joÃo e joana

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UMA FANTASIA QUE EMBALA JOÃO EM CIMA DE SUA MULA JOANA, A MULA TECNOCRATICA

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  • JOO E JOANA

    Aquele Joo

    No tinha assinalao.

    Era sem sinal particular, fosse no corpo, fosse na alma.

    Nem feito de armas nem de brases executou que o assinalassem.

    Nascera do humus e carregava a sua genrica desimportncia nas plagas do alem

    daquela serra, pinguo de rotina, comedor de cobra em tempo de apertura que era de

    sol e lua. Sempre enganchado na velha besta por nome Joana, magra

    e trotona, bicho desarrumado j sem nimo de melhorar a marcha, Sem Terra, por nome

    Joo, riscava aquelas estradas de venda em venda, corno toco de enxurrada, sempre

    mais na inteno de ficar do que da ir.

    Ir ou ficar, porm, tanto valia para ele. A tal concluso chegara

    por via reflexiva, como segue. No era redondo o mundo? Era redondo o mundo e se

    redondo era o mundo am qualquer lugar em que ele , Joo, estivesse, ele era o centro

    do mundo redondo. Logo, ir ou ficar, no mesmo dava e, por isso mesmo, ele, Joo,

    montado na besta Joana ou sentado na venda do Chico, entendia que tanto fazia ir

    como ficar.

    - Ta bem, t bem, disse o prprio Chico Santo, por nome Francisco

    das Santos, t bem. Mas j quasi meia noite, to cum sono a v fach. Cai na

    estrada e t manh.

    Joo foi.

    A besta Joana, velha e submissa, largou-se a passo, de rdea

    frouxa, com Joo em cima, ferrado no santantnio. A besta ia tranqila, no

    desfrute da intimidade com aqueles velhos caminhos, silenciosos caminhos e

    imperturbveis, por onde agora deslizava a sombra daquela desimponncia equestre,

  • equestre, indefinida luz do quarto crescente tristo.

    Grilos psicotrpicos ritmavam sonolncias marginais, amoi-

    tados de um lado e du outro do caminho quase trilhoso. Joana, senhora do destino

    de Joo, aproveitava a viglia para dar bocadas aqui e ali, no capim ralo que

    viera, imprudente, ocupar o caminho dos homens; e das bestas.

    0 caminho caminhava afastando a vegetao minguada, subindo e

    descendo em curvas sem surpresas para a besta Joana.

    La vem o crrego e o mata-burro desmoralizado pela habilidade

    de Joana! E j passou ... La vem a casa da tia Mulata. E j passou ... L vem ...

    e j passou ...

    Joo Sem Terra, muito homem e pouco varo, balanava no lombo

    joanino entre os dois jacs vazios dos frangos de roa que viajaram de dia para

    as panelas modestas do povoado: Joana para um lado, Joo para o outro, Joana para

    um lado, Joo para o outro ...

    A voz do moitib soou agourenta, mas sem resultado prtico,

    uma vez que a besta Joana no ligava pra noitib e o companheiro Joo,

    depois da uma tarde de talagadas da "Toma o Tombo", tambm no ligava pra azar de

    qualquer espcie, alm de nunca ter lido o poeta do caador. Era, mesmo, muito

    analfabeto.

    Os boitats o outras assombraes de planto, provavelmente

    reconheceram Joana e decidiram-se deixar quietos, guardando maldades

    para viajante monos experiente. E Joo e Joana l se iam a passo frouxo , sem pressa

    de chegar.

    Foi a que aconteceu um acontecimento estranho demais, mas

    demais mesmo.

    0 luar, muito fraco, espalhava um p branco pelas lonjuras. Ou

    fosse que enganadas pelo luar, pois que p coisa de seu ofcio , ou fosse que

    atradas pelo apelido medieval de Joo Sem Terra, caboclo do Apiaj, muito homem

    e pouco varo, o fato que trs feiticeiras, expatriadas das Esccia, no

    deixaram por menos: abriram o coro, declamando:

  • Somos muito irms, as trs feiticeiras,

    Da terra e do mar fatais mensageiras.

    E dadas as mos giramos assim:

    Trs voltas por ti, trs voltas por mim;

    Ao dar outras trs s nove haver.

    Silncio! 0 encanto pronto estar.

    E logo depois:

    0 bonito feio, o feio bonito.

    A besta Joana, acostumada com as assombraes da terra, nem

    ela sabe como, entendeu o miado e o coachar da bruxas e antes de disparar no

    pavor daquela intrujice nrdica, ali naquele ar noturno carregado de trpico,

    estancou e estremeceu debaixo das virilhas do companheiro Joo.

    Com a parada brusca Joo Sem Terra oscilou da anca ao pescoo e

    vice-versa, procurando, por instinto, o ponto ideal do equilbrio, e perdido

    centro de gravidade.

    Orelha em p, hirta e arrepiada, rabo teso, indecisa entre o dever

    a cumprir, seja, o do manter a incolumidade fsica do sou dono, e o direito a

    exercer, seja, o do sumir no mundo sem respeitar crrego ou cerca, Joana espertou-se

    quando ouviu Joo, dentre as brumas da "Toma o Tombo", resmungar desatento s

    circunstncias:

    - Esta boa, esta muito boa! 0 bonito feio e o feio bonito,

    hum? Quer dizer que:

    A ordi a desordi

    A desordi a ordi,

    Tanto faz i ou fic

    Tanto faz fic ou i!

    Dito assim, naquele tom imitativo, pensou Joana, aquilo era uma

    resposta, era um desafio, era uma aceitao da presena extica, era um arriscar-se aos

    efeitos do feitio, era um topar a parada, era um arrancar da peixeira, era um bater de

  • esporas, era um enristar de lana, era um preparar o elmo, era um esgravitar-se! E

    aquilo podia no acabar bem.

    Vento forte balanou a copa de uma ingazeira por ali solitria e as

    bruxas se dissolveram no ar. Mas, ao que tudo indica, no foram a Macbeth. Ficaram

    nas redondezas, danando invisveis, fazendo das suas, tanto assim que a besta Joana

    e o muito homem Joo, comearam a sentir um calafrio esquisito dentro da normalidade

    da noite e, de repente, viram-se falando um com o outro e se entendendo na lingua

    de Cames e em outra de uso do poeta.

    O noitib tornou a cantar, funesto, fnebre, nefasto a funerrio.

    Joana, quando viu, tinha perdido a cauda, sinal certo de que a

    fora da bruxaria estava sobre ela. Joo, desacompanhado de escudeiro, arrumava uma

    armadura, reluzente ao luar desmaiado, encostando-se ao barranco do latifndio do

    Cel. Bernardo, assim feito cavaleiro, armado de bodoque da goiabeira e lana de

    palmito. E logo ajeitado, endireitou para Joana, trgico e solene, a comandar, j bem

    menos analfabeto.

    - Baratria! Baratria! Por todos os deusas e por todos os

    diabos, Baratria!

    Ao que a besta Joana, ainda mal apercebida das intenes do

    cavaleiro, engerizou:

    Com sua licena, meu senhor! Nunca! No vou de Rocinante,

    desfalcada de meu rabo, a por em ridculo toda uma estirpe de jericos dignos,

    ascticos, frugais, morigerados, modestos, que ajudaram a fazer estes sertes, com a

    clara conscincia de suas realidades, sem fantasias derramadas nem utopias. Alguma

    secreta voz me diz, senhor, que devo honrar essas tradies, sem ambio de

    enriquecer meu currculo, sem me candidatar a esttua ou a capa de revista. Perdo,

    senhor, se empaco, que isso de minha natureza, mas recuso, ainda que me excomungue

    a altissonncia de Vossa Merc..

    Joo Sem Terra hesitou. O sortilgio, nacionalizado nas

    complicaes de sua etnia, vacilava, diante da resistncia do quadrpede, entre o

    fidalgo andaluz e o Ox dos Encantados. Finalmente, em tom conciliatrio, mais de

    proposta do que castrense, assim falou:

  • Bueno! Desistir da Baratria, no desisto. No abro mo dessas

    velhas aspiraes tambm tradicionais na corrente de nosso sangue, o acalentado sonho

    da beatitude terrena, num paraso insular inacessvel desordem do mundo. Mas, por

    agora, em substituio transitria, vamos ento ao Pas das Esmeraldas. Bandeira,

    pois, a Bandeira, que o tampo urge!

    Olhar levantado aos cus estrelados, o porte a Pricles tomando,

    declamou, impressionante a citatrio, mas no plagirio:

    - Sigamos a clara procisso destas bandeiras d'oiro! Sigamos antes

    que o Cel. Bernardo acorde, no fundo de seu latifndio! Sigamos, pois quero trazer as

    mos faiscando de preciosssimas gemas e atirar na varanda da Casa d*Avila, o preo

    do meu resgate, isto , a minha conta rabilonga na venda do Chico Santo! Sigamos que

    minha lana tem fome de ventres fofos! Rasgarei com os dantes as tripas do Cel.

    Bernardo e de todos os coronis do roa que reinam nestes territrios d'aquem e

    dalm serra! E lhos entupirei as narinas com o contedo de seus intestinos para que

    se afoguem naquilo em que sempre viveram! Arrasaremos as Casas Grandes que toparmos

    em nossa marcha e onde tu pisares - oh Joana! - nunca mais crescera capim e o

    mandacaru morrer de sede at onde alcanar o rudo de teus cascos!

    Dizendo tais sentenas, terrvel e imponente, no gesto e na chama

    que lhe incendiava o olhar, Joo Sem Terra estaria muito bem sobre um pedestal, na

    entrada de um porto qualquer, a pelos sete mares da terra, smbolo extraordinrio

    das aspiraes continentais!

    Estaria, mas no estava e Joana, entre receosa e admirativa,

    contemplava sou amo e senhor, caboclo do Apiaj, ali imvel, como se em bronze

    esculpido estivesse, j memorializado pelos psteros, afrontando os donos do mundo,

    os senhores da Paz o da Guerra, da misria a da abundncia, dos invernos a das secas,

    das respectivas campanhas a dos audes respectivos! No demorou muito, porm, o

    quadro fascinante. Joo, de repente, dosbronzeou-se e apesar do peso da armadura, montou

    de salto. Joana, estimulada pelas rosetas que lhe rosavam a barrigueira, rendeu-se ao

    fato consumado; de qualquer forma, concluiu, melhor s esmeraldas que Baratria.

    Aliviada dos jacs, como convinha dignidade da misso e evidente nobreza do

    cavaleiro, viu-se arreios do prata, naturalmente por efeito do feitio, que de sua

    natureza no seria.

  • L se foram, assim, os dois, entre pastos assamambaiados, adormecidos e

    desertos, agora em trote vivo, arrebicados e esperanosos. Um bacurau vadio desaninhou-

    se da beira do caminho, espantado com tanta solenidade e aprumo blico, e sumiu por trs

    de uma moita de xique-xique, prudente e defensivo.

    Joana, a certa altura do trote, teve uma lembrana e logo a expressou,

    muito desinibida:

    - Que cantaremos, Senhor, que cantaremos? Nestes momentos

    historicamente fecundos, senhor, os homens costumam cantar sempre alguma cano ou hino

    ou o que seja. Eles cantam quando vo guerra, cantam quando conseguem voltar dela.

    Durante, cantam para esquece-la. Cantam quando casam; quando morrem, os outros cantam

    pelo morto. Quando nascem, tambm, cantam. Alegres, tristes, racordativos ou futurosos,

    cantam! Parece-me que deveramos ns, tambm, cantar, senhor, para brindarmos a esta

    guerra santa, quando partimos am busca dos tesouros de nossa terra comum. Como despertar

    e trazer para o nosso partido, os Forno Dias, os Manoel Prato, os Jorge Velho, os

    Tavares, os Borba Gato, todos memomorabilssimos violadores de

    sertes e plantadores de cidades, catadores de ouro e pedraria, se no cantarmos,

    senhor? Eles esto adormecidos no passado e no costume dessas contemporneas

    geraes, to emprenhadas de futuro, requisit-los no seu repouso ... Entendo que

    deva haver cantoria, senhor, para o bem geral da expedio.

    Joo Sem Terra ouviu, refletiu e considerou a sugesto, j agora com

    prudncias de chefe. que o canto poderia despertar, juntamente com as coortes de

    violadores de sertes e de tratados, a capangagem do Cel. Bernardo. E, entre a animosa

    recordao daquelas vidas hericas e o risco da presena real dos cabras assalariados

    do coronel, vacilava a deciso.

    Nem to desvairado pela Toma o Tombo" estava Joo, nem to dominado

    pela fora do sortilgio que no lhe falassem, do sangue e do ntimo, as vozes da

    hereditria matreirice, recurso tradicional de sua fraqueza. Por outro lado

    reconhecia que no havia cometimento do tipo daquele que no se fizesse acompanhar de

    alguma exterioridade indispensvel a alimentar a convico no xito final, a

    estimular os dbios, a abafar murmrio dos pessimistas, a esconder ou disfarar as

    indecises dos chefes ...

    Ento, balanando entre a afoiteza e o risco da afoiteza , decidiu

  • correr o risco:

    Pois que seja, bradou!

    E mais empolgado do que convinha:

    - Que seja! Cantemos! Nosso canto ser clarinada, ser convocao,

    ser arrancada! Cantemos, Joana, a Marselhesa! A Marselhesa, flamante de heroismo e

    gloria, pela Liberdade, pelo Po e pela Terra!

    Ergueu a lana de palmito e j ia atacar o "Allons ..." quando Joana

    ousou algumas ponderaes, qui judiciosas, que iriam esfriar a incandescncia do

    entusiasmo patronal:

    Peo vnia, Senhor, peo vnia por um momento. Este hino nada me

    transmite de especial, senhor, sinto diz-lo. Admito que entre alferes e poetas,

    alfaiates e seminaristas dos idos inconfidentes das Gerias s leoninas margens do

    Capibaribe, essas francofilias incendiassem os nimos dos derrubadores de tronos e

    dinastias. Mas agora, nesta hora mesma do sculo, com toda franqueza, meu amo e

    senhor, daria preferncia, se a tanto me facultasse o liberalismo de suas convices,

    a alguma coisa nossa, alguma coisa que tenha brotado de ssmicas inspiraes

    telricas. Algo que fale em liberdade, por certo, em caminhos, por certo, mas sem

    essas marcialidades de dias de glria etc. e estandartes de sangue, daqueles

    carbonrios de Marselha. Enfim, como se usa dizer, alguma coisa com cheiro de nossa

    terra, com

    Foi a que Joo se mostrou ouriado. J cedera besta na questo

    do Baratria e, ciumento, da chefia pensou: se cedesse outra vez acabaria perdendo o

    controle da situao. Conviria cortar a salincia da besta enquanto fosse tempo. Da

    puxou um pigarro forte, como convm a uma autoridade que se reafirma e torcendo a

    inteno da besta, falou grosso e agressivo: - Que diabo de cheiro da terra este, D. Joana?! Que estranhas

    palavras essas! Ento acha que vou cantar alguma coisa que possa cheirar urina do

    Cel. Bernardo e murrinha de seus cabras safados? Tu imaginas que eu tenha, tive,

    teria ou terei qualquer besteira com o latifndio do coronel? Que diabo de

    insinuao essa, D. Joana?! De onde te veio essa ideia de to mau carter? Or,

    esta das melhores, D. Joana! Eu, cantar coisas cheirando terra do Cel. Bernardo!

    Eu, Joo Sem Terra!

    Joana foi compreensiva, paciente e digna:

  • - Meu amo e senhor vai me permitir dizer que no me entendeu. No seria

    esta besta cujos ancestrais suaram sangue, suor e fome-eis que lagrimas no tinham - nos

    varais daquelas crudelssimas moendas que nos deram do mundo uma idia de que fosse mais

    redondo e chato do que este que nos impuseram, no seria eu quem iria abanar o rabo,

    como qualquer cadela vadia, s barbas e s terras do coronel. Refiro-me, senhor, usando

    a expresso "cheiro de terra", aos sentimentos mais autenticamente nossos, queles que

    vm de nossa alma sertaneja, sem essas espaventaes internacionais produzidas em velhas

    matrizes histrica instaladas nos pores do tempo, descoradas ao sol da Amrica! Sou

    coerente, senhor! Opuz embargos arremetida rumo Baratria - que foi idia de remotas

    celtiberidades inculcada no seu entusiasmo pelo tempestuoso Ariel que nesta noite est a

    destelhar nosso juzo; mas aceitei com especial alegria, que trotssemos e at

    galopssemos em busca das esmeraldas que so um sonho nosso, uma acalentada esperana

    coletiva a conviver, teimosa e comprometedoramante, com as matematizaes sistemticas

    de nossa nascente tecnocracia. As esmeraldas so nossas, meu amo e senhor, o sonho

    nosso, a esperana nossa. E nesse contexto passivo, nossa a terra, ainda que o Cel.

    Bernardo diga o contrrio e a sua capangagem o confirme. Eis a o sentido de minhas

    palavras, injustamente interpretadas por meu amo e senhor. Nessas lidas em prol da

    justia, que ora encetamos, no h lugar para injustias, meu amo, que mal assim a

    iniciaramos. E o que tem mau comeo, no tem bom fim.

    Calou-se a voz explicativa da beata Joana. 0 silncio da noite morna

    recolheu-a. Caiu na terra como fruto maduro.

    Joo, meio ferido pelo discurso ponderado e respeitosamente

    crtico, considerou a situao como era do seu dever de lder e, depois de alguns

    metros de trote vivo, mandou secarro, raivoso por ceder:

    - V! Dize l a tua sugesto, D. Joana. Que que pode substituir

    com eficincia a Marselhesa tirado do nosso embornal?

    - Meu amo - respondeu Joana com jeito humilde - creio que ficaria

    bem, afinaria melhor com a situao, se cantssemos algo assim entre "Aquarela do

    Brasil", "Viola Enluarada", "Tudo Brasil" ... que a tem liberdade, tem caminho, tem

    ufanismo, tem descendentes de tupi, enfim, so cantos que do para alentar e lavam, de

    suplemento, uma vantagem: a cabrada do coronel no estranha! Pensa que somos

    cantadores, que vamos em desafio, lricos jograis dessas paragens e, com isso,

  • passamos nossas armas sob seus focinhos para alm do feudo bernardino. Vadearemos

    guas canastrenses, passaremos margem esquerda e afundaremos naqueles territrios da

    velha comarca que a clera Imperial desplantou do cho do Caneca. De l, rumo oeste,

    assim evitando chapadoes esgotados e modorrentas infletiremos para o planalto, j

    cursando rotas bandeirantes, sempre ao som dessas mandolinates caboclas. No estaria

    bam?

    De todos estes bam aprumados argumentos Joao Sem Terra considerou

    a principal vantagem suplementar, como era do seu carter. Realmente , comear a coisa

    com um passa-moleque nos cabras do coronel, era um comear brilhante, com sabor de

    vitria antecipada! Arrombar a vigilncia da jagunada no puro canto seria

    inexcedivelmente gostoso, estupendamente grato aos seus rancores centenrios ... Mais do

    que estripar o coronel era fazer o homem de peteca, era azucrin-lo, era lambusar-lhe a

    cara de mel e soltar um enxame de abelhas africanas por cima dele! Seria, enfim, uma

    humilhante vingana a resgatar geraes de humilhados de antes de aps a comovente

    penada isabelina. Sim! At que a besta Joana tinha idias aproveitveis e, resguardadas

    as suas prprias prerrogativas de liderana da expedio, D. Joana ia bem como

    assessora, conselheira e tcnica em generalidades.

    - D. Joana - disse, por fim - est deferida a sua pretenso. Comece o

    canto que de memria no sou to bom quanto sou de fantasia.

    Joana, apesar da autoria da sugesto, no sabia perfeitamente as

    letras e as msicas sugeridas. Melhor que Aquarela e Tudo Brasil, ufanista, mstica e

    lrica, empacava na Viola donde s conseguira reter o Liberdade, Liberdade. Assim mesmo,

    ordem dada, ordem cumprida porque no poderia haver bandeira sem disciplina.

    0 canto se espalhou na quasi madrugada sertaneja, esparramando-se O

    canto se espalhou na quase madrugada sertaneja, esparramando-se pelos telhados,

    desfiando-se pelas cercas, afinando-se pelos matos. A noite mansa ondulou na Viola

    Enluarada e foi bater como vaga suave na casa do coronel, ancorada no bojo do serto.

    A cabrada que folgava o corpo na varanda larga, remexeu-se resmungona,

    sonolentamente mal humorada, mas, confiante na viglia d'armas do planto da hora,

    voltou ao ronco ritmado, aos sonhos encharcados de cachaa, sangue e sarro.

    Com a cantata grilos trinadores silenciaram, corujas professorais

    afiaram o olhar de estilete, sapos recolheram eructaes soluantes.

    E a bandeira passou, cantando coisas de amor gente e terra,

  • matreira, astuciosa, carregadinha de esperana, em demanda do futuro, l muito alm da

    fronteira ...

    Assim corridas umas boas lguas trovejadas e cantadas, todas dentro,

    ainda, das divisas do Cel. Bernardo, Joana foi iluminada por outro momento de lcido

    intervalo ao pressentir aproximar-se o desamparado canavial da fazenda. Por instantes

    regressou daqueles futuros em que a meteram as bruxas de Macbeth, chamada pela voz do

    estmago, apelo irresistvel provocado pela abstinncia de tarde inteira a meia noitada

    esquecida no pau de amarrar gua da venda do Chico Santo.

    No que o pressentiu rompeu por dentro dela, disposta desforrar se

    do jejum naquela doura muito mais a seu alcance do que a mirfica serra

    esmeraldina, meta final da arrancada expedicionria.

    O repentino da manobra pegou Joo desprevenido de tal jeito que,

    quando deu de s, estava fora da sela, se bem que de p, armas apresentadas, cabea

    erguida, menos assustado que espevitado. Todavia, logo que viu envolvido pela

    farfalhante causa, no to remota, daqueles delrios, na gnese mesma da renomada

    "Toma o Tombo", sofreu, de curto "modo , tambm ale, do mesmo processo regressivo que

    atingira Joana. Despojado daquelas grandezas, descascado da armadura, s mesmo pela

    fora do sortilgio no se devolveu, de pronto, ao pedao de cho do Cel. Bernardo, ao

    tamborete da venda de Chico Canto, ao condomnio do rancho de sopapo e sap desfrutado

    em parceria com os chupes da Dr. Chagas, enfim, quelas orteguianas circunstncias do

    eu dele, includos a os jacs de galinceos esvanecidos, pela bruxaria, do lombo da

    besta.

    0 certo que o mpeto de ambos, o quase vo de caro am que se

    iam matando, escaldou menos. Joo acocorou-se espera da um vento favorvel que,

    por certo, as bruxas lhe dariam, para prosseguir na rota bruscamente interrompida.

    A besta Joana, desimpedida da cauda, assentou-se sobre o traseiro e, meio scuba

    daqueles seres feitos de ar, tentava refletir, som muito xito.

    Ao tempo em que alimentava a tentao de se ver alforriada no fim

    da expedio libertadora, receava pelos arroubos. Ir-se mundo fora, sam outra

    segurana que no a sorte, abandonando as paragens onde imperava, sobranceiro e

    incontestvel, o Cel. Bernardo, abandonando, assim, com a castelania, a proteo, no seria expor-se, por v cobia, a parecer nos ermos de

  • fonte e sede, ou a cair nas unhas de mais cruel a desalmado castelo? Por acaso no

    estaria forrada de razes a conformada experincia da velha siracusana?

    0 temor do trocar de tirano domesticava os impulsos libertrios da

    basta Joana. Espora por espora a verdade que das que lhe ralavam a barriga ja lhes

    conhecia o tamanho das rosetas ... Por sobre tais medos, justificados, a cana suculenta

    funcionava como injees de prudncia. Alis, era hora do reconhecer, refletia, toda

    aquela suculncia no lhe custam um tosto do binmio capital a trabalho, varivel

    importante para seus clculos, no momento.

    Suas preocupaes, afinal, no aram apenas de natureza pragmtica.

    Havia que temper-las com um mnimo da tica e a que entravam suas justiceiras

    reflexes no que diziam com o julgamento do latifndio, especificamente com os insumos

    aplicado no canavial. 0 coronel tinha l suas crueldades, sem dvida, mas o tamanho

    daquelas paragens, o sem limite daqueles campos, at que adoava a sua amargura,

    arredondava as suas arestas, acariciava as suas asperezas. Bom pensando aqueles dios do

    cavaleiro mais pareciam coisa importada, veneno das bruxas que vierem de fora. No lhe

    agradava transformar a expedio num aougue ambulante, naquela estrumeira sangrenta das

    intenes de Joo. Pagava pela briga se fosse preciso, mas tinha l suas Idias a queria

    v-las expostas.

    Animou-se, pois, cautelosa, a rompeu o silncio:

    - Meu amo e senhor, tenho procurado colocar ordem nas minhas idias.

    Daqui a mais algumas lguas estaremos navegando fora dos domnios do Senhor da Vira-

    Bosta e Calangoplis. Na oportunidade parece-me que devemos tar acertado alguns pontos

    para o futuro estado am que ingressaremos aps as esmeraldas. Estou flutuando, ainda,

    numa dvida: no sei se vamos a uma empreitada revolucionria, dessas da mudar as

    estruturas, a comear pela agrria, ou se esta arremetida problema s n o s s o , s e m

    conotaes sociais, uma questo particular, se bem me explico, entre ns e o

    Cel. Bernardo. A soluo de tal preliminar me parece importante sob o ponto de vista

    metodolgico o digo com certo constrangimento porque, afinal, tais cogitaes

    pertencera muito mais sua natureza racional, meu amo, do que minha irracionalidade.

    Mas o fato que falamos, nesta esquisitssima noite, sob efeito de sortilgio ainda

    mais esquisito e, ento , acontecem coisa como essa, mais esquisita que as anteriores,

    esquisitssimas, o que explica as minhas inconvenincias, se houver. Na primeira

  • hiptese - a revolucionria ~ sera de bom tom, seno de bom aviso, fixarmos os

    princpios fundamentais duma filosofia do poder, uma tica de governo, se possvel ou

    desejvel e refletir sobre o que fazer quando, alm das rdeas do meu freio brido,

    tiverem suas ungidas mos que toma as do mando geral na jurisdio fundiria que adquira

    cora as esmeraldas. Ser importante saber como lidaremos com as almas que estiveram sob

    imprio de suas leis, senhor, ou de sua vontade, meu amo. So moedas preciosas, meu

    senhor, moedas espirituais do reino de Deus, como as chamou num conto Graciano, cercadas

    de intocveis direitos sempre proclamados solenemente, por naes, congressos,

    declaraes pluri, multi e internacionais... Deveremos ou no expressar nossas

    convices a respeito, eis a questo prvia que proporia. Pesar bem as vantagens e

    desvantagens, imediatas ou remotas, entre Savanarola a o Secretario de Venza, parece-me

    coisa inteligente. Afinal, importante aproveitar a experincia alheia porque a prpria

    pode nos valer pouco, eis que nos vem no fim da vida ...

    Sabe meu amo e senhor dos efeitos que o poder exerce sobre os

    homens. Muito se tem dito sobre isso, de Confcio a seu discpulo Mncio, da tragdia

    grega sabedoria popular. No h sof de psiquiatra que substitua um bom tapete

    palaciano na eficincia em revelar caracteres, temperamentos, complexos, fobias,

    frustraes assim como acrisoladas virtudes, antes ignoradas, por escondidas, nas

    criptas mais encapsuladas da alma humana mas logo desabrochadas sob a magia da

    autoridade e apreendias e mui justamente proclamadas pela perspiccia dos ulicos. E

    ainda que o injustiado Bocage tenha cantado em versos inesquecveis o sacrifcio, a

    chateao - com perdo pela vulgaridade - os incmodos o desassossego dos que habitam

    tais vestbulos do inferno e, por outro lado, a paz dos simples que desconhecem

    aqueles crculos atapetados, espantoso observar-se o aodamento com que os que

    esto de fora buscam a auto-flagelao no forar a entrada e os que esto de dentro

    desenvolvem uma pertinaz tendncia masoquista que os estimula a permanecer l! So

    mistrios, meu amo, por natureza impenetrveis, que levaram este insondvel

    Shakspaare a colocar nas bocas de Lear e Kent este dilogo que peo permisso para

    citar:

    " Lear ... Que queres ?

  • Kent - Servir

    Lear - A quem?

    Kent - A vs.

    Lear - E me conheces, amigo?

    Kent - No, meu senhor; mas tendes na vossa pessoa um

    qu que me da vontade de vos chamar meu amo.

    Lear - Que coisa essa?

    Kent - A autoridade.

    Ora, mau amo e senhor, manda a minha equina prudncia,

    mais que minha nenhuma erudio, que eu me prepare para as novas

    circunstncias em qua se desenvolvero as nossas relaes. Sei que,

    nestes particulares, muita importncia se d ao tratamento adequado,

    aos protocolos, as precedncias, ao conjunto, enfim, quase

    litrgico, dos cerimoniais do poder. No quero infringir, por

    simpleza, tais regras. No banquete, prefiro o ltimo lugar, segundo

    o preceito evanglico, uma vez que, assim, qualquer aceno do

    anfitrio ser sempre uma grata perspectiva ascensional e nunca um

    desagradvel "chaga pra l" de cotovelos e cascos mais vigorosos.

    Todavia no desejo que esta simplicidade seja mal interpretada como

    sendo desprezo pelo esplendor glorioso da autoridade e, por isso,

    fao consulta sobre o uso dos vocativos com que deverei me dirigir a

    meu senhor aps a vitria da nossa causa, se a causa for o caso.

    Ser um primeiro passo para que o dilogo seja respeitoso , ordeiro

    e, se ordeiro, frutfero ... No sei se o chamarei Vossa Majestade,

    Vossa Alteza, Vossa Excelncia, Vossa Magnificncia, Imperador ,

    Czar, Divino Cesar, Eminncia, Papa Doc II, Fuehrer, Duce, Camarada

    Presidente, Chefo ... No sei se devo fazer acompanhar tais

    invocaes dos expressivos o sempre mui justos adjetivos que

    circundam as nobilssimas testas dos ungidos por tais designaes,

    como sejam, El Supremo, El Campeador, 0 Libertador, o Belo, o

    Magnfico, o excelso e, at com licena do meu agouro, o Breve, que

  • se breve foi, faz-se de magna gerao; Grande Lder, Pai dos Pobres,

    Pai dos Povos, Serenssimo, Sapientssimo, Perfeitssimo, Guia

    Emrito, Justssimo, Condestvel e outras de igual altissonncia

    que, no momento, no me ocorrem, mas que ficam fazendo parte

    integrante dessas sugestes. Tambm no sei se devo combin-los, se

    devo us-los todos de uma vez, se devo proceder escolha segundo a

    oportunidade, deixando, porm, desde j, expresso que cada um ou

    todos, em conjunto, estaro muito aqum dos mritos do meu amo e

    senhor, depois das esmeraldas e do resgate conseqente de sua dvida

    venda de Chico Santo. Ocorre-me, outrossim, que poderia ...

    A a besta Joana estancou a enxurrada verbal. Suas orelhas tomaram

    posio insuspeitveis, duma impressionante agilidade de semforas anunciando,

    silenciosas, a aproximao do inimigo.

    Joo Sem Terra, sensibilizado pela riqueza da inventiva humana,

    expressa naquelas titulaes esplendorosas que pelos sculos fora desempenharam

    tantos vares, desacocorara-se! A enunciao de cada uma, acrescentara um cvado

    sua estatura e, quando a besta Joana chegou ao Condestvel, ele mais parecia uma

    juara que o tufo despalma de to espinhado e mais aprumado!

    Assim enorme sacudiu a imensa cabeleira, ergueu os braos potentes

    aos cus, num gesto de Prometeu e, depois de catar duas ou trs constelaes, trovejou

    sobre os ermos a voz eoltica que arrasou montanhas e encheu vales, ao gasto de

    Isaias, o profeta, rude a portentosa como a do Batista, o qua clamou no deserto, Todo

    o Apiaj estremeceu!

    - Coronel! Chamarme-s Coronel, Joana, chamarme-s Coronel! Tudo mais,

    quando no recuso, dispenso. Nada mais que Coronel, nada menos que Coronel! Coronel Joo

    Sem Terra!

    Coronel! Coronel! Coronel!

    Os ecos do serto responderam, multiplicadamente, ao estentrio

    berro. A patente, sada das memrias da Guarda Nacional, colava-se s ombreiras dos

    montes, brilhava no peito da terra spera, confundindo peito e ombros de Joo gigante

    com a paisagem total das sertanias. Misturada ao luar brando, a palavra final

    estendia-se sobre os longes, como tnica sem costura. Homens o animais estremeceram de

  • puro medo. Do oriente, magos vieram montados em jegues humlimos e, rolando nas mos

    os chapus de couro, sopraram turbulos pendulares, exorcizando a caatinga com incenso

    a mirra. Comoceu-se a natureza. 0 crrego que dera nome quelas paragens estancou,

    dividiu e audou as suas guas, na expectativa da passagem do eleito, pronto para

    submergir os cabras do Cel. Bernardo que lhe viessem acaso aos calcanhares. Frutas

    verdoengas amadureceram de pressa, sazonando homenagens. Cascavis perderam o veneno,

    vacas de boa manteiga esconderam o leite para as primcias do culto matinal. Como no

    houvesse quela hora, sol a Josu, o quarto crescente realizou-se no plenilnio, para

    que as potestades do cu no faltassem aos preitos da terra. Caboclas em flor

    prepararam-se para o privilgio nupcial. Corpos de jagunos mortos nas refregas com os

    macacos do governo ergueram-se das guas rasas, dessorando barro, respeitosamente

    perfilados, imveis como espantalhos de roa am tarde sem vento. Os sinos de todas as

    igrejas a capelas repicaram, insistentes a alegres. Estrelas de Orion mandaram

    mensagens luminosas ao irmo que no Apiaj reproduzia as grandezas do universo ...

    Foi um momento espantado, solto no tempo, solto no espao!

    Passada a comoo, submissos o animado e o inanimado, o vulto

    gigantesco de Joo Cem Terra, sob a fora do sortilgio, comeou a mirrar, na proporo

    em que se refazia, no silncio noturno, a normalidade das coisas e o coronel!, coronel!,

    coronel!, do berro, deliqescia na distncia, perdendo vigor nas quebradas

    longnquas ...

    Para Joana, muda de pavor, estava claro que aquilo s podia ser mesmo

    era obra do feitio, daqueles seres etrios que cirandavam no canavial.

    Seu instinto, mais puxado a Sancho do que a Rocinante, logo reagiu,

    preocupado com as conseqncias daquele fordncio:

    Meu amo a senhor! Este grito foi uma imprudncia, um desalinho, por So

    Jorge! Fujamos! Partamos rpido antes que os cabras da Vira-bosta desconfiem de que

    andamos em lidas guerreiras! Este barulho deve ter sacudido a rode do Cel. Bernardo e

    temo que tenhamos posto a perder os artifcios do que nos valemos para passar a

    fronteira. Da qualquer forma desejo manifestar maus aplausos por sua corajosa deciso.

    Ser um irritante paradoxo, nestas longitudes, chamar-se meu amo e senhor de Coronel,

    sendo Joao e sendo som terra! Na verdade, que poder danar mais a Bernardo qua v-lo,

    meu amo, na ilustre companhia, senhor, como ele, de barao e cutelo, passando toda a

  • autoridade da terra nas ruas de Galangpolis, que brando-lhe o monoplio de duzentos

    lguas de quadrado?! Que poder mais enfez-lo do que barrar-lhe o umbigo da arrogncia,

    erigindo, nas suas barbas, uma outra castelania quo poderemos chamar Nova Roma, onde a

    caridade, a cooperao, a solidariedade, abriro clareiras de luz no expandir de nossa

    pequena cristandade, impondo, enfim, justia, compreenso, paz e amor?

    E cheia de uno:

    - Vade retro, Satans, que encontraste pela frente homem varo, antes

    sem sinal, agora entre doze assinalado!

    Disse e versejou trpega, cantarolante, juvenil:

    " Coronel Joo Sem Terra,

    Oh! Que delcia de guerra!

    Coronel Joo Bam Terra

    Oh! Que delcia da guerra!"

    Mas logo se reinvestiu de suas responsabilidades:

    Vamos, senhor, que se faz tarde. Muito receio comemoraes antecipadas

    que, em regra, no so de bom agouro. Vamos! As circunstncias aconselham a que priemiro

    vivamos e depois filosofemos. Deixamos os princpios para o???

    Joo logo pulou na sola o ambos retomaram a estrada, na pressa de

    buscar o tempo perdido.

    0 crescente declinava j mais para dourado.

    Um canto da galo se levantou de escondidos quintais ignorados. As

    bruxas que iam frente da expedio provocando rodamoinhos como os do Saci, em cho de

    sol quente, inquietaram-se. Canto do galo quer dizer madrugada prxima e tais seres,

    como se sabe, no se do bem com a luz do sol, mesmo aquele anmico lvido e ciantico

    que despachou o fantasma do pai de Hamlet do castelo da Dinamarca.

    Conduzir a dupla at as terras prometidas das verdes esmeraldas ainda

    antes do amanhecer tropical no seria tarefa to fcil. Da que, depois da camuflagem em

    mesa redonda dentro do milharal, resolveram carregar na dose do sortilgio e da

    resoluo execuo no houve perda da segundo. Desataram a cantar velhos estribilhos,

    danaram em rodopio esvoaante, casquilharam risos inconfundveis e arremataram num coro

    que aulava Joo e Joana:

  • Andar, andar, pra frente andar!

    Quem no quiser ir que deixe danar.

    Aps essa preparao - coisas muito estranhas fazem as bruxas!

    Mimiaturizaram Joo e agigantaram Joana, de tal maneira que o primeiro

    se convertesse em carga leve, desimportante, e a segunda se habilitasse a vencer as

    distncias com passos de sete lguas. Com a inteligente planificao mgica o

    cavaleiro audaz perdeu a bela figura, lutando em vo para manter a sua dignidade de

    chefe. Desabou do alto de suas prerrogativas de liderana agarrar~se como carrapicho

    crina embaraada de Joana. A deciso tinha importncia transcendente. Dora em deante

    tudo estaria entregue a fora dos msculos da besta. Ideal acalentado, sonho

    esmeraldino, desforra, alforria , o gozo esplndido do podar laureado pala reta

    inteno de distribuir justia, de promover o bem estar da futura comunidade que

    cresceria nas lides jurisdicionais da Nova Roma, tudo seria obra dos mgicos e da

    besta. E Joo foi ficando joo. Como Francisco virara Chico, Joo virava janjo.

    Sorte, ou azar, que no se dava conta disso e aceitava as circunstncias como o fatal

    do contexto, o inafastvel, o indispensvel para o bem dos futuros impessoais com

    prazo incerto de data. Verdade, pensava em meio aos desencontros da dana de So Guido

    que o sacudia, que se destronava para servir promessa do trono, mas tais

    contradies, certamente, seriam aparentes apenas, sacrilgio de suas dvidas

    momentneas. Era preciso crer a confiar em que tudo daria certo, em que a fronteira

    seria enfim, arrombada! Compreendia que o grande Projeto deveria realizar-se sem

    pieguices respeitosas sua pessoa humana que pusessem em perigo a grande Meta, a

    terra, enfim, que o p de Moiss no pisou!

    A velocidade aumentava a cada segundo. 0 trote da besta estremecia

    o cho. Muito caminho ainda teria de ser engulido pelas patas Joaninas e, de longe,

    de ignorados terreiros escondidos, um galo bblico cantou pela segunda vez

    Mas apesar das medidas tomadas pelo sortilgio o latifndio do Cel.

    Bernardo esgotava as energias de Joana. Era um sumidouro de terra e mais terra e mais

    terra

  • No cansava. Joana se esforava, esquentando os cascos naquelas

    lonjuras que se esticavam impiedosamente. Suas narinas se abriam ao cheiro de mato

    orvalhado que anunciava a manh prxima, uma leve brisa fresca que mais parecia vir

    da terra que dos aras. Consciente de que tudo dependia dela, tocada, a um tempo, pelo

    dever de fidelidade e pelo medo dos cabras de Vira-bosta, do trote passou ao galope.

    A caboclada, despertada pelo barulho infernal, esconjurou

    a mula sem cabaa que, quela hora, certamente se recolhia das andanas noturnas,

    das maldades da assombrao. Muito menino mijou na cama s de pavor.

    E a fronteira que no chegava?! Pastos mirrados, caatingas ressequidas,

    midos vales, currais, carnaubas e canaviais a rios secos e gua podre e cu igual e

    cu igual e tudo pra trs, am alada velocidade ...

    Joana, gemeu:

    - Meu amo e senhor! E a fronteira bernadina que no chega! Seguramente

    vou mais depressa que o cantor da estrada da Santos cortando curvas na contra-mo,

    como deve estar notando, mas os resultados ,pesa-me reconhecer, no so animadores.

    Dar-se-ia o caso de termos errado o caminho? Deverei penitenciar-me de to grave

    quo fatal desgraa? Haveria tempo de regressar em busca de outros caminhos? Haver,

    senhor, outros caminhos?

    Joo Sem Terra, naquela tropelia descabelada, no encontrava meios de

    refletir sobre as sugestes e decidir as dvidas de Joana.

    Na verdade, aguentar-se sobro o lombo da besta, am tal situao, j era um xito. 0

    serto lhe parecia imensamente maior visto ali de cima. 0 feudo bernardino inchara,

    estourando os horizontes. Por mais que corresse a besta Joana e mais longe olhasse

    Joo, no conseguiam alcanar-lhe os limites.

    Ora, com aquele furioso bater de pilo a estremecer serras no seria da

    estranhar se algo, em conseqncia, acontecesse. E aconteceu.

    Ergue-se do fundo da terra e do passado, os Conquistadores, j despertos

    pelos cantos da primeira partida. Vinham pela coerncia porque aquela empreitada

    leas a tinham por deles, sem duvida. Deles era a Terra assim com maiscula, ela

    toda. Joo Sem Torra, conquistador de lguas por cima das sesmarias, positivamente,

    era dos seus! Pertencia grei dos rebeldes anti-Tordesilhas, dos devoradores de

    distncia, dos quebra limites, das inconformados com a fronteira ... Aqueles

  • cnticos de jograis, como pensara a besta Joana, no s tapearam os cabras do Cel.

    Bernardo, como mexeram com os instintos possessivos das velhas coortes que, ento,

    abalaram do planalto e da costa, solidrias no mutiro adoidado. Chegaram montadas

    em cavalos de fogo, gneos animais resplandescentes, gibo de couro, chapus da abas

    largas, agitando flmulas com inscries em acrlico roubado, na certa, de um polo

    qualquer de desenvolvimento que encontraram na passagem. e as palavras impressas

    respondiam, desafiantes a impetuosas, s duvidas de Joana e eram escritas em latim

    para guardarem relao - possvel- com a estranha noite medieval em que se

    desenrolavam aqueles fatos e diziam assim: aut inveniam viam aut faciam!" Sim! Sim!

    Sim! Eis a tradio, nunca descumprida, de seus caminhares seiscentistas: ou

    descobriam o caminho ou o faziam, eles prprios!

    Nesta altura dos acontecimentos tudo era estmulo e refrigrio para o

    cansao de Joo e Joana. Ambos se agradaram muito daquele adjutrio,

    apesar do susto que sofreram com tal punhado de Elias levantando

    poeira das estrelas sua frente. Animaram-se, mais rpido e elsticos, com os

    estandartes.

    Faces reluzentes coriscavam, cortando os ares nos punhos dos cavaleiras. So-

    mos os Cavaleiros da Justia!, bradavam com voz poderosa. A terra do todos,

    nossa, de todos! Ns a pisamos toda, de Piratininga, da beira do Atlntico, as

    rampas andinas encharcada Amaznia! Fomos ns os que pregaram seu corpo no

    continente tatuando nele os marcos multi-milirios da posse! Avante, Joo! Avante,

    Joana! Abaixo o pelourinho da Vira-bosta para nunca mais haver! Abaixo o Cel. Bernardo

    Diziam a trovejavam seus arcabuzes direita a esquerda e

    exclamavam ameaadoras:

    - Que ningum olhe para trs, seno se estrepa, como a mulher de

    Lot! Fogo e enxofre cairo sobre a terra, feita maldita pela corrupo e pelo

    desamor! A posse, a posse, a posse!

    Joana, ainda que empolgada com tao brilhantes discursos , no se

    apercebia bem do sentido das palavras dos Cavaleiros da Justia. Ficou meio

    vasqueira com aquela idia de posse e posse, mas seu pensamento voava mais rpido

    ainda que a doida tropelia para as esmeraldas libertadoras, a realizao do sonho do

  • sou amo e senhor, o mesmo sonho que embalara na febre escaldante, na tremedeira da

    tera, quantos daqueles flamantes abantesmas. Procurou espantar mincias

    inquietantes e concentrar-se no xito final da bandeira. Ah! que eplogo delirante

    antecipava! Assistir a magnfica cena do resgate de dvida na venda do Chico Santo,

    presenciar o gesto de Joo Sem Terra atirando na varanda da Casa d'vila punhados e

    punhados de pedras preciosas, quebrando-lhe os caixilhos com estilingadas de

    esmeraldas, ah! aquilo que seria recompensa para tanta lida e tanto esforo!

    Aquilo sim, seria uma gesta! A casa d*vila esmagada, destruda sob montes de

    esmeraldas, um dilvio Onrico, feito, enfim, realidade!

    Acicatada por tais pensamentos a alucinante cavalgada varava

    espaos e mais espaos, rompendo cho pra-cima e cho pra baixo.

    As bruxas se desdobravam num azfama esbaforido. Ao longo da carreira

    realizavam seminrios, encontros, concilibulos freqentes quando trocavam informaes,

    reformulavam clculos, montavam complicadas engenharias de frmulas, deslocando,

    velozes, o tacho das beberragens de um estremo ao outro do serto assombrado. Ao lado do

    Setestrelo penduraram um imenso cartaz eletrnico onde em pisca-piscas frenticos,

    nmeros, letras e smbolos hermticos expressavam, num explendor da racionalidade, as

    etapas vencidas, as lguas faltantes, a energia produzida pela besta, o consumo em

    besta-wats j empregados, azimutes, parmetros, a prova dos nove dos acertos, a

    convico na preciso do momento da ultrapassagem da fronteira bernardina, a triunfal

    entrada no Pas das Esmeraldas...

    Joo-Janjo, grogue mas embevecido, permanecia na f. Era preciso crer

    e isso Janjo fazia. Janjo acreditava! 0 fascnio dos nmeros em delrio levava a fora

    carismtica daquilo que se explica, por si mesmo. Como eram lindos! Que beleza imprimiam

    quelas frmulas mais belas porque misteriosas, mais convincentes quanto menos

    inteligveis! geis e rpidos moviam-se no imenso painel como seres vivos num aqurio.

    Era aquilo - Janjo no compreendia, mas sentia que era - que lhes emprestava o

    prestgio da verdade; aquela aparncia de coisa viva, a mexer-se, a ancarapitar-se, a

    perfilar-se, a arrumar se, a ordenar se, a fazer-se e a se refazer, a se combinar, a se

    multiplicar, a se eliminar, a se dividir, a se somar, como faz a vida com os homens, com

    ele, com o Cel. Bernardo,com o serto... Era isso! Parecia serem a vida, parecia que a

    continham e a explicavam. Parecia e era o bastante para ele, Janjo, e para todos os

  • janjes do Apiaj.

    Em meio as atribulaes da maratona, aquele foi um glorioso momento de

    reflexo e dele Janjo emergiu cheio de orgulho por se reconhecer membro da Confraria

    Universal dos Nmeros. Nela ela estava computado, era fator, ara varivel. Era! Fazia-se

    imperioso, por isso, que demonstras se por sinais exteriores, a alegria respeitosa por

    to grande graa recebida. Como no se pudesse por de joelhos no lombo galopante da

    besta ergueu os olhos humildes e tmidos para o painel eletrnico. Desaprumado em meio

    aos solavancos, tentou uma continncia, conseguiu o sinal da cruz e, aps alguma

    indeciso, arrematou muito sincrtico:

    - Sarav, Macunaima!

    Epa, epa! Esta ltima palavra provocou um rebolio na testa da

    coluna. A vanguarda empolvilhou-se com o sbito surgimento de algumas dzias de

    caraibas, desentocados de suas urnas funerrias am virtude de sua familiaridade com

    figuras como aquelas que povoaram a mente dos primitivos ocupantes da terra.

    Joana, tendo ouvido a saudao compreendeu que aquilo fora nova

    imprudncia praticada pelo sub-desenvolvimento mental de Janjo. Temeu pela harmonia

    das foras conjugadas na empreitada. Afinal, identificar aquela super-demnio doador-

    gozador e o painel eletrnico da bruxaria nrdica, altssima expresso da beneficncia

    racional a balsamizar de luz as trevas da analfabetolndia sertaneja, seria permitir-

    se interpretar que Janjo temeria existir um lado mau na coisa e isso no era

    compatvel com a f na dogmtica numerolgica ali gloriosamente reinante. Ou, o que

    representava perigo imediato, imaginar que aquilo no tinha seriedade, era obra do

    heroi-demnio s brincando de fazer de conta com os abestados daquelas brenhas! Alm

    do mais temia Joana que se estabelecesse alguma desavena entre os primitivos e os

    bandeirantes arcabuzeiros por questes da precedncia no que toca posse, to

    enfaticamente invocada por aqueles.

    Mas, no. Os seus temores, no momento, eram infundados. Os caraibas

    deixaram as divergncias nas urnas (funerrias), esqueceram a Confederao e muito

    liberais, muito ecumnicos, no puseram tempo em badalar campanrios repicando em

    louvor do mutiro, muito da acordo com as alquimias nrdicas, muito sensveis ao

    magnetismo de suas frmulas, muito aderentes aos novos mistrios dos novos pajs.

  • Dispostos ajuda avalizaram a bandeira prometendo, como faziam em recuadas luas, a

    idade do ouro que, em chegando, faria as coisas trabalharem por si para a felicidade

    da brugada.

    - Vamos Joana! Avante! Avante! Do outro lado da fronteira as enxadas

    por si ho de cavar e os "pnicos" ir s roas e trazer os mantimentos, tal como

    relatou nosso Irmo Cardin na gesta da terra e das gentes. Sera o paraso dos homens,

    irmos, pois que ser o governo das coisas, muito mais fcil que o governo daqueles,

    por motivos to bvios que dispensam explicao. S as coisas - as coisas e os

    assuntos - contaro! Tudo se organizar por si mesmo, tudo maravilhosamente ordenado

    ao bem comum. E, como no Reino das Coisas as leis do Reino so imutveis,

    inalterveis, irrevogveis, inderreogveis, inabrogveis, se dolar clareza que seus

    efeitos, tambm o so, uma vez que os fins participam da natureza dos meios. 0ra,

    sendo o fim ltimo das leis desse Reino, o bem estar de todos de maior clareza

    ainda que o bem estar-sinnimo de felicidade no anacrnico linguajar dos homens -

    ser necessariamente, imutvel, inaltervel, irrevogvel, inderrogvel e inabrogvel

    efeito das leis do Reino das Coisas. Donde se conclui que todos sero felizes, ainda

    que, por absurdo, no o queiram. Eis a a maravilha h tanto procurada: a felicidade

    compulsria! Contra-prestao devida pelos homens, e, executivamente cobrvel, ao

    governo das Coisas, pelos servios prestados! Ao longo do tempo to grands ser a

    felicidade, to ntimo o relacionamento entre as coisas a os homens que no mais se

    distinguiro, as coisas humanizadas e os homens coisificados! Por termos anunciado e

    prometido estas bem-aventuranas aos nossos povos, nosso irmo Cardin - antes citado

    - nos fez grave injustia ao nos apodar de ndias de ruim vida, isto , sujeitos de

    mau carter, vigaristas, nos dizeres de hoje. Que Tup o tenha, irmo, qua no

    obramos vinganas! Confiais, pois! Consultamos o colar de If que penduramos no

    Setestrelo ao lado do Painel e as nozes nos revelaram que a abundncia, a paz, o

    amor, esto quase-quase ao alcance de vossas mos! Mais um pouco e o sonho

    esmeraldino gotejar das estrelas como orvalho verde, man rebrotado cada manh at

    que a terra prometida desabroche em leite e mal e da boca-de-fome dos emigrantes de

    Portinari, escorram as delcias chupadas nos seios de Cana!

    - Trouxemos os Muiraquits de jade, verde-r, arrancadps s entranhas

  • lodosas da terra amaznica , polidos por femininas maos enluaradas, nesta noite

    mesma, para que realizeis o sonho da chegada!

    As bruxas, ouvindo o discurso e o anncio, avaliaram, num computador

    de bolso da ltima gerao, a validez, ou no, das falas das caraibas e a utilidade

    eventual dos elementos no especificamente racionais dos aportes trazidos por eles,

    particularmente aquela histria do Muiraquit, por isso que, quanto ao resto, estavam

    todos de pleno acordo, como logo depois se viu.

    Decidiram, por fim, que os Muiraquits no prejudicavam o

    planejamento da expedio; talvez at ajudassem por que ajudavam a alimentar, pelo

    menos, duas virtudes teologais de interesse, porque teis, na conjuntura: a f e a

    esperana!

    Da que coacharam num coro de batrquios:

    - Est convocado o Conselho de Newton! Nosso padrinho So Simo

    mandou publicar editais pra chamar as capacidades com urgncia urgentssima. Que

    venham, pois, todos os Master, os PHD disponveis, de abaixo e de acima da Linha do

    Equador! Vai-se formar a grande Pirmide das Competncias a bem mais de quarenta

    sculos de ineficcia dos governos dos homens a contemplaro, l de baixo, humildes,

    prostrados, cheios de compuno! Competncia para a eficcia, eis o que tornar

    evidentes as conspcuas tolices com que distraram seus cios, badalados cavalheiros

    helenistas, uns pagos, outros elevados s glrias dos altares, gastadores de tempo e

    esforo com inteis especulaes sabre arte da governar povos a coisas semelhantes. De

    nossas mos surgira a Cidade das Coisas, bela, espontnea, ordeira, sendo o que porque

    no poder deixar de ser, guardada e maravilhosamente ordenada pelas leis verdadeiramente

    libertadoras que no podendo ser mudadas, porque perfeitas, dispensam a todos os esforos

    de aperfeio-las, donde a Paz, a eterna paz das Coisas que os homens perturbam com a

    prida usana de suas rebeldias!

    Joao Sem Terra arfava de exausto e nimo aceso com aquele auxilio

    luminoso, bravo e inteligente. Parecia-lhe j to remoto o momento em que determinara a

    Joana, aos berros, lhe chamasse Coronel; parecia-lhe, agora, o ttulo, to murcho e

    mesquinho diante daquela verborragia de comcio da capital, daqueles ttulos que soavam

    aos seus ouvidos com tanta imponncia, convocados pelas bruxas; daqueles pomposos

  • arrazoados em que se emaranhavam os seus miolos, quo considerou de seu nico dever

    aguentar-se. Aguentar-se, desse no que desse! Se j no era de muito pensar melhor agora

    que tinha quem por ele pensasse. verdade, deveria confessar, que Joana vinha, em parte,

    fazendo isso por ele naquela empreitada, mas o raciocnio da besta era acessvel s suas

    insuficincias e, exposto na oportunidade em qua sobre ale o sortilgio trabalhava em

    sentido vertical, tornara-se compreensivo. Mas agora, quando estava reduzido a um ano de

    circo no picadeiro monstruoso do horizonte circular do feudo Bernardino, melhor mesmo era

    deixar a razo para aqueles discruseiros calculadores e ficar com a f que no lhe

    custava nem esforo nem pataca, com o que provada estava o acerto das decises das bruxas

    permitindo recebessem os Muirquits presenteados pelos pags.

    Na verdade no mais era chefe nem chefiado. Ia no rolo, embrulhado ou

    desembrulhado pela direita e pelo avesso mas certo da vitria final da Santa Causa.

    A besta Joana, j meio estropiada, galopava puxada pelas montarias dos

    Cavaleiros da Justia. Um suor espumoso abundava, sempre mais, em

    seus flancos am fontes copiosas...

    Ento aconteceu outro acontecimento que seria espantoso se fosse o

    primeiro daquela srie de espantos acontecidos a Joo e Joana.

    que, descendo em filetes que engrossavam em contacto com a terra, o

    suor da testa avoluma-se em crregos a logo em rios e em lagos e em mares que cresciam e

    cresciam e inundavam tudo! Eram sculos de suor que porejaram das carnes de milhes e

    agora minavam do couro da besta na desabalada corrida para as esmeraldas, na disparada

    confusa para a fronteira. Era o vmito dos eitos dos das senzalas e dos troncos e dos

    pores de navios condenados e das enxadas e das glebas a das derrubadas e dos longos

    esforos mordidos de sol, crestrados de vento...

    0 suor jorrando em catadupas ruidosas nos socaves das serras,

    remontava sobre campos e casas e gados e paiis mergulhando homens e coisas no silencio

    espantado dos afogados... 0 Painel Eletrnico pendurado no Setestrelo pipocava dados

    computados, planejando a corrida contra o tempo, contra as imprevistos, contra aquele

    suor danado... *

    A, pareceu a Joo que vozes estranhas encheram os ares insistentes e

    interrogativas, como as que povoaram o primeiro jardim brisa vespertina, depois da

  • queda. Elas invocavam Bernardo, quela hora bem refestelando na placidez da rede, na

    segurana dos muros da Vira-bosta; to altos que a mar de suor no lhe alcanava as

    seteiras, esgotando-se pelo fosso...

    - Bernardo! Bernardo! Onde te escondes Bernardo? 0 suor da besta Joana

    da terra clama a mim! Onde est tua irm em Francisco, o filho de Bernardone, nascido

    na velha Assis? Sers maldito, Bernardo, porque o suor da tua irm em Francisco foi

    tanto e tanto por obra da tua mo que a boca da terra no foi grande bastante para

    receb-lo!

    Pareceu, tambm, a Joo , que ao ver o mundareu submerso ameaando a sede

    da Vira-bosta o coronel respondia com voz apagada e mansa; A minha iniqidade muito

    grande para que eu merea perdo. Eis que tu hoje me expulsas desta terra e eu me

    esconderei da tua face e serei vagabundo e fugitivo na terra; portanto, todo que me

    achar me matar.

    Pareceu a Joo. Mas tanto que parecera, tanta logo achou que se enganara, que na verdade, ningum falara e ningum ouvira...

    A aurora, entretanto, anunciava-se em indecisas poeiras de luz distante.

    Sobre as vagas do suor lantejoulavam os primeiros refluxos sanguneos...

    As pernas de Joo iam-se enfraquecendo pouco a pouco e tremiam as

    imensas patas de Joana. Joo, desengonado, desarticuladim modo, notou que o ritmo

    do galope diminua.

    Que se passa, Joana? J no vejo os Cavaleiros! Onde esto os

    Cavaleiros, Joana? Fora, Joana! fronteira Joana! Ao Pas d a s E s m e r a l d a s ,

    Baratria. No desisto da Baratria, Joana! Fora Joana! Olha que por a vem os

    cabras da ViraBosta! E os caraibas com seu colar de If? E o Conselho de Newton? E a

    tal pirmide de competncias, onde esto, Joana?

    Joana levantou o focinho cheirando o ar.

    - No sei meu dono, no sei! Alguma coisa falhou, desafortunadamente. Este solo parece que chega mais cedo hoje. j no vejo o painel do Setestrelo. J no vejo o colar de If! Se duvidar o Curupira safado andou a desencaminhar as bruxas e com elas o Conselho. Va ver, v ver, Macunama fez o resto. Meu dono, foste imprudente naquela saudao bem o pressentiu o meu instinto... Alem disso esse suor espantoso que desidratou a histria enfraquece-me as foras, dificulta-me a marcha... Bem que ouvi o noitib, esse Cassandra do serto, a tecer orculos malditos para com eles cobrir os

    despojos da nossa Bandeira! Mas no lhe demos ouvidos, no ardor do nosso

  • entusiasmo... E agora? Ah! esse suor terrvel, esse suor terrvel

    Um lamento chora longo a rolar na longa voz do vento.

    Joana continuou: Nossa antes venturosa aventura, meu dono, ameaa transformar-se

    na desventura cruel de um pau-de-sebo... Se tal acontecer porm - no o permita a Calunga Iamanj - proponho que terminada essa herica mixrdia, entronizemos, frente do sua unidade habitacional na Vira-bosta, um pau-de-sebo como smbolo de nossa mal trapilhao esperanosa. Recrutaremos por ali mesmo algumas caboclas que sirvam do sacerdotizas encarregadas do culto a essa amarga ironia ldica, coisa da Cosme e Damio posta no esprito docemente infantil do nossa gente, gozadora rplica nacional do Ssifo helnico a empurrar aquele pedregulho pelas encostas do inferno. Contudo, para que tais memrias no desanimem as geraes futuras pendurremos uma nota de um cruzeiro no seu topo, incentivo a lembrar que sempre ser recomendvel a tentativa, apesar das dificuldades da escalada; E, afinal, que tudo vale a pena se a alma no pequena. Mais para ouvir-se do que pra ser ouvida, pensou alto:

    - Essa quantia estar odiviamente sujeita correo monetria a fim de que

    seja mantido o nvel de interesse...

    Enquanto assim dialogavam Joo e Joana os abantesmas fogosos a seus

    corcis diluiam-se, lentamente, na atmosfera. As feiticeiras expatriadas afligiam-soe

    no temor da luz, diluamse tambm. Realizaram, s pressas, um ltimo encontro, j

    meio desprotegidas de suas brumas e resolveram, em sigilo, fixar os Editais de

    Convocao das Competncias pelas cercas de todos os caminhos e dar no p ...

    0 sortilgio perdia fora espantado pelo calor do trpido. O

    Painel eletrnico comeou a embaralhar nmeros, smbolos, frmulas, parmetros,

    azimutes...

    Joana invocava:

    Valha-me So Jorge! Valhame os Encantados! Valha-me So Cristvo!

    Valha-me So Sebastio, inda de espero, inda te espero, Santo ou Rei...

    Joo-Janjo repetia:

    -Inda te espero, inda te espero, Santo ou Rei

    Caraibas e bandeirantes, evanescentes, espalhavam pelo ar,debilmente, a

    esperana joanina:

    - Inda te spero, inda te esporo, Santo ou Rei

    Cansao total tetanizava os msculos da basta. Trpega e

    arquejante Joana ao desmanchava na marcha agora desmembrada e bbada. Joo

  • misturava projetos a lembranas, futuro e passado, j sam os efeitos da bruxaria

    nrdica, sofrido e desmantelado, recuperava seus tamanhos, confuso na confuso das

    horas intermedirias, enquanto a besta, depositria de todas as esperanas na

    corrida s esmeraldas, retornava, frustrada e bem qua quadrpede, as trevas de sua

    irracionalidade.

    Um canto de galo pela terceira vez se fez ouvir, vindo de

    escondidos quintais ignorados, porm bblicos.

    E eles voltaram a ficar ss, Joo e Joana, renegados sumidos no

    silncio que restou, rebatendo, passo a passo, os velhos caminhos ntimos.

    0 serto reamanhecia.

    E ficou soc como ele s.

    Do graveto dum galho seco os Sem-fim soltou seu canto reticente e

    triste, voz da advertncia das lonjuras da terra

    Sem fim

    Sem fim

    Sem fim

    aquela horinha, Padre Zeca, vocao do lugar, orgulho de

    Galangpolis lia, entre pios de andorinhas igrejeiras e a embevecida e salvadora

    ignorncia de umas poucas fidelidades paroquianas, santas fidelidades absolvidssimas,

    vultos de longos vestidos a sapatos cambaios que manquitolaram madrugadores na

    refreascada tristeza do arraial, a Segunda Leitura da missa da manh.

    Padre Zeca - Leitura da Carta de So Paulo aos Tesalonicenses

    "Irmos! Quanto ao tempo o ao modo da vinda do Senhor, no h mais necessidade de vos

    escrever, pois sabeis muito bem que o dia do Senhor vir sem ser anunciado, como um

    ladro da noite ..."

    Na fazenda Vira-bosta, Bernardo, coronel, tambm madrugador, senhor

    de barao a cutelo daquela castelenia, apareceu, anunciandose ruidosamente, pelo

    pigarro de fumo, no Terreiro do Pao.

    Padre Zeca (na capela) prosseguia: " Quando disserem:

    Paz e segurana, exatamente ento que se abater, subitamente, sobre eles,

    a catstrofe

  • Bernardo (na Vira-bosta) caminhava do mos nas costas, estufando o peito com o ar da

    manh, bocejando forte, com liberdade da dono, tirando do corpo o bodum noturno da alcova

    e conseqncias.

    Padre Zeca (na capela): " Vos todos j sois filhos da luz e filhos do

    dia. Se no somos filhos da noite nem das travas no durmamos, pois, como os outros,

    mas vigiemos a temperana."

    Joo Som Terra (na Vira-bosta) caboclo do Apiaj, morador em terras

    do Cel. Bernardo, nas proximidades da venda do Chico Santo, acordava enganchando na

    besta Joana que cochilava paciente ao lado do alpendre da Casa Grande.

    Os ltimos vapores da "Toma o Tombo" enevoavam a mente e a viso do

    frangueiro. Mas, no que ouviu o pigarro do senhor, lesto escorregou da sela, matreiro

    a chinchar da besta ...

    Padre Zeca (na capela) j no Evangelho, ia adiante: "Sede puro como

    as pombas e espertos como as serpentes."

    Cel. Bernardo (na Vira-bosta), avistando Joo, aproximou-se falando

    a modo de condescendente cumprimento:

    - Saino cedo, Seu Joo?

    - verdade, Seu Coron. Hoje tem fra no Apiaj ... V lev

    uns frango, sim si. .

    Quando o coronel j ia meio longinho Joao esguelhou uma o olhadela

    por baixo da barriga da Joana pra cabrada espelhada por ali. Vendo que ningum lhe

    prestava ateno, desconfiado e duvidoso, deu uma volta am torno da besta e, depois de

    ficar certo da qua a cauda do quadrpede estava bam presa no devido lugar, resmungou

    pensativo:

    - Esconjuro! Pelo Signo Salomo! Milh vend essa besta que num

    quero increnca pro meu lado ...

    Cansado, sentou-se sob o p de caj-manga, picando um fuminho de

    rolo, meditando aquela noite esquisita A fumaa, da a pouco, azulava sobre sua

    cabea, subindo em rodelas coleantes que se desfaziam entre as folhas feitas de ouro

    pelo outono, pois era maro, ao findar das chuvas ..

    Germinava -lhe no esprito a ideia de aumentar o preo dos frangos.