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Jogos Olímpicos de 1952: o percurso de um atleta brasileiro no hipismo1
ESTER LIBERATO PEREIRA2
JANICE ZARPELLON MAZO3
Introdução
A presente pesquisa trata de investigar o percurso de um atleta em particular, o sul rio-
grandense Gerson Borges, nos Jogos Olímpicos (JO) de 1952, em Helsinque (Finlândia).
Apenas dois atletas oriundos do estado do Rio Grande do Sul integraram a delegação
brasileira que participou do evento: Alfredo Jorge Ebling Bercht, da modalidade vela, e
Gerson Borges, da modalidade salto do hipismo. A delegação do Brasil foi composta por 108
atletas, sendo 103 homens e cinco mulheres e conquistou três medalhas: uma de ouro no
atletismo e duas de bronze, uma na natação e outra no atletismo.
A edição dos JO de 1952, em Helsinque, na Finlândia, realizada pouco tempo depois
do início da Guerra Fria, marcou a estreia da União Soviética, que disputou, com os Estados
Unidos, a conquista pelo maior número de medalhas. Nesse período, sucede a consolidação
do aspecto espetacular do esporte, uma vez que a força da sua utilização política estava sujeita
à sua propaganda e divulgação, transformando-o em uma expressão cultural significativa, que
acendesse o interesse e que agregasse modos de diálogo e comunicação ao plano mundial
(MARQUES et al, 2009). De tal modo, expandiram-se as fronteiras geográficas e culturais
das práticas esportivas, que ficaram conhecidas e cada vez mais apreciadas em vários lugares
do mundo.
Com a propagação do fenômeno esportivo, é possível que os esportes disputados na
edição dos JO de 1952 fossem empregados como vitrines, inclusive de movimentos sociais.
Cita-se, como exemplo, o movimento feminista ao nível mundial, o qual teve suas ideias e
ações amadurecidas e articuladas ao longo da década de 1950, manifestando-se com
proeminência na década de 1960 (COSTA, 2005). Com base nisto, é provável que a admissão
das mulheres em torneios de hipismo na edição dos JO de Helsinque, em 1952, não tenha
ocorrido por acaso. Incumbe assinalar que o esporte hípico conservou-se apenas para os
homens nas competições dos JO por mais de 40 anos. Além disto, importa destacar que, a
1 Esta pesquisa contou com o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais
(FAPEMIG). 2 Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes); doutora em Ciências do Movimento Humano. 3 Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); doutora em Ciências do Desporto.
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partir de 1952, nas edições dos JO, o hipismo é o único esporte em que homens e mulheres
competem em igualdade de condições, em uma mesma prova (VIEIRA; FREITAS, 2007).
O hipismo é uma prática esportiva cuja peculiaridade reside no fato de ser a única
modalidade a demandar e a depender da participação de um animal concorrendo em conjunto
com o ser humano. Consiste em uma das práticas da equitação, sendo distinguido como
modalidade esportiva olímpica ao mesmo tempo em que engloba atividades de lazer. A
prática do hipismo compõe, assim, parte das quatro vertentes definidas dentre as modalidades
esportivas da equitação exercidas no Brasil: o hipismo clássico, o hipismo rural, a equitação
de lazer e a equitação terapêutica (ROESSLER; RINK, 2006).
Em termos institucionais, os esportes equestres são administrados, no Brasil, por 18
federações estaduais, todas vinculadas à Confederação Brasileira de Hipismo (CBH), filiada,
por sua vez, ao Comitê Olímpico Brasileiro (COB), e a Féderation Equestre Internationale
(FEI). A CBH, de acordo com a FEI, reconhece as seguintes disciplinas equestres: Salto,
Adestramento, Paraequestre, Concurso Completo de Equitação (CCE), Enduro, Rédeas,
Atrelagem, Volteio e Tambor. Contudo, os esportes que agregam o programa dos JO de Verão
são os seguintes: Saltos, Adestramento e Concurso Completo de Equitação (CCE). Com
relação aos Jogos Paralímpicos de Verão, a modalidade do Hipismo está representada pela
prática do Adestramento Paraequestre (VIEIRA; FREITAS, 2007; ALMEIDA; CARMO;
RODRIGUEZ, 2012). Todavia, segundo Vieira e Freitas (2007), a modalidade do Salto é que
compõe a prática mais divulgada dentre os esportes equestres.
A despeito do fato de que os esportes equestres estão presentes nos JO de Verão desde
1900, até hoje eles têm sido ignorados pelos historiadores do esporte na literatura acadêmica,
inclusive ao nível internacional (HAAN; DUMBELL, 2016; KAY, 2008). Dentre as escassas
publicações sobre a temática das práticas equestres, destaca-se o estudo de Hann e Dumbell
(2016), o qual identificou três etapas distintas no desenvolvimento histórico do esporte
equestre nos JO. Uma primeira conformação do esporte equestre nos JO modernos começou
em 1900 e foi predominantemente suscitada pelas suas relações com os militares até 1948.
O segundo momento de desenvolvimento principiou em 1952 e foi marcado pela
abrangência de civis e mulheres. Mais recentemente, o campo de estudos das relações de
gênero nos esportes equestres, o qual cresceu durante a segunda metade do século XX, lançou
luz sobre os padrões de distribuição de gênero dentro e fora da competição olímpica equestre
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(DASHPER, 2012). A partir dos JO de 1992, em Barcelona, identificou-se uma ampliação
significativa na pesquisa do esporte que enfocou interesses acerca do desempenho e do bem-
estar dos cavalos e dos cavaleiros, anunciando, por conseguinte, a terceira etapa no
desenvolvimento do esporte equestre nos JO, relacionada às mudanças feitas no contorno e na
composição do esporte (HAAN; JOHNSON, 2010). Percebe-se que há muitos aspectos do
esporte equestre que o tornam singular; por exemplo, a afinidade entre atleta e cavalo, além da
combinação do indivíduo com a dinâmica da equipe.
Com relação ao cenário da participação do hipismo brasileiro em JO, geralmente é
resumido às conquistas de duas medalhas de bronze nas provas de saltos por equipe, nos JO
de 1996 e 2000, e a medalha de ouro por Rodrigo Pessoa em Atenas, no ano de 2004. No
entanto, até que estes resultados fossem obtidos em JO, o hipismo brasileiro percorreu um
longo caminho marcado por rupturas e continuidades na sua história. Por mais de 50 anos, os
melhores resultados individuais conquistados por um atleta brasileiro em JO haviam sido dois
quartos lugares na prova por equipes e individual de saltos, com Eloy Menezes montando o
cavalo Biguá, no ano de 1952 (VIEIRA; FREITAS, 2007). Além da modalidade saltos, o
Brasil contou com representantes na modalidade CCE nos JO de Helsinque, em 1952. Dentre
os atletas que disputaram a prova de saltos, encontrar-se-ia Gérson Borges, o qual, conforme
as algumas fontes consultadas, teria apresentado uma participação peculiar.
Perante o cenário exposto, o objetivo do presente estudo foi investigar as práticas e
representações culturais agenciadas no cenário hípico do Rio Grande do Sul, após a
participação do atleta Gérson Borges na edição dos Jogos Olímpicos de 1952. A proposição
da investigação parte da noção de que práticas corporais/esportivas, em especial práticas
equestres, desempenharam uma função proeminente para a história do Rio Grande do Sul, em
particular nos campos da sociabilidade, divertimentos e preservação das culturas (PEREIRA,
2016). Assim, na presente pesquisa, o hipismo foi tratado como uma prática que produz
representações culturais. Considera-se que, da prática esportiva de salto do hipismo, emergem
representações culturais que conformam um imaginário acerca dessa modalidade peculiar à
apropriação que lhe é atribuída, de acordo com a conjuntura histórica e sociocultural a que
esteja agregada (BURKE, 2005; PEREIRA; SILVA; MAZO, 2015).
Nesta direção, os caminhos que nortearam este estudo foram percorridos, com base
nas noções de práticas e representações, tendo como pressupostos teórico-metodológicos a
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perspectiva dos estudos históricos e socioculturais (BURKE, 2005; CHARTIER, 1990;
ELIAS; DUNNING, 1986). De tal modo, discernir as representações esportivas que se
arquitetaram acerca de tal prática exige uma apreensão de como o passado foi sendo
ressignificado e as possíveis elucidações para as expressões atuais deste esporte olímpico. Em
busca da construção de uma versão histórica sobre o hipismo, tratou-se de atribuir-lhe
significados, contextualizá-lo no seu período, analisá-lo e permitir que dele se originassem
diferentes interpretações, por meio da análise documental de fontes impressas.
A pesquisa documental foi realizada no arquivo de sociedades e clubes hípicos,
regimentos de cavalaria, Museu da Brigada Militar e Federação Gaúcha dos Esportes
Equestres, em seus documentos oficiais, tais como: álbuns, discursos, atas e relatórios. Para
além dessas fontes, foram analisados os principais jornais que circulavam no estado, bem
como revistas, classificando as notícias veiculadas nestes a partir do editorial, da reportagem e
do conteúdo. Ainda realizou-se uma revisão bibliográfica em livros, artigos científicos,
dissertações e teses.
A referência básica para a coleta e tratamento das fontes históricas, por meio da
análise documental, foi o livro organizado por Pinsky (2010). Ainda cabe ressaltar que, na
presente pesquisa, para uma análise historiográfica, ao conceber-se a prática equestre do
hipismo como uma prática da qual emergem representações culturais, depreende-se que, das
representações estabelecidas por tal prática podem ou não insurgir outras manifestações
culturais identificadas ou identificadoras de grupos sociais. Para isto, também se concebeu
que as fontes impressas localizadas se constituíram em um meio de difundir tais
representações. O resultado da análise das informações coletadas nas fontes é apresentado nos
tópicos que seguem.
Representações culturais de uma prática corporal equestre olímpica
Ao considerar-se que, no domínio de sua relação interativa, as noções de
“representações” e “práticas” são atravessadas pelas diversas formações culturais, de acordo
com Chartier (1990), tem-se que as práticas suscitam representações, e as suas representações
determinam práticas, em um emaranhado no qual é complexo definir se o princípio está em
certas práticas ou em determinadas representações. Nesta direção, as fontes impressas
analisadas, especialmente jornais e revistas, muito além de meramente proporcionar
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informações acerca das competições e eventos hípicos, produziam representações culturais
sobre os atletas, os cavalos, as hípicas, o público, dentre outros. Assim, faz-se necessário
assinalar que a produção de reportagens e registros sobre um determinado tema, conforme
Dalmáz (2002, p. 14), é o resultado de uma “interpretação do fato elaborada pelos autores das
matérias, como também da seleção do acontecimento e da construção da informação realizada
pela própria imprensa”.
Desta maneira, o que aproxima o trabalho do jornalista ao do historiador é a visão com
que se necessita enfocar os acontecimentos. Isto porque “não se busca a verdade dos eventos,
contudo tão apenas interpretar, para, a partir de uma interpretação subjetiva, tentar registrar
um momento, no caso do jornalismo, ou recuperar o instante, no caso do historiador”
(BARBOSA, 1998, p. 87). É nesta direção que, dentre outras formas de manifestação, as
representações – entendidas como presentificações de uma ausência, onde representante e
representado conservam entre si afinidades e relações de aproximação e distanciamento
(PESAVENTO, 2006) - também são expressivamente constituídas pela imprensa. A referida
autora (2008) lembra que as representações podem, igualmente, serem expressas por normas,
códigos, instituições, juízos, cerimônias, rituais, discursos e imagens.
Para Chartier (1990), a noção de representação é originária de um esquema intelectual
construído e compartilhado por um grupo e capaz de cunhar figuras que possibilitariam um
significado ao presente, uma inteligibilidade ao outro, bem como a decifração de um espaço.
A representação, como também abordada por Hall (1997), consiste em elemento essencial do
processo pelo qual o sentido é construído e intercambiado entre os componentes de uma
cultura. Nesta direção, ao refletir-se acerca da narrativa de jornais e revistas, traz-se, para o
cerne da análise, o tema da cultura. E, como tal, toda cultura demanda uma atividade, uma
maneira de assimilação, uma adoção e uma transformação, isto é, uma interação instaurada na
sociedade (BARBOSA, 2007).
A este respeito, Hall (1997) indica que os significados culturais apresentam
decorrências reais no ser humano, além de serem capazes de regular práticas culturais e
sociais, e ainda fazer parte da reafirmação de uma identidade por meio da percepção de
pertencimento. Esse autor (1997) também afirma que os significados não se conservam ilesos
em sua representação, uma vez que permanecem em constante negociação para se
apresentarem nas mais diferentes circunstâncias. A pesquisa de Vigarello (2008) mostra que,
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desde o século XVII, o ato de montar a cavalo exibe-se como uma tradição distinta com
participação da elite. Para Del Priore (2009), tal costume acaba por “[...] demonstrar um
comportamento, uma maneira de se portar, uma pertença” (p. 16). Por consequência,
representações do hipismo como um conhecimento peculiar, um sinal de capacidade e de
competência, são estabelecidas.
Com base nas noções teóricas explicitadas, é que se puderam identificar, nas fontes
consultadas, passagens e expressões que reafirmavam e ressaltavam o fato do cavaleiro
Gérson Borges, integrante de uma equipe olímpica, ser oriundo do Rio Grande do Sul. É por
meio desta direção que a prática equestre esportiva sul-rio-grandense encaminhou uma
representação de consolidação que emergiu no interior da caserna e desenvolveu-se até as
pistas olímpicas.
Esporte equestre sul-rio-grandense: dos regimentos militares aos palcos olímpicos
O hipismo emergiu, pela primeira vez, como demonstração nos JO de Paris, na França,
em 1900, passando a ser reconhecido oficialmente como esporte olímpico nos JO de
Estocolmo, em 1912 (HAAN; DUMBELL, 2016). Desde o momento em que principiou nos
JO modernos, a constituição do esporte equestre foi, predominantemente, conformada por
relações com os militares até 1948, ano de realização da XIV edição dos JO de Verão em
Londres (Inglaterra). De acordo com as referidas autoras (2016), houve significativas relações
dos militares em uma fase inicial do desenvolvimento do esporte equestre nos JO, entre 1900
e 1948, especialmente no que se refere ao seu formato e regulamentos. De forma que, até o
período de aceitação das mulheres em competições olímpicas de hipismo, ou seja, até os JO
de Verão em Helsinque, em 1952, este esporte conservou-se não só como um monopólio dos
homens, mas também com a dominação integral dos militares (VIEIRA; FREITAS, 2007).
De tal modo, os postos mais elevados do pódio olímpico eram consecutivamente
tomados por oficiais graduados. Este fato expressava algo natural na época, em função de a
formação desse grupo ser específica e de sua relação com a cavalaria e o hipismo ser
contínua. Em pouco mais de meio século de Jogos Olímpicos, os militares ficaram com todas
as medalhas de ouro.
Na contramão deste panorama olímpico, conforme Pereira, Silva e Mazo (2011), já
havia uma presença de mulheres, chamadas de amazonas, na prática do hipismo, desde a
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década de 1930, no contexto sul-rio-grandense. Esses indícios foram encontrados nos
registros acerca das festas hípicas, no Rio Grande do Sul, em revistas mais direcionadas às
elites econômicas, tais como a Revista do Globo, sobressaindo o fato de que as mulheres
evidenciavam muita agilidade ao montar seus cavalos. No hipismo sul rio-grandense, certo
protagonismo já era atribuído às mulheres, ao realçar, até mesmo, suas conquistas em eventos
em que homens competiam com elas. Ao encontro destas evidências, o estudo de Adelman
(2003) mostrou que o hipismo conservava-se em uma elite mais circunscrita, tanto na prática
quanto no seu consumo como espetáculo esportivo e com algumas outras características
proeminentes. A autora (2003) revela que, a despeito de sua conexão histórica com o exército,
o hipismo vem promovendo, nas últimas décadas, uma ampla ascensão das mulheres,
consistindo, algumas vezes, como esporte que “promove a igualdade entre os sexos” (p. 453).
As mudanças e processos de desenvolvimento militares que ocorriam para além dos
limites do esporte, acabaram por estabelecer relações com o desenvolvimento sociocultural do
hipismo. A presente abordagem reconstrutiva nos permitiu destacar a importância das
relações militares no desenvolvimento do esporte equestre no Rio Grande do Sul, onde o
hipismo já era evidenciado no início do século XX, embora ainda limitado aos ambientes
frequentados por militares (PEREIRA; CARMONA; MAZO, 2015). Assim, a organização do
hipismo, no estado, atravessou obstáculos desde a institucionalização das primeiras
associações e entidades hípicas, na década de 1920 (PEREIRA; SILVA; MAZO, 2015); mas,
a despeito disso, permitiu a emergência de atletas olímpicos décadas depois.
A prática do hipismo, no estado do Rio Grande do Sul, foi introduzida pela iniciativa
dos militares da polícia estadual, conhecida como “Brigada Militar”, a partir da década de
1910. O atleta Gerson Borges atuou na instituição, até a sua aposentadoria, no cargo de
coronel. Durante sua vida militar, praticou o hipismo e participou de competições promovidas
pela Brigada Militar. Ao longo da década de 1950, especialmente nos primeiros anos desse
período, Gerson Borges foi campeão paulista e brasileiro de salto e adestramento, além de
professor no Clube Hípico de Santo Amaro (CHSA), em São Paulo, a partir de 1959
(LAÇOS..., 2010). Todavia, antes de fixar residência em São Paulo, consta que integrou a
equipe brasileira nos JO de Helsinque, em 1952, com o cavalo Fiore de Rose, mesmo ano no
qual se destacou em uma competição em Vicky (França), vencendo a prova de seis barras e
estabelecendo a marca de 1,90m, considerada excepcional para esse tipo de competição. Não
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obstante, foram identificadas distintas versões acerca de sua possível participação nos JO de
1952.
Vestígios de uma plausível participação olímpica
A busca por achados da provável participação olímpica de Gérson Borges começa com
a localização de informações acerca de sua partida de Porto Alegre a São Paulo, com a esposa
e seus filhos, em 1959, depois de ter recebido um convite do Clube Hípico de Santo Amaro
para ser professor. A revista deste clube hípico consistiu em uma das fontes averiguadas, a
qual registra que o coronel Gerson Borges, antes de ir para São Paulo, no ano de 1952,
enquanto ainda era capitão da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, integrou a equipe
brasileira de saltos do hipismo nos JO de Helsinque e, como já citado, se sobressaiu em uma
competição na França (LAÇOS..., 2010). Vale a ressalva de que, neste período, a prática do
hipismo, no Rio Grande do Sul, ainda não se apresentava com um desenvolvimento
proeminente em nível nacional, especialmente devido à distância das grandes capitais. Mesmo
assim, Gerson Borges já se destacava nas provas hípicas das quais participava, nacionais e
internacionais.
Já a revista “Brigada Militar – Hipismo” refere que a competição na França foi uma
prova eliminatória para os JO em Helsinque (NOSSA CAPA, 1961), o que, de certa forma,
ratifica a presença de Gerson Borges no evento olímpico. Além disto, esta publicação também
destaca que, por meio desta vitória, Gerson Borges fez valer seu estilo completamente
diferente dos demais atletas, ao manter as rédeas e os estribos longos, com o corpo levantado
e postura sentada, que com frequência conferiam-lhe estes resultados positivos, vencendo a
prova, ao ultrapassar 1,90m. No entanto, também se deve ter em conta que a fonte foi
produzida e direcionada para um público que, essencialmente, partilhava do grupo social e
espaços comuns a Gerson Borges.
Por outro lado, o livro “O Hipismo Brasileiro” de autoria de Ferreira (2007), alude à
participação de Gerson Borges na equipe apenas como um reforço, pois fez uma temporada
preparatória em Milão (Itália). Além disto, segundo o autor (2007), ele teria sido um dos
responsáveis pelos cavalos na viagem de trem da França para Helsinque e, apesar das
dificuldades de comunicação – em função de que Gerson Borges só falava português -, teria
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conseguido fazer com que o comboio parasse em inúmeras ocasiões para que os cavalos
descansassem e, afinal, desembarcassem em excelente condição em Helsinque (FERREIRA,
2007). Ao longo das competições dos JO, contudo, a equipe teria sido composta por Eloy
Menezes, Álvaro de Toledo e Renyldo Ferreira (autor do livro “O Hipismo Brasileiro”),
sugerindo uma atuação secundária, como apoio e reserva da equipe principal, para Gerson
Borges. Em um reforço à possibilidade de esta equipe ter sido composta apenas com estes três
cavaleiros, sem a presença de Gerson Borges, os autores Vieira e Freitas (2007), em seu livro
‘O que é hipismo’, também apontam os resultados somente de Álvaro, Eloy e Renyldo na
edição dos JO de Helsinque.
Outra fonte consultada foi a publicação, em formato de revista, denominada
“Equusul”, que, ao abordar o cenário hípico sul-rio-grandense, referiu a instituição da Copa
de Hipismo Coronel Gerson Borges, no final da década de 1980. Mais precisamente, no ano
de 1989, ocorreu a primeira edição desse evento hípico, em homenagem não só ao atleta sul-
rio-grandense que primeiramente compunha uma delegação olímpica, mas, também, ao 46°
aniversário do Clube Farrapos, pertencente à Brigada Militar. A competição festiva, criada em
sua homenagem, tinha quatro dias de duração, e ocorria nas dependências do Clube Farrapos
dos Oficiais da Brigada Militar. Abrangia provas das modalidades do salto e do adestramento,
das quais Gerson Borges havia tomado parte ao longo de sua carreira hípica.
O percurso de Gerson Borges foi exaltado no texto da revista “Equusul”: “um
cavaleiro de grande destaque no cenário do hipismo nacional” (I COPA..., 1989, p. 20). A
finalidade da competição consistia em homenagear o “melhor cavaleiro da Brigada Militar,
Rio Grande do Sul e Brasil nas últimas décadas” (I COPA..., 1989, p. 20). Isto porque, até
então, Gerson Borges era o cavaleiro que possuía o maior número de títulos na equitação
nacional, além de ter participado de Jogos Pan-americanos e de outros campeonatos
internacionais nas modalidades de salto e adestramento. E, por fim, a revista (I COPA...,
1989) mencionava que ele havia participado de JO, ainda que o texto não traga informações
sobre o contexto de tal episódio.
A revista ressalta, ainda, a presença de Gerson Borges na primeira edição da Copa de
Hipismo Coronel Gerson Borges, competição em sua homenagem, bem como a sua emoção
na ocasião, premiando os vencedores. Na época, ele já residia em São Paulo, e fez questão de
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estar presente no evento. Cabe salientar que ele também era figura reconhecida no panorama
hípico paulista, conforme a revista “Equusul”.
A Copa de Hipismo Coronel Gerson Borges passou a constituir o calendário hípico do
Rio Grande do Sul, concedendo, aos vencedores, o troféu de mesmo nome, cuja posse
decisiva do prêmio seria concedida à equipe que vencesse o torneio por três anos sucessivos.
Identificou-se, no formato deste prêmio, o mesmo modelo do prêmio Wanderpreiss (termo
alemão que, traduzido para o português, significa ‘prêmio móvel’), presente já no futebol do
Rio Grande do Sul e no remo (SILVA, 2011) e, conforme os indícios, parece ter sido
apropriado pelo hipismo também. Em sua homenagem, também foi construído um picadeiro
de Adestramento no Clube Hípico de Santo Amaro, em São Paulo, com o nome: Coronel
Gerson Borges. Desta forma, identificam-se iniciativas no que concerne à reconstituição,
preservação e socialização de elementos alusivos à memória esportiva brasileira e, até mesmo,
à memória olímpica.
Por meio da análise das práticas e representações do hipismo olímpico agenciadas no
estado do Rio Grande do Sul, especialmente após a participação do cavaleiro sul-rio-
grandense Gerson Borges na edição dos JO de 1952, identificou-se que estas são centralizadas
no modelo de desenvolvimento eurocêntrico deste esporte. Para além disto, na mesma direção
apontada por Haan e Dumbell (2016), são estabelecidas relações, com os militares, ligadas ao
esporte, o que também permitiu apontar algumas alusões quanto à relevância de um elitismo
de classe social. Em consonância com os achados em Pereira, Silva e Mazo (2015), a prática
do hipismo, afora o meio militar, agregando homens e mulheres das elites econômicas sul-rio-
grandenses, desvela que tal esporte produziu representações de classes sociais distintas de
maneira econômica no período estudado. Desta forma, os indícios encontrados a respeito da
ascendência social do atleta Gerson Borges, assim como de demais cavaleiros e amazonas
envolvidos com a prática do hipismo em outros locais do Brasil, indicam uma proximidade da
realidade sul-rio-grandense com o panorama brasileiro.
Ademais, a partir da provável participação de Gerson Borges nos JO, ainda foram
identificadas possíveis representações vinculadas a uma ideia de identidade nacional, como,
por exemplo, na passagem da revista “Equusul”, referindo-se ao atleta sul-rio-grandense como
"[...] um cavaleiro de grande destaque no cenário do hipismo nacional" (I COPA..., 1989, p.
20, grifo nosso). Esta possibilidade de interpretação corrobora com Rubio (2010), a qual
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apresenta, como conceito primeiro dos JO da Era Moderna, e que posteriormente foi
perpetuado, a comemoração de jogos de caráter universal, cujos participantes estariam
acoplados a representações de nacionalidade.
Considerações finais
A presente investigação propôs indicativos de possíveis representações culturais
produzidas no panorama hípico do Rio Grande do Sul, posteriormente à participação do
cavaleiro sul-rio-grandense Gerson Borges nos JO de 1952. Uma análise documental das
fontes impressas evidenciou que, a despeito do conflito entre distintas versões acerca de sua
participação como um atleta na equipe brasileira ou somente na delegação nacional olímpica,
as representações olímpicas de Gerson Borges estavam agregadas a um imaginário de
nacionalidade brasileira e, simultaneamente, a valores regionais do Rio Grande do Sul. Além
disto, também foram identificadas representações culturais compostas com base em um estilo
aristocrático de se existir, atrelado às elites, e à destreza militar. Igualmente, tem-se que estas
representações culturais acabaram por originar e serem originadas por condutas e práticas
socioculturais, dotadas de força integradora e coesa.
É provável que tais representações olímpicas nacionais e regionais tenham sido
forjadas em função de uma conjuntura de enaltecimento da identidade brasileira diante de um
regime político ainda extremamente ligado ao Estado Novo (1937-1945), um aparelho de
administração autoritário e desfraldado com o golpe de novembro de 1937, no Brasil, como
ainda a um movimento cultural, disposto concomitantemente, e que apontava para um
fortalecimento de uma identidade regional do Rio Grande do Sul, o Movimento
Tradicionalista Gaúcho. Ainda cunharam-se representações alusivas à habilidade de Gérson
Borges com os cavalos, vinculada à sua identidade militar.
Também se identificou a solidificação da Sociedade Hípica Porto Alegrense, a partir
da década de 1950, como a entidade fundamentalmente responsável pelo desenvolvimento de
atletas e cavalos do hipismo sul-rio-grandense os quais, posteriormente, chegariam a
participar de edições seguintes dos JO. Desde então, afora militares, cavaleiros e amazonas
civis começaram a se sobressair no hipismo. Não obstante, a possível conquista do coronel
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Gerson Borges, como participante dos JO, não foi esquecida. Em seu tributo, foi cunhado um
evento competitivo hípico permanente no calendário hípico do Rio Grande do Sul, além de
um picadeiro de Adestramento, arquitetado no Clube Hípico de Santo Amaro, em São Paulo,
com o seu nome. De tal modo, são constituídos atos no que diz respeito à recuperação e
socialização de conhecimentos alusivos à memória esportiva brasileira e, até mesmo, às
recordações olímpicas.
Pesquisas porvindouras, assim, poderiam abarcar diferentes fontes, de distintas
naturezas, tais como fontes imagéticas e orais, de modo a propiciar, no decurso dos métodos
de análise e investigação, um cruzamento entre os dados das mesmas e, assim, indicar,
inclusive, uma abertura de novas referências teóricas. Ainda em tempo, ao considerar que o
enfoque deste estudo constitui as práticas e representações culturais agenciadas no cenário
hípico no estado sul-rio-grandense, pesquisas futuras poderiam adotar um questionamento
mais abrangente, comparativo entre panoramas equestres esportivos do Rio Grande do Sul e
de outros estados brasileiros, apoiados em trajetórias de cavaleiros e amazonas destes
respectivos locais, para além das demarcações sul-rio-grandenses; esta, portanto, igualmente
seria uma linha propícia para novas investigações.
Referências
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