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Setor Ciências Humanas, Letras e Artes - SCHLA
Departamento de História - DeHis
João Vicente de Medeiros Publio Dias
A CANÇÃO DE DIGENIS AKRITAS E SUA RELAÇÃO COM OS ASPECTOS SÓCIO-CULTURAIS DA
ARISTOCRACIA MILITAR BIZANTINA(SÉCULOS IX A XII): UM ESTUDO DA VERSÃO ESCORIAL
CURITIBA 2006
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João Vicente de Medeiros Publio Dias
A CANÇÃO DE DIGENIS AKRITAS E SUA RELAÇÃO COM OS ASPECTOS SÓCIO-CULTURAIS DA
ARISTOCRACIA MILITAR BIZANTINA(SÉCULOS IX A XII): UM ESTUDO DA VERSÃO ESCORIAL
Trabalho monográfico de conclusão de curso apresentado ao Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Dep. De História da Universidade Federal do Paraná. Prof. Orientador: Prof.º Dr. Renan Frighetto
CURITIBA 2006
iii
AGRADECIMENTOS
Para a conclusão desse trabalho quero agradecer, primeiramente, ao Prof.º Renan Frighetto,
que, com muita paciência e disponibilidade, orientou o desenvolvimento trabalho, como
também o agradeço pelos muitos e úteis conselhos que ele tem me dado desde que é meu
orientador. Também agradeço ao Prof. Diego Melo, de Santiago do Chile, por ter me
fornecido a fonte primária utilizada nesse trabalho. E igualmente sou grato a lista de e-mail de
discussões sobre o Império Bizantino, um grupo de pessoas que, nesses últimos anos, me
ajudaram bastante, enriquecendo meu conhecimento sobre a história desse Império.
Agradeço também meus amigos por, não somente terem me ajudado, como também por
algumas vezes terem me "atrapalhado", pois souberam, nas horas mais certas, me tirar do
trabalho para os necessários momentos de descontração.
E, por fim, quero agradecer minha família por todo apoio e interesse que demonstraram por
minha pesquisa e por esse trabalho monográfico. E, especialmente, agradeço meu pai, que foi,
além de meu maior apoiador, a que foi um dos meus inspiradores para eu me interessar na
vida acadêmica, pois, sendo também um acadêmico, desde muito jovem observo a admiração
e respeito que as pessoas, alunos e colegas professores, de sua área têm por ele.
iv
RESUMO
A CANÇÃO DE DIGENIS AKRITAS E SUA RELAÇÃO COM OS ASPECTOS SÓCIO-CULTURAIS DA
ARISTOCRACIA MILITAR BIZANTINA(SÉCULOS IX A XII): UM ESTUDO DA VERSÃO ESCORIAL.
João Vicente de Medeiros Publio Dias Orientador Prof.º Dr. Renan Frighetto
Esse trabalho tem como objetivo analisar alguns aspectos sociais e culturais da aristocracia militar bizantina através do Poema de Digenis Akritas: versão Escorial. O recorte temporal do trabalho está situado entre os séculos IX, quando tal elite começa a dar seus primeiros ares de existência, até o século XII, o auge de seu poder. Iremos analisar, especialmente, a parte dessa aristocracia provenientes da região sul-oriental da Anatólia. Região esta que fazia limites com o mundo árabe, territórios, que durante muito tempo, foram as terras dos akritoi, guerreiros de fronteira bizantino que na verdade eram a real autoridade e poder nessas regiões distantes, as quais a administração imperial de Constantinopla não conseguia atingir. Apesar de existirem muitas versões do Poema de Digenis Akritas, alguns critérios foram levados em conta para a escolha da versão Escorial para ser trabalhada. Ela é nomeada dessa forma porque se encontra na biblioteca do palácio-mosteiro de Escorial, na Espanha. O primeiro critério utilizado foi a antiguidade do documento, pois fora a versão Escorial, que é do século XV, e a versão Grotaferrata, que é do século XIV, todas as outras são datadas como sendo do século XVIII e adiante. E dentre essas duas versões mais antigas, a Escorial foi escolhida porque o texto em suas estruturas gramáticas remonta aa um grego do século XII, o que prova que o documento é uma provável copia de algum manuscrito mais antigo. Mas mesmo assim, devido a sua riqueza de eventos e detalhes únicos, a versão Grotaferrata é utilizada nesse trabalho como fonte auxiliar. Assim, analisamos palavras, ações, comportamentos e episódios dos personagens do poema para depois fazermos um paralelo com episódios envolvendo personagens e eventos históricos reais da aristocracia militar bizantina. E vemos como a ficção e a realidade se assemelham e se diferenciam. Dessa forma, são analisadas as questões encontradas no poema referentes ao poder imperial, a guerra, as relações de gênero e de parentesco, e como ele se aproxima da realidade seja pela forma de um realismo literário ou pela apresentação de modelos de comportamento. Para, assim, vermos que a Poema de Digenis Akritas reflete uma visão-de-mundo aristocrática, a qual influenciará os rumos que o Império tomará a partir de 1081, quando a aristocracia bizantina subirá ao poder imperial, instaurando uma dinastia proveniente de seus círculos: os Comnenos(1081-1185).
Palavras-chave: Império Bizantino, Digenes Akritas, aristocracia, guerra, vida privada, cultura.
v
SUMÁRIO
1.CAPITULO I:INTRODUÇÃO.....................................................................................................01
1.1. LINHAGENS ARISTOCRÁTICAS BIZANTINAS, ESTUDO DE TRÊS CASOS: DUKAS,
LEKAPENOS, E PHOKAS................................................................................................02
1.2. RAZÕES DE ASCENSÃO DA ARISTOCRACIA BIZANTINA.........................................05
1.3. FORMAÇÃO DE UMA IDENTIDADE ARISTOCRÁTICA..............................................08
2.CAPÍTULO II: DESCRIÇÃO DAS FONTES...............................................................................09
3.CAPÍTULO III: DESENVOLVIMENTO......................................................................................13
3.1. DA CAPITAL A PROVÍNCIA....................................................................................13
3.2. O ENCONTRO ENTRE O DIGENES AKRITAS E O IMPERADOR: UMA ANÁLISE DE
UMA RELAÇÃO (VERSÃO GROTAFERRATA)..................................................................15
3.3. DIGENES E A GUERRA............................................................................................17
3.4. A VIDA PRIVADA NO POEMA DE DIGENES AKRITAS.............................................24
4.CAPÍTULO IV: CONCLUSÃO..................................................................................................32
5. FONTES E BIBLIOGRAFIA UTILIZADA...................................................................................35
vi
CAPITULO I
INTRODUÇÃO
Nos séculos XI e XII surge no Império Bizantino um gênero literário que difere muito do
resto da produção cultural produzida nesse Império1.. Um gênero totalmente original,
composto de uma série de poemas sobre proezas de heróis na guerra e no amor, tendo como
cenário a fronteira oriental de Bizâncio com o mundo islâmico. Estilo literário chamado
atualmente por estudiosos de “canções akriticas”, pois seus heróis eram os akritai, guerreiros
da fronteira (akritas vem do termo grego akras, que quer dizer fronteira), que tinham como
objetivo guardar e vigiar os limites bizantinos. Os akritai são descritos por Steven Runciman
como:
(...) homens que passavam a vida atacando terras de inimigos ou repelindo investidas destes. Eram
homens sem lei, independentes, que repudiavam qualquer tentativa de controle por parte do governo,
recusando-se a pagar impostos, esperando, isto sim, ser recompensados por seus serviços. Aliciavam
seus seguidores entre aventureiros de toda sorte, pois quase que não havia vida organizada ou coesão
racial naquelas regiões selvagens, a não ser onde os armênios haviam se estabelecido e mantinham suas
tradições. Os conflitos eram contínuos, não importando se os governos bizantinos e árabes estivessem
oficialmente em paz; mas os barões das fronteiras não eram hostis a seus rivais do outro lado (da
fronteira), que tinham um tipo de vida semelhante. Os senhores de fronteira muçulmanos eram talvez
um pouco mais fanáticos por sua fé, mas esse fanatismo não era tão grande a ponto de impedir as
relações, até mesmo casamentos mistos.(...).
O esquema rompeu-se por um período, devido ao declínio do Califado e um novo espírito agressivo de
Bizâncio. A partir de meados do século X, as forças imperiais reconquistaram grandes áreas de terras
fronteiriças.(...) Sua defesa poderia ser organizada com funcionários de Constantinopla estacionados em
Antioquia ou em outra cidade recapturada. Os antigos barões de fronteira tornaram-se indesejáveis e,
para compensarem, investiram riquezas auferidas nas recentes campanhas em terras por toda Anatólia.
Porém, permaneceram orgulhosos e insubordinados, cercando-se de tropas de posseiros, em grande
parte arregimentados em aldeias livre, que haviam caído sob seu controle, normalmente de forma ilegal.
Formaram assim a base da aristocracia fundiária, cujo poder abalou o governo imperial em meados do
século XI.2
1 CASTILLO, Miguel. Poesia Heróica Bizantina: Epopeya de Digenis Akritas, cantares de Armuris y
Andronico. Santiago: Centro de Estudos Neohelenicos e Bizantinos. 1994. pp. 41-61. 2RUNCIMAN, Steven. 1453: A queda de Constantinopla. Tradução de Laura Rumchinsky. Imago: Rio de Janeiro. 2002. pp.31-32.
2
Desconsiderando alguns exageros à parte, por uma interpretação literal demais das fontes, o
Professor Runciman, nesse trecho, descreve, de uma forma sucinta e bastante objetiva, o
trajeto que grande parte dessa aristocracia fundiária e militar fez para atingir o nível de poder
a que ela chegou, no final do século XI, quando finalmente toma o poder de vez para si, em
1081, através de um golpe orquestrado por uma aliança de linhagens aristocráticas. Essa
aliança era encabeçada por dois irmãos, Aleixo Comnenos, que é coroado basileu, i.e.
imperador bizantino e Isaac Comnenos, que se mantêm como figura poderosa durante todo
reinado do irmão (1081-1118)3. Golpe esse que funda a Dinastia dos Comnenos (1081-1185)
e fortalece as bases de um Império patrimonial e aristocrático, que tem o mérito de
reorganizar o governo imperial e dar um último suspiro de grandeza ao Império Bizantino
antes da catástrofe foi o ano de 1204, quando a 4ª Cruzada desvia seus rumos e saqueia
Constantinopla.
1.1. LINHAGENS ARISTOCRÁTICAS BIZANTINAS, ESTUDO DE TRÊS CASOS: DUKAS,
LEKAPENOS, E PHOKAS
Se analisarmos a trajetória de algumas dessas famílias em particular, veremos ilustrações do
processo que Runciman, como já foi dito, descreve tão sucinta e objetivamente.
Nesse sentido analisamos exemplo de três dessas famílias: os Dukas, os Lekapenos e os
Phokas4.
As primeiras referências à linhagem dos Dukas se encontram primeiramente nas fontes com o
indivíduo de Andronikos Dukas. O primeiro nome é bastante simbólico, pois associa os
conceitos “virilidade” (andros) e “vitória” (nikos), junto com o sobrenome “Dukas”, que era
um título e passou a ser um sobrenome familiar. Durante o reino de Leão VI (886-912),
Andronikos Dukas participa de campanhas militares contra os árabes e possui cargos
importantes no governo de themas5 anatólicos. Posteriormente, Andronikos é acusado de
traição ao basileu, foge do Império e se asila em Bagdá.
Com a morte do Imperador em 913, Constantino, o filho de Andronikos, que era o
Domestikos das Scholai, comandante das tropas centrais do Império que estavam estacionadas 3 Mais sobre a subida de poder e o reino do primeiro Comneno ver COMNENA, Ana. Alexiada Tradução de E.R.A. Sewters. London: Penguin, 1969 4 PLATAGEAN,E. et al. Historia de Bizâncio. Critica: Barcelona. 2001. pp.133-135. 5 Circunscrições militares e administrativas em que o Império Bizantino estava dividido na época. Mais informações sobre o sistema thematico ver: HALDON, John. Warfare, State and Society in the Byzantine
World:565-1204. Londres: Routledge. 1999.pp.67-106
3
em Constantinopla ou em seus arredores, tenta subir ao poder. Nessa tentativa, Constantino
tem um de seus filhos morto e um outro é castrado. Assim, os Dukas saem da cena pública
bizantina e se mantêm afastados até a metade do século XI, quando alguns membros dessa
família se tornam imperadores.
Nesse caso, através da falha dessa linhagem a chegar ao poder vemos uma certa imaturidade
dessa elite em ter planos políticos mais ambiciosos. Porém na metade do século X, verifica-se
um início de maturidade na ascensão e queda das outras duas famílias citadas, os Lekapenos e
os Phokas.
Os Lekapenos aparecem na documentação pela primeira vez no século IX, quando Teófilato
Abastaktos, que em grego quer dizer “invencível”, supostamente salva a vida do Imperador
Basílio I (867-886) em uma batalha. Episódio verdadeiro ou não, vemos que esse Teofilato se
distingue na profissão militar e é de origem armênia.
Quem prossegue com a vertiginosa ascensão dessa família é o filho de Teofilato, Romano.
Esse que é um soldado nato e tem a guerra como modo de vida, também possui grande
habilidade na política. Toma o jovem herdeiro da Dinastia Macedônia, Constantino VII, como
protegido, casando-o com sua filha, para posteriormente se tornar o co-imperador. Porém,
para dar sustentabilidade ao seu poder, Romano I cria alianças através, principalmente, de
matrimônios com outras casas aristocráticas, como os Argiros6. Romano I Lekapenos se
mantêm no trono imperial por mais de vinte anos (920-944), quando por fim é afastado do
poder por seus próprios filhos e enviado à um mosteiro. Porém, estes são logo afastados do
poder pelo imperador representante da dinastia, Constantino VII, agora adulto e capaz de
exercer o poder imperial por si mesmo.
É interessante apontar aqui a importância dos armênios e sua influência na sociedade
bizantina, principalmente tratando-se da organização militar e composição do exército. A
Armênia dos séculos IX à XI ultrapassava muito do espaço geográfico que a atual Armênia
ocupa. Nessa época essa “Grande Armênia” se estendia por uma enorme parte da fronteira
bizantina com o mundo muçulmano, como antes ocupava a fronteira entre o Império Romano
e a Pérsia. Portanto, muito da cultura e da sociedade armênia estavam profundamente
marcadas por essa divisão. Havia a parte da Armênia que estava sob influência de Bizâncio, a
linhagem aristocrática dos Bagratidas. E havia também os que estavam sob influência do
6 PLATAGEAN,E. et al. Op.cit . p.134.
4
Califado, os Artsrunidas, outra família aristocrática. E ainda mais alguns outros emirados de
origem mestiça armênia e árabe, que se revelaram um difícil obstáculo na reconquista
bizantina dos séculos X e XI7.
Na verdade a Armênia, em si, era formada por um grupo de famílias aristocráticas altamente
militarizadas, pois somente em volta do Lago Van havia mais de 70 fortificações, além de
outras várias vilas e monastérios, também fortificados8.
Apesar de ter vizinhos tão poderosos, os armênios, como Runciman diz na citação inicial,
sempre mantiveram uma certa unidade e independência. Se não política, sempre cultural e
religiosa. A Igreja Armênia Independente, fundada no século IV, sempre representou um elo
que ligava todos os armênios cristãos9, mesmo que estes estivessem em desacordo,
geralmente político.
A Armênia foi uma fonte importantíssima de recursos humanos, principalmente fornecendo
guerreiros para o Império Bizantino. Foram trazidos um grande número de armênios para
repovoar a região de Melitene, após sua conquista, em meados do século X, assim como
grande parte dos akritai eram armênios, provenientes dessas famílias guerreiras que se
bandearam para o lado dos bizantinos10.
Por outro lado, os armênios viam Bizâncio como uma possibilidade de chegar a riqueza e ter
projeção social. E isso aconteceu em muitos casos: os séculos IX e X estão repletos de casos
de indivíduos de origem armênia que conseguiram ascender socialmente, principalmente na
atividade guerreira11. Generais como João Curcuas, Romano Lekapenos e João Tzimiskes são
exemplos disso, sendo que os dois últimos chegaram a ocupar o trono imperial.
Chegamos, então, aos Phokas, estirpe que remonta desde o reinado de Teófilo (829-842),
quando seu fundador de nome Phokas ascende na hierarquia militar tomando o posto de
tourmarcha, o comandante do regimento mais importante de um thema. O filho deste,
Nicéforo Phokas, que já é aí um sobrenome familiar, se torna um general brilhante e tem
sucessos notáveis na frente italiana. Nas gerações seguintes, o poder da linhagem Phokas só
tende a crescer mais e mais, principalmente através de alianças com outras famílias
aristocráticas ascendentes, como os Maleinos e os Skleros. E encontra nos Lekapenos
7 NICOLLE, David. Romano-Byzantine Armies 4th-9th Centuries. Londres: Osprey. 1992.p.33-34 8 Ibid. p.34 9 ibid. P.33 10 PLATAGEAN,E. et al. Op.cit . p.145. 11 HALDOM, John. Op.cit. p.273.
5
poderosos adversários. Porém, na segunda metade do século X, com a queda dos Lekapenos,
os Phokas se tornam a família mais poderosa do Império, tendo sob seu comando as
principais tropas imperiais e também nomeando um co-imperador, Nicéforo Phokas (963-
969).
1.2. RAZÕES DE ASCENSÃO DA ARISTOCRACIA BIZANTINA
Depois de expostos esses três casos, dos Dukas, dos Lekapenos e dos Phokas, podemos ver
uma linha comum na história dessas famílias: a origem obscura de seus fundadores, que se
destacam através da atividade militar. Como assim o fazem seus descendentes, que utilizam
os altos postos da hierarquia militar e alianças, por meio de casamentos com outras famílias
da mesma origem, para se lançarem na política. No entanto, vemos que no século X, nos
casos em que os membros dessas linhagens se sagravam imperadores, o faziam na condição
de “protetores” dos imperadores da Dinastia Macedônia (867-1054), que era extremamente
popular e bem legitimada, sendo qualquer tentativa de retirá-los do poder, arriscada e incerta.
O que acontecia era que alguns generais provindos de uma dessas famílias tomam o poder
imperial adotando o discurso de protetores da dinastia.
A aristocracia militar teve que esperar a queda dos Macedônios e um período de caos político
para se sentir segura o suficiente para tomar o poder em 1081, com a já citada ascensão dos
Comnenos. As razões do surgimento dessa aristocracia se deveram a um processo muito mais
complexo, com implicações políticas, sociais, econômicas e militares.
São várias as razões do surgimento e da supremacia alcançada por essa nova elite guerreira e
possuidora de terras. A primeira que deve ser apontada, pois se relaciona com a origem de
cada uma dessas linhagens citadas, é a significativa mobilidade social existente no Império
Bizantino desde então. Mobilidade essa que fazia pessoas de origens mais remotas ou
simplórias alcançarem altas posições de poder e prestígio na sociedade bizantina. O já
mencionado Imperador Basílio I, fundador da Dinastia Macedônia, é originário de uma
família de simplórios camponeses macedônios. Ele vem tentar a sorte em Constantinopla,
assim como milhares de outros jovens migrantes como ele que iam à capital em busca de
trabalhos e chances que só a capital imperial poderia lhes proporcionar. Rapidamente, por sua
habilidade política e inteligência, Basílio é aceito na corte imperial, primeiro como cavalariço,
depois como amante de uma rica viúva e ainda se tornaria o favorito do imperador Miguel III
(842-867), para, por fim, assassiná-lo.
6
No caso estudado, da elite fundiária bizantina, seu surgimento também se deve a mobilidade
social dentro de Bizâncio, porém os meios utilizados para isso eram as forças armadas,
exército ou a marinha. No século IX já era possível notar que grande parte dos postos mais
altos da hierarquia militar bizantina era ocupada por indivíduos provenientes de uma elite
provincial e proprietárias de terra. No entanto, esses altos postos não eram monopólio desse
extrato da sociedade bizantina. O alto oficialato também era possível de ser alcançado por
mérito, isto é, bons serviços no ofício militar e também por contatos interessantes. E, como
nos casos em que já observamos, era essa “meritocracia” que alçava indivíduos de simples
origens para os mais altos postos do Império, iniciando assim grandes patrimônios e linhagens
ligadas ao ofício das armas, pois seus descendentes seguiam a tradição dos seus ancestrais e
se enveredavam na carreira militar12.
Porém, no século X, a situação começa a mudar. Os postos mais altos do exército (komes,
stratego e domestikos) se tornavam cada vez mais exclusivos dessa elite fundiária e militar,
pois eles tinham certas vantagens que faziam deles candidatos muito mais fortes para os mais
altos postos do exército. Eles tinham a atividade militar como tradição familiar, educação
formal (que apesar de não ser uma prioridade como na vida monástica ou carreira
administrativa, era sim um facilitador). Possuíam recursos que possibilitavam não somente
uma boa equipagem de si mesmos, como de outros soldados mais pobres, algumas vezes
criando uma tropa pessoal de clientes. O status familiar fazia desses indivíduos figuras
populares no meio da soldadesca, que preferia muito mais um oficial de sua região do que um
enviado desconhecido da capital13.
Nessa época, inicia-se uma idéia nesse segmento da sociedade bizantina, de um auto-
reconhecimento, de que esse grupo de famílias e indivíduos formava um estrato social
diferenciado do resto, isto é, uma consciência aristocrática. Portanto, a partir daí, este grupo
começa a ficar cada vez mais fechado e exclusivo. Assim, os mais altos postos da hierarquia
se tornam, gradativamente, privilégio dos membros dessa aristocracia, seus parentes e sua
clientela. Apesar de que, mesmo nos tempos em que essa elite estava no auge do seu poder
(século XII), a mobilidade social continua existindo no baixo e médio oficialato do exército.
12 Ibid. p.271-272 13 Ibid. p.272.
7
Entretanto, vemos casos, poucos, de indivíduos de origem modesta chegando ao alto da
hierarquia14.
Ressaltamos, assim, que o alto status dessa aristocracia era mantido com suas grandes
propriedades espalhadas por todas as províncias através do Império Bizantino, principalmente
na região sul e oriental da Anatólia. Terras adquiridas pelo enriquecimento, principalmente
através da profissão das armas, resultando numa alta concentração de terras na mão dessa
elite.
Esse processo se tem registro no Império Bizantino desde os seus primórdios, porém no
século IX se torna um assunto preocupante para o governo imperial15, pois os latifundiários
aproveitavam crises como guerras, secas, invernos excessivamente rigorosos, para se
apropriarem das terras das aldeias de camponeses ou de pequenos produtores, que estavam
muito mais expostos a estas intempéries do que os grandes proprietários. Em função disso, o
governo imperial publicou uma série de novellas, editos imperiais com força de lei, ao longo
do século X, que limitavam e até mesmo proibiam os latifundiários comprarem terras de
pequenos proprietários16. Essa preocupação dos imperadores, de proteger os pequenos
proprietários, ia além da idéia philantropia, muito forte durante toda história do Império. A
comunidade aldeã e a pequena propriedade eram as bases que sustentavam o exército
themático, já que o direito de propriedade e uso da terra acarretava a obrigação do serviço
militar. Assim, toda a organização do estado bizantino dependia da existência dos pequenos
proprietários, já que estes eram responsáveis por uma parte massiva da arrecadação de
impostos do Império. Portanto não vemos surpresa que os imperadores que mais lutaram
contra a concentração de terras tenham sido os mais militaristas, como Romano I Lekapeno,
Nicéforo II Phokas e Basílio II.
A situação se complica ainda mais quando observamos que ao mesmo tempo em que
combatia a concentração de terras, o governo imperial necessitava cada vez mais do apoio
dessa mesma aristocracia, concentradora de terras, pois era de lá que saiam os oficiais que
comandavam as forças armadas bizantinas, vitoriosas na época17.
Entretanto esse processo de concentração de terras era uma tendência no Império, já que ,com
a morte de Basílio II, em 1025, a política fundiária foi abandonada e os pequenos
14 Ibid. p.274 15 DIEHL, Charles. Grandes problemas da história bizantina. São Paulo: Ed. das Américas, 1961. p.130. 16 PLATAGEAN,E. et al. Op.cit . pp.160-161. 17 Ibid. p.136
8
proprietários ficaram a mercê dos grandes. Isso resultou no fim do exército thematico e na
desorganização total do Império. A batalha de Manzikert, onde aconteceu a derrota que
iniciou o fim do poder bizantino sob a Anatólia, em 1071, foi um reflexo disso, pois o
exército que o Imperador Romano III Diógenes pôs em campanha era composto
majoritariamente de mercenários de variadas origens e a parte das forças que tinham sido
chamadas dos themas estavam mal-treinadas, mal-equipadas e indisciplinadas18. Isso
demonstra o reflexo claro do descaso do governo da capital em relação à política agrária nos
últimos 50 anos.
1.3. FORMAÇÃO DE UMA IDENTIDADE ARISTOCRÁTICA.
Voltando à questão da formação e conscientização dessa elite como uma “aristocracia”, torna
se interessante observar que, para isso, se faz necessário a construção de uma identidade
coletiva, que deve ser formada de valores, condutas e moral, que condigam com as
características e papel social desse estrato da sociedade. Podemos encontrar esses valores em
variados textos e documentos produzidos por indivíduos provenientes dessa elite aristocrática.
E nesse ponto voltamos ao estilo literário descrito no início desse texto: as canções akríticas e
seus heróis, que têm nas várias versões do Poema de Digenis Akritas, os seus principais
representantes.
O Poema de Digenis Akritas é importante no estudo dessa aristocracia no sentido de que,
nessa obra literária, se expressa toda uma cultura que está associada a esse estrato da
sociedade bizantina, que abrange códigos de condutas, costumes, sociabilidades, valores, que
foram reunidos na figura de um só personagem: Basileios Digenes Akritas. Esse herói é o
modelo de tudo que essa elite militarizada e aristocrática acreditava e defendia, como a
tradição militar, honra familiar, independência em relação a poderes estabelecidos, seja de
Bagdá ou de Constantinopla, e um sentimento claro de superioridade. Através desse
personagem altamente idealizado analisaremos, detalhadamente cada um desses pontos e
assim teremos uma ampla visão da cultura aristocrática da qual esse herói é exemplo e
modelo.
18 HEATH. Ian. Byzantine Armies 886-1118. Londres: Osprey. p.24.
9
CAPÍTULO II
DESCRIÇÃO DAS FONTES
Existem variadas versões do Poema de Digenis Akritas e cada versão tem características
diferentes e únicas, como a forma que foi escrita, pois grande parte foi escrita em versos e
uma versão em prosa, a língua utilizada, como os vários tipos de grego e algumas versões em
eslavo antigo. Inclusive a trama em si difere na forma que foi escrita em cada uma das
versões, assim como cada versão apresenta alguns episódios exclusivos.
Porém as principais versões são19:
- A de Trebizonda(T). Datado do século XVII e composto de 3.180 versos divididos em
10 cantos. Foi descoberto por S. Ioanidis em 1868, e publicado em Paris em 1875.
- A de Oxford (O). Uma das poucas versões que foram assinadas e datadas pelo próprio
copista. Inácio Petridis em 1670. Agora mantido nos arquivos da Universidade de
Oxford, ele é composto de 3.094 versos distribuídos em 8 cantos. Foi publicado pela
primeira vez em Paris em 1880, por Spiridion Lambros.
- A de Andros (A). Descoberto em 1878 por Pletziotis na localidade de Andros. É um
manuscrito do século XVII e possui num total de 4.778 versos distribuídos em 10
cantos. Então publicado por A. Miriadakis em 1881.
- A de Grotaferrata ou Kriptoferris(G). Essa versão está em um documento manuscrito
do século XIV e foi descoberto em 1879 por G. Muller, encontrado no mosteiro
italiano de rito greco-ortodoxo de Grotaferrata (it.) ou Kriptoferris (gr.). Escrito em
grego arcaizante, consiste de 3749 versos divididos em 8 livros
- A de Andros em Prosa(P). Outra dos raros casos que o manuscrito foi assinado e
datado pelo copista. Seu nome é Meletios Vlatós, da localidade de Quios e datado de
1632. Outra característica única dessa versão que ao contrário de todas as outras
versões já descritas, o texto dessa está em forma de prosa, não em verso.
19 CASTILLO, Miguel. Op. Cit. pp 41-43
10
- Ainda há as versões russas, que datam entre os séculos XVI e XVIII. Escritos em
eslavo antigo e suas narrativas se assemelham em diferentes graus com as dos textos
gregos.
E, por fim a de Escorial(E), que é o texto que será estudado nesse trabalho. É um manuscrito
datado como sendo do século XV, descoberto por Karl Krumbacher em 1904. E está
arquivado na Biblioteca do Escorial na Espanha. É curto, comparado a outras versões, possui
num total de 1867 versos dividido em 6 cantos-capítulos. Foi publicado pela primeira vez em
1912, e posteriormente em 1941 e 1971.
Já a edição utilizada nesse trabalho é uma tradução para o espanhol por Miguel Castillo
Didier20. O mesmo volume possui também, mais duas outras canções heróicas bizantinas, as
Canções de Armuris e de Andrônico, que poderão ser utilizadas como fontes de apoio.
Apesar de sua riqueza, há alguns problemas no texto Escorial. Falta o início da trama, a
estruturação do poema é truncada e há alguns erros ortográficos, causados provavelmente por
uma certa inaptidão do copista. Adicionando o fato que ele tenta “atualizar” alguns termos
antigos, as vezes sem muita precisão. Características que fazem o texto ser de compreensão
um pouco complicada21.
Escrito em um grego popular misto, pois, apesar de que no geral a sua linguagem é um grego
demótico, em alguns pontos vemos alguns classicismos. Esse costume era característico da
tradição escrita bizantina entre os séculos XII e XIII22. Por isso, alguns estudiosos, como R.
Beaton, acreditam que a versão E, como também a versão G, tenha sua origem em comum em
uma hipotética “Versão Original” (VO), que dataria dos séculos XI e XII, porém, isso é só
uma hipótese23.
Independente disso, é certo que Digenes Akritas e sua história nasceu em poemas e canções
curtas, compostas durante algum momento do século X, que narravam variados episódios da
vida desse herói, transmitidos até então de forma oral. E em algum momento, no século XI,
ou mais provavelmente no XII, algum compilador as selecionou, a puseram em uma ordem e
20 EL POEMA de Digenis Akritas. (manuscrito Escorial). Tradução Miguel Castillo Didier .In: CASTILLO, Miguel. Poesia Heróica Bizantina: Epopeya de Digenis Akritas, cantares de Armuris y Andronico. Santiago: Centro de Estudos Neohelenicos e Bizantinos. 1994. 21 CASTILLO, Miguel. Op. Cit.pp.53-54 22 Ibid.p.54 23 Ibid. Pp.47-48.
11
criou a primeira versão escrita do poema, a primeira versão do “Poema de Digenes Akritas” 24. Esse estilo de curtos poemas que deram origem ao poema de Digenes Akritas até hoje
sobrevive na Grécia e em Chipre, as tragoudia.
Embora haja diferenças entre as versões, a trama segue uma linha geral. O herói, Basílio,
nasce do casamento entre um emir árabe convertido ao cristianismo com uma nobre “romana”
(leia-se bizantina), por isso o epíteto “Digenis”, que em grego significa “duas origens”. Pelas
suas façanhas nas fronteiras bizantinas, ele também é “Akritas”.
Existe também toda uma documentação paralela que registra e comprova a antiguidade do
poema. O exemplo mais importante é encontrado nos poemas de Ptochoprodromos (séc.XII).
Esse que elogia o Imperador Manuel Comneno (1143-1180) chamando-o de “Novo Akritas”.
E em outro poema, o mesmo autor pede, em um momento difícil, que se ache “outro
Akritas”25. O que mostra que esse herói já possuía alguma popularidade nas cortes imperiais
bizantinas do século XII. Fama essa decorrente do processo histórico já mencionado
anteriormente de ascensão da elite provincial entre os séculos X e XII, que trouxe muito da
ideologia e valores da província e da fronteira para a capital. E nesse processo a lenda de
Digenes Akritas é trazida para o ambiente urbano e cortesão.
E nesse “intercâmbio”, essa ideologia e cultura provincianas se adaptam e mudam para ser
aceita na capital. Esse processo encontra seu auge nos tempos dos Comnenos, que se
aproveitaram dessa cultura mixta para servir de base ideológica de seu poder26. Assim
entendemos o elogio que Prodromos, um poeta cortesão representante do mundo urbano
bizantino, faz ao Imperador, utilizando as virtudes do herói Digenes Akritas. Esse que devia
ser uma figura muito popular já fazia algum tempo nas províncias asiáticas bizantinas, de
onde vinha a aristocracia que nesse momento dominava a corte imperial em Constantinopla. E
associar o Imperador com esse herói tão caro a essa elite foi uma sutil e eficaz jogada política.
Outro interessante exemplo é o caso de um autor flamengo que tem seus os versos datados de
1270. O qual, dentre vários heróis, lembra de Digenis Akritas por suas conquistas amorosas.27
Assim vemos que se o personagem em questão já tinha uma introdução no ocidente europeu
no século XIII, é possível acreditar que a Canção de Digenis Akritas tinha sido criada e 24 Ibid.p.64. 25 CASTILLO, Miguel. Op. Cit. pp 51-2. 26 HALDOM, John. Op.cit. p.32. 27 CASTILLO, Miguel. Op. Cit. p.52.
12
adquirido uma certa popularidade já fazia algum tempo. Considerando que, devido a um
receio mútuo, as relações de intercâmbio cultural entre o ocidente e o oriente cristão não se
dava de maneira tão dinâmica,.
Assim voltamos a proposta desse trabalho, que é a análise do contexto sócio-cultural da
aristocracia militar e provincial bizantina através da figura do herói Digenis Akritas. Pois,
além do fato do texto o datar do século XII, época de auge dessa elite, existe atrás das
características literárias, toda uma idealização de valores e posturas do que seria um ideal de
aristocrata perfeito.
Assim também será observado, e analisado, na fonte o meio que a trama se constrói, isto é, a
fronteira oriental de Bizâncio. Que apesar de estar em um segundo plano dentro da lógica do
poema, a fronteira é um elemento interessante a ser estudado. Porque está ligada não somente
a origem e vida do próprio herói, como também de toda essa aristocracia bizantina.
13
CAPÍTULO III
DESENVOLVIMENTO
3.1. DA CAPITAL A PROVÍNCIA
Digenes Akritas é o mais popular herói das canções de gestas bizantinas. Ele é orgulhoso,
belicoso, excessivamente mundano e perigosamente independente da capital imperial,
Constantinopla, de seu poder, de sua igreja e suas influências. Ele é espontâneo nas suas
reações, chegando até mesmo a nos fazer pensar que é inconseqüente em seus atos. No trato
com seus inimigos ele é irreverente, irônico e sarcástico. Imagem muito diferente de que a
cultura ocidental tem desenhado de Bizâncio nos últimos séculos: uma sociedade hierática de
monges e cortesões que se portam conforme modelos rígidos de etiqueta, mas no fundo são
corruptos e traidores. Imagem essa que vem sendo melhor trabalhada desde o início do século
XX, com as novas abordagens historiográficas que abriram todo um leque de estudos sobre as
múltiplas facetas que essa sociedade tão complexa, como a bizantina, possuiu. Porém os
esforços desses estudiosos esbarram nessa antiquada concepção de Bizâncio que até hoje é
forte no senso comum ocidental. Um exemplo bom disso é a famosa comédia italiana, O
Incrível Exército de Brancaleone (1965), que, em certa hora do filme, retrata uma corte
bizantina. Lá vemos uma idéia bem clara da imagem que a cultura ocidental tem de Bizâncio,
a referida “corte bizantina” nos passa ao mesmo tempo a idéia de riqueza luxuosa e extrema
decadência. As pessoas se comportam de forma rígida e ritualizada, porém no fundo são
imorais e depravados.
Preconceito esse que teve sua origem na Idade Média, quando visitantes ocidentais chegavam
em Constantinopla e se deparavam com uma corte e administração imperial cujas regras de
comportamento eles pouco ou nada compreendiam, que, para eles, devia aparentar como algo
falso e ensaiado demais. Mas o que esses visitantes ocidentais não entenderam é que esse zelo
aparentemente excessivo dos bizantinos pelo ritual era tão importante para o funcionamento
de sua sociedade, como as complexas redes de obrigações e privilégios feudais e senhoriais
eram para a sua28.
Assim, Constantinopla era um pólo atrativo, econômico e religioso, para pessoas de todo o
mundo. Conseqüentemente, a imagem construída, pelos ocidentais, do Império Bizantino se
28 Sobre a ritualização da vida publica e privada bizantina ver CAVALLO, Guglielmo(org.). O Homem
Bizantino. Lisboa: Presença, 1998. pp.7-17.
14
limitou a que eles observaram, e não entenderam, em Constantinopla. Porém a capital
imperial e a corte eram só uma parte de uma imensa e complexa estrutura que foi a sociedade
romana-oriental.
As províncias bizantinas, e nelas o círculo aristocrático que era dominante naquele contexto,
eram outra parte importante dessa sociedade, que, como um típico mosaico bizantino,
formado por milhares de pequenas peças coloridas que forma um todo, harmonioso e belo.
Portanto, contexto da província era como fosse uma dessas milhares pedras, que fora de um
conjunto perde todo o sentido e a beleza.
Nessa direção, iremos assinalar alguns pontos que caracterizam o contexto sócio-cultural
daquela elite aristocrática, localizada no interior da Anatólia, especialmente nas fronteiras
orientais do Império. Relativamente distantes do mundo urbano e cosmopolita da capital
imperial, porém nunca de forma desvinculada dela.
Aqui voltamos ao caráter espontâneo de Digenis Akritas descrito na fonte. Provavelmente
essa característica esteja relacionada com a incerteza da vida nas províncias, onde uma
inflexibilidade em relação à modelos preconcebidos seria ilógico. Já que o cotidiano nas
províncias era muito dependente das variáveis da terra, como ritmo de chuvas, secas, pragas,
como também dos perigos externos, como invasões, saques e raids. É nesse ritmo que viviam
as províncias asiáticas orientais de Bizâncio, onde se passa a vida de Digenis e provavelmente
onde sua lenda foi criada. Contexto em que os ataques pluri-anuais dos árabes e turcos eram
sempre uma possibilidade, assim como a possibilidade de invernos excessivamente frios e
verões excessivamente secos, que poderiam arruinar plantações e criações de gado. Como
acontece em 927-928, quando um inverno excessivamente rigoroso arruina pequenos
produtores, que se forçam a vender suas terras a grandes proprietários por preços ínfimos29.
Assim esse quotidiano incerto cria, nas províncias orientais bizantinas, um desprendimento
bem maior a modelos do que em qualquer outra parte do império. Porém apesar dessa
flexibilidade de comportamento, os bizantinos da província eram tão conservadores quanto
seus patrícios da capital. Pois a aversão às mudanças era algo intrínseco na visão de mundo de
todos os bizantinos de todas as épocas30.
Essa discussão sobre a espontaneidade é só um exemplo de um ponto muito importante que
irá permear todo esse trabalho. Uma sociedade anatólica, de fronteira, que se desenvolve
29 PLATAGEAN,E. et al. Op.cit . p.123 30 CAVALLO, Guglielmo. Op.cit. p.12.
15
distante de Constantinopla e de outros centros urbanos importantes do Império, como
Tessalonica, e que nunca foi algo à parte e independente do resto do Império.
3.2. O ENCONTRO ENTRE O DIGENES AKRITAS E O IMPERADOR: UMA ANÁLISE DE UMA
RELAÇÃO (VERSÃO GROTAFERRATA)
Já no caso específico da relação entre a elite guerreira provincial com o governo imperial
vemos um interessante caso de interdependência forçada. Pois, como já foi observado, na
introdução deste trabalho31, o governo imperial necessitava dos membros dessa aristocracia
para liderar seus exércitos, além de representarem o poder imperial em lugares distantes onde
o aparelho administrativo do império tinha dificuldades em fazer-se presente. No século XII,
com os Comnenos, essa situação se institucionaliza com a criação das pronoias, sistema que
transfere a responsabilidade de recolher impostos do governo imperial para um particular,
geralmente um poderoso local, e em troca este tinha a tarefa de fornecer soldados ao exército
imperial conforme a necessidade32.
No poema de Digenes Akritas é possível observar como funcionava essa relação ambígua.
Existe um interessante episódio em que Digenes encontra o Imperador Bizantino. Episódio
esse que não está presente na versão Escorial, a fonte primaria desse trabalho, no entanto
como ele se encontra em muitas outras versões, é possível acreditar que sua origem também
seja antiga e o compilador que transcreveu o texto do manuscrito Escorial ignorou-o ou
desconhecia-o33.
Trata-se do episódio no qual o Imperador Bizantino, quando encontrava-se nas fronteiras
orientais, em uma campanha contra a “Pérsia”, e decide visitar o herói Digenis Akritas34. E
este, de acordo com a fonte, se mostra arisco e desconfiado em relação à presença do
Imperador.
Por fim, os dois se encontram e o Imperador se maravilha com a presença e os feitos do herói.
E Digenes por outro lado faz um estranho discurso ao Imperador, dizendo-lhe e
aconselhando-lhe, dentre várias coisas, que “dominar e reinar não é parte desse poder (de ser
31 PLATAGEAN,E. et al. Op.cit . pp.136. 32 Ibid. pp.188-191. 33 CASTILLO, Miguel. Op.Cit. p.51. 34 DIGENES Akritas: The Two-Blood Border Lord (the Grottaferrata Version). Tradução, introdução e notas de Dennison B. Hull. Athens, Ohio: Ohio University Press. 1972. Canto IV. Versos 971-1089.
16
imperador)/ que Deus e sua mão direita sozinhos podem dar35
”. Uma declaração curiosa se
observarmos que o Imperador, segundo as mais sagradas tradições políticas de Bizâncio, era o
indicado e abençoado por Deus para “reinar e dominar” os romanos e a Romania (i.e. Império
Bizantino). E o episódio fica ainda mais peculiar ao verificarmos que, depois dessa declaração
aparentemente arrogante de Digenes, o Imperador não se mostra ofendido ou desrespeitado,
muito pelo contrário. Mostra-se ainda mais admirado com o herói e o cumula de riquezas,
devolve o patrimônio de sua família materna, que havia sido confiscada por uma suposta
traição do avô de Digenes, e lhe dá o título honorífico de "patrício36".
Embora o episódio pareça ser curioso, ele faz sentido se fizermos um paralelo com o
desenvolver do "contrato social" não escrito entre a aristocracia e o governo imperial. Em que
nas províncias, especialmente nas fronteiriças, a autoridade imperial se fazia valer pela mão
dos poderosos locais. Desta forma a presença do imperador nas fronteiras, no poema, poderia
desestabilizar esse arranjo. E ainda, o pior, lá estava também seu exército, presença a qual
claramente incomodava Digenes Akritas. E a reação entusiasmada do Imperador, que cumula
Digenes de benefícios, faz sentido diante da perspectiva já apontada de que o governo
imperial necessitava do apoio da aristocracia. Nesse caso específico, o Imperador procura o
apoio necessário de Digenes, descrito pelas palavras do Imperador como "o mais forte sobre
todos da presente geração37".
E apesar do respeito e veneração que Digenes trata o Basileu e a admiração que este tem com
Digenes, é clara a tensão inerente na cena. Tanto que ela existe, que em algumas versões
russas essa tensão descamba para um embate aberto entre Digenes e o Imperador, sendo que o
herói mata o Imperador e toma sua coroa38.
Desta forma observamos essa passagem como uma ilustração literária da relação que se
mantêm relativamente estável entre o poder imperial e as elites locais das províncias, entre o
século IX até a metade do XI, quando a queda da Dinastia Macedônia inicia um período curto,
porém extremamente desastroso, de caos político e social. Período caótico terminado quando
a própria aristocracia militar sobe ao trono imperial com a já citada ascensão dos Comnenos.
35 Ibid. Canto IV. Versos 1040-1041. Tradução nossa. 36 Ibid. Canto IV. verso 1049. 37 Ibid. Canto IV. Verso 1082. Tradução nossa. 38 CASTILLO, Miguel. op.cit. pp.49-51
17
3.3. DIGENES E A GUERRA
Agora que já descrevemos como o poema de Digenes Akritas retrata a relação Imperador-
Aristocracia, vamos analisar como a canção trata da atividade que é a razão de ser dessa elite
da qual Digenes é modelo: a guerra.
A problemática da guerra para os romanos-orientais é complicada. Ao mesmo tempo em que a
vocação romana para a ciência bélica nunca foi esquecida e a necessidade de defender-se de
perigos externos nunca cessa, Bizâncio vive, e sofre, com a responsabilidade do 6o.
Mandamento, "Não Matará", e com a doutrina cristã de oferecer a outra face. Paradoxo esse
muito bem estudado por Haldon, que analisa a atitude dos bizantinos perante a guerra39. Ele
aponta que após a cristianização do Império, durante todo o século IV, matura-se uma
ideologia que a guerra é justificável, como também gloriosa e honrada, se for empreendida
para a defesa do Império ou da Ortodoxia. Em alguns casos, para não dizer a maioria, a defesa
do Império e da Ortodoxia estavam ligadas, já que esses dois conceitos se uniam na ideologia
imperial. Assim a questão da guerra em defesa pela ortodoxia nos envolve na complicada
discussão de "guerra santa" no Império Bizantino, que não será tratada nesse trabalho por suas
muitas contradições e alta complexidade metodológica40.
Assim sendo, o confronto bélico frontal sempre foi visto como sendo o último recurso para os
estrategistas bizantinos. Todos aconselhavam que o bom general só entra no campo de batalha
quando tem certeza que ela será ganha. Os motivos para isso são, desde a já citada ideologia
cristã, até o pensamento mais pragmático de que as forças militares eram uma ferramenta
extremamente cara aos cofres imperiais, e batalhas, mesmo que vencidas, custavam muito em
recursos humanos, alimentação e equipamento.
Assim os bizantinos utilizavam inúmeros recursos para evitar o alto custo de uma campanha
militar de larga escala. Desses esses recursos o principal sempre foi a diplomacia, ciência a
qual os bizantinos chegaram quase a perfeição. Existia toda uma organização interna e externa
que era chefiada por um ministro de alto escalão que se reportava diariamente e diretamente
ao Imperador41.
Os métodos utilizados eram variados. Subornos a príncipes e potentados fronteiriços, jogar
um dos inimigos contra outros inimigos, casamentos com damas da família imperial, assim
39 HALDOM, John. Op.cit. pp.13-35 40 Para mais informações sobre a questão de "guerra santa" em Bizâncio vide HALDOM, John. Op.cit. pp.17-21. 41 RUNCIMAN, Steven. A civilização bizantina. Zahar: Rio de Janeiro. 1961. p.122.
18
como a sedução de embaixadas de outros reinos que vinham a Constantinopla. Essa estratégia,
em particular, é extremamente interessante, pois foi criado todo um enorme ritual, leis e
costumes que tinham como objetivo seduzir e compelir os representantes de outros reinos com
a riqueza e opulência da corte imperial. Logo que chegava a capital o embaixador era imerso
na ritualística bizantina, pois lhe davam roupas especiais conforme o reino ou o "povo" do
qual o representante em questão provinha. Assim ele ia a entrevista com o Imperador, onde
era apresentado numa sala do trono cheio de equipamentos mecânicos, como pássaros de
bronze que cantam e um aparelho que içava o Imperador ao alto. Enquanto isso o Basileus
permanecia majestático, em silencio e impassível42. Apesar de, aos olhos contemporâneos,
esses meios nos parecem como meros truques, eles tinham uma grande força nas negociações
com representantes estrangeiros, que ficavam impressionados com toda essa aparelhagem da
qual eles não imaginavam o funcionamento. Já os embaixadores que demonstravam uma
ilustração um pouco maior, a esses eram mostradas as riquezas de Constantinopla.
Já a aristocracia provinciana, objeto de nossa análise, tinha uma perspectiva bem diferente da
guerra. Pois seja pela proximidade que estes viviam dos inimigos, seja pela responsabilidade
que esses tinham de defender a região que exerciam influência, seja porque, como já foi dito,
essa elite foi monopolizando as forças armadas, exército e marinha, bizantinas, ou mais
provavelmente por todas essas razões, o ofício bélico era a raison d´être para a aristocracia
bizantina.
Conseqüentemente, notamos que a elite militar bizantina tinha uma perspectiva bem mais
ativa do que reativa em relação à guerra. Atitude essa, descrita por Haldon, que valorizava
"honra pessoal, coragem e habilidades em armas43"
Um pouco mais a frente ele cita que tais valores fundidos com o Cristianismo resultam nas
expressões culturais variadas, essas que vão do culto a santos militares, como São Jorge, São
Demetrio e São Teodoro, indo até a canção de Digenes Akritas aqui estudada.
Por conseguinte vemos claramente, dentro desse poema, as perspectivas dessa elite
provinciana referente à guerra, com todas suas ênfases e contradições. Desta forma, os valores
mais preciosos, referentes a guerra, demonstrados no poema, são o combate individual, feitos
heróicos em guerra e a morte de inimigos desonrados44. E para demonstrar isso poderíamos
42 Ibid. pp.123-124. 43 HALDOM, John. Op.cit. p.29. 44 Ibid. p.31
19
citar inúmeros eventos e episódios descritos no poema, porém, devido a necessidade de
síntese que urge nesse trabalho, iremos citar apenas alguns, os mais expressivos.
O primeiro caso encontramos já no início do texto Escorial, que é a luta pela posse de uma
dama bizantina, entre o Emir, que a havia tomado como cativa durante a invasão de uma
fortaleza bizantina, e Konstandis (i.e Constantino), que é irmão gêmeo da dama em questão,
que junto com os outros quatro irmãos Dukas vieram resgata-la das mãos do Emir.
Konstandis vence a (difícil) luta e assim fica com o direito de posse da irmã. No entanto o
Emir reluta a entregá-la, pois revela sua pretensão de casar-se com ela, assim renunciar ao Islã
e partir com os irmãos da moça para a Romania. O trato foi momentaneamente aceito com
muita alegria pelos irmãos e pelo resto da família. E assim o Emir parte para o Império para
casar-se com a moça e dessa união nasce o herói Basílio Digenes Akritas45.
Nesse episódio, podemos apontar dois pontos interessantes. O primeiro é o fato de que o texto
inicia no momento em que o bizantino Konstandis e o Emir da Síria começam seu embate
individual e como também vemos que esse é um dos pontos altos de todo esse episódio de
resgate da dama. O meio em que a posse da dama foi decidida, que não foi a negociação, nem
a troca e sim o combate pessoal entre os líderes de ambos os lados. Assim visualizamos a
valorização do poema ao combate individual entre as duas figuras importantes de ambos os
lados. Característica essa que é um reflexo de um costume comum nesse contexto de embates
fronteiriços entre bizantinos e muçulmanos, onde batalhas eram decididas com combates
individuais entre os líderes de ambas as forças.
E o segundo ponto curioso é o fato de que, no poema, as mais altas distinções não são
monopólios dos cristãos, já que o Emir, apesar de ter saído como perdedor no combate, é
descrito como um ótimo guerreiro, honrado e virtuoso. Adicionando o fato de que se os
irmãos da donzela não o considerassem como um homem de virtudes, apesar de muçulmano,
nunca dariam crédito a proposta de casamento do Emir e muito menos teriam a reação
extremamente positiva que tiveram.
Tal episódio mostra-nos uma das facetas mais ricas da sociedade bizantina que era sua
tolerância. O próprio conceito universal do Império Ortodoxo abria o espaço para qualquer
um que aceitasse o imperador como seu soberano, tivesse a ortodoxia cristã como religião e
seguisse os costumes da cultura bizantina. E ainda o mundo fronteiriço conseguia ser ainda
45 EL Poema de Digenis Akritas. (manuscrito Escorial). op.cit. versos. 1-224.
20
mais aberto, onde a convivência forçada com o "outro" abria brechas para relações mais
próximas, compreensão mútua e até mesmo a troca de fidelidades. E ainda existiam incentivos
do governo imperial para que famílias bizantinas tomassem árabes como genros,
dispensando-os, assim, do pagamento de impostos46. E também o que facilita claramente a
relação entre os dois lados, na contenda pela "posse" da donzela, é o fato de que ambos, o
Emir e os irmãos, provêem de origem aristocrática, o que resulta numa quase imediata
sensação de terem algo em comum. Conseqüentemente, podemos presumir que tanto a
aristocracia bizantina como a muçulmana, originárias dessas regiões limítrofes, se
identificavam tanto, ou mais, entre si próprias, do que com o Imperador ou o Califa.
Outro episódio digno de ser analisado é quando Digenes Akritas vai num dos passos
fronteiriços controlados pelos apelatai, os arquiinimigos de Digenes, que eram homens sem-
lei e sem vínculos nem com o Imperador nem com o Califa. Ele sai da casa de seu pai e vai
até um esconderijo localizado à esse passo fronteiriço controlado pelos apelates, desafia todos
para uma briga de “bastões camponeses”, os derrota, um à um, e, por fim, desafia seu líder o
Velho Filopappus47.
Nesse episódio observamos que a atitude de Digenes contradiz a posição normal bizantina
referente a guerra, reativa, que justificava fazer guerra como uma forma de defesa. No
entanto, no episódio em questão não vemos nenhuma ofensa ou agressão inicial partida dos
apelates, Digenis vai ao esconderijo deles por livre iniciativa com o objetivo de,
simplesmente, derrota-los, humilha-los e provar sua superioridade. Isso destoa bastante, seja
do comportamento normal bizantino referente à atividade guerreira, como também a outro
conceito caro aos bizantinos que é a philantropia. Outro exemplo que podemos fazer um
paralelo é uma passagem de um manual bizantino sobre emboscadas, lá diz que referente a
prisioneiros de guerras há duas opções: mata-los ou manda-los embora48. Atitudes nada
"filantrópicas". Provavelmente a razão disso seja que na prática da guerra fronteiriça se
necessite encontrar soluções práticas para problemas imediatos. Pois obviamente soluções
criadas por teólogos que nunca puseram o pé em um campo de batalha, apesar de belas e
humanitárias, eram impossíveis de ser posta à prova. E a atividade bélica, apesar de que para
os bizantinos ela era encarada de forma mais "científica" possível, têm suas bases no simples
46 BREHIER. Louis. El mundo Bizantino: Las instituiciones del Imperio Bizantino. Mexico: Ed. Hispanoamericana. Pp 325-326. 47 EL Poema de Digenis Akritas. (manuscrito Escorial). Op.cit. Versos 622-700. 48 HALDOM, John. Op.cit. p.30.
21
instinto de proteção e conquistas de territórios e a imposição de respeito. E o ato de Digenis
de, sem nenhuma provocação, ir sozinho ao esconderijo dos apelates, mostra claramente o
objetivo de Digenes era conquistar, através do subjugo, para si o domínio desse território, que
eram os passos fronteiriços.
Já referente à própria ostentação e orgulho, retiramos um episódio bastante significativo do
Poema de Digenis Akritas para uma análise desse aspecto socio-cultural dessa elite
provinciana e limítrofe. Passagem que descreve como Digenes conhece, se apaixona e rapta
sua futura esposa, para finalmente casar-se com ela49.
Digenes voltando de sua primeira caçada, com seu pai e com seu tio (caçada esta que tem alto
valor simbólico, pois representa a passagem de Digenes para a vida adulta), passa pelas
propriedades do stratego, governador provincial, local, onde conhece a sua filha. Assim os
dois se apaixonam e Digenes parte prometendo voltar50. Apaixonado, Digenes parte a noite,
com seu melhor cavalo, suas melhores armas e seu alaúde, em direção da casa de sua amada.
Chegando lá, ele se posta embaixo da janela da moça e começa a tocar seu instrumento.
Assim a dama acorda, desce a janela e parte com ele, sem antes avisar que seu pai tinha o
costume de matar seus pretendentes. Digenes não dá atenção aos seus avisos e parte, e, num
ato audacioso, grita bem alto, para todos na casa ouvirem, pedindo que seu sogro lhe deseje
sorte. Conseqüentemente todos acordam e o stratego convoca toda sua tropa para ir atrás de
Digenes, mas ele não só submete toda guarda do stratego, como também tem postura atrevida
e posiciona a sua amada em uma árvore, de uma forma que ela possa assistir do melhor visão
possível sua "performance" guerreira. Ele somente poupa, por pedidos de sua futura esposa, o
sogro e seus cunhados.
Assim, o stratego, não sem alguma amargura, reconhece Digenes como um genro digno e
aceita que sua filha se case com ele, no entanto pede para que ele possa levar a filha de volta
para prepara-la para o casamento, segundo as tradições, para depois devolve-la. Digenes não
aceita o pedido e leva a moça diretamente a casa de seus pais. Esses que rejubilam com a
chegada de tão distinta noiva e assim o fazem todos os soldados do Emir, como também o
povo.
49 EL Poema de Digenis Akritas. (manuscrito Escorial). Op.cit. Versos 792-1089 50 Na versão Escorial esse primeiro encontro, seja por erro do copista, seja porque alguma pagina tenha sido perdida, está ausente. Porém a continuação do texto e as outras versões do poema confirmam o evento desses fatos no texto.
22
Quase imediatamente as bodas são preparadas, o dote entregue, e os festejos começam e
duram por mais de três meses.
É evidente nesse episódio uma semelhança do processo de coorte e casamento de Digenes
com o dos seus pais, mas isso se deve que o rapto de donzelas pelo herói é um lugar-comum
na épica bizantina.
Voltando ao tema inicial proposto, a autojactância, ela é extremamente explícita em todos as
ações e falas do herói nesse trecho. No entanto, não é somente nesse episódio, Digenes
Akritas, como vamos ver na próxima discussão, ele é atrevido e ostentador até no seu leito de
morte. Mas esse caso foi escolhido porque nele é onde a ostentação do herói mais se destaca.
Mas é curioso o fato se vermos na sociedade, como a bizantina, onde a ostentação em si era
censurada. Não que os bizantinos não o fizessem, pois em Constantinopla, segundo um rabino
castelhano que em viagem durante o século XII, todos se vestem como príncipes. Mas a
atitude de ostentação era moralmente condenável.
Aí vemos Digenes Akritas, idealização de uir perfectus de uma parte dessa mesma sociedade
bizantina, agindo de forma orgulhosa e extremamente insolente. Seria isso uma contradição?
Não, se observarmos os costumes dessa elite militar que Digenes representa.
Como já foi dito na introdução desse trabalho, a partir do século X, essa elite provinciana
progressivamente vai criando uma identificação coletiva de que ela é uma "nata" da sociedade
bizantina e, por isso, cria-se uma idéia de predominância e superioridade sobre o resto dessa
mesma sociedade. Ainda que por mais que algumas das mais importantes famílias
aristocráticas tenham suas origens no mais simples camponês.
Nesse sentido entendemos a atitude orgulhosa de Digenes, pois ele age desta forma porque é
seu papel social agir assim. Humildade deve ser uma característica da plebe e dos
camponeses. O aristocrata, o poderoso deve ser orgulhoso porque ele veio de uma linhagem
vencedora e gloriosa e ele somente deve ser humilde a Deus e ao imperador. E mesmo assim
Digenes, no episódio anteriormente analisado, apesar de prestar as homenagens ao soberano
se mostra relativamente arredio e desconfiado ao Imperador.
Dessa forma chegamos a morte de Digenes Akritas, quando em seu leito de morte se
encontram a sua volta seus "300 valentes51". A tropa pessoal de Digenes que mal aparece em
todo o resto do poema, mas aparecem aqui para guardar o leito de seu comandante e para
51 EL Poema de Digenis Akritas. (manuscrito Escorial). Op.cit. Verso 1688.
23
ouvir uma retrospectiva dos grandes feitos de Digenes. Alguns deles são os que aparecem
anteriormente no texto e outros só surgem nesse momento. E após contar as suas façanhas,
Digenes distribui a parte da herança que cabe a cada um de seus soldados, que consiste a um
cavalo, uma espada, uma maça e três armaduras para cada um. Um espólio bem rico,
saliente-se. Por conseguinte despede-se de seus soldados e lhes recomenda para que não sirva
mais nenhum outro senhor, pois ninguém poderia se comparar a ele. Finalmente despede-se
de sua esposa e a pede para que, de preferência, não se case mais, mas se ela realmente
desejar se casar de novo, pois é ainda bastante jovem, que se case com um jovem que seja um
guerreiro bravo e sem medo52.
O que vemos nesse trecho, além da óbvia e já comentada ostentação, é que na descrição de
suas façanhas Digenes conta uns episódios que estão descritos no texto e outros novos, que
não aparecem anteriormente no texto. E são exatamente nesses últimos que as tropas de
Digenes aparecem como personagens, mesmo que secundários e de conduta no mínimo
medrosa. Assim nos questionamos, esses eventos realmente são resquícios de antigas canções
akríticas que foram perdidas no tempo? Ou foram descartadas no processo de compilação
feita por um primeiro, ou segundo ou terceiro copista? Se realmente esses episódios foram
descartados, qual seria a razão disso? Presumimos que tais descartes poderiam fazer parte de
uma estratégia do(s) compilador(es) para valorizar ainda mais a figura de Digenes Akritas,
mas como já foi dito, isso é mera presunção. Mas o que se pode ver de concreto nessa
aparição dos 300 valentes é a reafirmação do poderio de Digenes, pois qualquer aristocrata
bizantino de respeito teria de ter uma tropa particular composta de homens ligados à ele por
clientela ou afeição a sua casa.
Dessa forma os 300 guerreiros de Digenes, representam um número significativo
historicamente, pois foram 300 espartanos que seguraram as centenas de milhares de persas
em Thermopilas, como também sob a perspectiva da organização militar bizantina dos séculos
IX ao XI. Pois nessa época uma banda, unidade-base do exército bizantino, consistia em
média de 300 homens. E se, ainda, observarmos, segundo algumas fontes árabes do século X,
quantos homens aproximadamente cada thema poderia mobilizar, a força em homens de
Digenes seria importante. Themas limítrofes da Capadocia e da Seleukia tinham a capacidade
de cerca de 4.000 à 5.000 homens cada uma. Portanto os 300 valentes de Digenes
52 ibid. versos.1695-1787.
24
representariam uma força significativa se pensarmos que ela está sob o comando de um só
homem.
De uma forma geral Digenes pode ser descrito com vários adjetivos aristocrata, herói, amante,
bon vivant etc, mas antes de tudo ele é um guerreiro. Sua vida, do seu início ao seu fim, se
encontra no combate, pois ou ele está em um ou está falando sobre um. E assim, Digenes
sendo uma idealização de uma elite, sua vida guerreira somente reforça a idéia de que o papel
social dela na taxeis, i.e, ordem universal das coisas que os bizantinos acreditavam que nunca
devia ser mudada, que é, antes de tudo, a guerra.
3.4. A VIDA PRIVADA NO POEMA DE DIGENES AKRITAS
Podemos dividir a Poema de Digenis Akritas em duas partes, os episódios que se passam em
combates, com árabes e bandidos, no ambiente hostil da fronteira, e os episódios que se
desenvolvem em ambientes domésticos, familiares e privados. Assim como a primeira parte
foi importante nesse trabalho para tratarmos de temas que envolvem o espaço público
bizantino, como a guerra, relações de poder e política. A segunda vai ser importante, desse
ponto adiante, para obtermos uma visão de como devia ser o ambiente particular da
aristocracia provincial bizantina. Como as relações interpessoais, de gênero, de parentesco, ou
qualquer outro tipo de relação que era inerente à convivência privada. Apesar de que, em
Bizâncio, o mundo público e privado, se confundiam algumas vezes, mas levando isso sempre
em consideração, podemos levar a análise adiante.
Em primeiro lugar observamos a relação de parentesco, pois, nesse poema, ela é um fator
desencadeador de eventos muito importantes. É sob ameaça de maldição materna que os
irmãos Dukas vão tentar resgatar sua irmã das mãos do Emir. E esse mesmo Emir, também
sob ameaça de maldição materna, volta a Síria para resgatar a mãe. É acompanhado do pai e
do tio que Digenes Akritas completa sua primeira façanha, a caçada de uma família de ursos,
acontecimento que marca a passagem do herói para a vida adulta. Assim, seguem muitos,
senão a maioria, dos eventos da vida de Digenes que a sua parentela está envolvida em menor
e maior grau. O que é uma característica aristocrática, pois um dos pontos característicos do
desenvolvimento dessa elite militar provincial, para ser uma aristocracia no sentido mais claro
do termo, é a importância cada vez maior das origens, das linhagens, dos sobrenomes.
Os primeiros "sobrenomes", deste modo as primeiras linhagens, começam a aparecer no
século VII. Geralmente, como adjetivos ou apelidos, esses segundos nomes começam a ser
25
transmitidos de pai para filho e filho para neto. De tal modo vão se tornando gradativamente
mais importante, pois somente "a indicação de origem, da filiação ou do título para
especificar a pessoa não satisfaz essa aristocracia em vias de se constituir, com suas
veleidades de antiguidade, de solidariedade e de notoriedade53".
No entanto, para Digenis Akritas, a importância de sua linhagem é pequena, pois no nome
inteiro do herói principal observamos que há um apelido, Digenis, referente a sua dupla
origem, e um título, Akritas. E em nenhuma hora o texto utiliza, ao se referir ao herói, o
sobrenome materno, Dukas, que é, como já foi mostrada na introdução desse trabalho, uma
linhagem aristocrática famosa no universo bizantino. Na verdade, esse sobrenome só é
mencionado uma vez em todo poema, quando o Emir pergunta aos irmãos de que estirpe eles
provêm e um dos irmãos conta que por parte de pai eles eram Dukas, de mãe Kirmagastros54.
Talvez isso seja reflexo dos tempos em que os feitos de Digenis foram compostos e eram
somente contados oralmente, quando os sobrenomes não possuíam a importância que tinham
no século XII e adiante. Ou talvez seja porque, como é explicado rapidamente pelos irmãos,
logo depois da apresentação de sua estirpe, que seu pai estava exilado por "Revuelta a
campamentos55", fazendo uma referência histórica clara à conspiração de Andronikos Dukas
descrita já na introdução. Assim, é possível que o poema não ligue muito Digenis Akritas à
linhagem Dukas, pois na época que tal episódio foi composto tal linhagem ainda estivesse em
desgraça.
Na vida de Digenes a importância de seus parentes maternos era mais visível do que a dos
parentes paternos, já que o Emir se torna um membro da família de sua esposa e vai morar
com seus cunhados. E Digenes nasce, cresce na casa da família de sua mãe e é acompanhado
por um de seus tios, Constantino, com quem Digenes, aos 12 anos, faz a sua primeira
caçada56.
A provável razão para a ocorrência dessa situação seria que o Emir, ao converter-se, tenha se
desligado de grande parte de sua família, que era muçulmana. Hipótese que se torna mais
plausível ao observarmos a carta que a mãe do Emir manda ao filho57. Na referida carta ela
condena o filho por ter se convertido por amor a uma dama cristã e assim por ter condenado 53 PATLAGEAN, Evelyne. Famílias e Parentelas em Bizâncio: séculos XII e XV. In: BURGUIÈRE, André, et al. História da Família. Tempos Medievais: Ocidente, Oriente. Lisboa: Terramar. 1997. p.144 54 EL Poema de Digenis Akritas. (manuscrito Escorial). Op.cit. Versos 132-138. 55 Ibid. verso. 140. 56 Ibid. versos 744-791. 57 Ibid. versos 225-290.
26
ela, e toda sua família, a desgraça. Na carta, ela recorda todos os feitos militares dele e de seus
ancestrais, de como eles conquistaram muitos castelos e prisioneiros na Romania, também ela
o recorda de suas outras esposas e filhos e o perigo que eles estão correndo. Por fim ela o
convoca para voltar a Síria e salvar-lhe, sob ameaça de maldição materna.
Enfim, o Emir volta a Síria e convence sua mãe à voltar a România com ele, e ainda se
converter ao Cristianismo e junto deles vieram também toda seu séquito pessoal que ainda
estava na Síria58.
Mesmo assim, na versão Grotaferrata, vemos que Digenes Akritas ainda mantêm um contato
com a família paterna. Pois no último canto, o da morte de Digenes Akritas, narra-se quando
alguns parentes seus, do lado paterno, ouvindo falar dos feitos de Digenes, visitam-o. Digenes
os recebem com muita solicitude, levando-os para caçar e banhar-se, quando Digenes contrai
a doença que o mata59. Mas mesmo com essa cordial visita, na Versão Grotaferrata, Digenes
continua sendo mais ligado à família de sua mãe do que de seu pai.
Outro ponto a ser observado é a relação do poema com as mulheres. Em uma leitura
superficial pode nos parecer que as mulheres, no Poema de Digenes Akritas, são seres sem
iniciativa, sem importância e totalmente submissas aos personagens masculinos. Porém, com
mais atenção, observamos que não é exatamente isso. Na verdade na maior parte do tempo as
mulheres são realmente personagens submissas e apagadas, mas subitamente, nas horas mais
delicadas, fazem intervenções importantíssimas para o desenrolar da trama.
No mundo bizantino, como em toda cristandade medieval, havia uma visão ambígua em
relação à mulher, pois ao mesmo tempo, segundo a tradição cristã, que foi uma mulher que
condenou a humanidade, com Eva e o fruto proibido, também foi de uma mulher que nasceu a
redenção para humanidade, que foi Jesus Cristo.
Por conseguinte, ao mesmo tempo em que os bizantinos viam as mulheres como tentações,
pois eram sedutoras e facilmente seduzidas, também as viam como uma fortaleza moral e
sentimental, na figura da mãe60.
O poema segue bastante o padrão de como as mulheres da elite bizantina se comportavam, ou
melhor, deviam se comportar. Pois era costume das famílias bizantinas mais abastadas manter
as suas mulheres, principalmente as solteiras, longe dos olhares de estranhos. Então, seguindo
58 Ibid. versos 290-605 59 DIGENES Akritas: The Two-Blood Border Lord (the Grottaferrata Version). Op.cit. Canto VIII. Versos 1-35. 60 Mais sobre as mulheres em Bizâncio vide TALBOT, Alice-Mary. A Mulher. In: CAVALLO, Guglielmo(org.). O Homem Bizantino. Lisboa: Presença, 1998.
27
um costume da Grécia Clássica, existia um certo conjunto de recintos, na casa aristocrática,
exclusivos à utilização das mulheres: o Gineceu. Isso, frisa-se, era um privilegio limitado as
casas mais abastadas, pois poucos eram os que tinham o luxo de sustentar parte da família
inativa economicamente.
As mulheres, no poema, também são desprovidas de nome61. Elas são identificadas como
filhas, irmãs, esposas ou mãe de algum personagem masculino. Ainda que considerando que
grande parte dos personagens do poema não tenha nomes próprios, são identificados segundo
seu título (o Emir, o General), as personagens mulheres nem isso possuem. Característica,
que, de uma forma exagerada, segue o costume bizantino de nunca mencionar as mulheres
pelo seu primeiro nome, e sim pelo nome familiar.
Apesar da posição passiva e submissa que as personagens femininas tem, de um modo geral,
em todo poema, existiam episódios em que a intervenção feminina foi importantíssima.
Exemplos como a já citada carta admoestadora da mãe do Emir ou a intervenção da esposa
desse num momento de desentendimento entre seus irmãos e seu marido, o Emir. Porque o
Emir, ao receber a carta da mãe, decide ir secretamente a Síria resolver esse problema,
somente contando o caso à sua esposa. Porém Constantino, o irmão gêmeo da jovem, tem um
sonho premonitório, que é mal interpretado, que revela o segredo do Emir. Assim, os irmãos
vão até seu cunhado e o censuram duramente, pois tinham certeza que ele iria abandonar a
irmã deles, voltar a sua antiga terra e a antiga fé. O Emir, desesperado pelo dilema que os
irmãos o apresentaram, que é ter de escolher entre a sua amada e sua mãe, vai até sua esposa,
conta o que lhe afligia e pergunta se foi ela que o delatou para os irmãos. Revoltada com a
situação, a esposa do Emir vai até seus irmãos recriminado-os duramente e conta a real
situação do Emir. Envergonhados pela suas próprias condutas, os irmãos vão até o Emir,
pedem perdão e dizem que, desde que prometa que retorne, ele se sinta livre para voltar a
Síria para resolver seus problemas62.
Aqui vemos uma função moralizadora e apaziguadora das mulheres, o que recorda bastante a
visão positiva da cristandade medieval em relação ao sexo feminino: o papel materno.
61 Apesar de que a versão Andros de nome as principais personagens femininas do poema, mãe e a esposa de Digenes que se chamam, respectivamente, Anna e Eudoxia. Mas devido a época em que essa versão foi escrita, século XVIII, é difícil de fazermos um paralelo com a época aqui estudada, por ser por demais distante. 62 EL Poema de Digenis Akritas. (manuscrito Escorial). Op.cit. Versos 290-485.
28
Há também o famoso episodio em que Digenes combate uma amazona, Máximo, que é aliada
aos apelates, com quem irá praticar adultério posteriormente. Porém esse episódio evidencia
mais um "classicismo" da parte do compositor do que qualquer outra possibilidade.
Seguindo a linha de raciocínio referente a posição ambígua que a sociedade bizantina tinha
das mulheres, não vemos nenhum sinal de censura ao erotismo e a sedução no Poema de
Digenes Akritas. Muito pelo contrário, não só o romance, o amor carnal, o erotismo são os
temas centrais da trama, como o poema trata desses temas de uma forma tão sem pudor que
surpreenderia um leitor acostumado com a rigidez moral vigente na documentação bizantina
mais conhecida. Característica essa que é um dos motivos de o poema ser tão belo.
Talvez essa surpresa em relação à posição do poema referente ao erotismo, e a aparente
contradição dessa posição comparada à atitude dominante na maioria da documentação
bizantina, seja pelo motivo de que a maior parte da documentação bizantina que chegou aos
nossos dias tenha sido produzida, sob influência, direta ou indireta, da ideologia imperial e
eclesiástica (indissociáveis). E o Poema de Digenes Akritas, em suas numerosas versões, seja
somente um representante de uma produção cultural que era independente das instituições
imperiais e eclesiais e que com o tempo foi perdida. Frise-se que no poema vemos pouca
presença do Imperador e seus membros institucionais, exército e administração, e nenhum
sinal da Igreja, nem de seu clero secular ou regular. No poema não existem monges, padres,
abades, bispos, metropolitas ou patriarcas. Apesar dos personagens serem declaradamente
cristãos-ortodoxos, não vemos em nenhuma parte a presença da Igreja Ortodoxa. Nem em
momentos que sua presença, através de seus sacerdotes, é geralmente imprescindível, como
casamentos e funerais.
No poema há dois casamentos retratados, o do Emir com a dama que ele raptou e o de Digenis
com a filha do General, que são bastante diferentes um do outro. O casamento do Emir teve
fins especificamente políticos, que foi firmar a paz e, principalmente, oficializar a mudança de
fidelidade do Emir para o Império Bizantino. A noiva não teve nenhuma participação nas
negociações matrimoniais63.
Já o casamento de Digenes é descrito mais detalhadamente. O herói, como já foi dito
anteriormente, conhece a filha do general quando voltava de uma caçada. Os dois se
apaixonam e decidem fugir juntos. Porém são perseguidos pelas tropas do pai da moça, os
63 Ibid. versos. 145-222.
29
quais Digenes vence em combate e por mérito consegue aprovação do futuro sogro. Assim, o
jovem casal vai até a casa dos pais de Digenis para iniciar o matrimônio. O Emir, o pai de
Digenis Akritas, presenteia o casal com coroas de ouro, lhes discursa, desejando que o
casamento dure muitos anos e tenha a graça de Deus. Já o pai da noiva envia um dote
riquíssimo que, dentre muito ouro, pedras preciosas e tecidos finos, havia a espada do
Imperador Persa Cosroes. Assim, os festejos do matrimonio duraram por três meses64.
Nesses dois casamentos vemos que um tende ao realismo e o outro a fantasia. O casamento do
Emir com a jovem romana segue o padrão dos casamentos aristocráticos bizantinos, que antes
de tudo eram um arranjo familiar65. Os casamentos eram firmados, como um contrato, através
dos pais, aqui no caso entre os irmãos da noiva, pois o pai dela estava em exílio, e o noivo,
que já era um homem adulto, e tinham como objetivo firmar alianças vantajosas entre as duas
partes. Os interesses eram variados, no caso aqui estudado o interesse era político, pois
acarretaria a conversão de um líder importante do mundo muçulmano e a mudança de lado
para o Império Bizantino.
Outra característica interessante que dá, ao casamento do Emir, traços de realidade é a
diferença da idade. O poema não especifica a idade dos dois noivos, mas dá a entender que
havia uma grande diferença etária entre eles. Pois o título que o noivo tinha, de Emir da Síria,
e fato de ele já ter sido casado, enquanto muçulmano, nos dá uma imagem de um adulto feito.
Enquanto a noiva, dos seis irmãos, ela era a mais nova de todas, provavelmente estava ainda
na puberdade. No final das contas, o casamento dá certo, mas fora da ficção não era sempre
que tais casamentos, com tal diferença de idade, davam certo. Em Bizâncio a idade mínima
legal permitida as meninas se casarem era 12 anos, porém as famílias utilizavam de artifícios
para burlar a lei, como o noivado. E muitas vezes os pais da noiva entregavam a sua filha, e o
dote, logo após o firmamento do noivado, as vezes quando a noiva era ainda uma criança
pequena. O que em alguns casos resultavam em desastres, por exemplo casos de alguns
homens que tentavam consumar o casamento quando suas noivas eram ainda crianças. Como
no episódio de Simonis, filha de Andronico II, que se casou aos 5 anos com o Rei da Sérvia. E
este, ao tentar manter relações sexuais com a menina, causou traumas que impossibilitaram
Simonis de ser mãe pelo resto da vida66.
64 Ibid. versos 792-1089. 65 TALBOT, Alice-Mary. Op.cit. p.120 66 Ibid. pp.120-121.
30
A razão de que os bizantinos davam tanta importância as meninas se casarem cedo é para se
aproveitar o máximo a idade fértil das mulheres e, assim, gerar maior quantidade de filhos
possível. Pois levando em consideração a alta mortalidade infantil e as baixa expectativa de
vida, 35 anos para as mulheres, esperava-se que mulher tivesse uma grande quantidade de
filhos para que se tivesse certeza que pelo menos um chegasse a vida adulta e siga com a
linhagem familiar67.
Porém o Emir e sua esposa não seguem esse padrão, eles somente têm um filho, Digenis
Akritas, mas a razão disso se encontra mais na ideologia do próprio texto. Pois Digenis é, de
todas as formas, único e ter um irmão significaria que ele teria um igual.
E já o casamento de Digenis Akritas é o oposto do de seus pais, no sentido de que ele tem
uma ambientação de "conto-de-fadas". Digenes se casa por amor, contra a vontade dos pais de
sua esposa, raptando-a e tendo que lutar por sua amada. Já a cerimônia de casamento é
majestosa em todas suas características, do dote à duração dos festejos.
Então, da mesma forma que o casamento do Emir é um reflexo do mundo real, o de Digenes
se posiciona como uma fantasia escapista para os leitores, ou para audiência, principalmente
para as mulheres.
Finalmente chegamos ao ponto alto do poema: a construção do palácio de Digenis Akritas as
beiras do rio Eufrates. Episódio em comum em todas as versões conhecidas desse poema. O
herói depois de pacificar as fronteiras, subjugar os muçulmanos e conquistar muitas cidades e
fortalezas, resolve descansar e construir um palácio. A partir daí o caráter épico do poema dá
lugar a um lirismo ao descrever o lugar e os prazeres da vida do herói e sua esposa68.
O palácio de Digenis, como é descrito no poema, é um Éden dedicado ao deleite do casal.
Cercado, por altas muralhas e torreões, estava um magnífico jardim enfeitado com plantas e
animais vindos de todas as partes. O palácio em si é composto de pisos elevados, terraços e
com um grande pátio com uma piscina. Não é claro se esse pátio era situado no exterior ou no
interior da casa, à moda romana.
E sobre o Eufrates, Digenes constrói uma ponte e sobre essa ele ergue um rico mausoléu,
enfeitado de pedras preciosas, ouro e sedas. E lá, segundo o poema, jaz Digenes, tendo ao seu
joelho sua esposa e a sua volta seus trezentos guerreiros.
67 ibid. p.121. 68 EL Poema de Digenis Akritas. (manuscrito Escorial). Op.cit. Versos 1606-1659.
31
Aqui está um exemplo do que foi dito há uns parágrafos atrás: o prazer em viver. O paraíso de
Digenis não está em outro mundo, num paraíso celeste guardado aqueles que viviam, na
Terra, uma vida rígida e ascética, como pregavam os moralistas religiosos, e sim nesse. Em
seu palácio, em sua vida aristocrática e, principalmente, com sua belíssima esposa.
Digenisde tal forma aprecia sua vida terrena, que, em seu leito de morte, lamenta sua partida
desse mundo, pois agora ele iria "ao (mundo) oscurísimo, negro - y voy abajo hacia Hades69".
O Hades (Aden no grego medieval do texto) é uma antiga nomenclatura para o Deus grego do
Submundo, para onde iam os mortos. Posteriormente o nome vai também nomear o próprio
Submundo dos mortos. Na visão cristã, no novo testamento especificamente, Hades tem a
conotação de decadência do corpo e o poder da morte. Já o Poema de Digenis Akritas nos
expressa uma visão de Hades mais aproximada da visão pagã do que da cristã, um dos
classicismos do texto que nesse caso nos cai de maneira apropriada.
69 Ibid. verso 1775.
32
CAPÍTULO IV
CONCLUSÃO
Nesse ano faz 63 anos que o bizantinista francês Charles Diehl lamentou, em seu conciso e
objetivo trabalho "Les Grand Problèmes de l´Histoire Byzantine", que havia poucos trabalhos
sobre o mundo rural bizantino. Como também apontou o potencial da Epopéia de Digenis
Akritas para o estudo da vida dos grandes senhores fundiários bizantinos70.
De lá pra cá muito mudou e já surgiram estudos, principalmente históricos e literários, muito
bons e profundos sobre este poema. Porém o número ainda é pequeno, comparado a outras
fontes do mesmo estilo só que de origens diferentes, como por exemplo, Canção de Mio Cid
ou a Canção de Rolando. Bizâncio, infelizmente, não atrai tanto interesse a pesquisa como
acontece com a Europa Ocidental ou Islã. A provável razão disso é que, em 1453, o Império
Bizantino foi riscado do mapa e hoje em dia poucos países, nações ou povos reivindicam sua
memória. Esses poucos se limitam aos países eslavos, principalmente a Rússia, como também
Turquia, Itália e mais alguns poucos outros. No entanto, mesmo estes vêem o Império
Bizantino como um parêntese em suas histórias, quase como uma presença estrangeira nela.
Somente a Grécia, que, na opinião deste autor, é o maior herdeiro de Bizâncio, considera a
história do Império como parte de sua História. Contudo, aparentemente, os gregos preferem a
memória da Hélade Clássica, vistos que os atuais prédios públicos, em Atenas, foram
construídos em um estilo "clássico moderno" de um gosto bastante duvidoso. Apesar do fato
de que os gregos atuais se assemelham incomparavelmente mais, social e culturalmente, com
os bizantinos do que os atenienses da época de Péricles.
Então a História Bizantina têm que esperar pelo interesse de estudiosos do mundo inteiro,
que, por algum motivo, se dedicaram a pesquisar sobre o assunto. O resultado disso é que
lugares como França, Alemanha, Espanha, Inglaterra, Estados Unidos e Rússia são os lugares
que mais se pesquisam sobre o Império Bizantino e são paises, tirando a Rússia, em que suas
histórias foram pouco ou nada influenciadas diretamente pela história bizantina. Porém, se
observarmos de um ponto-de-vista mundial, vemos que Constantinopla, e o Império Bizantino
em geral, foi o eixo da balança que equilibrava ocidente e o oriente durante o período de
tempo que conhecemos como Idade Média. Como também foi um filtro, não somente para o
70 DIEHL, Charles. Op.cit. p.209.
33
ocidente, mas também como o oriente, que, ao mesmo tempo, bloqueava agressões e servia de
canal para intercambio cultural e econômico, tanto para o eixo oriente-ocidente, como
também norte-sul.
E como essa pequena monografia se insere nesse contexto tão grande? Ela é pertinente se
partimos do pressuposto que do particular podemos analisar o geral. Pois a figura de Digenis
Akritas é um fruto dessa parte da sociedade bizantina em contato com o mundo oriental
próximo. Nesse sentido, avaliamos, no Poema de Digenis Akritas, versão Escorial, as muitas
formas que o herói e os outros personagens se aproximam dessa aristocracia militar,
provinciana e latifundiária bizantina, ou por fantasia ou por realismo.
Como a questão da relação entre a aristocracia bizantina e o governo imperial, com sua
relação de dependência mútua, expressa no episódio em que Digenes e o Imperador. Evento o
qual se torna visível uma clara tensão e respeito mútuo entre as duas partes. Ou a visão
referente a guerra, que no poema tem fins meramente honoríficos e assim segue a tradição, da
aristocracia bizantina, de tratar a guerra não como um mal necessário, como a ideologia
eclesiástica-imperial ditava, mas sim como uma atividade gloriosa e honrada. E por fim a
discussão referente à relação conjugal e a sensualidade. Que são, como já observamos, temas
bastante desenvolvidos no poema. Fato esse que destoa bastante da maioria produção literária
bizantina que tem muitas barreiras morais ao tratar desses assuntos. O que nos fez pensar se
essa naturalidade em relação ao tema da sensualidade era uma exceção a regra, ou se as fontes
bizantinas que sobreviveram até hoje são as originárias de um contexto da capital e ligada a
Igreja. Assim o Poema de Digenes Akritas seria um exemplo de uma produção importante,
mais espontânea, que em sua grande parte foi perdida no tempo.
Através dessas questões postas e discussões iniciadas, ponderamos como o comportamento,
relacionamento e pensamento dessa elite foi extremamente importante no desenrolar da
História Bizantina a partir de 1081, quando essa aristocracia militar ascende ao trono imperial
em Constantinopla, para de lá nunca mais sair. Pois, com essa ascensão, o modo de ver o
mundo, expresso no poema e estudado aqui, passa a influenciar muito a forma que esse
Império vai ser governado nos próximos anos, até 1453. Já que até seu fim, após a queda da
dinastia dos Comneni, o trono imperial vai ser disputado por várias outras famílias
aristocráticas importantes, como as linhagens Angelos, Dukas, Vatatzes e Paleólogos. Assim,
observamos um fenômeno de características obviamente aristocráticas, que é a
patrimonialização do poder. Isto é, o poder imperial não é mais uma instituição pública,
34
segundo a tradição religiosa cristã bizantina mesclada com a ideologia baixo imperial romana,
isto é, acessível a qualquer ser humano que tenha as bênçãos de Deus. Assim a partir do
século XII, e ainda mais posteriormente, o trono imperial, assim como os mais altos círculos
de poder, se tornam uma propriedade dessas linhagens aristocráticas. Processo esse que
acabará por resultar numa união muito forte do que é público e do que é privado, acabando
com uma particularidade, que era uma herança que vinha desde a república romana: a
separação clara desses dois contextos.
35
5.FONTES E BIBLIOGRAFIA UTILIZADA.
FONTES
EL POEMA de Digenis Akritas. (manuscrito Escorial). Tradução Miguel Castillo Didier .In:
CASTILLO, Miguel. Poesia Heróica Bizantina: Epopeya de Digenis Akritas, cantares de
Armuris y Andronico. Santiago: Centro de Estudos Neohelenicos e Bizantinos. 1994.
DIGENES Akritas: The Two-Blood Border Lord (the Grottaferrata Version). Tradução,
introdução e notas de Dennison B. Hull. Athens, Ohio: Ohio University Press. 1972
COMNENA, Ana. Alexiada Tradução de E.R.A. Sewters. London: Penguin, 1969
BIBLIOGRAFIA UTILIZADA - LIVROS
BREHIER. Louis. El mundo Bizantino: Las instituiciones del Imperio Bizantino. Mexico:
Ed. Hispanoamericana
CASTILLO, Miguel. Poesia Heróica Bizantina: Epopeya de Digenis Akritas, cantares de
Armuris y Andronico. Santiago: Centro de Estudos Neohelenicos e Bizantinos. 1994
CAVALLO, Guglielmo(org.). O Homem Bizantino. Lisboa: Presença, 1998
DIEHL, Charles. Grandes problemas da história bizantina. São Paulo: Ed. das Américas,
1961.
HALDON, John. Warfare, State and Society in the Byzantine World:565-1204. Londres:
Routledge. 1999.
HEATH. Ian. Byzantine Armies 886-1118. Londres: Osprey. 1992.
NICOLLE, David. Romano-Byzantine Armies 4th-9th Centuries. Londres: Osprey. 1992.
PATLAGEAN,E. et al. Historia de Bizâncio. Critica: Barcelona. 2001
RUNCIMAN, Steven. 1453: A queda de Constantinopla. Tradução de Laura Rumchinsky.
Imago: Rio de Janeiro. 2002.
RUNCIMAN, Steven. A civilização bizantina. Zahar: Rio de Janeiro. 1961.
BIBLIOGRAFIA UTILIZADA - ARTIGOS
PATLAGEAN, Evelyne. Famílias e Parentelas em Bizâncio: séculos XII e XV. In:
BURGUIÈRE, André, et al. História da Família. Tempos Medievais: Ocidente, Oriente.
Lisboa: Terramar. 1997