao em geral o viam nesta condio, ainda na
poca do episdio.
Em cinco dias o marujo gacho transformou-se, de ilustre desconhecido,
Joo Cndido bate continncia
para o capito Pereira Leite:
gesto que marcou a devoluo
dos navios pelos revoltosos.
In uenciado pela poltica e
pela burguesia, o marechal
Hermes da Fonseca assina
a anistia, deixando de lado
a ptria e o Z Povo.
Charge de oposio
Revolta da Chibata.
Joo Cndido l o decreto da
anistia, ao lado do marinheiro
Antonio Ferreira de Andrade.
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na maior celebridade do Brasil daquele momento, atraindo sobre ele no s
entusiasmo e admirao, mas tambm implacveis dios, vinganas e difamaes
que o acompanhariam por toda a vida. Atestam isso a quantidade de fotos, charges
e artigos publicados em destaque nos principais jornais, os discursos na Cmara
Federal e no Senado, dilogos registrados nas ruas, casas e cafs. Depois da revolta
da esquadra, Joo Cndido tornou-se a conversa de todas as rodas, registrava o
Correio da Manh.
O papel de Joo Cndido como dono do Brasil durante aqueles dias foi
proclamado, entre outros, pelo escritor Gilberto Amado com artigo em O Pas, na edio
de 27 de novembro (os marujos ainda no tinham devolvido os navios), chamando-o
de Almirante, rbitro da nao, marinheiro formidvel, heri e homem que violentou a
Histria, concebendo que os navios por ele comandados faziam parnasianismos de
manobras. Surgia assim, no calor dos acontecimentos, o apelido mais recorrente do
marujo, que na Gazeta de Notcias, em 1912, era tratado de Almirante Negro por Joo
do Rio. Da mesma forma, o jovem Oswald de Andrade presenciou o episdio por ele
considerado como a primeira revoluo poltica que o Brasil teve nesse sculo a
do marinheiro Joo Cndido, a quem o futuro modernista em seu livro de memrias,
Um homem sem pro sso, no deixa de intitular como Almirante Negro. At ento a
Marinha brasileira no tivera em seus quadros um almirante negro.
O primeiro reprter do Correio da Manh (cujo nome no foi publicado) a
entrevistar o marujo gacho, ainda a bordo do encouraado rebelde, assim registrou
5958 J O O C N D I D O A L u t a p e l o s D i r e i t o s H u m a n o s58 J O
Joo Cndido (ao centro),
descontrado e com a velha
roupa de marujo, ostenta o
leno vermelho de chefe da
revolta ao lado de Julio de
Medeiros ( sua esquerda,
de palet), do Jornal do
Commercio, nico jornalista
autorizado a subir a bordo
antes da anistia.O preconceito racial
se in ltra no trao
de J. Carlos sobre
Joo Cndido: vestido
como o cial, ar
zangado, o marujo
comanda homens
brancos e, falando
errado, sente falta
de usar a chibata,
segundo a charge.Fon
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sua aparncia: ele um crioulo reforado, alto, simptico, com olhar penetrante e
enrgico. Trazia no pescoo um leno de seda encarnado e branco, vestindo blusa
igual a dos companheiros.
Comandante supremo da rebelio, dirigindo junto a seus colegas e com
sucesso os navios de guerra mais poderosos e modernos da poca, Joo Cndido
centralizou as decises e as comunicaes durante o levante. O marinheiro gacho
tinha per l prprio e era, at ento, bem visto por o ciais e marujos. Como distintivo
do cargo que exercia, apenas o leno vermelho, a altivez e a energia com que dava
as ordens.
Vale saber que as carnes de um servidor da ptria
s sero cortadas pelas armas dos inimigos, mas nunca
pela chibata de seus irmos. A chibata avilta.(Joo Cndido, entrevista ao Correio da Manh durante a rebelio em 1910)
6160 J O O C N D I D O A L u t a p e l o s D i r e i t o s H u m a n o s6 J O
A o cialidade rebelde do
encouraado So Paulo posa
para fotos. Andr Avelino (3
da esquerda para direita) era
imediato e, Manoel Gregrio
do Nascimento (4 da esquerda
para direita), o comandante.
OS LDERES DA REVOLTA DA CHIBATA
No tempo da revolta / Joo Cndido era almirante / Avelino imediato
/ E Gregrio comandante. / Joo Cndido almirante / ainda deve se
lembrar / que tem seu nome gravado / no barco Minas Gerais...(Cano entoada por marinheiros e relatada por Zeelndia Cndido, entrevista Silvia
Capanema P. de Almeida, em 2002)
Formou-se uma o cialidade de revoltosos para garantir a organizao do movimento e o bom
manejo das embarcaes. Na prtica, no exerceram sobre seus companheiros o mesmo controle que
os o ciais graduados. A lista mais completa, composta de 26 nomes, foi fornecida por Joo Cndido
em suas memrias na Gazeta de Notcias. O comando geral da esquadra tinha trs homens: almirante-
chefe, marinheiro de 1 classe Joo Cndido; assistente, marinheiro de 2 classe Joo Baptista Marques
Pimentel; secretrio, Antonio Ferreira de Andrade. Em seguida, vinham os comandos de cada guarnio.
Comandante do Minas Gerais, cabo Jos Francisco das Chagas; imediato, Vitalino Jos Ferreira; o cial da
navegao, Jos Luis da Frana; o cial encarregado da artilharia, cabo Theodoro {Francisco Theodosio
de Abreu}; auxiliares: Joo Jos da Motta, Ernesto Jos dos Santos, Jos da Silva Medeiros, Alexandre
Manoel Marinho; encarregados dos sinais, os marinheiros de 2 classe Jos Ferreira de Melo e Jos
Eduardo Ribeiro; telegra stas da estao-rdio, segundo-sargento Jos Ferreira Braga, cabo Joo Jos de
Moraes e marinheiro de 2 classe Antonio Bittencourt; chefe de mquinas, o marinheiro foguista Miranda
e encarregado da eletricidade e protetores, segundo-sargento Antonio dos Santos.
No encouraado So Paulo: comandante, marinheiro de 1 classe Manoel Gregrio do Nascimento;
imediato, cabo Andr Avelino; o cial da navegao, cabo Cavalcanti; encarregado da artilharia, marinheiro
de 1 classe Ferreira do Nascimento; encarregado das torres, cabo Joo Pereira da Silva, para a destacado
da tripulao do Minas Gerais.
O Bahia seria comandado por Francisco Dias Martins; imediato, Carlos Jos de Freitas; o cial da
navegao, Manoel Jos da Silva; o ciais de artilharia, chefes Henrique Gomes e Adalberto Ferreira Ribas,
tendo como auxiliares Rozendo das Neves e Alonso Barbosa.
Observe-se que nessa lista no consta a o cialidade revoltosa do encouraado Deodoro, que
parece ter sido escolhida pelos marujos revelia dos colegas que conspiravam h mais tempo. Sabe-se
que o comandante rebelde desse navio foi o marujo Antonio Alves Lessa (ou Leite) e que fazia parte do
comando revoltoso da embarcao o marinheiro Jos Alves de Sousa.Ar
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Anistiados, os marinheiros devolveram os navios e largaram as armas em
27 de novembro de 1910. J no dia seguinte, o marechal Hermes da Fonseca dri-
blava a anistia e assinava o decreto 8.400, que permitia a excluso da Armada de
todos os marujos cuja presena fosse julgada inconveniente por seus superiores.
Discretamente, comeava a se armar a teia que desaguaria numa represso em
massa, intensa e arbitrria.
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5.A REPRESSO CHEGA COM FORA
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Ningum ser arbitrariamente preso, detido ou exilado. ARTIGO 9 DA DECLARAO UNIVERSAL DOSDIREITOS HUMANOS
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O saldo nal da represso resultaria em: 1.216 expulses da Marinha (dados
o ciais), ou seja, nmero equivalente a quase metade dos participantes da Revolta
da Chibata; centenas de prises, inclusive dos lderes do movimento (que sofreram
maus-tratos); degredo e trabalho escravo para centenas. E nmero ainda no
contabilizado de assassinatos, dos quais cerca de 30 so conhecidos os nomes e o
modo como foram mortos.
Embora tais agresses tenham sido praticadas pela sede de vingana de
o ciais da Marinha (assim reconhecem os prprios historiadores navais, como o
vice-almirante Hlio Lencio Martins), estes no podem ser considerados os nicos
responsveis. O governo do marechal Hermes da Fonseca (sobretudo o ministro
da Marinha, almirante Joaquim Marques Batista de Leo) referendou todos os
atos e at promoveu os mais notrios carrascos. Ou seja, o Estado brasileiro teve
responsabilidade direta pelas violncias cometidas contra marinheiros e civis em
1910 e 1912. Mas tambm a imprensa, de modo quase unnime, incitava represlia
contra os marujos, atravs de artigos, editoriais, charges, depoimentos e outros
recursos. At o Correio da Manh, o nico dos grandes rgos que simpatizara com o
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Os marujos, at ento
annimos, ocuparam as
primeiras pginas do noticirio
dos grandes jornais.
As constantes crticas da imprensa
Revolta da Chibata favoreceram
a represso contra os marujos. A
realidade inverteria o sentido desta
charge, na qual o marinheiro negro
apresentado como violento.
O preconceito de raa tornou-se
mais visvel diante da rebelio dos
marinheiros, como nessa charge
publicada em O Malho queixando-
se da disciplina invertida. O
Almirante Negro com seu leno
vermelho no pescoo aparecia aqui
com ares de malandro.Corr
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6766 J O O C N D I D O A L u t a p e l o s D i r e i t o s H u m a n o s66 J O
At a publicidade tentou se
aproveitar, em tons racistas,
da revolta dos marinheiros,
como nesse reclame do
cronmetro Royal, onde o
marujo negro fala errado.
Parte da sociedade apoiava a
represso aos marujos rebelados,
como indica esta charge da
revista Careta: a anistia era vista
como chibata de nossa alma.
A sede do Batalho Naval, na
Ilha das Cobras, bombardeada
aps a segunda rebelio, em
dezembro de 1910.
movimento, agora clamava por ordem e disciplina. E mesmo uma parte signi cativa
da populao condenava abertamente o governo por ter concedido anistia. Aps o
susto de todos e a euforia de alguns com o resultado da revolta, prevaleceria o
medo, o preconceito, a violncia ilegal praticada no interior do aparelho de Estado e
o desejo de recompor a ordem abalada.
Doze dias aps o m da Revolta da Chibata, 9 de dezembro de 1910, eclode
outra rebelio de marujos, desta vez envolvendo as guarnies do Batalho Naval (na
Ilha das Cobras) e do cruzador-ligeiro Rio Grande do Sul. Os combates foram rpidos,
porm mais violentos do que na insurreio de novembro, pois o governo partia
agora para esmagar os rebeldes, dos quais 24 foram mortos, alm do falecimento
de soldados do Exrcito, is ao governo, aquartelados no mosteiro de So Bento e
de oito civis (entre os quais um monge beneditino) atingidos por disparos na cidade,
que levaram 132 feridos aos hospitais. Os navios com os marujos da Revolta da
Chibata no tiveram qualquer participao neste segundo episdio, ao contrrio: Joo
Cndido e Manoel Gregrio, por exemplo, e as respectivas guarnies, mantiveram-
se distantes dos novos rebeldes e at se ofereceram para combat-los, mas o
governo no con ava nesse apoio e negou munies aos anistiados, ordenando que
abandonassem as embarcaes e voltassem a terra.
H fortes indcios de que o governo estimulara esses acontecimentos, a
m de ter um pretexto para reprimir abertamente e fraudar de vez a recente anistia.
Joo Cndido sempre insistiu nesta a rmativa, de que houve manipulao o cial na
segunda revolta. Mas no h dvidas num ponto: manipulados ou no, o governo usou
os novos acontecimentos para uma represso ampliada que atingiu os revoltosos de
dezembro, os de novembro e at a populao civil.
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O estado de stio durante um ms foi logo solicitado pelo governo e aprovado
no Congresso Nacional, com poucas vozes discordantes. Estavam, assim, suspensas
as garantias e liberdades, embora o governo no tenha chegado a efetivar o decreto.
A censura foi imposta aos jornais os mesmos que vinham pedindo mais represso.
Centenas de civis levados s prises, sobretudo operrios ligados ao movimento
sindical e ao anarquismo. Tambm marinheiros viram-se presos em massa. Calcula-
se, pelo menos, 600 detenes que lotaram os crceres das mais diversas instituies
no Rio de Janeiro. Vale assinalar que os marujos do cruzador-ligeiro Rio Grande do
Sul rebelaram-se no momento em que eram mandados para Santos (SP) em misso
de reprimir uma greve operria.
Na vspera do Natal de 1910, o governo preparou dois golpes duros contra
os participantes da Revolta da Chibata, que ocorreriam numa ilha, no mar e na
oresta: o massacre da Ilha das Cobras e a viagem tenebrosa do navio mercante
Satlite, rumo Amaznia. Dois eventos traumticos que teriam ampla repercusso
na imprensa nacional e internacional como exemplo agrante de desrespeito aos
direitos humanos. Alm das mortes ocorridas nesses locais, sabe-se de outros
casos. O marinheiro Marcelino Rodrigues de Menezes (cujas chibatadas recebidas
6968 J O O C N D I D O A L u t a p e l o s D i r e i t o s H u m a n o s68 J O
A Ilha das Cobras foi tambm
palco de torturas e assassinatos
de marinheiros rebeldes.
Represso em massa: aps a
Revolta da Chibata, marujos so
conduzidos presos pelas ruas da
ento Capital Federal.
Centenas de marinheiros
(inclusive os anistiados) foram
detidos: ocorreram mortes na
Ilha das Cobras, no navio Satlite
e fuzilamentos em quartis.
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foram o estopim da Revolta da Chibata) narrou quatro dcadas depois ao jornal O
Globo: Eu mesmo assisti ao assassinato do cabo Medeiros, fuzilado por ordem do
marechal Hermes. Depois, no Realengo, vi tombarem Canuto, Zacarias e Marinho, sob
carga de fuzil. So, pelo menos, mais quatro marujos executados.
As medidas repressivas, tornadas pblicas, zeram com que uma parte da
imprensa brasileira voltasse a denunciar as violncias e arbtrios como o Correio da
Manh. A revista Illustrao Brasileira publicou, em dezembro de 1910, longa matria
sobre castigos corporais e torturas ao longo da histria.
A ILHA DO MARTRIO
Joo Cndido deixou o encouraado Minas Gerais, aps a revolta do Batalho
Naval. Ao desembarcar no Arsenal da Marinha, foi cercado por dezenas de fuzileiros
armados e imediatamente preso, sob acusao de estar liderando a recente rebelio.
Detido no Quartel Central do Exrcito, incomunicvel, passou por interrogatrios
duros e afrontosos, sem tortura fsica.
No dia 24 de dezembro, Joo Cndido viu-se conduzido Ilha das Cobras.
Sob pretexto de que todas as cadeias da cidade estavam lotadas, foi o primeiro a
ser jogado numa cela solitria, encravada na rocha, mida, de aspecto lgubre e
apertada. Apesar da denominao do local solitria foram a seguir colocados
na jaula (expresso do carcereiro) mais 17 marujos. Na solitria ao lado caram
outros 13 marinheiros. Ao todo, 31 detidos, despidos, num espao onde mal cabiam
duas pessoas. Eram os considerados elementos perigosos, no linguajar o cial.
O comandante do Batalho Naval, capito-de-fragata Francisco Jos
Marques da Rocha, simplesmente levou as chaves das jaulas com ele ao se retirar
da guarnio noite. Na madrugada de 25, ouviram-se gritos de desespero dos
encarcerados, debaixo de um calor sufocante. Durante o dia, o carcereiro jogou
cal sobre os detentos, a pretexto de higienizar o local. No dia 26, abriram a porta
da cela e perguntaram se Joo Cndido vivia. O marujo gacho, com o rosto colado
7170 J O O C N D I D O A L u t a p e l o s D i r e i t o s H u m a n o s7 J O
Na falta de fotogra as
recentes dos castigos
corporais, a imprensa
publicava antigos desenhos
para abordar assunto atual.
Joo Cndido, com seu porte
altivo, parecia conduzir os
soldados que o prendiam.
A violenta represso contra
os marujos gerou denncias
pela imprensa, que tratava
abertamente do tema.
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7372 J O O C N D I D O A L u t a p e l o s D i r e i t o s H u m a n o s7 J O
Parte da imprensa negava a
represso, como nesta foto
em que so apresentados
vivos marujos que teriam sido
fuzilados. Entretanto, centenas de
rebeldes foram assassinados.
Nas dependncias navais
da Ilha das Cobras, baa
da Guanabara, marinheiros
foram mortos e Joo Cndido
sobreviveu por um triz.
numa fresta da porta, ainda respirava, e vrios cadveres se amontoavam l dentro,
inchados, envoltos em fezes e urina. Somente no dia 27, quando a notcia da violncia
comeou a vazar, o capito Marques da Rocha mandou retirar os detidos, que estavam
desde o dia 24 sem receber qualquer alimento ou gua. Na cela de Joo Cndido, ele
e o tambm gacho Joo Avelino Lira, 26 anos, apelidado de Pau da Lira, saram
vivos, inanimados e traumatizados. Nos sobreviventes das duas celas jogou-se cido
fnico, a pretexto de desinfeco, ocasio em que alguns soltaram partes da pele do
corpo. Ficaram ainda uma noite largados no cho de um aposento, nus e ao dispor
das moscas, como lembrou Joo Cndido, acrescentando: Era assim que se morria.
Eu vi.
Con guram-se, nesse episdio, torturas, tratamentos cruis, desumanos e
degradantes, que resultaram em traumas, assassinatos e tentativas de homicdio.
A Liga dos Direitos do Homem, em Bruxelas (Blgica), enviou carta de protesto ao
governo do marechal Hermes da Fonseca, assim como outras entidades de direitos
humanos. O capito Marques da Rocha foi exonerado do cargo e submetido ao
Conselho de Guerra, para abrandar o impacto do caso. Absolvido, seria promovido e
faria carreira meterica, chegando logo a almirante.
Os gemidos foram diminuindo, at que caiu o
silncio dentro daquele inferno. Quando abriram a
porta, j tinha gente podre.(Joo Cndido em depoimento a Edmar Morel sobre a
priso da ilha das Cobras.)
Poucos sabem os nomes dos marujos mortos
nas celas da Ilha das Cobras entre o Natal e o Ano Novo
de 1910. O Correio da Manh publicou uma lista de 15
pessoas: Ado Roque da Silva, Antonio Pinheiro, Jos
Antonio dos Santos, Florentino Marques de Oliveira,
Carlos Pereira dos Santos, Porfrio Pereira dos Santos,
Joo Manoel Vaz, Jos Francisco da Costa, Eduardo
M. dos Santos, Jos Domingos dos Santos, Francisco
Mathias de Faria, Scipio {Cipio} Zanotti (apontado
como lder da revolta de dezembro); Malo Cariba, Jos
Francisco dos Santos e Benedito Mariano. Alm desses,
Joo Cndido recorda-se que na sua cela estavam o
marinheiro sentenciado Avelino de Campos e o foguista
extranumerrio Rodolfo dos Santos. O mdico-legista da
Marinha registrou insolao na causa dos bitos e foram
enterrados em condies piores do que indigentes: trs
corpos em cada caixo, sepultamento s escondidas,
noite, no cemitrio So Francisco Xavier (bairro do Caju).
MORTOS E DESCONHECIDOS
O Correio da Manh denunciou
torturas e assassinatos de
marinheiros na Ilha das Cobras.
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7574 J O O C N D I D O A L u t a p e l o s D i r e i t o s H u m a n o s7 J O
O HOSPITAL DOS LOUCOS
Diante das brutalidades sofridas e presenciadas na Ilha das Cobras,
Joo Cndido, nos primeiros momentos, cou traumatizado e tinha vises dos
companheiros mortos, que reapareciam em sua memria gritando e agonizando,
deformados e sofrendo. Examinado por uma junta mdica, rapidamente concluram
que estava louco e resolveram envi-lo para o Hospital Nacional dos Alienados, no
bairro da Urca, prximo Praia Vermelha (hoje no prdio oitocentista funciona um
campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro). Ampliava-se, assim, o espectro
repressivo, chegando ao controle dos corpos e das mentes por meio da psiquiatria.
SATLITE,O NAVIO FANTASMA
Tambm na vspera de Natal de 1910, foram embarcados no navio
mercante Satlite, do Lide brasileiro, com destino ao desterro na Amaznia,
441 presos assim quali cados em relatrio o cial: 105 ex-marinheiros, 292
vagabundos e 44 mulheres. O grupo ia escoltado por 50 soldados do Exrcito
comandados pelos segundos-tenentes Francisco de Melo, Joo da Silva Leal
e Libnio Augusto da Cunha Matos. O navio fora fretado pelo governo federal,
por iniciativa conjunta dos ministrios da Guerra, da Justia e da Marinha,
sob a chancela formal do presidente da Repblica. Os detentos deveriam ser
entregues Comisso Telegr ca che ada pelo ento coronel Cndido Rondon
e para a construo da estrada de ferro MadeiraMamor.
Durante a viagem foram fuzilados 11 marinheiros, cujos corpos
lanaram-se ao mar. Entre eles, o marujo Vitalino, chefe do Comit Revolucionrio
que organizara a Revolta da Chibata. A lista dos executados estabelecida pelo
comandante do navio, Carlos Brando Storry, tem 10 nomes: Hernani Pereira dos
Santos, Nilo Ludgero Bruno, Isaas Marques de Oliveira, Jos Alexandrino dos
Santos, Ricardo Benedito, Flavio Jos Bon m, Argemiro Rodrigues de Oliveira,
Pedro Justino de Sousa, Vitalino Jos Ferreira e Aristides Pereira da Silva; os
dois ltimos, tripulantes do encouraado Minas Gerais que tiveram parte ativa
na rebelio de novembro. Um nome no est identi cado. E assim que chegaram
ao destino, a vila de Santo Antonio do Rio Madeira, em 18 de fevereiro de 1911,
mais trs marinheiros foram executados anonimamente e os corpos jogados
na mata, sob pretexto de que tentaram fugir, chegando assim a 14 mortes
por fuzilamento. Ao mesmo tempo, os donos dos seringais a uram ao local
e distriburam entre si as peas, isto , recolheram para trabalhos forados
em condies desumanas, na oresta, centenas de marinheiros e civis, dentre
os quais, operrios. As mulheres foram repartidas entre os acampamentos
para prostituio. Desse modo, difcil contar ao certo quantos morreram
dos 441 prisioneiros, mas tem-se notcia de raros sobreviventes. Os militares
do Exrcito responsveis pelos fuzilamentos no foram sequer investigados.
Estavam em misso o cial.
O psiquiatra Juliano Moreira
assinou a alta de Joo
Cndido do Hospital Nacional
dos Alienados: mdicos
concluram que o marinheiro
no estava louco.
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7776 J O O C N D I D O A L u t a p e l o s D i r e i t o s H u m a n o s7 J O
O agrante capta o exato
momento em que Joo Cndido
saa do carro-priso para o
Conselho de Guerra.
Porm, pode-se dizer que o tiro saiu pela culatra. Ainda que marcada por
critrios raciais da antropologia fsica, a instituio psiquitrica tinha contradies
e brechas, no era um monoltico aparelho repressivo. Os mdicos logo constataram
que o marujo gacho no era louco. No pronturio foi descrito como indivduo de
perfeita orientao autopsquica, memria conservada nas suas duas formas, boa
ateno e percepo, associando bem as idias, sendo perfeita a sua faculdade de
julgamento. Ao mesmo tempo eram apontados estigmas fsicos de degenerao,
mais prprios da raa e estado de depresso permanente. Certa vez Joo Cndido
a rmou a um mdico: Talvez sejam mais loucos os que me do como tal.
O diretor do hospcio, o conhecido psiquiatra Juliano Moreira, logo se tornou
um admirador de Joo Cndido e, compreendendo o que se passava, passou a proteg-
lo e mant-lo internado para que escapasse da represso militar. Moreira chegou
a juntar material para escrever sobre a vida do marujo, mas no levou adiante o
projeto. O diretor determinou que o marinheiro poderia usufruir de maior liberdade de
movimentos. A casa sua, dizia cordialmente Juliano Moreira para Joo Cndido.
Entretanto, a correspondncia particular do marujo era controlada, violada e at
censurada no hospital, o que o irritou.
Nos registros consta que lia diariamente jornais, preferindo o Correio da
Manh, mas tambm acompanhava outros veculos, como Jornal do Brasil e Dirio
de Notcias. Sempre pedia livros emprestados e nunca faltava alguma obra em sua
cabeceira. E escrevia bilhetes que remetia a amigos. Mais do que isso, Joo Cndido
passou a sair livremente do hospital, circulando pela cidade, embora com discrio,
para no ser reconhecido. Visitava amigos, ia ao teatro e at arranjou uma namorada
no bairro de Laranjeiras, dormindo algumas vezes na casa dela. Formou-se uma rede
de solidariedade entre simpatizantes e amigos espalhados, que lhe forneciam algum
dinheiro, cigarros e comida. Um tempo mais ameno surgia, onde o sofrido marujo se
recuperava dos traumas sob as rvores frondosas que cercavam o hospcio ou no
seu quarto, de onde avistava a enseada de Botafogo.
CONSELHO DE GUERRA: MARUJOSENFIM ABSOLVIDOS
A permanncia no hospital durou de 18 de abril a 4 de junho de 1911, quando
levaram Joo Cndido de volta priso na Ilha das Cobras. No sofreu os maus-tratos
de antes, mas ele e os demais presos caram 18 meses incomunicveis. Somente
em setembro de 1912 foi ouvido pelo Conselho de Investigao, que pronunciou a ele
e mais 69 marujos pelo crime de sedio na Ilha das Cobras j que no era possvel
acus-los pela Revolta da Chibata, devido anistia legalmente estabelecida. Apenas
dez dos acusados estavam presentes no Conselho de Guerra, em outubro: Joo
Cndido, Francisco Dias Martins, Manoel Gregrio do Nascimento, Ernesto Roberto
dos Santos, Deusdedit Teles de Andrade, Raul de Faria Neto, Alfredo Maia, Joo
Agostinho, Vitorino Nicssio de Oliveira e Antonio de Paula. Os demais foram dados
como desaparecidos, degredados, fuzilados ou mortos por insolao.
Os advogados da defesa foram chamados pela Irmandade de Nossa
Senhora do Rosrio, agremiao fundada no sculo XVIII por escravos alforriados
e que se caracterizou por abrigar e proteger cativos na poca da escravido.
Evaristo de Moraes, Caio Monteiro de Barros e Jernimo Jos de Carvalho aceitaram
com entusiasmo a causa e se recusaram a receber qualquer honorrio. Jernimo
de Carvalho (visto como homem pardo) era dos mais envolvidos e comparou
positivamente seu cliente, Almirante Negro, ao Marechal Branqussimo aluso ao
presidente da Repblica. Monteiro de Barros jogou todo peso de sua erudio jurdica.
Evaristo de Moraes, militante do movimento abolicionista e defensor das primeiras
causas operrias, encerrou a defesa num emocionado e lcido pronunciamento de
trs horas ininterruptas. Ao nal, veio a sentena: absolvidos por unanimidade. Pela
primeira vez desde que fora preso, Joo Cndido chorou, de emoo, enquanto os
demais comemoravam efusivamente.
Os marujos absolvidos s foram liberados em 30 de dezembro de 1912.
Ao sair da cadeia, Joo Cndido, precedido pelo noticirio dos jornais, encontrou
pequena multido que o aplaudia e consagrava. Na mesma data, ao sentir o gosto da
Acer
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liberdade, Joo Cndido teve notcia ruim, embora no surpreendente: acabava de ser
excludo dos quadros da Marinha de Guerra do Brasil. Foi o ltimo dia em que usou a
farda.
Os ecos da Revolta da Chibata eram recentes e o marujo gacho tinha
se tornado um smbolo vivo da luta pelas liberdades, reconhecido como heri por
signi cativos setores da sociedade. Entretanto, a fama no o ajudou a ter vida
tranqila.
Um cineasta pioneiro captara imagens de Joo Cndido e da rebelio em
novembro de 1910. Em janeiro de 1912, uma sala de cinema na rua Marechal Floriano,
Centro do Rio de Janeiro, espalhou cartazes pela cidade anunciando a estria de A
vida de Joo Cndido, de Alberto Botelho. Mas o chefe da polcia, Belizrio Tvora,
censurou a ta, proibindo a exibio e at apreendendo os cartazes de propaganda.
Esse material passou dcadas esquecido e, antes que o assunto voltasse a chamar
a ateno, a nica cpia da pelcula foi destruda num incndio em So Paulo na
dcada de 1950.
Menos de um ms aps ser solto, Joo Cndido, que passara por verdadeiro
crculo de horrores, presenciou expressiva homenagem, assim noticiada por O Pas:
Circo Spinelli - Companhia Eqestre Nacional da Capital Federal Grandiosa funo
em benefcio do ex-marinheiro nacional Joo Cndido com um programa cheio de
novidades e atraes. Tratava-se do grupo circense do famoso palhao negro e
um dos maiores atores do cinema brasileiro da poca, Benjamim de Oliveira, que
empolgava e fazia rir as multides.
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Joo Cndido, ainda sob
vigilncia, fotografado no dia
em que foi absolvido pelo
Conselho de Guerra, 1912.
A Gazeta de Notcias destacou a
sada do marujo da priso.
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Nos primeiros tempos depois de sair da priso, Joo Cndido morou na rua
Ipiranga, no ento buclico bairro de Laranjeiras, Zona Sul carioca. O carpinteiro
naval Freitas abrigou-o, oferecendo-lhe um quarto. Recebeu tratamento para
tuberculose e mais alguma ajuda em dinheiro da Irmandade do Rosrio. Apaixonou-
se por uma das lhas do carpinteiro, Marieta; casaram-se na igreja da Glria (Largo
do Machado) e tiveram trs lhos. Por essa poca, o ex-marujo ainda conseguia
emprego na Marinha Mercante e em barcos particulares. Assim, sucessivamente,
trabalhou: como timoneiro no patacho Antonico, que conduzia acar para o Sul
do Brasil; como carregador no cargueiro Ramona, que transportava caf e cereais
at o Paran; como timoneiro no navio vela Miarim, que fazia a rota RJBuenos
Aires; no navio Ana, que levava passageiros para Florianpolis.
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6.TRAJETRIA DOS HERIS DA PLEBE
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Um homem da plebe, em geral, no tem histria na Histria do Brasil.
EDMAR MOREL , NO L IVRO DRAGO DO MAR,O JANGADEIRO DA ABOLIO
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O trabalho excessivo e pesado na carga acabou por prejudicar sua sade e
teve que baixar hospital. Sem esquecer que, em todos esses empregos, foi demitido
por presso de o ciais da Marinha sobre os patres. A perseguio continuava,
implacvel. Sua esposa faleceu em 1917, quatro anos depois do casamento.
Ento, em 1919, juntando o dinheiro que restava, comprou o modesto caque
Trs Marias para pescar na praia de Santa Luzia, Centro do Rio de Janeiro, e vender os
peixes em cestos perto dali, no mercado do cais Pharoux (Praa XV). Em condio de
pobreza, mas perto dos elementos entre os quais cava mais vontade (cais, navios,
marinheiros, o mar) e no meio de sua gente, viveu por quatro dcadas, sem salrio
xo e garantias sociais, como os demais pescadores pobres em todo o Brasil.
8382 J O O C N D I D O A L u t a p e l o s D i r e i t o s H u m a n o s8 J O
Foto dir. pescadores,
biscateiros e marinheiros
freqentavam o cais
Pharoux (Praa XV, Rio de
Janeiro, RJ).
Joo Cndido vivia com sua segunda esposa, Maria Dolores Vidal, com quem
cou durante oito anos e teve quatro lhos, entre os quais Zeelndia Cndido, que
se tornaria uma das principais defensoras da memria do pai