joão antônio: uma biografia literária

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1 João Antônio: Uma Biografia Literária Tese de Doutorado Orientador: Joaquim Alves de Aguiar Aluno: Rodrigo Lacerda Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada

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Page 1: João Antônio: Uma Biografia Literária

1

João Antônio: Uma Biografia Literária

Tese de Doutorado

Orientador: Joaquim Alves de Aguiar

Aluno: Rodrigo Lacerda

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada

Page 2: João Antônio: Uma Biografia Literária

2

Essa pesquisa não teria sido possível sem o apoio da

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

(FAPESP). Desde quando se tratava ainda de um Mestrado,

e depois, quando promovido a um Doutorado Direto,

este projeto sempre recebeu de seus consultores

o máximo apoio e a mais produtiva colaboração.

Page 3: João Antônio: Uma Biografia Literária

3

Resumo:

Este trabalho visa entender o amálgama de fatores – biográficos, sociais,

psicológicos e, claro, literários – que resultou no estilo maduro do escritor

João Antônio. Conclui que após uma fase inicial, em que se aproxima do

estilo modernista da primeira hora, ele desenvolve o que se chama aqui

de um “regionalismo urbano”, e que o último passo para seu estilo

maduro é a fusão entre jornalismo e literatura.

Abstract:

This work envisages to understand the mingle of factors – biographical,

social, psychological and, obviously, literary – that resulted in the mature

writing style of João Antônio. It concludes that after an initial stage,

drawn to the first hand modernist style, he develops what is here called an

“urban regionalism”, and that the last step to his mature style is the fusion

between literature and journalism.

Palavras-chave/ Key words:

biografia - biography

estilo - style

modernismo - modernism

regionalismo - regionalism

jornalismo - journalism

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Sumário

Apresentando João Antônio, 5

Capítulo 1 — 1913 a 1963

Origem trasmontana, 26; Presidente Altino, 33; A crise de 1929 e a música, 36; O

casamento e o frigorífico Armour, 39; Estado Novo, primeiro filho, 43; O Morro da

Geada, 46; Formação religiosa, 50; Vila Pompéia, 52; Um espírito proverbial, 59;

Primeira incursão na “malandragem”, 65; Sai a música, entra a literatura, 71; Vila

Jaguara e novo empreendimento paterno, 75; Falência, isolamento familiar e

literatura, 76; Tempo de saias, sinuca e bebida, 83; Graciliano, Noel e a 2a dentição

literária, 95; Um primeiro conto e dois maus poemas, 100; Passagem pela caserna,

105; Cabeça aberta pela literatura, 108; Mudança para o Jaguaré e incêndio, 116;

Perda e Recuperação de seus originais, 118.

Capítulo 2 — A alma das Cartas

Marcos de início de carreira, 127; Algumas definições de literatura, 131; Vocação

para o conflito, 137; Idiossincrasias de um jovem escritor, 148; Ciclotimia?, 154;

Isolamento e rejeição ao amor, 159; Amor x cotidiano, 166; Fontes e establishment

literário, 171; Pilares da inserção literária, 173; Uns malandros inéditos, 183;

Alianças secundárias, uma força para os amigos e a ética das alianças, 192; Diga-me

com quem tu andas..., 204; Encruzilhadas da segunda onda modernista, 218.

Capítulo 3 — Impressão e Movimento

Matéria biográfica, 233; Contos de homens, 246; O Espírito da Cidade, 248; Estado

de Ebulição, 260; Da Autobiografia Descontínua à Fantasia em Liberdade, 267; Um

Estilo Bem Comportado, 273; Um Antônio de Alcântara Machado Deprimido, 281; O

Regionalismo Urbano de João Antônio, 289.

Capítulo 4 — Literatura na Realidade

São Paulo x Rio de Janeiro, 306; Primeira Redação de Jornal, Primeiro Amor, 318;

Problemas no Amor e no Jornalismo, 325; Jornalismo e Projeto Literário: A

Experiência no Jornal do Brasil, 356; O Jornal do Brasil, 363; Revista Cláudia, 385; A

Realidade, 394; A Explosão de Gêneros, 410.

Para nunca mais, 428

Bibliografia, 461

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5

Apresentando João Antônio

Rio de Janeiro, Copacabana, Praça Serzedelo Correia, número 15A.

No dia 31 de outubro de 1996, o apartamento 702, na cobertura do edifício,

foi encontrado pela polícia na mais perfeita ordem. Os pesados móveis de

jacarandá estavam cada um em seu canto; a foto de Pixinguinha aos 17

anos, já de flauta em punho, bem pregada na parede; o disco raro de Noel

Rosa, o orgulho da coleção, com sua capa desenhada por Di Cavalcanti,

ocupava solenemente seu respectivo lugar na estante; a imagem de um

jogador de sinuca, envolto em sombras, reinava sobre a mesa de trabalho, e

até a televisão, habitual delatora de tragédias imprevistas, estava

discretamente apagada. As únicas coisas fora de lugar eram alguns livros

empilhados no sofá da sala, um embrulho de carne abandonado na pia da

cozinha e o maço de correspondência não recolhido junto à fresta da porta

de entrada. A data de postagem da carta mais antiga era 8 de outubro.

João Antônio estava deitado na cama, de barriga para cima, com uma

perna esticada e uma apoiada no chão. Sem sapatos, vestia calça de abrigo e

camiseta. 1

Na secretária eletrônica, várias mensagens não respondidas se

acumulavam. Recados de seu único irmão, Virgínio Antônio, que nunca

trocara o subúrbio onde a família Ferreira havia fincado suas raízes,

Presidente Altino, um subdistrito de Osasco, São Paulo. Recados dos

amigos, entre eles o do publicitário Paulo Maldonado, deixado no dia 14 de

outubro, convidando João Antônio para uma leitura que faria no dia

seguinte, no Centro Cultural Banco do Brasil, na Cidade. E por fim recados

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6

profissionais, como o de uma faculdade em Santa Catarina, a qual, por

aqueles dias, o escritor acertara de visitar e lá fazer uma palestra. 2

Já fazia 33 anos que o primeiro livro de João Antônio – Malagueta,

Perus e Bacanaço, certamente o mais conhecido, talvez o melhor – fora

publicado. Sucesso de crítica na época e depois, o livro trouxera-lhe

prêmios, a consagração como o “porta-voz dos marginalizados” na

moderna literatura brasileira, e comparações com grandes cronistas

urbanos, entre eles os modernistas da primeira geração, e também com

outros grandes escritores, não necessariamente cronistas, urbanos ou

modernistas. Trouxera-lhe, também, num curto espaço de tempo, amizades

com intelectuais, artistas de outras áreas, editores, homens de letras e de

imprensa. E lhe havia trazido, sobretudo, em 1965, o invejável convite para

ir trabalhar no Rio de Janeiro, como repórter-especial no Caderno B do

Jornal do Brasil.

João Antônio nascera em 1937 e se criara em quase favelas, como o

Beco da Onça, na Vila Pompéia, ou em vizinhanças ainda com ares rurais,

como o Morro da Geada, nas imediações de Presidente Altino. Deixara o

convívio diário com a família pela primeira vez aos 23 anos, após um

incêndio na casa dos pais, causador da mais completa desorganização na

vida de todos. João Antônio Ferreira Filho, o Joãozinho, como era chamado

na intimidade, após o incêndio ficou sem pouso fixo, dormindo de favor

cada noite em um lugar; na casa de amigos da boêmia e da sinuca, como

hóspede na casa dos pais, em hotéis e pensões, com namoradas aqui e ali,

com prostitutas da Boca-do-Lixo etc. Foi quando seu livro aconteceu.

Para o jovem ex-office-boy, ex-assessor de contabilidade em um

frigorífico, ex-bancário, e então redator anônimo numa pequena agência de

publicidade, o convite do Jornal do Brasil, a ida para a Cidade

Maravilhosa, na época ainda a capital cultural do país, significava o início

de uma vida nova. No mínimo.

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7

“Meu livro é bonito. O que sinto é meio difícil de expressar. O que já

senti e aquilo que sinto as primeiras vezes que o vi e folheei, é indescritível.

Faz dois-três que Malagueta, Perus e Bacanaço circulam nas

principais livrarias paulistanas. O que estou sentindo é algo tremendo.”

João Antônio 3

“Beleza Tropical é no Nordeste. Beleza sem adjetivo é no Rio. Não

vim para o Rio. Corri para o Rio.”

João Antônio 4

Mas o tempo havia passado. Muita coisa acontecera desde o dia 21

de junho de 1963, data da primeira noite de autógrafos, na Livraria

Teixeira, em São Paulo, quando seus convidados — familiares, vizinhos,

amigos da família, colegas de trabalho e de sua precocemente desenvolvida

rede de relações no meio literário-editorial, afora alguns conhecidos do

mundo boêmio da sinuca e umas poucas prostitutas mais amigas — foram

comemorar a saída do livro, em cuja história principal três personagens

atravessam a noite paulistana jogando suas “vidas” sobre o pano verde. 5

Esta combinação entre proletariado, malandragem e literatura, na

vida, na sintaxe e na semântica, de fato marcaria a personalidade do

escritor, de fato identificaria-o, de maneira irreversível, aos olhos dos

críticos e dos leitores.

Entre as décadas de 60 e 90, porém, entre o lançamento do livro e a

chegada da polícia a seu apartamento, a malandragem tradicional havia

deixado de existir. Sobraram apenas os rótulos.

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“A cidade deu em outra.

Deu em outra cidade, como certos dias dão em cinzentos, de repente,

num lance. As caras mudaram, muito jogador e sinuqueiro sumiu na

poeira. Maioria grisalhou, degringolou, esquinizou-se para longe, Deus

saberá em que buraco fora das bocas-do-inferno em que eu os conheci. Ou

a cidade os comeu.”

João Antônio 6

“Já no início dos anos 80 eu era um autor para quem os ventos da

moda literária não ventavam lá muito a favor, e que chegava a receber

alguns tratamentos reticentes, não direi caricaturais, mas esvaziantes,

como: Rabelais da Boca do Lixo, Astro da Literatura Amassada, Clássico

Velhaco, e outros. Afinal, vivemos num país em que a estrela passa a carne

de vaca com uma rapidez meteórica.”

João Antônio 7

E, para ele, a literatura era mais importante que tudo. Mais até do que

a família. Marília, sua principal ex-mulher, pois mãe de seu único filho,

Daniel, e próxima até sua morte, saiu do casamento no início dos anos 70,

decidida a morar fora do país. João Antônio não era um marido fácil,

embora seu incrível apetite para a conversação o tornasse extremamente

envolvente. Não era fácil, entre outros motivos, porque, muito ciumento,

não permitia que Marília, também jornalista, trabalhasse fora de casa, e

tratava ele mesmo de conseguir-lhe pautas e encomendas. Além disso, diz

ela: “Eu e o Daniel éramos alguma coisa que ficava no quarto dos fundos.

Ele não contava para ninguém que nós existíamos. A não ser nos livros, nas

dedicatórias”. 8 Marília se casaria mais tarde com um engenheiro inglês de

multi-nacionais, criando Daniel enquanto acompanhava o novo marido em

suas transferências pelo mundo afora. Ao falar a outra mulher muito

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importante na vida do escritor, a colega de letras e confidente Ilka

Brunhilde Laurito, a própria Marília concluiria: “Ele procurou por você ou

alguém como você durante toda a vida. Não conseguiu encontrar porque

também queria dar satisfações a sua literatura, e acabava com alguma

mulher do submundo ou de classe social e intelectual inferior a sua. Por

isso acendia um eterno fogo de palha”. 9

Quanto ao filho Daniel, embora mantivesse boas relações com João

Antônio, morava longe há vários anos, tendo se radicado, a partir da

juventude, nos Estados Unidos. Tinha o pai como um amigo, e o padrasto,

como pai.

O intencional isolamento familiar do escritor parecia haver chegado

no auge, naquele último dia de outubro de 1996, início do verão carioca.

Haveria na secretária eletrônica, entre as mensagens acumuladas, alguma

de Marília, ou de Daniel? Talvez sim, provavelmente não. Os jornais do dia

1o de novembro nada dizem a respeito.

Apenas alguns amigos, sem notícias de João Antônio há quase trinta

dias, estavam preocupados. A ponto de publicar notas aqui e ali na

imprensa carioca, solicitando qualquer informação sobre seu paradeiro. Só

então a família, por eles alertada, deu-se conta de que alguma coisa de mais

grave poderia ter acontecido ao escritor longe de casa. Foram contactados

os hospitais da cidade, as delegacias e, como não poderia deixar de ser, o

Instituto Médico Legal. Nada se apurou. O irmão Virgínio, em declarações

aos jornais, explicou a despreocupação inicial: “Ele sempre teve o hábito de

desaparecer por uns dias”.

O escritor Antônio Callado, comentando a posteriori o acontecido,

foi direto ao ponto, com sua proverbial elegância: “Quando fiquei sabendo

que tinha sumido, achei que tivesse desaparecido como o boêmio, que some

por uns dois dias e depois volta”.

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Mas um jornal carioca, com a rispidez factual típica da imprensa, pôs

abaixo as meias-verdades: “Ultimamente, João Antônio alternava

momentos de lucidez com outros de amnésia, atribuída ao alcoolismo. Ele

vinha bebendo muito, o que fez alguns amigos se afastarem. E tinha o

hábito de viajar sem avisar”. A demora da família em se alarmar era

compreensível, afinal.

“A literatura nos tira tudo e só nos dá a embriaguez absoluta do ato

de fazer. Nem um pinguinho mais. Ou, então, você não gosta dela.”

João Antônio 10

O jornalista Carlos Menezes, residente a poucos quarteirões da praça

Serzedelo Correia, foi, a pedido do irmão do escritor, até a portaria do

edifício 15A. Conversando com o porteiro, teve confirmado o

desaparecimento de João Antônio.

Ele fora visto pela última vez entre os dias 7 e 9 de outubro, por

outro porteiro do prédio, chamado Francisco Artenísio. Vestia então

bermuda, camiseta e calçava sandálias. Estava bêbado, tossia e fumava

muito.

Na manhã do dia 31 de outubro, portanto mais de vinte dias depois,

igualmente preocupado com o sumiço do amigo, o cartunista Lapi

telefonou insistentemente para vários conhecidos comuns, pedindo

informações. Ninguém sabia de nada. Já no fim da tarde, Lapi tentou

novamente o telefone do próprio desaparecido. Do outro lado da linha,

quem atendeu foi a delegada Ângela Costa.

No apartamento do escritor há horas, ela chefiava pessoalmente a

ação de alguns policiais militares da 12a Delegacia de Polícia. A 12

a está

situada na rua Hilário de Gouveia, próxima à Praça Serzedelo Correia, e é,

com certeza, uma das mais agitadas de Copacabana.

Page 11: João Antônio: Uma Biografia Literária

11

O bairro, naquele miolo, era um resumo do Brasil, para o bem e para

o mal. A Praça Serzedelo Correia, onde João Antônio morava, era o resumo

do resumo.

“Cada milímetro tem história. Cada horário, seu povo particular.

Seu chão é talvez o mais vivido e sofrido de Copacabana. Recebe de tudo,

não rejeita nada, espécie de capital cultural do bairro (...). Não se pode

negar que seja um dos últimos redutos livres da Zona Sul do Rio de Janeiro

(...). Na Praça dos Paraíbas fervem, enquanto o progresso não vem,

botecos xexelentos, de uma portinha só. Apertados, abafados, fedidos, do

tipo engasga-gato, para receber vizinhando o desemprego, o lúmpen, o

provisioriado. O zero.”

João Antônio 11

O porteiro do edifício 15A, instado pelos demais moradores, que

reclamavam de um forte mau cheiro, havia subido no telhado no início

daquela tarde. De fato, a podridão empesteava o ar. E um enxame de

moscas debatia-se contra a vidraça do apartamento 702.

Após ouvir o relato de Francisco Artenísio, foi a vizinha do 502

quem se contentou com os indícios existentes e ligou para a 12a DP.

Falando com a delegada Ângela Costa, pediu-lhe que viesse arrombar a

porta do apartamento do escritor João Antônio.

Pouco tempo depois, acompanhada de um chaveiro, a polícia se

apresentou. Este driblou a fechadura sem maiores dificuldades, e abriu

caminho para a descoberta do corpo.

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“O escritor João Antônio aparentemente morreu sozinho “nesse local

chamado ainda hoje de Brasil” e ficou morto vários dias em seu quarto. Eu

digo “aparentemente”, pois desconfio que o escritor João Antônio estava

morto “nesse local ainda hoje chamado de Brasil” algum tempo antes

disso...”

Fernando Bonassi 12

“Um coração acordado, espantado com o espetáculo da vida e com

alguns silêncios que as criaturas fazem e que tento ouvir, abelhudo,

cauteloso e, creio, respeitoso. A meu modo.”

João Antônio 13

Num primeiro momento, a delegada supôs que a morte tivesse

ocorrido há pelo menos vinte dias. Chamada imediatamente, a perita

Márcia Gonçalves, após examinar o cadáver, concordou com seu parecer.

Afinal, o corpo estava em adiantado estado de putrefação, já

esqueletizando, e isso de fato indicava que João Antônio havia morrido, se

tão tarde, no dia 11 de outubro.

Foi de outra opinião Suzana Vargas, a organizadora do projeto “Roda

de Leituras”, que então ocorria no já citado Centro Cultural Banco do

Brasil. Conforme suas declarações aos jornais, a data da morte do escritor

ficava entre a noite do dia 14 de outubro e a manhã do dia 15. Se isso fosse

verdade, o convite de Paulo Maldonado na secretária eletrônica chegara ao

escritor na noite exata de sua morte.

No mesmo dia 14 de outubro, uma carta de João Antônio, datada do

dia 10, chegou à casa do veterano jornalista Mylton Severiano da Silva. A

correspondência que os dois amigos mantinham é a única a rivalizar, em

volume e intensidade, com a de Ilka Brunhilde Laurito. João Antônio lhe

escrevia, muitas vezes, sem nem um único dia de intervalo entre um

Page 13: João Antônio: Uma Biografia Literária

13

aerograma e outro. A amizade com Mylton, ou Myltainho, tivera início em

1967/68, na redação da revista Realidade, onde ele já trabalhava quando

João Antônio lá publicou, ainda em caráter de colaboração esporádica, seus

primeiros “contos-reportagem”. A Realidade era então um grande sucesso

editorial, inovando nos temas e nos enfoques, no design gráfico e no estilo

fotográfico. Um verdadeiro marco do jornalismo brasileiro, cuja equipe

João Antônio não demorou a integrar. Nesta época, a redação vivia o

melhor dos dois mundos: atitude política, ousadia estética, e o caixa de um

grande grupo empresarial. De lá, quando logo depois, em 1969, a equipe foi

desmontada pelos constrangimentos políticos que provocava, os dois

amigos partiram juntos, ainda que morando em cidades diferentes, para

uma entusiasmada participação na imprensa alternativa dos anos 70.

Myltainho ofereceu para publicação, n’O Estado de São Paulo, a carta

que recebeu no dia 14 de outubro de 1996, acreditando ser ela a última

redigida pelo amigo. Era uma suposição razoável. O texto veio a público

uma semana após a descoberta do corpo. Myltainho situa a data da morte de

João Antônio entre os dias 11 e 14 daquele mês.

Do núcleo familiar original do escritor, agora sobrava apenas o irmão

Virgínio. O pai morrera em 1987, com adiantada artério-esclerose nos

membros inferiores e um quadro diabético agudo, que o obrigara, tempos

antes, a amputar uma perna. Já em novembro de 1995, quase exatamente

um ano antes de sua morte, João Antônio havia perdido as duas mulheres a

quem mais fielmente amou durante toda a vida. Primeiro, a avó Nair. Em

seguida, poucas horas antes da missa de sétimo de sua avó, morreu sua

mãe, Irene Gomes Ferreira.

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14

“Todos os meus amigos, conhecidos, parentes e chegados estão

atrapalhados no país que sofre de melancolia da escravidão e em que

somos tratados como massa de manobra. O miserê que vi no Largo de

Pinheiros, no Largo da Batata é um quadro asiático sem a cultura da Ásia,

claro. Camelô acabou. Agora são uma legião triste, de cor enferrujada, só

os empregados dos contrabandistas. No Largo de Osasco se planta um

pedaço do Nordeste miserável. E a alegria está mais longe dali do que da

lua. É o Brasil das periferias esquálidas.”

João Antônio 14

“Agora, tempos piorados. E as nossas cidades nunca souberam

esconder o miserê. O que tinha, o que tem de miséria, sempre gritou.

Hoje a miséria desceu o morro e escorreu de algum canto rural e se

plantou no asfalto. A rua virou lugar de tumulto e isto não é nenhuma

novidade. Os tempos estão brabos e, sem pedir licença, a miséria substitui

a pobreza em plena rua. Feia, suja, ela dá também para atrevida,

perturbadora, inconveniente. À noite, se enfia debaixo do que pode, mais se

agasalhando do que se escondendo; de dia, mostra a boca desdentada e se

arreganha pedindo ou furtando pelas calçadas. São famílias pouco família;

as crianças cheiram cola e fumam logo cedo e os mais velhos pedem,

roubam, exigem, xingam. Há tropelias, correrias, gritarias e ninguém está

brincando de pega-ladrão.”

João Antônio 15

Page 15: João Antônio: Uma Biografia Literária

15

Cipião Martins Pereira, ex-colega na redação do Jornal do Brasil nos

anos 60, apareceu no edifício 15A para presenciar a retirada do cadáver, a

ser conduzido ao Instituto Médico Legal, onde a causa mortis seria

oficialmente identificada. A delegada Ângela Costa sempre deixou claro

que não acreditava em assassinato. “Ele deve ter passado mal e, como não

tinha ninguém, morreu sem assistência” – declarou ela aos jornais. A

morte natural era quase evidente. Provavelmente, coração. O apartamento

só fora arrombado na chegada da polícia, e também não havia, em

nenhum dos cômodos, qualquer sinal de violência. Segundo o mesmo

Cipião Pereira, “A morte do escritor era parte da tragédia da grande

cidade. João Antônio era um solitário que, mesmo doente, sentindo

dormência nos dedos [devido à crônica e possivelmente hereditária má

circulação], resistia a ser levado ao médico”. Mas não era só isso. A

tragédia de João Antônio tinha uma dupla face. Além da interiorização do

caos social — sofrido por ele de maneira muito peculiar, pois sua infância

de extrema pobreza o deixara irremediavelmente sensibilizado para a

realidade dos menos favorecidos —, a dor pela degradação das condições

de vida das classes baixas tinha uma segunda origem. Uma insolúvel

crise ético-ideológica-literário-existencial. João Antônio sempre

lamentara o fato de que seus leitores, na maioria provenientes da classe

média, não pertenciam à faixa social que seus contos tematizavam, da

qual ele procedia e cuja beleza invertida procurava demonstrar. Mas, com

o passar dos anos, a desilusão de João Antônio com a classe média

brasileira crescera galopantemente. O irmão Virgínio se recorda bem

disso: “Ele responsabilizava a classe média pelas dificuldades do

capitalismo brasileiro que não tinha tradição; o objetivo da classe média

era servir; ele costumava dizer que todo aquele pessoal só era de esquerda

enquanto não passavam a ser empresários”. 16

Page 16: João Antônio: Uma Biografia Literária

16

Sem reconhecer o potencial dramático, a humanidade, da classe

média, sua literatura ficara obrigada a se alimentar exclusivamente

daquilo que mais condenava: a pobreza, ou a miséria. A crítica social

embutida em seus textos não o escondia, e os rótulos impostos pela crítica

ou não lhe permitiam se renovar ou simplesmente estavam cegos para as

variações literárias que esboçava.

Para piorar, à medida que os anos passaram, João Antônio se viu

impotente para evitar uma crescente promiscuidade com aquela que era,

na sua opinião, a maior inimiga do povo e da cultura popular: a classe

média. Ele abrira mão dos tradicionais valores familiares, da convivência

familiar, de alguns bons empregos que tivera, da amizade dos bem-

sucedidos, de tudo que remetesse a seu “aburguesamento”, mas nada

evitou o pior. O desaparecimento da antiga malandragem, o acirramento

dos conflitos sociais, a dose sempre crescente de violência no dia-a-dia da

cidade, e a própria carreira de escritor, haviam comprometido seu

convívio profundo com os “merdunchos” que tanto admirava, colocando-

o em outros ambientes, apresentando-o a outros países e realidades,

“enriquecendo-o” culturalmente, enfim, alçando-o a uma faixa mental-

social em que não estava confortável.

João Antônio, ao final da vida, era, portanto, um cidadão

desiludido com o processo histórico do país, um autor enredado pelas

contradições de sua própria literatura, e um homem deslocado em sua

nova classe social.

Page 17: João Antônio: Uma Biografia Literária

17

“Desaprendi a pobreza dos pobres. E, já creio, aprendi a pobreza

envergonhada da classe média. (...) Quando os conheci e gostei deles,

quando me estrepei e sofri na mesma canoa furada, a perigo e a medo, eu

não tinha esses refinamentos, não. Mudei, sou outra pessoa; terei tirado de

onde estas importâncias e lisuras? De teu pai não foi, mano.”

João Antônio 17

“É que a brutalidade da exploração capitalista no Brasil parece ter

aumentado nos últimos anos, e seu reflexo na esfera ideológica,

principalmente entre intelectuais de classe média (escritores, professores,

artistas, jornalistas), tende a se polarizar em duas atitudes: a cooptação de

um lado, ostentando o brilho do dinheiro justificado pelo elogio da

racionalidade, da modernidade, do internacionalismo; o inconformismo do

outro, levantando a arma da indignação e do rancor. Se a primeira atitude

tem algo de cínico em seu exibicionismo triunfante, a segunda não

consegue esconder uma incômoda, desajeitada, visão do processo social.”

João Luiz Lafetá 18

Alguns dias após a descoberta do corpo, mais especificamente no dia

6 de novembro de 1996, a revista Istoé desmentiu as prováveis data de

morte apontadas pela polícia e sua perita. Em 14 de outubro, portanto três

dias depois do início previsto pela polícia para a putrefação do cadáver,

João Antônio havia telefonado à redação, convidando a revista para uma

palestra em que discorreria sobre a crônica moderna. Ao resumir sua

posição sobre o tema, suas palavras textuais foram: “Vamos mostrar que

hoje em dia os verdadeiros cronistas não existem mais”. (Só os cooptados

não eram nostálgicos nos anos 90.)

Page 18: João Antônio: Uma Biografia Literária

18

Remover o corpo do local onde fora encontrado mostrou-se mais

difícil do que se imaginaria. Devido à esqueletização, pedaços de carne

soltavam dos ossos quando se tentava suspendê-lo. E caíam na cama,

desfazendo-se até o chão. Naquele ano de 1996, a tão esperada reedição de

seu primeiro livro vinha sendo retumbantemente anunciada, com a reunião

da fortuna crítica até então produzida. Terminaria, porém, sem jamais vir à

luz. Apenas duas antologias de seus contos haviam saído recentemente:

Patuléia e Sete Vezes Rua.19 Vinham, no entanto, comprometidas pelo

simples fato de não trazerem quase nenhum texto inédito, além do caráter

para-didático das edições, com capas puxando para o visual infanto-juvenil,

ou simplesmente feias, e um formato acanhado. Por fim, a má sorte dessas

antologias talvez se deva também a pouca tradição de ambas as editoras em

literatura. Muito diferente dos anos áureos da Civilização Brasileira, editora

por excelência dos intelectuais e artistas de esquerda, que fez história no

mercado editorial do país. O último livro propriamente dito de João

Antônio, Dama do Encantado, viera à luz no mesmo ano de 96, apenas

alguns meses antes do dia 1o de novembro.20 O que mostra ser este um

autêntico novo “lançamento”, de maior relevância no conjunto da obra do

escritor é, também, o melhor acabamento da edição, o fato da editora não

estar dirigindo-se exclusivamente ao mercado das adoções escolares, e o

investimento feito na legitimação crítica dos textos ali reunidos, estratégia

explicitada na encomenda de orelhas ao escritor Moacyr Scliar, integrante

da mesma geração literária de João Antônio, e de um prefácio ao professor

João Alexandre Barbosa, da Universidade de São Paulo. Acima de tudo,

porém, dos três livros publicados naquele ano, Dama do Encantado é o

único que traz a marca de uma variação literária importante. Uma possível

resposta aos desafios que sua obra lhe impunha. Percebe-se nele um certo

deslocamento do foco, que deixa os marginalizados no sentido estrito do

termo, ou a nostalgia da antiga malandragem, e se detém em figuras de

Page 19: João Antônio: Uma Biografia Literária

19

variadas procedências e circunstâncias sociais. É um livro de retratos de

personalidades, eminentemente. Mesmo alguns dos textos já havendo sido

publicados em outras versões, por jornais e revistas, e mesmo os retratos já

constituindo, desde os anos 70, um de seus campos de intervenção literária,

um livro quase inteiramente composto por esse tipo de “conto”

representava um fato novo. Era como se ele, de sua nova posição social,

tentasse uma nova síntese entre popular e erudito, tentasse escapar da

“armadilha” que sua literatura lhe havia armado. 21

Apesar disso, era forçoso reconhecer que o livro não havia

“acontecido”. Fora pouco resenhado pelos jornais e estava longe de esgotar

sua primeira edição. E pensar que, vinte anos antes, os cinco mil

exemplares da primeira edição de Casa de Loucos foram vendidos em três

dias! 22 Sua Dama do Encantado parece ter chegado tarde demais.

Após escrever as tais orelhas, conta Scliar que recebeu uma carta de

João Antônio, agradecendo pelo apoio. “Isso me deixou perplexo e

consternado. Apoio? Um grande escritor como ele precisava de apoio? Mas

assim era: a trajetória de João Antônio, com seus altos e baixos, é um

exemplo das vicissitudes pelas quais passa o escritor brasileiro.” Em seus

comentários feitos imediatamente após a notícia da morte do antigo

companheiro, Scliar disse ainda: “Ele passou por todas as vicissitudes do

escritor popular (...). Era uma pessoa muito alegre, mas a gente sentia uma

certa tensão, uma certa ansiedade. Era um homem sofrido e, embora nunca

falasse desse sofrimento, a gente podia sentir sua amargura pela falta de

reconhecimento”.

Page 20: João Antônio: Uma Biografia Literária

20

“Uma das coisas mais importantes da ficção literária é a

possibilidade de ‘dar voz’, de mostrar os indivíduos de todas as classes e

grupos, permitindo aos excluídos exprimirem o teor de sua humanidade,

que de outro modo não poderia ser verificada. Isso só é possível quando o

escritor, como João Antônio, sabe esposar a intimidade, a essência

daqueles que a sociedade marginaliza, pois ele faz com que existam, acima

da sua triste realidade.”

Antonio Candido 23

Meses antes de sua morte, João Antônio havia dito em uma

entrevista que só sairia da Praça Serzedelo Correia, onde morou

aproximadamente 27 anos, quando ela tivesse seu nome.

Os jornais do dia 01 de novembro mencionam que o irmão Virgínio

era esperado no Rio de Janeiro para o dia seguinte, ou seja, dois dias após a

descoberta do corpo. A ex-mulher e mãe do único filho chegaria em

seguida. O filho Daniel, que morava nos EUA, recebendo a notícia durante

uma festa a fantasia, viajou para o Brasil ainda encarnando o sheik árabe.

Velado com algumas honras municipais, o escritor foi enterrado no

Cemitério São João Batista, na Zona Sul da cidade.

Page 21: João Antônio: Uma Biografia Literária

21

Notas:

1 Quando não explicitamente mencionadas outras fontes, as informações sobre a morte do escritor aqui

reunidas provêm das seguintes matérias publicadas na grande imprensa: “Escritor João Antônio é

encontrado morto no Rio”, de Roberta Jansen, in O Estado de São Paulo, SP, 01/11/96; “João Antônio,

59 anos, cronista dos marginalizados”, não assinada, in O Globo, RJ, 01/11/96; “João Antônio é

encontrado morto”, não assinada, in O Jornal do Brasil, RJ, 01/11/96; “João Antônio é encontrado morto

no RJ”, não assinada, in Folha de São Paulo, SP, 01/11/96; “João Antônio: retrato de um escritor

brasileiro”, de Moacyr Scliar, in Folha de São Paulo, SP, 02/11/96; nota na seção Datas, da revista Istoé,

SP, 6/11/96; “Morreu o escritor João Antônio que tão bem sentiu a alma do povo”, não assinada, in A

Gazeta da Zona Norte, SP, 09/11/96; e “Últimas Notícias”, de Mylton Severiano da Silva, in Caros

Amigos, Ano 1, n. 1, abril de 1997, pp.6-7.

2 Depoimento de Virgínio Antônio Ferreira, colhido em março de 2000.

3 Carta a Ilka Brunhilde Lurito, de 23/06/63.

4 Medina, Cremilda de Araújo – A Posse da Terra: O Escritor Brasileiro Hoje. Imprensa Nacional/Casa

da Moeda de Portugal/Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, SP, s/d (anos 80), p.273.

5 Três depoimentos atestam essa mistura sui generis entre os convidados; o de Ilka Brunhilde Laurito,

colhido em maio de 2000, o de Caio Porfírio Carneiro, colhido em maio de 2000, e o de Virgínio Ferreira

colhido em março de 2000.

6 Antônio, João – Abraçado ao Meu Rancor, Guabanara, SP, 1986, p.80.

7 Antônio, João, “Meus Respeitos” in D’Incao, Maria Ângela e Scarabotolo, Eloísa (orgs.), Dentro do

Texto, Dentro da Vida – Ensaios sobre Antonio Candido, Instituto Moreira Salles, Cia. das Letras, SP,

s/d.

8 Depoimento de Marília Andrade, ex-mulher de João Antônio, colhido em setembro de 2000.

9 Carta enviada por Marília a Ilka Brunhilde Laurito, de 10/02/97.

10

E-mail a Wilson Bueno, de março de 1996, aproximadamente.

11

Antônio, João – Ô, Copacabana, Civilização Brasileira, RJ, 1978, pp. 36-37.

12

Pronunciamento de Fernando Bonassi no Simpósio “Brasil, país do passado?”, organizado por Lígia

Chiiappini e Berthold Zilly, em Berlim, em junho de 1998.

13

Antônio, João – “Vibrações, Poeiras e Pulgueiros”, in Ladeira, Julieta de Godoy (org.) – Memórias de

Hollywood, Nobel, SP, 1988.

14

Trecho da possível última carta, publicada in O Estado de São Paulo, SP, 09/11/96.

15

Sete Vezes Rua, Scipione, SP, 1996, p.51.

16

Depoimento colhido em 23/3/2000

17

Antônio, João – Abraçado ao meu rancor, Guanabara, RJ, 1986, p.83.

18

“João Antônio e sua estética do rancor”, in Folha de São Paulo, SP, 05/10/86.

19

Antônio, João – Patuléia, Ática, SP, 1996. Antônio, João – Sete Vezes Rua, Scipione, SP, 1996. Para

não dizer que todos os textos eram “requentados”, esta antologia traz duas pequenas crônicas antes nunca

publicadas em livro, chamadas “Flagrante pequeno da miniguerra do Metrô” e “Mendigos e Mafueiros

Page 22: João Antônio: Uma Biografia Literária

22

20

Antônio, João – Dama do Encantado, Nova Alexandria, SP, 1996.

21

Virgínio, o irmão, diz algo importante: “Meu irmão passou a escrever não só sobre os

marginalizados socialmente falando, mas sobre os marginalizados num sentido mais amplo. Os

marginalizados de todas as classes sociais.” Depoimento colhido em 23/03/2000. Não que se tratasse

de algo inédito para João Antônio escrever sobre figuras perseguidas politicamente, ou mal vistas por

questões morais, ou mesmo sobre artistas e intelectuais esquecidos e/ou espoliados. Na Folha de São

Paulo, em 05/10/86, referindo-se ao livro Abraçado ao Meu Rancor, João Luiz Lafetá já identificava o

fenômeno: “Mas algo mudou, sim, no mundo de João Antônio. Sete dos contos são centrados sobre

personagens de classe média, e ainda que neles o pano de fundo continue a ser a pobreza do lúmpen, o

foco está decididamente deslocado. Seu centro não é mais o malandro cheio de picardia, mas o escritor

ressentido, que vê o capitalismo brasileiro reduzir as artes da malandragem à miséria descorada,

esfarrapada e pedinte”. Vale dizer que, se o processo vinha de longe, nunca fora tão evidente, tão

assumido antes de Dama do Encantado. Em entrevista publicada aproximadamente quatro meses antes

de suas morte, o próprio autor considerou uma novidade o perfil de Dama do Encantado: “De uns

tempos para cá, venho desenvolvendo uma certa mania que é a de escrever ensaios sobre situações e

figuras brasileiras.”, in Jornal do Brasil, entrevista a Cláudio Cordovil, RJ, 08/06/96.

22

Antônio, João – Casa de Loucos, Civilização Brasileira, RJ, 1976. A informação quanto à rapidez das

vendas da primeira edição está contida em uma carta de Ilka Brunhilde Laurito para o escritor,

comentando, provavelmente, informação recebida por ele: “Fiquei duplamente feliz! 1) pelo sucesso de

Casa de Loucos – que só se pode chamar de “sucesso”, no Brasil, essa coisa incrível de se esgotar uma

edição de 5.000 exemplares em 3 dias (mais de 1.000 exemplares por dia!)”. Carta de 19/08/1976.

23 Candido, Antonio, “Na Noite Enxovalhada”, prefácio a Antônio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço,

Cosac & Naify, SP, 2004.

Page 23: João Antônio: Uma Biografia Literária

23

Page 24: João Antônio: Uma Biografia Literária

24

Capítulo 1

1913 a 1963

Page 25: João Antônio: Uma Biografia Literária

25

“O primeiro filho, o primeiro amor,

o primeiro livro. Eu gosto das coisas da

minha juventude, que são insubstituíveis.”

João Antônio

Page 26: João Antônio: Uma Biografia Literária

26

Origem trasmontana

A partir dos depoimentos de Virgínio Antônio Ferreira, o único

irmão de João Antônio, e de um tio deles, Benjamim dos Anjos Ferreira,

irmão do pai e padre residente em Oswaldo Cruz, interior de São Paulo,

pode-se esboçar um quadro da família do escritor, embora incompleto e

com algumas lacunas, inclusive de datas. Mas, por exemplo, bagagem

cultural do pai do escritor, tão crucial na sua formação, não pode ser

entendida sem este mergulho no tempo.1

Em 1913, José Antônio Ferreira e Felicidade dos Anjos Machado

deixaram Trás-os-Montes, no nordeste de Portugal, em direção à Lisboa. Lá

chegando, subiram num navio rumo ao Brasil. Esta seria a primeira viagem

dos avós de João Antônio em busca de uma vida menos sacrificada. A avó

era natural da aldeia de onde partiram, chamada Macedo de Cavalheiros. O

avô nascera em 1878, longe dali, na fronteira com a Galícia, numa outra

aldeia, chamada Campo de Víveres, assim denominada por ser uma região

historicamente plantadora de trigo, desde os tempos do Império Romano e

inclusive durante a ocupação árabe. A pequena aldeia, toda com casas de

pedra, recebera também o apelido de Campo de Víboras, em parte por um

desvio de pronúncia provocado pelo sotaque lusitano, em parte pela atração

que as plantações exerciam sobre as cobras. José e Felicidade nunca haviam

aprendido a ler. Ela estava grávida de sete meses e o filho mais velho do

casal, Domingos Antônio Ferreira, era ainda uma criança.

Prematuramente, e antes do embarque, nasceu João Antônio Ferreira,

futuro pai do futuro escritor. O comandante do navio, tendo em vista que a

família tinha apenas três passagens, quis impedir o acesso dos Ferreira.

1 Quando não indicado o contrário, todas as informações reproduzidas neste capítulo foram extraídas

destes dois depoimentos, básicos para a montagem de uma “biografia familiar” do escritor João

Antônio. O do irmão Virgínio foi colhido em 23/3/2000, e o de seu tio Benjamim dos Anjos em

15/02/1999.

Page 27: João Antônio: Uma Biografia Literária

27

Felicidade protestou, alegando que o nascimento do filho só estava previsto

para dali a dois meses, e que ele viajaria em seu colo. “Esses cabreiros!”,

teria dito o comandante, em tom praguento, resignando-se e sugerindo uma

das ocupações de José Antônio, que era também carpinteiro ou, mais

especificamente, goivista. Segundo Virgínio, seu pai recém-nascido foi

aceito no navio mediante registro como carga, “café, pão, mortadela”.

A família desembarcou em São Paulo ainda no ano de 1913. Mas a

primeira estada no Brasil foi curta e problemática. Um único acontecimento

feliz marca essa fase, o nascimento de Antônio, o terceiro filho do casal.

Dois anos depois da chegada, porém, toda a família partiu novamente para

Portugal. O motivo principal do retorno, segundo se sabe, foi a saúde de

José Antônio, cujo corpo fora tomado por furúnculos, os quais, segundo o

médico, só regrediriam graças à mudança radical de clima, o que teria

levado o carpinteiro a voltar ao hemisfério norte.

Lá chegando, porém, os Ferreira reencontraram a mesma situação

difícil, a mesma vida sem perspectivas. A Primeira Guerra Mundial havia

começado no ano anterior, e países pobres como Portugal, embora não

participassem diretamente do conflito, sentiam suas duras conseqüências.

Maria, a quarta filha do casal, nasceu nessa época, aumentando ainda mais

as necessidades familiares.

Diante desse quadro de penúria, José Antônio decidiu partir para a

França, onde as condições de trabalho eram melhores. Fez a viagem

acompanhado de seu filho mais velho, Domingos, e de um irmão. Eles

saíram de Portugal e atravessaram a Espanha de trem, chegando a uma

cidade ao norte, chamada San Sebastian. De lá seguiram até Iun, uma

localidade basca situada exatamente na fronteira com a França. Nenhum

deles, entretanto, possuía uma Carta de Chamada, documento que atestava

a existência de um vínculo profissional pré-estabelecido no território

francês, e requisito imprescindível para que as autoridades aduaneiras os

Page 28: João Antônio: Uma Biografia Literária

28

deixassem entrar no país.

Enquanto tiveram dinheiro para esperar um golpe de sorte qualquer,

que lhes permitisse a entrada na França, ficaram em Iun. Como o golpe de

sorte não veio, precisaram voltar para Portugal e, agora já sem dinheiro,

foram obrigados a cumprir o longo trajeto a pé. Durante 30 dias seguiram

os trilhos do trem e, ao chegarem, estavam tão famintos que seu aspecto

magro e puído impediu-os de serem reconhecidos imediatamente.

Por ironia da história, no entanto, a modesta família camponesa foi

ajudada pelo advento da I Guerra Mundial pela artilharia aérea alemã. A

cidade francesa de Reims, um dos alvos prediletos da Tríplice Aliança,

havia sido praticamente destruída. Segundo a tradição familiar, o único

prédio deixado em pé pela artilharia alemã teria sido a Igreja. A cidade,

portanto, a despeito dos bombardeios, tinha uma extrema necessidade de

operários da construção civil. Como a população masculina da região, na

sua maioria, estava ou no front ou nos hospitais, recorreu-se à mão-de-obra

estrangeira. José Antônio Ferreira foi então beneficiado com uma Carta de

Chamada.

Entre 1915 e 1916, viajou para Reims. Uma vez instalado, mandou vir

a família. Nenhum deles falava francês. Enquanto José trabalhava como

carpinteiro, aprimorando seus conhecimentos técnicos, Felicidade montou

uma pensão. Tiveram um quinto filho, Benjamim, batizando-o na tal igreja

da cidade que sobrevivera aos bombardeios. De acordo com a lei francesa,

que exigia para todos os batizados feitos em território nacional um padrinho

francês, e tendo em vista a escassez de homens na cidade, ou a ainda

mínima rede de relações da família, o próprio padre precisou apadrinhar

Benjamim.

Reza a lenda que apenas duas semanas após instalados, José Antônio

recebeu uma intimação policial. As autoridades haviam sido informadas

pelo Serviço Alfandegário de que sua família possuía duas crianças em

Page 29: João Antônio: Uma Biografia Literária

29

idade escolar, Domingos e João Antônio, e que estes ainda não haviam sido

registrados em nenhuma instituição de ensino. Deram-lhe mais sete dias

para fazê-lo. Assim começou a educação formal do pai do escritor João

Antônio, cujos benefícios viriam a ser cruciais na sensibilização intelectual

do futuro contista.

Os dois meninos foram matriculados em horário semi-integral, com

seis horas de aula por dia, recebendo alimentação e uniformes do Estado.

Assim que puderam, inclusive, José Antônio e Felicidade deixaram de falar

português em casa, acelerando, a partir do manejo fluente da língua

francesa, a integração dos filhos à nova cultura. Na escola, sabe-se que José

Antônio aprendeu rudimentos de matemática, mas não a ler.

A Primeira Guerra Mundial terminou em 1918. Data mais ou menos

dessa época o projeto de José Antônio de voltar para Portugal. Há três

razões básicas para que essa idéia tenha brotado em sua cabeça: com a volta

da população masculina do front, o mercado de trabalho diminuiu para os

estrangeiros; as propriedades da família em Portugal davam contínuos

prejuízos, e ele achava que poderia inverter a situação; goivista experiente,

José Antônio ressentia-se de estar sendo sub-aproveitado, sem poder

exercitar ao máximo suas habilidades profissionais nos bicos que

conseguia. Felicidade, entretanto, foi contra a volta. Diz Virgínio, seu neto:

“(...) minha avó, apesar de analfabeta, tinha uma visão muito grande. Não

queria sair da França, dizia que era melhor ser jardineiro em Reims do que

latifundiário em Portugal.”

Seu marido, porém, era reconhecidamente uma pessoa teimosa, e

acabou vencendo a disputa. A família Ferreira voltou para seu país natal

entre 1920 e 1921. João Antônio, o segundo filho, tinha aproximadamente

oito anos.

A volta para Portugal provou-se traumática. De novo em Trás-os-

Montes, a família dedicou-se às propriedades que havia deixado para trás,

Page 30: João Antônio: Uma Biografia Literária

30

cuidando pessoalmente da criação de cabras. Como diz Virgínio, seu pai

João Antônio crescera inserido no meio urbano francês, com escola e criado

“com leite condensado e pão de trigo até quase dez anos de idade.

Chegando lá [em Portugal], teve de pastorear ovelhas. Sabe como se faz

isso? O cara fica com elas, anoitece, amanhece, chove, faz frio. O pastor de

ovelhas não as abandona. Foi um choque tremendo”. Outra lembrança do

pai do escritor João Antônio, narrada por Virgínio, bastante prosaica e

bastante eloqüente, conta que “quando chegou [José Antônio] em Portugal,

na primeira semana, num domingo, eles foram à missa, os homens iam de

terno e descalços, porque realmente não tinham dinheiro para comprar

calçado. E, na volta da missa, dois primos deles já adultos, um disse ao

outro: ‘Escuta, não temos nada que fazer, então vamos nos dar aí [brigar, na

gíria da região]?’ Tiraram a roupa, ficaram só de calção e começaram

aquela luta de soco, pontapés e rasteiras. Depois que já estavam bem

machucados, um olhou para o outro e falou: ‘Já chega, pois não?’. O outro

falou: ‘Pois sim’. Aí pararam, se lavaram no rio, colocaram a roupa e foram

embora. Quer dizer: Isso foi um choque muito grande para o meu pai. (...)

Na França, um sujeito parava o outro na rua e dizia: ‘Desculpe, por favor,

poderia me dizer as horas?’. O outro enfiava a mão no relógio, e dizia: ‘São

tantas’. E o outro agradecia reverenciando.”

Tamanho foi o trauma que, até morrer, seu pai nunca o superou. “No

fim da vida, ele pôde passear em Portugal, eu ofereci para ele. ‘O último

lugar onde eu quero voltar é Portugal, porque foi o único lugar onde eu

trabalhei dia e noite e passei fome. (...) Lá onde eu vivi, cortava-se a

sardinha no meio, um comia uma parte e o outro outra. Ninguém comia

uma sardinha inteira na mistura.”

As propriedades em Portugal não foram capazes de segurá-los.

Novamente a necessidade de procurar vida melhor em outro país se

colocou. Os Estados Unidos foram a opção preferencial de Felicidade dos

Page 31: João Antônio: Uma Biografia Literária

31

Anjos. Quando o marido resistiu à idéia, alegando que não falavam a

língua, ela retrucou: “Também não falávamos francês”. Mas era difícil

convencer seu marido de qualquer coisa, e ele acabou vencendo a disputa

com um argumento desconcertante: “Vamos para o Brasil, porque lá, no

inverno, se nós estivermos na rua, pelo menos não morremos de frio”.

Em 1923, a família Ferreira desiste de pastorear suas cabras em

Portugal, vende suas propriedades e transfere-se novamente para o Brasil, e

novamente para São Paulo. Alugam então um casarão na avenida Angélica,

em Higienópolis. Este, certamente, não era o bairro valorizado que é hoje,

apenas começava a crescer. O vale do Pacaembu era uma floresta, onde os

passantes desprotegidos eram assaltados. Mesmo assim, era melhor uma

vizinhança dessas do que passar fome em Trás-os-Montes. E a casa era boa,

grande, com dois níveis. Instalaram-se os Ferreira no andar de cima, e

transformaram o grande porão em albergue, do qual tirariam uma renda

adicional.

José Antônio, retornando ao clima brasileiro, dessa vez não caiu

vítima dos furúnculos. No exercício de sua profissão, desde logo tomou

parte em algumas construções importantes, que marcariam a história da

cidade. Ainda em 1923, foi contratado para trabalhar nos alicerces da Igreja

da Sé. Não era, por enquanto, um emprego que lhe permitisse exercer suas

qualidades de goivista experimentado, mas lá teve contato com os

beneditinos, que procuravam profissionais para trabalhar na construção do

Mosteiro de São Bento. Por eles contratado, tempos depois, coube a ele dar

o entalhamento inicial em todo o madeirame que seria posteriormente

finalizado pelos escultores.

Enquanto trabalhava fora, sua esposa Felicidade gerenciava o

albergue, oferecendo, no andar de cima, refeições aos hóspedes

interessados.

O segundo filho do casal, João Antônio, demorou um pouco mais a se

Page 32: João Antônio: Uma Biografia Literária

32

adaptar ao Brasil. Diz Virgínio sobre o pai: “Quando chegou no Brasil foi

recebido pela garotada com couro”. Uma das primeiras lembranças dessa

fase de sua vida é a musiquinha xenófoba cantada pelos meninos com os

quais ele e seu irmão Domingos jogavam bola de gude: “Português é burro,

brasileiro não”. Assim Virgínio analisa a triste memória: “Como isso deve

ter marcado meu pai, né? Tanto que ele fez sempre questão de ser melhor,

falava muito pouco”. De início, nem português falava, na verdade. “(...) e

os meninos falavam tal coisa para ele, e só o irmão mais velho, nascido em

Portugal, entendia. Então ele perguntava: ‘Qu’est-ce que c’est?’. E meu tio

explicava para ele, e ele foi aprendendo”.

As instituições educacionais brasileiras, por sua vez, estavam longe de

propiciar ao jovem imigrante o amparo experimentado na França. Virgínio

fala assim desta segunda fase da educação de seu pai: “O pouco que ele

aprendeu a ler e escrever – ele tinha uma redação muito boa, meu pai –, foi

na França. Depois aprendeu convivendo, lendo gramáticas, uma coisa e

outra”.

Sem vínculo escolar, já por volta dos doze anos, João Antônio

começou a arrumar seus primeiros empregos. Um deles foi como cobrador

de uma das primeiras linhas de bondes de São Paulo, que saía do Brás e

vinha até o Centro. Mas a experiência não foi das melhores. Sua obrigação

era entregar a receita do dia nas mãos do dono da empresa. Porém, os filhos

do ditocujo começaram a exigir que João Antônio entregasse a eles o

dinheiro. Ao resistir, apanhava. Terminou demitindo-se do emprego. Diz

Virgínio sobre o pai: “Ele trabalhou num sem número de lugares. Ele

trabalhava num lugar, não estava bom, ele saía e ia de porta em porta: ‘Está

precisando de um rapaz?’, ‘Não está precisando de ninguém para ajudar?’.

E assim trabalhou”.

Page 33: João Antônio: Uma Biografia Literária

33

Presidente Altino

Por volta de 1926, com as economias que tinham, possivelmente

oriundas da venda das propriedades em Portugal, ou feitas com a renda da

pensão, os Ferreira tiveram então a chance de comprar o casarão da

Angélica. Preferiram, porém, buscar uma região da cidade economicamente

mais ativa. Felicidade queria ir para o Brás, bairro de economia dinâmica,

cheio de pequenas firmas e fábricas ligadas às atividades típicas dos

italianos, entre elas o trabalho com o couro, fosse para sapatos ou para selas

de cavalos. Nas palavras de Virgínio, seu neto: “A minha avó tinha muita

visão comercial (...) era o lugar onde mais corria dinheiro em São Paulo”.

José Antônio, porém, não achava tão boa a idéia de ir morar num dos

bairros da colônia italiana. Preferia, ao contrário, aproximar-se dos seus

conterrâneos. Ele tinha alguns primos morando na cidade, que haviam

chegado ao Brasil junto com a família Ferreira, ainda em 1913, instalado-

se, de início, na região da Cantareira, depois dispersando-se pela cidade,

sendo que alguns tinham montado base num bairro chamado Presidente

Altino. Era para lá que José Antônio queria ir.

Felicidade, novamente, discordava do marido. Ele, no entanto, tinha

argumentos para defender seu projeto. Em primeiro lugar, os imóveis no

Brás eram mais caros, e com o dinheiro de dois lotes lá comprava-se quatro

em Presidente Altino. Embora mais afastado do Centro, o bairro já

dispunha de dois trens por dia, um às seis da manhã e outro às seis da tarde.

E, finalmente, era cenário de uma intensa atividade industrial. Um grupo

americano havia comprado o frigorífico Continental e estava construindo

mais um frigorífico. Havia uma fábrica de cerâmica, uma de tecidos, a

empresa Soma, que fabricava e fazia manutenção de vagões de trem e, por

fim, a fábrica de fósforos Granada, pertencente a um português enobrecido

por um título de Barão.

Page 34: João Antônio: Uma Biografia Literária

34

Tudo isso, mais a determinação férrea de José Antônio, foi o

suficiente para cancelar os projetos de Felicidade. A família Ferreira

comprou naquela oportunidade seus primeiros quatro lotes de terreno em

Presidente Altino, onde até hoje mora a família de Virgínio Antônio, e onde

o escritor João Antônio, depois de mudar-se para o Rio, ficava hospedado

quando vinha a São Paulo.

Mas o crescimento da cidade realmente iria pregar uma peça na

família, que não apostou no futuro do bairro de Higienópolis. Conta

Virgínio que José Antônio e Felicidade viveram o suficiente para se

arrepender. “Em 62, 63, eu fui à cidade com o meu avô. Ele me convidou,

pois já precisava de companhia. Tinha 84 anos de idade. E nós tomamos o

bonde da Lapa para a cidade, e subimos a avenida Angélica e ele me

mostrou, à esquerda de quem sobe, a propriedade onde ficava o casarão, e

me contou da burrada que fez: ‘Se eu tivesse comprado aquela propriedade,

compraria o quarteirão inteiro em Presidente Altino”.

José Antônio, João Antônio e João Antônio Filho, a despeito das

especificidades biográficas inevitáveis, eram todos reconhecidos por seus

familiares imediatos como homens extremamente determinados e, às vezes,

quase teimosos. A isso soma-se um temperamento orgulhoso bastante

evidente. Os três acertaram muito graças a essas características, e erraram

outro tanto. No caso da mudança para Presidente Altino, os anos

mostrariam o quanto a avaliação feita por José da futura importância

econômica do bairro fora equivocada, assim como o fora a decisão de

deixar a França e voltar para Portugal.

O que estava feito, no entanto, estava feito. Uma vez em Presidente

Altino, José Antônio continuou em sua profissão de goivista. Enquanto

isso, o jovem João Antônio, aproximadamente com treze anos na época, fez

progressos importantes. Conta seu filho Virgínio: “Embora fosse um

homem que, pela própria natureza de vida, já falava espanhol de galego, e

Page 35: João Antônio: Uma Biografia Literária

35

aprendeu a falar francês, nunca foi na escola aprender a ler e escrever no

Brasil”.

Foi então que a mãe, Felicidade, ajudou-o a compensar os prejuízos

causados em sua formação pela vida errante da família. Não se sabe

exatamente quando, mas ela, ao contrário do marido, ao longo dos anos

havia aprendido a escrever. Ensinou portanto as letras ao filho, em casa,

tendo a Bíblia como cartilha, segundo Virgílio, que ainda acrescenta o que

isso representou, dali em diante, na estrutura daquela família extremamente

simples: “Era um que lia para todos (...) lia novela, os romances de

Dostoiévski por fascículos semanais (...) era muito importante ser o leitor e

foi o que obrigou meu pai a ler. Mandavam ele buscar na cidade e, voltava,

no caminho vinha estudando para poder ser o leitor”.

Para o menino João Antônio, que nascera no parêntese francês de sua

história familiar, o crescente domínio da língua portuguesa ligava-o a seu

passado português e ao futuro brasileiro simultaneamente. Se de fato, em

Reims, a família falava francês mesmo entre si, tendo sido esta a única

língua conhecida por João, não é impossível que tenha havido um duplo

estranhamento na chegada ao Brasil; um no espaço público, o que seria

esperado, mas um também dentro de casa. O contato com a língua,

portanto, seria uma experiência poderosa. O menino desajustado, que se

tornou um homem silencioso, escondia um profundo respeito pelo ato de

falar.

Após alguns anos fazendo serviços de toda a sorte, que lhe davam a

chance de ajudar em casa – relembra Virgínio –, João Antônio encontrou

sua primeira profissão: “Foi garçom de tudo quanto era bar dessa cidade”.

Page 36: João Antônio: Uma Biografia Literária

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A crise de 1929 e a música

Aos dezesseis anos, e três anos depois de instalado no novo bairro,

João Antônio, testemunhou o crack da bolsa americana. A crise do café se

acirrou, puxando o tapete econômico brasileiro e disseminando suas

perversas conseqüências por todo o país. Conta Virgínio: “Uma das firmas

que atraíram meu avô [para Presidente Altino] era um grande depósito, do

Instituto Brasileiro do Café. A produção de café, que vinha de toda a

Paulista e do Paraná, era estocada aqui em Presidente Altino, ao lado de

Osasco. Então, quando o cais de Santos e os depósitos ficaram abarrotados,

aqui ficou abarrotado. Passaram a pôr o café no pátio. Vinha do vagão e

eles iam despejando. Fizeram uma pilha ali de uns oito metros de altura por

uns trezentos de largura, por uns dois quilômetros de comprimento, só de

café”.

O jovem garçom, no entanto, ia resistindo à caótica macroeconomia.

Até progrediu. Na virada de 1929 para 1930, enquanto o país ardia na

revolução, João Antônio estava empregado no Cassino dos Oficiais, que

ficava junto às instalações militares de Quitaúna.

No mesmo ano de 1930, foi instaurado o governo revolucionário.

Reformas de toda a sorte tiveram início, inclusive econômicas. Caminhou-

se em direção a uma centralização da política cafeeira, tirando-a do controle

exclusivo dos estados produtores. Além disso, em fevereiro de 1931, o

governo assinou um decreto no qual se comprometia a comprar todos os

estoques existentes.2 Com isso, a pilha de sacos em Presidente Altino só

tendia a aumentar. No intuito de reduzir a oferta e segurar os preços,

determinou-se que o governo destruiria parte dos estoques. Ordenou-se,

então, a queima da muralha de café existente em Presidente Altino, que

àquela altura não valia mais nada e só ocupava espaço. Ao longo de 90

2 Fausto, Boris – História do Brasil, Edusp, São Paulo, 1998, pp.333-334.

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37

dias, toneladas e toneladas arderam na região. Alguns dias de fumaça

incessante, que ocupava todos os espaços, e o ar ficou irrespirável,

provocando inúmeras crises respiratórias na população.

Apesar das reservas nacionais estarem virando cinzas, o jovem João

Antônio se virava. Entre 1930 e 1932, arrumou um emprego num dos

frigoríficos de Presidente Altino, o Wilson. Conta Virgílio: “Meu pai foi

trabalhar naquele frigorífico, e como raramente aparecia quem soubesse

escrever, e ele sabia escrever e calcular – era o mais elementar de

matemática, somar, subtrair, multiplicar e dividir –, colocaram ele na planta

fazendo serviços de anotações de pesos.”

Controlado por ingleses, o frigorífico era reduto de gente vinda de

todos os lugares do Brasil e do mundo. Pessoas “que não tinham dado

certo” em nenhum lugar; árabes, armênios, russos, polacos, húngaros,

portugueses, espanhóis e italianos, cuja língua comum era o português.

Nos frigoríficos da época, muitas vezes, não havia nenhum sistema

para aferição de custos. Para implantá-lo no Wilson, foi contratado um

príncipe russo, ou que assim se dizia, exilado pela Revolução de 1917. Seu

nome era Misahel Misaki, homem de excelente nível, “que estudou em

Paris”. O russo, necessitado de técnicos para sua equipe, e sendo informado

das habilidades matemáticas de João Antônio, chamou-o para trabalhar em

sua equipe como cronometrista. Para um leitor de Dostoiévski, como era

João Antônio pai, esta relação profissional deve ter sido uma experiência,

no mínimo, divertida. Ao que parece, deram-se bem, o russo ensinando

tudo que sabia a seu assistente e, este, inteligentemente, aprendendo.

Ao lado disso, cristalizava-se na personalidade de João Antônio outra

característica fundamental – e que exerceria uma influência

importantíssima em seu filho escritor –, o seu amor pela música. Não se

tem certeza de quando exatamente começou, e sabe-se que certamente não

foi resultado de um ensino ou treinamento musical propriamente dito, mas é

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38

inegável que este amor conferiu a sua vida tão dura e cheia de percalços

uma dimensão mais leve e alegre. Conta Benjamim dos Anjos, seu irmão

mais novo, que ele “assobiava muito”, o que deve ser verdade, mas não é

tudo. Ele era também um violonista de primeira, conhecido de outros

importantes especialistas no instrumento, como, por exemplo, nada mais

nada menos, que o famoso Garoto. “A música era o grande passatempo

dele, teve grandes amigos músicos. (...) Ele disse que teve duas aulas com o

Garoto, depois que ia lá [na Casa Verde], ficavam conversando e iam para a

cidade, até aqueles cafés de antigamente.” Foi companheiro também de

Geraldo Ribeiro da Silva, o violonista, e de Romeu Di Giorgio, famoso

artesão responsável pela fabricação de violões e bandolins de grande

qualidade.3

Outros amigos, feitos ao longo da vida, não se tornaram conhecidos,

como João Dias, flautista e bêbado que, certa vez, presenteou-o com um

caderno cheio de partituras musicais escritas à mão, predominantemente de

peças clássicas. Ou “seu”Ascendino, violinista original de Araraquara e

colega de trabalho, cuja habilidade musical permitia-lhe tocar, de primeira,

partituras nunca antes examinadas, e que dominava o repertório erudito

com naturalidade, incluindo Mozart, Beethoven e o virtuoso acrobático

Paganini.

Além de intérprete, João Antônio, pai, escrevia as próprias músicas,

embora não tenha passado para o papel nenhuma de suas composições.

Talvez, mesmo querendo isto lhe fosse impossível. João Antônio tirava as

músicas de ouvido e, auxiliado por uma excelente memória musical,

conseguia tocá-las com brilho e emoção. Também “por instinto” deveria

funcionar seu processo criativo. Seu filho homônimo, dali a alguns anos,

assistindo-o nas rodas de choro, entraria em acordo com o bandolim,

também graças à pura habilidade natural. A convivência com o universo da

3 Da Silva, João Ribeiro Neto – João Antônio, coleção Literatura Comentada, Abril, SP, 1980.

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malandragem, ainda que não tenha afetado diretamente a conduta na vida

de João Antônio, pai, tirando-o dos eixos morais e profissionais usualmente

aceitos, terminaria por atrair para este outro sistema alternativo de valores,

irresgatavelmente, seu filho mais velho.

João Antônio, pai, costumava dizer que a música para o homem “é só

até os 35 anos” – conta seu filho Virgínio, que em seguida explica:

“Acredito que depois dos 35 anos ele nunca mais teve aquele ímpeto para

tirar determinada música, para estudar a noite inteira. E porque a

criatividade diminuiu muito, não tinha mais choros na cabeça dele”. Deve-

se, entretanto, entender essa frase como um afastamento apenas relativo do

meio musical. Ao que tudo indica, João Antônio foi gradativamente

perdendo contato com os profissionais que conhecia, deixando de atuar

nesse meio, mas não como conseqüência de um desinteresse completo pela

música. Ela continuará presente em sua vida, ainda que de forma bem mais

caseira e bem menos ambiciosa. Amigos com dotes musicais amadores,

como ele, nunca lhe faltaram. Ao final da vida, já sem a agilidade manual

de um jovem, para se distrair em grupo, ele mesmo trocou de instrumento e

acomodou-se ao bandolim.

O casamento e o frigorífico Armour

Foi a crise de 1929 que trouxe a Presidente Altino também a família

da mãe do escritor João Antônio. Nem todos ficariam em São Paulo por

muito tempo, mas, naquela época, foram lá tentar a vida. Original de

Vassouras, no vale do Paraíba, a família deixa os morros da Capital Federal

para buscar melhores oportunidades de trabalho em São Paulo. Deste lado

da família, o futuro avô do futuro escritor se chamava Virgínio Ferreira, e a

avó, Nair Cardoso de Sá Gomes. Eles viviam numa ampla comunidade

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40

familiar na Zona Norte carioca, que incluía os doze irmãos de Nair

(Zulmira, ou Zulma, Maria, Cecília, ou Ciloca, Elisa, Rubens, Otacílio,

Waldemar, João, Diógenes, Helena, José e Carivaldo). O avô Virgínio foi

muito querido do escritor e de seu irmão, que viria a ser batizado em sua

homenagem. João Antônio, filho, acreditava ter puxado um pouco pelo seu

temperamento, e conta: “Sou neto de meu avô, um homem chamado

Virgínio, macho, muito macho. Tinha um pescoço de touro, tinha uns

antebraços como filão de pão, trezentos mil defeitos, todos diziam. Quando

morreu todos disseram que ele era um santo. É. O seu defeito em vida foi

um só – pensar com a cabeça dele. Com a dele, só com ela. Por isso, curtiu

muitas coisas, necessidades, sabe? Curtiu até fome, eu garanto. Mas macho,

como sempre”.4

A mãe de Nair, Júlia Nóbrega, que também veio para São Paulo, era

descendente de escravos e a ela sobretudo, mas não apenas, deve-se o

sangue negro da família do escritor João Antônio. Ele assim descreve a

bisavó: “Vó Lula (seu apelido), escura e geniosa, cabelos lisos de provável

mameluca, quem sabe, na mocidade, sensual e com certeza supersticiosa e

de arroubos imprevisíveis, acostumada e mandona. Vó Lula abominava

orquídea dentro de casa. Orquídea era mau agouro, vento encanado, fio

desencapado, asa-negra, ziquizira. Tratava filhos, netos e bisnetos pela

homeopatia”.5

Ou assim: “Minha bisavó Júlia, apelidada Lula pela gente miúda, uma

penca de bisnetos amulatados. Vó Lula, crioula geniosa, supersticiosa e de

arroubos, filha de escravos e acostumada a mandar, tratava filhos, netos e

bisnetos pela homeopatia, tinha cabelos lisos como os dos mamelucos, mas

nariz afilado, alta e magra até o fim, que nunca botou corpo, como se dizia,

4 Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 17/10/1959. 5 Antônio, João – “No Morro da Geada”, in Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o Inferno!, Scipione,

São Paulo, 1991. Este mesmo texto, editado e reorganizado, mas sem acréscimos, foi republicado no

último livro do escritor, Dama do Encantado, sob o título “Meus Tempos de Menino”.

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em cima dos cambitos lustrosos, irrequietos, treze filhos, um horror a

orquídeas dentro de casa como outro não vi, centenária com certeza, que

sua idade legítima calculou-se. E ninguém soube.”6

A filha de Virgínio e Nair, Irene Gomes Ferreira, nascida em 1920,

era, nas palavras do seu futuro cunhado Benjamim, “uma morena bonita”,

“muito simples, mas com uma facilidade de conversar, de falar. Aquilo

vinha espontâneo, vinha crescendo”. No que se refere ao gosto pela

conversa, Benjamim acredita, inclusive, que “essa parte o João pegou da

mãe. E também a parte meditativa própria do africano”.

João Antônio era generoso em sua descrição física da mãe na

juventude: “Naquela época mamãe era grandiosa (...) Um corpo

espetacular, uns olhos de santa, qualquer coisa de menina andava pelo rosto

moreno”.7

Em um de seus contos, ele resume assim suas origens: “Meu cabedal é

pobre, de livros e descendentes e, elas por elas, filho de um transmontano

emigrado e de uma mestiça do Estado do Rio, neta de negros, nasci sem

maior lordeza. A família de mestiços, fluminense naquele tempo, andava

arada de fome; correu para São Paulo nas beiradas de 29, ano ruço, e tentou

se arrumar no que restava de mercado de trabalho nos intestinos industriais

de Presidente Altino, Osasco e Jaguaré”.8

Ou assim, brincando, em uma das cartas: “Preciso fazer uma constante

verificação genealógica. Vim de pretos e de ibéricos e há reparadores que

me acham com jeito de filho de sírios. Naturalmente esses atentos analistas

da minha empolgante beleza física desconhecem o simples fato histórico –

muçulmanos dominaram por séculos a Península Ibérica, deixando por lá

6 Antônio, João – “Pequena Especulação em torno de Três Momentos do Poeta da Vila”, publicado em

O Estado de São Paulo, em 01/05/83. 7 Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/09/1960. 8 Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Record, Rio de

Janeiro, 1982.

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uma herança cultural e humana”.9

Para se entender, porém, o ambiente familiar onde cresceu o escritor

João Antônio, há que se levar em conta o desnível cultural entre sua família

paterna e sua família materna, ou, mais especificamente, entre seu pai e sua

mãe. Enquanto seu pai havia aprendido a falar francês, e depois, ainda que

informalmente, fora alfabetizado em português, Irene e a mãe eram semi-

analfabetas.

Ao chegar a Presidente Altino, mais especificamente ao Morro da

Geada, onde toda a família se baseou, a jovem Irene arrumou trabalho na

fábrica de fósforos Granada, onde também trabalhava Maria, irmã de João

Antônio e através de quem ela conheceria o futuro marido.

O Morro da Geada é talvez uma das mais citadas referências espaciais

na obra do escritor João Antônio. “Tomando sol acabei no morro” – diz ele,

no principal de seus textos memorialísticos10

–, “que tem muitos nomes e

que eu não aceito nenhum deles. Dizem Morro da Continental, para outros

é Morro do Wilson, há os que chamam de Morro da Geada – porque ali, à

noite, faz muito frio e nos frios de geada no morro costuma gear. Ainda

arrumaram um nome mais oficial – Morro de Presidente Altino. É o nome

mais feio que o morro tem. Para mim, nenhum serve.”

“Não haverá outra terra de tanta criança de gama tão vária, que arme

um bulício de tanta cor. (...) Subir o morro era fácil; descer, já não era, não.

O coração não pedia pra gente descer.”

O casamento dos pais do escritor ocorreu, portanto, entre 1930 e 1936.

Nessa mesma época, João Antônio, pai, foi convidado a implantar o serviço

de custos em outro frigorífico da região, controlado por americanos, o

Armour. Conta Virgínio: “As indústrias brasileiras não tinham serviço de

cronometragem, meu pai foi o criador do serviço de custo no Armour. Pela

9 Carta a IlkaBrunhilde Laurito, de 31/10/1961. 10 Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Record, Rio de

Janeiro, 1982.

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primeira vez, os americanos do Armour ficaram sabendo quanto tinha

custado a mortadela. (...) Ele montou as primeiras reportagens. O preço da

carne chegava a ser um décimo do que era nos Estados Unidos, e a mão-de-

obra era de graça. Isso dava lucro de qualquer jeito”.11

E Virgínio continua:

“(...) porque essas firmas americanas tinham sede em Chicago, e o pessoal

de lá não botava a mão na massa, os brasileiros que se virassem. Meu pai e

mais uns três que tinham algum conhecimento, supervisionados por ele,

preparavam reportagens diárias, semanais, mensais”.

Os oito anos que João Antônio passou como chefe do departamento de

custo do frigorífico seriam anos de relativa prosperidade para a família

Ferreira, e de prestígio para seu chefe. O trabalho que lá desenvolveu foi

tão bem sucedido que chegou a destacá-lo na comunidade trabalhadora em

que vivia, destaque este que o teria acompanhado por muitos anos. Pelo

menos é o que dá a entender um episódio contado por Virgínio: “Um dia,

numa pizzaria com meu pai, enquanto ele tocava bandolim, levantou um

sujeito da mesa e disse assim: ‘Ô, Ferreirinha, pensei que você só sabia

fazer as melhores reportagens do Armour, mas você também toca

bandolim.’ Meu pai riu, eu era menino”.

Estado Novo, primeiro filho

Alguns meses antes do golpe de 10 de novembro de 1937,

especificamente a 27 de janeiro de 1937, nasceu o escritor João Antônio

Ferreira Filho, assim batizado em homenagem ao pai homônimo, claro, e a

um bisavô materno, que se chamava João Cardoso de Sá. O nascimento

ocorreu na maternidade São Paulo, na rua Frei Caneca, próxima à Avenida

Paulista.

11 Entenda-se aqui “reportagens” como versão brasileira de report, ou relatório, em inglês.

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Uma conseqüência crucial o período getulista trouxe para vidas como

as dos integrantes da família Ferreira: a implantação das leis trabalhistas.

Conta Virgínio: “Quando o Getúlio entrou, não existiam leis trabalhistas no

Brasil; para o pessoal do frigorífico, no período da safra, o horário de

entrada era às seis da manhã e saía-se quando acabava a matança. Ora, às

vezes a matança acabava às oito horas da noite, para quem tinha entrado às

seis, e o pessoal da picação, que dá seqüência ao tratamento da carne,

ficava até às dez. Trabalhava, portanto, das seis da manhã às dez da noite. E

não existia pagamento de hora extra. (...) O Brasil era um país selvagem, e

os americanos que vinham para cá eram os mais duros, os superintendentes

do frigorífico Wilson chegavam a bater nos empregados”.

O próprio escritor João Antônio resume as conseqüências benéficas

dos aprimoramentos trabalhistas: “A argumentação era bem assim: Getúlio

deu as leis das férias, da indenização. Uns diziam já não trabalharem como

escravos”.12

Fazendo a ressalva de que “meu pai não era getulista, mas era

admirador do Getúlio”, Virgínio continua, dizendo que “o país começou a

melhorar [saindo da crise de 29], e foi o que fez o povo gostar do Getúlio, o

povo brasileiro nunca entendeu, quem gostava do Getúlio eram os

despolitizados, ou aqueles que tinham uma visão de mundo, da vida

econômica, independente dos partidos, porque quem tivesse idéias clássicas

não o tolerava, porque era antidemocrático e foi um ditador durante 15

anos”.

João Antônio Ferreira, pai do escritor, por ser um profissional mais

qualificado, estava protegido contra certos abusos. Terminando seu horário

de expediente, muitas vezes ficava tocando seu instrumento, enquanto os

colegas hierarquicamente inferiores, como o primo João Anzol, acabavam

de tirar o couro dos animais. Mas ele conhecia de perto os excessos

12 Antônio, João – Lambões da Caçarola, Porto Alegre, LP&M, 1977.

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impostos aos trabalhadores. E o Estado Novo, para a família Ferreira,

marcou realmente uma época de fortalecimento dos direitos dos

empregados. Ficou registrado, por exemplo, o caso de um superientendente

do frigorífico Armour que foi deportado do Brasil, após ser denunciado por

um empregado a quem havia estapeado na cara. “Era o Estado Novo, era

ditadura, o governo tinha força” – diz Virgínio.

Uma segunda marca importante deixada por Getúlio, na consciência

daquela típica família de trabalhadores, foi a valorização do trabalho. Diz

Virgínio: “Ainda se tinha a mentalidade que determinados trabalhos eram

feitos por negros. (...) Quando o Getúlio tentou reativar o país, assumindo a

direção do grupo de militares durante o Estado Novo, ele encontrou todo

um quadro. Quem era o compositor mais cantado do Brasil? Noel Rosa.

Noel Rosa era o elogio à maladragem. Os outros compositores brasileiros,

como Almirante, também iam na mesma linha: ‘trabalho como louco, mas

ganho muito pouco’. (...) Somente quem se preocupava em trabalhar eram

os imigrantes. Menos árabes e judeus, que queriam viver daqueles que

trabalhassem. Mas o resto eram os italianos, a portuguesada, a espanholada,

os alemães, os polacos, esse pessoal que pensava em trabalhar, que dava

valor ao trabalho. Brasileiro não, e os filhos dos imigrantes, à medida que

foram aprendendo o português, foram aprendendo a vadiagem. Quando

Getúlio tomou o poder, ele se deparou com isso. E chegou, através de seus

ministros, a convocar os músicos, Francisco Alves, Orlando Silva, para que

parassem de cantar aquele negócio ‘Eu vivo na malandragem, vida melhor

não há. Se eu precisar um dia deixar a orgia para ir trabalhar vou sofrer’. Aí

começaram a surgir músicas do tipo: ‘Quem trabalha é que tem razão’.”13

13 A pesquisadora Cláudia Matos ratifica as lembranças de Virgínio, dizendo: “A noção de malandro

está associada à de sambista desde os anos 20. (...) Mesmo num quadro de contestação ao culto do

trabalho, Getúlio continuava a ser uma figura muito prezada pelos sambistas e por grande parte da

massa popular. (...) O que se pode verificar em parte da criação musical daquela época – essa criação a

que chamo samba malandro – é um manejo especial da linguagem que põe em questão, ainda que

sorrateiramente, os valores essenciais da ideologia pequeno-burguesa, bem como pontos importantes

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Essas memórias familiares, antes de tudo, mostram a importância da

música naquela família; ela cumpria o papel de veículo informativo do que

acontecia no país, social e politicamente falando (embora essa questão, é

claro, transcenda a esfera familiar de João Antônio). Mas há um segundo

ponto a ser destacado, ou seja, a identificação da música com a

malandragem – por mais que o Estado Novo tenha tentado dissolver esta

aliança. Esse vínculo explicaria, no futuro, a preocupação de Irene, mãe do

escritor, quando seu filho mais velho, introduzido pelo pai nas rodas de

samba, começou a ganhar autonomia no mundo dos músicos.

O Morro da Geada

Ainda que o século XX tenha sido, no Brasil, um período de constante

crescimento urbano, e ainda que o Estado Novo, ao promover a primeira

fase de industrialização da economia brasileira, tenha contribuído bastante

para uma nova ocupação dos espaços na cidade, é importante perceber o

quanto a vida em um subúrbio como Presidente Altino era, em muitos

aspectos, mais próxima à do meio rural.

O Morro da Geada, local de residência do núcleo familiar do escritor,

limita-se, de um lado, com o município de São Paulo, de outro, com Osasco

e Presidente Altino. O vale do Tietê vem da capital e vai contornando o

morro, em forma de anfiteatro, um U. Conta o tio do escritor, Benjamim:

“As crianças iam pescar no rio Pinheiros, ou caçar passarinhos com

atiradeira. (...) Naquele tempo, da janela do nosso dormitório, eu via minha

mãe dando milho pras galinhas. Não tinha nada, era tudo campo”.

Ele tem lembrança da liberdade com que o menino João Antônio

gastava seus dias: “Quando eu era padre novo, bastava descer o morro e ele

do credo trabalhista-nacionalista.” Matos, Cláudia – Acertei no Milhar: Samba e Malandragem nos

Tempos de Getúlio, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982.

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vinha correndo falar com o tio. Eu perguntava: ‘Como é que vai

Joãozinho?’”.

O próprio escritor, para muitos dono de uma obra essencialmente

urbana, tem recordações muito fortes dessa fase “rural” de sua vida: “Que

eu moro na roça, não sei viver na cidade; compro o jornal para saber as

novidades...

Assim balangado, jongado, arteiro, cheio de marras era o viver

espontâneo do morro. Completa liberdade, do balacobaco. (...)

Mas lá em cima. Dali a gente espiava os primeiros espigões da cidade

surgindo na linha do horizonte, naquele tempo chamados arranha-céus. A

gente tão perto da cidade e tão longe dela.

No morro, roça. Uma cachorrada sem conta, uma molecadinha

mestiçada de quase-tudo, que o morro, de emigrantes, era um mar. (...)

Pois. Tínhamos horta, cuidávamos das verduras, do milho, do inhame,

da mandioca, bebíamos leite de cabra e leite de vaca.

No morro éramos rurais. Batíamos café e amendoim no pilão,

fazíamos nossa paçoca e nosso quentão com gengibre, nas festas de junho.

Gostávamos da mandioca frita, o aipim, do pinhão assado, dos cuscuz

paulista que aprendêramos a comer no morro. Nosso curau”.14

Em outro texto memorialístico, ele continua: “Depois, lá no alto do

Morro da Geada, minha bisavó Júlia, a vovó Lula, mais a avó Nair, a que

eu chamava de madrinha, e meu avô Virgínio, o padrinho, criavam

galinhas, patos e marrecos, pescavam no Rio Tietê ou nas lagoas dos

campos do frigorífico estrangeiro e tinham ovos frescos e leite de vaca e de

cabra. Havia cabras, vacas e porcos no morro, embora não houvesse água

encanada, rádio, televisão... e nem inflação. A carne era carne, o leite era

14 Antônio, João – “No Morro da Geada”, in Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o Inferno!, São

Paulo, Scipione, 1991.

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leite, a manteiga era manteiga e o amor era ‘amor pra chuchu’”.15

Havia, como se vê, um universo urbano crescendo em volta da família

Ferreira, e facilidades modernas que já haviam chegado ao morro:

“Descendo, virávamos bichos urbanos, que conheciam a água encanada, o

automóvel, o bonde, a luz elétrica, o rádio. O paralelepípedo e o asfalto”.16

Todavia, nesse período, não é este o sabor que predomina em suas

memórias sobre o morro, eminentemente rurais.

Mesmo as pescarias mencionadas pelo tio Joaquim estão presentes:

“Eu conheci, lá longe, o sol de montanha no Morro da Geada, lá pelos lados

do Jaguaré, de onde se avistava, mais à direita, um ponto meio preto, quase

azulado, tão vistoso – o Pico do Jaraguá. Ah, tempos... O rio Tietê, como o

Pinheiros, dava peixe, a gente atravessava os dois de balsa ou de bote, uns

caíques que enchiam o coração das velhas de medo e o deste aqui de um

tropel.(...)

E lá no Morro da Geada, além do futebol17

e do jogo de malha, a gente

criava de um tudo. Havia galinha, cabrito, porco, marreco, passarinho, e a

natureza criava rolinha, corruíra, papa-capim, andorinha, quanto. Tudo ali

nos Jaguarés, no Morro da Geada, sem água encanada, com luz só recente,

sem televisão, sem aparelho de som e sem inflação”.18

Mesmo suas recordações relativas ao convívio com seus familiares

está marcada por um certo toque pré-urbano. “Não há lembrança que me

chegue sem os gostos” – diz ele –, “o gosto de fel do chá para os rins, chá

de carqueja empurrado goela abaixo pelas mãos de minha bisavó Júlia

(...)”. Ou então: “difícil esquecer o gosto bom do leite quente na caneca

esmaltada estirada, amorosamente, também no Morro da Geada, pelas mãos

15 Antônio, João – “Vibrações, Poeiras e Pulgueiros”, in Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o Inferno,

São Paulo, Scipione, 1991. 16 Idem. 17 Referência ao“campinho de futebol da U.M.P.A. (União Mocidade de Presidente Altino)”. Antônio,

João – “Vibrações. Poeiras e Pulgueiros”, in Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o Inferno, São Paulo,

Scipione, 1991. 18 Idem.

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de minha avó Nair, filha de bisavó geniosa. (...) É Nair, Dona Nair, Dona

Nair de Cardoso de Sá Gomes, a que sabe fazer, até hoje, aos oitenta e seis

anos, uns olhos azuis e sararás, tão femininos e bons fora da conta se

viajam para os netos”.19

A família, concentrada naquele morro, era grande e querida, fazendo-o

sentir-se protegido: “Sou, assim, homem de sorte. De pequeno, paparicado

por avó, bisavó e doze tios e tias avós”.20

“Nenhum de nós sabia dizer a palavra solidariedade. Mas na casa de

outro tio, o nosso tio Otacílio, criavam-se até filhos dos outros e estou certo

de que o nosso coração era simples, espichado e melhor. Não

desandávamos a reclamar da vida, não nos hostilizávamos feitos

possessos.”21

“Nossa pobreza não era envergonhada. Ainda não fora substituída pela

miséria nos morros pobres como o da Geada. Tínhamos um par de sapatos

para o domingo. Só. A semana tocada de tamancos ou de pés no chão.”22

Mas João Antônio, também por essa época, aprendeu a circular pela

cidade, de bonde, ensinado pelo tio Rubens, irmão de sua avó Nair, um

“mulherengo de topete, bigode frajola, pobre, carioca, porém caprichoso

nas roupas (...) Mas os bondes. Nada fácil esquecê-los. Os abertos, que a

gente pegava e de que saltava andando; os fechados, a que chamávamos de

camarões. Vinham, volata, que cantavam nos trilhos, cortando desde o

Largo do Correio, pegando toda a avenida São João, entrando pelos bairros

e acabando lá longe, no Anastácio. Ou, ainda melhor, lá em Domingos de

Morais. Uma viagem em todos os sentidos”. 23

Não obstante todas as brincadeiras e afazeres de menino “da roça”, o

intenso convívio familiar e a liberdade proporcionada pelos bondes, o

19 Idem. 20 Idem. 21 Idem. 22 Idem. 23 Idem.

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interesse de João Antônio pelas letras logo se manifestou. Em sua mini-

biografia autorizada, ele registra que aprendeu a escrever em 1942, aos

cinco anos, na escolinha particular de uma professora da vizinhança, D.

Cecília, que cobrava 500 réis por aula, pagos com uma única moeda de

prata, com a efígie de Santos Dumont.24

“Cinco mil réis por mês custava.

Eu me lembro: uma moeda branca, com a careca de Santos Dumont de um

lado. Se papai pagasse em papel, pagaria com uma nota de cinco: Barão do

Rio Branco, também careca.”25

Graças a isso o futuro escritor pôde iniciar

suas primeiras leituras: as histórias em quadrinhos. Diz um de seus resumos

biográficos: “O pai o pôs na escola com cinco anos. E cobrava a leitura de

dois jornais por dia, porque o menino precisava se preparar para a vida”26

.

Tempos depois, ingressou no Externato Henrique Dias, na rua João

Ramalho, onde fez o curso primário.27

Formação religiosa

José Antonio, o avô, era católico fervoroso. Seu filho Domingos, por

exemplo, que a uma bela altura da vida decidiu abandonar o catolicismo e

tornar-se presbiteriano, indignou o velho português. Para contra-atacar, o

goivista analfabeto aprendeu a ler depois dos 70 anos, com o único intuito

de discutir passagens do Livro com o novo protestante da família.

João Antônio Ferreira, o pai, havia aprendido português lendo a

Bíblia, para depois se transformar num grande leitor, inclusive de livros

religiosos. Adulto, já não pertencia a nenhuma Igreja. Possuía, entretanto,

24 Neto, João da Silva Ribeiro – Literatura Comentada: João Antônio, São Paulo, Abril Cultural, 1980. 25 Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 0/09/1960. 26 Medina, Cremilda de Araújo – A Posse da Terra: O Escritor Brasileiro Hoje, Lisboa, Imprensa

Nacional Casa da Moeda, Lisboa, , e São Paulo, Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, s/d. O

texto foi republicado no O Estado de São Paulo, em 14/10/84. 27 Neto, João da Silva Ribeiro – João Antônio, Literatura Comentada, Abril, SP, 1980.

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um sentimento próprio de religiosidade, assim descrito por seu filho

Virgínio: “A religião, Deus, estava acima de qualquer Igreja”. A família de

Irene, sua esposa, que era religiosa, segundo Virgínio, também tinha idéias

próprias quanto ao tipo de educação religiosa a ser dada aos filhos do casal.

Deveria ser religiosa, sim, mas, antes de tudo, deveria ser educação:

“Minha mãe, insatisfeita com os ensinamentos católicos comuns, e mesmo

nunca tendo ido à escola – com uma visão de 25 anos de comércio atrás do

balcão, a pessoa adquire uma visão diferente do mundo –, minha mãe nos

levava a uma Igreja chamada Christian Science. Nós éramos católicos, eu

era coroinha na Igreja, mas ela nos levava a essa Igreja norte-americana

baseada no livro de uma mulher chamada Mary Bakerard. Nesse livro ela

dividia Deus em sete coisas: a verdade, o amor, etc. Divididas por idade, as

crianças estudavam semanalmente uma parte do Velho Testamento, mas

não como religião, como história, e do Novo Testamento, aí sim como

religião. Segundo a teoria deles, Cristo deixou sem valor todo o Velho

Testamento, e mudou a maneira de pensar, a filosofia”.

Por acreditar na mediunidade, João Antônio, pai, voltou-se ao

espiritismo. Mas não freqüentava centros, ou terreiros de Umbanda, lia.

Conta Virgínio: “Meu pai era um grande leitor de coisas religosas. (...) A

educação espiritual que recebemos do meu pai não era dogmática.

Procurava mudar a maneira da gente pensar. Ele não aceitava a condição de

pecado da Igreja Católica. Nós tínhamos toda capacidade de julgar o

pecado, nós já sabíamos que é preciso perdoar, que deve ajudar, que não

deve se submeter pelo medo, que é preciso ser firme. Quem teve esse tipo

de educação tem a capacidade de ver que está fazendo uma coisa errada. O

João não era muitos dessas idéias, o meu pai era dessa forma. Conheceu

Chico Xavier em pessoa”.

Quando Virgínio diz que o escritor João Antônio “não era muito

dessas idéias”, ao que parece, está querendo dizer é que seu irmão não

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pensava as relações humanas em termos religiosos. Porém, sua futura

concepção pluralista do universo religioso, até certo ponto apreendido

como uma manifestação cultural, e/ou psicológica, mais do que metafísica,

tem origem na concepção plural que seu pai tinha do fenômeno religioso e

em sua relação com o espiritismo, bem como no conteúdo educacional que

a mãe valorizava em relação a tais assuntos.

Vila Pompéia

Entre 1943 e 1944, o pai de João Antônio decidiu mudar o rumo de

sua vida. O bom emprego no frigorífico Armour, como chefe do

departamento de custos, permitiu-lhe adquirir um estabelecimento

comercial na Vila Pompéia, um armazém de secos e molhados. Este ficava

na rua Caiovás, atrás do campo do Palmeiras, num beco que ia dar num

riacho por onde hoje passa a avenida Sumaré.

Lá, em outubro de 1946, nasce o segundo e último filho do casal,

único irmão do escritor, Virgínio de Andrade Ferreira. Lá, os dois meninos,

mas sobretudo o mais velho, tiveram o primeiro contato direto não com a

pobreza orgulhosa do subúrbio quase rural, mas com a miséria da cidade. O

beco era um lugar onde as pessoas conseguiam durante o dia o dinheiro

para alimentar a família à noite. O próprio pai apelidou o local de Beco da

Onça, apelido que, explicado pelo filho Virgínio, dá uma idéia do que

estava querendo dizer: “Buraco onde quem não come é comido”. Mas o

apelido “oficial” do lugar era Navio Negreiro, por lá estarem concentradas

muitas famílias compostas por ex-escravos e seus descendentes.

Conta João Antônio: “O mais querido local da minha infância foi

também o mais miserável, onde vivi de 1943 a 1947 (...), num gueto onde

só havia gente desprofissionalizada ou de profissões muito humildes, como

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catadores de papel, sapateiros, homens que trabalhavam num frigorífico e

na Estrada de Ferro Sorocabana”28

. Foi este “um dos lugares mais alegres

que conheci [o Beco da Onça], apesar de toda aquela miséria, precariedade,

no meio de gente boa, é claro, mas que estava a um passo da

marginalidade”.29

As lembranças que o escritor tinha desse período encontram-se

reunidas em seu livro Lambões da Caçarola, onde faz um relato do Brasil

dos tempos do Estado Novo, sob a ótica dos trabalhadores.

“Pé no chão, barriga de fora, nariz moncoso, cabeça despenteada,

caras de fome, lombrigada. Aqui no Beco da Onça a molecada negra passa

o dia debaixo do sol, na rua de terra. Remexe, apronta e perturba com

carrinho de rolemã, papagaio, bola de vidro, bolão. (...) Não havendo troços

de brincar, a atração é com algum gato ou cachorro. Os moleques, então, se

espojam na terra fofa da beirada da rua. (...) O Beco da Onça é getulista,

negro, negróide, mestiço, emigrante, cafuso, mameluco, migrante, pobre,

operário, corintiano roxo [o escritor era corintiano] e paulista da gema”.30

E dois episódios lá acontecidos, ambos relativos à dura percepção da

fome, viriam a merecer descrições pontuais. O primeiro: “Encostou um

caminhão das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo para a entrega do

açúcar em pacotes de meia arroba. Azuis, de faixa vermelha, sete quilos e

meio. Os homens taludos empilhavam uns quatro daqueles nas costas, iam

ligeiros, ganhando ritmo, o movimento corridinho. Traquejo. Bíceps

enormes, tríceps enormes, cinturas finas, canelas finas de sabiá. Do

caminhão à pilha de pacotes do estrado da vendola do velho. Uns quinze

metros, se tanto.

Vai que um pacote no ombro do homem sofre um furo, o açúcar

28 Steen,Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981. 29 Entrevista a Nilo Sclazo, Lourenço Dantas Mota, Waldecy Tenório e Teresa Odonto, publicada em

O Estado de São Paulo, 13/02/83. 30 Antônio, João – Lambões da Caçarola, Porto Alegre, LP&M, 1977.

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escorre do caminhão à pilha, estira um fino, fininho de linha branca

pintando um rastro, carreirinha na terra. A molecada esfomeada se agacha,

quase se deita. E, rápida, mete a língua naquilo, raspando o chão, nariz

ranhento.

Eu não vou esquecer mais. Ele [aqui o escritor refere-se ao pai] usará a

cena como porrada viva e exemplo. Quando eu torcer o nariz, não querendo

comer”.

E o segundo:

“O fio de açúcar na terra não foi nada. Pior, o sanduíche.

Mamãe fez um, de mortadela, cortada na faca. Eu rondava por perto

azucrinando. E ela, para se ver livre, me deu, com um xingamento leve.

— Desguia, tralha!

Vou comer na porta da venda. Vou me sentar no degrau da estrada.

Olhar a rua, os caminhões carregados de areia passarem. Será bom. Vem

um moleque, marrom de pó, chispando. Rápido e, de passagem, me patola.

Já gadanhou para a sua boca o pão com mortadela. Não dá nem para piar. O

bicho voava. Ventava nos cambitos, já se enfiando para o cotovelo da rua,

dobrando no rumo do Rio Aimberé. E se esquinizou”.31

Embora, em ambos os episódios, esteja subentendida a melhor

situação da família Ferreira em relação aos demais moradores do beco, fica

claro que o contato com a pobreza crua do lugar, com sua “gente que só

come carne de galinha aos domingos”, foi impressionante.

Ele dali se lembra também dos blackouts comandados pelo governo,

dos retratos de Getúlio por todos os cantos, das histórias dos pracinhas no

front europeu, das fichas cor-de-rosa de racionamento dos mantimentos e

produtos fundamentais (óleo, açúcar, querosene, etc), e da carestia. E do

trabalho que o pai tinha como dono de armazém, carregando e

descarregando caminhões, sacos de carvão, cereais, batatas, sobretudo para

31 Idem.

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um homem muito magro, como ele, cuja saúde, naquela época, era

debilitada por um problema digestivo crônico, provocado por uma má

formação em sua vesícula.

O filho primogênito, logicamente, era chamado a ajudar, naquele

início dos anos 40: “Faço viagens ao Mercado Municipal. Apanhar

mercadorias nas beiradas do Tamanduateí. Corre-corre lutado atrás do

balcão. Enlitro óleo de cozinha, querosene, ensaco carvão, ajudando os

velhos”.

Pouco se sabe das amizades de João Antônio nessa época. Em sua

obra, há poucas informações a respeito. Algumas referências contidas em

sua correspondência, entretanto, ajudam a compor uma imagem dos amigos

que fazia, e das experiências que com eles vivia. Por exemplo: “Paulo,

Mário e Quim. Paulo tinha olhos azuis e muito me considerava, que eu

deslizava bem com o meu patineti e dava melhor ainda para uma roda de

capoeiras. (Um dia, eu vou lhe contar que na minha infância, na rua

Caiovás, Vila Pompéia, eu joguei capoeira; e que apanhava em casa porque

sempre voltava rasgado). Mário tinha a testa enorme, bem menor que o

meu coração entretanto. Quim era negro, bêbado, ex-expedicionário, bem

mais velho que eu. Amigou-se com Boneca e por ela bebeu, bebeu, bebeu,

bebeu... Bebeu todo o seu dinheiro que em 1945 eram dezessete contos de

réis, recebidos como prêmio das Forças Expedicionárias. E o meu Quim

que não morreu na Itália, morreu na Vicentina (hospital de bêbados já com

adiantamento de cólera-tremens), inchado, feio, com os olhos raiados de

sangue.

Encabulei, entristeci. Quim me fazia falta e ao meu mundo de menino.

Mundo de piratas, de estilingues e de meninas. Todas fatais me

estraçalhando...”.32

Mas, além desses três primeiros, havia dona Amélia, e seu Augusto,

32 Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 24/08/1960.

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maquinista de trem da Barra Funda, de quem João Antônio, ou Joãozinho,

gostava muito, e que viria a casar com a mulata Boneca, a negra mais

bonita das redondezas, que antes havia destroçado os corações de Quim e

Dentinho, ambos fregueses do bar; havia os homens da sacaria, com quem

o futuro escritor jogava trilha à noite; e o vizinho “burruga, o transmontano

Joaquim Moço”, trabalhador durante as madrugadas nas matanças de bois

nas câmaras frias do Tendal da Lapa. Estes eram os “personagens” com

quem o futuro escritor convivia desde cedo.

A origem e a vida extremamente humildes dos pais, o severo senso de

justiça que o pai, aos trancos e barrancos, lhe inculcava, as vizinhanças

miseráveis por onde a família Ferreira ia passando, unida e, na medida do

possível, feliz, deram a João Antônio um sentimento positivo da pobreza.

Foi nos olhos de gente pobre que a vida o fez enxergar o amor, a confiança,

a honestidade, a bondade. Não por acaso ele dizia: “Sinto, claramente sinto,

uma irrefreável ternura pelo homem do povo, pelo pé rapado, pelo

vagabundo, pelo esmoleiro, pelos feios”.33

Nunca é demais enfatizar o

quanto sua literatura está impregnada por esta ética positiva da pobreza.

De acordo com suas descrições, a vida em Vila Pompéia, apesar de

todas as carências materiais, parecia mesmo ser alegre. A vizinhança com o

estádio do antigo Palestra Itália, então recém-rebatizado como Palmeiras,

talvez devido, durante aquele período de guerra, a uma “Confusa rejeição

aos japoneses, alemães e italianos”, não impediu a paixão do menino João

Antônio pelo Coríntians. “Viajo. A gente acompanha o Coríntians.

Ansiosos, conluiados, na aflição e sem dinheiro.

Tocávamos ao Pacaembu. E, olhem, era uma estirada. Íamos a pé,

varávamos a Pompéia, pegávamos as Perdizes, saíamos no Pacaembu.

Levávamos merenda, que não tínhamos com que comprar sanduíche ou

refrigerante. Uns, por fidelidade ou paixão, mais do que por posse ou

33 Idem, de 31/10/1961.

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capricho, metiam camisetas brancas-e-pretas, como as da torcida

uniformizada, bacana. Onde as mães esticaram dinheiro, apertaram

economias para a compra daquilo, Deus sabe. Aquelas duas cores

deslumbravam e endoideciam a gente. A primeira vez que a molecadinha

do Beco da Onça desceu a Santos foi atrás do Coríntians. Contra o time de

Vila Belmiro. Até nossas mães acompanharam a gente”.34

Também foi nessa época que João Antônio, pela primeira vez

freqüentou e se deixou encantar pelo cinema. Um dos mais freqüentados

era o Cine Glamour, que ficava depois do Largo de Osasco e era vizinho de

um salão de sinuca e de uma gafieira chamada “Briga de Corvo”: “Os

seriados do Zorro, do Flash Gordon, a pirataria de Errol Flynn, os bangue-

bangues de Randolf Scott e os taitis enluarados de Dorothy Lamour faziam

as excelências das tardes dos domingos da gente. (...) Ninguém entendia

nada de golpes de câmara, efeitos de estilo, tetos-baixos ou travellings. Juro

que não.

(...)

Lá dentro do Glamour, gritaria tempo todo, a participação suspirada,

conversada e, nos filmes românticos com Lana Turner e Merle Oberon, ao

culminar, ansiada, a cena do beijo na boca. Gritávamos em coro:

— Gol!

As poltronas de madeira estalavam com o nosso levanta-e-senta

alvoroçado, infernizando os lanterninhas alertas (...) E, naqueles escuros, lá

nos fundos, casais de adolescentes aproveitavam para o namoro esfregado.

Bolina.

(...)

Semana toda esperávamos os seriados da matinê. Piratas e corsários,

mercenários árabes, espadachins, bandido, mocinho e mocinha, falsários do

espaço, pistoleiros infalíveis que só mais tarde, quando vim a me entender,

34 Antônio, João – Lambões da Caçarola, Porto Alegre, L,P&M, 1977.

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senti como pistoleiros do ocaso, do entardecer. Caídos, cansados, feito

martelo sem cabo. Cinzentos.

Havia as mulheres na tela tão bonitas quanto vagas. Antes que o meu

coração maliciasse, macunaímico, e pendesse para Michele Morgan, a de

olhos sombreados, sestrosa e classuda, que ombros e que olhos... houve

outras. Além de Dorothy Lamour e de Merle Oberon, houve outras. Greta,

claro, Greta Garbo. Havia Bette Davis, Lauren Bacall e, noutra dimensão e

força, aquela mulher, a que trazia uma enciclopédia da vida na cara,

silenciosamente, Ingrid Bergman”.35

“Aos dez anos conhecia metade dos cinemas paulistas. (...) Amei, por

essa época, os piratas de lenço verde brilhante à cabeça. Amei”.36

E uma importante lembrança que o escritor tinha do pai também

estava ligada ao cinema: “Na Rua Guaicurus, antes do tendal, um cinema

maneiro, a gente atingia rápido pegando o bonde da Lapa no Largo da

Pompéia. Bem. Lá fomos os dois, um dia, àquela sala que cheirava limpeza,

toda cheia de frisos dourados. Levava um filme italiano e meu pai, calado.

Pouca trela me dava.

Vieram na tela, em preto-e-branco marcado, o homem magro de

chapéu e seu filho, molecote de calças curtas. Era história carregada,

desemprego ou cata de emprego que fracassa. Eu pouco entendia a trama

italiana, mal e mal podia seguir as legendas. Sabia, no fundo, haver

sofrimento pesado. E misterioso para mim. (...)

Acenderam-se as luzes, olhei o pai e dei com algo sequer imaginado.

Terminado o filme, aquele macho ali chorando. Não vou me esquecer,

muita água já correu e não esqueci. Aquele homem eu nunca vira chorar.

Era Ladrões de Bicicleta”.37

35 Antônio, João – “Vibrações, Poeiras e Pulgueiros”, in Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o Inferno,

São Paulo, Scipione, 1991. 36 Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/10/1960. 37 Antônio, João – “Vibrações, Poeiras e Pulgueiros”, in Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o Inferno,

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Um espírito proverbial

A essa altura da vida, a “primeira dentição literária” de João Antônio

estava para se formar, e seu primeiro contato com o mundo da

malandragem também estava prestes a aparecer. Em ambos os

acontecimentos, a presença do pai é fundamental. Antes, entretanto, de

mergulhar nesses dois assuntos centrais da juventude do escritor, vale a

pena fazer um breve parêntese para que se possa, da melhor maneira

possível, tentar entender um pouco o temperamento de João Antônio

Ferreira, pai, e sua relação com o filho mais velho.

Alguma coisa já foi dita sobre sua infância, cheia de altos e baixos; da

estabilidade doméstica na França, onde também tinha acesso a ensino

público de boa qualidade, passando pela dura vida de “cabreiro” na volta

para Portugal, tempos de pouca comida e de nenhum estudo, e de sua

chegada ao Brasil, sem falar a língua e sendo discriminado pela criançada

de Presidente Altino. E também sobre sua enorme capacidade de superação

das dificuldades, que o elevou a um cargo de responsabilidade no

frigorífico em que trabalhava.

Um traço sempre importante é seu ar reservado. Falava pouco e era

contido, para muitos tímido. Mas amava a música, e tinha nela seu principal

espaço de liberdade e de expansão. Diz João Antônio de seu pai: “Vivo,

falador, atiçado. Isso, com o bandolim contra o peito. Fora das rodas do

chorinho, descaía, amuava, para dentro de si. Então, sério como um

sapato”.38

Era amante também de orquídeas, que conhecia e hibridava, sabendo-

lhes os nomes latinos. “Aquele homem tinha uma chave escondida com que

fazia a seleção das coisas, amorosamente. Onde diabo teria aprendido

São Paulo, Scipione, 1991.. 38 Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,

Record, 1982.

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aquilo? Fino, acima daqueles ambientes. Dava também para o cultivo de

orquídeas. Desconcertava-me. Eu lhe percebia a fineza, a categoria se

esbatendo no meio daquelas brutalidades. Levava na ponta da língua alguns

nomes em latim. Eu me lembro – onde se escrevia Helvetia, ele

pronunciava com c. Onde teria aprendido? Cuidava que cuidava de

hibridações e, muita vez, viajou em grupo à Serra do Mar, para caçar

parasitas. Difícil usar a palavra orquídea. Um dia, me explicou que elas

parasitavam os troncos de árvores enormes da serra. E a que eu não podia ir

devido à mata cerrada, ao caminho duro, às pragas e aos enxames de

mosquitos bravos”.39

“Atarracado, mãos quadradas e grossas. Mas de onde haveria

arrancado aquela sensibilidade?”40

“Meu pai é um chorão e seresteiro. Toca todos os instrumentos

musicais de corda, inclusive alguns renascentistas. É um homem raro, na

medida em que consegue misturar uma rudeza de trabalhador braçal, que só

encontrei nos contos e romances de Miguel Torga, a uma sofisticação de

espírito de homens que são capazes de hibridar orquídeas, conhecendo

todos os seus nomes em latim. É desconcertante.”41

“E não perdia a linha, homem de poucas falas. Difícil alguém

desentranhar ou pilhar, ao acaso, ainda que de passagem, opinião sua.

Quem o buscasse, atirando um lero para colher coisa concreta, sairia de

mãos abanando. Tempo e tempo, ouvia quieto, medidor. Uma ruga na testa

e ironia desconfiada, parada nos olhos. No canto da boca fechada. Prosa

não interessando, se aquietava mais. Aquela conversa fiada o punha

abespinhado. Ou calmo? Sei lá. Parecia mais explodir por dentro. Avançava

e não abria a guarda. Aí, o freguês vacilava, pejado, tropeçando, perdia a

margem da manobra, vacilão. Desencorajado, desguiava. Papai, sem

39 Idem. 40 Idem. 41 Steen, Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981.

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nenhuma palavra, plantado, teimosamente. Mas em posição de cobrança.

Que marra! E ninguém lhe aventurava uma liberdade. Firme,

atarracado, boca presa. Nos romances de Torga, mais tarde, e só com os

pedreiros de Vasco Pratolini, eu saberia de gente com igual espessura de

munheca. E de caráter assim.”42

Ainda segundo o filho escritor, não se pode dizer que não estivesse

adaptado ao país. “Mais brasileiro que eu. Que vinte fedelhos da minha

marca. Ganhou, em menino, o gosto pelo chorinho e pelas serestas e no

caminho de seus anos todos, com sacrifício, fiel ao bandolim, ao

cavaquinho, ao violão, às rodas dos chorões suburbanos. Se a seleção

jogava contra Portugal, torcia, abespinhado e incandescente, pelo Brasil.

Portugal ganhava, ele emburrava; se puxavam conversa, brigava. Na casa

dos quarenta, ia gramando ruço na vida, ele e mamãe. O transmontano aqui

chegado, uma mão na frente e outra atrás, aos trinta e poucos dias de idade,

nascido em águas portuguesas de Macedo de Cavalheiros, trabalhador das

padarias, empurrando vagonetas nos aterros e nos portos de areia do Tietê,

operário de frigorífico, tendo depois com economias estabelecido negócio

miúdo em secos e molhados.”43

Era também um homem orgulhoso, que não se rendia facilmente à

atração dos poderosos. Foi o que demonstrou quando Getúlio visitou São

Paulo, durante uma Feira das Nações Unidas. Conta João Antônio que toda

a população do Beco da Onça foi ver o grande homem, menos seu pai:

“Atolado de trabalho na vendinha no começo da rua Caiovás. Não amarrou

a cara, mas disse que não ia. Aquilo nos valeu como um desprendimento

esparramado. Então, alguém poderia perder a oportunidade de ver Getúlio?

Um cara assim estava bem acima da maioria. Ainda nos encabulou:

42 Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,

Record, 1982.. 43 Idem.

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— Eu vejo ele na moedinha”.44

Mas como esse homem, tão sofrido e batalhador, tão orgulhoso, que se

expandia com o instrumento ao peito, mas era silencioso no geral, se

comunicava com seus familiares (vale lembrar que D. Nair, mãe de Irene e,

portanto, sua sogra, morava em sua casa)?

João Antônio dá uma dica sobre como o pai se comportava em relação

às mulheres: “ [elas] Queimavam tempo mexericando, pinimbavam

intrigas, engordavam lamúrias, fuxicavam namoricos e fiscalizavam os

desregramentos. Enérgicas no juízo das pessoas que extrapolassem, ainda

que pouco (...) Umas leoas com filhos e netos.

Não lhes dava trela, silencioso e cordato. Por dentro, ia se moendo,

aporrinhado com aquelas misérias. De comum, perpassado, aturava o

falatório. Fazia não ouvir. Raro em raro, estourava. Aí, se entornava de todo

e disparava com um:

— Santa Ignorância!”.45

Nem tudo era espinho, porém: “Ainda assim se entendiam, no

comprimento daqueles anos todos”.46

Para com os filhos, no entanto, João Antônio Ferreira tinha uma

atitude bem mais construtiva. Virgínio, o irmão do escritor João Antônio,

dá seu depoimento: “Meu pai tinha um relacionamento com a gente em que

tudo era ensinamento, tudo o que ele fazia conosco era proposital, para que

aprendêssemos alguma coisa. Às vezes deixava de ensinar que era para

descobrirmos, deixava inclusive de falar. Falava até a metade, por

parábolas”.

E o próprio João Antônio completa: “De comum, seu ensino me batia

44 Antônio, João – Lambões da Caçarola, Porto Alegre, L,P&M, 1977. 45 Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,

Record, 1982.. 46 Idem.

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de modo curto e pontudo”.47

A referência a parábolas, e a um ensino de “modo curto e pontudo” é

facilmente comprovável, seja lendo os textos de João Antônio, ou os

resumos biográficos sobre ele já feitos, seja conversando com seus amigos

e familiares. Aquele homem sempre lembrado por ser silencioso, é também

sempre lembrado por algumas de suas frases, que marcavam os ouvintes

por um motivo ou por outro. Era, em resumo, um espírito proverbial, um

temperamento contido na fala, mas que quando falava parecia assumir uma

autoridade maior, de sabedoria profunda. Os exemplos são inúmeros, e

vários ainda aparecerão em seu devido momento, ao longo deste capítulo

biográfico. Vão, aqui, apenas alguns, contados pelo filho escritor:

“Nesse tanto, contavam-se vantagens [sobre mulheres], arrotavam-se

grandezas.

O pai ouve. Nada de chegar sua vez de dizer.

Então, um dia, se deu aquilo.

Falaram. Refalaram. Até que algum, do mais afoito, vem que apalpa e

lhe toma o pulso. Vem outro. Mais um atiça. Insistem, rebeliscam, a patota

cobra-lhe uma opinião. Próprio nos jeitos, papai olha o bando. E fala

devagar, diz baixo. Larga para os sacanetas:

— O que dói não é dar dinheiro às putas. É elas nos chamarem de meu

bem.

As risadas pararam nas caras. Uns tipos bobeavam, apanhados. Mas a

prosa, aí encabulou.

Ou noutras vezes, chamado a falar, despejava rente, como quem não

quisesse nada. Um machucho que não se importava com o que pudessem

pensar. Entendessem ou não. E, tanto se lhe dava se o tomariam por tímido

ou babaquara. Debulhava mais para ele do que para os outros. Estava

limpo. Alguma coisa íntima, arranhando lá dentro, considerada muito

47 Idem.

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tempo antes de lhe vir à boca, represada nas noites, remoída, remexida, ida

e vinda. Pensada e tamanha. Uma consideração:

— Mulher é imprescindível”.48

Ou ainda: “Meu pai tem a frase seca, que mal e mal vou ao fundo:

— A idade faz velhos, não faz sábios”.49

E mais uma sobre mulheres: “As mulheres são criaturas do sexo

feminino”.50

Ou, por fim: “Desses ensinos, outro que me ficou, bulindo, cedo – um

homem que não sabe brincar, vai morto no mundo”.51

Ele não tinha, a que se saiba, preferência por um ou outro filho. Estes

é que tinham, isto sim, uma diferença de dez anos de idade, o que viria a

influenciar a relação deles com o pai. Conta Virgínio que: “Meu irmão

conseguiu conviver com uma parte do meu pai que eu não consegui. Veja,

esse período de convivência [entre pai e primogênito] durou poucos anos,

até 1951, mais ou menos, quando o João tinha uns 14 anos. Eu depois

convivia com o meu pai mais tempo, mas não entendia certas coisas que o

João entendia, coisas da vida. Meu pai não falava certos assuntos comigo

que falava com ele, por causa da nossa diferença de idade”.

Mesmo com esse contato relativamente mais profundo, que começou

na Vila Pompéia e durou até 1951, a figura do pai é contraditória na vida do

filho mais velho, assumindo ora o contorno de um severo preceptor,

moralista e até violento, ora o homem das sensibilidades, amigo das artes e

das coisas delicadas.

48 Idem. 49 Idem. 50 Idem. 51 Idem.

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Primeira incursão na “malandragem”

Curiosamente, a primeira incursão do futuro escritor João Antônio nas

franjas da malandragem se dá pelas mãos de seu próprio pai. É nessa época,

com aproximadamente 8 anos, que o Joãozinho começa a acompanhá-lo

nas rodas de choro, os chorões.

“Que me lembre” – conta João Antônio –, “freqüentei de cedo, rodas

de chorões e seresteiros, levado pela mão de meu pai. O velho sequer tinha

escola primária completa. Mas tocava por música. Banjo, violão,

cavaquinho, bandolim e os instrumentos de corda que conheço. Todos”.52

“Vou quieto, sondando. Corremos, eu e papai, as rodas de Presidente

Altino, Osasco, Vila Leopoldina, Lapa e nos trens caxinguentos e

estropiados da Sorocabana viajamos a Jandira e Itapevi. Ou tocamos para o

outro lado da cidade, para a Luz e para Santana. Reviramos os bairros, os

dois nos damos as mãos nas travessias das ruas, andejos.”53

Mas as peregrinações rumo ao desabafo da música iam ainda mais

longe: “Será difícil esquecer que meu pai me trazia ao Rio, quando vinha

visitar Garoto, Aníbal Augusto Sardinha, tocando no Cassino da Urca, nas

rádios ou em cantões outros e noturnos, eu não sabia onde, ali pelos meus

sete anos. Eu pousava em Nilópolis, em casa de Tia Zulma, Zulmira,

magrinha, de olhos contentes e que girava excelente leveza num salão de

danças e era ciumosa do marido espanhol, um Manoel, que jurava, era um

sonso. (...) Ou parava na Favela da Cachoeirinha, boca pesada já então, lá

com o tio-avô de cabelos brancos, embora moço, Otacílio”.54

52 Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralho”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,

Record, 1982. 53 Idem. 54 No texto “Pequena especulação em torno de três momentos do poeta da vila”, in O Estado de São

Paulo, SP, 01/05/83, que funde memórias dos primeiros contatos do escritor com o Rio de Janeiro e

uma análise das fases da carreira de Noel Rosa, João Antônio apresenta mais recordações dessas

primeiras viagens ao Rio: “Uma vez que não parávamos, andejando de trem por aí, chegamos até

Maxambomba, pela Leopoldina, longe pra danar, e visitamos a parenta baiana Ercília [não foi possível

saber o grau de parentesco do escritor com esta pessoa], velhusca, de lenço à cabeça e que vendia mel

Page 66: João Antônio: Uma Biografia Literária

66

Nada mais natural que, de tanto ouvir e de tanto gostar, o menino João

Antônio começasse a sentir-se desafiado a tocar.

“Aprendo chorinho sem tocar. (...) Ali pelos nove anos, pinicava

rápido, jeitoso, o Apanhei-te, Cavaquinho e uns pedaços avulsos da Marcha

Turca.”55

E não apenas a música fascinava o menino, mas também as pessoas

daqueles ambientes e seus códigos todos especiais. Ele se torna, pouco a

pouco, uma espécie de mascote dos grupos: “Como não falte aos encontros,

passo a conhecido. E faço parte. Claro que não toco, mas sou da turma. Pra

lá e pra cá, de tanto ir e vir, os homens brincam comigo e nos temos

amizade. (...) Dão de presente a meu pai. Uma miniatura de chupeta num

laço de fita vermelha, que o velho pendura na cravelha do bandolim. A

chupeta ao bandolim como eu ligado a meu pai. Todos sentem e ninguém

fala”.56

O episódio acima transcrito introduz, singelamente, a ambigüidade

dos ambientes em que tinham lugar os chorões. De um lado, as rodas de

choro costumavam ocorrer num clima de razoável decência. Pixinguinha

mesmo, do alto de sua autoridade no assunto, dizia sobre isso: “O choro

tinha mais prestígio naquele tempo. O samba, você sabe, era mais cantado

de abelhas. De pequeno, andando com meu avô Virgínio a atravessar a cidade de bonde e de bonde

varar aquela colméia que porejava gentes, cheiros e sons, a Galeria Cruzeiro, hoje Edifício Avenida

Central (...) Com esse Virgínio, avô materno, eu vi teatro, cinema, circo, favelas, subúrbios, cidades do

Estado do Rio e o filme “A Rua do Delfim Verde”, no Metro Copacabana. E o mar, pela primeira vez,

claro. (...) Nada fácil esquecer o tio mais alto, o ainda tio-avô Rubens, mulherengo, pobre porém

caprichoso, vestido todo de branco, impertigado, namorador, impenitente e alegre como poucos, a me

ensinar nos bondes a olhar para as pernas das mulheres e também a lhes oferecer o lugar; aquele tio

Rubens que, de predestinado a novas mulheres, ficou viúvo duas vezes. Difícil será esquecer as

bolinhas de gude e o jogo da porrinha aprendido com o pessoal da Favela da Cachoeirinha, enquanto se

empinava pipa ou se ia levar os restos de comida aos porcos, que naqueles morros criavam-se, como se

criavam galinhas, cabritos, patos, marrecos. E passarinho, quanto. No barraco do tio Otacílio, criavam-

se, inda mais, filhos dos outros. Que assim era o coração do mulato de cabelos brancos, contínuo de um

Ministério lá no centro da cidade. Descia no Lins, tocava a pé para o barraco e, chegando, me salvava:

‘O, batuta!’ (...) Mas assim, de lá pra cá e retornando, dos cinco aos dezessete anos, meu coração ainda

pequeno, andou de trem, e muito, de São Paulo ao Rio, ida e volta. Dentro das duas cidades, ele viajou

nos trens miseráveis e incertos de subúrbios pelas velhas Central do Brasil e Sorocabana. Sempre na

Segunda classe, com ou sem as mãos dadas aos mais velhos”. 55 Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralho”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,

Record, 1982. 56 Idem.

Page 67: João Antônio: Uma Biografia Literária

67

nos terreiros, pelas pessoas muito humildes. Se havia uma festa, o choro era

tocado na sala de visitas e o samba, só no quintal, para os empregados”. 57

Porém, a condição de mascote, a brincadeira com a chupeta, parecem

indicar que a presença de crianças no ambiente, como ouvintes fiéis, não

era tão corriqueira e usual. Afinal, embora os ambientes das rodas de choro

não fossem propriamente os da malandragem “profissional” – pois essas

rodas costumavam ocorrer em casas particulares e não em salões de sinuca,

no jóquei ou em bordéis –, as músicas e as figuras, mais ou menos famosas,

porém cheias de estilo e filosofia popular, e a bebida, claro, compunham

uma atmosfera em boa dose malandra, talvez até, muitas vezes,

involuntariamente. Irene, esposa e mãe zelosa, “enérgica no juízo das

pessoas que extrapolassem”, devia consentir nas idas seu primogênito com

alguma hesitação. Pixinguinha falava dos chorões dos anos 20, e agora o

Brasil já estava à beira da década de 50.

As descrições que João Antônio deixou do ambiente dos chorões

parecem indicar realmente uma atmosfera ambivalente, entre a segurança

do lar e o círculo da malandragem: “Até parece família, na aparência, a

companheiragem que segue nas rodas. (...) Grupinhos se conluiam dentro

do grupo. Sinais convencionados e falas cifradas surgem e funcionam

criando combinações, habilidades. Há derrubadas que se armam aos

poucos, calibram-se com estratégia manhosa, marotamente”.58

E mesmo a relação de um compositor com seu choro, e de ambos com

os companheiros, se parece com um jogo sutil, cheios de velações: “Na

derrubada do choro, só o bom fica de pé. Na derrubada do choro, de duas

você passa a desconfiar. Quando alguém lhe diz: ‘deixa isso comigo’.

Quando alguém lhe diz: ‘este cachorro não morde’. Você aprende. Quem

corre, cansa. A derrubada do choro faz com que, só depois dos vinte e

57 Matos, Cláudia – Acertei no Milhar, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, p. 27. 58 Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralho”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,

Record, 1982.

Page 68: João Antônio: Uma Biografia Literária

68

cinco, trinta anos um nome de chorão comece a correr as rodas e se

imponha considerado, temido, conhecido de longe. Solista, bandolim,

cavaquinho ou sopro são, em geral, os compositores. E guardam feito ouro,

represando meses, uma composição nova. Trabalham, gramam em silêncio,

ensaiam longamente, em exercício solitário. Não mostram a niguém, nem à

mulher. Trancam-se num quarto, se encafuam. Que ninguém os ouça e não

os roube. Soltarão a música mais tarde. Dominada, acabada, todo o traquejo

finalizado. Quando se sentirem os melhores intérpretes de si mesmos e

dominem os acompanhamentos, os improvisos, certos de que serão

imperdíveis e de que ninguém os baterá naquelas rodas de espertos [grifo

meu], rápidos e afiados”.59

A importância daquele período, das pessoas que conheceu nas rodas,

da estima por seu ambiente artístico e descontraído marcou-o

profundamente, e marcaria também sua literatura. É um ambiente próximo

a esse, ainda que menos romantizado, que João Antônio, um pouco mais

velho, a partir dos quinze ou dezesseis anos, reencontrará nos salões de

sinuca, em outras “rodas de espertos”.

Mas, na época, o curso dos acontecimentos não favoreceu sua ligação

com a malandragem e com a música. Sua mãe não aprovava a idéia.

“A mãe, desafinada. O pai, musical de todo”.60

“Mamãe, implicada, encalistrava, mas quieta. Cautelosa, zelosa, por

perto campanando. Forte.

Para ela, o mundo dos chorões e dos cantores era a vida na farra.

Eu não levasse o vidão das rodas de choros e serestas, perdendo-me na

boêmia, nas bebidas, sapecando-me de mulheres, artes, maturutagens.

Extravagância antes do tempo. E escondia-me o bandolim. Tão, assim, o

velho saía para o trabalho, encafuava o instrumento longe do meu alcance.

59 Idem. 60 Idem.

Page 69: João Antônio: Uma Biografia Literária

69

Que me entretivesse com outra coisa”.61

A familiaridade do pai com o mundo da música, e a introdução do

primogênito nesse ambiente vai gerar um conflito surdo dentro da família,

uma vez que a mãe do escritor combatia com todas as forças a atração de

seu filho pelo choro. Ela, como era comum naquele tempo, via a música

como sinônimo de malandragem e descompromisso.

“Não toco no correr da semana. Nas tardes e noites de folga, sigo

papai. Estou numa prensa, entalado e bem. O pai me quer enlaçando o

instrumento, a mãe me esconde o bandolim.

Boca presa, boca de mocó. Não entregarei mamãe. Que, se o pai

descobre, haverá frege. Ficará fulo, tiririca, um bicho, desandará.

Guardarei com jeito, até onde eu puder, na tranca e no enruste.

Esconderei dos dois, não desconfiarão. A ciumada da mãe e o ensino do

velho não se trombariam. Mas a minha vida, aos nove anos, assim é um

nó”.62

Enquanto o conflito se prolongava, o menino ia esquecendo o pouco

que sabia do manejo do instrumento, visto que não praticava. João Antônio

conta um episódio dessa época, no qual, aliás, novamente o espírito

proverbial do pai entra em ação:

“Uma tarde, já boca da noite, a gente num alpendre da Lapa-de-cima e

a primeira estrela da tarde espetou aquele céu. Pedi com os olhos para que

ela me desse sorte. Os homens tocaram um número, ganharam uns aplausos

e foram para a sala beber. (...)

Espiei. Não vinha ninguém. Peguei o cavaco e o encostei ao peito.

Dedilhando brando, brando, a palheta para baixo e para cima, apertada nos

dois dedos da mão direita. Brando.

Papai chegando sem que eu o visse, me pilhou, fala curta:

61 Idem. 62 Idem.

Page 70: João Antônio: Uma Biografia Literária

70

— Ah, gosta de tocar.

Um frio nos joelhos de fora, que a calça curta não cobria. Pousei o

bandolim, num arrepio. (...) Ele teria percebido que não treinara mais a

Marcha Turca e o Apanhei-te Cavaquinho? Que, por último, eu nem relava

no bandolim?

O pai fez uns olhos pretos, miúdos, certeiros.

— É mais difícil ouvir do que tocar”.63

Mas o surdo conflito familiar não foi eterno; teve um vitorioso. João

Antônio se rendeu. Esta é sua versão do desfecho do episódio.

“Corre um tempo em que, naqueles pedaços suburbanos, a mulher não

intervém na andança do marido. Mas finca uma ditadura e impõe o

paradeiro dos filhos. Uma gestapo feminina. Isso, a que depois os autores

preferiram chamar de chauvinismo na mulher.

(...)

Não entregaria a mãe. Para final, os adultos vão, vêm e brigam. Mas

sempre arranjados, no entanto. E se as manobras engripam e derrapam,

sobra um safanão para os pequenos distraídos nas redondezas. Gente

grande é isso.

Então, não pegava no instrumento”.64

Essa resignação, essa capacidade precoce de abrir mão de um desejo

tão forte, em nome da paz doméstica, ao que tudo indica, nasceu de um

temperamento temeroso, bastante sufocado pelas autoridades de pai e

mãe.65

O amor platônico que, passivamente, da platéia das rodas de choro,

manteve durante alguns anos com o cavaquinho, mostra seu poder de

resistência silenciosa. Assim como o pai, João Antônio, criança, era de

poucas falas. “Ninguém dava nada pelo João” – conta o irmão Virgínio, –

63 Idem. 64 Idem. 65 Conta João Antônio: “Fumei aos 12 anos. Apanhei como boi ladrão. Amei os cigarros”. Trecho de

carta enviada a Ilka Brunhilde Laurito, em 06/10/1960. Apesar da dura repressão familiar, o escritor

tornar-se-ia um fumante inveterado, mantendo uma média de três maços por dia.

Page 71: João Antônio: Uma Biografia Literária

71

“ele não falava, só ouvia. João Antônio sentava nos lugares e ficava quieto,

sempre foi assim.”

Sai a música, entra a literatura

O escritor, em outra oportunidade, conta a história de sua abortada

vocação musical. A importante diferença, nessa nova versão do episódio, é

o elo que explicita entre a repressão a seu interesse musical e sua guinada

para a literatura:

“Talvez eu seja uma vocação espúria de escritor. Quem sabe não passe

de um músico frustrado, de quem afastaram os instrumentos na primeira

infância. (...) Ele [o pai] me colocou um instrumento musical na mão logo

aos oito anos de idade: um bandolim. E eu cheguei a tirar de ouvido, sem

saber uma nota, alguns trechos de choros difíceis como o Apanhei-te

Cavaquinho. A minha formação musical é incrível pois, embora seja

urbana, eu convivia com grandes músicos, como Garoto e João

Pernambuco. Possuo ouvido musical apurado, a ponto de fazer observações

profundas em termos de musicalidade. Quem me afastou da música foi o

senso protetor de minha mãe que jamais pôde compreender a viabilidade

prática da profissão musical. Achava ela que os músicos eram, em geral,

dissumuladores e que se valiam do fato musical para acobertar suas farras,

porres, boêmias, e, principalmente, pluralidade de mulheres. E, assim, em

nome de um valor no qual eu nunca acreditei, ou seja, a monogamia – para

ambos os sexos –, acabei desembocando na literatura. Caí na literatura, que

parece ter, após um amor que já dura mais de vinte anos, todos os

ingredientes do risco e da paixão que tanto me fascinam. Mal sabia minha

mãe que se eu me tivesse dedicado à música popular, hoje seria um homem

talvez melhor situado, em termo de status, do que é geralmente o escritor no

Page 72: João Antônio: Uma Biografia Literária

72

Brasil”.66

Mas a literatura não era apenas uma alternativa à música.

Era também um espaço onde o ritmo, o tom e a melodia se podiam fazer

presentes. Música e literatura confundiam-se ainda de outra maneira em sua

vida, diz ele: “(...) comecei a descobrir o gosto pela leitura porque meu pai,

por medo que eu lesse coisas que não prestassem, quando me via lendo

alguma coisa, mandava que eu lesse em voz alta; então comecei a perceber

que aquilo tinha um ritmo; comecei a perceber que tinha frases que, por

melhor que eu lesse, não davam aquela melodia, aquele ritmo. Acho que

aprendi literatura muito por ouvido, de tanto ler em voz alta”.67

“O João Antônio chegou a tocar bandolim de ouvido. A primeira parte

da Marcha Turca meu pai disse que ele tirou, eu mesmo nunca vi ele

tocando bandolim, mas era muito afinado o ouvido dele (...). O ouvido do

João era afinadíssimo, inclusive para as palavras – isso é muito importante

– ele gravava muito o que as pessoas falavam”.68

É mais ou menos com doze, treze anos, que João Antônio conhece

Homero Mazarém Brum, um gaúcho de São Sepé que, residente em São

Paulo, publicava um pequeno jornal infanto-juvenil chamado O Crisol. A

redação ficava na Avenida Juriti, em Moema, onde João Antônio chegava

de bicicleta.69

66

Steen, Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981. 67

Ricciardi, Giovanni – Escrever. Libreria Universitaria de Bari, 1988. 68

Depoimento de Virgínio Gomes Ferreira, colhido em 23/03/99. 69

A mania ambulatória de João Antônio será recorrente em sua vida e obra. A pé, de bicicleta, de

bonde, trem ou ônibus, em São Paulo, no Rio de Janeiro ou em Amsterdã, o deslocamento do escritor

na cidade será sempre intenso, funcionando como parte de seu processo criativo, fonte de inspiração, e

como estratégia de anestesia para as dores sociais e financeiras tal processo se verifica no próprio livro

Malagueta, Perus e Bacanaço (ver cap. 3). Sobre os tempos de bicicleta, ele diz: “Passo, escabriado, a

pedalar na magrela, amorosamente; é a bicicleta Calói, meia-corrida, companheira. Pequena, princesa,

magrela. E vou mais atiçado, alegre como um moleque. Atravesso, de enfiada, capeta, trim-trim, uma

volada chispando nas manhãs de Domingo, varando Vila Anastácio, Lapa, Água-Branca, Perdizes,

Santa Cecília, Centro. Pego a Avenida Nove de Julho, o Paraíso, flecho até Moema. De um lado a outro

da cidade pedalando a minha magrela, chispa, trim-trim, firme envergo o lombo do selim para o cano,

ganhou, são duas horas voadas no selim, a redação do jornalzinho infanto-juvenil, num quartinho dos

fundos de uma casa em Moema, na Avenida Juriti, onde começo a escrever.” Antônio, João – “Paulo

Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro, Record, 1982. E também:

“Ciclo de bicicleta. Um acidente. Outro acidente. Possuí uma de corrida, Bianchi. Custava na época

Page 73: João Antônio: Uma Biografia Literária

73

Suas primeiras linhas foram publicadas nos últimos anos da década de

40. “Colaborei escrevendo artiguinhos, coisas; poesia não, nunca. Escrevia

sobre heróis nacionais, como o Henrique Dias, por exemplo, ou escrevia

sobre a árvore. Eram composições infantis. Acho que peguei o gosto pela

palavra escrita daí.”70

Diz ele que não era propriamente escrever a sua tarefa no jornal, mas

sim “exortar, em patriotadas, a elevação das honras de heróis no fragor das

batalhas que nem entendo. Mas imagino.”71

Com todas as óbvias limitações de textos de uma criança de 12 para

13 anos, conta o irmão Virgínio que: “Meu pai leu um conto dele no Crisol,

onde falava de um passeio de bicicleta e, depois de muitos anos, meu pai

admitiu que o conto era tão fotogênico; os lugares que meu pai conhecia tão

bem, tudo andando de carroça, de jipe, de caminhão, os locais que o João

descreveu, meu pai fazia entrega de secos e molhados nessa região, e ele

descreveu no conto o ar batendo no rosto, o sol, os buracos, a grama, e aí

meu pai percebeu que ele tinha uma grande vocação para redator”.

A experiência no Crisol, além de sensibilizá-lo para escrita,

sensibilizou-o para alguns dos primeiros autores favoritos. Era sua primeira

“dentição literária” se formando:

“Assim, tomei gosto por escrever pequenas biografias, crônicas e

dissertações que, uma vez publicadas, me davam livros de presente.

Comecei então a tomar conhecimento da literatura, a ler tudo. Aprendi a

usar dicionário. Lia Monteiro Lobato, Viriato Correia. E outros,

principalmente publicados pela Melhoramentos e pela Brasiliense, e por

uma editora que hoje não existe mais, cujo nome deve ter sido Piratininga e

que publicava os livros de Jerônimo Monteiro. Tomei conhecimento de

três mil cruzeiros. Desisti das bicicletas como já havia desistido dos patinetes.” Trecho de carta a Ilka

Brunhilde Laurito, de 06/10/1960. 70

Ricciardi, Giovanni – Escrever. Libreria Universitaria de Bari, 1988. 71

Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,

Record, 1982.

Page 74: João Antônio: Uma Biografia Literária

74

muita coisa séria através desses livrinhos. (...) Havia muitos motivos para a

empolgação de uma vocação literária, por exemplo, as figurinhas do Café

Jardim. Saíam álbuns e os garotos os enchiam com figurinhas tiradas do pó

do café. O primeiro álbum que eu enchi era uma história chamada O

Homem das Cavernas, escrita por Monteiro Lobato. Também as figurinhas

do Café Jardim premiavam os colecionadores com livros e assim li um livro

incrível chamado Os Moedeiros Falsos, de André Gide”.72

Entre seus marcos iniciais, consta também o poema “Canção do

Expedicionário”, de Guilherme de Almeida.73

“Disso [da experiência no Crisol] caí para a escrita. Destrambelhei-me

no gosto pelas palavras e que me lembre, havia uma, lá longe, nos tempos

em que lia gibi, minha primeira criação: mononstro. Numa historiada de

Mandrake ou Brucutu havia um monstro de tal modo horripilante, que nem

era monstro só. Era mononstro e nem houve sabedoria que emagrecesse ou

esfriasse a minha nova palavra.

O redator-chefe da revistinha, gaúcho de São Sepé, me premiava as

colaborações com livros, sem dúvida, de qualidades magníficas. Eu podia

imaginar uma porção de coisas boas ou pressentidas como A Vida do

Escravo Tartamudo Esopo, sua inteligência e picardia, a inclinação para a

justiça e a luta pela liberdade. Minha comoção o acompanhou, fabulista,

escravo, trácio ou frígio, até que o jogavam num abismo”. 74

O livro sobre Esopo foi, na verdade, segundo ele próprio, o primeiro

que o futuro escritor leu, e do qual diz o seguinte: “Esse livro teve uma

influência fundamental na minha primeira dentição literária. Eu me

apaixonava pelo escravo frígio e tartamudo que tinha duas obsessões: a

liberdade e a justiça. Era tão brilhante nessa perseguição, que acabou

72

Steen, Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981. 73

Medina, Cremilda de Araújo – A Posse da Terra: O Ecritor Brasileiro Hoje, Lisboa, Imprensa

Nacional/Casa da Moeda, Lisboa, e São Paulo, Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, s/d. 74

Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo Duro, Rio de Janeiro,

Record, 1982.

Page 75: João Antônio: Uma Biografia Literária

75

jogado num abismo. Essa tragicidade da história de Esopo mexeu

fundamentalmente comigo e terminei a leitura apaixonado e revoltado”.75

Vila Jaguara e um novo empreendimento paterno

Em 1951, quando João tinha 14 anos, sua família se muda novamente,

para a Vila Jaguara, onde seu pai havia comprado um segundo armazém.

Virgínio, o segundo filho, então já havia nascido, e tinha nove meses de

idade à época da mudança. De início, tudo corre bem. Até a saúde do pai

melhora, apesar dele começar nessa época a beber bebidas alcoólicas e a

comer comidas mais fortes.

João Antônio, ou Joãozinho, como ainda era chamado, lá ingressou no

colégio Campos Sales, que não era dos melhores, e ficava na rua 12 de

Outubro, na Lapa. Lá estudou português, francês e latim, em seguida inglês,

matemática, geografia, história, geometria, etc. Seu gosto, não por acaso,

inclinou-se para o português. Em matemática, era fraco. Seu pai, que abrira

caminho na vida graças à capacidade de calcular, no início estudava com

ele. Virgílio conta que o pai não admitia que seu irmão tivesse tanta

dificuldade: “Tudo aquilo que os outros aprendem, você é capaz de

aprender. Você pode demorar mais, mas como você não pode repetir de

ano, tem que estudar mais do que os outros”.

Virgínio conta ainda que havia outra zona de conflito entre João

Antônio e o pai, qual seja, o desinteresse do futuro escritor pela vida de

comerciante. O esforçado emigrante, que do nada chegara a uma posição

bem mais confortável na vida, que se educara e se profissionalizara com

muito esforço e pouca ajuda, que mantinha a família com sacrifício mas em

geral numa situação melhor do que as demais famílias da vizinhança, não

75

Steen, Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981.

Page 76: João Antônio: Uma Biografia Literária

76

conseguia aceitar, do filho, o corpo mole demonstrado diante das

oportunidades que a vida estava lhe oferecendo. Ele era dono de seu

próprio negócio, orgulhoso disso, e não admitia que o filho não enxergasse

o valor desse fato.

Em parte por um desdobramento natural de sua prosperidade, em parte

por estar desiludido com o filho, não sentindo-o motivado a dar seqüência a

sua atividade no armazém, foi que João Antônio, pai, decidiu arrendar,

junto com dois sócios, uma pedreira que pertencia ao frigorífico Armour,

perto de Pirituba, num lugar que hoje adotou o nome da empresa,

Cantagalo.

Falência, isolamento familiar e literatura

De início, tudo correu bem na pedreira arrendada pelo pai de João

Antônio. De seus dois sócios, um era amigo, seu Antunes, português que já

havia negociado com pedras, e o outro era alemão, Kurtz, ex-gerente de

uma construtora. Os dois sócios, porém, quiseram crescer rapidamente,

tomando empréstimos junto a bancos. Segundo a família Ferreira, não era

essa a intenção, ou mesmo o estilo, de João Antônio, pai. Entretanto, de

acordo com o contrato social da firma, bastava o aceite de dois dos sócios

para que as resoluções fossem legitimadas e, no caso, os empréstimos

fossem tomados. Com esse dinheiro montaram um silo, importado dos

Estados Unidos, e chegaram a tirar dois mil metros cúbicos de pedra por

dia. A pedreira chegou a ter, nesse período de auge da produção, 122

empregados. Mesmo assim a produção não era suficiente para o pagamento

das dívidas e dos juros. Ou o dinheiro sumia... Os três são obrigados, em

1953, a entregar a pedreira aos credores e estes a vendem à família Corazza.

Assim João Antônio escreve sobre o episódio: “Pula de uma mercearia

Page 77: João Antônio: Uma Biografia Literária

77

nos cafundós de Vila Jaguara, chega a sócio de uma pedreira em Pirituba,

tem setenta homens trabalhando e dois sócios safados. Provavelmente

sonhasse, emigrante, com exportação e negócios internacionais, raspando

de perto a riqueza. Inda agora não entendo onde foi buscar cabeça fria que

não enfiou uma bala nos dois”.76

Sua biografia autorizada, vai mais longe, acenando com o motivo de

estranhamentos que se provariam históricos e duradouros entre pai e filho:

“Mas pôde [João Antônio] enxergar [no pai] um defeito que ele, o filho,

superaria totalmente: o de ficar quieto, de não reagir ao ser enganado, como

ocorrera no caso da pedreira da Vila Jaguara. A sociedade o fizera perder

tudo o que havia conseguido no trabalho de vinte anos, obrigando-o a voltar

à condição de quem tinha de começar tudo de novo, numa idade em que já

não se começa tudo de novo”.77

Dois credores, percebendo que João Antônio, pai, fora vítima da má-

administração dos sócios (a quem João Antônio, como se viu, muitas vezes

acusa de roubo), montaram-lhe um estabelecimento comercial na rua

Conselheiro Ribas, em Vila Anastácio, onde poderia voltar a ganhar a vida

e a honrar integralmente seus compromissos. Ele, que nunca dera nome a

nenhum de seus estabelecimentos, instou os proprietários, Guido e Carlos, a

escolherem um. Escolheu-se a palavra “Gambrinus”. O comerciante

português, ironicamente, ficou conhecido por alguns da redondeza como

“seu” Gambrinus.

A família muda-se novamente, agora para a Vila Anastácio,

atravessada pela via Anhangüera, rua do Botocudos, no 61. É uma casa

pequena, de duas águas, em uma rua de terra. A paisagem, humana e

natural, não inspira nada de bom ao escritor, que assim a descreve: “Uma

76

Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,

Record, 1982. 77

Neto, João da Silva Ribeiro – Literatura Comentada – João Antônio, São Paulo, Abril Cultural,

1980.

Page 78: João Antônio: Uma Biografia Literária

78

casa quase trepada na outra. Ali pelas beiradas dos trilhos dos trens da

Sorocabana, o casario apequenado e imundo, um e outro barracão de

madeira no meio da alvenaria. Um grupo escolar, nenhum posto médico,

pouco telefone, vendolas, quitandas pingadas, alguma padaria, uma igreja

de padre húngaro e muito desejo, amores atravessados, rompante de

macheza, molecadinha tremelicando friorenta e miúda de pés no chão,

murro semana brava nas fábricas. Maisena, fósforos, frigoríficos, fundições

da Sofunge, serrarias, Anderson Clayton. Muito botequim. A vila, de pobre

e de tristeza, nem campinho de futebol tem. (...) Nas ruas, monturos

proliferam moscas, ratos e insetos ruins. Que saem à noite com os

pernilongos dos seus escondidos. E espetam, azucrinam os ouvidos, fazem

ferver os nervos. Azoam. Algumas calçadas redescobertas de massa escura

e pegajosa, que fede, pregando-se aos sapatos e desconfiamos seja borra de

sabão roubada da refinaria”.78

Vila Anastácio era o bairro onde o recolhimento municipal de lixo

acontecia “uma vez, e uma só por semana”, “era um bairro de mil cheiros,

da madeira das serrarias ao odor do lixo.”.79

João Antônio, pai, estava na faixa dos cinqüenta anos em meados da

década de 50. Enquanto o Brasil caminhava para crescer 50 anos em 5, ele

voltava para trás. Foi dos bastidores que João Antônio, pai, e filho,

assistiram ao sonho da modernidade e do progresso se materializando à

brasileira.

Anos depois, porém, o escritor conseguiu recuperar alguns pontos

positivos do lugar: “Eram [os membros das rodas de choro] imigrantes de

todas as partes do mundo – húngaros, lituanos, russos, poloneses. Lá em

Vila Anastácio, às margens do Tietê, recordista nacional do consumo de

78

Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,

Record, 1982. 79

Neto, João da Silva Ribeiro – Literatura Comentada – João Antônio, São Paulo, Abril Cultural,

1980.

Page 79: João Antônio: Uma Biografia Literária

79

cachaça, naquele gueto de gente empilhada, que não tinha dado certo na

cidade, eu vivia musicalmente. Conheci a aguardente de pêssego e os

palavrões húngaros, a música cigana, o som do violino”.80

Outro dos resumos biográficos existentes sobre o escritor registra mais

alguns personagens da Vila Anastácio: “povo mestiço de húngaros, russos,

lituanos, polacos e todos os migrantes mais conhecidos. Como passar por

cima das histórias de um russo que, abandonado pela mulher, morreu de

paixão. Como esquecer aquele outro russo, o Estálin, que dizia

seguidamente: ‘Não adianta falar na comunisma, procurar a comunisma, a

comunisma vem sozinha.’ E os árabes? Fuad Auada, da rua dos Armênios,

fugiu com uma mulher, ganhou fortunas roubando areia dos rios, ficou rico

e foi parar no Pacaembu”.81

Arruinado, sem outra saída, João Antônio, pai, vai à luta. É seu filho

quem relata: “Estava rodado. Cavou de novo, corpo-a-corpo com a vida,

com os dedos, com as unhas, minha mãe ao lado depois da porrada.

Catando e catando e catando algum equilíbrio (...) Onde só havia sapos e

tartarugas, conforme a humilhavam os moradores da Lapa, folgados e

limpinhos, lambuzados das importâncias. O pai pelejava e se batia, os

nervos estalavam. Mamãe sofria e ia pra luta, se botava ao lado dele, dentro

do balcão. Ali, mexendo-se como formiguinhas insistentes, aturando

bêbados, gringos e ralados pelos credores, os dois começavam a

envelhecer”.82

Este é um momento crucial na relação entre pai e filho. O primeiro,

proverbial e severo, vira o esforço de toda sua vida ir por água abaixo, e

junto com ele, muito provavelmente, fora sua auto-confiança, sua

80

Entrevista a Nilo Scalzo, Lourenço Dantas Mota, Waldecy Tenório e Teresa Odonto, publicada em O

Estado de São Paulo, 13/02/83. 81

Medina, Cremilda de Araújo – A Posse da Terra: O Ecritor Brasileiro Hoje, Lisboa, Imprensa

Nacional/Casa da Moeda, e São Paulo, Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, s/d. 82

Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,

Record, 1982.

Page 80: João Antônio: Uma Biografia Literária

80

convicção nos valores que havia defendido, e que vinha procurando passar

aos filhos, em geral, mas sobretudo ao mais velho. João Antônio, de sua

parte, tem a vida radicalmente transformada; e para muito pior. Sua vida

profissional começa aos treze anos de idade. Matricula-se no curso normal

noturno, para poder trabalhar. É inevitável a revolta, o esfacelamento do

conjunto de valores que o mantinham integrado à família. Aos quatorze,

descobre o sexo, a bebida e a sinuca. E tudo o mais que essa trinca costuma

trazer junto.

É ele quem diz, sobre as dores de seus pais: “Eu entendia, e não, essas

dores, que pensava nas minhas.

Vamos dizer. Entendia que, nos filmes, uma mulher rica e burguesa,

com as comodidades aos pés, chorasse. Tédio, nojo ou escárnio. Entendia.

Só não me cabia no juízo que mamãe, cozinhando, se fanando sem

empregadas na lida da casa, ajudando no bar e lavando louça no tanque –

depois daquela pilha viria outra pilha e outra – encontrasse jeito de, às

vezes, baixinho e desafinado, cantarolar”.83

A autoridade paterna, dentro de casa, nunca mais foi a mesma.

Aparentemente, João Antônio, pai, deixou de forçar o destino do filho.

“Meu pai só brigou com o João até o normal. Principalmente porque minha

mãe logo arrumou emprego para ele, pondo-o na Anderson Clayton, a

indústria de laticínios, que ficava no bairro da Saúde”.

De fato João Antônio trabalhou lá, como menino de recados e

entregador da correspondência, office-boy da divisão de refino de óleo. E

suas lembranças do local de trabalho também não eram boas:

“Há fartum da refinaria de óleo, (...) dos esgotos que desembocam e

correm, grossos, pelo Rio Tietê, águas espessas, escuras, encalacradas de

entulhos e arruinadas pelo óleo e pelas imundícies. Correm lerdas, pesadas.

O rio fedido, a que atiram o nome indígena, é o maior esgoto da cidade”.

83

Idem.

Page 81: João Antônio: Uma Biografia Literária

81

E nem as lembranças da relação com os chefes:

“Estafeta, ganho salário-mínimo de menor na Anderson Clayton,

refinaria de óleo dos americanos, sou chamado de office-boy. E obedeço.

Aturo chefões estrangeiros, importantes, americanos e limpos, gordos,

mandões, charutos no bico. Os chefes brasileiros fumam cigarros sem filtro

e são aduladores ativos e rápidos. Acompanham-me os atrasos, falhas

grandes e pequenas.

O livro de ponto.

— Quem chegar atrasado assina em vermelho.

O chefe do pessoal, tipo baixote, tem nome espanholado e capa

branca, barrigudo, pendura na cara um bigode de centopéia. Uma lesma, a

lesma.

(...)

Os do escritório pegaram mania com os gringos mandões. Uma é

tratar pelo sobrenome.

Lambança. Tipos insuportáveis, limpinhos, óculos, escanhoados e

solertes, no escritório me aborrecem. Para mim, uns ensebados. Mexem-se

aos passinhos sovinas, que morrinhas até para andar fazem pose de chefe,

me dão gana. Capas brancas”.84

Se há algo positivo no trabalho, é sua amizade com os desenhistas e

operários: “E os desenhistas, única gente do escritório com quem me dou,

engendra uma justiça [contra os patrões super-exigentes].

(...)

Não estão nessa camorra os desenhistas, faladores, gravatas

desabotoadas, cantando e assobiando em expediente, alegres, loucos,

largados.

Armam. Uns arreliados, aprontam gozações. Queimam horas, com

paciência, engendrando sacanagem. Gozam os outros, a parentada dos

84

Idem.

Page 82: João Antônio: Uma Biografia Literária

82

outros. Depois, metem no fogo a própria família, sapecam a mãe. Por

último, cansados, gozam a si mesmos. Por isso, eu lhes tenho amizade.”85

Mas, ao contrário do que ele diz, não só os desenhistas o atraíam. O

futuro escritor, como viria a fazer sempre, tinha trânsito livre entre os

operários e funcionários menos qualificados. Mais tarde, essa tendência

natural se tornaria parte fundamental de seu processo criativo, estando

mesmo na gênese de vários contos e personagens.

“Convivo, me entendo, charlo com tudo quanto é pintor, funileiro,

homem da sacaria e do transporte, pedreiro, almoxarife, guarda, apontador,

ajudante, operário sem nenhuma qualificação, maioria salário mínimo,

fresador, mecânico, motorista, caldeireiro e quando venho lá longe, muito

papel dentro da pasta-sanfona, o pessoal se vira e me conhece o nome.

Operário não é funcionário do escritório e logo me chama pelo prenome.”86

É assim que ele resume sua vida naqueles tempos difíceis: “Dezesseis

anos. Meus sapatos levam meia-sola, como no engasga-gato ou de marmita,

arrasto uma vidinha chulé. Arrumo namoradas e não tenho o do cinema. O

estudo é à noite; o trabalho, de dia. Ando de ônibus e, muita vez, a pé. À

noite, vou sonado e saído das aulas em que me impõem ciências físicas e

naturais, latim, história da civilização e história do Brasil, inglês, francês,

português, desenho, canto orfeônico, geografia do Brasil e geografia geral,

matemática e uma fricoteira a exigir paciência vasta. Trabalhos manuais.

As mocinhas agüentam instruções sobre economia doméstica. Equilibram

calorias, proteínas, vitaminas. O colégio noturno esbarra, no entanto, na

vida. Todos trabalham, não há tempo e o dinheiro é curto. Há sanduíches ou

pastéis dos chineses na hora do almoço. De carne, palmito e queijo.

Banhudos, encharcados e saídos do tacho escuro de óleo de amendoim,

85

Idem. 86

Idem.

Page 83: João Antônio: Uma Biografia Literária

83

fervente, o mais ordinário, usado vezes”.87

Por fim, a mudança para Vila Anastácio coincide, também, com a

mudança de seu apelido. Antes “Joãozinho”, agora João Antônio Ferreira

Filho passou a ser conhecido como “Jafa”, uma corruptela da junção de

suas iniciais.

Tempo de saias, sinuca e bebida

Mas nem só de experiências negativas foram aqueles anos em Vila

Anastácio. A descoberta do sexo, por exemplo, ocorreu nessa época.

Conta João Antônio que, muito cedo, ele já pensava em mulheres, até

exagerando bastante seu desinteresse pelas brincadeiras da infância: “Eu,

menino, detestava quase tudo. Desejava as mulheres. (...) Eu, em sonhos,

era um desesperado. Desejava tudo quanto fôsse mulher. Bastava ser

mulher. Ah, se as tias soubessem... (...) Amei minha primeira professora e a

possuí em pensamento. Seu corpo tinha sardas, era diferente. Eu era mais

violento. Chamava-se Dona Lurdes, hoje é avó”.88

Ele fala ainda de algumas de suas namoradas: “Amei Aldônia. Gostei

de Dirce. Amei a minha prima. Briguei com um namorado dela. Amei

Maria, primeira namorada. Maria era besta e eu a mandei...

(...)

Amores, amores. Beijar na boca. Eu não entendia os assobios dos

homens às mulheres

Mas como era bom gostar de uma mulher sem que ela soubesse.

Como era bom!”.89

87

Idem. 88

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/10/1960. João Antônio deve estar referindo-se a sua primeira

professora no externato Henrique Dias, sem mencionar a escolinha particular onde aprendeu a ler. 89

Idem.

Page 84: João Antônio: Uma Biografia Literária

84

É interessante ver, porém, como, e em que contexto, essas antigas

fantasias apareciam e eram alimentadas:

“Era a roda se formar, o assunto dava em futebol ou nelas. Os machos

remoçavam das canseiras da vida e uma alegria nova corria.

Descarregavam, gingavam, expandiam, desataviados. Desoprimiam. Os

mais moços apetrechavam exaltações exageradas, onde o que de melhor se

ouvia, o mais, bandalha. Ou rememoravam criaturas magníficas,

fantasiando qualidades exuberantes, só imaginadas, inatingíveis. Havia

pernas, havia rabos e havia peitarias multiplicando atenção. (...) Os mais

vividos queixavam-se, azucrinados, das fêmeas frias, velhas precoces.

Deixavam entrever calvários. Neles, o amor, horrível, se fazia como uma

solidão a dois, na madrugada, nos quartos de luz apagada. Trepar família,

aquilo na zona era melhor bem; lá havia alguma alegria”.90

Essa “roda”, embora comum na vida de um adolescente, em que se

torna quase obrigatória, seguia o modelo mais usual no que se refere às

“exaltações exageradas” e às referências a “criaturas magníficas”. A

valorização da prostituta, porém, não é tão comum, e pode ser melhor

explicada. Ela decorre, ao que parece, segundo o próprio João Antônio, do

papel da mulher na vida suburbana da época: “As mulheres encaravam

espetos dificultosos. Comiam feijão com arroz requentado no banho-maria

das marmitas levadas de casa. E não se cuidavam. Operárias, quase todas.

(...) E, corridas, agüentavam fortes, rápidas e se afobando, o serviço da

casa. (...) Enfeiavam cedo, prejudicadas, banhudas e sem cintura. Afobadas

e sem ginga. (...) O mulherio mais gordo que magro, mais despachado que

elegante. Barulhento, enfezado, raivoso, quando reunido. Nada esguio e

todo aferrado ao trabalho braçal”.91

A dureza da vida, e a precoce decadência física, aliadas ao

90

Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Record, RJ, 1982. 91

Idem.

Page 85: João Antônio: Uma Biografia Literária

85

temperamento vigilante das mulheres, por vezes “raivoso”, encaminhava os

jovens, ao menos assim foi com João Antônio, para as prostitutas e os

bordéis, onde o amor era eminentemente um ato de prazer e de grande

apelo sexual. As fantasias correm soltas na cabeça do jovem adolescente:

“Tempo de saias. De raro em raro, mulher veste calças compridas. Os olhos

nas pernas nuas, compridamente, de quem sem meias vai ao trabalho.

Muita vez, em solidão, sonho com elas na cama de solteiro e me aferro.

Masturbação no meu quarto da Rua dos Botocudos”.92

João Antônio, em uma entrevista, comenta o período: “Eu pertenço a

uma geração em que todas as manifestações de virilidade se passavam

clandestinamente. O primeiro ato sexual, a primeira cerveja, os primeiros

jogos, tudo isso pertencia ao mundo dos adultos e não dos adolescentes e

jovens menores de 21 anos”.93

Também por isso os bordéis eram atraentes, pois lá certas experiências

poderiam ser antecipadas. Diz ele: “Só num lugar seria permitido provar

essas proibições: a zona do meretrício, embora para lá entrar fosse preciso

ter 18 anos. Assim, os mais aflitos, curiosos ou angustiados, se enfiavam lá

antes da idade. Foi o meu caso. Aprendi a beber cerveja na zona, jogar

sinuca, jogar palitinho, jogar trilha. Eu ia para lá aos 16 anos. Aquele lugar

era, sem dúvida alguma, o mais alegre e o mais libertário da cidade.”94

Não é de se estranhar, tendo em vista as rupturas que João Antônio

vivia na época em sua vida familiar, e também levando em conta as

pressões de uma vida já atarefada, de dia no trabalho, à noite na escola, com

a mãe vigiando e com um distanciamento crescente entre ele e o pai, que o

futuro escritor procurasse um lugar onde pudesse descarregar as tensões do

dia-a-dia, e também afirmar sua personalidade que vinha sendo atacada por

92

Idem. 93

Steen, Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981. 94

Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,

Record, 1982.

Page 86: João Antônio: Uma Biografia Literária

86

todos os lados.

“Vou indo, indo, procurando. Sozinho encontro, depois de pegar e

juntar, no quieto, pedaços de conversa de companheiros na fábrica. Zona da

Rua Itaboca e dos Aimorés, único canto da cidade que não briga comigo e

até para beber cerveja envieso para lá.

(...)

O coração na mão. A medo e ressabiado. Sem idade e sem condições,

driblando as farejadas e olhadelas das polícias, de guanacos, de civis, de

militares, de secretas, de cabeças-de-penico, me enfio pelo bordel, que para

mim é mulher e acaba sendo mais que mulher.”95

Mulheres, bebida e sinuca. Três novos interesses na vida. A sinuca é

uma paixão à primeira vista: “O joguinho, o joguinho ladrão. Espiando

maroteiras no bar do Tico, bebendo misturas, ouvindo casos, um dia. Um é

o primeiro. Nos fundos, havia duas mesas de sinuca e depois, em noite alta,

a conversa continuava lá. Uma vez, catei o taco. Sem acreditar que viciasse.

Nisso de pano verde, bigorna, salão, boca-do-inferno, costumo dizer

que a natureza, dadivosa, me deu esta cara de otário. Ou antes, de homem

do povo. Habilidade pouca, mas jogueiro, beliscado nos ambientes do

joguinho, olheiro e apostador. Que até para uma cerveja, eu procurava o

salão.

(...)

Peguei o vício na zona. Ali entendo, pouco rodeio, jogo se aprende

perdendo dinheiro, tempo, sola de sapato em volta da mesa, sono. O mais é

fricote, leite-de-pato, passatempo, embromação de gente família e

desocupada, distração. Mais se apanha de um malandreco, mais se pega os

efeitos, as tabelas, as combinações, a visão da mesa. Se se perde – se perde

no perde-e-ganha – já se aprende a bater. (...) O bom taco, antes disso, já é

um olheiro de jogo. Necessário pendurar o chapéu onde a mão alcance. Só

95

Idem.

Page 87: João Antônio: Uma Biografia Literária

87

a fome ensina.

(...)

E bebemos à noite nas bibocas, porres aos domingos, feriados e dias

santos de guarda. À noite, de comum, entornamos, jogamos sinuca, falamos

de futebol, mulher, ou tocamos para o cinema, na Lapa, que Vila Anastácio

também cinema não tem. Os certinhos vão aos namoros. Os apertados pelos

pais, à escola noturna [era o seu caso].

Dei-me com a cambada, recordista na categoria consumidora de

cachaça nos subúrbios paulistas. Deu no jornal. Não deu que, no inverno a

umidade nos entrava nos ossos e nos doía. Gente abandonada, sem eira nem

beira, e deixada pra lá, morria de frio nas ruas, amanhecendo dura. Manhãs

de domingo, antes da missa do padre húngaro, a praça parece um fim de

guerra – bêbados derreados, batidos e sonando feito pedras nas portas dos

botecos. Gente feia e largada no chão: operários de vida suada, na

semana”.96

Era aquele momento o marco de sua entrada em ambientes

extremamente viris, mas que apesar do estímulo do jogo e do prazer sexual

disponível exibiam, simultaneamente, os males cotidianos do homem

urbano. O primeiro “amor bandido” do futuro escritor ensinou-o algo sobre

as ambigüidades da vida na zona.

“Sinuca e mulher aos dezesseis. Então, ficou tudo sério, sério demais.

Inevitavelmente sério. Indesejavelmente.

Ivete, francesa, rua dos Aimorés, no 178. Exigia-me todas as tardes de

Sábado. Se não viesse, apanharia na próxima vez. João Antônio era uma

espécie de masturbação dela. Malandragem eu entendi aos dezesseis anos

com Ivete, nome de guerra de uma francesa qualquer.

Loura e tinha uns trinta anos. Meu corpo boiava no dela.

Ivete me ensinou alguns truques. Mostrou-me uma cambada. Ocupou-

96

Idem.

Page 88: João Antônio: Uma Biografia Literária

88

me à vontade. Ria de mim, me batia quando eu não cumpria à hora

marcada. Comprava-me por bem pouco (eu era um menino). Eu me sentia

bem. Não lhe dava dinheiro.

Ivete, Ivete, você sabia o que fazia?

Devo ter sido bonito aos dezesseis anos. Outras já buliam comigo,

independentemente do dinheiro. Convidavam para dormir, para cinema,

para beber cerveja.

(...)

Ivete me xingava de muitos nomes que eu merecia e não. Pela

despedida se vê:

— Tchau, meu merdinha...

Ivete me roubava tempo: não foi o pior. Ivete me roubava

estupidamente a virgindade: não foi o pior. Ivete me queria só para ela

(enquanto me quis): não foi o pior. Ivete me inoculou um vício – mulher,

cama. Esse me pegou, desastroso. Mordeu-me.

(...)

A francesa me deu por despedida uma noite inteira e um endereço no

qual não a encontraria. Ivete foi substituída. Aprendi outras manobras.

Coisas simples: em mulher a gente bate, de mulher a gente não apanha. E

por aí assim...

Francamente, naquela idade, convivendo com aquele tipo de mulher,

qualquer outro tipo que me aparecesse recebia uma atribuição, que eu não

dizia mas pensava:

— Uma trouxinha, coitada.”97

O vício inoculado pela tal Ivete pegou-o rápido e forte, ensinando-o

como fazer para ganhar outras mulheres. O próprio João Antônio lembra de

outros “casos” da época: “Eu a trabalhei nos escuros da estação Domingos

de Moraes, a bolina foi de encontro a uma árvore que a iluminação mal

97

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/10/1960.

Page 89: João Antônio: Uma Biografia Literária

89

cobria”.98

Certa madrugada, levou uma mulher para seu quarto. Na manhã

seguinte, ao sair escondida, ela acaba deixando cair no assoalho da casa seu

pó-de-arroz. Conta o escritor: “Na manhã, o pai notou. Mas saiu para o bar,

nenhuma fala. Um silêncio de bofetada”.99

E tudo isso regado a cigarro, cerveja e a conhaque “Otard Dupuis,

nacional, depois sumido dos botequins.”100

Outros dois vícios que João

Antônio jamais perderia.

“Bebia, como jamais, sabe? Porres homéricos para enfeitar a

solidão.”101

O bar do Tico era o novo ponto do futuro escritor, onde ficava até de

manhã, varando as noites, bebendo, jogando, ouvindo os veteranos. Lá, e na

zona do meretrício como um todo, a passagem da infância para a vida

adulta não era tão dura. No meio familiar, no entanto, mesmo os rituais de

passagem autorizados, e teoricamente estimulantes para o jovem, parecem

não terminar bem. É o que indica um rápido episódio recuperado por João

Antônio: “Aos meus quinze [anos, o pai] deu para me ensinar a dirigir o

jipe. Abespinhado e orientando aos trambolhões, esquentava-me a cabeça.

Um esporro que assustava. Eu só sabia fumar escondido, jogar sinuca (ele

dizia bilhar), beber, aprontar, cranear o que não devia. E nota baixa no

boletim. Mordendo beiço, meu pai ao lado, ia aporrinhado no volante.

Desgovernei o jipe num muro de Vila dos Remédios”.102

Como se pode imaginar, o cartaz do jovem na família ia se tornando o

pior possível.

“Papai também errava comigo. E a vida também errava com ele.

Culpa de quem? Eu errava sabendo. A vida pespegava uma cambada de

98

Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,

Record, 1982. 99

Idem. 100

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/10/1960. 101

Idem, sem data. 102

Idem, de 06/10/1960.

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90

aborrecimentos e de nervosismos em papai.

Chateavamo-nos.

Mamãe sofria num canto. Virgínio, já nascido, dava trabalho.

(...)

Eu fugia das festas familiares. (...) Como vivia só, meu Deus! E como

era boa a solidão!”.103

Não foram poucas as vezes em que foi repreendido por seu gosto pela

vida noturna e pelas companhias que vinha tendo. “Meu avô, da pele

azeitonada, mulato dobrado do Rio e Virgínio, filho de baianos, é cismado

como um mameluco, é difícil de rir; não compra fiado meio quilo de cebola

ou uma cabeça de alho, não põe uma gota de álcool na boca e não se dá

com aquele frege e com aquela devastação. Antes, me diz:

— A bebida dá de sete maneiras, fora as mungangas.

A gente se adora. E ele, querendo agradar, me chama de batuta.

Aquilo sim, era açúcar. Mas, aluado, agito e arrepio; eu ouço os seus bons

conselhos?

Nada. Gosto da rua.”104

O avô, infelizmente, não viveria para assistir ao sucesso do neto

escritor. Morreu em 1954, quando as loucuras de João Antônio ainda não

haviam sido legitimadas pelo uso literário que faria delas. “Meu avô

Virgínio, meu amigo batuta, o maior de todos, que me durou até os

dezessete anos.”105

“Não me adianta nada o cemitério. Fico mais triste.

Posso chorar o que agüentar – o velho avô não volta. E se voltasse não seria

pior? Ficaria decepcionado comigo, ele, que sempre me quis decidido, dono

do meu nariz. Homem.”106

Mesmo a avó, Nair, que tanto lhe escondeu os maus passos,

103

Idem, ibidem. 104

Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,

Record, 1982. 105

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/10/1960. 106

Idem, de 31/10/1960.

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protegendo-o da severidade do pai, também fazia tentativas de

reencaminhar o jovem João Antônio:

“Sou um sonso, dos malhados. Nem a ela engano – dos que perdem o

pelo, mas o vício não perdem. Vigia-me os lances e me pega de quina.

Geniosa, os nervos fervem de novo, a veia do pescoço incha, azul, perigosa.

Derrapo repetidamente, e ela, me flagra; dobra as mãos na cintura e lacra:

— Malandando os seus dias. Você só vive com essa gente do erro.

Sujeitinho”.107

A ainda dolorida castração de seu talento musical, a falência do pai e

sua revolta contra a sociedade e contra o próprio pai, mais a força literária

de seus autores preferidos (que serão discutidos a seguir), quando postas

para agir em seu contexto social e familiar, provocaram o início da rebeldia,

que, ao despontar, desgarrou-o gradativamente dos padrões familiares.

Explica Virgínio: “Nós [os dois irmãos] conversávamos muito pouco, eu

depois de adulto percebi que era um moleque insuportável e ele [João

Antônio] me tolerava. Os irmãos brigam e eu era o caçula e minha mãe

vivia brigando com o meu irmão, para perder os maus costumes, ele comia

muito feio, ele não queria tomar banho, como todos os rapazes, e passava a

noite inteira na rua, voltava de manhã”.108

Aos dezesseis anos, freqüentando a sinuca no “bar do Tico”, nas

noites de final de semana, o jovem foi, certa vez, surpreendido pela polícia.

Menor, viu-se detido e o dono do bar obrigado a pagar uma pesada multa.

Para piorar, o pai ficou sabendo. Assim o próprio João Antônio narra a

difícil conversa com o pai: “Os dois na mesa. Fechou o punho, crispou a

cara quadrada, puxou um suspiro de boca fechada. Devia sofrer, devia

andar cansado – e bem. Minhas derrapagens desandavam em repetição.

107

Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,

Record, 1982. 108

Depoimento colhido em 23/03/2000.

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92

Todo santo dia, pintando má notícia”.109

Quebrando o silêncio, João Antônio, pai, deu nova vasão a seu espírito

proverbial, proferindo uma frase célebre na família: “Você tem todos os

vícios que eu conheço e até os que eu não conheço”.110

Mas o difícil diálogo não termina aí: “Falou baixo e era como se

urrasse. Pesava um azedume. Havia uma barreira, sei lá, uma diferença me

arranhava o peito e me tangia. Por que eu agredia e agredia, sonso ou de

cara, aquele homem? Um nada deste mundo e estávamos enfarruscados.

Estamos bem sós, eu percebo. Um estrago. Ele, vindo de mau negócio,

rebordosa com uns sócios que o roubavam. Soprava um vento contrário

naquela vida”.111

O trecho parece de fato indicar um distanciamento quase completo

entre pai e filho, apesar de morarem na mesma casa. E ainda naquele

momento, quando em tese deveria sentir-se vulnerável, João Antônio

desafia o pai, negando o domínio completo da gama disponível de vícios:

“Sós na mesa, atirei:

— Ora, eu não sou tão genial assim.

Não se buliu, não me chapuletou a cara. Recolheu a hostilidade, a testa

enrugou-se e os olhos pequenos brilharam, antes de baixarem. Pendeu a

cabeça para o prato e comeu até o último. Eu também sofria com aquilo e

não podia dizer que me sentisse satisfeito. Mas arrostá-lo me dava força. Aí

me deu o golpe e me entravou:

— Eu já lhe dei categoria de adulto”.112

João Antônio, anos mais tarde, faz um comentário interessante sobre

esse tipo de conflito de gerações: “Sutil e corriqueiro é este fenômeno de

cada pessoa ter uma vida para cuidar. As pessoas sempre nos dizem; nosso

109

Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,

Record, 1982. 110

Idem. 111

Idem. 112

Idem.

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93

pai, nossa mãe, nosso irmão e nossa avó sempre nos dizem: ‘Você tem uma

vida para cuidar’, e é como se dissessem: ‘Você tem que se responsabilizar

pela sua vida’, e nós, via de regra, entendemos assim: ‘Você nasceu e agora

não há remédio, está condenado a aturar a vida.’ (...) Se eu tivesse um filho

(eu ainda terei um filho), hoje ou daqui a vinte anos, diria: ‘Você tem uma

vida para viver’”.113

O fato do pai só ter se esforçado para corrigir os defeitos de

comportamento de “Joãozinho” até o normal, como nos disse Virgínio, não

se deve, aparentemente, a qualquer satisfação com os rumos do filho. Ele

ter recebido “categoria de adulto” no início da adolescência significa que

era precoce – intelectualmente, em sua mobilidade por toda São Paulo –,

mas essa maturidade antecipada não era, aos olhos dos pais, a mais

saudável. Continuava presente a frustração com a recusa do filho em

trabalhar no comércio e agora ela se somava à impotência diante da

vocação do filho para a boêmia. Uma outra hipótese seria um certo

desalento em relação a sua própria concepção de mundo, após a falência da

pedreira, em grande parte provocada por sua ingenuidade e incapacidade de

se impor perante os sócios. Ou ainda a culpa por ter, indiretamente,

contribuído para este gosto do filho pela malandragem. Afinal, vale notar

que foi através do pai que João Antônio esboçou seus primeiros passos no

mundo da música, e que esta lhe serviu, num primeiro momento, como

ante-sala da malandragem da sinuca e, num segundo, da literatura. Irene,

mãe do escritor, ao lhe tolher o gosto pelas rodas de samba, possivelmente

deu um tiro que saiu pela culatra, jogando-o em uma dimensão mais radical

da malandragem. Conta-nos a biografia autorizada de João Antônio: “Daí

para a frente passa a sentir certa dificuldade de comunicação com o pai, que

só seria superada após trinta anos”.114

113

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 19/12/1960. 114

Neto, João da Silva Ribeiro – Literatura Comentada – João Antônio, São Paulo, Abril Cultural,

Page 94: João Antônio: Uma Biografia Literária

94

Como se vê, a falência do pai, em um momento crucial de sua vida

adulta, jogou-o novamente ao começo, provocou a mudança para um bairro

pior, enfim, deixou-o sem nada e endividado, atingindo a toda a família

diretamente. O filho mais velho, em plena adolescência, saiu do “eixo”

planejado, isolando-se na zona do meretrício e até mesmo dentro de casa.

Sabe-se que, enquanto estava por perto, estava sozinho no quarto lendo. E

obviamente também deveria contestar, questionar frontalmente, brigar,

duvidando da viabilidade da absoluta correção moral do pai, de seu

compromisso com o trabalho, que não o impedira de chegar ao fundo do

poço. Além da música, também os insucessos do pai devem ter contribuído

para aproximar João Antônio do mundo dos não “otários”, dos que não se

submetem à ordem produtiva de forma tão pacífica, dos “malandros” que

reagem, que ganham a vida de formas alternativas e com a impressão de

estarem vivendo-a mais intensamente, dos espertos que não se deixam

enganar, e que não têm sócios desonestos. Por outro lado, a recusa de João

Antônio em ser atacadista, como desejava o pai, também certamente

contribuiu para o esfriamento entre ambos.

Conta Virgínio: “Quando o João resolveu trabalhar no Rio [1964/65],

minha mãe comentou que ele ‘sempre havia sido do mundo, ele nunca foi

nosso’. Ela me falou isso quando eu arrumei um emprego nos Estados

Unidos, mas não fui com medo da Guerra do Vietnã, e ela disse: ‘É, quando

seu irmão foi para o Rio eu nem liguei, porque ele sempre foi do mundo,

agora de você eu vou sentir muita falta’”.115

Dessa época, apenas a avó Felicidade produziu uma frase capaz de

entender os motivos profundos daquele mau comportamento: “Prefiro que

você seja xingado de f.d.p. do que de coitadinho”.116

1980. 115

Depoimento colhido em 23/03/2000. 116

Medina, Cremilda de Araújo – A Posse da Terra: O Ecritor Brasileiro Hoje, Lisboa, Imprensa

Nacional/Casa da Moeda, e São Paulo, Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, SP, s/d.

Page 95: João Antônio: Uma Biografia Literária

95

Mas o isolamento em relação aos familiares não era uma

exclusividade de João Antônio, pois também seu pai se isolou

relativamente. É o que nos conta Virgínio: “Depois da falência, meu pai

mudou muito, ele perdeu aquela determinação. Então as coisas realmente

sérias ele não falava. As poucas coisas eram uma piada, coisas de

responsabilidade mesmo ele não falou mais conosco, porque ele percebeu

que aquele negócio de só falar de coisas de responsabilidade... tocava a

gente, né?.”

As alianças familiares inverteram-se à medida que Virgínio foi

crescendo e João Antônio se envolvendo com a malandragem. Se antes este

era próximo do pai através da música, distanciou-se de todos, e Virgínio foi

ocupando o espaço do filho mais responsável, mais companheiro, que não

deixava os pais na mão.

Graciliano, Noel e a segunda dentição literária

“Havia uma coisa muito engraçada, era uma equivalência de realidade

de vida com a realidade artística que eu começava a descobrir em algumas

obras literárias.”117

Realmente, foi nesta época, aos dezesseis anos

aproximadamente, que João Antônio teve um segundo e mais profundo

envolvimento com a literatura. Conta seu irmão: “Foi na Vila Anastácio

que o João começou a escrever. O meu pai incentivava muito a leitura, só

que não especificamente de literatura, incentivava a leitura em termos

gerais, porque ele dizia, por exemplo: ‘Quem quiser conhecer Napoleão,

não pode ler só historiadores, tem que ler Guerra e Paz. Quem não ler os

autores russos, não vai entender o Encouraçado Potenkim. Então, a pessoa

tem que ler para poder saber das coisas, e tem duas maneiras de conseguir:

117

Steen, Edla Van – Viver e Escrever, L,P&M, Porto Alegre, 1981.

Page 96: João Antônio: Uma Biografia Literária

96

ou viajar muito e ser muito observadora, ou ler bastante.”

Conta Virgínio: “Meu irmão chegava a ler trinta horas seguidas. Ele

começava a ler na sexta-feira, não trabalhava no sábado, atravessava a noite

todinha lendo, amanhecia, lia o outro dia todo e ia dormir na madrugada.

Por exemplo a obra do Dostoiévski ele conhecia todinha, inclusive edições

diferentes, inclusive as portuguesas”.

Em outro depoimento, João Antônio dá mais detalhes sobre sua

“mania”: “Comecei a ler revistas, artigos de jornal. Achava que o escritor

era assim como o doutor, estava acima de tudo, era pessoa muito bem

comportada. Um dia li um perfil de Graciliano Ramos, escrito na primeira

pessoa. Vi aquela pessoa tão importante dizendo que não acreditava em

Deus e gostava de cachorros e não sabia o número do colarinho nem do

sapato e tinha 5 ternos estragados... Isso me fez descobrir uma nova

dimensão. Voltei à biblioteca e descobri Caetés, depois São Bernardo, e

assim por diante... Zola, Gorki, Hemingway... Eu não podia levar a sério o

cinema que via nem o rádio que ouvia. Mas aquilo que estava lendo

equivalia à vida que eu via e não era brincadeira. Era um sofrimento brutal.

A literatura era feita por gente que não mentia, ou mentia menos”.118

“Havia uma coisa muito engraçada [na zona do meretrício], era uma

equivalência de realidade de vida com a realidade artística que eu começava

a descobrir em algumas obras literárias. A literatura mereceu meu crédito

porque eu a conheci em livros em que ela não mentia.”119

João Antônio era capaz de mapear, ainda com um pouco mais de

precisão, algumas leituras fundamentais: “As minhas influências lietrárias

são muito claras. Não tive professores de literatura. Sou um autodidata.

Quase por acaso, lendo ‘Os Artigos Implacáveis’ de João Condé, no O

Cruzeiro, eu descobri um escritor chamado Graciliano Ramos e me

118

Entrevista a Nilo Scalzo, Lourenço Dantas Mota, Waldecy Tenório e Teresa Otondo, publicada no

O Estado de São Paulo, 13/02/83. 119

Steen, Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981,

Page 97: João Antônio: Uma Biografia Literária

97

surpreendeu muito a independência dele como escritor, tanto pelas

declarações que ele dava, como pelo ato dele escrever infinitamente melhor

que todos os outros. Bem, quem começa as suas leituras pelo Graciliano

Ramos, começa num estágio muito alto. As minha ligações posteriores

foram com escritores do mesmo naipe: Gorki, Zola, Jack London, etc. O

Graciliano foi, então, uma espécie de centro, de termômetro. Para trás eu

chegaria aos clássicos. Vieira, Eça, Fialho, etc. Para frente eu encontraria os

modernos: Mário e Oswald de Andrade, Guimarães. Aliás, Guimarães Rosa

surgiu muito depois para mim. (...) O Lima Barreto superou uma tendência

muito brasileira de se escrever mais com palavras que com idéias. Ele

venceu a angústia da palavra e fez uma obra seríssima. Ele fez uma

apropriação muito válida dos métodos jornalísticos e obteve um resultado

profundamente literário. A obra dele me sensibiliza muito”.120

Ele conta como o interesse por Graciliano se desdobrou, em suas

leituras e na condução que dava a sua vida: “Apanhei, seco e fascinante,

primeiro o Caetés; depois Vidas Secas, na biblioteca circulante da Lapa.

Difícil falar desse mergulho. Estava mordido. Um pensamento me ficou

cortando, líquido, certo, irrecorrível. Quase fatídico. Eu iria envelhecer,

azedamente, como um escriturário do Armour, gravata, camisa social

branca, passos miúdos e pesadão, pouco empertigado, alguma mulher

doméstica. E uns filhos medíocres, metidos no colégio da Lapa.

O tamanho do homem era outro, acordava-me consciências, revolvia.

Uma curiosidade me bulia, a mim, que fazia tudo pela conta de achar e,

sozinho, cacei a zona. Por Graciliano, que me intrigava – onde e com quem

teria aprendido a escrever com aquela garra e sentido? – desemboquei nos

clássicos, nos portugueses, e convivi com a chamada literatura de homem –

Gorki, Jack London, Hemingway, Steinbeck, Zola.121

120

Entrevista a Ruy Fabiano, publicada no Diário de Notícias, 14/02/76. 121

Diz João Antônio em uma entrevista: “Em contraposição, [à literatura de homem] havia a literatura

Page 98: João Antônio: Uma Biografia Literária

98

Um amor pela poesia começa. E eu me viajo, alta noite, dizendo

trechos em voz alta, no quartinho descascado da casa”122

. Nesse ponto se

destaca a figura de Carlos Drummond de Andrade, o poeta mais citado nos

momentos líricos da correspondência de João Antônio.

É importante notar algumas coisas nesse trecho de suas memórias: a

referência à literatura de “homem”, ou, no caso, de caráter mais realista, em

que temáticas sociais e ambientes populares estavam presentes. Em outro

texto, esse elenco de escritores (Graciliano, Hemingway, Gorki, Zola)

também foi classificado de “literatura de homem”, rótulo que o autor jamais

recusou.123

Além disso, a literatura inspirou-lhe a recusa a seu destino

provável e a noção de que a família tipicamente constituída o prenderia a

esse destino.

Mas outros autores também foram fundamentais na formação de João

Antônio. Numa lista um pouco mais ampla, novos nomes aparecem, e a

ligação entre música e literatura novamente se configura em sua formação

literária: “Leu todos e os portugueses. Se deteve em Vieira, Bernardes,

Fialho de Almeida. (...) Baudelaire, Nélson Cavaquinho, Gregório de Matos

Guerra, Augusto dos Anjos, Noel Rosa, Lupicínio Rodrigues, Oswald de

Andrade, Camões, Cesário Verde, a medida do desencontro do homem em

Fernando Pessoa ou em Kaváfis”.124

O samba propiciava-lhe, junto com a “literatura de homem”, todo um

universo de durezas e de personagens sofridos com os quais se identificava

e que o ajudavam a anestesiar a dor da pobreza e da solidão: “E o que

diziam os sambas doídos de Noel? A voz de Aracy, Araca, no disco ou nas

cor-de-rosa, os romances para moças, muito famosos na época, muito lidos, assinados por M. Delly,

que era Max Delly e todo mundo pensava que era Madame Delly.” Entrevista concedida ao programa

Certas Palavras, concedida em agosto de 1982. 122

Äntônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,

Record, 1982. 123

Medina, Cremilda de Araújo – A Posse da Terra: Escritor Brasileiro Hoje, Lisboa, Imprensa

Nacional/Casa da Moeda, e São Paulo, Secretaria da Cultura de São Paulo, s/d. 124

Idem.

Page 99: João Antônio: Uma Biografia Literária

99

rádios, Rádio Record, principalmente, deixava intuir o tanto consumido de

vida, de solidão, de calvário e de atropelo – alto custo moral daquela poesia.

(...) O meu namoro solitário com a beleza e a agonia dos sambas vinha

rasgado e grande de joões-ninguém, tresvariando de marias-fumaça e cores

de cinza, chumbado e repleto de mulheres talvez bonitas e que mentiam,

eclodido de mulatas literalmente formosas, fiteiras, vaidosas e

necessariamente muito mentirosas, gingado de malandrices de morro, mas

ainda de prostitutas patéticas no asfalto ou nos paralelepípedos da Lapa,

descendo o degrau derradeiro, e escorria caudaloso de desocupados, de

usurários, de bêbados, de trabalhadores, de poetas, de caloteiros, de

amantes, de prestamistas, de jogadores, de visionários, de boêmios, de

gagos apaixonados, de rapazes folgados, de palpiteiros infelizes”.125

Noel, em especial, capturou a imaginação do futuro ficcionista:

“Penso nos grandes sambas de Noel. (...) Ali, excele o grande espírito de

sambista, sua riqueza, impressionante personalidade, muita coisa que dizer,

muito jeito de contar”.126

Foi com o samba, talvez, que João Antônio construiu a ponte entre a

“busca do entendimento da condição humana” e o cenário brasileiro das

populações menos favorecidas, e a chave para que o escritor, no futuro,

pudesse de certa forma enobrecer seus personagens pobres e/ou do

submundo, tornando-os mais líricos: “Não é preciso um grande tema pra

fazer uma boa literatura. Se tiver um grande tema, tanto melhor; mas o

marginal, o leão-de-chácara, o sinuqueiro, o jogador de sinuca, o mendigo,

podem ter momentos épicos. Acho que se um homem roubou um alimento

em um supermercado, é um momento épico da mais alta poesia, é a própria

luta pela sobrevivência”.127

125

Antônio, João – “Pequena Especulação em Torno de Três Momentos do Poeta da Vila”, publicado

em O Estado de São Paulo, em 01/05/83. 126

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 25/12/1960. 127

Ricciardi, Giovani – Escrever: Origem, Manutenção, Ideologia, Libreria Universitaria, Bari, 1988.

Page 100: João Antônio: Uma Biografia Literária

100

Não convém, entretanto, esquecer a importância do cinema, embora

muito menos freqüentemente citado como fonte de inspiração na literatura

do e sobre o autor. Se, durante os tempos de Beco da Onça, foi no Cine

Glamour que João Antônio conheceu as emoções baratas dos seriados e as

mais fortes do neo-realismo italiano, no período de Vila Anastácio o

interesse pela sétima arte continuou. Freqüentou, por exemplo, o Cine

Santa Cecília, que comparava, em sua gravidade, “ao clima gótico de uma

igreja católica às seis da tarde”, ou a um “templo hindu, com suas estátuas

de deuses”. Este ficava “bem na curva dos bondes que desciam a Praça

Marechal Deodoro”, para onde João Antônio ia de bicicleta.128

Mas

freqüentou também os cinemas da Avenida São João, o Metro, o Broadway

e o Avenida, e o Cine Carlos Gomes, na Lapa-de-Baixo. Era um percurso

intelectual e emocional, dos pulp fictions do tipo Zorro, rumo ao cinema de

arte, que ele conheceria por essa mesma época.

Um primeiro conto e dois maus poemas

No dia 24 de fevereiro de 1954, como prêmio em um concurso

literário, João Antônio publica, no jornal O Tempo, seu conto “Um Preso”.

Tem então 17 anos. Ele ainda não cunhou seu nome profissional, João

Antônio, assinando seu nome completo, João Antônio Ferreira Filho.129

Ele fala desse primeiro conto “adulto” que escreveu: “Num jornal de

São Paulo, já havia levantado um concurso com um monólogo interior

128

Antônio, João – “Vibrações, Poeiras e Pulgueiros”, in Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o

Inferno, São Paulo, Scipione, 1991. 129

Antônio, João – “Um Preso”, in Literatura Comentada – João Antônio, São Paulo, Abril, 1980. Em

sua biografia autorizada de João Antônio, João da Silva Ribeiro Neto escreve: “Sua experiência

jornalística já tinha começado no extinto jornal O Tempo, para o qual escrevera vários contos curtos.”

Entretanto, além de “Um Preso”, nenhum outro conto de João Antônio foi encontrado por esta pesquisa

nos números do jornal publicados no ano de 1954. Ao que tudo indica, há aqui ou equívoco do

biógrafo, ou um primeiro caso de reinvenção de episódios biográficos, a qual João Antônio recorreria

em outras circunstâncias da vida, como se verá no decorrer deste trabalho.

Page 101: João Antônio: Uma Biografia Literária

101

insuficiente a que meti o nome de Um Preso. (...) Digo que defequei aquilo,

a que chamei de conto”.130

O texto conta a história de um trabalhador honesto, acusado de

esconder armas em casa durante uma revolução. Sua casa é ameaçada de

invasão por soldados e ele, ao reagir, mata ou fere um dos homens, assim

indo parar na cadeia. É inevitável, para quem conhece os desdobramentos

de sua obra, que discutiremos mais para a frente, não enxergar, mesmo que

ainda tão cedo, algumas constantes em seu futuro estilo literário. Em

primeiro lugar, o universo ficcional já é o dos oprimidos. Além disso, o

conto é narrado em primeira pessoa, pelo preso, que reflete sobre seu

passado e seu presente em tom de lamentação. Por fim, a voz narrativa

composta por João Antônio para seu preso já apresenta, também, sinais de

sua preocupação em reproduzir a linguagem das ruas, usando palavras

como “bóia”, “cachola”, etc.

Contudo, um começo é um começo. Há certa artificialidade na entrada

do conto, quando o prisioneiro contraria sua completa resignação e, à tôa,

decide perguntar ao carcereiro em que dia estão. Fica sabendo, por uma

coincidência um tanto forçada, que está completando dez anos de pena

justamente naquele dia. Além disso, a fala coloquial urbana brasileira

aparece misturada a um ou outro portuguesismo, o que produz uma

“interferência” na constituição daquela voz. Veja-se os casos “Os

companheiros da prisão (...), andam a arrastar-se por aí”, ou “Vivi anos a

lutar, sem parada”, ou “Ao cabo d’algum tempo”, ou ainda “ouvindo

humilhações duns e nostalgia doutros”. A interferência causada por essa

prodigalidade no uso dos verbos no infinitivo, e por certas sonoridades que

mais ou menos explicitamente “comem” uma letra, aproximando-se da

pronúncia portuguesa, é complementada pelo uso de construções artificiais,

130

Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,

Record, 1982.

Page 102: João Antônio: Uma Biografia Literária

102

como por exemplo “Entrementes, a revolução estourou.”, e pelo uso

absolutamente correto das regras de colocação pronominal, como em

“Prenderam-me. Vi-me num tribunal (...)”, “Sabia de suas safadezas – que

não me interessavam.”, “Fiz casa, e a vida se me suavizou um pouco.”, que

também prejudicam o espírito coloquial pretendido.

Ainda visível nesse conto, embora em estágio inicial, uma das marcas

mais fortes do que viria a ser o primeiro livro do escritor, isto é, o ritmo

entrecortado das frases. Com poucas exceções, estas são compostas de no

máximo 3 partes, e alternam-se com outras de duas partes ou mesmo com

frases compostas por uma única palavra. Um bom exemplo:

“Prenderam-me. Vi-me num tribunal onde me disseram palavras

difíceis, que não entendi. Não relutei, em nada. E ouvi, sem palavras, a

decisão do meritíssimo.

Madrugada. Angústia. Insônia. Lassidão. Silêncio cerrado. Lá fora, há

uma chuva que não estia por nada. E uma escuridão tremenda. E este sibilar

do vento que é um choro em desespero”.

As frases tem uma, duas ou três partes, e alternam-se numa estrutura

1, 2, 3, ou 3, 2, 1, ou 2, 3, 1, e assim por diante, compondo um jogo com

frases curtas ou apenas medianamente longas, que faz a leitura avançar

rápida, porém com pequenos trancos, interrupções algo bruscas na

sonoridade da frase e aceleradas repentinas.

A referência à sinuca, embora sumária, também vale a pena ser citada,

tendo em vista a importância que o assunto veio a ter em sua obra posterior.

É uma referência rápida, em que o narrador, um homem honesto e

trabalhador que teve sua vida arruinada por um momento de indignação e

fúria diante da invasão de sua casa pelas forças policiais, pensa em seu

passado retilíneo com orgulho, e diz: “Tinha com o que me entreter nas

folgas. Não estaria como Bento, antigo colega de quarto, a gastar o

ordenado nas mesas de bilhar. Vivia eu, pobre, mas sossegado”. Como se

Page 103: João Antônio: Uma Biografia Literária

103

vê, já aqui a sinuca aparece opondo-se a um padrão de vida mais regrado e

consciente.

Por fim, vale especular que esta não tão vaga sonoridade lusitana,

somada a certas passagens do conto, parecem ecoar pensamentos que

poderiam estar passando pela cabeça de João Antônio, o pai, justamente

naqueles anos de derrocada. É o caso de: “Trabalhar um tempão imenso,

sacrificar-se como um penitente, pular da cama pela madrugada todos os

dias, todos os dias correr para as fábricas (...) Para quê? Vem uma cambada

de patifes e me estraga a vida”.

Ou que seu filho estivesse tendo:

“Antes tivesse feito como o Lucas, que adentrou a casa de Alberto,

arrombou-lhe a burra, limpou tudo, encheu-se de dinheiro e ganhou o

mundo. Polícia? P’ra inglês ver.”

Tais hipóteses, porém, são talvez por demais fugidias. O conto “Um

Preso”, com todos os possíveis defeitos de composição apontados, e a

despeito de qualquer implicação autobiográfica, é de qualquer forma um

ponto de partida, e demonstra o quanto certas características formais e

certos temas já nasceram com o João Antônio escritor.

No ano seguinte, 1955, João Antônio publicou dois poemas que,

embora reconhecesse como ruins, guardou durante pelo menos seis anos.

O primeiro deles, “Utopia no Porto da Felicidade”, foi publicado no

Jornal do Povo, de Itápolis. Era assim:

“Iremos então, bem equipados e com vontade dupla.

Abrirei as lâminas do Tarô adivinhatório

e gritarei que nossa sorte é boa

e o sibilo do vento não me abafará os brados.

E a vida rirá de ébria...

Page 104: João Antônio: Uma Biografia Literária

104

Riremos com ela.

E nascerá uma chusma de querubins

Que rir-se-ão todinhos.

Daí então, fingirei acreditar na Virgem.

Erguerei odes de júbilo

Preexistirá a ufania ao som

Nesse dia, medrará água de pedra

E os meus cantos resistirão ao Tempo.

Eu fingirei crer na Virgem

E estaremos no porto da felicidade

O mundo nos irá abençoar muito...”

Vale notar que, seis anos depois de publicá-lo, em sua transcrição

desse poema, João Antônio faz os seguintes comentários: ao lado do quarto

verso, ele põe “(brados – horrível!)”. Quando começa a transcrição do

segundo poema, o faz com a frase “Outro horror:”. Este segundo poema,

também publicado no jornal de Itápolis, chama-se “Pausa”.

“As paredes pálidas,

Os sonhos da Vontade,

Os planos,

As ânsias,

As ilusões quedadas,

As estrelas do carvão da noite

Todas as histórias de braços caídos,

Tudo quanto exista estará no rés do chão, dormindo

E as ações terão sono.

Page 105: João Antônio: Uma Biografia Literária

105

A vida está descansando muito.

Para amanhã acordar bem cedinho.”

Ao fim da transcrição, seus comentários são os seguintes: “Como vê,

são ‘jóias’ antigas. Tinha também um ‘Credo’. Cruz, credo! Felizmente não

encontrei. (...) Ilka, claro que são versos ruins. Mas bem pensando, lá no

fundo, eles tinham alguma coisa de meu. Não sei...”.131

Passagem pela caserna

Um momento pouco conhecido da vida de João Antônio é sua

passagem pelo exército. Raramente citado em suas biografias, mesmo

quando o é, este período não está localizado no tempo com maior precisão.

Acontece, quase com certeza, em 1955, quando ele completa 18 anos.

Seu quartel era o da 2a Companhia de Infantaria Motorizada, que

ficava na rua Abílio Soares, no Paraíso. É um serviço externo, ao que se

sabe, não exigindo portanto um afastamento total de sua família, de sua

casa, de sua vida, enfim. Não obstante, a experiência é traumática.

Em seu primeiro livro, a ser publicado anos mais tarde, João Antônio

incluiu dois contos passados no interior da corporação militar, reunidos

numa divisão interna da obra chamada “Caserna”. São eles: “Retalhos de

Fome Numa Tarde de G.C.” e “Natal na Cafua”132

. Ainda que não os

tomemos como fontes biográficas puras, o que de fato provavelmente não

são, algumas impressões gerais podemos tirar deles, e bastante eloqüentes.

131

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 15/08/1961. Estes versos foram recortados e guardados pelo

próprio escritor em seu caderno de coisas publicadas, um hábito nascido, como se vê, bem no início de

sua carreira, e que jamais o abandonou. Ao final de sua vida, João Antônio guardava em sua casa

pastas e mais pastas com uma enorme quantidade de recortes de jornais e revistas, compondo um

formidável acervo sobre sua obra e sua trajetória no meio literário. São entrevistas, resenhas, notícias,

contos, crônicas, perfis biográficos, um poema tardio, etc. 132

Antônio, João – Malagueta, Perus e Bacanaço, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1963.

Page 106: João Antônio: Uma Biografia Literária

106

A começar pela epígrafe que serve a ambos: “Soldado é aquilo que fica

embaixo da sola do coturno do sargento”.

A juventude desregrada do escritor, que aceitava com dificuldade as

reprimendas paternas e maternas por seu gosto pela sinuca, pelas mulheres

e pela boêmia; que ignorava os conselhos do avô Virgínio, instando-o a

largar essa vida; que já tinha grande dificuldade em encarar seriamente os

estudos, agora ainda mais atrapalhados pelos compromissos militares; com

toda certeza teria ainda mais dificuldade em se enquadrar na severa

disciplina do exército. O coração do jovem João Antônio estava na

literatura e na noite de São Paulo, nunca no quartel.

Em ambos os contos relacionados ao exército, o ambiente que toma

forma é um ambiente, no mínimo, desagradável, cheio de injustiças, de

capitães caprichosos e sub-comandantes sádicos, de solidão, do desejo de

passar despercebido, a melhor estratégia para não arrumar confusão.

Embora não haja muitas informações sobre o período, o escritor o

deixa registrado em parte de suas memórias:

“Soldado, um fiasco. Lá no Paraíso, outro canto da cidade, dois ônibus

todos os dias, um dinheirão só de passagem. Minha mãe tenta me

resguardar e, no quieto, me atravessa uns trocados. O soldado número 178

da terceira companhia de infantaria toma cadeia, toma pernoite, dá

alterações, repete por castigo cangurus e exercícios físicos puxados, tropica

na ordem unida, é julgado incapaz na ginástica de cordas. Possivelmente

nunca se viu tamanha falta de jeito nem relapsia renitente para as artes

militares.

Um dia, o capitão-comandante gritou na tarde, como se fosse para

todo o Paraíso ouvir:

— Esse recruta é encruado e parece que vai ser paisano o tempo todo!

Page 107: João Antônio: Uma Biografia Literária

107

Deixo a farda, debando daqueles lados do Paraíso, (...)”.133

Muitos anos depois, em carta a um amigo, João Antônio fala da

experiência como de um tempo perdido: “Este país, estes governos de

merda jamais me deram um lápis de graça, e ainda me tomaram um ano de

serviço militar, e toda a minha mocidade”.134

Mas não foi um tempo tão perdido assim, no fundo, apesar do serviço

militar. Houve uma compensação nova, que o marcou. Ele próprio conta

qual foi: “No tempo de soldado raso, me veio um faniquito diferente, desses

no meio da febre em que eu vivia, entre mulheres, zona, sinuca e

aprontagens de rapaz. De repelão e inteiriço, um amor pelas coisas do

Japão. Judô, saquê, pintura, gravura, desenho, haicais, tudo de uma fonte,

uma mina, o filme Rashomon, de Akira Kurosawa, baseado em um conto,

‘Dentro do Bosque’, de Ryunosuke Akutagawa ou na junção de duas

histórias do admirável japonês.

Desandei a ver coisas no bairro da Liberdade, naquele tempo nada

badalado, não folclorizado em atração turística numa cidade forte no

trabalho, fraca nos postais por mais que a mintam ou a vistam a rigor.

Enfiava-me pelos restaurantes, lojas, academias de judô e tive, sim,

camaradinhas judocas, educados, umas moças. Mas feras no tatame.

Delicadeza das mulheres do Japão me tocava com suas manhas

dissimuladas. Sonsas, sutis professoras. Freqüentei cada sábado, cada

domingo, o Cine Niterói, perto da Rua Galvão Bueno e São Joaquim; neles

vi, pela primeira vez, o muito longo Guerra e Humanidade, do senhor

Kobayashi. E filmes, em épocas e épocas, mostrando lendas, quimonos,

gentes entre neves e montanhas e cerejeiras do Japão. (...)

Das composições notáveis em preto-e-branco, terá me ficado alguma

coisa. E da música rascante, dolorosa. Do teatro singular, da dança. Foi no

133

Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,

Record, 1982. 134

Carta a Mylton Severiano da Silva, de 21/01/80.

Page 108: João Antônio: Uma Biografia Literária

108

interior dos cinemas dos japoneses, na Liberdade, que senti pela primeira

vez, na pele, a força do preconceito de raça. Acendiam-se as luzes e, em

toda a sala, só um não era niponico. O único”.135

Cabeça aberta pela literatura

Ao sair do exército, João Antônio mudou de emprego, encontrando

lugar no mesmo frigorífico onde seu pai também havia trabalhado até 1944,

o Armour. Novamente, o trabalho não era dos mais estimulantes; auxiliar

de escritório, serviço burocrático do departamento pessoal. Ele mudaria de

emprego algumas vezes vezes nesse período, entre 1956, data aproximada

de seu vínculo com o serviço militar externo, e 1963, data de publicação do

livro. Após o Armour foi trabalhar numa agência bancária no bairro da

Lapa e, por fim, encontrou colocação numa agência de publicidade,

chamada Petinatti, cujo escritório funcionava na rua Conselheiro

Crispiniano. Não tinha, de fato, uma atividade estável, um rumo

profissional definido, longe disso, e portanto a família continuava tendo

problemas em aceitá-lo como era, com um temperamento forte, um tanto

revoltado, dado à boêmia, isolado dentro de casa (ainda que fosse para as

leituras), capaz de demitir-se do emprego a qualquer momento, enfim, uma

pessoa nada satisfeita com seu destino e com a realidade que o cercava.

No que se refere a sua educação escolar, uma vez terminado o curso

normal, João Antônio entrou na faculdade, cursando jornalismo na Escola

Casper Líbero.136

Mas esse período foi o de alguns episódios que diretamente o

135

Antônio, João – “Vibrações, Poeiras e Pulgueiros”, in Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o

Inferno, São Paulo, Scipione, 1991. 136

Neto, João da Silva Ribeiro – Literatura Comentada: João Antônio, São Paulo, Abril Cultural,

1980.

Page 109: João Antônio: Uma Biografia Literária

109

inspirariam na composição dos primeiros contos – como é o caso da paixão

por uma japonesa namorada de um amigo –, e também o momento de

grande abertura para as mais diversas formas de fruição artística. Sua

curiosidade pelas artes está tão aguçada, sua solidão familiar tão completa,

que ele se volta em várias direções e não pára de conhecer e buscar. Pela

música, sua paixão cresce como nunca: “Não tendo com quem falar sobre o

que lia. Não tendo uma escola que me interessasse. Acabei na Liberdade, vi

as mulheres, a pintura, judô, sakê, gravura, fotografia, música. Nessa coisa

de música me apeguei, viciado. (...) Só exigia talento, que aprendi a ouvir

em rodas de chorões. Nada desafinasse. Nasceu-me, rasgando, o amor por

Noel, Araci, Ciro, Ismael”.137

Solidão e literatura serão coisas inseparáveis a partir daí. Seja por

simples característica de seu processo criativo, seja pelas diferenças de

gênios entre ele e sua família de origem, ou, no futuro, pela determinação

de não sacrificar sua carreira para sustentar dependentes, a literatura sempre

puxou João Antônio para a vida solitária: “É um ato de extrema solidão

[escrever], indivisível, que me torna uma criatura irascível – quando

escrevo, só penso em escrever –, que destrói as pessoas ao meu redor, que

anula os meus dependentes. É uma coisa meio brava”.138

A partir de 1956, ele já escreve com freqüência, além de fazer muito

mais: “Depois da nissei, o amor e não o conto, destrambelhei por uma

febre, de teatro e cinema, de bordéis e de muquinfos, de madrugadas e

armações, me enfiando e saindo de empregos, amanhecendo, taco de sinuca

na mão, nos cantões da Boca do Lixo, arrumando chavecos e me

enxodozando por lá, jogando, amando, bebendo e levando na cabeça. De

enfiada, danando a botar pra fora os vinte anos, mulherio e esbórnia,

137

Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,

Record, 1982. 138

Entreviata concedida a Lídice Leão e Maria Silva Pereira, publicada no Jornal da Tarde, São Paulo,

13/07/91.

Page 110: João Antônio: Uma Biografia Literária

110

solidão, alegrões e falências secretas. Vivi”.139

Neste mesmo ano, ele escreveu um conto chamado “Índios”,

atualmente desaparecido. Ele, porém, assim nos fala do resultado: “É um

conto péssimo, péssimo. Péssima experiência. Coisa pré-histórica, cheia de

influências, de manias, de cacoetes aprendidos com outros autores. Pouco

serve de referência.

‘Índios’ é de 1956, meu ano de influência de Graciliano Ramos. Eu lia

o velho Graça de trás para adiante, de vante a ré, de cima para baixo, de

baixo para cima. De todo o jeito, “Índios” é uma estupidez. Mas ganhei

com ele uma menção honrosa n’ A Cigarra. O que foi outra estupidez”.140

E o contato com o cinema de arte também é importante. “Um

jornaleiro de Vila Anastácio, o João Vigiano, me passava as informações de

um cinema que eu não tinha idéia que pudesse existir. Descobri o cinema

japonês em Santa Cecília e na Liberdade e, mais tarde, acabei entrando para

a Sociedade Amigos da Cinemateca, que foi muito importante para a minha

formação. Tinha lá o Paulo Emílio Salles Gomes, o Jean-Claude

Bernadet.”141

“Depois, só depois das lições de João Vigiano, pintor e

jornaleiro, descobri que um filme tinha diretor.”142

Conheceu também Rudá

Andrade e Maurice Capovilla, sendo que este último, muitos anos depois,

levaria para as telas o conto longo “Malagueta, Perus e Bacanaço”. Enfim,

139

Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,

Record, 1982. 140

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 23/09/1959. 141

Entrevista a Nilo Scalzo, Lourenço Dantas Mota, Waldecy Tenório e Teresa Odonto, publicada em

O Estado de São Paulo, 13/02/83. Em carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 05/09/1961, João Antônio diz:

“Surpreendente (na verdade – surpreendente!) conhecimento dos seus amigos lá da Cinemateca.

Maurice Capovilla, Jean-Claude e os que deles me vieram.” – parecendo indicar que Ilka era uma

referência importante entre eles e os membros da Cinemateca. Não obstante, se é que essa

intermediação de fato se deu, criou-se uma amizade sem intermediários entre João Antônio e os

cineastas, como prova uma carta a mesma Ilka, de 06/10/1961, em que João Antônio diz: “Maurice

Capovilla. Este menino, sabe Ilka, ele e Luís Paulino têm me ajudado muito, entusiasmando-me a que

me entusiasme com minhas coisas. (...) Finalmente Paulino conseguiu autorização para a produção do

documentário sobre o Tietê [projeto que juntos os três arquitetavam há alguns meses]. Eu e Maurice o

ajudamos também num roteiro de um filme de ficção sobre o Tietê. O título, difícil, parou aqui: A

Morte dos Luminosos. Por enquanto. (...) “Malagueta, Perus e Bacanaço” entusiasmou-os. Tanto que,

eu e Maurice começamos já a trabalhar o roteiro.” 142

Antônio, João – “Vibrações, Poeiras e Pulgueiros”, in Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o

Inferno, São Paulo, Scipione, 1991.

Page 111: João Antônio: Uma Biografia Literária

111

ele encontrava um cinema que não mentia, que mostrava as pessoas e suas

vidas como realmente eram, e nessa fase assistiu a ciclos de cinema sueco,

indiano, polonês, francês, japonês, russo, italiano e de cinema de

animação.143

Tudo isso se passava no Ibirapuera ou na sala Sete de Abril, o

cine Coral. Leu e estudou cinema na época.

Ele conta, desse envolvimento com o cinema, o seguinte episódio:

“Dei, também, para ouvinte de cursos de literatura na Faculdade de

Filosofia da Rua Maria Antônia. Diacho. Aquilo chamado romance era

sério. Também os filmes.

Uma noite, ninguém esperava, Antonio Candido começou sua aula

sobre o romance Senhora, de Alencar, dando um esporro na chamada

burguesia paulista.

Devíamos, de imediato, assistir a um filme que passava

comercialmente no Coral. Era um italiano, de Antonioni, A Aventura. Tão

bom que a platéia vaiava o tempo todo, xingava ou, debaixo de

reclamações, deixava a sala de exibição”.144

Em carta de 1960, ele dá uma idéia do repertório cinematográfico e de

sua familiaridade com os nomes de atores e diretores: “Vi bons filmes,

embora perturbado mentalmente. Febre. Vi ‘Hiroshima, Mon Amour’;

‘Roma, Città Aperta’, de Rossellini, com Aldo Fabrigi e Anna Magnani; vi

‘Paisà’, de Rossellini, com Maria Michi e Gar Moore, e vi, ‘Ossessione’ (ô

filme! ô loucura, sabe, o que é loucura?) com Massimo Girotti e Clara

Calamari, o diretor é Luchino Visconti”.145

Nesta mesma época, de insaciável abertura para as artes, João Antônio

chega ainda a fazer aulas com o grupo do Teatro Arena, “onde era mestre

143

Entrevista a Nilo Scalzo, Lourenço Dantas Mota, Waldecy Tenório e Teresa Odonto, publicada em

O Estado de São Paulo, 13/02/83. 144

Antônio, João – “Vibrações, Poeiras e Pulgueiros”, in Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o

Inferno, São Paulo, Scipione, 1991. 145

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/08/1960.

Page 112: João Antônio: Uma Biografia Literária

112

Kusnet e muitos outros pontificavam ou começavam a existir”.146

Lá teria

conhecido pessoas como Augusto Boal, Milton Gonçalves, Gianfrancesco

Guarnieri147

e Oduvaldo Viana Filho, com eles aprendendo várias técnicas

de interpretação e de memorização de textos. “Seus companheiros do Arena

Paulista apostavam em seu talento de ator cômico – mas João Antônio

preferiu escrever.”148

Em entrevista concedida em 1976, o escritor fala assim da experiência

no Arena:

“P: Quer dizer que o teatro foi importante na sua carreira de escritor?

R: Foi. Inclusive eu era bom ator, levava jeito. Tinha uma tendência

para o cômico.

P: E por que abandonou?

R: É que não dava para conciliar as duas coisas. São atividades

bastante absorventes e distintas entre si. Embora nunca tenha me

profissionalizado, continuo apaixonado por teatro.”149

A partir de 57-58, intensificou sua participação em concursos literários

e as publicações de seus contos em jornais e revistas.

Por essa época, por exemplo, publica o conto “Busca”, na Revista do

Globo150

, e ganha um concurso do jornal Tribuna da Imprensa (1958), com

o conto “Meninão do Caixote”.

“Corria um tempo em que escrevia à mão e dizia o texto em voz alta.

Depois, só depois, bem mais tarde é que passava à máquina, na limpeza e

na pureza. Não me entrava na cabeça alguém escrever diretamente. Se

aquilo era me curtir e recurtir, sofrendo e sugando como quem extrai a vida.

146

Entrevista a Nilo Scalzo, Lourenço Dantas Mota, Waldecy Tenório e Teresa Odonto, publicada em

O Estado de São Paulo, 13/02/83. 147

Guarnieri viria a representar seu personagem Perus, na adaptação de seu conto mais famoso,

“Malagueta, Perus e Bacanaço” para o cinema, dirigida por Maurice Capovilla e lançada na segunda

metade dos anos 70. 148

Revista Veja, São Paulo, 16/07/75. 149

Entrevista a Ruy Fabiano, publicada no Diário de Notícias, em 14/02/76. 150

Mencionado nas cartas mas não localizado.

Page 113: João Antônio: Uma Biografia Literária

113

Lambendo e brincando, uma a uma as palavras, atento, embalado, amante –

do jeito, do sestro, do desenho, sonoridade, sensualidade, doçura, porrada,

murro, cipoada e suor particular de cada uma das palavras. Uma, duas e

cem vezes eu dizia, no quarto, voz alta. Diretamente à máquina. Onde já se

viu?”151

Como conseqüência desse esforço de afirmação literária, João Antônio

começa a fazer contatos com outras pessoas do meio, e vai abrindo

caminho para sua inserção definitiva na “carreira”.

Um episódio simbólico marca essa transição, o qual assim nos é

contado pelo irmão do escritor:

“Um belo dia meu pai estava no bar, a casa onde vivíamos era longe, e

chegou um automóvel [um modelo americano, Studebaker ou Mercury152

].

Naquela época eram raros os automóveis e dele desceram quatro homens de

terno [eram: Ricardo Ramos, diretor editorial da editora Civilização

Brasileira, Otávio Issa, Roberto Simões e Ronaldo Moreira153

], e

perguntaram pelo meu irmão. Meu pai levou um susto, achando que eram

policiais, pois estavam muito bem vestidos e meu irmão já freqüentava a

vida noturna, gostava de jogo, gostava de sinuca. Aí um deles se

apresentou. Era Ricardo Ramos, filho do Graciliano, e tinham vindo

conhecer meu irmão por causa de um dos contos que havia publicado. Aí

foram lá para casa e passaram o dia lá, depois voltando várias vezes”.154

A biografia autorizada do escritor diz mais: “Conversaram com João

Antônio e ficaram surpresos com a sua idade [entre 21 e 23 anos]: acharam

que o autor daquelas histórias de malandros, que revelavam muita vivência,

151

Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,

Record, 1982. 152

Neto, João da Silva Ribeiro – Literatura Comentada – João Antônio, São Paulo, Abril, 1980. 153

Idem. 154

Depoimento colhido em 23/3/2000. No próximo capítulo deste trabalho, que enfocará justamente os

anos pré-publicação do primeiro livro, 1958 a 1963, procurarei demonstrar, a partir de sua

correspondência, como João Antônio montou uma verdadeira rede de contatos literários, que alicerçou

seu lançamento como escritor, e, na medida do possível, por que nomes era formada essa rede.

Page 114: João Antônio: Uma Biografia Literária

114

fosse uma pessoa bem mais velha”.155

Mas o próprio João Antônio tem sua descrição do episódio, que coloca

como determinante em sua vida:

“Um dia, mandei com pseudônimo maroto e lírico carta ao Rio

pedindo publicação de meus contos. E segui, tocando a vida. Que não há

nada para ser tocada quanto a vida, e se você está fora dos ambientes como

é que vai ver a festa do mundo?

Era um sábado, era um sol, era um dia 28 de setembro. E, claro, eu

bebera na sexta-feira da semana inglesa. Ressaca na boca e nas pernas. Os

olhos miúdos e inchados, a cara enorme. Provavelmente precisaria de

óculos escuros para enfrentar a luz do dia.

Esponjei-me na soleira do quarto. Naquele momento, o carro de

quatro portas, americano e cinza do romancista freava na porta do bar.

Desciam quatro homens, paletós e gravatas. Eles se chagavam para o

balcão. A carta do Rio indicava o endereço do bar. Um deles falou o

pseudônimo mais sestroso que já usei até hoje – Paulo Melado do Chapéu

Mangueira Serralha.

— É aqui que mora o senhor...?

Meu pai abaixou a cabeça. Atarracado, triste, português

envergonhado:

— Sim. Os senhores são da polícia?.”156

É possível imaginar o impacto dessa visita na vida de João Antônio,

de três formas. De um lado, legitimou, ou pelo menos ajudou a legitimar,

sua vocação literária aos olhos da família. De outro, colocou-o em contato

com escritores profissionais, com articulações literárias fortes e bem

posicionadas no meio editorial e jornalístico. Em contato com o filho de

Graciliano, seu ídolo maior até ali. Mas, sobretudo, estes homens

155

Neto, João da Silva Ribeiro – Literatura Comentada - João Antônio, São Paulo, Abril, 1980. 156

Antônio, João – “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, in Dedo-Duro, Rio de Janeiro,

Record, 1982.

Page 115: João Antônio: Uma Biografia Literária

115

personificavam certas diretrizes estéticas, oriundas do repertório

modernista, que o jovem escritor perseguia. Com eles aprendeu muito sobre

elas. O próximo capítulo esmiuçará a importância “política” da visita, bem

como a influência propriamente artística que Ricardo Ramos e seu grupo

exerceram sobre João Antônio. Por enquanto, basta dizer que o encontro

faz parte desse contexto de extrema abertura intelectual.157

Mas esta abertura intelectual para o mundo corresponde a uma

inquietação profunda, e a uma virtual ausência de endereço fixo. Ora está

na chácara de um amigo em Bororé, ora num endereço em Vila

Hamburguesa, ora vai ao Rio de Janeiro, para sua conhecida favela da

Cachoeirinha, na casa do tio Otacílio, onde desanda a “acreditar no modo

novo de cantar e viver das favelas, que é onde mais se canta no Rio, circulo

como se procurasse uma claridade (...) Minha mãe, chorosa, dá um nome a

isso. Andaço”.158

“Rio. Lapa. Os Arcos. Dezessete cabarés tendo por cima

dezessete salões de sinuca. Seis meses lá, doidando”.159

Em 1960, paralelamente ao trabalho de composição do conto longo

“Malagueta, Perus e Bacanaço”, João Antônio flertou com um outro conto,

chamado “Gibóia”, que “será o nome de uma história em pleno batifundo,

com toda a aparente imundície, a que eu prefiro e recomendo se chame

intensidade”. O personagem principal, de nome Rui e apelidado de Gibóia,

seria um gigolô, e o conto narraria “as tristezas, vergonhas, surras,

humilhações, que as mulheres de ‘Gibóia’ sofreram, prostituindo-se. E o

espigado, pálido, sentimental e arrogante Rui, sobre os telhados do mundo

baixo, gritando:

— Deus só faz conta da gente quando a gente pede alto!

157

Além de literatura, cinema e teatro, João Antônio sente-se também tentado à pintura e à fotografia:

“Por outro ângulo, Ilka, descubro a fotografia. Já é urgente, já me é urgente aprender a fotografar.

Estou apaixonado pela fotografia. É coisa séria, ouviu?” Trecho de carta enviada a Ilka Brunhilde

Laurito, de 05/09/1961. 158

Idem. 159

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/10/1960.

Page 116: João Antônio: Uma Biografia Literária

116

Gibóia não morrerá porque personagem meu não morre. Como todo

valente da macumba, ele apodrecerá como Paulinho-Perna-Torta, Aladim e

outros”.160

Num rápido parêntese, vale notar o quanto seus personagens são

inspirados em figuras reais, vários em lendas vivas do mundo da

malandragem. Vale notar também que, muito provavelmente, este conto

“Gibóia” foi a gênese da novela, ou conto longo, “Paulinho-Perna-Torta”,

escrita por encomenda após a publicação do primeiro livro do escritor.

Continua João Antônio a falar de seu projeto de conto: “Assim,

aproximadamente assim, terá início “Gibóia”. Sereno e quieto como uma

neblina paulistana. Frases iniciais hão de ser assim:

‘— Lembra?

E o homem estirou o dedo que indicava o prédio em demolição’.”161

Mudança para o Jaguaré e incêndio

Ainda em 1958, João Antônio Ferreira, pai, quita sua parte da dívida

com os credores de sua falida pedreira. A família Ferreira muda-se

novamente. Embora a biografia autorizada do escritor dê como novo

endereço o bairro do Jaguaré, “situado entre a Lapa e Osasco, formando um

triângulo com Presidente Altino e Vila Anastácio”, é mais facilmente

comprovável o endereço mencionado pelo irmão Virgínio: “Quando

terminou aquela coisa toda na Vila Anastácio, quando terminou o rebuliço

todo na nossa família, havia sobrado uma casa do meu avô no Morro da

Geada. Voltamos para o Morro, no dia em que o Brasil ganhou da Rússia

160

Idem, de 26/05/1960. 161

Idem, ibidem.

Page 117: João Antônio: Uma Biografia Literária

117

na Copa do Mundo. Em junho de 1958”.162

“A casa ficava no Morro de Presidente Altino” – confirma João

Antônio – “Era uma casa de 1928, construída pelo meu avô.”163

Dois anos se passaram. João Antônio teimosamente correndo atrás de

sua carreira literária, e Virgínio, o irmão caçula, crescendo: “Virgínio está

homem. Um tórax enorme, um enorme coração. Tenho amor nesse menino.

Gosto dele, do seu jeito simpático, bonitão, alegre, aberto. Tem uns olhos

bons e vive contente da vida.

— João.

Forte como um touro. Muito forte, corado, bonito, agradável. Só tem

amigos. Encanta, alegra, faz ambiente.

— João”.164

Porém, no fatídico dia 12 de agosto de 1960, um incêndio destruiu,

completamente, a casa dos Ferreira. Não sobrou nada. Foram-se todos os

pertences da família, os móveis, as roupas, o bandolim feito por Romeu di

Giorgio, a coleção de O Crisol, e, pior que tudo, foram-se os originais de

todos os contos de João Antônio, inclusive do inédito “Malagueta, Perus e

Bacanaço”.

“Pobre tem que fazer tudo duas vezes, e muito bem feito, se não quiser

fazer outra vez.” – foi a frase categórica e de trágica amplitude com a qual o

pai do escritor, com seu costumeiro espírito proverbial, esclareceu o

significado de mais aquele revés.

A desorganização geral na vida familiar obrigou os Ferreira a se

dividirem. O irmão Virgínio foi morar numa casa com a avó materna, Nair

Cardoso Gomes, lá mesmo em Presidente Altino. A mãe e o pai alugaram

162

A primeira carta do escritor para sua amiga, paixão platônica, interlocutora literária e confidente,

Ilka Brunhilde Laurito, data de 1o de setembro de 1959, e inicia-se da seguinte forma: “Esta carta vem

do último subúrbio. Do Morro de Presidente Altino, talvez seu desconhecido”. As demais cartas que

compõem esta ampla e comovente correspondência têm o mesmo endereço do remetente. 163

Steen, Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981. 164

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 25/12/1960.

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118

um quarto na Barra Funda, na Praça Olavo Pilar, sendo que ele, João

Antônio Ferreira, viu-se obrigado a abandonar o comércio, com quase

cinqüenta anos e após tantas cruéis rasteiras do destino, e a entrar no ramo

de carretos, no qual terminaria seus dias. João Antônio Ferreira Filho, após

a destruição provocada pelo incêndio, ficou sem pouso fixo, dormindo de

favor cada noite em um lugar, na casa de amigos da boêmia e da sinuca,

com namoradas daqui e dali ou com prostitutas da Boca-do-Lixo.

Conta João Antônio: “Esse incêndio foi motivado por um ferro

elétrico não automático e quando os vizinhos tomaram conhecimento a casa

já tinha ardido. Estávamos todos fora e eu trabalhava como redator numa

agência de publicidade, a agência Petttinati, na Rua Conselheiro

Crispiniano. Quando vi o incêndio, simplesmente perdi a fala. Aí, então,

começamos a ter todos os problemas de sobrevivência. Foi uma luta braba

que dividiu a família. Depois do incêndio fiquei muito traumatizado, a

ponto de não poder entrar em livrarias”.165

Perda e recuperação de seus originais

A perda dos originais do livro e do conto “Malagueta, Perus e

Bacanaço” leva o jovem escritor ao desespero. Um dos amigos que o

incentivou a reescrevê-los foi o poeta, jornalista e editor Mário da Silva

Brito. Não se sabe ao certo como os dois haviam se conhecido, mas tudo

indica que por meio dos contos enviados por João Antônio, durante os anos

de 1958 e 1959, ao jornal Estado de São Paulo, onde Mário da Silva Brito

era um dos colaboradores. Tendo nascido em 1916, Silva Brito era quase

vinte anos mais velho que João Antônio, e ao que se percebe nas cartas e na

interpretação dos fatos, tornou-se, por admiração sincera ao talento do

165

Steen, Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981.

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119

jovem escritor, e tendo em vista as dificuldades com que se defrontava,

uma espécie de conselheiro e protetor.166

“Graças a um ‘esporro’ que me

deu o Mário da Silva Brito, retomei o trabalho de reescrever o

‘Malagueta’.”167

Mas, como fazê-lo? Reza a lenda sobre o escritor, que ele teria

reescrito todo o livro, apenas a partir de sua prodigiosa memória. A verdade

é, e não é, bem essa.

Ilka Brunhilde Laurito reconstrói a situação, a princípio, de maneira

dramática: “Em princípios de agosto, depois de um largo silêncio, recebo

um telefonema desesperado de João Antônio. Sua casa havia pegado fogo.

E, junto com a perda de seus objetos queridos, seus quadros, seus livros,

sua máquina de escrever, ele também perdera os originais do conto que lhe

custara tantos meses de trabalho e sofrimento.

Apesar do irremediável de uma tragédia que, por extensão, também

me atingia, eu lhe dei quase uma ordem ao telefone: — Você vai

reescrever! Mas eu mesma não tinha a convicção, naquele momento, de que

esse milagre pudesse ser possível, eu, que acompanhara o laborioso

nascimento e crescimento da obra”.168

Porém, a mesma Ilka relativiza a gravidade da perda logo depois: “Ao

mesmo tempo, lembrei-me que minhas cartas continham largos trechos

transcritos do conto, que ele me enviava à medida que os produzia (...)

Assim, com o empréstimo de minhas cartas e de rascunhos de posse de

Caio Porfírio Carneiro – o amigo a quem ele confiava seus originais – mais

a prodigiosa memória que o fazia saber de cor trechos e trechos de uma

história com a qual convivera intimamente nos últimos meses, João

166

No próximo capítulo, onde será analisada a correspondência de João Antônio com Ilka Brunhilde

Laurito, formidável acervo documental inédito que se estende entre 1958 e 1963, analisaremos com

mais detalhe a relação de João Antônio com o meio literário, e nesse meio, com Mário da Silva Brito. 167

Steen, Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981. 168

Laurito, Ilka Brunhilde – “João Antônio: o inédito”, in Remate de Males, Revista do Departamento

de Teoria Literária da Unicamp, no. 19, Campinas, 1999,

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120

Antônio entregou-se ao árduo trabalho de reelaborar o conto incinerado”.169

Não se sabe ao certo que originais o colega Caio Porfírio detinha, mas

também o próprio João Antônio possuía, na segunda gaveta à esquerda de

sua mesa na Pettinatti – “um pouco de literatura no mundão de publicidade

que ali se amontoa” –, o seu velho álbum de coisas publicadas nos jornais e

nas revistas, entre as quais, logicamente, estava a sua produção.170

Caio

Porfírio disse o seguinte sobre a novela título do livro: “A Ilka tinha uns

esquemas das personagens. Eu tinha a história montada. Tinha 70% do

livro, descosturado, numa primeira versão. Você sabe que o João Antônio

começou a dizer a todo mundo que ele começou do zero. Eu dizia a ele:

‘Rapaz, você é um filho da puta. Você pegou todo o rascunho comigo.’ E

ele respondia: ‘Fica quieto, Caio. É marketing.’”171

Mas seria leviano demais imaginar que o duplo episódio, do incêndio

e da perda dos originais, não tenha sido realmente traumático.

Numa comovente carta, João Antônio se lamenta: “Saudade da voz

dos discos que eu tinha. Saudade da Araci, da voz dela, daquela cadência,

que me arrepiava. Saudade do retrato na parede, dos livros na estante, das

coisas de bronze, do giz americano, da escrivaninha. Ilka, o incêndio não

acabou ainda. Estou quase chorando”.172

Conta João Antônio: “No dia 12 de agosto daquele ano [1960], houve

um incêndio na minha casa que queimou tudo, inclusive os originais

manuscritos (naquele tempo, eu só escrevia à mão). Ficamos, eu, meu pai,

minha mãe, minha avó e meu irmão Virgínio, com a roupa do corpo.

169

Idem. 170

Este caderno sobreviveu ao incêndio, pois, naquele dia, estava na gaveta da mesa de João Antônio

na redação da agência de publicidade. Embora não se saiba o conteúdo completo do caderno, cheio de

recortes de jornais e revistas, é quase certeza absoluta que seus contos já publicados deveriam estar lá.

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 15/06/1961. Além disso, pelo menos mais um amigo também

colaborou, cedendo ao escritor recortes de jornal com um de seus contos anteriormente publicados. O

amigo se chamava Osvaldo, e o conto em questão era “Natal na Cafua”. Carta a Ilka Brunhilde Laurito,

de 30/12/1960. 171

Depoimento colhido para esta pesquisa em maio de 2000. 172

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/08/1960.

Page 121: João Antônio: Uma Biografia Literária

121

Depois, a vida correu de novo, comemos o pão que o diabo amassou, (...)

Refiz todos os contos, com auxílio de vários amigos, de lá para cá, em

apartamentos emprestados e onde pudesse.”173

É fato que Mário da Silva Brito, novamente ajudando o escritor, e com

a desculpa de que João Antônio faria uma pesquisa sobre história da

literatura brasileira, conseguiu-lhe o direito de usar uma cabine da

Biblioteca Mário de Andrade, à noite, depois do trabalho, para reescrever o

livro.

“Agora, quando a noite começa eu já estou na minha cela. Cela – é a

cabina da Biblioteca Municipal. Cabina 21, cela da ressurreição de

“Malagueta, Perus e Bacanaço’ – três vagabundos em busca de uma

definição. Como é tranqüila a minha cela! Nem cigarros, nem café. Só, lá

fora, o relógio de ‘O Estado de São Paulo’ marca a noite.

E eu sou um monge na noite da minha cela. Há um silêncio religioso

que lembra, cá no segundo andar, uma viagem de ficção-científica. Eu

monge, faço a oração nervosa:

— Meu Deus: dá fé do artista, que, só tem na vida um terninho chacal,

muita zonzeira e uma vontade maluca de fazer uma quizumba a que ele

chamou de ‘Malagueta, Perus e Bacanaço’. Meu Deus, me dá esta colher de

chá.

E ponho-me a desenterrá-los.”174

Mas um dado menos conhecido é a importância de sua participação no

Teatro Arena no episódio da reescritura do livro, e que explica a fama de

sua “memória prodigiosa”. Explica João Antônio: “Não, não foi apenas de

memória [que reescreveu o livro]. Se eu dissesse isso, estaria exagerando.

Acontece que eu estudei teatro, no Arena, com o Guarnieri, o Vianinha,

Milton Gonçalves e toda essa geração. Bem, no teatro, nós tínhamos aulas

173

Matéria não assinada de O Globo, RJ, publicada em 29/08/69. 174

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/09/1960.

Page 122: João Antônio: Uma Biografia Literária

122

de mnemônica, para facilitar a memorização do texto, e isto foi

fundamental para a recomposição do texto [do conto “Malagueta, Perus e

Bacanaço”].”175

“Aprendi um pouco do processo mnemônico, o que me favoreceu a

lembrança de trechos inteiros de ‘Malagueta’, porque todo o texto é ritmado

e tem um movimento para cada capítulo; por exemplo, Barra Funda é

assim: ‘O boteco era um de uma fileira de botecos’. Isso me ajudou muito

na composição, porque, empiricamente, eu escrevia por música.”176

Mas sua capacidade de guardar, por meio de sons, as frases, deve-se

também, como se vê, a sua antiga ligação entre sonoridade e leitura, música

e literatura. Diz um de seus resumos biográficos anteriormente publicados:

“Quando lia em voz alta para o pai, ainda pequeno, aprendeu, junto com o

choro, que as frases devem ter um ritmo, melodia. Foi lendo os clássicos e

modernos da língua portuguesa e percebeu que cada escritor tinha seu

ritmo”.177

Nem a perda foi total, como muitas vezes se acredita, nem a

reescritura se deu sem grande esforço e mérito do jovem escritor. Que mais

não fosse, pela escassez de tempo livre. Este processo de recomposição do

conto que viria a ser título de seu primeiro livro, e que se tornaria o mais

famoso de toda a sua obra, deu-se paralelamente ao trabalho como redator

de publicidade na Agência Pettinati e aos estudos noturnos.

E a dor do incêndio acompanhou-o por algum tempo, voltando para

incomodá-lo de quando em vez: “Vontade agora me veio dos meus livros.

Faziam-me bem e o fogo os queimou. Dos meus quadros e fotografias e

tudo”.178

Se alguma herança positiva lhe deixou o triste episódio, foi a liberdade

175

Entrevista a Ruy Fabiano, publicada no Diário de Notícias, em 14/02/76. 176

Steen, Edla Van – Viver e Escrever, Porto Alegre, L,P&M, 1981. 177

Medina, Cremilda de Araújo – A Posse da Terra: O Ecritor Brasileiro Hoje, Lisboa, Imprensa

Nacional/Casa da Moeda, e São Paulo, Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, SP, s/d. 178

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 25/12/1960.

Page 123: João Antônio: Uma Biografia Literária

123

para sair de casa e viver a vida que imaginava mais adequada para seu

temperamento: “Eu talvez vá viver a vida que eu quis sempre, que eu tentei

tantas vezes e que fracassei, trazendo na volta uma cabeça baixa, alguns

quilos a menos e passagens escabrosas.

Mas daquelas vezes eu ia como que de empréstimo, temporariamente.

Desta, eu sei, irei certo como um relógio. Eu mesmo irei.

Quero viver, como já lhe disse, por telefone. A vida faz um jogo

errado comigo – quanto mais me castiga, mais eu gosto dela.”179

E foi adiante publicando, ou tentando publicar, seus contos nas

revistas e nos suplementos.180

“Meninão do Caixote”, diz o escritor, na

Revista da Academia Brasileira de Letras. Na propaganda, além do fixo na

Pettinatti, pegava trabalhos por fora.181

Nos suplementos, “Mário da Silva

Brito abriu-me novas portas. Décio de Almeida Prado também. Eu vou”.182

N’ O Estado de São Paulo, por exemplo, teve publicado seu conto

“Visita”.183

Em 1962, decide concorrer ao Prêmio Fábio Prado, promovido pela

União Brasileira de Escritores, com o conto “Malagueta, Perus e

Bacanaço”, ainda em fase de reeescritura. “O Prêmio Fábio Prado foi

prorrogado até 31 de março, o que me dá tempo para uma fatura literária

179

Idem, de 24/08/1960. 180

João Antônio elaborou idéias para contos que ou nunca chegaram a ser escritos ou estão perdidos.

Nesse último caso, espera-se, apenas temporariamente. Em carta a Ilka Brunhilde Laurito, de

25/12/1960, menciona um conto que gostaria de ter escrito chamado “Natal Por Aí”; “um conto que

fosse eu mesmo, purinho, agitado, intenso, profuso (...) anti-conto de natal ou coisa que o valha.” Em

outra carta a Ilka, de 24/01/1961, menciona mais dois projetos: “Avô Morto”, sobre o avô Virgínio, e

“Primeiro Prêmio a Um Jovem Escritor”, sobre o incêndio de sua casa. Em 06/10/1961, também em

carta para a amiga, menciona o conto “Depois dos Luminosos”, “título de um conto que ando

engendrando (...), visão da madrugada depois das quatro horas.” Em 31/10/1961, novamente em outra

carta para a mesma destinatária, refere-se a “Pequeno Amor em Terra Vermelha”, cuja frase final,

“com o personagem de centro caminhando, seria assim: ‘Tem nada não. Irei mesmo a pé a Terra

Vermelha. Tem nada não. Viverei em Terra Vermelha. Ali viverei.” 181

“Jorge Rizzini entregou-me mais trabalho. Extras publicitários.” Trecho de carta a Ilka Brunhilde

Laurito, de 08/09/1960. Não identificou-se, por enquanto, quem é Jorge Rizzini. Algum colega mais

experiente na própria Pettinatti? Um contato externo? 182

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/09/1960. 183

Idem, de 25/12/1960. Deve-se dizer, no entanto, que João Antônio não gostou dessa publicação,

pois o conto estaria “todo mudado, sem a quentura que tinha. ‘O Estado’ não se dá com as minhas

quenturas.”

Page 124: João Antônio: Uma Biografia Literária

124

mais digna e o que está me proporcionando uma experiência literária

séria.”184

Apesar de toda sua atividade, e dessa rede de contatos literários, em

1962, ao completar vinte e cinco anos, o escritor ainda se ressente de

solidão. “Este é o meu aniversário mais ilhado. Nem no quartel, entre

promiscuidade e imundície, eu estive tão solitário.”185

Sem endereço fixo,

“Quando morarei em algum lugar?”186

, insatisfeito no emprego na agência

de publicidade, “Uma agência de publicidade é exatamente uma casa de

apostas.”187

– que o obrigava a cumprir horários, usar terno, anunciar como

grandes acontecimentos produtos que para ele não tinham a menor

importância –, sem um amor que o satisfaça, “Não amo como deveria,

como preciso. Não encontro a quem amar. Em matéria de amor o que

conheço são restos. Restos espirituais de restos humanos. Amor mesmo não

sei o que é. Sou um cru. Virgem inteiramente”.188

, o jovem escritor

agarrava-se a sua literatura e dizia ser “necessário que eu me grite que

tenho amigos, bons amigos, que sou simpático, e por isso tenho amigos,

tenho minha mãe que me quer, tenho a ternura de Virgínio, tenho uma

porção de outras coisas, igualmente úteis e simpáticas. Mas nasci torto e

tais simpatias e utilidades não me resolvem quando deveriam”.189

De fato, seu relacionamento com o irmão parece ser uma fonte de

tranqüilidade, mas a vida sempre lhe reservava alguma surpresa: “À noite,

bati papo com Virgínio, meu irmão. Ele solou violão para mim, eu lhe falei

dos livros que vou publicar. Fomos dormir e à entrada da madrugada uma

dor aguda me acordou e eu acordei os outros. Eu não me agüentava. Veio o

médico. Injeções, isso e aquiilo. Há uma complicação nas minhas vias

184

Idem, de 27/01/1962. 185

Idem, ibidem. 186

Idem, de 31/10/1961 187

Idem, ibidem. 188

Idem, ibidem. 189

Idem, ibidem.

Page 125: João Antônio: Uma Biografia Literária

125

urinárias e sexta-feira serei cortado”.190

Esse pequeno incidente médico não foi grave e logo o escritor se

restabeleceu. Porém, antecipava muitos outros que viriam nos anos

seguintes, ainda com ele bastante jovem, típicos de uma saúde por um lado

férrea, capaz de suportar uma vida em geral desregrada e boêmia, mas com

pontos fracos, que revelar-se-iam ao longo do tempo, nos rins, no fígado e

na má-circulação sangüínea nas pernas.

No ano de 1962, porém, uma notícia importante pressagiou o sucesso

do primeiro livro de João Antônio. Sua vitória no Prêmio Fábio Prado era,

de longe, a mais significativa já conseguida por qualquer um de seus

contos. No ano seguinte, uma vez publicado em livro, Malagueta, Perus e

Bacanaço191

, que reúne os oito contos em que trabalhara mais

sistematicamente até então, e mais a novela-título, reescrita, a vida do

escritor se transformou radicalmente.

Um detalhamento, porém, desses anos que antecederam ao

lançamento do livro – que mostre suas preocupações estéticas na época,

seus dilemas profissionais e literários; que evidencie como o sucesso

deveu-se à qualidade literária dos contos, e também a uma rede de apoios

no meio literário, competentemente montada pelo próprio João Antônio; ou

como funcionava, mais profundamente, a cabeça do jovem escritor; quais

as características primordiais de seu temperamento e qual o papel da

literatura em sua vida, etc –, é assunto para o próximo capítulo.

190

Idem, de 23/05/1962. Embora a carta esteja datada de 1961, e embora seja estranho que, ainda em

maio, o escritor se enganasse quanto ao ano em que estava, a rigorosa ordem cronológica com que Ilka

Brunhilde as guardava, e várias referências contidas no texto da carta indicam o ano de 1962 como a

única datação possível. 191

Antônio, João – Malagueta, Perus e Bacanaço, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1963.

Page 126: João Antônio: Uma Biografia Literária

126

Capítulo 2

A alma das cartas

Page 127: João Antônio: Uma Biografia Literária

127

Marcos de início de carreira

“Prezada Sra. Ilka Brunhilde Laurito,

Esta carta vem do último subúrbio. Do Morro de Presidente Altino,

talvez seu desconhecido. (...) Também acontece que sou môço e faço

alguma literatura. Se é literatura mesmo, não sei. O fato é que tenho

logrado ganhar alguns prêmios e tenho escrito uns troços que alguns

escritores de meu convívio dizem prestar.”192

Com este tom humilde, no dia 1o de setembro de 1959, portanto aos

22 anos, o ainda iniciante João Antônio inicia um longo período de

correspondência regular com a cronista/poetisa/professora/cinéfila Ilka

Brunhilde Laurito. Natural de São Paulo, e doze anos mais velha que

João Antônio, Ilka Brunhilde seria até 1965 a interlocutora preferencial

do jovem escritor, com quem ele trocaria suas mais íntimas confidências,

tanto no nível pessoal quanto no que se refere a seus projetos literários e

estéticos. Nesse intervalo de seis anos ocorrem alguns marcos

fundamentais na evolução da história literária de João Antônio, e a

correspondência, se não nos fornece datas absolutamente precisas para

todos eles, nos dá ao menos balisas bastante nítidas para que possamos

situá-los num plano cronológico.

Como vimos no primeiro capítulo, a partir de 1956 João Antônio

começa a composição dos oito primeiros contos que mais tarde

aparecerão em seu livro de estréia, Malagueta, Perus e Bacanaço. Os

prêmios a que ele se refere na carta para Ilka são, com certeza, os

conquistados em concursos promovidos por jornais e revistas da época,

alguns já citados anteriormente e que merecerão referência mais

192

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 01/09/59.

Page 128: João Antônio: Uma Biografia Literária

128

aprofundada adiante. Mas o início da composição da novela título do

livro – última peça a ser escrita e também premiada antes de sua

publicação –, seria o primeiro marco a despontar na leitura da

correspondência. A partir das cartas com Ilka podemos deduzir que sua

produção começou por volta de março de 1960: “Amo. Malucamente

adoro três vagabundos numa noite paulistana com suas misérias,

camaradagens e um relógio de pulso. Trabalho na história Malagueta,

Perus e Bacanaço”.193

O segundo marco seria o incêndio de sua casa,

ocorrido em 12 de agosto de 1960 e mencionado em carta a Ilka que data

do dia 8 de setembro de 1960: “O incêndio não passou, Ilka. Inúmeras

vezes senti uma vontade bêsta de me sentar à mesa de um boteco

qualquer, e, ali ficar quieto, bebericando com serenidade, quieto”.194

O

terceiro marco seria, então, o início do processo de reescritura da novela

título que, como já foi discutido, foi o único texto do livro cuja reescritura

realmente esteve prestes a se tornar impossível e cujos trechos guardados

por Ilka foram fundamentais para que a obra ressurgisse na cabeça do

jovem escritor: “E ainda porisso (sic) lhe agradeço muito pela remessa

inicial de ‘Malagueta, Perus e Bacanaço’, que eu amo tanto! Prometo-lhe

devolver-lhe (sic) todas as cartas e todos os trechos. Só que me

demorarei. Não faz mal, não? / Estremeço diante dos pedaços do conto.

Estremeço, é o verbo. Sem literatura: é o verbo. Mande-me o resto, Ilka,

por favor. Não sei quando voltarei a êles. Sinto vontade, maluca vontade

de voltar a êles. Não é o momento e só eu posso saber quando será o

momento. Então, voltarei com fúria”.195

Vale dizer que, em carta de 13 de

setembro de 1960 ele agradece o envio de novos trechos por ela

encontrados em meio às cartas, fazendo ainda uma longa digressão

193

Idem, de 07/03/60. 194

Idem, de 08/09/60. Vale frisar que, pelo tom da carta, fica implícito que já haviam conversado sobre

o assunto, num encontro ou, mais provavelmente, por telefone. 195

Idem, de 24/08/60.

Page 129: João Antônio: Uma Biografia Literária

129

explicativa sobre a ciência e a grandeza existencial da sinuca e da

malandragem e incluindo a primeira versão da dedicatória que apareceria

anos depois no livro; era ele esquentando os motores para a reescritura.

Finalmente, em 10 de outubro de 1960, ele toma a decisão: “Chego à

conclusão que já me chegou o momento em que não escrever é,

decididamente, perder tempo. Meus marginais querem solução. Dá-las,

dá-las. Já é tempo de voltar à lida brava”.196

Este processo de refatura da

novela título, cheio de idas e vindas, de crises de confiança em sua

capacidade de levar o trabalho a têrmo e de arroubos de entusiasmo com

os resultados parciais, tem sua última menção nas cartas em janeiro de

1962, quando as sub-divisões “Pinheiros”, “Água Branca”, “Barrafunda”,

“Cidade” já estavam quase prontas e ele ainda reescrevia “(...)

integralmente a fase ante-final de Pinheiros e a volta à Lapa. Um

trabalhão. A reconstrução não foi nada fácil.”197

O fim da reescritura seria

o quarto marco. Uma carta assinada pelo editor Ênio Silveira, dono da

editora Civilização Brasileira, formalizando o compromisso de publicar o

livro e datada de 9 de julho de 1962 estipula uma baliza óbvia para o

término do trabalho de refacção da novela título.198

A chegada do livro às

livrarias do Rio de Janeiro, cidade sede da editora, ocorreria em maio de

1963, aproximadamente no dia 22: “No Rio de Janeiro, meu livro já está

sendo vendido há bem quinze dias. (...) Fax dois-três que Malagueta,

Perus e Bacanaço circulam nas principais livrarias paulistanas. Meu

lançamento e tarde de autógrafos se realizará na Livraria Teixeira, à Rua

Marconi número 40, no dia 21 dêste junho às 18,00 hs. É uma sexta-feira.

196

Idem, de 10/10/60. 197

Idem, de 27/01/62. 198

Esta carta foi encontrada nos arquivos da editora, que atualmente é um selo subsidiário da editora

Record.

Page 130: João Antônio: Uma Biografia Literária

130

Você receberá um convite”.199

O lançamento, obviamente, seria um

quinto marco.

Em seguida, outro marco neste período da carreira e do

desenvolvimento literário de João Antônio é a encomenda, feita pelo

mesmo Ênio Silveira, para que ele escrevesse um conto baseado no

mandamento bíblico “Não Roubarás”, que seria incluído na antologia Os

Dez Mandamentos, com publicação prevista para o ano seguinte, 1964.

Este convite é de fundamental importância não apenas porque João

Antônio integraria no projeto uma lista de ilustres escritores, como Jorge

Amado, Guilherme Figueiredo e Marques Rebêlo, entre outros, mas

também porque a novela que resultou da encomenda, “Paulinho Perna

Torta”, evidenciará, como veremos no capítulo 3 deste trabalho, a

profunda reorientação estética e estilística do escritor, coroando o mesmo

processo que separa, do ponto de vista formal, os oito primeiros contos

do livro de estréia de sua novela título. Foi impossível a essa pesquisa

situar com maior precisão a data em que a encomenda teria sido feita,

mas pelas cartas a Ilka fica-se sabendo que desde a época do lançamento

do primeiro livro João Antônio ganhara maior proximidade com o editor,

e mais, que um de seus “padrinhos” no meio literário, Mário da Silva

Brito, havia recentemente migrado para o Rio de Janeiro para trabalhar na

própria Civilização Brasileira: “(...) Mário da Silva Brito que está no Rio,

como você sabe, na posição de diretor editorial da Civilização

Brasileira”.200

Em junho de 64, finalmente, o último marco nessa fase

inicial de sua carreira como escritor; a novela “Paulinho Perna Torta”

acabara de ser terminada: “Quanto a mim, tenho algumas boas novas.

Terminei (uma semana antes do tempo fatal) a novela que Ênio Silveira

me pediu e confiou para constar da nova coletânea a ser lançada pela

199

Idem, de 07/06/63. 200

Idem, de 20/03/63.

Page 131: João Antônio: Uma Biografia Literária

131

Editora Civilização Brasileira, Os Dez Mandamentos. E nem foi

necessária a minha chegada ao Rio de Janeiro: uma vinda muito

providencial de Mário da Silva Brito a São Paulo permitiu-me que lhe

entregasse os originais de ‘Paulinho Perna Torta’. A coletânea seria

publicada no ano seguinte. Na segunda-feira passada, eu recebia um

telefonema da Civilização Brasileira, dizendo-me que a novela foi

recebida como ‘impressionante’. Ênio Silveira já autorizou a pagamento

do combinado sôbre os direitos autorais.”201

Este processo de seu lançamento no meio literário, e de

consolidação de seu projeto estético, foi impulsionado, em 1964, com sua

ida para o Rio de Janeiro, contratado pelo Jornal do Brasil, à época uma

dos mais importantes do país, como repórter especial.

Estes são os marcos que se destacam no rico acervo documental de

Ilka Brunhilde Laurito e que é preciso ter sempre em mente na leitura

deste capítulo. Voltaremos a eles todos, com maior vagar, no desenrolar

do trabalho. Antes, porém, uma vez que este se propõe a cobrir também

os aspectos mais relevantes na vida do jovem escritor, é preciso ainda

uma vez acrescentar e/ou retomar certos dados biográficos,

aprofundando-os na medida do possível, para que fique mais nítido o

entendimento que João Antônio tinha de si mesmo, dos que o cercavam,

da forma com que se relacionava com os outros (no âmbito pessoal e

profissional), de sua vocação literária e do papel da literatura em sua vida.

Algumas definições de literatura

Em setembro de 1959, João Antônio escreve a Ilka e agradece-a

por alguns livros de poesia que lhe havia presenteado: “Há bons poemas

201

Idem, de 08/06/64.

Page 132: João Antônio: Uma Biografia Literária

132

de que eu gostei e há outros. Bons, mas que não se afinam comigo.

Quando você me conhecer, talvez perceba que êste negócio da afinação é

mania minha. Não é afinidade não. É afinação”.202

Este primeiro trecho

traz novamente à tona dois aspectos importantes da relação de João

Antônio com a literatura. O primeiro diz respeito à já mencionada

simbiose entre música e literatura. Mas o termo afinação remete também

à literatura como uma forma de auto-conhecimento.

Em seguida, em junho de 60, uma nova definição de literatura

aparece nas cartas, quando ele discorre sobre uma nova história que está

escrevendo, a já mencionada “Gibóia”: “‘Gibóia’ será o nome de uma

história em pleno batifundo, com tôda a aparente imundície, a que eu

prefiro e recomendo se chame intensidade (grifos do autor). Sei que a

imagem é pretensiosa, mas eu gostaria de fazer de ‘Gibóia’ um conto tão

amarelo e tão vermelho quanto um quadro de Van Gogh! Vermelho e

amarelo, amarelo e vermelho como o desejo e a paixão dos homens e das

mulheres. E, às vêzes, nas madrugadas eu usaria um cinza-chumbo, para

as tristezas, vergonhas, surras, humilhações que as mulheres de ‘Gibóia’

sofreram, prostituindo-se.”203

Essa associação entre imundície e

intensidade, entre literatura e sofrimento, é um pilar da obra de João

Antônio, que pode ter resultado da influência de Graciliano Ramos sobre

ele, ou dos escritores russos que adorava, ou dos sambas suburbanos de

Noel Rosa e da velha guarda da MPB, ou mesmo daquilo que ele

chamava de “literatura de homem”.

No mês seguinte, outra carta vai além: “E contente com Deus, que

me deu êste coração e que me tem concedido a graça de sofrer pelos

caminhos que me indicou. Porque só escrevendo sou inteiro. Tudo é meu

então. (...) Se não escrevo eu não sou ninguém. Se não amar o que

202

Idem, de 23/09/59. 203

Idem, de 26/5/60.

Page 133: João Antônio: Uma Biografia Literária

133

escrevo, não escrevo. (...) Coisas passei e curti dores, que absolutamente

não eram para um rapaz de menos de vinte anos. Não eram. Minha vida é

tôda novelesca. E há fatias imundas, que não se contam na primeira

pessoa. Mas a natureza me premiou com o Dom da Contemplação diante

dos castigos e eu fui purgado.”204

Neste trecho, não apenas se integram

literatura e imundície exterior, leia-se miséria e injustiça sociais, mas

também a elas soma-se sua própria experiência biográfica. A escrita se

transforma num instrumento de purgação do sofrimento e das baixezas

que o jovem sentia dentro dele próprio. Diz ele ainda: “Melhor escrever

contos do que dizer que a vida não presta. Não? Todos sabem que a vida

não presta. Todos saberão escrever contos?”.205

A literatura se

transforma, inclusive, numa forma de se “afinar” consigo próprio, auto-

conhecendo-se e não mentindo: “Rememoro ‘Meninão do Caixote’,

mentalmente vivo a história e redescubro que ainda a amo e que não

minto quando escrevo”.206

Ou: “Trabalhando. Já descobri ou redescobri

pela décima vez, que se me vem alguma alegria nesta vida tonta, vem da

literatura. / Não negarei que sofro. Tristezas nêstes últimos dias. Fácil ver

que não sou ninguém como é fácil ver que sou um privilegiado. Escrever

é lindo e se nos custa, muita recompensa vem. Escrever é um Dom, Ilka.

Não é privilégio? Machuca, arrebenta, me larga quase chorando. Mas fico

inteiro. (...) Preciso dizer a mim mesmo o que sou no fundo de tudo, e há

de ser num conto, que é meu instrumento. Eu, eu, dolorido,

desengonçado, sublime ou maldito, profuso. Eu que não grite, que sofra,

que enxergue e ame, silenciosamente. Eu preciso me contar que apesar

dos tropicões, sou eu mesmo, quieto, orgulhoso. Humilde”.207

204

Idem, de 06/06/60. 205

Idem, de27/10/60. 206

Idem, de 19/12/60. 207

Idem, de 24/01/61

Page 134: João Antônio: Uma Biografia Literária

134

Pode-se especular, nesse entroncamento entre sua própria vida e a

literatura, que faz sentido sua divisão entre análise fria e análise

participante, que diferenciaria os dois tipos básicos de escritor: “Volto

após meses, aturdimento e confusão, à mesma consciência de escritor que

me fêz e que me deu ‘Malagueta, Perus e Bacanaço’, ‘Meninão do

Caixote’, ‘Fujie’ e outros gritos. À análise. Não a análise fria de um

Flaubert. Torno à análise participante, a que nasceu comigo, a coerência,

a justiça, que são sensos que eu sinto, desde menino, e que me faz (sic)

até hoje um estrepado, auto-fiscalização até mesmo do número de

cigarros fumados”.208

Essa procura por um espaço onde pudesse ser “inteiro”, onde seu

senso de verdade e de justiça aflorasse sem os freios das conveniências

cotidianas, pessoais ou profissionais, o torna simultânea e

obrigatoriamente um escritor cuja carga autobiográfica nos contos é

evidente. “Bicho complicado, meio vagabundo, meio escritor, devo para

meu bom governo verificar minhas origens. Maldito ou sublime ou

qualquer coisa menos empolada – isto sou. (...) Não obstante quando me

surpreendo enternecido na examinação de um personagem, dum isto ou

dum aquilo, duma rosa, por exemplo, me reconheço. Puro, nítido, ali

estou. Tanto faz ser uma rosa ou não rosa. Qualquer imundície desta vida

serve. Importante é estar enternecido para amar direito”.209

Muitos exemplos poderiam ser aqui enumerados para a

transposição de dados ou episódios biográficos do escritor para sua

literatura. A repressão materna contra o amor do filho pela sinuca em

“Meninão do Caixote”, por exemplo; ou a experiência no exército que

transparece em “Natal na Cafua” e “Retalhos de Fome Numa Tarde de G.

C.”; ou o know-how da vida sinuqueira evidente em “Malagueta, Perus e

208

Idem, de 03/03/61. 209

Idem, de 30/06/61.

Page 135: João Antônio: Uma Biografia Literária

135

Bacanaço”. Poderia-se citar ainda os depoimentos de duas das pessoas

que mais conheceram João Antônio na época em questão, Ilka Brunhilde

Laurito e Caio Porfírio Carneiro. Diz ela: “João Antônio era um malandro

ele mesmo. Era a realidade que ele vivia. (...) a freqüentação dele era a

malandragem, onde ele achava o pessoal mais autêntico, mais dentro da

realidade do que o de outra classe social. Não acho que ele ter se voltado

para o mundo da malandragem tenha sido uma opção artificial, não, acho

que foi fruto da vivência. João Antônio era profundamente

autobiográfico, ele escrevia o que ele vivia. (...) Tudo é tirado da vida. Os

nomes ele tirava da realidade, eram os malandros que ele conhecia, as

prostitutas que ele conhecia”.210

Caio Porfírio Carneiro vai ainda mais

longe: “Eu dizia para ele: ‘João, você é mais escritor do que ficionista.’

(...) Daí porque ele fazia literatura voltada para o jornalismo, ele não fazia

ficção pura”.211

O próprio João Antônio dizia que: “Realmente não fui eu

quem os criou [aos seus personagens]. A vida foi quem. E depois me deu.

Deu por dar, simplesmente. Deu de graça, de presente. Eu os conheço

todos, eles e elas ainda vivem por aí, se agitam, se arrastam nas ruas”.212

João Antônio, certa vez, dando conselhos a Ilka, deixou

transparecer em parte seus procedimentos e, ao fazê-lo, mostrou o quanto

de fato escrevia preso à experiência direta e à sua biografia: “Escreva

sôbre a necessidade do amor que talvez seja tão intensa e ainda mais

sofrida mensagem. Fale de solidão, de pessoas sós, fale do valor que tem

o correio para você e esteja certa – quantas criaturas não se sentirão

identificadas, prontas a amar o que você escreveu. Escreva crianças,

adolescentes que se vincularam a você, que dependeram, que receberam e

depois se foram. Naturalmente, sem nenhuma crueldade. Como é na vida.

Escreva suas amizades e até suas contrariedades, que a vida é uma coisa e

210

Depoimento de Ilka Brunhilde Laurito, colhido em maio de 2000. 211

Depoimento de Caio Porfírio Carneiro, colhido em maio de 2000. 212

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 23/09/59.

Page 136: João Antônio: Uma Biografia Literária

136

é outra. Não se envergonhe e diga na primeira ou terceira pessoa, que

você é muito sensível e que sai do cinema torta, amassada, pequenina. E

não esqueça de dizer, por favor, que você tem vontade de morrer. Tenha

coragem e descreva suas orações e o seu oratório, mostre o seu quarto, o

seu amor às bonecas, apresente suas vizinhas de olhar pensador e amores

frustrados. Fale dos palhaços que você ama e que conversa com êles.

Mostre-os, um escritor mostra o que tem. Escreva que você ri em grupo, é

sociável, alegre, agita, convive; mas que em seu quarto você costuma

chorar, quieta. Pequenina porque não era toda a verdade. / Confesse que

foi-lhe necessário fugir da cidade e voltar a ela, como se volta à casa com

vontade de silêncio. / Se você fala sozinha, confesse; faça uma crônica

olhando-se no espelho, mostre o mistério – você tem muito mistério”.213

Mas é preciso atentar-se para um sentido mais profundo dessa

projeção autobiográfica defendida e praticada por João Antônio, que não

se limita a uma ou outra experiência direta transposta para o plano

ficional, ou a um determinado ambiente conhecido e recriado

literariamente. João Antônio quase sempre imbui seus personagens de

uma ideologia ou concepção de vida que são as suas, confundindo-se com

eles na medida em que os transforma em porta-vozes de sua revolta

social, ou de seu senso de justiça, ou de suas posturas diante da vida. No

caso dos seus “merdunchos”, que era como chamava as figuras do

lúmpem-proletariado que focalizava em seus textos, o sub-texto

ideológico é óbvio. Mas as concepções de vida merecem ser identificadas

igualmente, ainda que sejam um pouco mais sutis. Um caso gritantemente

explicitado pelo próprio escritor é o do personagem Paulinho Perna Torta.

Diz João Antônio em carta a Ilka: “(É Paulinho Perna Torta e um nôvo

João Antônio quem lhe escreve, num binômio muito bem encontrado: o

binômio que evita qualquer tipo de dissimulada, de coisa escondida). /

213

Idem, de 27/01/62.

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137

Meu Paulinho Perna Torta me ensinou muitas coisas. Porque, para criá-

lo, eu precisei vivê-lo, eu precisei ter mil amantes prostitutas, eu precisei

descer a detalhes, fumar charutos holandêses, da marca ‘Duc George’.

(...) E fazendo Paulinho, também me ensinei. (...) Aprendi fazendo

Paulinho Perna Torta a lição da franqueza absoluta”.214

Vocação para o conflito

O desejo de se escrever por inteiro em sua literatura, sem meias

palavras, e de transformá-la num meio de promoção da justiça,

transforma-a num campo para que pudesse fazer esta última com as

próprias mãos: “Raiva, Ilka. Não há um dia em que não apareça um tipo

para eu detestar. As vontades do animal, justificáveis, inteiramente

humanas, são abafadas, às vêzes, com um abraço. (...) / Mas eu irei à

forra desta cidade e dêstes homens e destas mulheres. Êles hão de ver em

literatura. Cedo ou tarde, sem nome falso, sem abraço falso, sem outras

dimensões, sem sátira. Êles mesmos. Especialistas em matar qualquer

sensibilidade, intoxicados, narcotizados. Monstros. São Paulo é habitada

por monstros”.215

A expressão “vocação para o conflito” usada para caracterizar a

atitude do escritor em relação à literatura foi criada pelo prof. Antônio

Arnoni Prado, em seu texto sobre o “parentesco” literário estabelecido

entre João Antônio e Lima Barreto, que diz: “Um primeiro veio de

convergência possível poderia estar na disponibilidade ideológica para o

conflito, que define, tanto em Lima Barreto quanto em João Antônio, não

apenas a definição do espaço do texto, mas particularmente os modos de

214

Idem, 06/06/64. 215

Idem, de 28/03/61.

Page 138: João Antônio: Uma Biografia Literária

138

elocução no argumento”.216

João Antônio parece dar uma ligeira

confirmação para essa hipótese, ao dizer: “Sabe, Ilka, eu sou muito

rasgado na forma de falar. Rasgo o verbo”.217

Mas, além de explorar essa idéia no âmbito da sua produção

literária propriamente dita, não seria despropositado aplicá-la também em

termos biográficos. Um aspecto recorrente na correspondência com Ilka,

e que revela as implicações dessa índole voltada para o conflito no

cotidiano do escritor, é sua dificuldade em conciliar a atividade literária

com outras profissões. Desde 1959, por exemplo, João Antônio

aproximava-se do mercado publicitário, a princípio provavelmente como

redator free-lancer e, a partir de algum ponto no intervalo entre janeiro e

junho de 1960218

, como funcionário regular da Agência Pettinati de

Publicidade.219

Mas já em junho daquele ano sua revolta contra o serviço

publicitário começa a aparecer: “É uma a minha vontade e um o meu

propósito – não permitir que nada me afaste da literatura. Nem profissão,

nem mulheres, nem nada”.220

Em novembro do mesmo ano, ele

diferencia: “Redigir é uma coisa, escrever é outra. Há muita diferença

entre os dois verbos. Redigir é fácil, escrever é difícil. Redigir é ruim,

escrever é bom. Quando um escritor redige um anúncio de publicidade (

216

Prado, Antônio Arnoni: “Lima Barreto Personagem de João Antônio”, in Remate de Males, no 19,

Departamento de Teoria Literária IEL/Unicamp, Campinas, 1999. 217

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 23/09/59. 218

Em carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/01/60, João Antônio menciona o fato de ainda estar

desempregado. 219

Em 10/11/59, envia uma carta a Ilka em envelope da Affonseca Publicidade. Em 20/05/60, escreve a

ela já em papel de carta da Pettinati, com a marca do departamento de “redação”. Segundo Caio

Porfírio Carneiro, em seu depoimento colhido em maio de 2000, a agência ficava em frente ao antigo

Mappin, no centro da cidade, e o emprego lhe fora arranjado por alguém chamado Jorge Isi. João

Antônio está longe de ter sido o único escritor de sua geração a se colocar no mercado de trabalho

como “profissional do texto”, segundo categoria definida por Antônio M. C. Braga. Diz este

pesquisador: “Ainda que quase nenhum deles [os escritores da geração 70, da qual João Antônio faz

parte] sobrevivesse exclusivamente da literatura, em sua quase totalidade eles encontravam sustento na

produção de textos jornalísticos, publicitários, de roteiros televisivos, radiofônicos, etc.” Braga,

Antônio M. C.: Profissão Escritor: escritores, trajetória social, indústria cultural, campo e ação

literária no Brasil dos anos 70, p. 5, tese defendida em 2000, no Departamento de Sociologia da

FFLCH – USP. 220

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/06/60.

Page 139: João Antônio: Uma Biografia Literária

139

se êle é escritor), êle se prostitue”.221

Mais adiante, João Antônio

acrescenta: “Uma vez, Maurice Chevalier declarou que o maior prazer de

sua vida lhe chegava através do trabalho. Esqueceu-se de dizer que êle

gosta do trabalho que faz. / É velho dizer-se que o trabalho enobrece. /

Talvez seja novo dizer que o trabalho, quando não gostamos,

acanalha”.222

Em outros momentos, ainda, ironiza a própria condição:

“Pois eu não devia estar alegre, trabalhando quieto, fazendo êste folheto

para o Super Cimento Portland Irajá, quieto, trabalhando? Claro. (...) Se

eu fôsse um sujeito menos sensível, a esta hora estaria ali, metido no

folheto do Cimento Irajá, dizendo mentiras sobre o Cimento Irajá. As

mentiras, eloqüentes, seriam lidas por muitas pessoas, homens de

indústrias e de negócios, superficiais como o meu folheto. Mas sabem

ganhar dinheiro e se dizem homens realizados. Eu não me realizei em

nada”.223

E depois resume sua opinião sobre a atividade publicitária:

“Uma agência de publicidade é exatamente uma casa de apostas”.224

Em

outros momentos, o escritor e o publicitário entram em conflito no nível

mais profundo da sensibilidade, ainda que levado na brincadeira, como

quando ele procura o título para seu primeiro livro: “Honestamente, Fujie

e Outros Contos era um título bolado e cuspido pelo publicitário João

Antônio Ferreira Filho, pessoa muito distante, objetiva e insolente na

maioria de seus ‘slogans’, ‘copys’, ‘lay-outs’ e outras coisas. João

Antônio só é pessoal e inteiro e êle em Aluados e Cinzentos. Para além de

ser vendável ou não, bonito ou feio, é um título e tem uma

personalidade”.225

Havia momentos, contudo, em que procurava relativizar a

legitimidade de sua insatisfação: “Ilka, viver é viver e aprender. Não devo

221

Idem, de 04/11/60. 222

Idem, de 11/11/60. 223

Idem, de 31/10/61. 224

Idem, ibidem. 225

Idem, de 10/02/62.

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140

exigir muito da vida, apenas devo me atilar. Um sapateiro deve fazer bons

sapatos. Sapatos bons, bem feitos, dão trabalho. / Não me acanalho. Até

redigindo anúncios não me acanalho”.226

Mas logo a revolta contra a

publicidade voltava: “[tenho trabalhado] Muito, Ilka, creia. E lutado

também para que a publicidade não mate o escritor. O escritor é êste

menino que eu trago por dentro; não pode morrer. À luz do dia ou do

refletor devo escrever. Fazer alguma coisa que não dizer que aquêle é o

melhor conhaque, o melhor cigarro ou o novíssimo fio ondulado que

pode produzir as mais lindas camisas para o verão”.227

Além de uma questão de acanalhamento ou não, a publicidade

tomava-lhe algo talvez igualmente precioso como escritor, o tempo:

“Desculpe se não a procuro para encontro. Ando lotado, o que já disse.

Estou aproveitando uma hora do almoço para lhe escrever. / A

publicidade já não me deixa fazer coisas boas que eu quero. E de que

necessito”.228

Mas não só a publicidade o revoltava. Além de um bico como

doleiro229

, pelo menos um outro tipo de trabalho o colocou frente à frente

com os dilemas éticos que sua concepção de escritor e de literatura lhe

trazia. Durante algum tempo do ano de 1960, João Antônio escreveu um

romance como ghost-writer para um contratador não identificado nas

cartas. A primeira referência a esse bico ocorre em agosto daquele ano:

“Briguei com o sujeito para quem escrevo capítulos de romance. Pedi o

dôbro e êle não quis. A maré ia melhorando, quando piorou mesmo. O

homem aceitou por fim”.230

Novamente, a constatação de suas

necessidades para a sobrevivência cotidiana vai de encontro à ética e à

função moralizante da literatura: “João Antônio se prostitui com menos

226

Idem, ibidem. 227

Idem, de 25/08/62. 228

Idem, de 22/01/63. 229

Mencionado em carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/09/60. 230

Idem, de 08/08/60.

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141

desonestidade. Faz anúncios, recebe. Faz capítulo de romance, um outro

assina, êle recebe fácil. Dinheiro é bom quando se necessita. Melhor

ainda quando chega adiantado com a desculpa de que é incentivo. Olho

para a cara balofa do comprador. Como é rico e pobre! / Mas o nojo vai

sumindo, sumindo. Há uma consolação, uma resposta íntima: pior seria se

me pedissem um artigo político”.231

Além da prostituição profissional,

outro perigo estava embutido no trabalho de ghost-writer, o de gostar do

resultado, o de ver sua sensibilidade estética alterada involuntariamente:

“Aquele antepenúltimo capítulo foi horrível. O diabo, sabe, é que acabei

gostando dêle. Acabei sentindo o que fazia e nas doze páginas

datilografadas é possível que haja ficado alguma coisa minha, embora

tenha evitado, torcido meu estilo, minhas palavras, meu jeito, enfim, de

ser quando escrevo. Eu não queria sentir, mas como acontece a certas

prostitutas, acabei sentindo o que fazia, acabei gostando. / Fiquei com

raiva de mim, da minha sensibilidade, que não ficou (quando deveria),

embotada, quieta. Porcaria! / Ilka, é muito mal escrito, propositadamente.

Escrevi-o nuns três-quartos de hora. É muito dialogado, leva a lugares

comuns, é chinfrim, propositadamente. É triste prostituir-se. Mas gostei. /

Superficial, superficial. Falso como os nomes dos personagens –

Elisabeth, Marcos, Cid, dr. Fernando. Tudo porco, arranjado. (...) Mas

gostei do maldito, que me deu desgôsto e dinheiro, que me deu

derivados”.232

Ao que tudo indica, assim como sua autêntica produção literária

era o espaço de auto-afirmação para o jovem João Antônio, onde seu

senso de justiça, suas ideologias e concepções de vida podiam aparecer

integralmente, a publicidade e este romance de aluguel eram, sobretudo,

espaços de humilhação. Não por acaso a prostituição é um termo

231

Idem, de 08/09/60. 232

Idem, de 04/11/60.

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142

constante de comparação. As profissões que haviam se aberto para ele,

embora muito melhores do que já haviam sido, considerando que já fora

office-boy, bancário, etc, eram-no apenas superficialmente. No fundo,

implicavam no mesmo sacrifício, isto é, o de não fazer exclusivamente o

que lhe fosse natural e espontâneo. Por isso João Antônio voltava suas

baterias contra o emprego na Pettinati e contra aquele que lhe contratara

para ser ghost-writer. O dinheiro, que muitas vezes era bem

recebidíssimo, em outros momentos lhe causava repulsa, pois era o

resultado de sua canalhice: “Oito mil cruzeiros espalhados na pequena

mesa. Um passatempo bêsta. Uma nota, outra nota, a mesa tomada. Eu

olhando. Analiso. / Pego no dinheiro. Sinto nota por nota nas mãos.

Como é pegajoso, como é sujo! Como intimida, enoja, atrae, como não

presta e como é bom! E humilha. / Como a humanidade a esta altura dos

acontecimentos admite ainda pegar em dinheiro, essa imundície? /

Guardo as notas, arrumo por valor, bebo, resmungo um palavrão. Apalpo

as notas. Amanhã as utilizo”.233

Mas não bastava ser escritor para que um homem fosse

considerado, por João Antônio, uma pessoa decente. Longe disso. Sua

vocação para o conflito, que aqui combina expectativas idealizantes do

métier com recalque social e arrogância, o joga contra os próprios colegas

das letras, quando por um motivo ou por outro não concorda com a

“atitude” dos mesmos. “Uma coisa é certa – ninguém me transformará

num escritor de porta de Fazano, tomando grandes porres, inúteis porque

estudados, à sombra de frases em estrangeiro, macaquices infinitas,

modas gostinhos e afirmações assim: ‘Nós, nós os contistas...’. / Eu

gostaria muitíssimo de que êsses meus contemporâneos, promovendo

coquetéis, tardes de autógrafos, modismos e manias para escorar A

GRANDE AUSÊNCIA DE TALENTO, vivendo de relações públicas, ou

233

Idem, de 03/11/60.

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melhor: da adulação comum, um endeusando o outro, eu gostaria de que

essa nojeira... fôssem todos para a casa do diabo”.234

Em outra carta, ele diz duvidar até mesmo dos elogios que vinha

recebendo: “Literatura me acena. Vou contente. (...) Perambulo e é tudo

egoísmo. ‘Você só tem razão. Você é bom. Você é fabuloso.’ Quando, na

verdade, gostariam de xingar-me a mãe.”235

É essa índole em certa medida belicosa que o levava por exemplo a

desprezar concursos literários, embora viesse ganhando vários desde

1957, e a nutrir verdadeiro ódio a coquetéis literários, do qual nas cartas

pelo menos duas menções merecem destaque: “Ontem. Festa e coquetel

na Livraria Francisco Alves em lançamento do novo livro de Jorge

Medauar. Um sucesso. Jamais vi coquetel tão concorrido. A sala estava

entupida. (...) Mas havia muitas coisas tristes naquela reunião. Muito

coquetismo (para não escrever uma palavra feia). Muito imbecil e muito

nulo falando da vida dos outros. Enfim... / Mingou a bebida e os

basbaques foram embora”.236

A segunda referência, esta realmente

notável, ocorre dois meses depois: “Um coquetel mais estúpido aquêle da

Revista Brasiliense! Estúpido ali é apelido. Idiotice por todo canto.

Coquetel literário não tem finalidade literária. Tapeação, esculhambação.

Espécie de prostituição. / Já entendi e para sempre. E se voltar a coquetéis

há de ser com os intentos de filar uísque, flertar com mulher dos outros,

marcar cópula, embebedar-me. Aos tais, definitivamente, eu não posso

retornar com o mínimo de seriedade. O de ontem era uma opereta

bufa”.237

Como se vê, para quem tinha em relação à literatura tão grandes

expectativas, era difícil conviver com o caráter mundano dos

234

Idem, de 17/10/59. 235

Idem, de 06/10/60. 236

Idem, de 21/06/60. 237

Idem, de 08/08/60.

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144

lançamentos. A leviandade que enxergava em certas pessoas o indignava.

Era a ética da literatura sendo quebrada. Mas também se poderia supor

que houvesse, no jovem escritor que a cada conto escrito recebia um

prêmio, mas que no entanto ainda não conseguira ter seu livro publicado,

uma revolta em ver pessoas não próximas a ele e teoricamente de menor

talento mais bem colocadas no meio. Uma revolta misturada à inveja e a

um possível recalque social. Uma forte necessidade de ser respeitado

como escritor, ou talvez fosse melhor dizer como criador. Isso, a meu ver,

é o que dá a entender a passagem seguinte da mesma carta: “Uma besta

quadrada uíscada, falando por todos os cotovelos, veio me dizer que é

isto, e é aquilo, e também é aquil’outro. Eu estava entre Paulo Dantas,

Caio Porfírio Carneiro e Jamil Almansur Haddad. (...) / A besta quadrada

só vomitava asnice. Eu lhe falei, olhando os livros de uma estante:

– O senhor é quem?

– Sou fulano, diretor disto e daquilo, membro atuante daquilo e

daquil’outro, presidente de tal firma, sou julgador de arte, sou consultor...

E eu o interrompi, dando de olhos no colarinho torto de Jamil:

– O senhor também é presidente da República dos Estados Unidos do

Brasil?

– Meu nome é João Antônio, faço contos, redijo publicidade, o

Dantas, aí, vai se publicar em livro. Sou um pixote, não sei nada. Tenho

muitas coisas que aprender. Mas sei que não sei e fico quieto na minha

ignorância, na minha falta de estudos, nas minhas incongruências. O

senhor é muito importante e não deve conversar comigo. E agora, com

licença, porque ninguém lhe chamou e eu preciso conversar com meus

amigos.

(...)

Ilka, aquêle coquetel literário era o clímax dos coquetéis literários.

Ô regular mediocridade dos colarinhos duros dos basbaques! Gente que

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145

joga no vigésimo quinto esquadrão da literatura nacional, dita cátedra,

cita Proust. Todos entendem de tudo. São doutores, todos. São donos da

bola. Grandes talentos reunidos em instrutivo bate-papo, muito embora

ninguém precise aprender mais nada. São doutores em tudo. Não há

tímidos, há sábios. Não há problemática porque já está tudo

excelentemente bem solucionado. Pois é... Ali, tudo excele!”.238

Como se vê, havia um duplo movimento dentro do jovem escritor.

De um lado, os “doutores de literatura” o revoltavam por

instrumentalizarem a literatura como forma de atingir prestígio social.

Mas, por outro, a orgulhosa modéstia do escritor parece trair um certo

complexo de inferioridade. Ambos os aspectos alimentavam sua

“vocação para o conflito”. Uma carta de 1961, se não servir como

comprovação dessa hipótese, serve ao menos como metáfora: “Adormeci

na poltrona e sonhei um sonho bonito, daqueles sonhos bons que a gente

sonha aos dez anos. / Eu vigiava e estava em Campo Grande e fazia

poucas horas e eu jogava e ganhei. Estava com côres, sorria, jogava numa

roda de homens ricos que ganhavam ou perdiam sorrindo. Ganhei oitenta

e oito mil cruzeiros e fui para o hotel onde me banhei. Dormi.”239

A idéia

de estar ele em um jogo de homens ricos, para quem a seu ver o dinheiro,

ou o mérito literário, não era o mais importante, quando ele próprio era

bastante atormentado pela busca da excelência literária, parece reproduzir

com fidelidade alegórica o sentimento de João Antônio em relação aos

coquetéis literários e aos bem colocados no meio das letras.

Sob este ponto de vista, é preciso que se diga, até mesmo para

alguém que idealizava de forma tão radical a prática literária, a

valorização social que o relativo sucesso literário lhe trazia não passava

despercebido. E disso ele gostava. “Representam [as cartas que trocou

238

Idem, ibidem. 239

Idem, de 31/07/61.

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com Ilka] uma espécie multicor e em diferentes papéis, uma espécie de

testemunho da minha solidão. Contam, mais do que a minha própria

literatura, a minha literatura. A vontade enorme de crescer, a luta que no

fundo outra coisa não era que a fuga do anonimato. / Agora, Malagueta,

Perus e Bracanaço ganhou prêmios, editor, referências e antologias”.240

O sucesso, porém, tinha incômodos. Intimidou a própria Ilka,

mulher informada e ela própria escritora. Em resposta a esse momento de

fraqueza de Ilka, João Antônio cita as palavras dela: “Mas não passe por

cima: depressa, antes que você fique famoso demais e se esqueça de

mim” – para então responder – “Você está estranhando o João Antônio,

Ilka? (...) De duas, uma: você estará brincando na carta ou estará

pensando que o fato do meu nome andar por aí, nas antologias boas e

autênticas, me subirá à cabeça e eu venha me comportar e a me sentir um

homem importante”.241

E se intimidou a Ilka, que efeito teria tido na sua

família, em especial na sua mãe pouco letrada, nos parentes, nos amigos

de Presidente Altino, nos malandros e nas prostitutas seus amigos? Ele

deve ter pensado nisso.

O sucesso, que chegou antes mesmo do livro ser publicado, outras

vezes vinha acompanhado por uma nota de melancolia: “Em São Paulo

sou procurado. Comunico-me diariamente, e almoço e janto e tomo cafés

e tomo outros líquidos ao lado dos maiores nomes da literatura da terra,

vivo entre artistas e publicitários. Ênio Silveira esteve em São Paulo e me

telefonou e conversamos até as tantas. Tratam-me quase de igual para

igual. Sou respeitado, meus patrões [da Pettinati] pedem-me por favor,

desperto simpatias, falando envolvo, os meus colegas olham-me com

certo respeito. Meu nome já vale. Ganho elogios, abraços, almoços,

240

Idem, de 12/10/62. 241

Idem, de 06/07/64.

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dinheiros, mas a menina que faz faxina cá no escritório vive cantando e

eu não”.242

Talvez essa nota de melancolia se explique porque o sucesso

precoce, o reconhecimento de seu talento antes mesmo da publicação do

livro, o fez querer ainda mais: “As teimosias dos meus dezessete anos

andam agora menos ferozes e mais esclarecidas. O diabo é que o Prêmio

Fábio Prado e outros prêmios e publicações privilegiadas e condição

profissional, acenderam de vez a minha independência. Que nem sei

quem é que vai entender”.243

Ou talvez porque, para alguém nascido no subúrbio de Presidente

Altino, de família absolutamente humilde, ascender na sociedade

implicasse em certas mudanças na vida que o deixavam inseguro. Em

1962, ele reclama que “Tantas coisas se passam comigo, Ilka! Os prêmios

e o Contrato de Edição já em meu poder, assinado e reconhecido, a

subida profissional, o trabalho dobrado. Como cansa! Como,

especialmente, me afasta de vocês, do cinema, do teatro, e até da vida. A

vida como eu gostaria de viver. Mais simples, mais observada, mais

andada, a pé, de ônibus, de barco. (...) O fato líquido, Ilka, é que me

construo. E até corro o risco de me tornar um homem importante, visto

que já me comparam a Antônio de Alcântara Machado, o que cá entre nós

que ninguém nos ouve, é mero exagero. E, sobretudo, Ilka, Deus me livre

e guarde de me tornar um homem importante!”.244

Era como se a relativa consagração amenizasse seu tônus

combativo, arrefecendo sua vocação para o conflito.

Mas todas essas hesitações em relação ao sucesso literário não

eliminam o evidente orgulho e a alegria do jovem João Antônio. A

ascensão profissional e social via literatura era a única que lhe permitia

242

Idem, de 05/11/62. 243

Idem, ibidem. 244

Idem, de 25/08/62.

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melhorar sua condição sem abandonar o universo da malandragem, da

prostituição, da bebida e dos muquinfos que ele jamais deixou de gostar e

de freqüentar. É que apenas uma personalidade tão complexa não poderia

deixar de viver esse sucesso sem criticá-lo de alguma maneira,

vacinando-se contra a vaidade comum das gentes e mergulhando na sua

própria modalidade, absolutamente particular, de humildade orgulhosa.

Idiossincrasias de um jovem escritor

A relação ambígua de João Antônio com o meio literário, amado e

odiado, que despertava nele inveja e desprezo, ambição material e

aspirações existenciais, de um jeito ou de outro se verificava em vários

campos de sua vida particular. Não apenas sua imagem como escritor o

fascinava e incomodava, como homem também. Em pelo menos três

cartas esse estranhamento íntimo chega a se manifestar em relação a sua

própria imagem física, ora porque vê em seu rosto uma expressão

ressacada, ora porque se percebe desarmado de qualquer pose, ora porque

está profundamente melancólico.

“Olho-me no espelho e os olhos estão acanalhados, feios, tristes. /

A cara redonda expõe bochechas inchadas, pés de galinha nos cantos. (...)

Encaro-me. O espêlho devolve-me a cara dura, pesadona. Rio como um

tonto, digo baixinho:

– Desculpe ter nascido”.245

Outra vez, ele relembra o fato de ter sido flagrado por uma

fotografia: “Uma vez, eu tinha vinte e dois anos, Kodama, um amigo

japonês e fotógrafo, me pilhou e me fotografou. Ali eu me via,

estranhamente, eu mesmo. Não havia pose, não havia eufemismo. Aquela

245

Idem, de 25/12/60.

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fotografia será transformada em prosa. / Tenho a obrigação de me aceitar

como sou. Não há jeito”.246

“Olho minha vida e a dimensão me choca. Olho-me no espêlho e

os olhos ficam mais úmidos.”247

Há, em outro nível, mesmo para seus leitores e admiradores de

hoje, uma certo distanciamento entre a imagem que viria a se cristalizar

de João Antônio nas fases posteriores de sua vida e a do jovem escritor e

publicitário do início dos anos 60. De hábito, a idéia que se tem dele é a

do escritor despreocupado com sua aparência, perambulando de short e

chinelos pelas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo à procura de

figuras e experiências que pudesse utilizar em seus textos, sempre indo

encontrá-las nos ambientes mais populares ou até mesmo sórdidos.

Mas Caio Porfírio Carneiro frisa que, na época em análise, essa

figura despojada de vaidade não havia ainda conquistado sua hegemonia.

“João Antônio, novo, com 22 anos, estava sempre bem vestido, sempre

com as mãos no bolso, gordinho, rosto cheio.”248

E, em outra

oportunidade, completa: “Tudo o que rompia com os padrões

estabelecidos, com a falsa moral burguesa lhe agradava, embora andasse

sempre bem vestido e engravatado”.249

Outro conhecido, Lourenço

Diaféria, ao narrar seu primeiro encontro com João Antônio, dá uma idéia

mais clara da dicotomia em sua figura: “Naquela manhã da apresentação,

o escritor João Antônio vestia-se com proverbial elegância, terno

completo, calça, colete, paletó, barba feita com gilete azul, rosto

escanhoado, perfume de gardênia. João Antônio fazia boa figura. Mas,

mesmo sem querer, ele fazia de sua elegância e de sua aparência bem-

comportada o contraponto da malandragem natural e sobrenatural de suas

246

Idem, de 24/01/61. 247

Idem, de 01/09/61. 248

Depoimento de Caio Porfírio Carneiro, colhido em maio de 2000. 249

Carneiro, Caio Porfírio: “Meu perfil de João Antônio”, in Remate de Males, no 19, Departamento de

Teoria Literária IEL/Unicamp, Campinas, 1999, p.14.

Page 150: João Antônio: Uma Biografia Literária

150

criaturas esfoladas pelas laminas da desproteção social”.250

O próprio

João Antônio, numa das cartas, descreve-se assim: “Se eu fôsse visto por

um imbecil qualquer, êle diria que sou um sujeito infinitamente feliz. A

barba bem feita, houve massagem antes e houve creme após. O terno de

casemira inglêsa – treze-catorze contos no alfaiate. O sapato de três

contos, polido. A gravata é linda. Emagreci uns quatro-cinco quilos, o

que me confere certa elegância. As meninas suburbanas olham-me o

terno e os cabelos (...) Ah, ia me esquecendo – a camisa é de cambraia de

linho”.251

Para ele próprio, a gravata era um símbolo importante da briga que

ocorria dentro de si mesmo: “Andam querendo me taxar de importante.

Dizem que há substância e essência dentro de mim, que sou uma fonte e

que serei fatalmente um dos grandes homens do país... / Mas de repente

apareço no escritório sem gravata. / Eles não me entendem e eu entendo

claramente que não me aceito de outro jeito”.252

Ou quando diz:

“Também dei para trajes esportivos e quero acreditar que fico mais môço.

Nem só de literatura vive o homem”.253

Poucos anos mais tarde, quando o sucesso do primeiro livro o

catapultou para o cargo de repórter especial do Jornal do Brasil, ele volta

a tocar no assunto: “[No Rio] Não necessito paletó, gravata, sapatinhos

polidos”.254

Muito provavelmente as convenções sociais obrigassem um

publicitário a usar terno e gravata no início dos anos 60. Ou talvez os

patrões na Pettinati o fizessem. Porém, explicar essa atração e repulsão

pelo terno e gravata apenas por fatores externos a sua personalidade é

250

Diaféria, Louranço: “Do Joãozinho ao João Antônio”, in Remate de Males, no 19, Departamento de

Teoria Literária IEL/Unicamp, Campinas, 1999. 251

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 12/11/60. 252

Idem, de 05/11/62. 253

Idem, de 18/02/62. 254

Idem, de 31/03/65.

Page 151: João Antônio: Uma Biografia Literária

151

uma opção um tanto reducionista. Ao que parece, a “elegancia

proverbial” de João Antônio era um salvo-conduto que ele encontrara

para se inserir socialmente, ainda que nunca tenha abandonado a vida

boêmia da malandragem e do baixo meretrício. Mas não apenas como um

pedágio social, e sim como algo interno, espontâneo e sincero: o desejo

de ser aceito e bem quisto. Porém, à medida que sua posição como

escritor vai se firmando, novamente a vocação para o conflito se

manifesta, e sua aparência mais desleixada vira um instrumento de auto-

afirmação. O que, é claro, não se dá sem algum conflito pessoal.

Deixando um pouco de lado a questão da elegância, mas ainda na

tentativa de expor com nitidez a dificuldade do jovem João Antônio em

definir seu perfil, vale a pena contrapor algumas auto-definições

presentes nas cartas para Ilka. Algumas delas são simplesmente

contraditórias, em que ele vê as coisas boas e ruins de sua personalidade,

sem entretanto saber apontar a predominância de umas ou de outras: “Vá

perguntar quem é João Antônio e talvez ainda êles [os amigos do

passado] se lembrem do menino moreno, de cabelos crespos, que lhes

parecia sério e que diziam ter sombrancelhas de gente ruim. Deles se

poderá ouvir as piores e as melhores coisas sôbre o João Antônio”.255

Claro que essa indefinição de predominância em seu caráter pode

vir temperada por um momento melhor ou pior de auto-estima, por

exemplo quando recebe alguns convites para publicar seus contos e diz:

“Hoje eu me quero, Ilka. Como sou, com tudo que tenho de bom e de

ruim, e que ninguém me deu. Só meu o bom e só meu o ruim porque

meus. Sofrido, vivido, tangido, amado”.256

Mas a indefinição profissional continuava sempre colocando-o

diante de dilemas que afetavam sua opinião de si mesmo: “Que pessoa é

255

Idem, de 06/06/60. 256

Idem, de 19/05/62.

Page 152: João Antônio: Uma Biografia Literária

152

essa pessoa aí acima? [ele próprio] / Um amontoado, todo estúpido. (...)

Tudo é uma imundície muito grande. Tudo é tapeação. A minha profissão

é uma tapeação. Sou um malandro que me prostituo para receber

ordenado de quinze em quinze dias. Estou cansado, Ilka”.257

Outro sintoma desta indefinição em sua auto-imagem é o fato de

ora ele se refugiar na figura de um homem pouco ambicioso, como o seria

o cágado que achou na rua e levou para casa: “Sou um homem simples,

avêsso a grandezas e importâncias. Prefiro criaturas e viventes que se

mexam com humildade, que tenham tolerância, humanas e boas como o

cágado. Que se alimenta da sua persistência e solidão, que é um bichinho.

(...) Eu lhe conto essas coisas, Ilka, da condição de cágado e da minha

condição, porque você é Ilka”.258

Ora as fantasias de glória se fazerem presentes, ainda que

atrapalhadas pelo medo de seu temperamento e de sua vida desregrados:

“Não sei se chegarei a ‘big-shot’ de publicidade. Possívelmente, antes

terei vomitado até os sapatos pelo caminho. Porque apenas digo que

aquela é a melhor marca de tôrno mecânico de precisão. Prefiro ser o

cobra nos salões de sinuca. O homem que tem amante negra, apenas

doméstica e analfabeta cujo sobrenome nem êle sabe (...).”259

Em outros momentos, procura forçar-se a uma auto-valorização e,

meio brincando com sua angústia, remontar às origens para se entender:

“Necessário que eu me grite que tenho amigos, bons amigos, que sou

simpático, por isso tenho amigos, tenho minha mãe que me quer, tenho a

ternura de Virgínio, tenho uma porção de outras coisas, igualmente úteis

e simpáticas. Mas nasci torto e tais simpatias e utilidades não me

resolvem quando deviam. / Deve ser falta de estirpe. Preciso fazer uma

257

Idem, de 06/10/60. 258

Idem, de 25/03/63. 259

Idem, de 05/11/62.

Page 153: João Antônio: Uma Biografia Literária

153

constante verificação genealógica. Vim de prêto e de ibéricos e há

reparadores que me acham com jeito de filho de sírios”.260

Mas no geral ele admite sua dificuldade em constituir uma

personalidade sólida, ou, nas suas palavras, em ser homem, e descamba

para um esvaziamento total de si próprio: “Não posso chorar porque sou

homem. Não posso gritar que tudo é uma porcaria, porque me taxam de

louco. / Sigo a manada. Canso-me. Sou um: minha cidade são milhões.

(...) Sou um, num milhão, nuns milhões, e, não sou nada. A exceção

desnecessária. O vida torta. (...) Eu não sou ruim. Eu já tive

oportunidades para ser péssimo e não fui péssimo. Eu confiei, eu

esperei”.261

Outro exemplo disso é: “Bicho complicado, meio vagabundo,

meio escritor, devo para meu bom govêrno verificar minhas origens.

Maldito ou sublime ou qualquer coisa menos empolada – isto sou. /

Desconheço-me. Talvez eu nem tenha nascido ainda. Bem provável que

esteja se formando um embrião. Depois serei um homem. Ser um homem

é muito difícil, muito especialmente no momento passante. Horrível e

grandioso”.262

João Antônio, dolorosamente, reconhecia suas idiossincrasias e

dilemas internos, que fazem a tônica de sua correspondência com Ilka, e

que ele compensava escrevendo, mesmo que nas relações pessoais estes

ainda o atrapalhassem demais. Exemplo disto são os trechos abaixo: “Não

é exagero, não. Porque sou também um complicado, egoísta, maníaco e...

nem queira saber. Dias sem falar, cansaço no amor-próprio (sei lá o que é

amor...) sou um sujeito que só se sente bem escrevendo. Aí, a minha

timidez vai embora e eu mando o mundo às favas. Porque êste é o único

tipo de amor que conheço completamente, Ilka”.263

“E nela [numa carta

260

Idem, de 31/10/61. 261

Idem, de 06/10/60. 262

Idem, de 30/06/61. 263

Idem, de 30/07/64.

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154

enviada por Ilka da Inglaterra] você me diz bem clarinho (embora com

civilizados cuidados) que eu sou um problema para você. Claro que sou,

Ilka! Mas para quem, cruzando a minha vida, eu não fui problema? A

quem, se metendo comigo ou eu me enfiando na vida da pessoa, não fui

problema? Se eu sou todo um problema... (...) O problema sou eu mesmo,

minha complicação sou eu mesmo, minha solução (muito provavelmente)

seja eu mesmo”.264

Ciclotimia?

Difícil saber o que foi causa o que conseqüência, mas, ligada a essa

auto-imagem radicalmente contraditória e fluida – ora com desespero

procurando valorizar-se e em outros momentos dizendo-se, sem meias

palavras, imundo –, estava uma alternância de humores indisfarçável e,

até certo ponto, excessiva. Num minuto estava de excelente ânimo,

otimista, feliz com seus progressos na literatura e satisfeito consigo

mesmo; mas no minuto seguinte recriminava-se por sua “prostituição

profissional” na publicidade, por sua vida de dissipações e bebedeiras,

lamentava a solidão e a carência afetiva. Ele próprio não hesitava em

considerar-se uma pessoa dramática265

, para o bem ou para o mal.

Admitia, por exemplo, ser homem de “explosões bestas e alegres”.266

Quanto às explosões de raiva e outros sentimentos menos positivos,

tome-se o perfil de João Antônio feito pelo crítico literário José Castello,

no qual o freqüente mau-humor é registrado com destaque: “João

Antônio estava sempre tão indignado, sentia tanta aversão pela realidade,

264

Idem, de 07/10/64. 265

“Pessoas dramáticas, como eu, como você, costumam enegrecer o negro das coisas.” Idem, de

18/02/62. 266

Idem, de 01/07/65.

Page 155: João Antônio: Uma Biografia Literária

155

tanta raiva, e sabia expressar essas visões entristecidas com tanta clareza,

que a vida, com ele, parecia vacilar”.267

Num balanço da correspondência para Ilka Brunhilde Laurito, que

se estende por seis anos, vê-se logo que era incrível sua capacidade de,

rapidamente – no espaço de um mês, de semanas, de dias, às vezes de

parágrafos numa página –, alternar sentimentos às vezes opostos. Tome-

se como exemplo uma das primeiras cartas: “Ando cheio e qualquer dia

mando tudo para o diabo. Vivo num mundo de imbecis. (...) Ô, Ilka...

Quanto desencontro! E ninguém vê que estou cheio de bem-querer,

lotado de amor”.268

Ou a disparidade entre o tom de uma carta de 10 de outubro de

1960 e uma do dia 2 do mês seguinte. Na primeira, ele escreve: “As

coisas correm boas e a semana começará menos dura. (...) Mamãe estava

menos triste. Virgínio mais alegre. Papai ia bom. E eu também. / Ilka,

Ilka, como estou contente! Hoje poderia escrever um conto de amor à

vida, com alguma honestidade”.269

Na segunda, sem que nada

especificamente ruim tenha acontecido problemas cotidianos contaminam

tudo: “Abrir o jornal é um choque. Greves, levantes, aumentos. Mais

greves. Falar a parentes surburbanos é um choque. Tudo difícil, a carne a

duzentos cruzeiros. Mamãe me explicou o que é um caseado de camisa:

– Custa quarenta cruzeiros.”270

Certamente que toda pessoa tem dias de melhor ou pior disposição,

mas a intensidade das palavras mostra a força dos sentimentos, e

sobretudo a alternância entre a forma carinhosa com que se refere à

família na primeira carta e a confissão “politicamente incorreta” contra os

suburbanos na segunda.

267

Castello, José: “A Arte de Ser João”, in Inventário das Sombras, RJ, Record, 1999, p.45. 268

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 10/12/59. 269

Idem, de 10/10/60. 270

Idem, de 2/11/60.

Page 156: João Antônio: Uma Biografia Literária

156

Neste mesmo mês de novembro de 1960, entre os dias 12 e 13, fica

patente a passagem inversa, aqui do mau-humor para a euforia: “Peguei

uma notícia péssima agora há pouco e a notícia me deixou sério e triste.

Gosto muito de ficar assim sério e assim triste. Eu me adoro nesses

estados. Porque neles ninguém folga comigo, não me tira o que tenho,

não me ludibria. Vou mandando todos para a casa de Satanás. / Gosto de

mim, quando abespinhado. Porco nenhum se aproveita de mim, de minha

sensibilidade. Vou xingando, desaforando, brigando. Não sou cruel, não

sou bom. Apenas ninguém se me aproveita. (...) Você não imagina como

estou descoroçoado”.271

Para, no dia seguinte, dizer: “Quando se

apagaram as luzes, se acenderam os desejos. Vontade de viver, correr,

cantar. / Passavam grupos de moços e môças que iam aos piqueniques, e,

eu pretendi me enfiar num grupo daqueles e ir com êles”.

Se a menção explícita das datas parece dispensável, vale ressaltar

que a percepção da brevidade dos intervalos entre os rompantes do jovem

escritor – ora de alegria ora de tristeza, ora de ternura ora de raiva –, é um

reforço importante para o argumento que aqui se pretende desenvolver.

Uma coisa é a maneira radical com que se entregava a suas emoções, e

outra é a rapidez com que alternava seus estados de espírito”.272

Por essa época, Manoel Lobato, um farmacêutico e também

escritor nascido em Minas Gerais, então residente em Vitória (ES),

escreveu a João Antônio elogiando tremendamente um de seus contos,

“Frio”, que havia sido publicado num suplemento literário que circulava

na capital capixaba. A partir dessa carta, João Antônio e ele fundaram

uma forte amizade, que nunca chegou a se desfazer completamente. Pois

bem, comentando essa alternância de estados emocionais do amigo, o

271

Idem, de 12/11/60. 272

Idem, de 17/11/60.

Page 157: João Antônio: Uma Biografia Literária

157

farmacêutico Manoel Lobato não hesita em diagnosticá-lo como um caso

de psicose maníaco-depressiva.273

O próprio João Antônio, em várias passagens das cartas, menciona

sua vizinhança com a patologia psiquiátrica, seja concretamente, seja

apenas uma maneira de dizer. “Alguém me quer bem? Importa a alguém

que eu morra? Tenho a certeza de que vão me lavar ao manicômio”,

escreve ele.274

Ou ainda: “Estou triste. Eu já estava triste. Ontem fiquei

muito triste, estupidamente, sem motivo. Eu devia ficar alegre quando

minha mãe me analisou, deitada, a minha infância. Mãe conhece a gente.

Minha mãe me conhece muito. / Estou triste de ser assim, Ilka. Cansado.

Cansado de complicações. Estou me cansando de me aturar todos os dias,

todos os dias. Começo a ter mêdo de que uma porção de coisas que

carrego por dentro saiam. / Psiquiatra?”. Mais tarde, volta ao assunto de

raspão: “Se a cabeça está pesando e a amargura vem, o cansaço na

medula, eu respiro fundo e afrouxo os músculos. Repito o exercício

muitas vêzes. Nem álcool, nem tranqüilizadores idiotas”.275

E, finalmente,

ele narra uma primeira intercorrência psiquiátrica real, ainda que

temperada por sua revolta de praxe contra qualquer autoridade: “Ilka,

venho saindo de uma crise que me levou ao clínico e depois ao psiquiatra,

por indicação do clínico. Quer saber qual a conclusão a que cheguei: o

clínico tinha menos saúde que eu e o psiquiatra podia ouvir magníficos

conselhos meus”.276

273

Depoimento de Manoel Lobato, colhido em junho de 2000. 274

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/10/60. 275

Idem, de 18/02/62. 276

Idem, de 07/10/64. Vale dizer que, em 1970, João Antônio foi internado no Sanatório da Muda (RJ).

Marília, sua ex-mulher e mãe de seu único filho, conta que João Antônio teria pedido a ela que

convencesse o psiquiatra responsável pelas internações a aceitá-lo. O objetivo do marido seria fazer um

laboratório literário, evocando a experiência de Dostoiévski e de Lima Barreto. Ainda segundo ela, na

entrevista não foi necessário inventar nenhum sintoma psiquiátrico, pois uma simples descrição real do

comportamento do marido naqueles últimos dias teria sido suficiente para que o encarregado

recomendasse a internação. Depoimento colhido em maio de 2000.

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158

Que papel a bebida poderia ter nessa instabilidade emocional? É

outra pergunta legítima, mas também de difícil resposta. Há muitas

menções a ela nas cartas: “Vou indo bem. Se não houvessem bolado o

conhaque, tudo iria melhor”.277

Ou que as bebedeiras exacerbavam os

atos: “Desculpe os telefonemas do dia 24. Tantos e possivelmente

insensatos. Eu estava num crescendo etílico e emotivo que acabou às três

da madrugada numa crise de chôro”.278

Mas há pelo menos uma descrição

de bebedeira que merece nota: “O porre de ontem foi homérico e foi

memorável, como são todos os meus porres. Rio, canto, choro, faço mil e

uma presepadas. Reviro São Paulo, vasculho, desesperado. Acabo mal,

como de costume. Mal dormido, uma cara de cadáver, sem dinheiro, a

roupa esculhambada, um sinal qualquer no corpo. Depois, um dia novo,

litros de água, limonada, laranjada, coalhada, o diabo”.279

O que se pode afirmar com certeza é que, algumas vezes, esta

suposta tendência ao que se poderia chamar de ciclotimia é indicada pelo

próprio João Antônio. Um exemplo: “Tudo em mim está bem, exceto os

sapatos. A verdade é: comigo as coisas andam erradas e nada vai bem”.

Outro: “Às vezes, a minha alegria como a minha tristeza não cabem

dentro de mim. E sai pela bôca. Perder a linha, então, é fatal. Fico à beira

do ridículo e do grotesco por uma asa de barata. Fatalmente faço

besteiras. Burradas”.280

E um terceiro: “Sou um aluado, devo ter um

coração desatado, completamente exagerado. Devia viver cantando e

chorando ao mesmo tempo, feito louco. E eu seria mais sincero”.281

E um

quarto: “Eu sinto a vida de uma maneira feroz e boa, violenta e

tranqüila”.282

277

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 13/07/60. 278

Idem, de 26/11/62. 279

Idem, de 25/12/60. 280

Idem, de 26/11/62. 281

Idem, de 08/08/60. 282

Idem, de 02/06/61.

Page 159: João Antônio: Uma Biografia Literária

159

Isolamento e rejeição ao amor

No primeiro capítulo deste trabalho já ficou dito que, na família, o

jovem João Antônio sentia-se um tanto isolado, tendo chegado a dizer,

retrospectivamente: “Fugia das festas familiares. (...) Voltar à casa

paterna. Guerras terminavam em beijos para depois recomeçarem. / Eu

odiava os tipos suburbanos”.283

A vida boêmia, de prostitutas, malandros

e porres homéricos – iniciada na adolescência e mantida ou até

radicalizada no início da vida adulta, apesar do emprego na Pettinati –,

certamente mantinham-no na defensiva em relação à mãe e ao pai, sendo

que este ressentia-se ainda do fato de João Antônio não ter desejado

sucedê-lo no ramo do varejo de secos e molhados. E certamente que a

disparidade cultural do filho grande leitor e dos demais membros da

família também o deixavam numa posição estranha dentro de casa. Com

o passar dos anos, do ângulo dos pais, certamente que ver o filho

publicitário, vestindo ternos elegantes e usando sapatos polidos, poderia

oferecer algum consolo moral, mas não tanto material, pois

financeiramente a vida de João Antônio continuava bastante apertada,

como se viu pelo tipo de bicos que era obrigado a aceitar.284

A opção pela

literatura, por sua vez, embora o talento de João Antônio fosse

reconhecido pelo pai e, conseqüentemente, por todos dentro de casa,

também não parecia algo muito seguro para aquela família já duramente

traumatizada pelos azares de uma falência e de um incêndio.

Antes de continuar, o seguinte deve ser frisado: ao longo de sua

vida, a solidão teve para ele um duplo sinal; ora negativo, pois o deprimia

e o deixava sentindo-se desprovido de laços afetivos que compensassem a

tarefa de viver, mas também positivo, pois na solidão ele parecia capaz de

283

Idem, de 06/10/60. 284

Pelo menos nos primeiros anos. Mas, em carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 19/07/64, ele já

considera que vive confortavelmente com o que ganha como publicitário.

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160

centrar sua personalidade. As cartas para Ilka ratificam essa afirmação.

Diz João Antônio: “Como era boa [na infância] a solidão!”285

e ainda

“João Antônio vivia bem quando morador em Vila Anastácio, sozinho em

suas noites, tardes e dias. João Antônio não tinha que se juntar a

ninguém. Quando leu O Capote ficou triste, mas triste de não haver saída,

doido de solidão, porque tinha dezessete anos e se fôsse comentar Gogol

com alguém ririam dêle. Mas eu era inteiro, não me dispersava”.286

Mas não só no passado e no seio da família a sensação de

isolamento o perseguia. Foi assim no exército, durante “alguns pavorosos

meses de farda”287

, e continuava sendo assim no período coberto pelas

cartas de Ilka e de seu lançamento no meio literário. “Julgo que vivo no

meio de macaquinhos. Todos fora de lugar. Macacos. E eu a aturar.

Aturando, aturando. Isto não vai durar a vida inteira não”, escreveu ele

certa vez.288

Mesmo quando estava num bom momento, rotulava-se um

desajustado: “Minha vida corre bem. Descobri com encanto que há

pessoas que gostam de mim e isto me fêz bem. (...) Sinto, do fundo do

coração, que também não sou tão mal. E que aos justos, à maneira de

Jacques Tati, pertence o mundo, por mais desajustados que estejam”.289

Ou quando pensava em coisas boas de sua vida, lamentava não ter uma

pessoa especial, ligada a ele em profundidade ímpar, com quem pudesse

partilhar a felicidade: “E ali [no Morro de Presidente Altino] pensei nos

mistérios da vida, do amor, do jogo, da repetição inútil do dia-a-dia, na

grandeza da arte, na beleza das crianças, na sabedoria do povo, na minha

solidão. / Não tem sentido uma vida assim, Ilka. O que é que eu vou fazer

285

Idem, ibidem. 286

Idem, de 27/10/60. 287

Idem, de 28/09/59. 288

Idem, de 10/12/59. 289

Idem, de 26/05/60.

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161

dos meus prêmios, a quem dedicarei o meu livro, onde está o filho que

não tenho?”.290

Ele assumia francamente sua carência de amor, fosse quando fazia

um balanço de sua vida até ali: “Sabe, Ilka, sempre fui uma criatura muito

necessitada de carinho. Mulher alguma me deu tanto amor que fôsse

suficiente. Amigo? Nenhum. (...) Há uma fileira de nomes, homens e

mulheres e coisas e ambientes, que entraram e saíram da minha vida, que

me deram prejuízos e gozos. Mas que sempre me largaram incompleto,

desejando o que não tive. (...) Ainda outra vez, reitero que você me é

muito necessária porque sabe me compreender muito bem. Guardarei e

reguardarei sua amizade”.291

Ou quando tira uma norma geral da vida

humana: “Ilka, o grande problema, o problema mesmo, a essência de tudo

é o amor. Como um homem tem necessidade de amor! Que condição!”.292

Um grande amigo, porém, é citado mais de uma vez na

correspondência, e merece aqui ser mencionado. Jordão, como se

chamava este amigo, é um personagem misterioso. Ao que parece, era

uma amizade da noite malandra e das ruas de luzes vermelhas que o

jovem escritor freqüentava. Nem o irmão o conheceu, e muitos menos os

demais entrevistados, mais integrados a outras esferas sociais. Mas João

Antônio adianta alguma coisa: “No fundo eu sei que Jordão está mais do

que prevenido, rodou o Brasil inteiro, pegou cadeia, passou fome, viveu,

tem um nome a cuidar”.293

Era, portanto, alguém que conhecia os

subterrâneos da vida. Havia sem dúvida grande intimidade entre os dois:

“Tenho Jordão em São Paulo. Tenho aquêle menino e só eu sei o que isto

me significa. Aquêle falhado, aquêle caipira, aquêle vida torta é, como

me foram outros amigos, uma variação de Toshitaro de ‘Fujie’, lembra-

290

Idem, de 05/11/62. 291

Idem, de 06/06/60. 292

Idem, de 08/08/60. 293

Idem, de 08/09/60.

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162

se?”.294

Jordão e João Antônio dividiam os bicos que apareciam e

ficavam incomodados quando alguma coisa interferia na amizade: “Faço

câmbio. Pequenos capitais, cinco, dez mil cruzeiros unidos[?] e outros

iguais de Jordão dão oportunidade para negócios de algum lucro.

Virações, sabe? No fundo não passam de virações para multiplicar

dinheiro. / Cautela. Não me deixo afundar nessas e noutras inversões. A

grana sae do meu bôlso e volta aumentada. Jordão trabalha. Findo o

negócio dou-lhe algum a somar-se ao combinado. / A perspectiva ruim é

uma menina de dezessete anos, que deu de aparecer na vida dêle. Capaz

que tudo se entorte. (...) Espeto-lhe o peito. (...) E antes de qualquer coisa

– [Jordão] sabe quem sou. É”.295

Pensam, até mesmo, em morar juntos:

“O menino Jordão e eu vamos fazer conluio para a compra de um

apartamento central em São Paulo. Anda tudo na dependência de dinheiro

graúdo que virá de Itajubá, da fazenda de seu pai. Tôrço, ele torce.

Partiremos depois, com juízo e um bom bocado de picardia para o

negócio do contrabando branco – bom negócio, legalizado, negócio do

bom. Que nos fará ricos ou nos enterrará no buraco. Iremos firmes. /

Viver”.296

E agora já se depreende um pouco mais da figura. Era um rapaz

experimentado nas dificuldades do país, e no prazer das mulheres, como

João Antônio, mas cujo background não havia de ser tão modesto quanto

o do amigo escritor, posto que o pai era fazendeiro e dispunha de algum

dinheiro. Seria Jordão um jovem rebelde, que fugira de casa e abandonara

294

“Fujie” é conto que fecha a primeira parte de seu livro de estréia e foi, como já se viu, o início da

produção literária de João Antônio. No conto, o amigo Toshitaro é assim descrito: “Lá na Liberdade

achei o ótimo Toshitaro. Nunca vi ninguém como. Costumo dizer que o sujeito que não se der com

Toshitaro não presta. Ou não conhece Toshi. / Toshitaro, com cinco anos à minha frente, me levava

pela mão direita ao judô. Esquecia a condição de faixa preta e o 3o dan, me dava o lado direito na luta.

Dava tudo. Sujeito espetaculatrt, enorme no tatami e fora dêle. Aprendi mais com Toshi do que com os

três professores que já tive.” Antônio, João: “Fujie”, in Malagueta, Perus e Bacanaço, Rio de Janeiro,

Civilização Brasileira, 1963, p. 28. 295

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/09/60. 296

Idem, ibidem.

Page 163: João Antônio: Uma Biografia Literária

163

a família, viajando pelo Brasil e passando dificuldades desconhecidas

para ele até então? É o que se poderia deduzir superficialmente, nada

mais que isso. Outra especulação possível é a de que, logo em seguida,

tenha havido algum problema na amizade, segundo parece indicar outra

das cartas: “Jordão, foi meu amigo? Sim e muito meu. Unha e carne, um

amigão. Mas, vá uma verdade – ele precisava mais de carinho do que

eu”.297

O verbo estar no passado é curioso, pois depois disso ele ainda

volta a falar de Jordão com muito afeto uma ou duas vezes. Jordão chega

a aparecer em seus sonhos, ao mesmo tempo em que sua experiência de

easy rider e a de João Antônio se misturam oniricamente: “[no sonho]

Dois, três meses andei por aí, virando o Brasil. Rodei. E arrumei um

amigo, espécie de Jordão e voltei sem quê nem pra quê à Cidade de

Campo Grande. (...) O amigo ia comigo”.298

É difícil, no entanto, afirmar

quando e por que a amizade com Jordão acaba. De um momento para o

outro ele desaparece nas cartas, reaparecendo depois, é fato, mas como

outra coisa, como um novo projeto literário, como um futuro primeiro

romance.299

Além de Jordão, para curar a solidão, o escritor tinha outros amigos

na malandragem, os do meio literário e publicitário, que em boa medida

eram dois grupos que se fundiam, e Ilka. Difícil caracterizar a relação

entre ele e a destinatária desse formidável acervo de cartas. Amiga,

confidente e orientadora são categorias absolutamente pertinentes, mas

não parecem dizer tudo. As cartas estão, sim, repletas de declarações de

gratidão, por ser ela tão paciente com suas carências e loucuras

(telefonemas fora de hora e do tom, confusões sentimentais etc). Mas há

também vários momentos em que um clima amoroso se insinua; ora

diretamente pelo que ele escreve, ora quando se infere, pela resposta, o

297

Idem, de 06/06/60. 298

Idem, de 31/07/61. 299

Os planos de João Antônio para o romance Jordão serão tratados adiante neste trabalho.

Page 164: João Antônio: Uma Biografia Literária

164

que teria recebido por carta. Ilka relembra assim a situação: “Eu fiquei

encantada com a carta [a primeira, de 01/09/59], porque era uma carta

inteligente, diferente. Respondi e assim começou nossa correspondência.

Um dia, escrevi: ‘Escuta, moramos na mesma cidade, porque você não

aparece aqui’. Aí ele começou a telefonar, ele telefonava, telefonava. Era

uma voz, uma palavra, ele precisava sentir que eu existia, mas não

interessava freqüentar. Ele telefonava de um bar, bêbado. Eu parecia mãe:

‘Vai embora para casa’. E ele: ‘Tá bom, tá bom.’ Ele estava perdido, ele

era uma pessoa que estava procurando um ponto de apoio, o que depois

veio a encontrar na Marília. (...) Teve uma época que ele ficou meio

desvairado: ‘Você é a mulher da minha vida!’. Eu disse: ‘Não sou! Você

está enganado, você está misturando as coisas’. Houve uma certa

confusão sentimental com essa ligação. Porque era uma ligação tão

profunda entre nós que tudo ele precisava contar para mim, e eu também

tinha uma ligação de espírito tão forte [com ele] que a gente não sabia

exatamente definir o que era.”300

Como se vê, o que começa descrito

como algo unilateral, ao término de sua fala transforma-se em algo

compartilhado. Ele, a princípio, concordava com este sentimento difuso:

“O diabo é que você é mulher e eu sou homem. E o pior é que só agora eu

sei realmente. Minhas cartas descaradas e sem o mínimo tão usual e

consagrado de reserva... / Vai ou ia daí você me respondia no mesmo

tom, talvez mais entusiasmada porque eu devia tê-las encharcado de

intensidade. Então, minha carta seguinte seguia mais gritante. / E depois,

um ficou olhando para o outro, perguntando-se o que se haviam feito”.301

Num dado momento, em poucas palavras, João Antônio tira uma

300

Depoimento de Ilka Brunhilde Laurito, colhido em maio de 2000. 301

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 24/08/60.

Page 165: João Antônio: Uma Biografia Literária

165

conclusão: “Tenha sido lá o que foi, consciente ou inconsciente, foi a

amizade maior que tive”.302

Expressando materialmente essa vida afetiva de essência duvidosa,

além de instável, dessa ausência de laços afetivos mais nítidos, pairou

sobre o jovem escritor, até a ida para o Rio, o espectro do incêndio que

destruíra a casa de sua família. Mais do que uma associação de idéias, um

fator prático mantinha latentes a dor que a triste lembrança provocava:

João Antônio não tinha moradia fixa e estável. Entre a data do incêndio,

1960, e sua ida para o Rio de Janeiro, em 1964, João Antônio não teve

pouso em São Paulo. Ora estava com os pais, ora hospedado na chácara

de um amigo em Bororé303

, ora dormindo com as putas, ora em Vila

Hamburguesa.304

Pelo menos duas vezes nas cartas ele mostra o quanto

isso o incomodava. Uma: “Quando eu morarei em algum lugar?”.305

E

outra, anos depois, já num tom desesperado: “Se não me comuniquei

ainda foi por uma trabalheira danada que invadiu minha vida, inclusive

com ocupações domésticas, uma mudança, UMA NOVA MUDANÇA,

MEU DEUS DO CÉU! Quando é que eu vou morar em algum lugar?”.306

E tudo isso na cidade de São Paulo, que, considerando seu contexto

de relativa dispersão emocional, de briga com a falta de tempo para

escrever e com a necessidade de ganhar dinheiro, não facilitava sua

integração e àquela altura começava mesmo a lhe sufocar. Escreve ele:

“A consciência acima do trilhão de coisas que me rodeiam, que às vêzes

tentam me esmagar, e das quais não sou parte integrante. Não quero, nem

posso. / Eu, eu mesmo, talvez diante de mim. A terrível perspectiva

certeira de que para defender a minha dignidade de escritor e de homem

(...) vá arrostar quase tudo. Ou tudo. (...) Sinto-me perseguido

302

Idem, de 12/10/62. 303

Idem, de 31/07/61. 304

Idem, de 12/11/60. 305

Idem, de 31/10/61. 306

Idem, de 20/03/63.

Page 166: João Antônio: Uma Biografia Literária

166

injustamente, já com vinte e poucos anos, porque não sou o homem da

rotina, porque não a aceito e não me torço. Tenham paciência, façam

restrição, que eu não vou mudar. Esta humildade orgulhosa continua”.307

“Também não quero mais sujeitos afobados à minha roda,

contaminando-me com afobação. Pra casa de Satanás! (...) Só aturo quem

me der dinheiro. Não agüento mais ninguém não. (...) As pessoas de meu

convívio são muito estúpidas para merecer minha atenção.”308

“São Paulo é uma cidade terrível. / Em São Paulo não se anda. Nas

ruas de São Paulo as pessoas correm e os lentos são contaminados,

empurrados, levados em multidão... (...) Vamos correr! Esta ordem parece

vir do céu e os homens, mulheres, crianças correm e se fanam.”309

Amor x cotidiano

Novamente é imprescindível lembrar que a solidão, mesmo a da

cidade grande, tinha sempre um sentido positivo para João Antônio. Em

primeiro lugar, era digna: “Por enquanto é solidão, solidão, solidão. Mas

não é uma mentira e tem sua dignidade”.310

E era autêntica: “Não troco,

Ilka, com todo o orgulho e a hombridade, a verdade da minha Solidão

pela mentira de qualquer Amor”.311

O que João Antônio esperava era um amor ideal que o

espiritualizasse e não que o algemasse à realidade. Quando cita música de

Ataulfo Alves, é isso que está sendo dito: “Mulher a gente encontra em

tôda a parte/ Só não encontra a mulher que a gente tem no coração”.312

307

Idem, de 03/03/61. 308

Idem, de 27/10/60. 309

Trecho de texto sem título, anexo à carta de 13/07/60. 310

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/07/64. 311

Idem, ibidem. 312

Idem, de 05/11/62. No ano de sua morte João Antônio estava trabalhando em seu único poema que

Page 167: João Antônio: Uma Biografia Literária

167

Ou quando escreve: “Já ando cansado de paixões que não resolvem nada.

(...) Já era tempo do amor acontecer, Ilka, sinto claramente. Mas eu me

referi ao amor, entenda. Um amor que conduza, que espiritualize, que

melhore a criatura amada melhorando êste aqui. / O diabo é que não

aceito pela metade. Nem dou. E nada me leva a aprender esta infame

habilidade dos oportunistas e especuladores do casamento. (...) [o

casamento] É muito humilhante, é terrível. Não é sadio”.313

O que ele gostaria era de um amor que lhe ocupasse toda a vida,

capaz até mesmo de inviabilizar a amizade entre ambos: “Porque se eu

amanhã ou depois tivesse achado o amor noutra mulher, imediatamente

pararia de lhe escrever, de lhe telefonar, de lhe procurar. Eu sinto,

estranhamente sinto que não teria mais êsse direito. É muito confuso o

que lhe digo mas é verdadeiro e se resume assim: se eu encontrar amor

noutra mulher, não quero nem ouvir falar de você, Ilka. Se existe pecado

nêste mundo, para mim mesmo, este seria o pior de todos. Seria uma

violentação, eu sinto assim. Pode parecer um absurdo total. Entretanto, é

o sentimento mais profundo que sinto no tocante a você”.314

A idéia de amor e, conseqüentemente, a de uma esposa, vinha

associada ao sacrifício da auto-determinação, colocando em risco projetos

e relações anteriores: “Mulher sempre entorta. Só quando a gente não

gosta é que mulher não nos entorta a vida”.315

Para João Antônio, a convivência prolongada era causa de

sofrimento: “Convivendo muito, sofro muito, muito nervoso, um pêso na

testa, sabe? Basta de pêso, disto e daquilo. Quero paz”.316

Isso em geral,

imagine-se entre marido e mulher: “O amor (homem + mulher), agora eu

chegou a ser publicado, chamado “Choros – Para Pintagol e Cuíca”. Neste, um dos versos diz: “A

mulher que eu não terei,/ dessa não me esqueço.” In O Estado de São Paulo, 09/11/96. 313

Idem, de 05/11/62. 314

Idem, de 30/07/64. 315

Idem, de 08/09/60. Esta frase é dita referindo-se ao temor de que uma nova namorada de Jordão

ameaçasse a amizade entre eles. 316

Idem, de 27/10/60.

Page 168: João Antônio: Uma Biografia Literária

168

sei, estragaria você para mim. Quero-a, direi, distante e indistante. Aqui

comigo e além, com seus problemas”.317

Fosse quem fosse: “Não quero

mais um amor ou qualquer coisa que o valha. Por falar em amor –

apareceu-me na vida, ocasionalmente, uma nova mulher, de quem desisti

no primeiro dia. Quero crer que a arrasei com o meu pessimismo, a minha

insipidez e o meu desencanto. (...) Ainda me telefona e talvez, com algum

jeito, alguma torção no meu temperamento e muita mentira, a mulher

viesse morar comigo. Dessas mulheres que à rua chamam atenções, um

tipo diferente e cujo amor que sabe fazer é muito igual às outras.

Espiritualizada em alguma coisa, sofre. O que ela quer não lhe dou.

Egoísmo, talvez, porque aquilo que ela me pode dar não me interessa.

Ponto final. (...) Crianças não me interessam”.318

Mas há, subjacente a esse desencanto com a instituiçào do

casamento e mesmo com a idéia de felicidade a dois, uma dinâmica

fundamental para que se compreenda a vida de João Antônio, desde essa

época até o fim. A literatura era, de fato, um consolo para as agruras

cotidianas e um bálsamo que lhe transformava a solidão em algo

existencialmente enriquecedor e, por isso, positivo. Mas era, ao mesmo

tempo, uma cobradora exigente, que se alimentava de solidão e sugava

sua vida. Só isolando-se ele conseguiria escrever ao máximo de suas

forças: “Vou fazer o que certos malandros fazem. Não ligam pra droga

nenhuma. Fazem o que bem entendem. Andam sempre contentes da vida,

mas de cara amarrada, para que as pessoas não os olhem. Certos, certos.

Sabem muito bem, que a solução é o egoísmo total. Tirar tudo o que

puder, extrair de um momento de prazer todo o possível. Ter, ter, ter. / E

só terei se me isolar. Eu só terei escrevendo. (...) Aqui neste apartamento

317

Idem, de 13/09/60. 318

Idem, de 12/11/60.

Page 169: João Antônio: Uma Biografia Literária

169

não quero ninguém. Quero eu, se me fôr dada graça tanta”.319

“Aí

[escrevendo], a minha timidez vai embora e eu mando o mundo às favas.

Porque êste é o único tipo de amor que conheço completamente, Ilka”.320

E para de fato viver a literatura como único amor de sua vida, por

mais que ansiasse pelo carinho de uma mulher, por mais que às vezes

sentisse a falta de um filho, por mais que admitisse a importância dos

amigos, ele precisaria eliminar de sua vida qualquer sombra de novos

compromissos sociais e familiares. Mulher e filhos, sobretudo, seriam

uma interferência fatal para sua vocação: “Você precisava viajar. E

muito. Está em Londres. Livre. Não foi melhor, mais racional, mais

higiênico? Pois. Porque eu preciso também fazer coisas de minha vida.

Ganhar dinheiro, escrever, me firmar. Não foi assim que concluímos, há

muito tempo, (...) juntos naquele banco do jardim? (...) Você tem sua luta

livre com seu trabalho, (...). Eu carrego coisas profissionais e me carrego

literariamente”.321

A desejada dedicação exclusiva à literatura, somada ao medo de se

“aburguezar” constituindo família, e sem esquecer a já vista vocação para

o conflito, dava em frases retumbantemente firmes: “Brasil não é terra

para intelectual ou artista viver. Brasil é para cachorros, exploradores e

negocistas. (...) A solução é fugir daqui e correndinho. Osman quebrou

com a família; fugir para a França. Deixar mulher, filhos, ir, ir. Cavar

uma bolsa e desaparecer. De – sa – pa – re – cer. / Osman fêz bem”.322

Afinal, num mundo onde ele só via o atrito de interesses e projetos

pessoais – “Perambulo e é tudo egoísmo”323

– o remédio seria o próprio

veneno: “Arrisco-me a um conselho, eu, João Antônio, que não gosto de

319

Idem, de 27/10/60. 320

Idem, de 05/11/62. 321

Idem, de 06/07/64. 322

Idem, de 03/11/60. 323

Idem, de 06/10/60. “Osman” é Osman Lins, o escritor. A julgar pela correspondência, não era um

amigo próximo. Esta é a única menção a Osman Lins em seis anos de cartas.

Page 170: João Antônio: Uma Biografia Literária

170

conselhos. Ilka, sofra menos. Não haverá uma saída? Seja egoísta, pense

em você, seja até má”.324

Ou, se não um egoísmo e uma maldade assumidos, ele defendia

uma barreira de proteção contra as armadilhas do coração, e da sociedade:

“E, chegando a uma idade em que me vou esclarecendo humanamente

para mim, em certas coisas da vida sentimental, resolvi pela saída dos

perfeccionistas e de alguns personagens de Ingmar Bergman. Necessário

que se construa uma muralha em redor da gente para que não venhamos a

sucumbir antes do tempo. A tal muralha é certa habilidade em não nos

deixar envolver por comoções e que fatalmente se alongam e nos dão um

trabalhão danado, na tarefa soturna de engordar tristezas. Não é cinismo

meu, não. A Ilka me conhece. Apenas evito emoções através de um

raciocínio que me parece por demais, equilibrado”.325

“E nós precisamos

contornar a emoção, sabe? Fazer aquela tôrre em tôrno da gente, como

ensinou Ingmar Bergman em um dos seus filmes (Juventude?) Não me

lembro. Mas a tôrre é necessária. Porque não podemos viver nos

estraçalhando em dissimuladas”.326

E assim a vida do jovem escritor se armava, de fato sem qualquer

laço mais estável que a literatura. Durante todo o período entre 1959 e até

sua mudança para o Rio de Janeiro, João Antônio realmente conseguiu,

ainda que aos trancos e barrancos, manter de pé a muralha com que

defendia sua vocação e independência, ou melhor, sua “dignidade” de

solitário.

324

Idem, de 13/09/60. 325

Idem, de 08/06/64. 326

Idem, de 06/07/64.

Page 171: João Antônio: Uma Biografia Literária

171

Fontes e establishment literário

Até aqui, foi feito um levantamento o mais detalhado possível dos

principais fatos biográficos da primeira fase da vida do escritor João

Antônio, de seu nascimento ao início da vida adulta (no primeiro capítulo)

e, em seguida, esse levantamento foi complementado por alguns aspectos

mais subjetivos de seu temperamento, levantados a partir de suas cartas

para a amiga Ilka Brunhilde Laurito. Agora, ainda tomando por base

primordialmente as informações contidas nesse mesmo acervo epistolar,

mas não só, tentar-se-á atingir um duplo objetivo. De um lado, antes da

análise mais detalhada dos contos que formam seu livro de estréia e de

“Paulinho Perna Torta”, novela escrita logo em seguida, a meta será

delinear, em traços mais largos, a trajetória formal de sua literatura,

identificando basicamente dois momentos: suas primeiras influências e seu

primeiro desvio ou desdobramento estilístico. De outro lado, como

complemento a essa trajetória, é enriquecedor perceber o quanto essas

primeiras influências, na prática, estão ligadas a um determinado grupo de

críticos e escritores, que formariam, por assim dizer, a primeira roda

literária do escritor e a base de sua inserção no meio literário.

Pode-se dizer que as quatro principais fontes do jovem João Antônio

foram: 1) a própria literatura; 2) o cinema de arte europeu; 3) a música

popular brasileira, mais especificamente o samba a partir dos anos 20; 4)

sua biografia. Desses quatro manaciais saíram os elementos formais e de

conteúdo de suas primeiras criações. As exatas contribuições da música e

do cinema de arte para sua obra hão de merecer, no futuro, estudos

específicos por parte de pesquisadores qualificados para tanto.327

327

Com base nas cartas para Ilka, escritas entre 1959 e 1965, podemos apenas fazer uma lista de nomes

e arriscar uma ou outra linha de análise. Além de freqüentar festivais de cinema italiano, francês, etc,

entre os diretores de cinema e ou filmes citados estão: Ingmar Bergman, Visconti e “os moços da

nouvelle vague”, O General Desnudo, Rashomon, Michelangelo Antonioni, Orson Welles, Hiroshima

Page 172: João Antônio: Uma Biografia Literária

172

No âmbito da literatura, seria o caso agora de nos afastarmos um

pouco das influências distantes, no tempo e no espaço, como clássicos do

porte de um Dostoiévski ou um Balzac, e concentrarmo-nos naqueles

escritores que possam ter influído mais diretamente sobre o jovem João

Antônio.

Há que se levar em conta, antes de descermos a nomes, o momento

literário na segunda metade dos anos 50, época em que João Antônio

começou a escrever e deu à luz as primeiras versões dos contos que

comporiam a primeira parte de seu livro de estréia. O modernismo,

inaugurado no início dos anos 20, criara um novo horizonte literário no

país. No que se refere ao conteúdo, grosso modo, sua maior contribuição

foi a ênfase dada aos assuntos nacionais e a seus tipos, digerindo de

maneira nova, “antropofágica”, as influências culturais européias. Do ponto

de vista formal, criara a possibilidade de novas linguagens, menos apegadas

a grandes rebuscamentos formais, mais livres do ponto de vista sintático e

vocabular, mais próximas de uma linguagem cotidiana e da realidade da

época. A primeira geração literária do modernismo elegera suas estrelas de

Mon Amour, Ligações Amorosas, Dolce Vita, Albert Lamorisse e Grigori Kosintev. Duas observações

são interessantes. Uma, a respeito da nouvelle vague: “Acho que os moços da ‘nouvelle vague’ têm

muito o que dizer. E têm linguagem cinematográfica para”. Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de

08/08/60. E outra, sobre Antonioni: “Os cineastas modernos estão mesmo a fim de nos estraçalhar. (...)

Vendo o filme de Antonioni, Ilka, concluo que nós não sabemos nada sôbre o amor. (...) Antonioni

talvez seja o mais revolucionário dos cineastas atuais. Ensina que não sabemos nada sobre os nossos

sentimentos”. Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 25/08/62. Casando esses pensamentos com o já

referido impacto do filme Ladrões de Bicicleta, de Vittorio de Sica, sobre o pai do escritor e sobre ele

próprio, e com sua preocupação por encontrar um “cinema que não mentia”, algumas possíveis linhas

de análise já se delineam, por exemplo a influência do neo-realismo italiano na obra de João Antônio.

Sintomaticamente, após a publicação de seu livro de estréia, João Antônio é contactado para ceder os

direitos de filmagem da novela “Malagueta, Perus e Bacanaço” ao diretor Roberto Santos, num filme a

ser produzido por ninguém menos que Nélson Pereira dos Santos, o expoente do neo-realismo

brasileiro. Carta para Ilka Brunhilde Laurito, de 30/07/64.

No que se refere à música, embora as referências nas cartas não sejam tão numerosas, a importância

dela sobre sua obra não pode jamais ser menosprezada. Um exemplo está na carta a Ilka Brunhilde

Laurito, de 05/11/62, na qual ele cita um samba cantado por Ataulfo Alves, em que um dos versos lê:

“Mulher a gente encontra em tôda a parte/ Só não encontra a mulher que a gente tem no coração.”

Curiosamente, o tema e o pathos do samba reaparecem no único poema mais conhecido do escritor,

publicado postumamente e dedicado à idéia de uma mulher que se deseja e não se encontra. Diz João

Antônio, no último verso: “A mulher que não terei,/ dessa não me esqueço”. Um futuro cruzamento

entre as letras dos sambas clássicos e a obra do escritor certamente encontrará outros ecos semelhantes.

Da mesma forma o cruzamento da idealização da malandragem feito pelo samba tem conexões

importantes com a própria biografia de João Antônio.

Page 173: João Antônio: Uma Biografia Literária

173

primeira grandeza, entre elas: Mário de Andrade (1893-1945), Oswald de

Andrade (1890-1954) e Manuel Bandeira (1886-1968), trinca digna de

encabeçar qualquer lista, e outras a seu modo também brilhantes, entre elas

Antônio de Alcântara Machado (1901-1935) e Sérgio Milliet (1898-1966).

A chamada “segunda geração” modernista, constituída a partir dos anos 30,

e que durante os anos 50 ainda estava em plena produção, dividira-se

basicamente em duas correntes, os regionalistas, que deslocavam o foco de

suas narrativas dos grandes centros e recuperavam o caráter e, em alguns

casos, a fala rural do Brasil, e os romancistas modernos por excelência,

urbanos e introspectivos. No primeiro grupo podemos destacar José Lins do

Rêgo (1892-1953) e Guimarães Rosa (1908-1967); no segundo, Marques

Rebelo (1907-1973) e Clarice Lispector (1925 –1977).

Obviamente, além de simplistas, as generalizações acima deixam de

fora nomes como Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Jorge

Amado, João Cabral de Melo Neto, Cecília Meireles etc. E mais: é preciso

sempre estar atento para aqueles autores que transitam entre essas linhas,

como por exemplo Graciliano Ramos. Mesmo assim, não creio que seja

necessário abrir um longo parágrafo para essa parte da história literária

brasileira. Basta, aqui, entender vagamente como se estruturava o

establishment literário que pairava sobre a cabeça do jovem João Antônio e

de seus contemporâneos, que mais tarde iriam compor a chamada “Geração

70”.

Pilares da inserção literária

Como já ficou evidente em relação a Ilka Brunhilde Laurito, João

Page 174: João Antônio: Uma Biografia Literária

174

Antônio era, desde cedo, um inveterado missivista.328

Além disso, era

contumaz pleiteante a prêmios literários, o que fazia também por carta.

Estes prêmios, promovidos pelos órgãos de imprensa, consistiam

eminentemente na publicação do primeiro colocado. Várias das inserções

de contos de João Antônio na imprensa da época devem-se a sua vitória em

um “concurso”. O nível de imparcialidade dos editores de jornais e revistas

no processo de seleção deveria logicamente variar, com alguns concursos

tendo um corpo de jurados conhecido e constituído como uma instância

independente do veículo de imprensa seu promotor, enquanto outros

decidiam-se ou por consulta aos colaboradores regulares ou mesmo por

preferência pessoal do editor.

Como tudo começou, é difícil dizer. O que se pode afirmar

categoricamente é que, além de um talento literário precoce, João Antônio

tinha consciência das estratégias que usava para se aproximar dos

profissionais do meio329

, e que, por volta de 1959, já constituíra uma rede

consideravelmente ampla de contatos literários. Dela faziam parte o escritor

Ricardo Ramos, o sábio húngaro-brasileiro Paulo Rónai, o crítico Mário da

Silva Brito, de importância já mencionada, o escritor Jorge Medauar,

Fúlvio Camargo, diretor de “um departamento” da editora Cultrix, Paulo

Bonfim, então assumindo cargo de diretor de criação da Revista SR,

Joaquim Pinto Nazário, editor da página literária do Diário de São Paulo,

Menotti del Picchia, Rolmes Barbosa, que mantinha a coluna semanal sobre

livros no “Suplemento Literário” d’ O Estado de São Paulo, Orígenes

Lessa, Marcos Rey, escritor e jornalista cultural, Fernando Góes, escritor e

328

Ainda nos anos 80, quando o telefone já se tornara de longe o meio de comunicação mais usado, era

seu hábito manter correspondência assídua com os amigos e, através primordialmente das cartas,

estabelecer contatos literários os mais diversos. 329

Em uma versão inicial de seu livro de estréia, localizado em seu acervo, na Unesp de Assis, mas

ainda não devidamente catalogado, ele anexou uma lista com 47 nomes para quem o mandaria e mais

13 nomes de pessoas a quem já havia mandado. Tempos depois, ele aconselha Ilka, em dada

oportunidade, a fazer como ele: “Tiraremos várias cópias [de um livro dela] e seu livro irá para as mãos

de Rubem Braga, Paulo Rónai, Ênio Silveira. Não é sonho não; é tudo muito viável”. Carta a Ilka

Brunhilde Laurito, de 27/01/62.

Page 175: João Antônio: Uma Biografia Literária

175

jornalista cultural, José Armando Pereira, que tinha página literária num

jornal de Sto. André, Marques Rebelo330

, Hermann José Reipert, escritor,

Jamil Almansur Haddad, poeta e dramaturgo, Levi Carneiro, da Revista

Brasileira, Caio Porfírio Carneiro, escritor, Décio de Almeida Prado, crítico

teatral d’ O Estado de São Paulo e Sérgio Milliet, literato e crítico. Vários

deles serão novamente citados no correr deste capítulo, tendo detalhadas

suas intervenções na vida de João Antônio.

Há, é claro, alguns poucos nomes citados na correspondência com

Ilka, que ficaram de fora dessa lista, mas esses se destacam seja pela

intimidade de que gozaram junto ao escritor, pela ascendência que tiveram

sobre ele, pela quantidade de vezes em que o ajudaram a publicar textos, ou

simplesmente pelo papel que exerciam nos meios literários paulistano e

brasileiro. Com alguns havia uma amizade direta, de corpo presente, mas

com muitos, entre eles a própria Ilka, a relação era sobretudo epistolar. Para

essa variação contribuía certamente a distância física, e muito

provavelmente a geracional.

Analisando-se a lista de nomes constantes na rede literária de João

Antônio, entre o final dos anos 50 e o início dos 60, é difícil deixar de

enxergar grandes figuras, sendo que algumas muito intimamente ligadas à

herança do primeiro momento modernista e ao corpo-a-corpo presente da

segunda geração. Estes homens de letras, alguns já reconhecidos por sua

obra, de criação ou crítica, embebidos dos ideais de renovação da literatura

brasileira e, muitas vezes, da crítica ao status quo social vigente, irão influir

duplamente na carreira literária do jovem escritor. De um lado, é com eles –

e de preferência por carta – que João Antônio vence qualquer insegurança

ou complexo e dá à luz seus textos, ouvindo críticas e sugestões. É também

por influência deles que os ideais estéticos e sociais dos “modernismos”

330

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/08/90. Reza a lenda, foi Marques Rebelo quem aplicou ao

livro de João Antônio o epíteto de “clássico da literatura velhaca”.

Page 176: João Antônio: Uma Biografia Literária

176

brasileiros se materializam nos contos do jovem João Antônio. De outro,

mais materialista, são estes homens que abrem as portas da imprensa para

os contos do jovem escritor – já devidamente lidos, comentados e muitas

vezes com sugestões incorporadas. Os dois lados da moeda poderiam vir

juntos ou separados, mas em geral estavam juntos, ou seja, uma espontânea

concordância estética e ideológica propiciava uma aliança pragmática no

que se refere à circulação de sua obra.

Foi provavelmente via correio (afinal, a revista era no Rio de Janeiro e

também lá residiam os jurados) que o jovem escritor inscreveu-se no

prêmio d’A Cigarra, que teve como júri a dupla Aurélio Buarque de

Holanda e Paulo Rónai, e no qual sua vitória foi divulgada em abril de

1958.331

Paulo Rónai, nascido em 1907, em Budapeste, chegara ao Rio em

1940, muitos anos depois, portanto, da Semana de Arte Moderna de 22.

Mas viera a convite do Itamaraty, por ter, em 1939, na condição de

divulgador de literaturas estrangeiras em sua cidade natal, aprendido

sozinho o português e concebido, traduzido e publicado uma antologia da

moderna poesia brasileira. Cinco anos depois de sua chegada, era

naturalizado brasileiro, com dispensa do prazo oficial de residência no

território, por serviços culturais ao Brasil. Embora especializando-se na

carreira de tradutor de obras clássicas para o português, toda sua conhecida

trajetória pessoal ligava-o aos escritores em atividade na época. Rónai

soube enxergar os textos de João Antônio na cena literária de então, e

dispôs-se a com ele discutir critérios estéticos, a cada leitura que fazia de

seus textos.

Pois bem, nos anos seguintes, Paulo Rónai, embora fosse trinta anos

331

P. 91. Vale dizer que o já citado conto “Indios”, de 1956, ganhara anteriormente uma menção

honrosa em outro concurso de A Cigarra. Não é possível afirmar, contudo, quem foram os jurados

nesse caso. Ver carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 23/09/59. Nesta segunda oportunidade, “Fujie” é,

embora vencedor na opinião dos jurados, censurado pela direção da revista, que o substitui para

publicação pelo conto “Frio”, publicado em abril de 1958. Os motivos da censura são, provavelmente,

o forte apelo sensual do conto e a ruptura ética do personagem central e narrador.

Page 177: João Antônio: Uma Biografia Literária

177

mais velho que João Antônio e já um grande nome das letras brasileiras,

tornar-se-ia um correspondente regular do jovem escritor e uma referência

sua no Rio de Janeiro. João Antônio, certa vez, comentou essa amizade

com Ilka: “Recebi também, Ilka, uma carta de Paulo Rónai. Uma carta

assim como a sua. Boa e franca. Um grande coração atrás das palavras, um

homem limpo. Uma pessoa que não precisava jamais descer de onde está,

para dar a mão a um escritor novo como eu, rapaz e que oscila. Mas Paulo

me escreve, analisa meu novo conto, aponta isto e aquilo. / Sou um

felizardo, Ilka, claro que sou. Dou as costas aos bonecos e macacos da

literatura e ainda dou sorte – valores verdadeiros se afinam comigo, me

incentivam, me aconselham, me entendem nas cartas escritas quase

amorosamente”.332

Quase um ano depois de João Antônio escrever isso, Paulo Rónai, que

secretariava a revista da Academia Brasileira de Letras, prometeu nela

publicar o conto “Meninão do Caixote”.333

De fato veio a publicá-lo, mas

apenas dois anos depois. Haver transcorrido tanto tempo, conforme

demonstra a gratidão e admiração de João Antônio pelo crítico, não era

sinal de que Paulo Rónai o estivesse “cozinhando”, ao contrário do que se

pode deduzir à primeira vista. Ao que tudo indica, esse intervalo de tempo é

melhor entendido se visto como todo um período de contato entre o

veterano homem de letras e o jovem paulistano.

Houve também o convite de Rónai para que escrevesse na revista

Comentário.334

E um artigo de João Antônio veio de fato a ser publicado,

também passado quase um ano do convite.335

Por fim, outra demonstração

real do apreço de Paulo Rónai pelos contos que recebia de Presidente

Altino e de sua ajuda espontânea à veiculação dos mesmos, vem citada em

332

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 17/10/59. 333

Idem, de 08/09/60 e de 19/05/62. 334

Idem, de 25/12/60. 335

Idem, de 25/11/60.

Page 178: João Antônio: Uma Biografia Literária

178

carta pelo escritor: “Paulo Rónai me escreve. Vou aparecer numa antologia

de contistas novos assinada por Paulo Rónai e Aurélio Buarque de

Hollanda Ferreira”.336

Há outras menções a esse veterano amigo e incentivador nas cartas de

João Antônio, quase sempre ligadas a encomendas de textos ou a

publicação dos contos.337

Mas nem só de Paulo Rónai vive o homem. Já foi

mencionada a visita inesperada do escritor e editor Ricardo Ramos,

acompanhado de outros “homens engravatados”, à modesta casa do pai de

João Antônio, em busca do remetente desconhecido que postara seus

primeiros contos sob pseudônimo, apenas com o endereço correto dando

uma pista involuntária de como poderia ser encontrado.338

Esta visita

ocorreu necessariamente entre 1954, data da publicação do primeiro conto

adulto de João Antônio, e 1958. Ela significou um marco em sua inserção

literária de várias formas. Ricardo Ramos, nascido em 1929, deveria ser

visto na época como uma espécie de menino prodígio. Para começar, era

filho de Graciliano, o que fatalmente o tornava uma pessoa conhecida no

meio. Mas tinha méritos próprios. Lançara o primeiro livro aos 24 anos, e

talvez, àquela altura, já tivesse publicado o segundo, ou então estava em

vias de.339

Por fim, além de escritor, era jornalista cultural com entrada em

vários veículos e mantinha contato com várias editoras. Isso tudo sendo

apenas oito anos mais velho que João Antônio.

A amizade literária entre os dois se firmou nos anos seguintes. E se é

lícito datar com tanta convicção a data mais tardia possível para aquele

primeiro encontro, isso decorre do fato de que a partir de 1958, mais

especificamente de 11 de setembro, João Antônio tem seus contos

336

Idem, de 25/12/60. 337

Idem, de 27/01/62 e 19/05/62. 338

Pp. 92, 93 e 94. 339

Tempo de Espera (contos), 1954; Terno de Reis (contos), 1957. Até 1963, ano de publicação de

Malagueta, Perus e Bacanaço, publicaria mais dois: Os Caminhantes de Santa Luzia (novela), 1961;

Os Desertos (contos) 1961. Menezes, Raimundo de: Dicionário Literário Brasileiro, Rio de Janeiro,

LTC, 1978, p. 563.

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179

publicados na página literária dirigida por Ricardo Ramos no jornal Última

Hora. Primeiro “Afinação da Arte de Chutar Tampinhas”, em seguida

“Fujie”, depois “Retalhos de Fome Numa Tarde de G.C.”, e finalmente

“Natal na Cafua”.340

E a contribuição de Ricardo Ramos para que a obra do

jovem escritor que tanto o impressionara circulasse ainda não parou por aí.

Ele viria a fazer, nos anos seguintes, dois convites para João Antônio

publicar seu primeiro livro, convites estes dos quais falaremos mais à

frente.

O quanto essas publicações em jornais e revistas estavam

condicionadas a mudanças nos textos, eventualmente sugeridas pelos

“consultores” informais de João Antônio, ou mesmo o quanto eles de fato

ajudavam o jovem talento a direcionar sua criação para mais perto dos

preceitos estéticos vigentes, é impossível dizer com precisão. Vale ressaltar

o caráter independente do jovem João Antônio e a sua já discutida “vocação

para o conflito”, que em tese deveria torná-lo um tanto impermeável a

interferências externas. Certamente, sua dose de humildade deveria variar

de acordo com a diferença de idade ou de prestígio entre ele e seu

interlocutor.341

Em geral, seus contemporâneos têm de João Antônio a

imagem de alguém extremamente orgulhoso e cioso de sua independência,

e isso está de acordo com o que se vê nas cartas para Ilka. Mas, em

publicações menos definitivas que a de um livro, ele já havia aceito

modificações unilaterais em seu texto: “Leia meu conto ‘Visita’, que O

Estado de São Paulo publicou. O conto está todo mudado, sem a quentura

340

A edição de “Afinação”, que data de 19 de julho, embora mencionada nas cartas, não foi encontrada

por esta pesquisa. “Fujie” saiu em 11 de setembro de 1958. “Retratos da Fome” em 22 de novembro de

1958. “Natal”, em 8 de janeiro de 1959. 341

Para precisar a exata medida em que esses amigos de pena interferiram direta na elaboração do

primeiro estilo de João Antônio seria necessário confrontar as várias versões dos contos, já localizadas

no acervo do escritor e coletadas por essa pesquisa, com a correspondência ativa e passiva com cada

um desses homens de letras, que infelizmente ainda não foi catalogada no mesmo acervo. Além disso, a

família do escritor não autorizou a pesquisa no acervo epistolar nem no material emprestado à Unesp

de Assis para catalogação e nem num lote de cartas cuja guarda conservou, de tamanho e conteúdo

desconhecidos. Todos os núcleos de documentação epistolar obtidos ao longo desta pesquisa foram

encontrados nas mãos de não-familiares.

Page 180: João Antônio: Uma Biografia Literária

180

que tinha. O Estado não se dá com as minhas quenturas”.342

De qualquer

forma, uma coisa é censura, como esta e a que sofreu na revista A Cigarra

(ver nota 354). Outra coisa é estar aberto para ouvir sugestões e até

eventuais críticas de amigos e colegas.

Porém, ainda que a cota de mudanças feita por sugestões de terceiros

tenha sido mínima, é inevitável que houvesse alguma “contaminação”

estética entre João Antônio e seus correspondentes. Longe de com isso

dizer que ele escrevia o que achava que os outros iriam gostar, mas

dizendo, isto sim, que ele sabia farejar aqueles que gostariam de seus

textos, fazendo contato preferencial com quem imaginava ser próximo de

sua estética ou de seu pathos literário. O que, aliás, é natural. Viviam a

mesma época, liam os mesmos lançamentos, trocavam opiniões e estavam

todos inseridos em latitudes relativamente próximas do mesmo

establishment estético, a despeito das diferenças de idade e prestígio

individual.

A forma gradual com que João Antônio foi se tornando conhecido no

meio literário apresenta inúmeras ramificações, com contatos sendo feitos

aqui e ali. Outro amigo importante foi o escritor Paulo Dantas. Quinze anos

mais velho, sergipano que passara pelo Rio de Janeiro, trabalhando no

mercado livreiro e editorial, e viera a se fixar em São Paulo, Dantas era

também já um escritor experimentado, com dois livros publicados.343

Como

se conheceram não se sabe, podendo ter sido apresentados por amigos em

comum ou o contato pode novamente ter sido feito por carta de João

Antônio, pedindo-lhe opinião sobre seus contos. Mas o fato é que depois

tiveram contato direto, freqüentando juntos, por exemplo, lançamentos

literários.344

Também um homem de seu tempo, Dantas estava bastante

342

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 25/12/60. 343

Os livros eram: Aquelas Muralhas Cinzentas (novela), 1943; As Águas Não Dormem (novela),

1946. 344

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 26/05/60.

Page 181: João Antônio: Uma Biografia Literária

181

enfronhado nos ideais estéticos da segunda geração modernista.345

No que

se refere ao prestígio que gozava junto a João Antônio, e a seu nível de

interferência nos escritos do jovem escritor, é interessante voltar às cartas:

“Dantas é um rico. Um homem rico de belezas interiores. Como me

entende! Como sabe me dar força:

– Certo, tudo é certo. Mas você tem talento para refazer tudo.

É um homem sofrido, sabe o que diz”.346

Mário da Silva Brito, anteriormente citado, entre outras coisas, como o

homem que conseguiu a cabine da biblioteca Mário de Andrade onde João

Antônio reescreveu, após o incêndio, a novela-título de seu primeiro livro, é

um personagem que merece ter seu papel ampliado e detalhado nessa fase

de inserção de João Antônio no meio literário. Como travaram contato, é

mistério. Apresentados por terceiros? Por Ricardo Ramos? João Antônio

lhe escreveu? Procurou? Certamente que João Antônio deveria conhecê-lo

de nome. Nascido em São Paulo, em 1916, desde 1943 Silva Brito vinha

atuando como escritor, professor e jornalista cultural, tendo tomado parte

em inúmeros movimentos literários, sempre em oposição às estéticas

conservadoras, e publicara, em 1958, o célebre livro História do

Modernismo Brasileiro: Antecedentes da Semana de Arte Moderna, até

hoje uma fonte bibliográfica obrigatória para o período e, no ano de seu

lançamento, vencedor dos prêmios Fábio Prado e Jabuti. À época em que o

núcleo documental aqui destacado se inicia, Mário da Silva Brito

colaborava com a Editora das Américas.

Logo de saída, vale citar uma de suas contribuições fundamentais para

a carreira de João Antônio: o nome artístico. Até 1958, João Antônio

345

Para isso basta dizer que seu livro Capitão Jagunço, publicado originalmente em 1960, na época de

sua amizade com o ainda inédito João Antônio, já nasce comparado a Guimarães Rosa. Ver citação

sem maiores indicações bibliográficas do verbete do Anuário da Literatura Brasileira de 1960, escrito

por M. Cavalcanti Proença, e reproduzido in Capitão Jagunço, São Paulo, Global, 1982, pp. V,VI e

VII, 5a edição.

346 Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/08/60.

Page 182: João Antônio: Uma Biografia Literária

182

assinava suas publicações com o nome completo, ou seja, João Antônio

Ferreira Filho. Mas, já em 1959, ele diria: “Costumo assinar João Antônio

nos meus contos. Foi o Mário da Silva Brito e foi o Ricardo Ramos, quem

me puseram na cabeça: meu nome é muito comprido e não haveria cristão

que o retesse (sic) guardasse. Bem. Fiquei sendo João Antônio (...)”.347

Mas não só isso. Era leitor assíduo e obrigatório de tudo o que João

Antônio escrevia, devia indicá-lo a muita gente, em especial a outros

escritores e diretores de suplementos literários, recomendava leituras348

, e

lia aquilo que João Antônio lhe recomendava, era uma possível fonte de

novos livros. João Antônio, nessa época, tinha uma situação financeira

difícil, Mário passava a notícia de novos concursos, instando-o a participar,

estimulava-o a escrever.

Mário da Silva Brito era, quase com certeza, o amigo mais influente

de João Antônio. Além de veterano do mercado editorial, pois já passara

por vários selos, era um homem de grande penetração institucional.

Contribuíra para a fundação da Câmara Brasileira do Livro, tendo ocupado

cargos na diretoria, integrara os conselhos municipal e estadual de literatura

de São Paulo, era consultor da Fundação Armando Álvares Penteado e,

entre outras coisas, fizera parte da comissão encarregada de reformar os

estatutos da União Brasileira de Escritores (UBE). Em 1961, é eleito

presidente da UBE, fato que João Antônio não deixa de comentar,

transparecendo alguma reserva à instituição: “Mário da Silva Brito foi para

a presidência da União Brasileira dos Escritores. Vamos ver, desta feita.

Pelo menos presidência a UBE tem”.349

São inúmeras as vezes, nas cartas, em que Mário da Silva Brito

aparece descolando uma publicação para os contos do seu jovem amigo. É

347

Idem, de 01/09/59. 348

Pelo menos uma autora recomendada por ele causam impacto em João Antônio. Uma é Carolina

Maria de Jesus, com seu livro Quarto de Despejo, publicado em São Paulo, pela Francisco Alves, e de

cuja promoção Mário da Silva Brito se encarrega. 349

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/10/61.

Page 183: João Antônio: Uma Biografia Literária

183

quem o leva para a revista Anhembi.350

Juntamente com Orígenes Lessa,

tenta conseguir-lhe publicação na Revista SR.351

Em viagem à Bahia, leva

contos de João Antônio na mala.352

E por duas vezes tenta publicar um livro

seu, fracassando na primeira tentativa e logrando na segunda, como se verá.

Uns malandros inéditos

Ricardo Ramos, Paulo Dantas e Mário da Silva Brito, homens bem

colocados no mercado editorial, foram os homens que realmente lutaram

para que o jovem João Antônio fosse publicado. Entretanto, o primeiro

convite para publicação em livro mencionado nas cartas para Ilka, parte de

um editor não identificado, em 1959.353

Onze meses depois, porém, João

Antônio menciona a combinação entre ele, Paulo Dantas e Ricardo Ramos

para sua estréia em livro. Este seria um segundo caminho potencial para

uma publicação. E por fim, sete meses depois do segundo convite, portanto

já em 1961, Mário da Silva Brito o convida a publicar pela Editora das

Américas.354

Por um momento, João Antônio cogita fazer dois livros, um com

Paulo Dantas e Ricardo Ramos em Autores Reunidos e um com Mário da

Silva Brito na Editora das Américas: “O convite para o segundo livro,

estendido por Mário da Silva Brito, modifica na base meus planos originais

para o livro que darei à Edições Autores Reunidos. Há o que fazer. (...) Mas

dá vontade, Ilka. O sentimento bom de que estou me realizando, Ilka. Gente

complicada como eu, sentimentalões à toa, à toa, não se realizam à toa, à

350

Idem, de 01/09/59, 351

Idem, de 06/06/60. 352

Idem, de 21/06/60. 353

Idem, de 28/09/59. 354

Idem, de 23/05/61.

Page 184: João Antônio: Uma Biografia Literária

184

toa. (...)”.355

E ele vai mais longe, dando nomes aos livros: “Fazendo

Meninão do Caixote, primeiro livro de contos, e João Antônio Conta

Histórias, segundo livro com contos longos, terei ido à forra [do incêndio

ocorrido no ano anterior] ”.356

“Meu primeiro livro obedeceria a esta

provável colocação:

355

Idem, ibidem. 356

Idem, ibidem.

Page 185: João Antônio: Uma Biografia Literária

185

“Contos Gerais

1- Afinação da Arte de Chutar Tampinhas

2- Retalhos de Fome Numa Tarde de G.C.

3- Natal na Cafua

4- Índios (conto ruim que deve aparecer)

5- Busca

6- Natal por aí (a escrever)

7- Fujie

Sinuca

8- Visita

9- Frio

10- Patroando Paraná (a escrever)

11-Meninão do Caixote (que será conto-título do livro)

Malagueta Perus e Bacanaço fica para o segundo livro.”357

Ficam no ar duas perguntas: 1) por que João Antônio, embora

interessado, não agarrou imediatamente nenhum desses convites?; 2) quem era

o editor desconhecido e por que não entrou no planos dos escritor? Com base

na documentação encontrada, a segunda pergunta não tem resposta. Mas, de

outro lado, é interessante especular sobre os motivos que o teriam levado a

resistir contra seu próprio sonho de publicação. Afinal, ele gostava da sensação

de se ver publicado, visto que batalhava a cada dia para figurar nas páginas

desta e daquela revista, ou em jornais; então por que não fez logo um livro?

Por que, em vez de dividir seus textos em dois conjuntos, não se precipitou a

fazer um o mais rápido possível, antes que os convites murchassem, ainda que

a reescritura da novela “Malagueta, Perus e Bacanaço” não estivesse pronta? A

explicação mais forte para que mais de um ano e meio tenha transcorrido entre

357

Idem, ibidem.

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186

o primeiro convite e o terceiro é que João Antônio não se considerava

literariamente pronto para cristalizar seus contos em livro. As publicações em

revistas eram passageiras, permitindo-lhe mudar e ajustar passagens que

julgasse carentes de melhora. Ele era crítico em relação a seu trabalho. Um

exemplo é sua reação, anos depois, à recepção de “Paulinho Perna Torta”: “A

história de ‘Paulinho Perna Torta’, violenta e quase cruel, arrancou das três

únicas pessoas que a leram até agora uma porção de elogios (ou melhor: foram

quatro pessoas). Maria Geralda do Amaral Mello, Mário da Silva Brito,

Hermann José Reipert e Caio Porfírio Carneiro – todos seus conhecidos, não?

Pois. Alguns acham que superei ‘Malagueta, Perus e Bacanaço’. (...) Mas eu,

honesta e simplesmente, não acho nada disso. (...) Para mim, a novela

‘Paulinho Perna Torta’ tem ainda muitos defeitos de composição, linguagem e

até sintaxe à malandra; e, daqui a um mês quero repegar o trabalho e

decentizá-lo.”358

Mas há outras explicações concomitantes. Uma, que parece reforçada

pela lista acima transcrita, é que ele julgava não ter ainda material suficiente

para fazer o livro em 1959. Havia contos a escrever. Também elaborou mais

de uma combinação possível entre os contos de que dispunha, o que revela sua

incerteza quanto à forma final do livro. Perguntou-se muitas vezes qual o

melhor título: se Meninão do Caixote, se Malagueta, Perus e Bacanaço, se

Aluados e Cinzentos etc. Em 1960, por fim, ele perdeu os originais de

“Malagueta, Perus e Bacanaço”, o que o embotou literariamente por um

tempo, e depois o deixou às voltas com a reescritura da novela. Ou seja, o

primeiro livro tinha lacunas, o segundo precisava ser reescrito.

O ritmo lento da produção editorial, a informalidade mesma das

combinações com as editoras, uma ganância exagerada, de estrear com um

358

Idem, de 08/06/64.

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187

livro já tendo outro engatilhado, o otimismo exacerbado que o cegou para os

percalços econômicos das editoras no país, a insatisfação com a parte

financeira das propostas, são possivelmente fatores adicionais a contribuir para

que ele não fechasse nada com ninguém.

Exatamente neste momento, o presidente Jânio Quadros cortou os

subsídios para diversos setores industriais, entre eles o dos fabricantes de

papel. A isto seguiu-se um drástico aumento nos custos da matéria prima

essencial dos livros.359

João Antônio foi pego no contrapé. Ele escreve a Ilka:

“(...) à instrução 204 o senhor Jânio Quadros anuiu a 208, que é carga terrível.

Livreiros, editôres, escritores e todo o resto do pessoal se assutou de verdade.

Chegou-me à cabeça da crise do problema livro. Papel a não sei quanto.

– E os meus livros? Sairão?

José Olympio, Martins, Saraiva, Brasiliense, Civilização Brasileira,

Francisco Alves, Autores Reunidos – todos reunidos a portas fechadas na

Câmara Brasileira do Livro para debate. Debate vale?

– E os meus livros? Sairão?

Mêdo, Ilka. Esta 208, agora, me aterra.

Uma briga aí nos círculos, jornal descendo o pau. Eu queria saber:

– E os meus livros? Sairão?”.360

Três meses depois, seus receios se confirmam: “Muitas notícias, umas

boas outras más. Mais más do que boas, desta feita em que após as instruções

204 e 208 e renúncia de um ilustre presidente que deixou o Alvorada, em

Brasília, como se deixasse o Clubinho Recretativo Flor de Mandioca numa

ruela do Brás; meus dois livros não sairão. As Edições Autores Reunidos e a

Editôra das Américas não estão dispostas. (...) Entre um Caymmi e um copo,

359

Tais medias foram em conseqüência do déficit fiscal brasileiro e das pressões dos credores estrangeiros.

Ver Fausto, Boris: História do Brasil, São Paulo, Edusp, pp. 439 e 440. 360

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 05/07/61.

Page 188: João Antônio: Uma Biografia Literária

188

Ricardo Ramos me deu a primeira má notícia. Dentro em pouco, Mário da

Silva Brito jogou-me a outra bomba”.361

Difícil não ouvir uma das principais máximas do velho João Antônio

Ferreira, seu pai, que dizia que aos pobres não basta fazerem bem feito, é

preciso que façam duas vezes. Toda a rede de contatos e todas as portas

habilmente abertas por João Antônio para a publicação de sua obra em livro se

fecharam de uma vez só. Como era de seu feitio, sua reação oscilou entre a

fúria e a depressão: “Escrevo atacando govêrno, editôres, mentores de

suplementos e escritores que se calam com covardia. Quem publicará minhas

croniquetas e meus artigos? Não sei. Escrevo atacando. Ataco com

argumentos, falo de alienação, de indiferença dos escritores e dos editores

diante do absurdo com que o governo está matando nossas possibilidades já

fraquinhas”.362

Mais tarde, na mesma carta, o tom é outro: “A não saída de

meus livros me largou triste. Mas de uma tristeza silenciosa, sem desesperos.

Afinal, não foi a qualidade dos contos que impediu a publicação.

Aborrecimento sem motivo fundo, seria. Mais importante é escrever”.363

Alguns meses se passaram, porém, e a situação se reverteu

completamente, ainda no primeiro semestre de 1962. O que se pode deduzir é

que as editoras retomaram seus projetos de publicação, adaptando-se à nova

conjuntura econômica e/ou reconquistando seus subsídios após a renúncia de

Jânio. O momento era de euforia para o jovem escritor, indisfarçável e

merecidamente orgulhoso de si mesmo, que vibrava: “Ilka, venci. Nessa terra

em que todos catam editores, editores é que me catam. Um, dois, três. Três

convites deles, três propostas deles, três negações minhas. É que me queriam

aceitando e não queriam aceitar-me.

361

Idem, de 06/10/61. 362

Idem, ibidem. 363

Idem, ibidem.

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189

Venci, Ilka. E eu nem sei o quê. Uma grande humildade orgulhosa me

enche o coração de grandeza nascida daquilo que realmente é meu, das minhas

andanças, dos meus porres, dos meus vagabundos, dos meus amores a meu

jeito. Só isso eu tenho, Ilka. Amor por tampinhas, histórias de sinuca, procuras.

O meu livro será a única coisa minha que dei, dei, dei. Porque minha. E essas

coisas tão bestas e tão lindas fazem falar os diretores das Edições Autores

Reunidos:

– Você representa São Paulo na presente coleção.

(...) a Ilka merece receber a alegria que sinto agora, hoje, que levo meus

vagabundos, minha tristeza, meus meninos, minhas doidices a um livro, que

me foi solicitado para figurar numa coleção de livros de contos aberta pela

ressonância de um nome atual, como o de Jorge Medauar”. 364

Volta, ao jovem escritor, a idéia de fazer dois livros. A identidade de um

dos três editores, porém, permanece desconhecida nas cartas desse período. O

desconhecido editor a convidá-lo primeiro, dois anos antes, ainda continuava

no páreo?

Mas duas coisas são certas: Ricardo Ramos estava na jogada, em nome

da Autores Reunidos. São palavras de João Antônio: “Ouça: recebo, dia

dêsses, o convite de Ricardo Ramos. Analiso, torço o nariz, imponho

condições. Ricardo me estranha. Eu firme:

‘– Nêgo velho: quero isso e quero aquilo. Senão não tem negócio’.

Houve negócios. A Edições Autores Reunidos lançar-me-á o livro de contos

em edição de gente. Cinco ilustrações dentro do livro. Ilustrador que eu

mandar e pedir. Do lado de lá da capa do livro – retrato meu e notícias.

Prefácio de Mário da Silva Brito. Dinheiro adiantado. E os contos como eu

quizer. Quando eu botar palavrão, há de ser palavrão. Mas eu não prefiro

364

Idem, de 19/05/62.

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190

palavrões. Escolhi Mário”.365

Há duas coisas a comentar a partir dessas palavras de João Antônio. De

um lado, elas dão a impressão de considerável poder de negociação em sua

conduta junto aos colegas do meio. De tratamento “passional” àqueles mesmos

amigos que o ajudavam e que ele tanto respeitava intelectualmente. Assim

como na frase dita para Ilka, na mesma época: “Você merece e talvez esteja

precisando de um grande empurrão. Veja, Ilka: Paulo Dantas é mola para

editor”.366

Em matéria de malandragem, João Antônio não era um teórico,

como já vimos. E poder-se-ia inclusive dizer que ela era a sua natureza

original, mesmo naqueles anos de labuta na propaganda e de inserção no meio

literário. Ele estava no mundo, se virando, cheio de idealismo e cheio de

vontade de se dar bem.

Além disso, vê-se que ele e Mário da Silva Brito tinham uma questão no

que se refere ao uso de palavrões, com o experiente crítico e poeta

condenando-o. E isso vai ao encontro da tese de que, em vários aspectos de

sua literatura, João Antônio pode ter se deixado influenciar diretamente pelos

padrões estéticos de membros seus amigos da segunda geração modernista.

A segunda coisa certa nesse segundo momento de “iminência

publicatória” é que uma nova editora havia entrado no páreo e corrido por

fora, a Civilização Brasileira. O livro de João Antônio fora a ela indicado por

ninguém menos que Mário da Silva Brito, que a essa altura ou se havia

desligado da Editora das Américas ou, diante da impossibilidade de publicar o

livro de estréia do jovem amigo lá, o recomendara ao colega Ênio Silveira).

Dois meses depois de ter fechado com Ricardo Ramos, João Antônio revê sua

365

Idem, ibidem. 366

Idem, de 27/01/62.

Page 191: João Antônio: Uma Biografia Literária

191

decisão e fecha com o dono da Civilização.367

Imediatamente o projeto do

segundo livro desaparece das cartas, e aparentemente de seus planos.

“Malagueta, Perus e Bacanaço”, já reescrita, está incluída no livro da

Civilização com os demais contos escritos, à exceção de “Índios”. E, assim, o

título do livro fica decidido. Teria sido isso uma exigência de Ênio, um desejo

de João Antônio, ou uma desistência de Ricardo Ramos e das Edições Autores

Reunidos? Impossível saber, mas é sempre bom ter todas as hipóteses em

mente.

Fazendo par com a euforia natural de qualquer autor inédito ao saber

que finalmente fechou seu primeiro contrato editorial – quinze dias depois da

carta de Ênio Silveira ele ainda estava “apaixonado pela vida”368

–, ele já

colocava em funcionamento seus estratagemas para o sucesso – “Tenho

travado contatos para Malagueta, Perus e Bacanaço. Os amigos têm recebido

a notícia com grande expectativa e alegria. Ando traçando um plano de venda

para o livro, que abrangerá todos os meus conhecidos em diversos setores.

Assim, além da venda normal que a Editora Civilização Brasileira fará do

livro, além de distribuição em todo o país, procurarei pedir aos amigos – sem

nenhuma vergonha – que propaguem e até vendam meu livro. Tenho obtido,

em princípio, bons resultados”.369

Também no período de lançamento do livro, o amigo e mentor Mário da

Silva Brito teve participação destacada. Isso porque, aproximadamente cinco

meses depois da assinatura do contrato com Ênio Silveira, João Antônio conta

a Ilka que Mário da Silva Brito tornara-se diretor editorial da Civilização

Brasileira.370

Ele então supervisiona a noite de autógrafos no Rio de Janeiro371

,

367

Carta de Ênio Silveira a João Antônio, de 09/07/62. 368

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 12/09/62. 369

Idem, de 25/08/62. 370

Idem, de 20/03/63.

Page 192: João Antônio: Uma Biografia Literária

192

e promove o livro junto ao meio literário. De lá, também, intermedia sua

inclusão na antologia de contistas Os Dez Mandamentos, para a qual, como já

se viu, João Antônio escreve “Paulinho Perna Torta”. Insta-o a aprontar o

romance Jordão. E não teria ele alguma coisa a ver com o fato do Conselho

Estadual de Cultura de São Paulo incluir João Antônio numa antologia de

contistas372

, ou com os prêmios que o livro recebe, o da Prefeitura

Municipal373

e o Fábio Prado, e os dois prêmios Jabutis, concedidos pela

CBL?374

Uma coisa é certa: apenas os críticos mais distraídos do eixo Rio-São

Paulo foram pegos de surpresa pelo estreante. Muitos de seus contos já haviam

sido publicados, alguns mais de uma vez, e mesmo a novela “Malagueta, Perus

e Bacanaço”, a última a ser escrita, já havia ganho fama após o prêmio Fábio

Prado.

Alianças secundárias, uma força para os amigos e a ética das alianças

Além desses aliados preferenciais no seu trabalho consciente e

meticuloso de inserção no meio literário, havia amigos menos constantes que,

entretanto, deram sua contribuição. Alguns já foram mencionados, mas agora

suas ajudas específicas merecem ser citadas: o escritor Jorge Medauar375

, que

lhe abre as portas do Diário de São Paulo; Joaquim Pinto Nazário, editor da

371

Idem, de 07/06/63. 372

Idem, de 30/07/64. 373

Idem, de 04/05/65. 374

Idem, de 26/10/64. 375

Idem, de 23/09/59. Em carta a Ilka, de 10/12/59, diz que graças a Jorge Medauar terá texto seu, não

identificado, publicado no Diário de São Paulo. Em carta de 07/03/60, confirma que Joaquim Pinto

Nazário, editor da página de literatura deste jornal, publicará seu conto com destaque. O conto é “Retalhos

de Fome...”. Outros contos seguir-se-iam.

Page 193: João Antônio: Uma Biografia Literária

193

página literária do mesmo jornal e que publica mais de um conto; Fúlvio

Camargo, diretor de “um departamento” da editora Cultrix376

, co-promotora,

junto com o jornal Última Hora de Ricardo Ramos, de um concurso de contos

que João Antônio vence377

, antes ou depois de fazer Fúlvio seu amigo, pouco

importa; Maria Geralda do Amaral Mello, escritora a quem ele muito

admirava378

, Paulo Bonfim, então assumindo cargo de diretor de criação da

Revista SR, que o convida a apresentar trabalhos379

, Rolmes Barbosa, que

mantinha a coluna semanal sobre livros no “Suplemento Literário” d’ O

Estado de São Paulo380

; Levi Carneiro, da Revista Brasileira381

; Nelly Novaes

Coelho, professora de literatura, que tenta publicá-lo em Portugal382

, Antônio

D’Elia, que o incentiva desde 1959 a concorrer ao prêmio Fábio Prado, o que

só se arrisca a fazer quase três anos depois383

; um amigo jornalista do Ceará

não nomeado, conhecido quando ainda trabalhava no Diário Carioca, mas que

agora, de volta a sua terra, trabalhava em um jornal e tenta dar a João Antônio

uma coluna semanal384

; contatos não nomeados nos jornais cariocas Correio

da Manhã, Diário de Notícias e Jornal do Comércio; Paulo Amaral Mello, do

Jornal do Comércio de Recife385

, Renard Peres, editor da revista Leituras, que

lhe pede trabalhos386

, Manoel Lobato, que escrevia para um jornal de

Vitória387

, Décio de Almeida Prado, um dos cabeças do suplemento literário

376

Idem, de 28/09/59. 377

Idem, de 01/09/59. 378

Idem, de 30/06/64, na qual ele diz que foi quem arrumou para o livro de estréia de Maria Geralda, As

Três Quedas do Pássaro, ser publicado pela Civlização Brasileira, em 11/08/65. 379

Idem, de 28/09/59. 380

Rolmes teria dito sobre ele: “(...) luta com um problema: a idade. Mas é nossa melhor esperança”. Idem,

de 22/04/60. 381

Idem, de 18/2/62. 382

Idem, de 30/07/64. 383

Na edição de que efetivamente participa, as inscrições do concurso terminavam em 31/3/62. Idem, de

27/01/62. 384

Idem, de 21/06/60. 385

Idem, de 27/01/62. 386

Idem, de 30/07/64. 387

Depoimento colhido por esta pesquisa em maio de 2000.

Page 194: João Antônio: Uma Biografia Literária

194

do Estado de São Paulo388

; Paulo Emílio Salles Gomes, com quem diz ter um

projeto comum389

, Ênio Silveira, que após a publicação do livro lhe

encomenda mil trabalhos390

, Esdras do Nascimento, que lhe abre as portas da

Tribuna da Imprensa, no Rio, publicando “Meninão do Caixote”391

,

encomenda a ele um texto sobre o livro que acabaria tornando-se seu

prefácio392

, e publicando uma série de artigos sobre seu livro quando da

publicação um ano depois393

; etc.

Por fim, vale citar novamente Sérgio Milliet. Embora não se tenha

informação de nenhuma ajuda concreta que possa vir a ter dado a João

Antônio, nas cartas para Ilka ele reproduz, em forma de anedota literária, um

episódio que envolve o veterano modernista e o jovem escritor, e ratifica assim

a informação de que se conheciam:

“Uma Piada Lírica

– retalho de uma conversa com Sérgio Milliet em 23-11-60, ou melhor,

na madrugada do dia seguinte, às quatro. Restaurante Parreirinha, ambiente

popular, Rua Conselheiro Nébias, dois ovos estrelados com farinha de

mandioca e conhaque –

Vamos fingir. Não há correios, nem há carteiros. Para cidades próximas 388

“Mário da Silva Brito abriu-me novas portas. Décio de Almeida Prado também.” Carta a Ilka Brunhilde

Laurito, de 08/09/60. Segundo João Antônio na mesma carta, os contos “Meninão do Caixote” e “Visita”,

por essa época, estavam para ser publicados pelo O Estado de São Paulo. Mas, localizados por esta

pesquisa, foram “Busca”, publicado em 11/04/59, e “Frio”, em 01/08/59. 389

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 30/08/65. 390

Entre 1964 e 65, João Antônio colabora regularmente com a Civilização Brasileira. 391

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 26/12/62. À vitória neste concurso da Tribuna, e à publicação nos

jornal, somava-se a inclusão do conto numa antologia a ser lançada pela editora GRD. Carta a Ilka

Brunhilde Laurito, de 26/12/62. A antologia de fato veio à luz. Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 26/10/64. 392

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 22/01/63. Os artigos publicados por Esdras são assinados por Guido

Wilmar Sassi. 393

A série de artigos intitula-se “Os Contos de João Antônio”, tendo sido publicada nos dias 24/06/63,

25/06/63, 26/06/63. Tribuna da Imprensa, seção Livros, Rio de Janeiro, 1965.

Page 195: João Antônio: Uma Biografia Literária

195

como Campinas e Jundiaí e que tais, vamos fazer de conta que fôsse assim.

Assim sendo, pombos fazem o correio. Vamos fingir. Praça da

República é partida e sede dos pombos.

Parte um pombo para Campinas. Diz à companheira que voltará dentro

de dois dias. (amam-se furiosamente e vivem vida passional com regular

fidelidade).

Mas o pombo se demora três-quatro dias, uma semana. A pomba é

cortejada por outros pombos, que são uns safados. A pomba não desliza.

Volta o pombo. Ciumeira danada.

– Seu isso, seu aquilo, seu cachorro, tipo à toa!

O pombo emagreceu, está poento. Se êle fosse um homem poder-se-ia

dizer que estava pálido. Como não é homem, que continue poento e mais

magro.

– Foram as farras, seu!

Há doçura na tarde, o pombo se justifica e a tarde fica mais azul:

– Nada, meu amor. Sabe por que me demorei tanto? É que os dias... Os

dias estavam tão bonitos, tão bonitos, que eu resolvi voltar a pé.”394

Além dos interesses literários, pode-se ver alguns outros pontos em

comum nas pessoas cujos nomes foram citados. Na esmagadora maioria,

vinham de famílias de maior respaldo social (educação, saúde, moradia e

poder de circulação) que João Antônio. Muito freqüentemente, estavam

melhor colocadas do que ele no mercado de trabalho. Por fim, algumas haviam

escrito obras já respeitadas e consolidadas. Sendo assim, e analisando-se o

contexto das menções a elas feitas nas cartas para Ilka, pode-se dizer que –

simultaneamente a sentimentos reais de amizade e admiração intelectual –

João Antônio construíra uma rede de pessoas que, sim, amavam a literatura

394

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 17/11/60.

Page 196: João Antônio: Uma Biografia Literária

196

como ele, mas que estavam na condição de ajudá-lo, fosse abrindo espaço para

seus contos em jornais ou revistas, aproximando-o de editores, presenteando-o

com livros, apresentando-o a outras pessoas, enfim, aproximando o jovem

escritor suburbano, então modesto redator de uma agência de publicidade, sem

sequer casa fixa, do centro dos acontecimentos. Fora justamente da busca do

reconhecimento literário que haviam nascido todas as aproximações.

Finalmente o menino suburbano, mau aluno, mau filho, deslocado, encontrara

um meio de auto-realização. Seu idealismo quase romântico, já aludido,

convivia com um savoir faire pragmático, como o do malandro exatamente,

seu personagem mais usualmente lembrado, que é suave enquanto arranca

tudo do “pato”.395

Exatamente como em sua relação com o amor entre homem

e mulher, a idealização excessiva e o desejo de que o amor o espiritualizasse

conviviam diariamente com a mais rasteira boemia sexual.

Mas ninguém existe no mundo apenas sob um ponto de vista. Em pelo

menos três casos importantes, João Antônio estabeleceu relações de mão dupla

com os amigos, ora ajudando, ora sendo ajudado. Ilka Brunhilde Laurito,

Hermann José Reipert e Caio Porfírio Carneiro estavam em igualdade de

condições com ele, pelo menos do ponto de vista da inserção literária.

Ao longo daqueles anos, 1959 a 1965, além de professora, Ilka escreveu

crônicas, poesias e novelas. Além, é claro, de ler e comentar tudo que ela lhe

mandava, mais de uma vez João Antônio usou seus contatos para favorecê-la.

Um primeiro caso diz respeito a uma Semana Mário de Andrade, que ela

organizava em Campinas. João Antônio lhe promete arranjar ítens para a

395

Mais de um dos entrevistados nessa pesquisa confirmaram que João Antônio era habitual pregador de

pequenos golpes entre amigos, do tipo prometer rachar o táxi e sair andando porta afora na chegada, ou

despistar e sair da mesa do restaurante na hora de rachar a conta, pedir livros de presente, etc. Além disso,

seu histórico com os editores, sobretudo a partir dos anos 80, é de suprema desconfiança. Como se o preço

por ser malandro fosse a paranóia. Um exemplo: “João Antônio foi o cara mais unha de fome que eu

conheci na vida, não pagava nem cafezinho pra Cristo”. Depoimento de Caio Porfírio Carneiro, colhido

para esta pesquisa em maio de 2000.

Page 197: João Antônio: Uma Biografia Literária

197

exposição com seus amigos Mário da Silva Brito e Menotti del Picchia.396

Mas

a luta pela publicação era o terreno onde aconteciam as verdadeiras

demonstrações de cumplicidade. E, na mesma carta, pede-lhe uma crônica, que

iria tentar publicar numa revista ainda em gestação.397

Em seguida, ao

anteriormente mencionado jornalista amigo no Ceará, para quem ele próprio

escreveria semanalmente, quer enviar crônicas de Ilka para publicação.398

Em

outro momento, também já citado, instiga-a a usar Paulo Dantas como

intermediário a uma editora.399

Recomenda, em diferentes ocasiões, que ela

procure os editores de suplementos literários José Armando Pereira400

e Décio

de Almeida Prado401

, apresenta sua novela “Por Um Fio” a vários de seus

amigos, entre os quais Marcos Rey e Mário da Silva Brito, conseguindo-lhe

elogios e publicação no jornal Última Hora402

(Ricardo Ramos ainda estaria

por lá?), e mais tarde pede novamente que procure Marcos Rey.

Porém, ainda uma coisa mais: João Antônio incentivava-a regularmente a

escrever. Ela, entretanto, não tinha a literatura nem como missão e nem como

única forma de realização individual e social. Antes dividia seus interesses e

exercitava seu talento em vários domínios, em suas múltiplas atividades, que

incluíam por exemplo o canto e o estudo de violão. Mesmo sua atividade

literária ramificava-se por vários gêneros, sem preocupar-se com a

especialização. As cartas dão a impressão de que ela resistia inclusive a ser a

publicada. Mas João Antônio, mesmo assim, vivia tentando torná-la uma

396

“Mário da Silva Brito anda doente. Assim que ele melhore e volte à circulação tratarei sobre coisas do

modernismo, catarei algo sobre Mário de Andrade. Por estes dias irei a Menotti del Picchia e exporei seus

planos.” Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 24/03/60. 397

“É que amigos meus, ou simplesmente conhecidos, mas boa gente todos, andam aí a fundar uma nova

revista. Terá dimensões de Visão e livres assuntos, à maneira talvez aproximada da revista SR.” Carta a Ilka

Brunhilde Laurito, de 24/03/60. 398

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 21/06/60. 399

Idem, de 27/01/62. 400

Idem, de 20/03/63. 401

Idem, de 01/07/65. 402

Idem, de 18/02/65.

Page 198: João Antônio: Uma Biografia Literária

198

escritora profissional: “Ilka, não quero lhe jogar lantejoulas ou confetes. Nem

lhe agradar, nem nada. Nem lhe incentivar. Mas peço e repeço que se enfie

novamente na produção de outra novela. Sei que escrever é ruim, por princípio

– é duro e é difícil. Contudo, você sabe, é preciso produzir. A gente precisa

acreditar que tem a obrigação de aproveitar o pouco ou muito talento com que

nasceu. É preciso construir nesse sentido. Faça uma nova novela. Depois,

aprofunde e/ou estique ‘Por Um Fio’. Ali existem possibilidades sérias, a meu

ver. Entre mais na vida de Maria Eulália [a personagem principal do texto].

Queime as pestanas”.403

E depois: “Saiu a novela em UH. Ótimo. Apanhe o

tutu (ainda é só oitenta mil mangos?) e mande-se a fazer outra. O que é que

está esperando? O trem das onze? Ora...

Outra coisa semi-bêsta é essa de ‘PRECISO ESCREVER

REGULARMENTE PARA UM JORNAL OU REVISTA’. Embora respeite

em parte, acho francamente que, no fundo-fundo é desculpa. Você PRECISA

ESCREVER – isto sim. Pois faça o romance baseado em seus diários. Faça

nova novela para UH e depois procure o Marcos Rey (...)”.404

Em outra oportunidade, ele lhe escreve: “Mais umas palavras, falando

dos seus escritos. E dos meus. O Rosto de Deus me deixa com vontade de

possuir um jornal meu ou revista em que se pudessem publicar coisas suas.

Acho simplesmente legítima essa sua crônica”.405

Com Caio Porfírio Carneiro e Hermann José Reipert o negócio era bem

diferente. Ambos eram escritores convictos, a relação era mais igual. Caio,

nascido em 1928, era natural do Amazonas, mas criado em Fortaleza. Morava

em São Paulo desde 1955, trabalhando com o irmão em sua empresa

imobiliária. Havia refugado em sua primeira oportunidade de publicação,

403

Idem, ibidem. 404

Idem, de 14/04/65. 405

Idem, de 31/08/65.

Page 199: João Antônio: Uma Biografia Literária

199

acertada com a editora Saraiva no mesmo ano de sua chegada, e desde então

começara “a escrever outro [livro] baseado em contos regionais da fazenda do

Ceará”.406

Em seguida, começou a testar seus contos em concursos, vencendo

sete deles no espaço de poucos anos. Por fim, ele e João Antônio mediram

espadas no concurso literário promovido por Ricardo Ramos e pela Editora

Cultrix no Ultima Hora. Este concurso, já mencionado, tinha como orientação

temática o Natal. A comissão julgadora era formada por Lygia Fagundes

Telles, Ricardo Ramos e Antônio de Lia. João Antônio tirou primeiro lugar,

com “Natal na Cafua”, Julieta Godoy Ladeira tirou segundo e Caio Porfírio,

terceiro. Conheceram-se os três e ficaram amigos no dia da premiação. Julieta,

uma mulher muito bonita, casaria depois com Osman Lins, também escritor,

tendo sido provavelmente quem o apresentou a João Antônio. Mas foi sua

amizade com Caio que teve maior duração e profundidade. Ambos

trabalhavam no centro, e saíam para beber regularmente depois do trabalho.407

Conta Caio: “(...) ele era muito novinho [Caio era nove anos mais velho], mas

já tinha uns contos, já tinha escrito três ou quatro contos, estava idealizando

escrever, já estava esquematizando ‘Afinação da Arte de Chutar Tampinhas’,

estava quase pronto ‘Meninão do Caixote’ e fez amizade com a minha família.

Então ele ia e almoçava lá em casa; minha mãe gostava muito dele”.408

Caio teria seu primeiro livro publicado em 1961409

, contando com

prefácio de Ricardo Ramos. João Antônio vibrou com o fato: “Entendo o que é

um livro quando Caio Porfírio Carneiro publicou o dele. Um livro pronto.

Tudo o que dele já conhecíamos toma de repente uma imponente e doce

dignidade. (...) Vivi Trapiá antes dele assim se denominar. Acompanhei

406

Depoimento colhido para esta pesquisa em maio de 2000. 407

Idem. 408

Idem. 409

Trapiá, Francisco Alves, S. Paulo, 1961, primeira edição.

Page 200: João Antônio: Uma Biografia Literária

200

muitas de suas coisas e as amei como amo, agora, os esboços que Caio fez de

suas novelas sobre o sal”.410

E que tipo de ajuda um escritor em fase ainda menos adiantada da

carreira poderia dar a Caio naquele momento? Bem, uma coisa é companhia

nos momentos de grande emoção. João Antônio menciona em suas cartas para

Ilka uma viagem que faria até Fortaleza, com Mário da Silva Brito e Paulo

Dantas, para o lançamento de Caio.411

Tal viagem, porém, foi adiada e

finalmente cancelada.412

Mas para que isto não soe exageradamente

sentimental, é importante registrar que João Antônio escreveu uma resenha

/crônica sobre o livro e tentou publicá-la em Campinas, por intermédio de Ilka,

que lá dava aulas.413

Mais tarde, volta a perguntar sobre o assunto.414

Era ele

ajudando na divulgação, e é muito provável que ela não tenha sido a única

destinatária do texto.

Caio, por sua vez, teve participação importante na reescritura de

Malagueta, Perus e Bacanaço, graças aos trechos que guardara após sua

leitura crítica. Tempos depois, ajuda o amigo a revisar as provas do livro, que

percorria sua produção na Civilização Brasileira.415

Anos mais tarde, a relação de ajuda mútua continua: “Tenho ajudado os

outros, também. Arranjei para Caio Porfírio Carneiro publicar o seu Sal Verde,

ou melhor, Sal da Terra (novela) pela Civilização Brasileira”.416

Não contente

com isso, João Antônio escreve uma pequena apresentação ao livro.417

Isto

ocorreu em 1965. A esta altura, ao que parece, a balança mudara de posição

410

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 13/09/61. 411

Idem, de 25/12/60. 412

Idem, de 06/10/61e 18/02/62. 413

Idem, de 13/09/61. 414

Idem, de 27/01/62. 415

Idem, de 20/03/63. 416

Idem, de 30/07/64. 417

O Sal da Terra, São Paulo, Ática, s/d. Idem, de 08/10/65.

Page 201: João Antônio: Uma Biografia Literária

201

entre os dois escritores, e aquele nove anos mais moço, porém empregado no

Jornal do Brasil, como repórter especial do Caderno B, e unha e carne com

Ênio Silveira, com quem estava envolvido em mil projetos de livros e revistas,

encontrava-se em condição de realmente contribuir para o sucesso do livro do

outro.

Com Hermann José Reipert, João Antônio também fez uma amizade

sincera: “Conheci Hermann José Reipert por circunstância, num papo que

batíamos eu e Paulo Dantas. Naquela ocasião apenas pude sentir a presença de

um homem tímido.

Honestamente, não me interessei pela Travessa do Elefante, Sem Número

[título do primeiro livro de Hermann].

Vindo o livro, li numa noite. Agüentar não agüentei e peguei num

telefone e disse a Hermann.

Conheci, então, um dos autênticos escritores destes lados, Ilka. Um

delirante, no melhor sentido e sabor que esta palavra pode emprestar a si

mesma. Um trágico na contingência irremediável de sua natureza. (...)”.418

Lido o livro, João Antônio lança uma profecia: “Livraria Francisco Alves

talvez nem o merecesse. Deixa estar que Ênio Siilveira ainda descobre

Hermann José Reipert. Que tem dois livros na gaveta”.419

A amizade resulta numa viagem dele e do “extraordinário Hermann” para

o Parque Nacional das Agulhas Negras, onde João Antônio passará seu

aniversário.420

E numa orelha para o segundo livro de Herbert, não por acaso

efetivamente publicado pela Civilização Brasileira poucos anos depois.421

Realmente, sendo Herbert um tímido, a balança daquela amizade parece estar

418

Idem, de 26/12/62. 419

Idem, ibidem. 420

Idem, de 22/01/63. 421

Idem, de 08/10/65.

Page 202: João Antônio: Uma Biografia Literária

202

ainda mais voltada para uma posição em que João Antônio aparece como

quem ajuda, e não como quem é ajudado.

Essa ajuda mútua entre amigos, entretanto, obedecia a uma ética que,

pelo menos nas cartas, é dita e repetida. João Antônio só se dispunha a ajudar

um colega escritor quando realmente gostava do livro. Aqui, novamente, ao

que tudo indica, um idealismo radical temperava suas atitudes. Um exemplo,

quando recomenda o livro de Caio a Ilka: “Caio fêz um bom livro, lhe garanto.

Se não fôsse bom o Trapiá eu faria coisa alguma – você me conhece. Trapiá é

bom e eu acato e prestigio e acho que faço um dever”.422

Outro exemplo, um

pouco mais dramático, é relatado por Manoel Lobato, amigo e escritor

mineiro, também um grande amigo com quem João Antônio jamais haveria de

perder contato, e que era uma espécie de revisor oficial da gramática de seus

textos. Anos depois, já um escritor famoso, João Antônio é jurado num

concurso literário no qual Manoel Lobato é um dos candidatos. Terminada a

votação, Lobato pergunta como foi seu voto, e recebe de João Antônio

garantias de que seu voto lhe é extremamente favorável. Mais tarde, tendo

acesso aos votos escritos dos jurados, Lobato descobre que João Antônio na

verdade recomendara a premiação de outra pessoa.423

O entusiasmo que as cartas mostram pelos livros de Caio Porfírio

Carneiro e Hermann José Reipert parece confirmar esse escrúpulo de João

Antônio. De fato, mesmo com todo o incentivo que dava a Ilka, ele era muito

preciso em seus juízos, elogiando na exata medida que desejava. Certo dia, lhe

escreve: “ ‘Os Reis da Sorte’ está bom, dentro daquilo que você pretende.

Parece-me que, ganhando a coisa assim em flagrantes e pormenores, você

acabará compondo painéis autênticos. Quer saber a minha opinião verdadeira

422

Idem, de 13/09/61. 423

Depoimento colhido por esta pesquisa em junho de 2000.

Page 203: João Antônio: Uma Biografia Literária

203

sôbre seu trabalho? Eu sinto São Paulo nêle. É legítimo”.424

Ele próprio fala a respeito de como lidava com essa situação. Uma vez,

em 1960: “não sou um catador de pérolas, leio e sinto”.425

E outra cinco anos

depois, após comentar poemas de Ilka: “Seria preciso uma longa conversa, que

envolveria fatalmente muitas coisas relativas à Arte e à Vida, para que você

compreendesse que, de uns tempos para cá, eu venho aprendendo a dispensar o

‘otimismo’. A vida não dá meios tons, Ilka. Ela é. Simplesmente. E não perde

tempo com suavizações e jeitinhos. Ela bate para ferir e acertar. Para que,

diante dela ou da sua retratação ou recriação, andarmos com panos quentes ou

jeitinhos? Ora.

(...)

Minha opinião é de que um escritor, poeta, ensaísta, escreve coisas

quando tem algo a transmitir. Portanto, embora fazendo algo que, antes de

tudo, é para ele mesmo, no fundo é um homem que deseja mostrar as coisas

que faz. Para tanto, as publica. É quando não deve publicar nada de graça. (...)

Eu vou tentar editor para um livro seu. De poesia. E nessa base aí acima”.426

Porém mesmo Ilka, de vez em quando, era chamada a colaborar com o

bom andamento de sua carreira. Por exemplo quando, após a publicação do

livro, e estando ela em Londres, ele duas vezes lhe pede que sonde canais de

tradução de seu livro para os países europeus.427

424

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 14/04/65. 425

Idem, de 22/04/60. 426

Idem, de 31/08/65. 427

Idem, de 19/07/64 e 30/07/64.

Page 204: João Antônio: Uma Biografia Literária

204

Diga-me com quem tu andas...

Estabelecida a rede de relações literárias do jovem João Antônio, não

obstante as lacunas pontuais e a incompletude do conjunto, mais ou menos

pôde-se compreender em que sentidos essas relações podiam funcionar (ele na

posição de favorecido, ele em igualdade de condições, ele na condição de

“mola” para os outros). Postos os dados, é interessante especular se sua rede,

além de amizade e vantagens profissionais, estava de fato amparada em ideais

estéticos comuns. Na prática, não havia, em absoluto, nenhuma idéia de grupo

mais consistentemente verificada, isto é, uma atuação em bloco e um projeto

absolutamente coerente entre membros, com manifestos ou coisa do tipo.

Eram alianças que se verificavam, em ajudas pontuais. Uma leitura crítica, um

contato visando publicação, uma resenha. Mas essas eram iniciativas que

beneficiavam um indivíduo por vez, e não um grupo formalmente constituído.

Na teoria, porém, é natural que, subjacente a essa movimentação “de

guerrilha”, houvesse uma pauta comum, mais ou menos implícita, de

procedimentos técnicos e/ou ideológicos. Não há de ser no levantamento dos

nomes de seus colegas mais próximos que os rumos da trajetória estética de

João Antônio irão de fato se explicar. Afinal, entre 1959 e 1965 ele só fez

aumentar sua rede de contatos, sem entretanto alterá-la substancialmente. Se

os contatos literários de fato correspondem a um “momento” de uma

orientação estética, e se de fato houve uma alteração nesses rumos, então é a

própria rede de contatos que, por ser mais informal e frouxa do que a

organização de um grupo, permite e dá condições para que o artista evolua

dentro dela própria.

Na tentativa de identificar quais seriam os primeiros ideais estéticos, e

portanto ideológicos, agindo sobre o jovem João Antônio, seria talvez

Page 205: João Antônio: Uma Biografia Literária

205

interessante pensar em dois de seus aliados de primeira hora, mentores na

carreira: Ricardo Ramos e Mário da Silva Brito.

Ricardo Ramos, em sua página no suplemento literário do Última Hora,

na abertura de pequenas resenhas, faz algumas considerações sobre o tipo de

estreante que ele gostava. Escreve ele: “Não somos dos que acham deva

necessariamente o estreante apresentar novidades, entrar em tom de quem

pretende ‘arrombar as portas da eternidade’. Como escreveu Drummond, bem

poucos o fizeram, e o seu número e a sua maneira somente as reforçaram. Por

outro lado, há inovações que enganam, confundem, escondem várias

deficiências, desde as de pensamento às de estilo. Isso nos faz preferir o autor

novo que vê na literatura não um torneio a vencer, uma conquista que

prescinde da aprendizagem e para a qual bastaria o auxílio ou a participação de

muitos, mas uma atividade solitária, uma forma de contribuição que se

desdobrará por acúmulo, certamente lúcida e honesta. É possível que se veja

nisso uma atitude meio conservadora. Engano. Apenas se pretende distinguir

os que vêm com alarde, dos que não precisam de clarinadas para se impor. E

destes, sem dúvida, é que vive a literatura”.428

Antes disso, ele identificara a porta por onde os bons estreantes estavam

entrando: “A maior freqüência do conto nos últimos tempos, vem favorecendo

o debate em torno do gênero. Nunca se teorizou tanto, nem se procurou

classificar autores e tendências com maior fúria. (...) Um pequeno setor da

crítica, por exemplo, agrupa autores mais novos de estranha maneira. Uns

descuidados com o lado formal, pretenderiam o espontâneo, a explosão, o

renovar através de experiencias múltiplas. Outros se encaminhariam para as

fontes da história curta, avançariam por acréscimo, em pesquisa lenta, mais

428

Trecho de resenha sobre o livro Galos de Aurora, de Hélio Pólvora. Última Hora, Rio de Janeiro,

27/011/58, p.21.

Page 206: João Antônio: Uma Biografia Literária

206

atentos à linguagem e à construção literária. À margem dos jornais, seriam

apontados como escritores precários ou frio tecnicistas. Ora, sabemos que,

apesar de algumas inclinações mais acentuadas, não chegaríamos à total

inclusão de ninguém nêste ou naquele grupo, já que antes prevaleceria o

critério de contistas verdadeiros ou não. Esse é sem dúvida um aspecto lateral,

quase desimportante, mas que diz bem de uma atmosfera, de uma nova fase de

ascensão de um gênero. Convém registrá-lo. Pois enquanto floresce a crônica

ou a conversa, vivendo sempre de contribuições poucas, isoladas, mas nítidas,

o conto se enriquece mesmo nas estréias, com autores que nos chegam alheios

ao colunismo, à ação entre amigos, voltados para as suas reservas amplas e

sérias”.429

Muita coisa poderia ser dita sobre estes dois pequenos trechos de Ricardo

Ramos, por exemplo, a imensa responsabilidade que deveria pesar sobre ele,

de ser um ainda jovem escritor sendo filho de Graciliano. Mas, mantendo o

foco em João Antônio, por tudo que já se viu, pode-se dizer que ele obedecia

fielmente ao figurino prescrito pelo resenhista. Não arrombava as portas da

literatura. Enviava seus contos, ouvia opiniões de literatos mais experientes,

tinha perfeita consciência e absoluto respeito pelas correntes estéticas que

haviam revolucionado a literatura brasileira desde 1922. Além disso, era

contista e, sendo contista, era da família dos que “avançariam por acréscimo,

em pesquisa lenta, mais atentos à linguagem e à construção literária”. A

intenção de obter apuro formal sempre foi assumida por parte do jovem

escritor, e flagrante em seus contos.

Mário da Silva Brito teve oportunidade de escrever sobre João Antônio

429

Trecho de resenha sobre o livro Água Preta, de Jorge Medauar. Última Hora, Rio de Janeiro, 11/09/58,

p.21.

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207

na orelha de seu livro de estréia.430

Seria exagerado reproduzi-la na íntegra,

porque longa demais. Ao invés disso, que sejam ressaltados seus pontos

básicos: 1) classifica João Antônio como um contista urbano e ao mesmo

tempo evoca e renega uma semelhança entre ele e dois escritores, cada um a

seu modo, tipicamente urbanos: Antônio de Alcântara Machado e o americano

Damon Runyon; 2) identifica o universo ficcional do estreante como o das

“criaturas sem eira nem beira” das grandes cidades; 3) chama atenção para o

universalismo dos contos, decorrente da ausência do tom pitoresco, dos traços

caricaturais; 4) elogia a elaboração e a espontaneidade da linguagem; 5)

destaca a novela-título como o melhor trabalho, por sua “linguagem orgânica

em termos de sintaxe específica, incorporada à língua geral, e não simples

efeito, mero ornamento, espécie de décor lingüístico. Linguagem que

funciona, tonifica a sua frase, faz o seu estilo, fundamenta a sua verdade

humana e artística”.

A evocação de Damon Runyon, mais inesperada, é entretanto facilmente

explicada. Os personagens do escritor americano eram bookmakers, cafetões,

prostitutas, jogadores etc. A mesma “fauna” dos contos de sinuca do jovem

escritor. Mas a comparação com Antônio de Alcântara Machado parece capaz

de suportar dois níveis de leitura. No primeiro, além de serem ambos contistas

urbanos, a óbvia coincidência de dois elementos básicos para qualquer livro de

ficção: a cidade eleita para abrigar os enredos, São Paulo, e a classe social dos

personagens, o proletariado e suas adjacências. A comparação era antiga, e

antecedia de muito ao lançamento do livro. No entanto, há uma diferença de

tom entre Antônio de A. Machado e João Antônio. Assim como Mário da

Silva Brito, muitos outros críticos viram que, do ponto de vista do pathos com

430

Brito, Mário da Silva: “Os Malandros Paulistas Entram na Literatura”, in João Antônio: Malagueta,

Perus e Bacanaço, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1963, 1a edição.

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208

que cada um dos escritores impregnava sua obra, Alcântara Machado era um

escritor mais leve, mais superficial, mais afeito a caricaturas e tipificações.

Sérgio Milliet, em sua resenha do livro de João Antônio, também evoca a

semelhança e a rechaça: “Todos aspiram a cantar a sua terra. E há mil

maneiras de cantá-la. Em tom de louvação ditirâmbica, como o fizeram os

românticos, com certo sentimentalismo marcado de humor, ver Antônio de

Alcântara Machado ou Mário Neme, ou simplesmente com amor a desculpar-

lhe as fraquezas, e é o caso de João Antônio em seus contos intitulados

Malagueta, Perus e Bacanço. (...)

Antônio de Alcântara Machado registrou a fala do italianinho, de novo

mameluco: João Antônio já não se preocupa mais com o pitoresco do filho do

imigrante. Os heróis de hoje são outros (...) São mais complexos, de uma

psicologia mais requintada, embora se afigure mais corriqueira”.431

Fernando Góes, um dos jurados do prêmio Fábio Prado, justificava assim

a escolha do livro de João Antônio: “entrou pela noite, absorvido na leitura de

histórias que, de perto, faziam lembrar o maior contista de costumes

paulistanos, o grande Antônio de Alcântara Machado”.432

Em sua resenha sobre Malagueta, Perus e Bacanaço, Bráulio Pedroso,

crítico do Estado de São Paulo, é mais incisivo: “E sabemos agora, passado o

impacto da renovação modernista e do entusiasmo fácil pelo novo, como são

caricatas e anedóticas as histórias de Alcântara Machado (...)”.433

Em que pesem as variações do apreço que esses resenhistas tinham por

Alcântara Machado, mesmo os que lhe reconheciam o valor tinham nítida

consciência de que a literatura de João Antônio era mais densa. O juízo que

431

Milliet, Sérgio: “Alguns Malandros”, in O Estado de São Paulo, SP, 23/07/63 432

Entrevista a Sadi Carnot Santana, intitulada “Vagabundagem Ganha Três Reis”. O recorte que faz parte

do acervo do escritor não informa sua procedência. 433

Pedroso, Bráulio: “São Paulo Tem o Seu Romancista”, in O Estado de São Paulo, 16/08/63.

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209

impera, já presente nas linhas de Sérgio Milliet, é que João Antônio não olhava

seus personagens à distância, como um fenômeno social. Continua Bráulio

Pedroso: “(...) literariamente, João Antônio não é um cronista, um repórter, um

simples narrador de fatos verdadeiros. É um escritor, comprometido com seus

personagens, entranhado nas suas peles, nos seus sentimentos. Já este não era o

caso de Alcântara Machado com seus ‘italianinhos’”.434

João Alexandre Barbosa, crítico pernambucano que mais tarde viria para

São Paulo e mais tarde ainda faria a apresentação do último livro do escritor,

na época de sua estréia já assinalava essa ligação visceral entre ele e seus

personagens, identificando um realismo emocionado em seus contos: “E isto

João Antônio revela saber muito bem: a sua arte agarra pela raiz o significado

dessas pequenas vidas miseráveis que a organização social põe de lado, em um

louco processo de desumanização e morte lenta. Mas sem cair na lamentação

chorosa ou no panegírico das frustrações. (...) O que é muito importante é que

este roteiro não é simplesmente descrito ou fotografado, mas relacionado com

toda a gama de experiências vitais que carregam os três jogadores”.435

Mário da Silva Brito também concorda com a maior carga emocional de

João Antônio, em comparação com Antônio de Alcântara Machado: “João

Antônio não levanta personagens pitorescas, engraçadas, anedóticas e nem as

suas histórias são amenas, humorísticas, de mero entretenimento. Sua gente é

típica, mas nada caricatural. (...) Surge do proletariado da pequena burguesia

fronteira da pobreza e são as lutas, revoltas, frustrações e sonhos desse povo

que o autor interpreta ou sustenta em contos onde os heróis são tratados como

almas vivas, como pessoas humanas sofridas e desvalidas, espezinhadas e

434

Idem. 435

Barbosa, João Alexandre: “Malagueta, Perus e Bacanaço”, in Jornal do Comércio, Recife, 17/11/63.

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210

perseguidas, desoladas e tristes, líricas e cruéis”.436

Havia quem não concordasse nem mesmo com a semelhança entre

cenário e origem social dos personagens. Guido Wilmar Bassi, em seus artigos

publicados nas páginas literárias editadas por Esdras do Nascimento na

Tribuna da Imprensa, é um desses radicais: “Antes mesmo de João Antônio

aparecer em livro, quando alguns dos seus contos saíram publicados em

jornais e revistas, muita gente quis compará-lo com Antônio de Alcântara

Machado, procurando situá-lo ou classificá-lo como discípulo ou sucessor

daquele contista paulista. Agora, que sua coletanea de contos acaba de ser

editada, por certo mais reforçado ficará esse ponto de vista, mormente pela

semelhança dos títulos: Brás, Bexiga e Barrafunda, Malagueta, Perus e

Bacanaço. Contudo, a semelhança entre João Antonio e Antônio de Alcântara

Machado é tão somente essa: a parecença dos títulos de seus livros e nada

mais.

Antônio de Alcântara Machado explorou, nas suas histórias, uma das

múltiplas facetas de São Paulo. João Antônio explorou uma outra muito

diferente [descendentes de italianos x submundo da caserna e da cidade]. (...)

Os dois escritores são visceralmente paulistanos; porém, cada um a seu modo.

(...) [João Antônio] Será, talvez, quando muito, seu sucessor”.437

“João Antônio ama sua terra. Não a canta, porque seria uma exibição de

lirismo sempre perturbadora para um civilizado”, diz Sérgio Milliet.

Mas o próprio João Antônio, em entrevista da época, sabia ter bebido em

Antônio de Alcântara Machado, embora tivesse consciência do que os

diferenciava, consciência que não abria mão de registrar numa entrevista:

“Entre suas influencias estão Antônio de Alcântara Machado (com a ressalva

436

Brito, Mário da Silva: “Os Malandros Paulistas Entram na Literatura”, in João Antônio: Malagueta,

Perus e Bacanaço, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1963, 1a edição.

437 Bassi, Guido Wilmar: “Os Contos de João Antônio”, in Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 1963.

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211

do autor, de que é menos anedótico e mais de ‘mergulho’) e Graciliano

Ramos”.438

Talvez os oito primeiros contos do livro de estréia sejam mesmo

uma bela mistura entre essas duas influências, ou seja, tipicamente paulistanos,

mas com densidade emocional e psicológica. E seria bom poder contentar-se

com a singela definição de um crítico: “É um Antônio de Alcântara Machado

do ‘bas fond’.”439

Mas se havia o consenso de que as semelhanças entre os dois escritores

se limitavam quando muito a características superficiais, por que o nome de

Antônio de Alcântara Machado é tão freqüentemente evocado na recepção dos

contos de João Antônio? Só a admissão da influência, por parte do jovem

escritor, ou a referência a Alcântara Machado na orelha de seu livro não

explicam isso, afinal, a comparação antecede a publicação. Ela é mencionada

nas cartas de João Antônio anteriores ao lançamento, e está por trás do convite

de Paulo Rónai para que ele escrevesse sobre o livro Novelas Paulistanas, de

Antônio de Alcântara Machado, para a revista Comentário, e é até mesmo

citada na carta em que Ênio Silveira confirma o interesse de publicar seu livro.

440

Para entendermos essa insistência em evocar uma baliza anterior no

esforço por melhor avaliar a literatura de João Antônio, talvez seja interessante

levar em conta um ponto recorrente em algumas das resenhas de que seu livro

de estréia foi alvo, e presente também em suas cartas para Ilka. Havia na época

438

Entrevista a Sadi Carnot Santana, intitulada “Vagabundagem Ganha Três Reis”. O recorte que faz parte

do acervo do escritor não informa sua procedência. João Antônio, a convite de Paulo Rónai, escreveu uma

nota crítica sobre Novelas Paulistanas, de Antônio de Alcantara Machado, para a revista Comentário.

Infelizmente esse artigo não foi encontrado por essa pesquisa em tempo hábil. Carta a Ilka Brunhilde

Laurito, de 25/11/60. 439

O autor assina L.M.: “Um Cronista da Noite”, in O Estado de São Paulo, SP, 03/10/67. Quatro anos

depois do lançamento do livro, a comparação ainda era evocada. Aqui, o resenhista estabelece a diferença,

segundo ele, entre Alcântara Machado e João Antônio: o primeiro seria um escritor do dia, o segundo, da

noite. 440

Cartas a Ilka Brunhilde Laurito, de 23/09/59, 25/11/61 e 09/07/62.

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212

uma percepção disseminada de que a cidade de São Paulo, principal base do

movimento modernista, era sub-representada na ficção brasileira. Ou as

representações não lhe eram fiéis em essência, como as de Antônio de

Alcântara Machado, ou a cidade mesmo mudara desde então, dado seu

crescimento vertiginoso entre os anos 20 e 50. E mesmo que para muitos

precariamente, Antônio de Alcantara era em São Paulo o homem que

começara a reparar essa injustiça. Fora da cidade, havia outros.

Um crítico diz: “Depois de longo interregno [trecho ilegível] São Paulo

passa, pela primeira vez em nossa história literária, a funcionar como autêntico

personagem e não como mero ambiente ou cenário da composição”.441

Outro, em resenha intitulada “São Paulo tem seu romancista”, acredita:

“Romancista da cidade, dos bairros, dos tipos, dos costumes [ilegível] São

Paulo não tinha. [ilegível] para citar [ilegível] da vida paulistana temos que

recorrer a Antônio de Alcântara Machado. (...) O que ficou de Alcântara

Machado, num critério histórico rigoroso, não é o romancista da cidade, mas o

libertador e o nacionalista da língua (...) Mas no caso de João Antônio

podemos afirmar, mesmo que permaneça neste livro Malagueta, Perus e

Bacanaço, que São Paulo tem seu romancista, que São Paulo pela primeira vez

surge dramaticamente na expressão acanhada de seus bairros afastados, na

promiscuidade de sua aglutinação central, no traço convincente de seus

personagens típicos e na contribuição lingüística de sua fala particular”.442

Um terceiro ecoa: “Falta a São Paulo o romancista urbano, que explore a

cidade, seus prédios, bairros proletários, costumes, contrastes e maneiras de

falar. O crítico paulista olha quase com inveja o Rio de Janeiro de Manuel

Antônio de Almeida, Machado de Assis, João do Rio, Lima Barreto e Marques

441

Mendes, Arnaldo: “Um Cronista de São Paulo”, in seção Livros em Revista, Última Hora, São Paulo,

13/07/63. 442

Pedroso, Bráulio: “São Paulo term seu romancista”, in O Estado de São Paulo, SP, 16/08/63.

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213

Rebelo. Como consolo, só lhe resta Antônio de Alcântara Machado. E assim

mesmo sem as exigências de um julgamento histórico rigoroso, que para

alguns colocará o autor de Brás, Bexiga e Barra Funda apenas como

inovador”.443

Mesmo Mário da Silva Brito parece concordar: “Malagueta, Perus e

Bacanaço, livro que é uma visão de São Paulo como até agora as nossas letras

não conheciam”.444

E outros ecoam: “E a nova visão, pela primeira vez voltada às ruas de

São Paulo, poderá tanto resultar ‘uma janela aberta para o cemitério’ ou como

‘dois olhos de criança voltados para um doce’, dependendo da maneira como

daqui para adiante João Antônio tratar das preocupações e dramas dos

submundos de São Paulo”.445

“São Paulo é uma cidade quase inédita na

literatura brasileira. E se tivemos outrora um Alcântara Machado e um Mário

de Andrade, se temos agora um João Antônio, êles são poucos para a riqueza e

a exuberância da temática paulistana. Principalmente quanto à ficção, pois a

poesia tem encontrado mais arautos”.446

Cassiano Nunes, menos catastrofista, enxerga uma produção continuada

sobre São Paulo, cidade e estado. Lista o regionalismo de Monteiro Lobato e

Valdomiro Silveira, anterior a 22, e em seguida, Oswald de Andrade,

Alcântara Machado, Afonso Schmidt, Galeão Coutinho, David Antunes

Ranulfo Prata, Alberto Leal. Mas considera que todas as tentativas de trabalhar

literariamente a alma do paulista e do paulistano ficaram a dever. E bota João

Antônio nas alturas, ao escrever: “Já se pode falar em ficção paulista não

443

Resenha não assinada: “Enfim uma Esperança”, in revista Visão, 13/09/63, no 11.

444 Página literária intitulada Escritores e Livros, e assinada por José Condé, sem indicação mais detalhada

na cópia do acervo João Antônio em Assis. 445

Rossetti, José Paschoal: “Três Cafés Fiados”, in Suplemento Literário do O Estado de São Paulo, SP,

15/02/664. 446

Alves, Helle: “Contos Paulistas em Ritmo de Bossa Nova”, in Diário de São Paulo, 10/10/65, p.6.

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214

apenas como produção continuada, mas também caracterizada. (...) A obra de

João Antônio sobressai pela sua poderosa humanidade, mas não se salienta só

pelo conteúdo emotivo: sua essência subjetiva se substancializou com

harmonia ininterrupta, numa linguagem perfeitamente adequada. Não

encontrei brecha nessa criação compacta”.447

Para explicar esse consensual ponto fraco da hegemonia paulista como

cenário nacional, justo na literatura, alguns invertiam a lógica da maioria das

resenhas, tirando os escritores do banco dos reús e nele colocando os críticos.

É o que faz, por exemplo, Herculano Pires, ele próprio um escritor: “O

romance urbano de São Paulo, tão malsinado, tantas vezes relegado às

calendas por certos críticos demasiado exigentes, vai aos poucos se impondo.

E não surge apenas através do gênero propriamente dito, pois se revela

também nos contos de um Marcos Rey, de um João Antônio, secundando o

esforço dos que no passado recente, como Galeão Coutinho e Afonso Schmidt,

ou no presente, como Mário Donato e Maria de Lourdes Teixeira vão fixando

a vida da cidade em várias dimensões”.448

Como diz o ditado, “Quem protesta já perdeu...”, e de fato a história

derrotou sua tentativa de elevar tantos nomes esquecidos à condição de

escritores reconhecidamente à altura do homem e do meio paulista. O que

prevalece mesmo é a idéia de que São Paulo não encontrara ainda seu

intérprete na literatura, e que Antônio de Alcântara Machado, Mário de

Andrade, Oswald de Andrade, haviam apenas aberto a trilha na floresta, sem

entretanto produzir continuadores.

Como se vê, mais grave do que São Paulo estar carente de intérprete

naqueles anos específicos, havia uma sensação de que o esforço inicial das

447

Nunes, Cassiano: “Nota Sôbre João Antônio”, in Correio Brasiliense, Caderno cultural, 28/10/67. 448

Pires, Herculano: “Favela e Samba”, in Diário Ilustrado, seção Mundo dos Livros, 07/12/67.

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215

locomotivas pioneiras do romance urbano paulistano haviam acabado junto

com a primeira geração modernista. Uma estiagem mais prolongada que o

normal. Então João Antônio não apenas vinha a calhar como intérprete da

cidade, mas como novo e prestigioso elo para uma tradição literária que

precisava de uma afirmação presente, de um novo gás. E muitos homens de

letras viram isso. Com ele em São Paulo, a ramificação urbana do movimento

modernista tinha um representante notável e precoce. Dos anos 20 até o fim

dos 50 haviam aparecido nomes menores, se tanto. João Antônio, diante dessa

carência, era o homem certo.

E até aí, tudo bem. Ele sempre se interessara pela cidade, por seus

personagens. E pelo que escreviam sobre ela. O motivo mesmo do início de

sua correspondência com Ilka foi uma crônica dela sobre São Paulo, que o

agradou imensamente: “Escrevo esta carta porque gostei da sua crônica

‘Trânsito’, e achei muito verdadeira. O seu trabalho no BBB, carrega tôda uma

realidade pungente – a tragédia duma dimensão humana na luta brava da

cidade de São Paulo. A solidão dos dias iguais, do cansaço da lida, da ausência

da camaradagem, solidariedade, outras coisas. E é uma verdade. A senhora

soube sentir (o que difícil acontece) e a senhora soube transmitir (o que é mais

difícil), tôda essa tragédia do dia-a-dia, que nós vivemos, sofremos, e vamos

tocando com uma rusga nas sobrancelhas. Tocamos, vencidos,

envelhecendo”.449

Era a cidade que inspirava seus insights: “‘Creio em Malagueta, Perus e

Bacanaço’. Como em tudo que escrevi, acredito nos meus vagabundos. Mas

desta vez é diferente o sentir. Às vezes, zanzando por essas ruas, nas noites de

frio e de neblina de minha terra, nos trens de subúrbios ou nos melhores

bondes rangedores, para os lados da alameda Nothmann e Bom Retiro, em

449

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 01/09/59.

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216

especial, locais de meus giros silenciosos, ao escoar maravilhoso do salto de

couro dos meus sapatos na calçada, eu penso. Tenho a certeza humilde, quieta

e grandiosa de que estou diante de uma obra de arte e minhas mãos, meu

coração, meu todo pulsar de vida carregam uma enorme responsabilidade”.450

Era a cidade que lhe fornecia seus personagens, enredos, cenários, climas,

linguagem.

Se tudo mais não bastasse, João Antônio concordava com a noção de que

o homem paulista ainda não tivera um tratamento à altura. Apenas não era

exatamente com o Rio de Janeiro que ele procurava equiparação, mas com o

nordeste. Se a literatura era sua missão, sua única ambição, era exatamente

como intérprete do homem paulistano e sua cidade que ele esperava realizá-

las, mas suas referências estilísticas não eram Machado de Assis e Lima

Barreto: “Tenho feito sondagens e pesquisas, que talvez me levem ao

entendimento do ‘porquê’ e ‘como’ não possuímos ainda uma literatura

paulistana tão definida quanto e como a nordestina. E eu hei de descobrir o

‘porquê’! Alcancei algumas conclusões parciais e continuáveis – a ausência de

uma linguagem paulistana, especialmente, e o desconhecimento por parte dos

escritores do homem paulistano (a meu ver muito mais rico humana e

espiritualmente, mais sofrido e dramático que quaisquer outros tipos

brasileiros – e pelas mesmas razões, muitíssimo mais difícil e arisco e

inacessível, literariamente. Homem difícil, fragmentado, prisioneiro de uma

cidade de que em geral não gosta. Homem limitadíssimo, mal formado,

piorado terrivelmente nestes últimos dez anos. Homem que não é covarde, mas

a quem quase sempre falta coragem. Homem de transição e de solidão (repare

nos bares cheios), cujo destino é desaparecer, dar lugar a um tipo mais

concreto e de algum caráter.

450

Idem, de 06/06/60.

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217

Vou-lhe confessar que Malagueta, Perus e Bacanaço, cuja refatura está

me consumindo, é uma tentativa de encontrar uma linguagem paulistana de

determinado grupo. Acredito, até agora, que se eu partir de um conhecimento

verdadeiro do homem que vou trabalhar, das suas formas de comportamento

aparente e inaparente, encontrarei a sua linguagem, literariamente. E

maliciosamente evitando cacoetes e idiossincrasias típicas nordestinas

(aperrear, mangar, vexar, por exemplo) estarei próximo de tal linguagem. E

vislumbro, emocionado, que a linguagem paulistana para os problemas de São

Paulo, levará uma vantagem sôbre a linguagem nordestina – problemas mais

universais criam uma linguagem mais universal.

O que você está achando dessas idéias, Ilka?”.451

Diante disso, fica fácil ver que houve uma daquelas sincronias entre o

mundo interior de um indivíduo e o mundo que o cerca. Por isso, embora

literariamente secundária, a evocação de Alcântara Machado se explica, feita

por terceiros ou admitida com ressalvas pelo próprio João Antônio. E, via

Alcântara Machado, faz-se a ligação com o modernismo da mais pura cepa.

Havia, de fato, uma essência comum ao projeto do jovem escritor e o dos

expoentes do primeiro momento modernista. O que os afastava era o vácuo

dos anos 40 e 50. E João Antônio estava cercado de amigos ligados

diretamente ao modernismo que o apreciavam mais na medida em que se

inseria e desdobrava essa tradição. E ele fêz isso. Vestiu a camisa. Tinha

consciência do que fêz. Ao falar sobre “Meninão do Caixote”, ele diz: “O

conto é feliz, eis tudo. O tema é excelente e a realização supera certos avanços

na literatura paulistana, como os Antônio de Alcântara Machado, por

exemplo”.452

451

Idem, de 27/01/62. 452

Idem, de 23/09/59

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218

Não por acaso, saído o livro, João Antônio é convidado para um projeto

que refaz a “linhagem” a que ele pertencia: “Muita gente quer trabalhos

literários meus. O pessoal da Vera Cruz já me procurou. Querem filmar

‘Meninão do Caixote’ que, seria incluído num filme de três histórias. Uma de

Mário de Andrade, outra de Antônio de Alcântara Machado e outra minha:

‘Meninão do Caixote’.453

Encruzilhadas da segunda onda modernista

O romance urbano, porém, não era a única trilha aberta pelo modernismo

de 22. E, mesmo dentro do gênero, havia mais de uma vertente a seguir. Seria

bom, a essa altura, complicar um pouco o quadro feito algumas páginas atrás,

tão rígido e esquemático, do establishment literário da época.

Um resenhista, ao falar da insistência da crítica em louvar dois novos

escritores, Dalton Trevisan e Clarice Lispector, dizia que louvar alguém era

mesmo uma necessidade: “Necessidade, porque a geração de críticos que

então se manifestava atuante não se conformava que após 22 apenas alguns

poucos valores houvessem aparecido e, mesmo assim, muitos deles não

resistindo à pressão de facilidades preconizada e imposta pela geração 45.

Não raro apareciam balanços, onde se salvava, no gênero da poesia, um

homem chamado João Cabral de Melo Neto; no romance, alguns poucos da

envergadura de Guimarães Rosa e de Cyro dos Anjos; no conto, Samuel

Rawet, Mauritônio Meira, Ricardo Ramos e Carlos Lacerda, que não

conseguiram, entretanto, sair do esboço para uma obra mais concisa e

penetrante. Mas os balanços ainda desacorçoavam, sob o ponto de vista

453

Idem, de 30/07/64.

Page 219: João Antônio: Uma Biografia Literária

219

crítico-universal, porque João Cabral, Cyro e Rosa entupiram-se (é triste

apontar e reconhecer este pormenor) com um regionalismo pesado, embora

virtuoso: o poeta voltou-se à aridez dos sertões nordestinos e os romancistas às

grupiaras, aos costumes e aos tipos das Minas Gerais. Havia, pois, a

necessidade (que se configurava quase psicológica) de se procurar alguém para

representar ‘o conto contemporâneo’”.454

Segundo este mesmo crítico, “A fórmula [de Dalton Trevisan] foi ótima,

pois trouxe à tona, mais uma vez, o valor de uma obra necessariamente

participante (ponto de vista crítico) que não incorresse nas facilidades da

retórica falida”.455

Como se vê, o regionalismo à la Guimarães Rosa, por incrível que possa

parecer ao leitor de hoje, já acostumado à devida reverência, de um lado é

visto como uma possível recaída dos escritores brasileiros na retórica, na

medida em que recupera a dicção das “grupiaras”, e de outro pode significar

um afastamento do escritor do ambiente onde de fato o novo poderia surgir, o

ambiente urbano. Daí cobrar-se a atitude “participante” do escritor.

Em contrapartida, o romance urbano, com a exceção possível de

Graciliano Ramos, ainda é visto como um gênero à procura de seus caminhos

na nova geração. Segundo os críticos da época, esta parece cair em diferentes

armadilhas alternadamente. Diz, por exemplo, Sérgio Milliet, enquanto elogia

o primeiro livro de João Antônio: “Conta com um máximo de naturalidade e

de compostura o que vai vendo e ouvindo por aí. Não é pudico não, mas

tampouco faz chantagem com esse realismo, quase caricatural, muito em voga

no momento”.456

Uma primeira armadilha seria, portanto, uma espécie de

excesso de realismo, que descarna o conteúdo literário de emoção e, quase

454

Rossetti, José Pascoal: “Trevisan: Sexo e Cemitério”, in O Estado de São Paulo, SP, 06/04/63. 455

Idem. 456

Milliet, Sérgio: “Alguns Malandros”, in O Estado de São Paulo, SP, 23/07/63.

Page 220: João Antônio: Uma Biografia Literária

220

inevitavelmente, de maior acabamento literário.

Como já vimos, a carga emocional dos contos de João Antônio,

responsável pela principal diferença entre ele e o sempre invocado Antônio de

Alcântara Machado o protegeria desse perigo. Por isso, aqui e ali nas resenhas

da época, é com Marques Rebelo que o comparam: “Se [Malagueta, Perus e

Bacanaço] tem como antecedente as novelas paulistanas de Alcântara

Machado, encontra na ficção carioca um surpreendente paralelismo. Isto

porque os contos de João Antônio nos trazem os bairros proletários e os

subúrbios paulistas, como os bairros da zona norte e os subúrbios cariocas são

os locais por onde a pena apaixonada do autor de Oscarina passeia seu amor à

cidade de Estácio de Sá. Como Rebelo, João Antônio povoa o seu mundo com

a pequena burguesia e o proletariado fabril, semelhantemente apresenta os

mesmos feixes de motivação: a caserna, a malandragem, a boemia, a música

popular, o esporte. Outro ponto de contato é o tratamento lírico que reveste a

fabulação de ambos, se bem que Marques Rebelo seja um poeta mais

recôndito, mais profundo, mais amargo”.457

Mas a literatura urbana implicava ainda outros riscos, conforme alertam

os críticos. Um deles escreve: “Por entre a enxurrada de mediocridades

pseudo-psicológicas ou pseudo-metafísicas que vem enchendo a ficção

brasileira moderna, é com a maior alegria que se lê o volume de contos

Malagueta, Perus e Bacanaço (...) Sem que se possa perceber, um só

momento, a presença do mau gosto ou da sentimentalização besta com que

costumam cobrir a verdade desses seres à margem. É realista, mas a realidade

é, para o autor, um pedaço de vida e não uma inimiga da existência. Por isso,

sabe até onde pode levar a introspecção ou o diálogo de seus personagens”.458

457

Mendes, Arnaldo: “Um Cronista de São Paulo”, in Última Hora, 13/07/63. 458

Barbosa, João Alexandre: “Malagueta, Perus e Bacanaço”, in Jornal do Comércio, Recife, 17/11/63.

Page 221: João Antônio: Uma Biografia Literária

221

E não é o único a alertar para a pseudo-psicologização e para o

esgarçamento da essência dos conteúdos na metafísica. Outro crítico renova o

alerta, acrescentando a pesquisa de linguagem como fator de risco: “Em vista

disso, à medida que o escritor moderno, na pretensão mascarada de se desligar

do homem e de escrever em linguagem ‘mais avançada’ que a utilizada em seu

tempo, foi ganhando terreno em nosso meio, patenteou-se o desprestígio da

intelectualidade (enquanto monologal) e todos, do abismo, passamos a olhar

para a infinidade de céus abertos sobre nossas cabeças. (...) O romancista

buscou o engajamento numa solução mais ou menos sartriana ou através do

esnobismo pelo pseudo-amor aos ambientes, em imitação grotesca ao

Hemingway das touradas”.459

Ora, portanto, o romance urbano caía na metafísica sartreana,

existencialista, ou numa má imitação do realismo americano, com a afetação

de ambientes e situações pitorescos, caricaturais.

Em ambos os casos, mas sobretudo no primeiro, a atitude não-

participante da literatura regional se manifestaria também na literatura urbana:

“Mas cá em nossa terra, onde o intelectual cada vez mais procura fugir à

responsabilidade social de sua tarefa, isolando-se propositadamente do homem

comum que o cerca e que lhe poderia fornecer material densamente

‘humanizado’, um escritor com tal preocupação ainda não dera, antes de João,

o ar de sua graça. Principalmente em São Paulo. (...) E o transporte desta nova

visão dimensionada coincide, historicamente, com a necessidade que está a

literatura brasileira sentindo sem sua própria pele, de ser mais entrante no

homem, de se despojar das elucubrações muitas vezes cretinas e infundadas,

acerca de personagens que não se conhecem e que compõem os quadros de

459

Este artigo, encontrável sob a forma de recorte de jornal no Acervo João Antônio, não possui

infelizmente indicações básicas, como o título, seu autor, o veículo e a data em que foi publicado.

Page 222: João Antônio: Uma Biografia Literária

222

vivências dos contos e romances urbanos e suburbanos que se tentam impingir,

desonestamente, ao mercado que quer somente consumir alguma coisa que se

identifique com suas necessidades. É chegada a hora, todos sabemos, da

literatura formulada na participação e no compromisso (...)”.460

Para se entender o processo de amadurecimento do estilo de João

Antônio é necessário, portanto, saber como ele se colocava diante dessas

diferentes opções literárias. Já vimos o quanto ele devia não apenas à literatura

modernista de caráter urbano, mas aos representantes dessa literatura, seus

mentores literários. Haveria outras influências pairando sobre sua criação?

Em 1968, ao ser perguntado sobre como andava a literatura urbana

brasileira, ele respondeu: “Chego a achar que a literatura urbana brasileira

ainda não existe. O que há é um equívoco: não se trata de situar uma estória

numa grande cidade, entre edifícios, automóveis e vida agitada, descrever tipos

urbanos. A verdadeira literatura urbana é aquela capaz de captar em

profundidade o sentimento, o viver do homem da cidade”.461

Mas desde bem antes ele já se inquietava com a busca por uma literatura

capaz de dar vida literária a esse homem urbano. Em suas cartas da época, a

referência a alguns autores chama atenção. O primeiro deles é Carolina Maria

de Jesus, moradora de uma favela de várzea às margens do Rio Tietê. Em

agosto de 1960, ela publicou o livro Quarto de Despejo – Diário de uma

Favelada.462

Por intermédio de Mário da Silva Brito, muito provavelmente,

João Antônio toma conhecimento do livro e se encanta: “[o livro] faz pensar

na vida, em São Paulo e faz pensar no Brasil. Ilka, por que nossas misérias hão

de ser tão terríveis? O livro é povoado de coisas horríveis, tenebrosas, que

460

Rossetti, José Pascoal: “Três Cafés Fiados”, in O Estado de São Paulo, SP, s/d. 461

Autor não identificado: “João Antônio Ou A Hora e a Vez do Anti-Herói” , veículo não identificado,

MG, 03/10/68. 462

Jesus, Carolina Maria de: Quarto de Despejo – Diário de Uma Favelada, Francisco Alves, SP, 1960.

Page 223: João Antônio: Uma Biografia Literária

223

chegam na ingenuidade emocionada de uma mulher que é escritora por

vocação. Não tem alquimia literária e isto é um bem para ela. Sintaxe

estrepada. Beleza grande nas descrições simples do arco-íris e da descrição

bruta de uma fome que não é fome de Knut Hansum. Não é fome literária, e

nem é fome lírica. É fome de estômago, tão somente.

(...)

A mulher, o livro da mulher, o lançamento do livro da mulher são

acontecimentos revolucionários. Seu livro é lido e muito.

Muitos escritores fugiram e andam fugindo com mêdo de tamanho

talento e da ingenuidade de Carolina Maria de Jesus. Outros, menos calhordas,

lêem a mulher e sabem aplaudir. Seu livro é um libelo e é de doer que os

homens do govêrno não façam nada. Não sei porque nunca fazem nada.

Mário da Silva Brito irá fazer um artigo sobre Quarto de Despejo, e o

publicará no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo. Nunca gostei

tanto de Mário.

Poucos escritores compareceram à festa de lançamento. Por isso farei

uma croniqueta para o Ceará com um título assim: ‘Um Coquetel Sem

Calhordas Literários’. E depois farei outra sobre o livro. É”.463

Para não falar de uma possível projeção de si próprio, habitante proletário

e outras vezes semi-favelado, sobre a autora do livro, outra despossuída

abrindo caminho no mundo literário, talvez seja mais prudente ater-se aos

elogios concretos que João Antônio faz a Carolina, e por meio deles entender o

universo de valores literários do jovem escritor. Ele chama atenção para a

força que atinge a linguagem simples da estreante. A linguagem “sem alquimia

literária” transmite uma “ingenuidade emocionada” mesmo enquanto narra

“coisas tenebrosas”.

463

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 24/08/60.

Page 224: João Antônio: Uma Biografia Literária

224

Quando lê Quarto de Despejo, João Antônio já havia completado todos

os oito primeiros contos que comporiam o livro Malagueta, Perus e Bacanaço.

Sua faceta “modernista”, portanto, a mais próxima de Antônio de Alcântara

Machado, já estava delineada. Para o livro ficar pronto, faltava “apenas”

reescrever a novela título. É possível que, mais do que nunca, a ligação direta

entre a linguagem e a realidade narrada fosse um ideal perseguido pelo

escritor. A tarefa de dar vida literária à cidade e ao “mais autêntico” povo

brasileiro, herdada dos pioneiros modernistas, talvez só se completasse através

de um casamento perfeito, ou melhor, de um ménage à trois, entre linguagem-

personagens-cenários. A alma literária de São Paulo, quem sabe assim, estaria

a seu alcance com toda a intensidade que tinha.

Nos meses seguintes, outros escritores chamam-lhe a atenção. Um é

Caio Porfírio Carneiro, com seu romance Trapiá.464

Em sua apresentação ao

livro, Ricardo Ramos escreve: “Qual a matéria central destes contos? Diríamos

que a alma da gente humilde, a feição do nordestino comum. Partindo daí,

Caio Porfírio Carneiro vai puxando os fios que o conduzem às nossas mais

puras fontes regionais, e nelas encontra a violência dramática, a rudeza com

uns longes de sentimental, o brutal patético mergulhando em dura paisagem. E

temos a linguagem. Ela é rica (o calado sertanejo é um imaginoso), por vezes

de um inesperado retórico, apresenta aquele novidadeiro sabor que realça e

não amacia, é pitoresco sem cair no raso cromático, tem os tons básicos da

verdade popular”. Ele elenca ainda outras qualidades: “perfis de impressiva

beleza”, “prisma necessariamente crítico [da realidade social]”, “boa mescla de

ação e reflexão, de cortes interiores e tomadas externas”, economia “no corte

psicológico”.465

464

Carneiro, Caio Porfírio: Trapiá, Francisco Alves, SP, 1961. 465

Idem.

Page 225: João Antônio: Uma Biografia Literária

225

É curioso como os elogios feitos a Caio Porfírio Carneiro se assemelham

aos dirigidos a João Antônio pela maioria da crítica da época. Há, ao que

parece, algo que transcende as diferenças entre um escritor “urbano”, como

João Antônio, e um “regionalista”, como Caio. Há pontos de contato literário:

ação e reflexão balanceadas; a denúncia social, sem maiores sentimentalismos;

a economia nos cortes psicológicos; transposição fiel das linguagens como

forma de obter verossimilhança e aumentar a intensidade dramática. Há, é

claro, pistas de que exista ainda uma certa aproximação ideológica entre o

grupo de João Antônio. Ele próprio ainda levaria alguns anos até se pronunciar

publicamente sobre política nacional, mas a atenção focada nos deserdados do

progresso brasileiro, e a convicção de que o status quo social do país precisava

ser transformado, certamente deveriam aproximá-lo dos intelectuais de

esquerda, e em seu grupo torná-lo mais querido. Sua história de vida, tendo ele

sido vizinho da miséria e auto-didata literário, havia de derreter alguns

corações, além de habilitá-lo a concorrer à vaga de porta-voz dos

despossuídos.

Em sua resenha ao segundo livro de Caio, Sal da Terra, o próprio João

Antônio escreve: “Caio Porfírio Carneiro não é exatamente um escritor de

tramas simples, isento das complexidades psicológicas de seus personagens. É

a simplicidade das gentes das salinas que motiva a economia das palavras e

objetividade desta obra, por isso mesmo mais verdadeira”.466

Há, como se vê, um universo de valores literários por trás dessas

resenhas. Economia, objetividade, autenticidade, ação e reflexão conjugadas

etc. Ao que parece, certos padrões contemporâneos procuravam se sobrepor à

divisão entre literatura regional e urbana. João Antônio, em seu grupo,

466

Carneiro, Caio Porfírio: Sal da Terra, Ática, SP, s/d. A resenha de João Antônio é contemporânea ao

lançamento do livro, em 1965.

Page 226: João Antônio: Uma Biografia Literária

226

convivia com elementos de ambas as designações. Se Mário da Silva Brito,

Paulo Rónai e Sérgio Milliet, não atuaram nas trincheiras regionalistas, Jorge

Medauar, Paulo Dantas, Ricardo Ramos e Caio, sim.467

Não parece absurdo

afirmar-se que João Antônio estava submetido a ambas as influências.

Em seguida, nas cartas, João Antônio parece ter, mais acentuadamente,

uma fase de leituras regionalistas. Cita Guimarães Rosa. O comentário, por

eloqüente que seja, é breve: “Duas descobertas – Ryumosuke Akutagawa, o de

Rashomon e Guimarães Rosa, o de Grande Sertão: Veredas”.468

Um mês

depois, cita Osório Alves de Castro, autor do livro Porto Calendário.469

Então,

decorridos mais trinta dias, cita Antônio Olavo Pereira, autor de O Mundo de

Apú e Marcoré.470

De Antônio Olavo, apenas o título dos livros parece indicar

para a literatura não-urbana. Mas o perfil literário de Osório Alves de Castro é

impressionantemente parecido com o de Guimarães Rosa. Ele escreve sobre as

populações à beira do rio São Francisco, com um tom geral bastante próximo

ao usado por Guimarães em Grande Sertão: Veredas, ou seja, buscando na

linguagem aparentemente vulgar a força poética e quase mítica da vida rural.

Na própria orelha do livro de Osório, é Guimarães a principal referência:

“Escrito antes de Guimarães Rosa, mas somente agora revelado, êste legítimo

romance de um autêntico barranqueiro da zona, é obra que vai dar muito o que

falar, principalmente pela linguagem dialetal em que foi escrita, de cunho

saboroso e arcaico, espelhando todo o espírito da região”. O próprio

Guimarães Rosa o recomenda: “escreve com um fervor novo, numa prosa

467

Assim Caio relata o episódio da publicação de seu livro: “A partir daí comecei a me relacionar mais com

escritores: conheci Ricardo Ramos. Conheci Jorge Medauar e através dele cheguei até Paulo Dantas, que

dirigia o departamento de literatura brasileira da Livraria Francisco Alves. (...) Depois desse primeiro livro,

com a ajuda de Mário da Silva Brito, comecei a colaborar no Suplemento Literário de O Estado de São

Paulo, o que vim fazendo até recentemente”. Entrevista introdutória à edição acima citada. 468

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 13/09/61. 469

Idem, de 31/10/61. Castro, Osório Alves de: Porto Calendário, Francisco Alves, SP, 1961. 470

Até a presente data não localizados por esta pesquisa.

Page 227: João Antônio: Uma Biografia Literária

227

carnuda e tutanuda, com o Sertão do São Francisco nosso, inteiro, despejando

gente célebre...”471

.

Talvez como resultado dessa seqüência regionalista, João Antônio volta à

indagação sobre a linguagem ideal para flagrar a humanidade do homem

urbano, agora sob uma ótica mais programática, na já citada passagem das

cartas em que reconhece a pouca representatividade do homem paulistano na

literatura, e visa superar a tradição nordestina, literariamente mais nítida,

estabelecendo de uma vez por todas a autêntica literatura de São Paulo.472

A princípio herdeiro da tradição urbana do modernismo, aprofundador de

seus mergulhos psicológicos a partir dos cenários e populações visceralmente

representativos da mesma tradição, João Antônio vai pouco a pouco se

convencendo que é partindo da elaboração acentuada da linguagem, opção até

aquele momento por excelência dos regionalistas, que conseguirá recriar

literariamente, em seu estado mais acabado, a alma do homem paulistano. Não

há propriamente rupturas, pois o que ele buscava era a síntese, mas sua posição

entre dois pólos literários varia ao longo daqueles anos. Esse processo ocorreu

durante os anos de elaboração dos primeiros oito contos do livro de estréia e

até 1964, quando escreve “Paulinho Perna Torta”, coroamento do processo,

mas já está patente, ainda em grau menos agudo, no seu livro de estréia, em

que a forma literária dada aos oito primeiros contos difere bastante da

empregada na novela-título.

Não por acaso, na época de lançamento de Malagueta, Perus e

Bacanaço, até os críticos mais severos identificaram uma diferença entre a

novela-título e os oito primeiros contos do livro. Um deles, especialmente

sensível para a variação na linguagem, escreve: “A coletânea está dividida em

471

Orelha não assinada da primeira edição do livro. 472

Ver pp. 216-217.

Page 228: João Antônio: Uma Biografia Literária

228

três partes, levando em conta o assunto, mas na realidade, em sua medida

valorativa, o volume divide-se apenas em duas: trabalhos tratados da primeira

pessoa e na terceira. (...) Os contos tratados na primeira pessoa nos parecem

muito pessoais, muito memorialísticos; isso não teria nada de mais se o autor

não se repetisse (sempre o personagem central) em vários outros trabalhos; a

psicologia é a mesma e até as ações. (...) Queremos salientar que, quando o

autor se volta para a narrativa na terceira pessoa, então encontramos o

verdadeiro ficionista e o verdadeiro inventor. Seu trabalho ‘Frio’ é um

exemplo. Mas só com ‘Malagueta, Perus e Bacanaço’ pudemos medir,

verdadeiramente, a força do artista. A construção dos malandros é muito boa.

A linguagem com ricas expressões localistas, nunca atinge o exagero”.473

É

comum, na crítica da época, leitores que destacam a novela-título como o

melhor texto do livro, e também a adequação da linguagem com que foi

escrita. Mas quase ninguém chegou ao ponto de separar o livro em duas partes,

a novela-título distante da quase totalidade dos demais contos.

Outro crítico, assinala a oscilação do estilo: “João Antônio, com seu

Malagueta, Perus e Bacanaço encarta-se nitidamente nesse quadro,

vinculando-se a uma lírica que começa por Antônio de Alcântara Machado e

Mário de Andrade.

Não me parece ainda ter um estilo próprio. Pelo contrário, tem por vezes

um intenso cheiro de mato verde.

Também não é um estilo novo. (...) Um estilo sincopado, irregular, às

vezes inseguro, mas com grande força, uma vibração interior. (...) O grande

painel de João Antônio, a novela que dá título ao livro, é de certa maneira o

tratamento que impressiona melhor, pois dá a medida de suas impossibilidades

criadoras. O escritor experimenta suas armas (não ainda o romancista), mas os

473

Brasil, Assis: “Romancista na Vérpera”, in Jornal do Brasil, RJ, 26/06/63.

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229

fios de vez em quando se afrouxam. ‘Meninão do Caixote’ é um conto mais

poderoso e, no entanto, ainda mais solto. Nele se observa uma das deficiências

(ou, quem sabe, das futuras qualidades) de João Antônio: a incapacidade de

concatenar em linha reta. Ele aparentemente não consegue o princípio, meio e

fim da história. Seus contos tendem ao episódico, ao incidental.

Estruturalmente são falhos. Mas ele possui uma qualidade que

contrabalança quase tudo: autenticidade vivencial. João Antônio estabelece

uma ligação direta e por vezes instantânea, entre o leitor e os seres humanos

que enfoca. Transmite inclusive um código de fala que dá o sopro de vida

[grifo meu]. É certo que insiste no detalhe, no pitoresco, no coloquial, na gíria.

Algumas repetições indicam uma busca de efeitos desnecessária. Há certas

defasagens temporais: locuções mais recentes são atribuídas a personagens que

viveram na infância do narrador, o tratamento do diálogo parece acentuar

anacronismos de expressão. Mas são detalhes”.474

As diferenças entre os oito primeiros contos e a novela-título eram, para

uns, índice de irregularidades de estilo e de desequilíbrio do livro de estréia.

Para outros, um patamar de excelência atingido no texto mais longo do livro,

mas sem qualquer conotação negativa na avaliação geral.

Os exemplos disso são diversos. Eis um dos mais eloqüentes: “Todos os

contos são bons. Mas sem comparação, o que dá nome ao livro é o de mais

perfeita realização. (...) Há que se notar ainda o vocabulário, toda a variada e

rica gíria da malandragem com aplicação exata, dando cor local e veracidade à

narração. Quanto a este aspecto, o jovem ficionista está perfeitamente situado

dentro da nova posição da prosa de ficção brasileira, que é o entrosamento

tema-linguagem-construção formando um todo unitário; uma espécie de

romance compacto, bloco, em que o estilo do autor se adapta à sua temática e

474

Cunha, Fausto: “Um Estreante”, in Correio da Manhã, RJ, 12/10/63.

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230

o desenvolvimento também acompanha o assunto”.475

Outra crítica que torna bastante visível uma diferença, ou evolução, entre

os contos do primeiro livro, é generosa o suficiente para dar a todos os contos

dedicados ao mundo da sinuca o mesmo status de acabamento literário que a

da novela “Malagueta, Perus e Bacanaço”. Apesar desse critério variar – o que,

se pensarmos em termos de um processo de amadurecimento estilístico,

apenas faz a baliza andar, sem entretanto modificá-la essencialmente – outro

ponto dessa resenha chama maior atenção. Ela inova no parâmetro de

comparação para a obra do jovem escritor. Em vez de Antônio de Alcântara

Machado e demais pioneiros da literatura urbana modernista, surge Guimarães

Rosa: “(...) João Antônio é, acima de tudo, um estilista. Não abandonando o

aspecto humano de seus personagens, seus dramas e introspecções, João

Antônio consegue transformar em estilo literário (densamente povoado de

novas imagens) as gírias, as palavras da esquina e as expressões de rua dos

malandros. E, como em Guimarães Rosa, o novo linguajar não vai aqui

desvinculado da narrativa, mas se enleia a esta, numa fusão homem-ambiente

de surpreendentes resultados”.476

Então, o herdeiro do pioneirismo urbano modernista, para alguns olhos

mais penetrantes, ou mais críticos, absorvia desdobramentos do ideário que

datavam de um tempo bem mais recente. Grande Sertão: Veredas, fora

publicado em 1956, apenas sete anos antes de Malagueta, Perus e Bacanaço.

Tal percurso estético não é explicitado em nenhuma resenha da época, mas

assim parece indicar a análise em conjunto da fortuna crítica. É uma hipótese a

demonstrar.

No próximo capítulo, analisando os contos do livro de estréia do escritor,

475

Alves, Helle: “Malagueta, Perus e Bacanaço: João Antônio recebe Novos Prêmios”, in Diário de São

Paulo, SP, 06/12/64. 476

Rossetti, José Paschoal: “Três Cafés Fiados”, in O Estado de São Paulo, SP, 15/02/64.

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231

e em seguida relacionando-os com a novela “Paulinho Perna Torta”, procurar-

se-á demonstrar, a partir dos próprios textos, o que esse levantamento da

fortuna crítica e de suas próprias idéias estéticas demonstrou até aqui, ou seja,

que, entre a redação dos primeiros oito contos e a escritura de “Malagueta,

Perus e Bacanaço”, de fato houve um apuramento dos rumos de seu projeto

literário. Um amadurecimento de seu primeiro projeto literário. O objetivo

continuou sendo retratar a alma do homem paulistano, mas os recursos a serem

utilizados radicalizaram-se. Um novo conceito de realismo parece emergir,

determinado predominantemente não pela descrição discreta, pela emoção

econômica, mas pelo uso de um novo conjunto semântico, o da gíria, por uma

nova sintaxe, menos formal e elegante, ambos implicando é claro uma nova

sonoridade do texto. A escrita mais contida, de certa forma ainda obediente à

tradição pioneira modernista e às limitações da época, dá lugar a uma espécie

de “regionalismo urbano”, em que suas características anteriores, se não

desaparecem, são transformadas por uma linguagem diferente, que mergulha

mais fundo na reconstrução literária da fala popular. O autor, ao final de 1964,

estava “perfeitamente situado dentro da nova posição da prosa de ficção

brasileira, que é o entrosamento tema-linguagem-construção formando um

todo unitário”.

Page 232: João Antônio: Uma Biografia Literária

232

Capítulo 3

Impressão e Movimento

Page 233: João Antônio: Uma Biografia Literária

233

Matéria autobiográfica

Alguns livros mostram, veladamente, o amadurecimento do escritor e

de seu projeto literário. Malagueta, Perus e Bacanaço certamente, é um

exemplo. Reunindo nove histórias — sendo o conto-título bem mais longo,

uma autêntica novela —, o livro amadureceu (com exceção de um único

conto, escrito por volta de 1955), entre 1958 e 1962, isto é, entre os 21 e os

25 anos do autor. Não é difícil aceitar a idéia de que, numa idade dessas, se

possa mudar radicalmente o jeito de ser, pensar e, portanto, de escrever.

Seria até estranho que tal não acontecesse.

O que esse capítulo procurará demonstrar é que há mudanças

estilísticas, as primordiais para este trabalho, e de constituição do material

narrativo entre os oito primeiros contos do livro e o conto-título, sendo que,

entre esses oito, apenas um pode ser considerado híbrido. E que entre o

conto título e a novela escrita logo após a publicacão do livro, “Paulinho

Perna Torta”, o projeto de reformulação estética iniciado no percurso de

redação do livro chega a seu ápice. Ou seja, ao contrário do que a recepção

do livro parece indicar, da mesma forma que a crítica posterior, João

Antônio não é um escritor que já nasceu pronto. Apesar do sucesso

imediato, no primeiro livro nem todos os elementos que comporiam seu

estilo maduro estavam presentes.

Mas, antes de fazer o levantamento das mudanças por que passou o

estilo de João Antônio, talvez fosse conveniente mencionar, ao invés das

diferenças, aqueles elementos que os contos de Malagueta, Perus e

Bacanaço têm em comum.

Quando o livro foi lançado, como se viu, imediatamente João Antônio

transformou-se no sucessor da mais nobre linhagem da prosa urbana

Page 234: João Antônio: Uma Biografia Literária

234

paulistana, a mesma fundada pelos pioneiros modernistas, com destaque

para Mário de Andrade e Antônio de Alcântara Machado. Seus contos,

entretanto, e isso também já ficou dito, eram muitas vezes considerados

superiores aos dos mestres, por trazerem, ao retratar a vida proletária na

cidade, uma densidade que só a experiência direta poderia inspirar. Desde

logo todos perceberam: aqueles contos estavam atravessados pela carga

autobiográfica.

E esta é, de fato, uma das articulações mais abrangentes do livro, o

que a torna merecedora de especial atenção, ainda que o cruzamento de

informações biográficas e trechos de ficção pareça a alguns procedimento

metodológico um tanto ingênuo. Não é, realmente, o caso de se perder longo

tempo analisando cada conto. Uma breve descrição da história e a

recuperação de alguns dados sobre a biografia do autor, vistos nos caps. 1 e

2, serão suficientes para revelar os pontos de contato entre ficção e

experiência, e a importância disso numa avaliação geral do livro.

Malagueta, Perus e Bacanaço é dividido em três partes: Contos

Gerais, Caserna e Sinuca. “Busca”, o conto de abertura da primeira parte,

narra a história de Vicente, um jovem suburbano, chefe da solda em uma

mecânica de automóveis. Um rapaz de temperamento melancólico, frustrado

em seu amor pelo boxe, que fora obrigado a largar devido ao fracasso de

uma operação para curar-lhe de um problema no fígado. Em um domingo de

tarde, enquanto perambula pela cidade vazia, desguiando de sua própria mãe

e de Lídia, a menina da vizinhança que a mãe lhe tenta impingir como

namorada, ele relembra o fim de sua carreira nos ringues e encara sem

ânimo suas perspectivas.

Há uma base geral comum entre a vida do protagonista e a de João

Antônio: a rotina do domingo de subúrbio, da mãe dona de casa, a

Page 235: João Antônio: Uma Biografia Literária

235

insatisfação generalizada com a vida que entende ser rasteira, com a falta de

ambição dos que o rodeiam. Diz o personagem: “Para essa gente de subúrbio

mesquinho, semana brava suada nas filas, nas conduções cheias, difíceis,

cinema à tarde, pelo domingo, é grande coisa”.477

Também são mencionados

a sinuca e o serviço militar, dois elementos que também marcaram a

juventude do escritor, bem como um terceiro elemento, o problema no

fígado, algo pelo menos semelhante ao que João Antônio também tinha,

desde muito jovem, tendo sido operado dos rins em 61, enquanto que em 66,

aos 29 anos, já fora “definitivamente” [grifo dele] proibido pelos médicos de

beber, por ter uma “complexa complicação fidagal”.478

No conto seguinte, “Afinação da arte de chutar tampinhas”, é narrada

a história de um jovem que, em menino, fora um bom jogador de futebol,

mas, com as mudanças da família, premido pelas obrigações do colégio, pela

autoridade paterna e, mais tarde, pelo serviço militar (novamente presente),

vira desfeito seu sonho de ser jogador. O subúrbio em que se passa a história

é, nomeadamente, Presidente Altino. A União dos Moços de Presidente

Altino, a U.M.P.A., nome sob o qual jogava o time de futebol do bairro,

parece ter existido de fato. Outro bairro mencionado no conto é a Mooca,

mais especificamente as redondezas da rua Caiovás, perto de onde ficava o

Beco da Onça, local de residência da família Ferreira por bons anos. O irmão

do narrador, também, como o do escritor, era um contraponto familiar

perfeito: “só pensa em seriedade”.479

477

Antônio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço, RJ, Civilização Brasileira, p. 15. 478

Cartas a Ilka Brunhilde Laurito, de 23/05/61, 30/05/61, 09/06/61 e carta a Caio Porfírio Carneiro, de

11/07/66. 479

Antônio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço, RJ, Civilização Brasileira, p. 25.

Page 236: João Antônio: Uma Biografia Literária

236

Embora o próprio João Antônio diga que “É o conto mais ‘livre’ que

escrevi. Muito livre, sabe?”480

, ele mais parece estar se referindo à estrutura

“descosturada” do conto do que à dose de invenção ficcional, pois, numa de

suas cartas, comentando seus reais e maiores prazeres na vida, até o motivo

que dá título ao conto aparece: “Tão bom andar despenteado, chutar

tampinha, bebericar ali pelos lados da Santa Efigênia rodeado dos

considerados da boca”.481

Em seguida, “Fujie”, talvez o mais belo conto de amor jamais escrito

por João Antônio. Ele próprio reconhece: “Talvez não seja o meu melhor

trabalho, Ilka. Mas se emoção contasse, eu não teria dúvida restante: ‘Fujie’

é o melhor que fiz, que poderia fazer. ‘Fujie’ sou eu, sabe? E aí vai tudo.

É o meu conto do coração, do coração meu, que só eu conheço. Do

coração numa noite de chuva.

Um homem chora poucas vezes. É a protocolar dignidade besta que se

inventou para determinar machidão.

Pois eu, em ‘Fujie’, chorei”.482

Não por acaso, o escritor cogitou, durante um mês, dar o título a seu

primeiro livro de Fujie, desistindo depois em favor de Aluados e cinzentos,

que mais tarde seria descartado pelo título definitivo.483

Afora a qualidade literária do conto, capaz realmente de transmitir

com força a emoção do narrador, não fica difícil se entender o tamanho do

envolvimento do escritor com a história do jovem ocidental que, obrigado

pelo pai a praticar judô, encontra seu maior e melhor amigo em um colega

japonês, Toshitaro, ou Toshi, filho de um fotógrafo dono de um estúdio no

480

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 14/03/60. 481

Idem, de 05/11/62. 482

Idem, de 13/07/60. 483

Idem, de 27/01/62 e 18/02/62.

Page 237: João Antônio: Uma Biografia Literária

237

bairro japonês. Fujie, a noiva de Toshitaro, e depois sua esposa, encanta o

narrador e fica atraída por ele, empreendendo uma longa campanha de

sedução, finalmente bem-sucedida na última cena do conto. No Cap. 1 deste

trabalho foi mencionado como a cultura japonesa e os encantos orientais da

Liberdade atraíram a João Antônio numa determinada fase de sua juventude.

E ele pontua, numa carta, que “Uma vez, eu tinha vinte e dois anos,

Kodama, um amigo japonês e fotógrafo, me pilhou e me fotografou”.484

E se

alguma dúvida ainda restasse de que o conto é acentuadamente

autobiográfico, o depoimento do irmão Virgínio encarregar-se-ia de eliminá-

la: “Fujie existiu. A situação existiu. Ele [João Antônio] lutou até a faixa

preta, menor de idade ainda”.485

É curioso notar como, de alguma forma, os protagonistas dos três

primeiros contos falam de coisas muito queridas que certos desvios

biográficos lhes tiraram. No primeiro, a doença tirou-lhe o boxe, no

segundo, os estudos, as mudanças da família e o exército interromperam

para sempre sua “carreira” de centro-médio, no último, a amizade de Toshi é

perdida ou, pelo menos, profundamente conspurcada. Esse leitmotiv da

vocação frustrada reaparece ainda com nitidez em pelo menos dois outros

contos do livro, “Visita” e “Meninão do Caixote”.

Seria ir muito longe no terreno da especulação atrelar essa

coincidência à vocação interrompida de João Antônio para a música,

também por causa dos estudos, da autoridade materna, e devido aos

compromissos da juventude (trabalho, exército etc). Ou, quem sabe,

abarcando toda sua experiência familiar, ao desejo recorrentemente frustrado

por uma vida financeira-familiar mais estável, que lhe permitisse dedicação

484

Idem, de 24/01/61. 485

Depoimento colhido em 23/03/2000.

Page 238: João Antônio: Uma Biografia Literária

238

maior às coisas que lhe davam prazer, como escrever literatura, por

exemplo. Afinal, a trajetória da família Ferreira é uma sucessão de mudanças

de patamar econômico, para pior, em geral exigidas pelos revéses

financeiros do pai do escritor, para não falar do incêndio de 1960. Enfim,

algum sentimento de perda biográfica irresgatável, tido ainda na infância e

na primeira juventude, parece haver permanecido dentro de João Antônio, e

parece expressar-se indiretamente nessas histórias iniciais.

Apenas como um parêntese ilustrativo do valor central da música em

sua sensibilidade e de como funcionava seu processo criativo, que

transpunha para a ficção, quase diretamente, as figuras que lhe interessavam

na vida, vale citar o conhecimento que trava com um mendigo que toca

flauta, tendo como repertório, segundo João Antônio, “Lizst, Mozart e

Pinxinguinha…”. Ele imediatamente o imagina como um personagem: “Eu

lhe dei dinheiro e ele me deu sua história. Um dia, eu crio vergonha e o

escrevo. (…) Se o dia é bonito, ele toca; se chove, ele toca. É um homem e

sua flauta — uma coisa não vai sem a outra. É um artista da sua solidão e

não admite interrupção da sua música. (…) O vagabundo me tomou conta e

eu lhe contei. Valeu mais, você ficou conhecendo um personagem”.486

Os dois contos que compõem a seção do livro chamada Caserna,

“Retalhos de fome numa tarde de G.C.” e “Natal na cafua”, também estão

evidentemente enraizados nas experiências vividas pelo escritor durante o

ano de serviço militar. E, para quem, como já se viu, tinha especial vocação

para o conflito, para o desrespeito a comandos que lhe parecessem impostos

e externos a sua própria vontade, pode-se imaginar como essas experiências

foram vividas. Ele diz à amiga Ilka, quando ela recusa o convite para ser a

editora de uma página de cultura, bancada por padres que iriam interferir em

486

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 28/22/61.

Page 239: João Antônio: Uma Biografia Literária

239

suas escolhas literárias: “Ademais, pelo que pude concluir de sua

personalidade, você não é pessoa para ser ‘mandada’ por ninguém. O

admirável desta tendência não tem preço, porém, não se afina nem com a

batina nem com a farda”.487

Ao completar vinte e cinco anos, ele descreve sua depressão, citando

de passagem o juízo que fazia da vivência militar: “Este é meu aniversário

mais ilhado. Nem no quartel, entre promiscuidade e imundície, eu estive tão

solitário”.488

A solidão pode até haver aumentado, como ele diz, mas nem

isso distancia a imagem que guardava do exército da imagem que seus

personagens fazem da vida na caserna.

Em “Retalhos de Fome numa tarde de G. C.”, o narrador, Ivo, numa

tarde modorrenta no quartel, em meio a observações prosaicas da rotina

militar, entre menções a episódios laterais envolvendo a política nacional (o

golpe natimorto de Jacareacanga, em 1955, que impediria a posse de J.K.) e

personagens secundários da tropa e do oficialato (por exemplo o

autoritarismo do sargento Isaías), conta como Tila, uma jovem mulata que se

oferecia por dinheiro aos soldados é a causa da remoção do ex-pracinha

Domício, o único a cometer a imprudência de engravidá-la, e de realmente

amá-la. E ao final do conto, uma aparente conversão da moça, após o

nascimento do filho, abre caminho para uma relação entre ela e o

protagonista.

Em “Natal na cafua”, a marca maior do narrador é uma fúria contida

contra o sub Moraes, autoritário, grosseiro, especialista em humilhar os

subordinados, entre eles o próprio narrador, motorista encarregado de, todas

as manhãs, ir a uma espécie de armazém central do exército, a chamada

487

Idem, de 07/03/60. 488

Idem, de 27/01/62.

Page 240: João Antônio: Uma Biografia Literária

240

“subsistência”, buscar pão e carne. Numa dessas viagens, justamente, com a

indesejada companhia do sub Moraes, o narrador é vítima de um motorista

que vinha na contramão. Dá-se o acidente, o sub Moraes machuca o braço e

o narrador tem o rosto e as mãos feridos pelos estilhaços do vidro dianteiro

do carro. E, por determinação do sub Moraes, vai injustamente preso, isto é,

para a “cafua”. O conto termina com uma descrição do sentimento

melancólico de passar o dia de Natal no xadrez: “Tenho sofrido muito neste

meses de quartel, ouvi muito xingamento, muito deboche e muita ofensa. E

tenho me desdobrado tentando acertar, bestamente. Perco aulas no colégio,

me prejudico. Tenho aturado, agüentado, perdi injustamente meu curso para

cabo, sou o melhor motorista da companhia e dei com o lombo na cadeia

duas vezes...”.489

Já foi citado, no Cap. 1, um trecho de carta que diz: “Aos meus quinze

[anos, o pai] deu para me ensinar a dirigir o jipe. Abespinhado e orientando

aos trambolhões, esquentava-me a cabeça. Um esporro que assustava. (...)

mordendo o beiço, meu pai ao lado, ia aporrinhado no volante. Desgovernei

o jipe num muro de Vila dos Remédios”.490

E como esse trecho é parecido à

descrição do narrador de “Natal na cafua”: “Ele estava ali [o sub Moraes],

velhote e meio surdo, fumando, berrando, xingando, com o braço passeando

do lado de fora da janela. (...)/ E eu aturando aquele homem nas viagens

diárias, boçalidades, xingamentos. (...) Quem ouvisse, que calasse. Senão,

era cadeia”.491

A epígrafe desta segunda parte do livro é eloqüente — “Soldado é

aquilo que fica debaixo da sola do coturno do sargento”492

— e não deixa

489

Antônio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço, RJ, Civilização Brasileira, p. 54. 490

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 06/10/61. 491

Antônio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço, RJ, Civilização Brasileira, p. 48. 492

Idem, p.35.

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241

dúvidas quanto à semelhança entre os sentimentos do autor e dos

personagens no tocante à vida militar.

João Antônio não tinha meias palavras para falar de sua experiência

no exército, e seus personagens ecoam isto: “(...) meus vinte e dois anos me

parecem cem quando penso numas coisas. Anos de balcão, uma infância que

Deus sabe, uma adolescência irrefreada nas doidices acéfalas, a escola e

alguns pavorosos meses de farda [grifo meu]. Pavorosos, isto mesmo. (...)

“Natal na cafua” leva pouca invenção literária. Bastou que eu retornasse à

memória da verde-oliva, repuxasse o tempo e rememorasse sargentos,

cigarros baratos, misérias e condições próprias de um exército de um país

como o nosso”.493

O conto que abre a terceira parte do livro, “Frio”, é o mais antigo de

todos, escrito por volta de 1954. Lembra o escritor da época de sua

composição: “João Antônio vivia bem quando morador de Vila Anastácio,

sozinho em suas noites, tardes e dias. João Antônio não tinha que se juntar a

ninguém. (...) Se eu olhava a chuva e me vinha vontade de chorar, chorava.

Estava só e chorava e estava bem. Amei o menino de ‘Frio’, como se amasse

uma criatura que era minha e era da rua também”.494

Neste conto, um engraxate de dez anos, “pequeno, feio, preto,

magrelo” é acordado por seu protetor, Paraná, no fim da madrugada, e dele

recebe um embrulho, cujo conteúdo não é explicitado, e que deve ser

entregue pelo menino em Perdizes, o que o obriga a uma longa travessia pela

cidade durante o seu despertar gélido. Neste conto, Paraná está para o

menino assim como Laércio Arrudão está para Paulinho Perna Torta, que

também era engraxate quando criança, ou como Vitorino está para o

493

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 28/09/59. 494

Idem, de 24/01/61.

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242

Meninão do Caixote; ou seja, é um malandro que tem uma espécie de

mascote, a quem ensina as práticas do submundo, as gírias, os trejeitos, as

espertezas, a sinuca, e, inclusive, a caftinagem.

João Antônio conhecia bem a obrigação de, ainda criança, se deslocar

pela cidade no cumprimento de missões estipuladas pelo pai, sobretudo na

época em que este administrava um armazém, ao qual o filho, mesmo contra

a vontade, ajudava a abastecer. Além disso, existiu o jogador de sinuca

chamado Paraná495

, bem como a convivência direta com tipos como esse na

Boca do Lixo, e era profundo o conhecimento que tinha o escritor das

paisagens suburbanas nas madrugadas desertas.

O conto seguinte é “Visita”. Neste, enquanto seu ônibus o leva, num

dia calmo da cidade, para a casa de um ex-parceiro de sinuca, chamado

Carlinhos, o narrador rememora fragmentos da passagem da dupla pelas

mesas da cidade. Não se vêem a “uns dois meses”, e o motivo da separação

foi “emprego novo, vida diferente”.496

O narrador compara seu atual

emprego com o antigo, a situação de assalariado à de jogador, queixa-se da

irmã, das amigas da irmã. Chegando à casa do amigo, é informado pela irmã

de Carlinhos que este saiu, e o narrador volta a perambular pela cidade,

questionando seu estilo de vida mas recusando as alternativas, e termina em

um salão de sinuca, onde se percebe enferrujado para o jogo, embora ganhe

trezentos cruzeiros.

A vivência que o narrador tem da sinuca novamente remete a uma

habilidade sufocada, aqui pela premência financeira mas, também, pela

moral do trabalho, que se manifesta por meio da pressão familiar e por uma

dividida opção pessoal.

495

Idem, de 15/09/60. 496

Antônio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço, RJ, Civilização Brasileira, p. 70.

Page 243: João Antônio: Uma Biografia Literária

243

“Já curti um desemprego, cinco meses que só eu sei... Vida do

joguinho. O dia na cama, a noite na rua. Cinco meses. Mas naquele tempo eu

fumava cigarros estrangeiros e mandava polir as unhas. Não engolia um

desaforo. (...) A casa... a família reunida para as reprimendas que duravam

duas horas. (...) Moral para a família rezadeira é agüentar máquina de

cálculo oito horas por dia, agüentar chefe estrangeiro, bitola, manha, idiotice

e ganhar seis contos no fim do mês. Hoje sou um bom rapaz...”.497

A divisão do narrador, entre a vida de jogador e a de trabalhador,

entre a liberdade noturna e as reprimendas familiares, entre a nostalgia dos

tempos de boêmia e a dureza da vida “regular”, entre a consciência de que a

malandragem cobra um preço e a pouca esperança de que a vida de

funcionário traga recompensas, é muito semelhante à que se depreende do

seguinte trecho de uma carta do escritor: “Fiz as minhas, dei gingadas,

perturbei. Ambientes que me largavam só no meio de todos e que acabaram

me enfarando, passada a primeira onda de curiosidade. Assim, malandragem

de sinuca, carteado, cavalos; vigarismos de ‘contos’ ou de mulher; churrear

ou passar tóxicos, tudo não me seduziu. Chamavam-me atenção, é claro, as

infinitas habilidades de tomar, roubar, estraçalhar. Mas a dependência, o

convívio com infelizes demais, as próprias condições de afobado, inquieto,

insatisfeito, deram cabo de toda a vontade. Eu proclamei (aqui o verbo é

bom), um dia — me lembro e confesso:

— A maior malandragem é a honesta”.498

Isso para não mencionar o quanto a rotina do narrador lembrava à de

João Antônio na juventude e o emprego mesmo do narrador remete ao seu e

ao de seu pai no frigorífico Armour, como auxiliar de contabilidade, sob as

497

Idem, pp. 73-74. 498

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/09/60.

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244

ordens de patrões americanos. Eis um trecho do conto: “Pelo ano inteiro,

este tonto trabalha e agüenta escola noturna. Dorme seis horas, acorda

atordoado de sono, vai buscar dinheiro numa profissão inútil. Dia todo

somando, dividindo, subtraindo, multiplicando. (...)/ Aqueles ingleses do

escritório deviam aturar desaforo para saberem o que é a vida. Aturar

desaforos. Figurões que se agrupam, vêm para cá, moram em palacetes, aqui

encontram bobos a servirem-lhes em idioma e escrita. Sou um deles. O que

sei aí está — língua estrangeira para servir a estrangeiros. E ganhar seis

contos por mês. Para que eu viva é preciso tanto”.499

No penúltimo conto do livro, “Meninão do Caixote”, novamente o

ambiente familiar é um quase decalque da vida do escritor. A história é a de

um menino que, levado por um patrão de jogo, mergulha no mundo da

sinuca e, para surpresa geral, torna-se um campeão, mas depois, por pressão

da mãe, desiste da vida de jogo e opta por andar na linha. O pai

caminhoneiro é um traço evidente da confluência entre ficção e realidade,

pois, em seguida a um de seus tombos profissionais, o pai de João Antônio

chegou realmente a trabalhar como motorista de caminhões, fazendo fretes.

E a personagem da mãe, lutando contra a inclinação do filho pela sinuca,

evoca muito fortemente a mãe do próprio escritor, afastando-o dos

instrumentos, do mundo musical, da malandragem.

Se a presença dos índices autobiográficos nos primeiros contos do

livro é, a esta altura, indiscutível, uma aparente conseqüência disso parece

surgir no quadro geral. Percebe-se, no conjunto, uma forte preferência pelo

uso da primeira pessoa como ponto de vista narrativo. “Frio” e “Retalhos de

fome numa tarde de G.C.” são as únicas exceções até aqui. O último texto

escrito para o livro, “Malagueta, Perus e Bacanaço”, é também narrado em

499

Antônio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço, RJ, Civilização Brasileira, pp. 70 e 78.

Page 245: João Antônio: Uma Biografia Literária

245

terceira pessoa. Já a primeira produção posterior ao lançamento do volume,

“Paulinho Perna Torta”, é novamente narrada em primeira. Mas essas duas

últimas novelas têm em comum a ambientação no mundo da sinuca e da

marginalidade, que é um veio autobiográfico sabido. Se levarmos em conta

que a história de Malagueta, Perus e Bacanaço, por apresentar os três

protagonistas em igualdade de condições, praticamente exigia o uso da

terceira pessoa, de uma voz narrativa não colada à subjetividade de apenas

um deles, vemos que, no compto geral, a ligação direta entre experiência e

obra fez prevalecer em João Antônio o gosto pelo uso da primeira pessoa em

seus textos de ficção.

Ao dar conselhos literários para a amiga Ilka Brunhilde Laurito, João

Antônio mostra o quanto acreditava na transposição das experiências diretas

para a obra literária: “Peço-lhe, como amigo e leitor do que você escreveu e

eu pude ler, que volte a escrever. Atenda, Ilka. (…) Escreva sobre a

necessidade do amor que talvez seja tão intensa e ainda mais sofrida

mensagem. Fale de solidão, de pessoas sós, fale do valor que tem o correio

para você e esteja certa — quantas criaturas não se sentirão identificadas,

prontas a amar o que você escrever. Escreva crianças, adolescentes que se

vincularam a você, que dependeram, que receberam e que depois se foram.

Naturalmente, sem nenhuma crueldade. Como é na vida. Escreva suas

amizades e até suas contrariedades, que a vida é uma coisa e é outra. Não se

envergonhe e diga na primeira ou terceira pessoa que você é muito sensível e

que sai do cinema tonta, arrasada e pequenina. E não se esqueça de dizer,

por favor, que você sente vontade de morrer. Tenha coragem e descreva suas

orações e o seu oratório, mostre o seu quarto, o seu amor às bonecas,

apresente suas vizinhas de olhar pensador e amores frustrados. Fale dos

Page 246: João Antônio: Uma Biografia Literária

246

palhaços que você ama e que conversa com eles. Mostre-os, um escritor

mostra o que tem [grifo meu]”.500

Contos de Homens

Outra das articulações gerais do livro parece decorrer daquilo que, ao

se falar, no Cap. 1, das “dentições literárias” de João Antônio, chamou-se,

segundo terminologia do próprio escritor, “literatura de homem”. Para ele,

essa literatura era composta por escritores como Górki, Gógol, Gide, Zola, e

tinha como expoente dos expoentes Ernest Hemingway. Tal “família

estética” deveria ter como característica básica a dureza; falava de temas

duros, tendo como personagens pessoas duras, que atravessavam

experiências difíceis, e era estilisticamente seca, contida, econômica, ou

seja, máscula.

Ao menos esse é o perfil possível de se delinear a partir dos

depoimentos e entrevistas do escritor. A sensibilidade cheia de cicatrizes e

ferimentos, típica desse tipo de literatura, em Malagueta, Perus e Bacanaço

aparece de várias formas. No conto “Visita”, manifesta-se como uma

valorização de homens simples e fortes, em detrimento de outros poderosos

mas fisicamente subdesenvolvidos, e como um certo desejo de vingança

social do narrador: “Por que diabo mandam-me [os chefes no escritório]

tantos relatórios? Os dedos pretos de fumo são fins de braços sem bíceps,

sem tríceps, nada. Pudera! Às vezes, vejo na expedição homens de sacaria,

500

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 27/01/62.

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247

braços enormes. Imagino-me vivendo à sombra deles. Parece-me que a vida

teria músculos e sossego, não cálculos e ocupações domésticas”.501

Mais comumente, porém, e sobretudo, a sensibilidade “de homem”

aparece na escolha dos ambientes freqüentados pelos protagonistas, como é

o caso da dita “sacaria”. Mas também a oficina mecânica, em “Busca”, e o

ginásio de boxe; o vestiário do time de futebol, em “Afinação da arte de

chutar tampinhas”; a academia de judô, em “Fujie”; o quartel, de vários

contos; os escritórios de contabilidade, também de “Visita” (que hoje talvez

tenham perdido esse caráter eminentemente masculino, mas certamente

ainda o tinham no final dos anos 50); e, claro, os salões de sinuca, de

“Visita”, “Meninão do Caixote” e “Malagueta, Perus e Bacanaço”.

Essa ênfase na experiência masculina permeia todo o livro. E

nenhuma narradora é mulher. O único conto em que uma mulher disputa

importância com o protagonista é, exatamente, o que leva o nome de uma,

“Fujie”. Mesmo assim, Fujie é uma psicologia impermeável, que põe à

prova a fidelidade do narrador para com seu melhor amigo, com quem ela é

casada. Mas nada ficamos sabendo sobre como a própria Fujie pensava e

vivia a forte atração pelo homem de confiança do marido. Ela faz o papel de

estopim do drama, mas como uma força externa que atua sobre a voz

narrativa, mais como a encarnação da tentação feminina, da diferença entre

os sexos (ela ser japonesa é um signo que reforça este efeito), do que como

uma pessoa com nível de elaboração igual ao do narrador.

A epígrafe de tom bíblico, tirado de um poema de Vinícus de Morais,

é sintomática: “Nem tu mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres

como as plantas, imovelmente e nunca saciada. / Tu que carregas no meio de

501

Antônio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço, RJ, Civilização Brasileira, p. 76.

Page 248: João Antônio: Uma Biografia Literária

248

ti o vórtice da paixão”.502

Remete à idéia da mulher como uma força da

natureza, eventualmente. E da idéia da mulher como ser vegetal, “nunca

saciada”, para a idéia da mulher como ser animal, ou, mais especificamente,

como a cobra que tentou Adão, não há uma distância muito grande, tendo

em vista que o título do poema é “Dia da Criação”. Ou seja, há uma razoável

fabricação alegórica nessa única figura feminina que disputa o primeiro

plano com um narrador homem.

O espírito da cidade

Um terceiro elemento de ligação que permeia todo o livro, certamente,

é a cidade. É ele, mais que qualquer traço puramente estilístico, que justifica

a vinculação de João Antônio à tradição de Mário de Andrade e Antônio de

Alcântara Machado. Todos os contos, sem exceção, mapeiam pontos da

cidade, trajetos, discorrem sobre o caráter desta ou daquela paisagem, os

tipos que freqüentam cada uma etc.

Ao longo do livro, pode-se montar um autêntica lista dos bairros de

São Paulo: Lapa, City, Piqueri, Presidente Altino, Mooca, Penha, Liberdade,

Centro, Santa Cecília, Perdizes, Pompéia, Pacaembu, Água Branca, Vila

Mariana, Tucuruvi, Vila Ipojuca, Vila Leopoldina, Osasco, Pinheiros,

Moinho Velho, Cruz das Almas, Vila Alpina, Limão, Perus.

Ou de algumas de suas ruas, alamedas e avenidas: Caiovás, Galvão

Bueno, av. Liberdade, Abílio Soares, Quintino Bocaiúva, Cleveland, João

Teodoro, av. Duque de Caxias, av. São João, av. Água Branca, av. Ipiranga,

Amador Bueno, Líbero Badaró, rua das Palmeiras, Teodoro Sampaio.

502

Idem, p. 27.

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249

Ou, ainda, de alguns de seus edifícios e cenários mais conhecidos:

Estação Júlio Prestes, Teatro Municipal, Viaduto do Chá, Mosteiro de São

Bento, Largo Santa Ifigênia, Praça da República, pico do Jaraguá, o cinema

Niterói, Estação Sorocabana, Igreja das Perdizes, Largo da Barra Funda,

Largo Padre Péricles.

E, finalmente, de certas paisagens menos conhecidas

individualmente, mas por isso mesmo talvez ainda mais típicas, como por

exemplo uma vila operária, com ruas de paralelepípedos, “rodeada de

fábricas, dezenas de bares, três igrejas, um grupo escolar”503

; ou “Um prédio

velho da Lapa de Baixo, imundo, descorado, junto dos trilhos do bonde. À

entrada ficavam os tipos vadios, de ordinário discutindo jogo, futebol e

pernas que passavam. Pipoqueiro, jornaleiro, o bulício da estrada de

ferro”.504

São Paulo é sim, com fidelidade documental, o cenário dos contos,

mas não apenas de maneira tão direta João Antônio tenta capturar o espírito

de sua cidade. Outros elementos, eleitos por sua intuição criativa, levam-no

ao ponto desejado: um sentimento profundo da cidade, ao mesmo tempo

pessoal e compartilhável por meio da literatura. Esses elementos, a princípio,

são quatro: movimento constante, distância subúrbio x centro e bairros, o

misticismo da luz elétrica, a cidade como espaço de degradação.

O simples acúmulo de referências toponímicas sugere o quanto os

personagens se deslocam pela cidade, mentalmente muitas vezes, mas,

sobretudo, fisicamente. Os narradores dos contos, e/ou seus protagonistas,

estão sempre em movimento. O próprio conto-título não é dividido em

partes, cada qual com o nome de um bairro? Lapa, Água Branca, Barra

503

Idem, p. 75. 504

Idem, p. 87.

Page 250: João Antônio: Uma Biografia Literária

250

Funda, Cidade, Pinheiros? Por conseqüência disto os meios de transporte,

trens, bondes, automóveis, bicicletas, são objetos de atenção constante,

elementos quase obrigatórios das passagens descritivas da paisagem.

Parte dessa recorrente movimentação pela cidade advém da distância

entre o subúrbio, local de origem e residência da maioria dos personagens, e

os bairros: “Que horas tem trem para São Paulo?/ Meia hora não esperaria.

Fui caminhando para a Lapa. Mesmo a pé.”505

; e “A última sessão [do

cinema] termina pela meia-noite passada, o último ônibus parte às onze e

meia. Porcaria de subúrbio!”506

; e ainda “Minutos de espera, o que me

sobrou foi tédio e raiva. Onde se viu uma linha de ônibus tão relaxada? E

ainda querem aumento de tarifas... (...) Abandono a idéia do ônibus, vou a

pé.”507

Entretanto, é importante não se confundir esse constante movimento

com a imagem mais banalmente veiculada da cidade de São Paulo, a de

Meca brasileira do dinamismo e da correria laboriosa. Essa movimentação

constante dos narradores e/ou protagonistas, em geral é motivada mais por

inquietações interiores (de causas sentimentais ou familiares etc., ou por

necessidades de uma certa economia) do que por demandas do capitalismo

ortodoxo. Por sinal, muitos dos contos se passam em sábados e domingos,

ou no quartel, lugar relativamente à margem da rotina produtiva da capital

financeira do país. Como se, em momentos de interrupção do trabalho

massacrante, durante os deslocamentos pela cidade que lhes dão perspectiva,

lhe permitem olhar o outro, e olhar para dentro de si, os homens

recuperassem a humanidade.

505

Idem, p. 12. 506

Idem, p.75. 507

Idem, p. 76.

Page 251: João Antônio: Uma Biografia Literária

251

Como conta o narrador de “Busca”, sentado num banco de jardim,

onde fora parar vagando angustiado pelas ruas, em direção frouxa rumo ao

Piqueri: “Uma criança passou-me, deu-me um tapinha no joelho. Achei

graça naquilo, sorri, tive vontade de brincar com ela. Ficamos nos

namorando com os olhos. Ela se chegou, conversamos. (...) / A garotinha do

jardim público poderia ser minha filha. Este pensamento agradou-me, jogou-

me uma ternura”.508

Em pelo menos três contos, a movimentação, o deslocamento

constante dos personagens, é nitidamente fruto de certa inquietude interior:

“Busca”, “Afinação da arte de chutar tampinhas”, e “Visita”. E, embora este

fenômeno não ocorra de forma idêntica em “Retalhos de fome numa tarde de

G.C.”, ou em “Natal na Cafua”, vale lembrar que o motivo do sofrimento de

seus protagonistas é, justamente, a interdição da capacidade de ir e vir, o

isolamento do quartel e, no tocante ao segundo, da prisão.

Em “Fujie”, os bondes são a promessa de escapar da tentacão:

“Bondes que vão para o outro lado da cidade rangiam-me na cabeça.

Adoraria estar longe”.509

É como se a movimentação pela cidade fosse uma

saída, ou pelo menos um anestésico, para as situações difíceis que vivem os

narradores e/ou protagonistas. Há uma sensação de liberdade e de superação

das dificuldades que o simples deslocamento parece poder propiciar.

Os três personagens do conto-título, que se deslocam pela cidade ao

longo de uma noite, atrás de jogos de sinuca e otários que possam ludibriar,

de certa forma, também são movidos por inquietações. A do ganho

pecuniário propriamente dito, sim, mas também pela necessidade de,

508

Idem, p. 16. 509

Idem, p. 33.

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252

deslocando-se, atuar, “fazer a noite”, encontrar onde mais se está jogando “o

joguinho mais ladrão de quantos há na sinuca”, o “jogo de vida”.510

Afinal, no espaço urbano, para pessoas da classe social a que

pertencem os personagens de João Antônio, se deslocar é viver, e a

estabilidade e a estagnação foram feitos para os outros, não para eles. Os

operários e malandros de João Antônio são como as bolas em uma mesa de

sinuca, que não fazem sentido se imóveis, e portanto se deslocam e se

chocam pelo pano verde à espera de caírem definitivamente na caçapa e lá

morrerem, ou encontrarem a paz.

“Desde que papai morreu, esta mania. Andar. Quando venho do

serviço, num domingo, férias, a vontade aparece. O velho, quando vivo,

fazia passeios a Santos, uma porção de coisas. Bom. A gente se divertia, a

semana começava menos pesada, menos comprida, não sei. Às vezes, penso

que poderia recomeçar os passeios.”511

Quando passam num trecho de bairros mais chiques da cidade,

quando se defrontam com uma vida estática, de conforto satisfeito e que não

exige o escape do deslocamento constante, sentem-se corpos estranhos,

nômades viscerais, sem direito a descanso: “Mas era uma noite de sábado e

houve outros lados por onde passaram, apequenados e tristes. / Vai-e-vem

gostoso dos chinelos bons de pessoas sentadas balançavam-se nas calçadas,

descansando. / Com suas ruas limpas e iluminadas e carros de preço e

namorados namorando-se, roupas todo-dia domingueiras dos lados bons das

residências da Água Branca e dos começos das Perdizes. Moços passavam

sorrindo, fortes e limpos, nos bate-papos da noite quente. Quando em

quando, saltitava o bulício dos meninos com patins, bicicletas, brinquedos

510

Idem, p. 113. 511

Idem, p. 12.

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253

caros e coloridos./ Aqueles viviam. Malagueta, Perus e Bacanaço, ali

desencontrados. O movimento e o rumor os machucava, os tocava dali. Não

pertenciam àquela gente banhada e distraída, ali se embaraçavam. (...)/ Um

sentimento comum unia os três, os empurrava. Não eram dali. Deviam

andar. Tocassem.”512

É também esta distância, cheia de significados

econômico-sociais, que confere uma dimensão mais profunda aos

deslocamentos, transformando-os quase em travessias entre mundos

diferentes.

O dinamismo normalmente associado ao habitante da capital paulista

manifesta-se, portanto, nos contos do livro de estréia de João Antônio, no

deslocamento físico constante, na fuga de um “mal” interior, ou de uma

situação material adversa, como remédio a um desconforto silencioso e, na

maioria das vezes, cheio de uma revolta resignada. Tenha o personagem

optado pela vida de mão-de-obra barata ou pela de malandro, há sempre

revolta e resignação. E para enfrentá-las, para anestesiar a dor, há sempre

deslocamento físico. O trabalhador mão-de-obra barata, o lúmpen, e o

malandro, claro, são apenas os dois lados da mesma moeda mesquinha. Essa

necessidade de movimento existe nos protagonistas dos primeiro oito contos,

ex-malandros, ex-boxeadores, ex-campeões de sinuca, ex-alguma coisa que

foram obrigados a aceitar a vida de um trabalhador como outro qualquer —

o que também é verdade nas duas histórias passadas na caserna, pois seus

protagonistas são, também, ex-civis obrigados a abaixar suas cabeças diante

de forças maiores. Mas existe inclusive nos malandros “profissionais”, que,

por não terem aceitado jamais a exploração de sua força-de-trabalho, sequer

são capazes de entender as compensações da vida “honesta”.

512

Idem, pp. 124-125.

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Numa das poucas (e quando digo poucas, na verdade estou dizendo

que me recordo de apenas uma outra513

) passagens em que o livro faz uma

daquelas típicas descrições da efervescência urbana-produtiva de São Paulo,

Bacanaço vê outra coisa: “Gente. Gente mais gente. / A rua suja e pequena.

Para os lados do mercado e à beira dos trilhos do trem — porteira fechada,

profusão de barulhos, confusão, gente. Bondes rangiam nos trilhos, catando

ou depositando gente empurrada e empurrando-se no ponto inicial. Fechado

o sinal da porteira, continua fechado. É pressa, as buzinas comem o ar com

precipitação, exigem passagem. Pressa, que gente deixou os trabalhos,

homens de gravata ou homens de fábricas. Bicicleta, motoneta, caminhão,

apertando-se na rua. Para a cidade ou para as vilas, gente que vem ou que

vai. (...) / Trouxas. Não era inteligência se apertar naquela afobação da rua.

Mais um pouco, acendendo-se a fachada do cinema, viria mais gente dos

subúrbios distantes. A Lapa ferveria. Trouxas. (...) Corriam e se afobavam e

se fanavam como coiós atrás de dinheiro. Trouxas. Por isso tropicavam nas

ruas, peitavam-se como baratas tontas.”514

O dinamismo produtivo, quando aparece, recebe um sinal negativo, e

aquele que o observa nega a possibilidade dele representar uma fonte de

felicidade.

Também a vida de jogador, de malandro, é em vários momentos

questionada como outro possível escape das durezas da realidade. A

superioridade de Bacanaço, para continuar no exemplo acima, se esvai nos

sucessivos tropeços da trinca de jogadores, e a resignação pelas agruras

próprias da malandragem o invade também: “Falou-se que naquela manhã

513

“A Chinesa [uma pastelaria em Pinheiros] fervia, dia e noite sem parar, que ônibus expressos vindos de

longe, ou caminhões de romeiros, condutores, surrupiadores de carteira, estudantes, mulheres da vida,

bêbados, tipos sonolentos e vindos da gafieira famosa do bairro (...) Movimentos vibravam, vozerio, retinir

de xícaras, buzinas.” Idem, p. 148. 514

Idem, p. 106.

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por ali passaram três malandros, murchos, sonados, pedindo três cafés

fiados”.515

Isto significa que nem de um lado nem de outro está a paz. É no

deslocamento.

Ora, com esse estado de espírito, o olhar que os personagens de João

Antônio lançam sobre a cidade em suas perambulações não poderia deixar

de ser predominantemente melancólico, para não dizer totalmente. Os casos

são inúmeros, de observações repletas de tédio, de enfado diante das

impossibilidades de suas existências mesquinhas, por razões sociais

sobretudo, mas também de uma certa mesquinhez inerente ao “jogo de

vida”. São cenários em geral vazios, a cidade é predominantemente cinzenta,

o vento é predominantemente frio (e não só no conto que leva esse nome).

Alguns exemplos, colhidos propositalmente ao longo do livro, como

demonstração de que é este o sentimento geral que o atravessa do início ao

fim: “Um domingo tão chato! Depois do almoço, as coisas ficam paradas,

sem graça”516

; “Sábados à tarde, e domingos inteirinhos — a cidade se

despovoa. Todos correm para os lados, para os longes da cidade. (...) Fica

outra a minha cidade!”517

; “Os lados da City, tão diferentes, me davam uma

tristeza leve. Essa que sinto quando como pouco, não bebo, ouço música”518

;

“Muito bom pela madrugada, quando os carros são poucos e a luz dos postes

se atira sobre as tampinhas no asfalto”519

; “Havia um jeito de preguiça em

tudo. Até lá fora, nos autos que comiam o asfalto da rua Abílio Soares”520

;

“Nas ruas da cidade, os preparos de Natal, repetiam aqui, ali, além, numa

fachada de loja, numa entrada de cinema, cores vibrantes na manhã. Mas não

515

Idem, p. 159. 516

Idem, p. 11. 517

Idem, p. 22. 518

Idem. p. 12. 519

Idem, p. 23. 520

Idem, p. 38.

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256

era alegre, era tristeza na manhã de corpos agitados, de pressa, de frio

bravo”521

; “Por ali ninguém. Tudo dormido”522

; “Ainda olhou para a

avenida. Frio. Queria ver um vulto. Ninguém. Só um ônibus lá em cima, que

dobrava o largo, como quem vai para os lados da Vila Pompéia”523

; “O

ônibus vazio me dá calma”524

; “A madrugada geral continuava; lentos,

safados passavam” 525

; “Despediram-se do maior taco do Brasil, ligeiros e

firmes entraram pela Santa Efigênia, rua de virações como outras, àquelas

horas dormidas”526

; “Tomaram o viaduto Santa Efigênia maquinalmente,

numa batida frouxa e dolorida. Só se ouvia, à frente, o ‘plac-plac’ dos saltos

de couro de Bacanaço. A gana do jogo lhes passara de todo e não percebiam

o vento quieto e úmido batendo-lhes agora, nas caras e nas pernas. As três

cabeças seguiam baixas. Eram três vagabundos e nada podiam. Seguissem,

ofendidos”527

; “O velho viaduto Santa Efigênia ficava solene na sua velhice

de construção antiga e mais velho, àquela hora de calma. O viaduto velho, os

prédios novos, muito enormes se atirando em vertical, dormidos agora. Visto

de cima, o Vale do Anhangabaú era um silêncio grande de duas tiras pretas

de asfalto”528

; “Na rua comprida, parada, dormida — vento frio, cemitério,

hospital, trilhos de bonde; bar vazio, bar fechado, bar vazio...”529

; “Pinheiros

dormia de todo; nem gente, nem carros, na rua Teodoro Sampaio nenhum

bonde passava”.530

521

Idem, p. 49. 522

Idem, p. 66. 523

Idem, p. 67. 524

Idem, p. 72. 525

Idem, p. 131. 526

Idem, p. 133. 527

Idem, p. 139. 528

Idem, pp. 139-140. 529

Idem, p. 143. 530

Idem, p. 144.

Page 257: João Antônio: Uma Biografia Literária

257

A cidade, ao que parece, é uma fonte de tristeza, como ele diz em suas

cartas: “Nas ruas há muita gente feia. Mal vestida e sofrida. Os tipos

marcadíssimos. Mal vestidos na concepção e na realização. Para que o

marrom, o preto, ou o horrível azul fechado? Nem… / Nem se enxergam que

não são complicados e pálidos. / (…) / E os corpos deformados. Há banhos

dispensáveis como há pêlos a aparar como há peitos que se deviam levantar.

Também há cabeças que se deviam levantar, como há ânimos./ E nem sei

porque repito essas coisas. Todos sabem que na terra o clima é ruim, a

cidade é ruim. Não tem verde, não tem mar. A gente se lembra que era

preciso fazer esporte quando vê um jogador de futebol, moreno e bonito, nas

ruas. Aparecem, empertigados, diferentes, superiores”.531

Há, entretanto, na representação de São Paulo feita por João Antônio,

um outro elemento importante, a luz elétrica. Ela desempenha inúmeras

funções. Em alguns momentos, compõe o tom geral da cena:

“Os luminosos ainda resistiam, os postes de iluminação com seus três

globos ovalados eram agora de todo silentes, e atiravam sobre a cidade um

tom amarelo, desmaiado, místico no sossego geral da hora”.532

Em outros, marca as fases do dia, e portanto distribui novos papéis a

todos:

“Bacanaço deu com a primeira luz. Lá no meio da cara da locomotiva.

Num golpe luzes brotaram acima dos trilhos dos bondes. Os luminosos dos

bares se acenderam e a fachada do cinema ficou bonita./ A Lapa trocava de

cor”.533

Em outros, ecoa a subjetividade dos narradores/protagonistas:

531

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 13/06/61. 532

Antônio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço, RJ, Civilização Brasileira, p. 142. 533

Idem, p. 108.

Page 258: João Antônio: Uma Biografia Literária

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“Dali eu via o luminoso de seu Teikan e adivinhava o quarto dela.

Fumei muito olhando para o luminoso. (...) Luzes iam, sumiam na avenida.

O luminosos de seu Teikan brilhava, se apagava, brilhava. Tive a impressão

de que ele sabia o que se passava comigo. Zonzo, caminhei para ele”.534

E ainda lhes serve de colírio para os olhos. Aparecendo à noite, como

uma Lua feita pelo homem, ameniza os contrastes, suaviza os contornos da

realidade, inspira os corações:

“Olhava para as luzes do centro da Avenida, bem em cima dos trilhos

dos bondes, e pareceu-lhe que elas não iriam acabar-se mais. Gostoso olhá-

las”.535

“Lua lá em cima, o menino olhou. Já se percebia, à frente, o contorno

do Mosteiro de São Bento também sossegado no seu jeito antigo. Luz

elétrica dos postes jogava uma calma...”536

“Uma, duas, três, mil luzes na avenida São João! (...) A cidade

expunha seus homens e mulheres da madrugada. E quando é madrugada até

um cachorro na Praça da República fica mais belo. Luz elétrica joga calma

em tudo.”537

Mas nem sempre a luz elétrica conseguia esconder a degradação da

cidade, da natureza que a cerca e das pessoas que nela vivem: “Até há

pouco, aquilo era do futebol da molecada. Indústrias querem surgir

acompanhando a estrada de ferro, acompanhando tudo, provavelmente serão

usinas de concreto. Várzea escura, breu. Meu pai disse-me que, quando

menino na Europa, transpunha vales escuros, para pastoreio, onde lobos

534

Idem, pp. 32-33. 535

Idem, p. 64. 536

Idem, p. 140. 537

Idem, p. 128.

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uivavam. Aqui há mosquitos e fartum do cortume próximo. Luzes ao longe,

luzes da serraria”.538

“O ônibus rolava pelo viaduto. Rio sujo lá embaixo. Ainda dizem ser

grande coisa lá na escola. (...) Mas dizer-se maravilha do rio fedorento, lá

isto é asneira da grossa. Até um ignorante como eu, percebe. Xingam isto de

nome indígena...”539

O mundo natural, em seu estado puro, parece mesmo

distante da cidade e da vida cotidiana, e o mar de Santos, o pico do Jaraguá

longe no horizonte, são últimos elos entre o homem e a paisagem natural.

Mesmo uma singela manifestação da natureza só pode ser observada no

quartel, como já foi dito, um lugar meio à parte no espaço urbano, que tem

outro ritmo: “Agora o pardal mais a fêmea faziam festa no fio”.540

Mas a degradação pior era a das pessoas, privadas de sua humanidade.

Elas deixam de fazer o que amam, por doença ou por dinheiro, ou

simplesmente por falta de tempo. Elas se rebaixam por necessidade, perdem

o direito à poesia e ao amor. E ao próprio tempo. No movimento do qual não

podem fugir, distanciam-se umas das outras, ou se chocam. Um dos

exemplos mais fortes da degradação humana na cidade, conforme João

Antônio, está em “Malagueta, Perus e Bacanaço”: “A rua estreita, escura. De

um lado e de outro, falhas no calçamento, basbaques espiavam e malandros

iam a perambular. Mulheres da hora moviam as cabeças para a direita, para a

esquerda, para a frente, na tarefa de chamar homem. A pintura nas caras e

nos cabelos se exagerava e elas encostavam-se às beiradas, mascavam

538

Idem, p. 76. De passagem, mais um elemento autobiográfico vale menção, pois, como se viu no Cap. 1,

o pai de João Antônio foi efetivamente pastor de ovelhas em Portugal. 539

Idem, p. 73. 540

Idem, p. 38.

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260

coisas, fumavam muito. Ficavam nos cantos, intoxicadas, para enfrentar a

rua. (...) / A Amador Bueno era triste”.541

Estado de ebulição

“Lá [na revista Anhembi, por indicação de Mário da Silva Brito],

muito possivelmente, sairá um conto que atende pelo nome de ‘Meninão do

Caixote’. Segundo a opinião de dois amigos, Mário da Silva Brito e Jorge

Medauar, a temática por mim ali erguida é completamente nova na literatura

brasileira. Além do que, meus exagerados amigos acham que o conto, quase

uma novela, é uma obra-prima. Nem tanto, Ilka. Eu lhe garanto. O conto é

feliz, eis tudo.”542

“Meninão do Caixote”, de fato, viria a ser um conto pelo qual João

Antônio desenvolveu especial carinho. Escrito ao longo de 1959, em 1960,

ano em que foi publicado pelo O Estado de São Paulo, ainda ecoava na

cabeça do autor: “Rememoro ‘Meninão do Caixote’, mentalmente vivo a

história e redescubro que ainda a amo e que não minto — quando

escrevo”.543

Seis meses depois, revê todo o texto do conto.544

Em 1962, o

conto sai na revista da Academia Brasileira de Letras, por intermédio de

Paulo Rónai, e no mesmo ano ganha prêmio na Tribuna.545

“Meninão do Caixote” é, ao mesmo tempo, por tudo que sua

correspondência demonstra, um dos contos que mais lhe deu trabalho. O

processo de composição é cheio de idas e vindas, e suas cartas demonstram

541

Idem, p. 131. 542

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 23/09/59. 543

Idem, de 19/12/60. 544

Idem, de 09/06/61. 545

Idem, de 26/12/62.

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261

uma ansiedade e, por vezes, uma insatisfação insuperável: “Passo-lhe meu

‘Meninão do Caixote’./ A você, que escreve também, será fácil compreender

certas durezas da fatura literária. Vai encontrar frases riscadas, palavras

manuscritas voando à cabeça das datilografadas./ Carrego comigo a angústia

de sempre achar que uma redacão ainda não está no ponto, e por isso, não

está pronta. Falta isso, sobra aquilo. À noite, hora da gente dormir, cinema,

televisão, qualquer coisa, é minha hora de correr atrás das imperfeições.

É...”.546

Nesta mesma carta, chega a ser divertido vê-lo encontrando pequenos

defeitos, repensando cada linha do conto: “Desgraçadamente fedia na

segunda página um cacófaton — a ‘Lapa tinha’. No entanto me escapou, me

escapou, me escapando, como se não existisse. Já no finzinho da terceira

página, havia uma dessas grandes proposições primárias. Muitas palavras

não dizendo nada. Primária, infantil. Era assim: ‘Ademais, não é comum em

São Paulo, entre pessoas desconhecidas, essa camaradagem franca, de

primeira mão, gostosa, que nos dá vontade de ficar conversando com uma

pessoa’. Ora, não era ficção. Parece-me, agora, que, essa coisa, só se

prestaria para reportagem, ou algum relatório sociológico. De mais a mais,

tem ranço de dogma”.547

Mas, apesar de uma certa insatisfação insuperável, ele parece

consciente de que está abrindo uma fronteira, fazendo alguma coisa que

ninguém, nem ele próprio, fizera antes: “Leia com calma, viu? (...) Nem se

deixe carregar pelas vantagens do conto — novidade do tema, vocabulário

especial, atmosfera original, etc. Veja friamente”.548

Ou: “O tema é

excelente e a realização supera certos avanços na literatura paulistana, como

546

Idem, de 10/11/59. 547

Idem, ibidem. 548

Idem, ibidem.

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262

os de Antônio de Alcântara Machado, por exemplo. (...) Pode crer que não é

modéstia não. A coisa que eu menos tenho é modéstia”.549

Ele, portanto, percebia que seu jeito de escrever estava mudando, e a

avaliação crítica que fazia do conjunto de seus escritos até ali, oscilante ao

extremo, refletia esse momento de mutação estética. “Meninão do Caixote”

não era o único conto a ser constantemente reavaliado, mas estava no bolo.

Esta oscilação já se verificava em 1960. Falando de “Afinação da arte

de chutar tampinhas”, ele menciona esta constante mutação: “Por isso, de

quando em quando, aqui, ali e além, reconheço surgir algum recurso que é e

não é suficiente para a minha atual concepção de conto. E assim, de chute

em chute, entre uma e outra calçada, aparece muita coisa que mais parece

crônica. Não quero refazer o conto, agora. Parece-me que sou um péssimo

artesão, sabe? Quando escrevo um conto é porque estou vivendo-o há

tempos, não haverá libertação se não houver eclosão do fardo. Muito

necessário fazê-lo — se não o escrever (palavra de honra) a vida passa a não

prestar./ Uma vez escrito, morreu. Não quero mais saber. (...) Isto se deu

com ‘Afinação’. Surgido, desejado, amado, realizado, esquecido. E tchau.

Qualquer outra coisa na vida já me picava. [grifos meus]”.550

“Garanto-lhe, entretanto, não ser [o conto “Afinação da arte de chutar

tampinhas”] tudo o que dele você espera. Quando o escrevi pareceu-me

estranho, original, vibrante. Hoje, parece-me tolo.”551

E até 1965, pelo menos, o processo continua, e dele não escapa o

conto que, para muitos, é sua obra-prima, “Malagueta, Perus e Bacanaço”:

“Isso tudo, fatalmente, vai influir na minha literatura. E posso entrever uma

realidade esmagadora: eu preciso reler quase todos os autores que li, que eu

549

Idem, de 23/09/59. 550

Idem, de 14/03/60. 551

Idem, de 07/03/60.

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263

não entendia totalmente antes. Por inexperiência de vida e até cultural, sob

certo aspecto. Eu, hoje, não escreveria mais os contos de Malagueta, Perus e

Bacanaço. Dificilmente sairiam como saíram. Talvez sobrassem apenas

dois, ‘Fujie’ e ‘Meninão do Caixote’. A própria história principal do livro

seria reescrita, porque, embora não pareça, ali existe muita coisa falsa e

‘literária’, para agradar aos ‘literatos’, ‘críticos’ e ‘editores’/ Ilka, é uma

mudança muito grande para que eu consiga extrair uma essência agora, já,

de pronto. Acho que é preciso madurar o fruto”.552

Porém, no momento de composição de “Meninão do Caixote”, são os

contos iniciais que estão na berlinda, eles são o modelo a ser superado. Neles

está espelhado o jeito de escrever que, para o escritor, começa a demonstrar-

se insuficiente.

As mudanças pelas quais passava seu trabalho eram de duas

naturezas. Uma diz respeito a uma diminuição do coeficiente autobiográfico

em seus contos.

Todos os oito primeiros contos do livro, como já se viu, apresentam

ligações fortes entre autobiografia e fabulação literária. Nuns, predominam

ligações diretas, e estes muitas vezes caracterizam-se pelo uso da primeira

pessoa e de um tom confessional, introspectivo, absolutamente pessoal. Em

outros — notadamente, na ordem em que foram escritos, “Frio” (1955),

“Retalhos de Fome Numa Tarde de G.C.” (1958), e “Meninão do Caixote”

(1959) —, tais ligações se dão de forma indireta (não por acaso, nos dois

primeiros a narrativa é feita em terceira pessoa), a partir de um “fundo

autobiográfico”, que foram a experiência na caserna e a convivência com os

jogadores de sinuca e com a alta e baixa malandragem.

552

Idem, de 09/10/65.

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264

Mas não parece absurdo afirmar que “Meninão do Caixote” parece

marcar uma virada neste aspecto. Depois deste conto, João Antônio entra

numa safra em que o cruzamento direto entre vida e obra simplesmente pára

de ocorrer, a moldura autobiográfica que dá o tom da primeira leva de

contos se desfaz, sendo substituída por uma elaboração mais indireta de suas

experiências pessoais. A nova safra continua com “Malagueta, Perus e

Bacanaço” (1962), “Paulinho Perna Torta” (1964) e, no ano de 1975, com

seu segundo livro, que reúne os contos “Leão-de-chácara”, o conto-título,

dois outros contos, que são “Três cunhadas — Natal 1960” e “Joãozinho da

Babilônia” e o próprio “Paulinho Perna Torta”. Após “Meninão”, numa lista

de sete contos, nenhum remete diretamente a sua história pessoal. Ao que

parece, a experiência e a ficção encontram um novo equilíbrio no interior de

sua obra.553

Em 1965, após a publicação de “Paulinho Perna Torta”, instado a

escrever um romance, ele diz: “O romance. Acertou em cheio. Nem vou

falar. A única solução minha (e que aceito com alegria) para a frente é o

romance. (...) Apenas o seguinte, Ilka: no romance, ou antes, num romance,

não cabe fazer o que pretendo. Eu vou partir para a saga. Eu lhe conto.

Preciso contar tudo o que vi, vivi, sofri, conheci em São Paulo. Bem.

Tenho, sem exagero e de pronto, vinte personagens consumadas. Homens,

mulheres, crianças, velhos, botequins, curriolas, ambientes opostos e

contraditórios, um mundo. (...) Então, a própria vivência, interpretada e

meditada, me trouxe a solução estética e técnica. A saga. (...)/ Não me perco,

553

Como se verá no Cap. 4, no que se refere à dicotomia vida e obra, referências autobiográficas e ficção,

que já tão cedo vivia momento de reequilíbrio, em prol da ficção e rumo ao distanciamento das

experiências diretas, o jornalismo, mais tarde, criaria ainda a instância da experiência indireta, nem ficção

nem autobiografia, testemunho. A veia autobiográfica de João Antônio nunca deixou de existir, mas

quando reapareceu já veio assumidamente separada da ficção, com textos cujo caráter literário decorre

exclusivamente da elaboração estilística, e não do cruzamento vida e fabulação.

Page 265: João Antônio: Uma Biografia Literária

265

que eu vi e sofri e vivi tudo o que vou contar. Vai de primeira pessoa, vai de

terceira. Farei uma saga. (...) Minha vinda para o Rio de Janeiro está, de

certa forma, me dando uma visão um tanto diferente do mundo ou mundos

que vi em São Paulo. Um sentir mais amadurecido e muitíssimo mais real,

menos lírico, menos paternal. Um paternalismo que apenas comecei a perder

em “Paulinho Perna Torta”. (...) / Corro um perigo sério. Como Pratolini,

esses livros (romances, sagas) poderão ter cheiro forte de autobiografia. O

que devo evitar a todo custo”.554

Mas a segunda natureza das mudanças que estão ocorrendo na época

não dizem respeito ao coeficiente autobiográfico da sua produção, mas a seu

estilo. No Cap. 2 já se viu que, quando escrevia seus contos de estréia,

enquanto trocava idéias com seus interlocutores literários, em especial Ilka

Brunhilde Laurito e Caio Porfírio Carneiro, especulando sobre os motivos de

o homem paulistano, urbano, não ser objeto de uma literatura tão

característica quanto o homem rural, mineiro ou nordestino, de um

Guimarães Rosa ou da turma de Paulo Medauar e companhia, com destaque

para Osório Alves de Castro, João Antônio começava a rejeitar sua

representação do mundo até ali.

“Meninão do Caixote” é o primeiro conto em que a inovação na

linguagem é tematizada por ele em suas cartas. E o fenômeno se aprofunda

durante a redação da novela-título de seu livro de estréia:

“Creio em ‘Malagueta, Perus e Bacanaço’. Como em tudo o que

escrevi, acredito nos meus vagabundos. Mas desta vez é diferente o sentir.

(...) Tenho a certeza humilde, quieta e grandiosa que estou diante de uma

554

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 01/07/65.

Page 266: João Antônio: Uma Biografia Literária

266

obra de arte e minhas mãos, meu coração, meu todo pulsar de vida carregam

uma enorme responsabilidade”.555

“Bato-me na faina dura de explicar o que se passa nas almas de três

sujeitos, que você conhece pelos nomes: Malagueta, Perus e Bacanaço. Os

safados andam irrequietos na fala, nos gostos chinfrins e teimam sempre em

esconder alguma coisa. Vivem fingindo e domá-los é um custo. O conto

anda pela décima-terceira página datilografada em papel ofício, não sei se

trinta páginas darão para abrigar aquele mundo. A fatura é difícil, para o

malandro uma palavra tem trezentos significados, porque como nas suas

outras coisas a fala prolifera negaças, manhas num intrincado rebolado. [ele

então anexa um longo trecho do conto] Este trecho, como é natural, não é

definitivo. O conto está ainda em estado de ebulição. Imporei tratamento

mais rigoroso porque a forma atual não me agrada, ainda.”556

“Vou-lhe confessar que ‘Malagueta, Perus e Bacanaço’, cuja refeitura

está me consumindo é uma tentativa de encontrar uma linguagem paulistana

de determinado grupo. (...) E vislumbro, emocionado, que a linguagem

paulistana para os problemas de São Paulo levará uma vantagem sobre a

linguagem nordestina — problemas mais universais criam uma linguagem

mais universal.”557

A julgar por estes trechos, insinua-se a hipótese de que o abandono do

tom intimista dos primeiros contos, bem como o novo e mais elaborado

tratamento dado ao material autobiográfico, foram acompanhados por uma

mutação estilística, que nasce em “Meninão do Caixote”, conto híbrido em

tudo — por misturar reminiscências pessoais e trama imaginária de forma a

555

Idem, de 06/06/60. 556

Idem, de 24/03/60. 557

Idem, de 27/01/62. Esta carta é escrita já durante o processo de reescritura de “Malagueta, Perus e

Bacanaço”.

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267

que a segunda prevaleça; por combinar recursos estilísticos comuns nas

primeiras histórias a outros da segunda fase, que ficariam mais evidentes a

partir de “Malagueta, Perus e Bacanaço”.

Da autobiografia descontínua à fantasia em liberdade

Não é muito difícil demonstrar que, a altura do oitavo conto do livro

Malagueta, Perus e Bacanaço, “Meninão do Caixote”, configura-se uma

mudança no estilo de João Antônio, que essa mudança avança ainda mais no

conto título, e que ela atinge seu ápice na novela escrita logo no ano seguinte

à publicação do livro, “Paulinho Perna Torta”. Estes novos conceitos

estilísticos jamais seriam abandonados, receberiam apenas o influxo das

técnicas jornalísticas, o que será tema do Cap. 4 deste trabalho.

Uma primeira mutação constitutiva dos contos que pode ser citada é a

mudança de peso e, em alguns casos, de função, dos cortes de continuidade no

interior das narrativas. Nas histórias iniciais, marcados por simples vinhetas

gráficas, mas sem títulos, estes cortes de continuidade têm mais de uma

função. Tomemos alguns exemplos ao acaso.

“Busca”, o conto de aberturas do livro, é dividido em três partes. Na

primeira, que se passa no presente da narrativa, há uma apresentação do

narrador, de seu mundo familiar e profissional. Após o primeiro corte, há um

flashback, desenrola-se seu drama no mundo do boxe, o abandono forçado a

tão sonhada carreira de lutador. Em seguida, após o segundo corte, uma cena

na casa de um colega de trabalho dá seqüência ao momento presente.

“Afinação da Arte de Chutar Tampinhas”, um conto praticamente sem

trama, possui três cortes: na primeira parte, o narrador, que fala no presente,

Page 268: João Antônio: Uma Biografia Literária

268

recorda o tempo de juventude, futebol e samba; na segunda, também no

presente, ele recorda os tempos de quartel; na terceira, apresenta sua

“mania”, que dá título ao conto, e elabora sobre as diferenças entre as

tampinhas e descreve as várias formas de chutá-las; por fim, na última

unidade narrativa, fala do novo emprego que odeia e reclama da mãe.

“Frio”, por sua vez, tem quatro cortes de continuidade. No começo, o

protagonista é apresentado, a ação central do conto já está ocorrendo e é

mencionada uma figura que permanece misteriosa, Paraná; depois do

primeiro corte, vai-se para um passado recentíssimo, no qual a ação já em

andamento na primeira parte é explicada; depois do segundo corte, a ação é

suspensa para uma visita a um passado menos recente, que explica quem é

Paraná e como ele e o protagonista se conheceram e que tipo de relação têm;

depois do terceiro corte, de volta ao presente, outras pessoas das relações do

protagonista e de seu “protetor” são descritas; por fim, após o quarto corte

de continuidade, a ação é retomada até o final.

“Visita”, como último exemplo, tem início no presente, mas com o

narrador relembrando um passado recente, quando era jogador de sinuca

com “o formidável Carlinhos”; após o primeiro corte, é apresentado o meio

familiar e profissional do narrador, e neste ponto começa a ação do conto,

isto é, a ida do narrador à casa do antigo companheiro de jogo; após o

segundo corte, o conto volta a mencionar o ambiente familiar do narrador e,

mais especificamente, seus problemas com a irmã e suas amigas; depois do

terceiro corte a ação principal é retomada e o narrador chega à casa do

amigo, que saiu, conforme a irmã dele informa ao visitante. O narrador então

perambula pelas ruas, entra num bilhar e por fim volta para casa, maldizendo

a vida.

Page 269: João Antônio: Uma Biografia Literária

269

Como se vê, na maior parte dos primeiros contos, os cortes de

continuidade têm duas funções principais. Uma delas é marcar as

alternâncias cronológicas. “Fujie” e “Natal na Cafua” são os dois únicos

contos de fluxo temporal linear, enquanto nos demais há sempre flashbacks

para o passado remoto ou recente do narrador e/ou protagonista.

A segunda função primordial dessas “quebras” é criar intervalos na

ação principal, que permitam informar ao leitor detalhes sobre a vida

cotidiana do narrador ou protagonista, e assim criar sub-tramas, quase nunca

desenvolvidas, mas que explicam ou pelo menos enriquecem a introspecção

do narrador ou a subjetividade do protagonista.

Nesses dois contos de fluxo temporal linear, no entanto, os cortes de

continuidade continuam narrando a mesma trama e num fluxo linear, mas

servem para “comer”, “pular”, partes da ação. Ou seja, uma terceira função

dos cortes é acelerar o ritmo da história narrada.

Os trechos separados por esses cortes de continuidade são de tamanho

extremamente variável, podendo chegar a algumas páginas ou a dois

parágrafos apenas. E os contos, por sua vez, variam de cinco a onze páginas,

aproximadamente. Mas então chega-se a “Meninão do Caixote”, de dezoito

páginas, o conto mais longo além do conto-título, que chega a ter a extensão

de uma novela, 58 páginas. Ao encompridar sua primeira narrativa, João

Antônio parece ter sentido necessidade de intercalá-la com nada menos que

dez cortes de continuidade, como que para demarcar, ratificando, seu controle

sobre a matéria ficional. Mas, curiosamente, apenas do primeiro para o

segundo segmento há uma inversão cronológica. O conto começa pela

conclusão: “Fui o fim de Vitorino”.558

Mas da segunda até a décima-primeira

parte a trama ganha linearidade, e os cortes são apenas de continuidade,

558

Antônio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço, Civilização Brasileira, RJ, 1963, p. 81.

Page 270: João Antônio: Uma Biografia Literária

270

servem, como em “Fujie” e “Natal na Cafua”, para acelerar a narrativa,

fazendo-a cobrir o espaço de meses, talvez anos, e ainda fazê-la caber no

tamanho de um conto.

Pela primeira vez o escritor parece, portanto, querer transbordar o

formato que elegera para sua produção literária, a chamada “narrativa ficional

curta”, ou seja, o conto. Em paralelo ao processo de descolamento da

autobiografia que se verifica nas duas narrativas finais e nos textos que vieram

imediatamente após o livro de estréia, a fabulação de João Antônio parece

ganhar força, crescer, tomar conta, e se espraiar. Mas, em “Meninão do

Caixote”, algo ainda o contém, o impede de se demorar nos recortes das

margens de seu fluxo narrativo, ampliando o tempo e o espaço de sua

literatura. Daí a existência de tantos cortes. Mas, se quisesse, e ele chegou

mesmo a pensar nisso, João Antônio poderia tranqüilamente ampliar este

conto e transformá-lo em novela, ou até mesmo em romance. Mais do que nos

anteriores, “Meninão do Caixote” tem uma galeria de personagens ampla e

facilmente explorável, e uma trama que parece não caber em menos de vinte

páginas.

Desse ponto de vista, pode-se dizer que “Meninão do Caixote” é um

conto híbrido; ainda tem a fragmentação comum nas primeiras histórias, mas

seu vetor cronológico é mais poderoso que a maioria. E há uma longa história

a ser contada. Diminui drasticamente o tom confessional autobiográfico dos

demais contos, apesar da narrativa em primeira pessoa. Há um sentido

ficcional mais aventuresco que nos demais. O tempo não é o da introspecção

melancólica, no quartel, nos trens de subúrbio, nos botequins e bilhares, nem o

das rusgas familiares cotidianas, repetitivas e também fonte de melancolia,

pois inúteis e imutáveis; o tempo é o acelerado da trama que, com a ajuda dos

cortes de continuidade, comprime muito matéria em pouco espaço.

Page 271: João Antônio: Uma Biografia Literária

271

“Malagueta, Perus e Bacanaço” dá sequência a ambos os processos de

mutação na obra do escritor: decanta-se a dose de autobiografia, que passa a

fazer uma base disseminada, menos perceptível, e batem mais forte as asas do

vôo ficional; a matéria a ser tratada também parece exigir mais espaço, talvez

libertada do movimento ambivalente de mostrar e esconder tão típico dos

textos autobiográficos. Ela agora pode se mostrar livremente, sem ameaçar a

privacidade do escritor.

Sintoma disto é que apesar, do tamanho descomunal em relação aos

demais contos, esta novela tem apenas cinco sub-divisões. Mas, aqui, essas

sub-divisões, cada com o nome de um bairro, deixam de ser cortes, pois o

fluxo da trama é linear do começo ao fim. Não há sequer acelerações e

passagens de tempo entre um corte e outro. E as eventuais suspensões da

trama, quando ocorrem — como por exemplo na passagem em que o narrador

em terceira pessoa expõe ao leitor os planos que Malagueta faz de

comemorações com a prostituta com quem vive, ou na passagem em que é

descrita a caftinagem de Bacanaço com Marli, ou ainda nos trechos em que

Perus sonha com uma vida melhor em outros bairros da cidade —, não

guardam qualquer relação com as sub-divisões explicitadas pelos nomes dos

bairros por onde os três malandros vagueiam à procura de jogo. Lapa, Água

Branca, Barra Funda, Cidade, Pinheiros e Lapa novamente, marcam o fluxo da

trama, jamais seus desvios cronológicos ou suas suspensões, simplesmente

porque não os há. Os cortes, além de perderem presença, tornam-se

subordinados à ação principal, e não mais interferem em seu fluxo.

O mesmo ocorre em “Paulinho Perna Torta”. Em primeiro lugar, por

mais que a vivência de João Antônio na Boca do Lixo o tenha ajudado a

compor o cenário do conto, e a caracterizar alguns de seus personagens, a

história narrada — de um engraxate que à medida que vai crescendo entra e se

Page 272: João Antônio: Uma Biografia Literária

272

destaca no mundo do crime (caftinagem, extorsão, roubo, tráfico, assassinatos

etc) — está evidentemente muito longe da autobiografia do escritor. A

adolescência do personagem passada em cima de uma bicicleta e seu caso com

a prostituta Ivete, que têm certamente fundo autobiográfico, como já se viu nos

Caps. 1 e 2 respectivamente, estão contudo longe de desmentir esse viés

ficcional predominante.

Além disso, com quase 45 páginas,559

o conto, ou novela, tem apenas três

cortes. E pelos nomes desses cortes já se deduz qual função exercem e o nível

de interferência que têm na narrativa: “Moleque de Rua”, “Zona” e “De 1953

para cá”. Como se pode ver, assim como em “Malagueta, Perus e Bacanaço”, a

trama principal não admite mais que os cortes a interrompam, invertam seu

fluxo, ou queimem suas etapas. Eles fazem aparições na verdade dispensáveis,

e submergem no fluxo da narrativa.560

559

Antônio, João. “Paulinho Perna Torta”, in Leão de Chácara, Civilização Brasileira, RJ, 1975. Este

número de páginas vale para esta edição, sem contar as epígrafes do conto. Nunca se deve esquecer que,

embora publicada em livros do autor apenas em 1975, a novela “Paulinho Perna Torta” foi escrita em 1964,

apenas um ano depois de Malagueta, Perus e Bacanaço, numa antologia de contistas editada pela mesma

Civilização Brasileira. 560

Prestando atenção nesse aspecto dos livros futuros de João Antônio, percebe-se que ele nunca perderia a

mania de pontuar seus contos com subdivisões. E o futuro faria com que a veia autobiográfica voltasse a se

fortalecer, e se tornasse uma das marcas mais recorrentes do universo literário do autor. Mas, nesse

momento, as transformações aqui arroladas de fato estão, temporariamente, minimizando tanto a

característica de estruturação dos contos à base de cortes quanto o apelo da transcrição direta da

experiência pessoal. Uma enorme responsabilidade nesse retorno futuro de ambos os traços de seu estilo

inicial — seria possível dizer retrocesso? — deve ser creditada ao jornalismo. “Leão-de-chácara”, por

exemplo, nasceu como uma reportagem para a revista Realidade, como se verá no Cap. 4, e, nem mesmo

numa revista tão moderna, no conteúdo e na forma, absorveria matéria tão longa sem a inclusão de alguns

“chapéus”, como se diz no jargão jornalístico, isto é, pequenas subdivisões que indicam minimamente o

rumo do texto, e dão um tempo para o leitor respirar.

Page 273: João Antônio: Uma Biografia Literária

273

Um estilo bem comportado

Essa mudança na estrutura dos contos de João Antônio nos preparam

para outro tipo de mudança. Seu fraseado propriamente dito caminha de um

texto bastante contido, depurado, bem-comportado e escorado em balizas

temporais, temáticas etc, para uma linha de trabalho onde a voz narrativa é,

em suas próprias palavras “escarrapachada”561

, na qual as histórias são mais

longas, o fluxo é mais direto e menos interrompido, a fabulação decola da

experiência pessoal, o tom informal do vocabulário é acentuado e

enriquecido por uma liberdade bem maior, e uma nova riqueza semântica é

incorporada. Um estilo, enfim, com menos pausas reflexivas, mais embalado

pelo ritmo da oralidade.

Pode-se ver que, entre 1960 e 1964, muda sua maneira de combinar as

palavras numa sentença, as sentenças num parágrafo, e sua gama vocabular.

No Cap. 2 viram-se as motivações conceituais que provocaram tais

mudanças. Repetindo: “Tenho feito sondagens e pesquisas, que talvez me

levem ao entendimento do ‘porquê’ e ‘como’ não possuímos ainda uma

literatura paulistana tão definida quanto a nordestina. E eu hei de descobrir o

‘porquê’! Alcancei algumas conclusões parciais e continuáveis — a ausência

de uma linguagem paulistana, especialmente, e o desconhecimento por parte

dos escritores do homem paulistano (...) Acredito, até agora, que se eu partir

de um conhecimento verdadeiro do homem que vou trabalhar, das suas

formas de comportamento aparente e inaparente, encontrarei a sua

linguagem, literariamente. E maliciosamente evitando cacoetes e

idiossincrasias (...) estarei próximo de tal linguagem”.562

561

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 26/05/60. 562

Idem, de 27/01/62.

Page 274: João Antônio: Uma Biografia Literária

274

Mas como as transformações se manifestam de fato? Um bom

começo é analisar trechos de alguns dos contos do livro de estréia.

Tome-se, ao acaso, o início de “Busca”:

“— Vicente, olha a galinha na rua!

Abri o portão, a galinha para dentro. Mamãe tinha o avental molhado

do tanque. Um balde pesava no braço carnudo.

— Deixa qu’eu levo.

Derramei, fiquei olhando a água no cimento. Aquilo estava era

precisando duma escova forte. Começo de limo nas paredes. Sujeira.

Quando voltasse daria um jeito no tanque. As manchas verdes sumiriam.

— Vai sair já? Espera o sol descer um pouco.

Que sol, que nada… Queria sair. Um domingo tão chato! Depois do

almoço as coisas ficam paradas, sem graça. Mamãe não precisava lavar

roupa aos domingos. Eu lhe digo. Bobagem. Ela nem responde, os olhos no

chão. Bota um sorriso na boca, agradecendo, como se eu estivesse

elogiando.

Andando. Um ar quente me batendo na cara. Daniel me havia

convidado para futebol na televisão, havia também Lídia… Por que diabo

essa menina cismou comigo? Vive de olhadelas, risinho, convite para festa

de casamento. Pequenina, jeitosa. Mamãe e ela se dão muito. Lá com suas

costuras e arrumações caseiras. Eu não quero é nada”.563

A primeira observação que ocorre é o tom direto e econômico das

frases, que chegam inclusive a eliminar certas partículas de conexão. Como

por exemplo na frase “Abri o portão, botei a galinha para dentro”, na qual a

vírgula substitui o “e” que poderia perfeitamente dar uma seqüência menos

pausada à ação. O mesmo acontece em “Derramei, fiquei olhando a água no

563

Antônio, João. “Busca”, in Malagueta, Perus e Bacanaço, Civilização Brasileira, RJ, 1963, pp. 11-12.

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275

cimento”. Ou em “Pequenina, jeitosa”, frase que, além do “e” que conectaria

os adjetivos, poderia muito bem começar com um “Ela era”, ou “Bem que

ela era”. Também na frase “Daniel me havia convidado para futebol na

televisão (…), caberia um “para assitir ao”, ou “para um futebol na

televisão”. Mas tudo é sempre feito a favor da máxima economia. E não

apenas na eliminação de conectivos está presente a contenção do estilo.

Veja-se a frase: “Mamãe não precisava lavar roupa aos domingos. Eu lhe

digo. Bobagem”. Pensando bem, uma mesma frase está decupada em três,

cuja ordem é invertida para que dê sentido. A frase teria uma ordem muito

mais direta se fosse: “Eu digo a mamãe que ela não precisava lavar roupas

aos domingos, mas é bobagem, e ela nem responde”. Mesmo a frase “Ela

nem responde, os olhos no chão”, na verdade parece omitir algo, “com os

olhos no chão”, ou “pondo os olhos no chão”, por exemplo.

O conto seguinte, “Afinação da Arte de Chutar Tampinhas”, começa

assim:

“Hoje meio barrigudo.

Mas já fui moleque muito bom centro-médio. Pelo menos Biluca

assegurava que eu era. E nunca peguei cerca nos quatro anos de U.M.P.A.

— queria dizer: União dos Moços de Presidente Altino. A voz de Biluca

mandava, porque era técnico e dono das camisas. Se era técnico de verdade,

não sei. Sei que as camisas eram suas, e sem elas não havia jogo. Mas a

família se mudou, o ginásio chegou e a presuncão de bom centro-médio foi-

se embora.

Na Mooca, agora, eu via os moleques do Caiovás F. C. Papai vivia me

apertando na escola. Era o único jeito, porque não estudaria de outro. Eu via

os moleques e não podia jogar.

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276

À boca da noite os grilos e os sapos já cantavam nas poças do campo

da U.M.P.A. Depois da janta, cada um vinha do seu lado e a gente se juntava

na sede. Então folgados, fumávamos à vontade e contávamos coisas. Havia

certo ar de homem na gente enquanto fumávamos. Sérios nas calças curtas, o

dedo batendo no cigarro, a cinza caindo no chão. Contávamos coisas,

vantagens”.564

Neste início, embora algumas passagens incluam os elementos de

conexão entre as partes da frase — “fumávamos à vontade e contávamos

coisas”, “A voz de Biluca mandava, porque era técnico e dono das camisas”

—, há o caso de “Mas já fui moleque muito bom centro-médio.”, em que

uma vírgula, ou um “e”, cairia bem para dar uma fluência mais natural à

frase. E em pelo menos uma outra passagem, bastante eloqüente, este trecho

demonstra a mesma sintomática tendência à economia. Veja-se, por

exemplo, a passagem “nos quatro anos de U.M.P.A. — queria dizer: União

dos Moços de Presidente Altino”. O travessão elimina o “que”, capaz de

emendar uma parte da frase na outra.

Porém, mesmo quando as partes que compõem as frases se juntam

com a ajuda dos conectivos usuais, há uma segunda manifestação da alegada

economia de seu estilo inicial. É que a maioria dos raciocínios do narrador

tem um andamento comum, interrompido, ou pelo menos sincopado, que se

reflete nas frases e poderia ser esquematizado numa seqüência de 1, 2 e 3

partes. Por exemplo:

“Hoje meio barrigudo. (1)/ Mas já fui moleque (2) muito bom centro-

médio(3)”. Ou: “A voz de Biluca mandava (1), porque era técnico (2) e dono

das camisetas (3). Ou: “Na Mooca (1), agora (2), eu via os moleques do

Caiovás F. C. (3)”. Ou: “À boca da noite (1) os grilos e os sapos já cantavam

564

“Afinação da Arte de Chutar Tampinhas”, idem, pp.17-18.

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277

(2) nas poças do campo da U.M.P.A. (3) Depois da janta (1), cada um vinha

do seu lado (2) e a gente se juntava na sede (3)”. Ou: “Então folgados (1),

fumávamos à vontade (2) e contávamos coisas (3)”.

O mesmo vale para o início de “Busca”: “Um domingo tão chato! (1)

Depois do almoço as coisas ficam paradas (2), sem graça (3). Mamãe não

precisava lavar roupa aos domingos (1). Eu lhe digo (2). Bobagem (3).”

“Bota um sorriso na boca (1), agradecendo (2), como se eu estivesse

elogiando (3)”.

Há um padrão rítmico muito presente, com certeza.

Entre as demais características que sobressaem nesses contos iniciais

de João Antônio, estão o vocabulário simples, com uma ou outra gíria,

marca de oralidade ou expressão idiomática, mas cujo significado jamais

fica obscuro ao leitor e, sobretudo, o fato das frases, marcadas pelas elipses

acima exemplificadas ou não, serem muito diretas. Muitas vezes, após a

variação 1, 2, 3, segue-se uma frase direta, curta, seca.

E em raras oportunidades as estruturas variam grandemente do

modelo acima citado, como acontece em “Golpe, dor, choque, sangue,

escuridão, zoeira, lona.”565

Há uma possível complementaridade entre o estilo sincopado e os

cortes de continuidade que estruturam os contos iniciais. Talvez ambos

fossem instrumentos de controle absoluto sobre o texto, uma tendência

compreensível no escritor iniciante, de origem humilde, que se candidatava a

um campo de atividade muitas vezes idealizado e tido como social e

culturalmente “elevado”, o da literatura. Como se, por defesa inconsciente,

ou estratégia premeditada de inserção, nada pudesse fugir a seu controle.

João Antônio, a julgar por esses primeiros contos, era escritor de estilo

565

Idem, ibidem, p. 13.

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278

bastante preciso, calculado, depurado. Assim como a sua inserção no meio

literário foi calculada, e assim como a recepção de seu primeiro livro foi

laboriosamente construída, por meio de seus contatos e do envio de seus

originais a críticos e escritores, poder-se-ia dizer que também seu estilo era

construído com o máximo de racionalidade e critério de economia. Nada

sobrava em suas frases. Muitos significados eram subentendidos. Nada

sobrava em seus parágrafos.

Daí o engano recorrente da crítica, quando diz que ele foi um “escritor

que já nasceu pronto”. De fato, há um acabamento em seus contos iniciais, e

uma força dramática, que parecem de um escritor experiente à primeira

vista. Mas de jeito nenhum sua obra continuou uniforme a partir do primeiro

livro, sem que novos caminhos estilísticos se abrissem. Quem de João

Antônio conhece apenas Malagueta, Perus e Bacanaço, não conhece o

escritor maduro.

Ao se lembrar que o lançamento do livro fez João Antônio ser

comparado a Antônio de Alcântara Machado, por exemplo, pode-se dizer

que, de fato, ambos tinham em comum a já sabida atenção para os

paulistanos, e para a cidade em si. Pode-se dizer que João Antônio, por ser

filho de imigrantes, também começa com um ouvido para a fala

característica de outra nacionalidade, no caso a dos portugueses — como foi

demonstrado no conto “O Prisioneiro”, no Cap.1, e como poderia indicar,

como resquício quase único no livro, a frase “Deixa qu’eu levo”, do também

já analisado início de “Busca”.

Além disso, há, de fato, semelhanças estilísticas. Veja-se, por

exemplo, um trecho do famoso conto “Gaetaninho”, de Alcântara Machado:

“— Chi, Gaetaninho, como é bom!

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279

Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. O Ford quase o

derrubou e ele não viu o Ford. O carroceiro disse um palavrão e ele não

ouviu o palavrão.

— Eh! Gaetaninho! Vem pra dentro.

Grito materno sim: até filho surdo escuta. Virou o rosto tão feio de

sardento, viu a mãe e viu o chinelo.

Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho.

Estudando o terreno. Diante da mãe e do chinelo, parou. Balançou o corpo.

Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar a direita. Mas deu meia volta

instantânea e varou pela esquerda porta a dentro.

Eta salame de mestre!”.566

Também é um texto composto por frases curtas, de vocabulário nada

rebuscado, que reaproveita certas expressões populares (“grito de mãe até

filho surdo escuta”), que ao discurso indireto combina o direto

fragmentando-o, encaixando-o em frases soltas na seqüência dos parágrafos

narrativos, dando-se ao direito de certos traços oralizantes, como o “pra” no

terceiro parágrafo. E que tira partido das repetições intencionais de palavras,

como aqui ocorre com ‘Ford”, “palavrão” e com o verbo “ver”.

Tome-se uma passagem de “Busca”, e logo se perceberá a semelhança

que levou os críticos da época a aproximarem os dois escritores:

“— Desta vez ele vai!

Girei para a esquerda, soltei o direto. Caprichava tanto, tanta certeza

eu tinha. Aquele mulato não agüentaria mais um round.

Um sujeito lá em baixo:

— Desta vez ele vai!

566

Machado, Antônio de Alcântara. Brás, Bexiga e Barra Funda, IMESP, SP, 1994, pp.23-24.

Page 280: João Antônio: Uma Biografia Literária

280

O mulato defendeu, deu uma gingada, ganhou a brecha. Largou o

braço. Que técnica! Quem é que poderia esperar aquilo?”.567

Da mesma forma com Mário de Andrade, outro fundador da linhagem

a qual João Antônio é assolado pela crítica, à época de sua estréia em livro, a

vizinhança estilística é razoável. Veja-se, por exemplo.

“O soco seguiu na trajetória, foi martelar na testa do Tino, peim!

Seco, seco. Tino com um jeito rápido, histérico, não sei como, virou um

bocado entre as pernas de Aldo. Conseguiu com as mãos livres agarrar o

pulso do outro. Encolheu-se todinho em bola e mordeu onde pôde, que

dentada! Aldo puxou a mão desesperado, pleque! Sofreu com o estralo do

dedo que não foi vida. Mas por ver sangue é que cegou.

— Morde agora, filho da puta!

Na garganta. Apertou. Dona Maria entrava”.568

Independente da semelhança ocasional entre o trecho de “Busca” e o

de “Caim, Caim e o Resto”, algumas aproximações formais são possíveis.

As repetições intencionais, a evocação da oralidade, em onomatopéias aqui e

em frases do tipo “não sei como”, ou “que dentada!”. Até a sintaxe

sincopada aparece, quase telegráfica, que parte as frases, “Na garganta.

Apertou. Dona Maria entrava”.

Como se vê, do ponto de vista da tradição, embora décadas o

separassem dos mestres modernistas, seu estilo era realmente bem

comportado, seguindo uma estética pré-estabelecida, palatável aos críticos

mais velhos com que se correspondia.

567

“Busca”, in Malagueta, Perus e Bacanaço, Civilização Brasileira, p. 13. 568

Andrade, Mário de. “Caim, Caim e o Resto”, in Os Contos de Belazarte, Livraria Martins

Editora/Instituto Nacional do Livro, SP, 1972, pp. 56-57.

Page 281: João Antônio: Uma Biografia Literária

281

Um Antônio de Alcântara Machado Deprimido

Porém, não obstante as conexões que possamos descobrir, no âmbito

formal, unindo essa trinca de escritores, a índole do livro de João Antônio, é

preciso que se repita, não é a mesma da dos outros dois livros. Talvez pela

carga confessional/autobiográfica, e pela experiência de uma vida difícil,

talvez pelo lirismo herdado de Noel e da Velha Guarda do samba, seus

contos não têm a leveza dos de Ancântara Machado, por exemplo em Brás,

Bexiga e Barra Funda. Ele próprio dizia que dava a seus personagens um

tratamento “de mergulho”, significando que buscava maior profundidade na

observação psicológica, e realmente o que falta em frescor e alegria retorna

sob a forma de densidade dramática. Não se vê, em nenhum dos contos de

Brás, Bexiga e Barra Funda, qualquer tentativa de realmente recriar os

eventuais padecimentos de alma dos seus personagens. Quando muito, eles

são referidos pelo narrador, mas a relação do leitor com estes padecimentos

é distanciada pela própria narrativa.

O mesmo se poderia dizer, por exemplo, do livro Os contos de

Belazarte, de Mário de Andrade, aqui tomado como termo de comparação

por ser, entre seus livros de prosa, aquele umbilicalmente preso à cidade de

São Paulo. Os dois escritores coincidem na atenção à cidade, à fatia

proletária de sua sociedade, a seus habitantes antigos e aos recém-chegados

de outros cantos do mundo, bem como no ouvido para as corruptelas

estrangeiradas do português, ou mesmo para a mistura de línguas num

mesmo universo de comunicação. Porém, ainda que em menor dose em

relação a Alcântara Machado, pois mais malicioso no conteúdo de suas

histórias, num certo humor negro nos desfechos que compunha, nos quais

muitos personagens terminam infelizes, o fato é que, em “Belazarte”, a

Page 282: João Antônio: Uma Biografia Literária

282

ausência da nota autobiográfica, a consequente variação muito maior de

enquadramento social dos protagonistas, uma certa ingenuidade intencional

nos diálogos, dá ao livro do mestre modernista uma leveza que o de João

Antônio não tem.

A índole do livro de João Antônio é mais pesada, mais carregada e

melancólica. Em vários contos isso pode ser demonstrado, eis alguns

trechos:

“Tenho sofrido muito nestes meses de quartel, ouvi muito

xingamento, muito deboche e muita ofensa. E tenho me desdobrado tentando

acertar, bestamente. Perco aulas no colégio, me prejudico. Tenho aturado,

agüentado, perdi injustamente meu curso para cabo, sou o melhor motorista

da companhia e dei com o lombo na cadeia duas vezes”.569

Ou: “Ivo andando, andando. Crescia o vazio na barriga, impossível

estar quieto, a banana não fora bastante, não havia o sanduíche. Passou pelo

xadrez, pela casa da guarda, foi para a garagem velha. Agora só havia o

esqueleto da construção. Restos, restos. O portão escancarado, entrou. Não

havia onde se sentar, sentou-se no chão. Puxou o capacete, o pulso limpou a

testa, olhou para o bico do coturno”.570

Ou, por fim: “Bato a cinza do cigarro. A vila é bem mesquinha,

rodeada de fábricas, dezenas de bares, três igrejas, um grupo escolar. O

casario feio abriga mal gente feia, encardida, descorada. Nos meus cinco

meses de vagabundagem eu me acordava tarde, tarde, e podia ver melhor

aquilo. Ia aos bares. As ruas com seus monturos, cães e esgotos, muitas

vezes me davam crianças que saíam do grupo escolar. Não me agradavam

aqueles pés no chão movendo corpinhos magros. Qualquer ignorante podia

569

“Natal na Cafua”, in Malagueta, Perus e Bacanaço, Civilização Brasileira, p. 55. 570

“Retalhos de Fome Numa Tarde de G.C.”, in Malagueta, Perus e Bacanaço, Civilização Brasileira, p.

39.

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283

perceber que aquilo não estava certo, nem era vida que se desse aos

meninos. Eu saía do botequim, chateado e fatalmente enveredava mal.

Encabulação, cachaça, erradas, desnorteava-me no jogo. Um sentimento

confuso, uma necessidade enorme de me impingir que não era culpado de

nada”.571

Em Contos de Belazarte, o tom é outro, e mesmo nos momentos de

sofrimento dos personagens a narrativa é atravessada por um humor fino,

gracioso, que dá uma leveza bastante diferente da força confessional e/ou

dos dramas de João Antônio. Um exemplo:

“Nízia escutando. As palavras caíam dentro dela talqualmente flor de

paina, roscando a alma devagar. Foi-se embora mais cedo? Não fazia mal!

Nem soube que eram nove horas, que eram dez e muito mais, ficou sozinha

no trabalho, sem saber que trabalhava, acabando carreira numa conta,

acabando sapatinho, acabando outro sapatinho, escutando. Não tinha nem

bulha na noite fora. Os homens estavam dormindo em São Paulo. Nem

poeria nem grilo nem vento, que nada! Um silêncio de matar gesto no braço.

Nízia tricotando sem saber. A luz do lampião mariposava em volta da cabeça

dela e, no calor seco da sala, as palavras de seu Lemos se pronunciavam

ainda, sonorosas de verdade, como afago doce de companheiro. Nízia sofreu

que você não imagina. Sofreu aquele sapatinho de lã (…)”.572

Como se vê, a dor da personagem não é inteiramente compartilhada

pelo narrador. Os “sapatinhos” que costura, no diminutivo, por exemplo, o

verbo “mariposava”, a expressão de comadre “você não imagina” etc,

produzem um efeito cômico em sua hora de dor ou, no mínimo, atenuam a

intensidade deste sofrimento.

571

“Visita”, in Malagueta, Perus e Bacanaço, Civilização Brasileira, p. 77. 572

Andrade, Mário de. “Nízia, Sua Criada”, in Contos de Belazarte, Livraria Martins/Instituto Nacional do

Livro, SP, 1972.

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284

Mas João Antônio já provara ser um homem de grande tino político,

pela forma com que construiu uma rede de contatos literários, embora ainda

fosse inédito e estivesse isolado em Presidente Altino, e não recusaria

filiação tão nobre de forma drástica. Ele aponta diferenças entre o seu “tom”

e o de Alcântara Machado, mas recusá-la inteiramente seria jogar fora um

gancho que só o beneficiava do ponto de vista da recepcão dos contos e do

livro, além de propiciar-lhe algumas oportunidades de trabalho.573

Quanto à

aproximação com Mário, que se saiba, jamais deixou registrado qualquer

comentário. A julgar pelos dias de hoje, e pelo papel de Mário em nosso

universo intelectual brasileiro, recusá-la seria desperdiçar muito prestígio

num arroubo iconoclasta. E, se aceitá-la publicamente também não era muito

autêntico, o melhor seria calar.

Mas, então, se se deseja levantar possíveis fontes para os traços de

estilo, mas sobretudo de índole, presentes no livro de estréia de João

Antônio, onde se deve procurar a origem dessa veia melancólica, desse tom

seco e confessional ao mesmo tempo, esse espírito pouco esperançoso e

desiludido?

Quatro respostas são possíveis, e vale dizer que não são, de forma

alguma, excludentes. Uma primeira fonte de densidade psicológica pode ter

sido, como se viu no Cap. 2, o cinema de arte. Antonioni, Visconti, a

nouvelle vague, o neo-realismo italiano, a turma da Cinemateca (Maurice

Capovilla, Jean-Claude Bernadet, a própria Ilka Brunhilde Laurito etc)

573

Cartas a Ilka Brunhilde Laurito, de 25/11/61, 27/01/62 (nessas ele comenta de um artigo sobre A.A.

Machado que lhe fora encomendado e que ele publicou) e 30/07/64 (“Vai daí, continuo sendo muito

solicitado. Muita gente quer trabalhos literários meus. O pessoal da Vera Cruz já me procurou. Querem

filmar ‘Meninão do Caixote”, que seria incluído num filme de três histórias. Uma de Mário de Andrade,

outra de Antônio de Alcântara Machado e outra minha. Antunes Filho, diretor teatral, também me procura

querendo que lhe arranje assunto para um filme ‘diferente de tudo o que já se fez’ para o público das

europas. O Conselho Estadual de Cultura pede um conto meu, para ser incluído em uma antologia do conto

paulista.”).

Page 285: João Antônio: Uma Biografia Literária

285

deram-lhe um gosto por novos caminhos para os sentimentos profundos da

alma humana.

Outra fonte, certamente, foi a poesia. Inúmeros poetas vêm citados em

suas cartas. Talvez a leitura deles tenha inoculado no jovem escritor a

capacidade, e o desejo, de transmitir seu sofrimento de maneira menos

censurada pela obrigação de virilidade, complementar à “literatura de

homem”, sofrimentos estes muitas vezes mais intensos e reais que os de

vários dos prosadores de sua eleição particular. Drummond, sobretudo,

parece haver marcado sua sensibilidade, o que o fazia citar o “Poema de sete

faces” de memória, ou crer sinceramente que “nasceu torto”, ou, num

momento de tristeza, reproduzir os versos “Sozinho no escuro/ qual bicho do

mato,/ sem teogonia,/ sem parede branca a que se possa encostar,/ sem

cavalo que fuja a galope”, e dizer deles, “Ilka, como é verdade!”. 574

Embora ele diga que não entende de poesia575

, ela o afeta bastante,

sobretudo nos momentos de melancolia, abatido pelo sentimento de

desajuste: “Sinto do fundo do coração que não sou tão mal. E que aos justos,

à maneira de Jacques Tati, pertence o mundo, por mais desajustados que

estejam. / Também tornei a Fernando Pessoa. Como a poesia, Ilka, me faz

bem! E aqueles sofrimentos, violentíssimos gritos íntimos, não me deixaram

nem triste e nem alegre. Apenas tranqüilidade, como se houvesse passado

por uma purgação, mas a purgação já houvesse passado. É muito poeta

Fernando Pessoa. E como é bom ler quem é autêntico!”.576

Algo semelhante

ele diz, por exemplo, de Baudelaire, referindo-se ao poema “Tristeza da

Lua”, que somente o título já seria suficiente para evocar um estado de alma

lírico e melancólico: “A meu ver e sentir, só um gênio, um poeta, poderia

574

Cartas a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/08/60; idem, de 31/10/61; idem, de 01/09/61. 575

Idem, de 01/07/65. 576

Idem, de 26/05/60.

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286

dar esta jóia à humanidade./ Dessas dádivas que só um poeta ‘humano e

bom’, cheio de coragem e de infinita ternura, seria capaz”.577

Coragem e

ternura, virilidade e sopro existencial, é desta química que se originam os

seus primeiros contos.

Outra fonte assumida de melancolia e desencanto é a música. E,

sobretudo, Noel Rosa. O antigo amor pela música, pelo choro [grifo meu],

pela tristeza simples e autêntica, de raiz, dos sambas das décadas anteriores,

pela glória humilde da Velha Guarda, não poderia deixar de ter tido, em João

Antônio, alguma influência marcante. Numa de suas cartas, por exemplo, ele

transcreve de cabeça o samba “Voltaste”, dizendo que “Ali, excele o grande

espírito do sambista, sua riqueza, impressionante personalidade, muita coisa

que dizer, muito jeito de contar. (…) Noel. É um bom bocado de

autenticidade. Tudo é marcado, dolorosamente”.578

E sua devoção por Noel é explicitada no próprio livro de estréia:

“Naquelas noites me surgia uma tristeza leve, uma ternura, um não sei quê,

como talvez dissesse Noel… Eu estava ali, em grupo, mas por dentro estava

era sozinho, me isolava de tudo. Era um sentimento novo que me pegava,

me embalava. Eu nunca disse a ninguém, que não me parecia coisa máscula,

dura, de homem. Não os costumes que a turma queria. Mas eu moleque

gostava, era como se uma pessoa muito boa estivesse comigo, me

acarinhando. As letras dos grandes sambas falavam de dores que eu apenas

imaginava, mas deixava-me embalar, sentia.

Aos pés da santa cruz

Você se ajoelhou,

E em nome de Jesus

577

Idem, de 12/10/62. 578

Idem, de 25/12/60.

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287

Um grande amor você jurou.

(…)

Por esse tempo, comecei a prestar atenção nas letras dos sambas, e vi,

sem entender, que o tamanho de Noel era outro, diferente, maior, tocante,

não sei. Havia uma tristeza, uma coisa que eu ouvia e não duvidava que

fosse verdade, que houvesse acontecido. O gosto aumentou, eu fui

entendendo as letras, apanhando as delicadezas do ritmo que me

envolvia”.579

Porém, em prosa literária propriamente dita, para explicar esta índole

profunda de seus primeiros contos, não há como escapar de Graciliano

Ramos. Um dos primeiros contos do escritor, “Índios”, hoje desaparecido, é

assumidamente escrito com o intuito de reproduzir o estilo de seu ídolo

literário.580

Um romance como Angústia, por exemplo, ambientado no meio

urbano, narrado em primeira pessoa, com toda a carga dramática que o

mestre alagoano sabia conferir a seus personagens, está repleto de passagens

que poderiam, também do ponto de vista estilístico, mas sobretudo

emocional, ter sido escritas por João Antônio. Não existe a leveza flutuante

de Mário ou Alcântara Machado, e o tom que predomina é bem outro, de

uma melancolia desesperançosa, quase ranzinza. Chega a ser incrível, em

todas as críticas que compuseram a recepção do livro, e citadas no Cap. 2,

que o nome de Graciliano não seja mais frequentemente lembrado que os

nomes dos dois pioneiros modernistas, cujas semelhanças literárias com

João Antônio são tão mais superficiais. Dois exemplos rápidos, extraídos de

579

“Afinação da Arte de Chutar Tampinhas”, in Malagueta, Perus e Bacanaço, Civilização Brasileira, pp.

18-19. 580

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 23/09/59. Quando rejeita o conto, ele o faz não por rejeitar o modelo,

mas sim a impostura que havia cometido.

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288

Angústia, refletem a semelhança de índole entre Graciliano e os primeiros

contos de Malagueta, Perus e Bacanaço:

“Fui até o fim da linha de bonde e parei, como se me tivesse faltado a

corda de repente. Aquelas duas extremidades de trilhos roubaram-me os

movimentos e deram-me impressão desagradável. Esfreguei os olhos, senti-

me cansado. Até ali não havia experimentado nenhum cansaço. Teria andado

léguas se os trilhos avançassem para o interior, mover-me-ia regularmente

como um bonde. (…) Exatamente como se uma vontade estranha me

dirigisse, um sargento invisível que se descuidasse do exercício e fosse pelo

campo, embrutecido pela cadência (…)”.581

“Tornei a baixar a cabeça, desanimado, continuei a olhar os pés dos

raros transeuntes que passavam na rua. Ia e vinha.”582

Os exemplos já dados do livro de estréia de João Antônio são

suficientes para que a proximidade emocional com os trechos acima se

evidencie. A proverbial precisão narrativa de Graciliano, cujo estilo limpo,

direto, parece ter servido de modelo para o de João Antônio nos primeiros

contos. Bem como sua virilidade contida, de que se aproxima a voz literária

moldada pelo jovem escritor. Sem estardalhaço, a força do narrador de

Graciliano, como a dos narradores de João Antônio, enfrenta

introspectivamente as situações mais difíceis e perigosas: “Defuntos não me

comovem. Na vila apareciam muitas pessoas acabadas a tiro e a faca.

Habituei-me a vê-las de perto. Por fim não me produziam nenhum abalo”.583

581

Ramos, Graciliano. Angústia, José Olympio, RJ, 1952, pp. 189-190. 582

Idem, p. 78. 583

Idem, p. 151.

Page 289: João Antônio: Uma Biografia Literária

289

O regionalismo urbano de João Antônio

Em 1975, o cartunista Jaguar escreve, sobre Leão-de-chácara, o

segundo livro de João Antônio, publicado 12 anos depois de Malagueta,

Perus e Bacanaço: “Desses livros que, se você pega pra ler, só pára no fim.

Nosso chapinha João Antônio é desses caras que sabem contar uma história.

Eu diria que ele é uma espécie de Guimarães Rosa urbano. Inclusive criou

uma linguagem própria que se poderia chamar de ‘joãoantonês’. [grifo

meu] A história que dá título ao livro, por exemplo: se você, incauto leitor,

achar que o linguajar do leão-de-chácara é mesmo o que se fala no Capela da

Lapa, vai dançar. Nego vai te tirar de pinel se você, pra se enturmar, for

pintando e dizendo: ‘Mas eu estava no ambiente e não era grande vantagem

aliviar o pororó dos loques’”.584

Em 1996, por encomenda da editora que planejava publicar uma

reedição do livro de estréia, agora com toda a fortuna crítica já conhecida

mais textos inéditos, o professor Antonio Candido de Mello e Sousa escreve:

“Nos contos deste livro [Malagueta, Perus e Bacanaço], mas sobretudo nos

finais, ele é um verdadeiro descobridor, ao desvendar o drama dos

deserdados que fervilham no submundo; dos que vivem das lambujens da

vida e ele traz com força da sua arte ao nível da nossa consciência, isto é, a

consciência dos que estão do lado favorável, o lado dos que excluem. Sob

este aspecto, João Antônio faz para as esferas malditas da sociedade urbana

o que Guimarães Rosa fez para o mundo do sertão, isto é, elabora uma

linguagem que parece brotar espontaneamente no meio em que é usada,

584

In Pasquim, Ano VII, n. 320, 15 a 21/08/75.

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290

mas na verdade se torna língua geral dos homens, por ser fruto de

estilização eficiente” [grifo meu].585

Anos antes, em 1982, o mesmo Antonio Candido, na orelha de Dedo

Duro, outro livro de João Antônio, escrevera: “Talvez a sua narrativa seja

tão forte porque nela é o todo da vida que explode nas palavras; e porque o

ritmo em que estas se arranjam (curto, falado, incrivelmente vertiginoso)

[grifo meu], seja apto para acompanhar o nosso tempo (…) Por estar situado

bem dentro de sua matéria, João Antônio pode criar este ritmo, em cujo

fluxo constrói os personagens como se arrancasse de si mesmo os

sentimentos e os feitos, com uma violência capaz de quebrar a visão

escovada e remota própria do nosso mundo de classe média, em torno do

qual a literatura é muitas vezes uma espécie de fortaleza, mas no qual pode

também ser jogada como bomba./ Embutido pela imaginação e a escrita no

seu submundo, que é o mundo, João Antônio não enfeita, porque não se

enfeita”.586

Vale repetir que, apesar do grande intervalo entre o primeiro e o

segundo livros, dos quatro contos reunidos em Leão-de-chácara, pelo menos

dois haviam sido escritos ainda dos anos 60, ou seja, na fase imediatamente

posterior à publicação do livro de estréia; a novela “Paulinho Perna Torta” e

o texto-título, meio conto meio perfil de uma sub-categoria profissional,

originalmente publicado na revista Realidade, onde o escritor trabalhou

entre 67, 68 e 69. Um terceiro texto, chamado “Três cunhadas — Natal

1960”, apesar do título, não tem a data de sua composição conhecida. O

último, “Joãozinho da Babilônia”, tem tudo para ser um sub-produto do

585

Candido, Antonio. Remate de Males, n 19, Departamento de Teoria Literária IEL/Unicamp, 1999, p.88. 586

Antônio, João. Dedo Duro, Record, RJ, 1982.

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291

texto-título, pela profissão do protagonista, pelo ar, ainda não explícito,

assumido, de combinação entre fabulação ficcional e apuração jornalística.

Ao se comparar os sete primeiros contos de Malagueta, Perus e

Bacanaço com o oitavo, “Meninão do Caixote”, do ponto de vista

estritamente formal, as diferenças são menos evidentes que do ponto de vista

da diminuição da carga autobiográfica e da fragmentação da narrativa, como

já foi dito. Mas as mudanças estilísticas começam a aparecer. A primeira

parte da história diz assim:

“Fui o fim de Vitorino. Sem Meninão do Caixote, Vitorino não se

agüentava.

Taco velho, quando piora, se entreva duma vez. Tropicava nas

tacadas, deu-lhe uma onda de azar, deu para jogar em cavalos. Não deu

sorte, só perdeu, decaiu, se estrepou. Deu também para a maconha, mas a

erva deu cadeia. Pegava xadrez, saía, voltava…

E assim o corpo magro de Vitorino foi rodando São Paulo inteirinho,

foi sumindo. Terminou como tantos outros, curtindo fome quietamente nos

bancos dos salões e botecos.”587

Se o primeiro parágrafo acima respeita o ritmo 1, 2 3 visto

anteriormente em trechos antes analisados, se as frases continuam diretas, há

entretanto uma repetição de palavras e um jogo sonoro no segundo parágrafo

que aponta para uma prosa menos depurada, menos polida e contida, e cujas

ligações com a oralidade se dão não apenas no uso de gírias e expressões,

que entretanto parece ligeiramente acentuado, mas num “traquejo” sintático

maior. E esta oscilação entre o velho e o novo estilo continua por todo o

conto. Eis outra passagem:

587

“Meninão do Caixote”, in Malagueta, Perus e Bacanaço, Civilização Brasileira, pp. 81.

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292

“Partidas baratas e partidas caras. Funcionavam supetões, palpitações

e suor frio. Sorrisos quietos, homens secos, amarelos, pescoços de galinha,

olhos fundos nas caras magras. Aqueles não dormiam, nem comiam. E o

dinheiro na caçapa parecia vibrar também, como o taco, como o giz, como

os homens que ali vibravam. Picardia, safadeza, marmeladas também. O

jogo enganando torcidas para coleta das apostas.

Vitorino era o dono da bola. Um cobra. O jeito camarada ou

abespinhado de Vitorino, chapéu, voz, bossa, mãos, seus olhos frios e

medidores. O máximo, Vitorino. No taco e na picardia.”588

Não há, nos primeiros contos, uma descrição como essa de nenhum

ambiente. As unidades descritivas, sejam adjetivos simples ou não,

sucedem-se, se não propriamente de forma oposta à dos contos anteriores,

porém combinando-se de maneira mais trepidante, num ritmo mais

acelerado e que envolve o leitor não tanto pela introspecção do narrador,

mas pela música das palavras e das frases. É um contato sensorial que se

estabelece, mais que um racional. O jargão da sinuca se faz presente de uma

forma mais carregada. A gíria ganha força no interior do texto, antes mais

elegante, correto, bem-comportado. As repetições de palavras e de estruturas

frasais se fazem mais freqüentes e produzem um efeito oralizante proposital

— “Partidas baratas e partidas caras”, “Aqueles não dormiam, nem

comiam”, “como o taco, como o giz, como os homens que ali vibravam”. A

sintaxe, se guarda a característica das elipses, parece adquirir uma

flexibilidade maior, com maior número de frases longas — ou com quebras

artificiais — “O máximo, Vitorino. No taco e na picardia”.

Porém não se trata mais de um texto próximo da oralidade pelo

despojamento, ou pela escolha de um vocabulário coloquial, e pelo uso

588

Idem, p. 91.

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293

controlado de gírias, digamos, neutras, usadas comumente. Aqui o

vocabulário escolhido ganha uma identidade marcada, é o jargão da sinuca, é

a fala de um grupo específico. Já em “Meninão do Caixote”, como depois

em “Malagueta, Perus e Bacanaço” e mais ainda em “Paulinho Perna Torta”,

João Antônio escava, por meio da elaboração estilística de um universo

linguístico determinado, em busca da essência do homem paulistano.

Mas, em “Meninão do Caixote”, todas essas novidades estilísticas

somadas ainda não justificam, nem de longe, as comparações citadas acima

entre João Antônio e Guimarães Rosa. Nem justificam a alegação de que

teria criado “uma nova linguagem, o “joãoantonês”. Não se justifica falar em

um “ritmo vertiginoso”, ou num texto cuja violência é a causa do impacto no

leitor.

“Meninão do Caixote” pode, portanto, ser considerado, também deste

ponto de vista, um conto híbrido entre o estilo inicial e sua nova forma de

escrever. Vê-se, neste conto, que já há um movimento em direção a “uma

linguagem que parece brotar espontaneamente no meio em que é usada, mas

na verdade se torna língua geral dos homens, por ser fruto de estilização

eficiente.”

Embora fosse o herdeiro ungido da primeira tradição modernista, urbana

por excelência, da qual de fato algumas semelhanças formais o aproximavam,

a índole diferente de sua literatura, a convivência com escritores cujas obras

voltavam-se para as populações de fora dos grandes centros, vista no Cap. 2,

levam-no a se deixar tocar pela essência do projeto regionalista tardio.

Naquela virada dos anos 50 para os 60, afora a literatura urbana, de

inclinação psicologizante, a outra corrente forte na literatura brasileira era

justamente o regionalismo à la Guimarães Rosa. O paradigma de Grande

sertão: veredas, publicado em 1956, estava ainda muito presente. João

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294

Antônio iria lê-lo justamente em 1961, quando reescrevia “Meninão do

Caixote” e escrevia “Malagueta, Perus e Bacanaço”.589

E já foi visto como o

grupo de escritores e amigos-escritores ao qual João Antônio se agregou

reunia exatamente os “continuadores” da linha de trabalho rosiana. Entre

eles, Paulo Dantas, Osório Alves de Castro, Caio Porfírio Carneiro e Jorge

Medauar. Desses, todos eram nordestinos de origem, com maior propensão e

facilidade para trabalhar combinando cenários e populações distantes dos

grandes centros a elaborações de linguagem que reproduzissem seus

respectivos “dialetos”. E assim iam ocupando um lugar ao sol. Enquanto

Guimarães Rosa elogiava, publicamente, Osório Alves de Castro, Paulo

Dantas aglutinava as forças do movimento na coleção Terra Forte, da

Francisco Alves, e correspondia-se com Guimarães.590

Eles faziam a

contramão da literatura urbana.

Se o primeiro passo nessa direção, ainda de forma um tanto hesitante,

foi dado em “Meninão do Caixote”, na novela-título de seu primeiro livro já

há uma distância pronunciada em relação aos primeiros contos, e uma

aproximação considerável dos procedimentos estilísticos do regionalismo

tardio.

“Malagueta, Perus e Bacanaço”, por onde quer que se pegue,

apresenta características de estilo bastante próprias, que a diferenciam do

resto do livro. Um exemplo, da cena em que Perus é achacado pelo policial

Silveirinha:

“De longe, Bacanaço. Uma distância infinita eram aqueles cinco

metros os separando. A aperreação sobre o menino já fora a bem mais do

que devia, era muita folga. Assim faziam os homens da lei quando exigiam.

589

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 13/09/61. 590

Esta correspondência viria a ser publicada em 1975, com o título de Sagarana Emotiva.

Page 295: João Antônio: Uma Biografia Literária

295

Machucavam à vontade, satisfaziam-se, as aporrinhações só vagabundo

sabe. Sim. Se a gente sair por aí contando como é o riscado da vida de um

sofredor, os trouxas, com suas vidas mansas, provavelmente dirão que é

choradeira. Sim. E quando se manda um danado e folgado daqueles para a

casa do diabo, metendo-lhe com fé uma ferrada nos cornos, uma cortada na

cara ou um tiro no meio da caixa do pensamento, a coisa enfeia muito, vai-se

dar com o lombo na Casa de Detenção. E são abusados e desbocados e têm

apetite de aproveitadores. Piranhas esperando comida. Pisando o menino,

azucrinando, tentando surrupiar o menino… Os tais da lei”.591

A presença total das expressões coloquiais — “vidas mansas”, “caixa

do pensamento”, “riscado da vida”, “casa do diabo” — somado à ênfase

inédita no uso das expressões características do submundo —

“machucavam”, no sentido de “estorquir”, “trouxas”, referindo-se aos

trabalhadores, “uma ferrada nos cornos, uma cortada na cara”, significando

um tiro na cabeça e uma navalhada no rosto, “piranhas”, referindo-se aos

policiais — são características de estilo bastante próprias desta novela final,

pois infinitamente mais destacadas que nos contos anteriores. A veia

oralizante da prosa se fortalece, e a dicção da narrativa se aproxima do

falado, mas não reproduzindo-o, como tanto Jaguar quanto Antonio Candido

ressaltaram, mas estilizando-o fortemente, num procedimento que guarda a

sua força e frescor, mas que transcende o mero registro.

O tom geral é sempre esse, mas algumas passagens se destacam,

ratificando essa impressão, e oferecendo novos argumentos:

591

“Malagueta, Perus e Bacanaço”, in Malagueta, Perus e Bacanaço, Civilização Brasileira, p. 137.

Page 296: João Antônio: Uma Biografia Literária

296

“O malandro e o tira eram bem semelhantes — dois bem ajambrados,

ambos sapatos brilhavam, mesmo rebolado macio na fala e quem visse e não

soubesse, saber não saberia quem ali era polícia, quem ali era malandro”.592

Na frase acima, mais do que as gírias e expressões coloquiais, mais do

que o tom de prosa nascida da fala, o que chama atenção é o

desenvolvimento mais tortuoso das frases, em muito diferente da ordem

direta característica dos contos iniciais.

E a diferença de ritmo, sentida em “Meninão do Caixote”, se distancia

ainda mais do fluxo contido dos primeiros contos, em que as frases se

arrumavam em seqüências mais ou menos constantes, ou em construções

simples e diretas. Segundo escreve o próprio João Antônio: “Gíria é bom

para espíritos intensos, de vulcânica agitação e sublime vibração”.593

E este

novo ritmo vulcânico, “trepidante”, ou “vertiginoso”, nas palavras de

Antonio Candido, se impõe para sempre em sua obra:

“Mas o joguinho virava, sorria, chamava, dava-lhe um parceirinho

fácil em duas partidas de duzentos e cinqüenta cruzeiros. Os pensamentos

bons iam embora, arranjava um patrão, caía na sinuca. Ganhava um tanto, se

arrumava por uns dias. Na continuação, de novo se estrepava, o joguinho

castigava. Perus combatia, entretanto. Doía-lhe na pele ver o capitalzinho

juntado ir-se minguando, pingando for a de seu bolso, feito coisa do alheio.

Desnorteava-se nas tacadas, com pouco estava sem nenhum, arruinado, sem

dinheiro e sem patrão. Dias depois, se mortificava com lamentações

novas”.594

Agora sim já se entende, pelo menos em parte, as aproximações com

Guimarães Rosa. Ou porque, por exemplo, ele que tinha Ernest Hemingway

592

Idem, p. 138. 593

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 05/11/62. 594

“Malagueta, Perus e Bacanaço”, in Malagueta, Perus e Bacanaço, Civilização Brasileira, p. 145.

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297

como principal referência na literatura americana, em 1961 descobre a

potência abarrocada e tortuosa de William Faulkner:

“Literatura arrazadora de Faulkner — Luz de Agosto. Sofri este livro,

me foi um pesadelo, um a um os trancos da desgraça total de Joe Cristmas./

Estive, contudo, ante um escritor que sem dúvida nenhuma criou um estilo.

E sua personalidade é de gênio, gênio puro”.595

Entende-se também porque, antes de 64/65, ele se dizia “um homem

incubado”.596

Nos termos da crítica de outros tempos, mas que neste caso parecem

encaixar bem, João Antônio deixa de ser um escritor apolíneo e transforma-

se num escritor dionisíaco. Chega a ser incrível que quase toda a crítica, até

hoje, o veja como um escritor “que já nasceu pronto”.

Invocar o modelo regionalista tardio como modelo geral de João

Antônio na elaboração da segunda fase de seu processo de formação como

escritor, e assim aproximá-lo de Guimarães Rosa, não significa, em

absoluto, que se esteja pretendendo dar a ele a mesma estatura que o

fenômeno mineiro ocupa no panteão da literatura brasileira. Na conclusão

deste trabalho, os “pontos cegos” da obra de João Antônio, que justamente a

distanciam, no conjunto, da excelência literária de Guimarães Rosa serão

abordados. Para justificar tal invocação, em primeiro lugar, as cartas citadas

no Cap. 2 mostram o quanto é fato documentado o espelhamento dos

procedimentos regionalistas no projeto literário de João Antônio. Isto não é

uma interpretação. Em segundo lugar, há antecedentes na crítica que já

faziam tais conexões muito antes deste trabalho sequer começar a ser escrito.

Mas o “insight” da crítica jamais foi desenvolvido, e muito menos

595

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 03/03/61. 596

Idem, de 11/08/65.

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298

relacionado, e confirmado, à luz da correspondência do escritor. Vale, então,

fazê-lo, dando a uma tese apenas insinuada, maior solidez, contrapondo

trechos de João Antônio de Guimarães Rosa e dos outros com quem

interagiam, e a partir daí demonstrando o quanto João Antônio seguiu sua

intuição e desenvolveu um projeto literário consciente e consistente, nesta

segunda fase de sua carreira.

Tudo fica mais claro no momento seguinte do desenvolvimento de seu

estilo literário, isto é, na elaboração de “Paulinho Perna Torta”. Não por

acaso, muitos acreditam ser esta novela, ou conto longo, a obra-prima do

escritor.

Um exemplo da exuberância formal de seu novo estilo: “Crio nome de

piranha. Como os trouxas pela perna, cobiço. Torno a tomar a verba do

alheio. Corro por dentro dos pacatos. Há tipos basbaques, pivetes ainda,

aprendizes principiantes na roda da malandragem, que vêm de longe para me

espiar jogando carteado. Porque atiço os dedos e vou ao jogo alto, não

querendo nem saber se ando certo ou errado. Vou lá. Sou um relógio. Mamo

a grana. Meu nome corre. O diz-que-diz me exagera, começa a me pintar de

negro. Anda por aí que, por uma herança, matei meu pai a tiros…

Trouxas!”.597

O universo semântico, elaborado a partir da linguagem oral do

submundo, ganha uma marca autoral evidente graças ao nível de elaboração

formal. As frases são mais curtas e quebradas, as redundâncias — “pivetes

ainda, aprendizes principiantes” —, bem como as repetições de palavras e

aliterações, onde antes havia economia e elegância, tornam-se permitidas, a

sonoridade sensível onde antes havia introspecção e racionalidade, e a veia

melancólica dá lugar a um tom combativo, vulcânico.

597

Antônio, João. Leão-de-chácara, Record, RJ, 1975, p. 88.

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299

Agora tome-se um trecho de Guimarães Rosa:

“Ele gostava de matar, por seu miúdo regozijo. Nem contava

valentias, vivia dizendo que não era mau. Mas outra vez, quando um inimigo

foi pego, ele mandou: — ‘Guardem este’. Sei o que foi. Levaram aquele

homem, entre as árvores duma capoeirinha, o pobre ficou lá, nhento,

amarrado na estaca. O Hermógenes não tinha pressa nenhuma, estava

sentado, recostado. A gente podia caçar a alegria pior nos olhos dele”.598

Não é difícil enxergar a semelhança. Outros dois regionalistas que

influenciaram João Antônio, Osório Alves de Castro e Paulo Dantas (este,

inclusive, como amigo freqüente), por exemplo, também guardam as mesmas

semelhanças. Veja-se outro trecho de “Paulinho Perna Torta”, aquele em que a

zona de São Paulo é destruída por uma violenta onda policial, que traz

embutida a um só tempo uma faceta moralizante e uma de disputa entre iguais:

“— Seja o que Deus quiser.

Não sou homem de fricotes ou balongolé e se tenho coração é para as

coisas do meu gasto. E só. Mas nunca vi nada tão feio.

Como loucos, tantãs de muita zonzeira, acabam com a zona. Vão

esvaziando. Inundam as casas, tocam fogo nos colchões, entorntam as janelas,

com guinchos arrebentam as portas. Estraçalham, estuporam, quebram.

Atacam as minas, arrancadas do sono e quase nuas. Batem e chitam como se

surrassem homens. Sapateiam nos corpos das mulheres.

(…)

Os cavalos pisam também. Empinam-se no ar e atropelam as mulheres.

Vão pisando.

As mulheres engolem depressa tubos de tóxicos e despejam álcool no

corpo. Os corpos pelados, sem pressa pelas ruas, vão às labaredas, ardendo

598

Rosa, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas, Nova Fronteira, RJ, 1987.

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300

como bonecos de palha. O horror é uma misturação. Gente, cantoria, grito; é

esguicho de água, é tiro, correria desnorteada. Xingação, berreiro, choro alto e

arrastado, cheiro de carne queimada e fumaça.”599

Agora compare-se o trecho acima a este, de Osório Alves de Castro:

“Ao redor o fogo se alastrava. Mariona estava insensível: — Deus

castigará todos, pai.

Feia, horrível, enrolada nos trapos, cabelos desgrenhados, olhos

ensangüentados pelo pavor, sentia misturar no tumulto da tragédia a

aproximação de um sonho. O incêndio a envolvia. Resistia no delírio. As

seriemas cantavam ao longe, espantadas pelo fogo. Era um canto de homem

ajudando Mariona morrer sufocada pelas chamas. Um rolo de fumaça passou

sobre eles e a queimada cresceu para todos os lados.”600

Os procedimentos descritivos são bastante parecidos. As enumerações

dantescas se revezam com frases curtas e que, de certa forma, as resumem,

fazem a súmula de cada etapa da cena.

Mais um trecho de João Antônio:

“É um picardo. Esse Zião da Gameleira me encabula. Uns olhos

parados e pequenos de bicho sonolento, uma papada enorme de quem come

muito doce. E que calma… Nada afoba esse Zião, gordo e sossegado. Um

baiano que parece saber das novidades antes delas acontecerem. Sou

malandro dos malandros, mas vi poucos caras como Zião da Gameleira. Que

já vem de volta, enquanto a gente está indo. Boto o maior respeito nesse

bicho macumbeiro”.601

Em comparação a outro, também de Osório Alves de Castro:

599

Antônio, João. Leão-de-chácara, Record, RJ, 1975, p. 88. 600

Castro, Osório Alves de. Porto Calendário, Francisco Alves, RJ, 1961, p. 160. 601

Antônio, João. Leão-de-chácara, Record, RJ, 1975, p. 97.

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301

“Cabo Selado acreditava, tinha fé, apalpava sempre o seu patuá.

Levou muitos dias escondido cavando com a ponta do trinchete o coro, o

púlpito, e até o altar de Santa Maria da Vitória, para encontrar um dos bagos

de chumbo ou bala encravados na madeira durante os tiroteios das eleições

no tempo do Imperador. Diziam que dava sorte. A do clavinote que disparou

no corpo do finado Maciel, sabia. ‘Feliz neste mundo quem encontrasse as

balas dele, e um a que traspassou o coração cheio de amor do velho

Maciel”.602

As semelhanças estilísticas falam por si mesmas. O mesmo acontece

quando se analisa um trecho de Paulo Dantas:

“— Muitas coisas do secreto do pensamento dele o Conselheiro me

contou, daí porque agora eu lhe conto com tanta convicção. Sobre esta

mulher, o Conselheiro me confessou ter sido ela o prêmio maior que

encontrou na vida. Coração dos outros, alheia morada é — terra onde

ninguém pisa nem anda”.603

Por tais exemplos, e lendo mais continuamente os textos desses

autores da virada dos anos 50 para os 60, não é difícil entender o leque de

motivos, estilísticos, ideológicos, e de sensibilidade, que João Antônio tinha

para escrever de forma tão parecida à dos regionalistas, embora sobre

universo tão diferente, para não dizer oposto.

Em primeiro lugar, os escritores regionalistas parecem ter por

característica um grande cuidado com a nomeação dos lugares onde

situariam suas cenas. Os lugares têm nomes sonoros, ora misteriosos, ora

pitorescos, ora poéticos. Assim também era a cidade de João Antônio.

602

Castro, Osório Alves de. Porto Calendário, Francisco Alves, RJ, 1961, p. 186. 603

Dantas, Paulo. Capitão Jagunço, Global, SP, 1982, p. 110. a primeira edição deste livro é de 1959.

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302

Em segundo lugar, ambos esses cenários — no caso dos regionalistas,

agreste, no de João Antônio, marginal —, exigiam virilidade de seus

personagens. Honra, fama de bravura, feitos de armas, etc. A literatura

regionalista tardia pode muito bem ter representado, para João Antônio, uma

outra modalidade de sua “literatura de homem”. Grande Sertão:Veredas que

não me deixe mentir, afinal, uma leitura possível do impacto da descoberta

do verdadeiro sexo de Diadorim diz respeito justamente ao susto de se ver

uma mulher perfeitamente adaptada àquele mundo tão masculino. E os

homens que se degladiam nessas zonas perigosas da sociedade são, por isso

mesmo, personagens excepcionais, fora do normal. Tanto os regionalistas

tardios quanto João Antônio parecem emprestar a seus personagens,

igualmente rebaixados na hierarquia da sociedade, uma certa imponência,

uma gravidade. Seus atos, muitas vezes, adquirem inclusive um certo caráter

ritual, e não por acaso a evocação religiosa aparece, por exemplo, em João

Antônio e em Osório Alves de Castro. Há uma sensibilidade parecida entre

todos eles, e a semelhança de conteúdo entre os fragmentos aqui comparados

também atesta isso. Os próprios nomes dos personagens o refletem, pois são

tão excepcionais quanto os donos: Zé Bebelo, Joca Ramiro, João Ganhoá,

Titão Passos, Riobaldo, Diadorim, em Guimarães Rosa; Zé Bico, Neco

Gomes, Mariona, Clara Dendê, em Osório Alves de Castro; Capitão Jagunço

e Joaquim Tranca-pés, de Paulo Dantas; Bacanaço, Joãozinho da Babilônia,

Mariazinha Tiro-a-esmo, Zião da Gameleira, Diabo Loiro, Laércio Arrudão,

em João Antônio.

Além disso, todos cultivavam uma escolha preciosa das palavras, pois

ambos se propunham realmente a criar uma linguagem literária particular —

“bagos de chumbo”, “ponta do trinchete” —; convivendo com um repertório

não convencional, seja por ter raízes no português arcaico do sertão, seja por

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303

ser o jargão dos criminosos na cidade grande. E esta escolha do vocabulário

vem regida, em grande, em muito grande dose mesmo, por um critério que

para alguns há de parecer subjetivíssimo, mas que absolutamente não o é,

após um contato prolongado com a obra de João Antônio: o da sonoridade

das palavras e do fraseado. Para os regionalistas, e certamente para João

Antônio, a música do texto era um critério indispensável, e assim continuaria

até o fim de sua vida. Ouvido para isso ele tinha, treinado nas rodas de choro

da infância e nos discos de Noel.

Guimarães, por toda a sua forca poética, era o melhor de todos esses

escritores e entrou para a história, embalado pelas bençãos da crítica em

geral e da crítica universitária em particular. Osório Alves de Castro e Paulo

Dantas, bem como Jorge Medauar e Caio Porfírio Carneiro, não tiveram

tanta sorte. Seus livros desapareceram das estantes porque tentavam

prolongar um tipo de literatura que não poderia ser estendido após a

culminância de Grande Sertão: Veredas, e que o acirramento da urbanização

nos anos 70 tornaria cada vez mais distante do meio literário hegemônico

das grandes capitais, no celebrado eixo Rio-São Paulo, senão como

valorização do que de melhor já fora produzido por esta “linhagem literária”

Não havia espaço para continuadores. O preço a pagar foi o esquecimento da

crítica e do público. Guimarães, sem o saber, sem o pretender, transformou

todos os seus “pares” regionalistas em autores secundários, exatamente pela

força de seu talento. A sorte de João Antônio foi que ele aplicou os recursos

estilísticos que tomou emprestado dos regionalistas em outro ambiente, em

outro universo, o urbano, o que deu a sua literatura uma sobrevida.

Este forte aumento no teor de elaboração da linguagem, aliado a uma

libertação da fabulação ficcional, que se descola da experiência

autobiográfica, embora não deixe de ser enriquecida por ela, são os

Page 304: João Antônio: Uma Biografia Literária

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elementos que assinalam o início da segunda fase no processo de formação

de João Antônio como escritor. E ele então sonhava alto, buscando a alma

do homem urbano enquanto fundava o que se poderia chamar de um

movimento de um homem só: o “regionalismo urbano”. A seu modo, único e

insubstituível.

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Cap 4

Literatura na Realidade

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São Paulo X Rio de Janeiro

Após a conclusão de “Paulinho Perna Torta”, em 1964, e antes que a

novela fosse publicada, em 1965, na já citada antologia Os Dez

Mandamentos, da editora Civilização Brasileira, João Antônio entrou numa

fase de redefinição pessoal. O menino de origem proletária, agora com vinte

e sete anos, vencera quase todos os obstáculos sociais e educacionais —

para não falar dos simples acidentes do destino, como por exemplo o

incêndio da casa de seus pais e de sua principal novela —, e era agora um

escritor estreante mas premiado, jovem mas muito bem considerado, que

recebera imediatamente da crítica um lugar ao sol e na tradição literária

brasileira, como a voz nova da cidade de São Paulo. A boa repercussão nos

meios especializados rendera-lhe prêmios, amizades literárias com os novos

talentos da sua geração, e também contatos com alguns dos grandes

intelectuais do Brasil. Vivia, por tudo isso, um bom momento para outros

vôos, profissionais e pessoais. Um desejo era abandonar a publicidade e

profissionalizar-se como escritor. Outro era deixar São Paulo. E ele se pôs a

visitar outros estados do país. Tais objetivos, mais ou menos conscientes,

mais ou menos exeqüíveis, levaram-no, naquela virada entre 64 e 65, a sair

da rotina e viajar.

De início explorou a região Sul.604

Com que dinheiro?, difícil dizer.

Certamente não com os direitos autorais obtidos com Malagueta, Perus e

Bacanaço, pois no primeiro momento seu sucesso foi eminentemente de

crítica.605

É possível que, num nível mais concreto, essas viagens estivessem

604

Entrevista a José Edson Gomes, para a revista Leitura, n.94, maio-junho de 1965, Rio de Janeiro, p.45. 605

“Malagueta, Perus e Bacanaço, com todas as entrevistas a jornais, rádios e televisão, meu livro de

estréia não me deu nem 300.000 mil cruzeiros... Não posso, absolutamente, fazer nada com esse dinheiro.

Com um mês de trabalho publicitário, consigo ganhar mais do que com Malagueta, Perus e Bacanaço.”

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vinculadas às palestras que desde tão cedo propôs-se a dar pelo país afora.

Pelo menos assim permite especular uma declaração da União Brasileira de

Escritores, resumo de suas atividades até o ano de 1972, na qual é

mencionada a realização das tais palestras, ainda que restringindo-as a São

Paulo capital e ao interior do estado.606

Mas é possível que tenha

simplesmente ido fazer turismo, conhecer o Brasil, como foi o caso de sua

ida a Apiaí, interior de São Paulo, onde esteve em fevereiro de 1965.607

Também não se encontra registro de com quem viajou pelo Sul, se é que

estava acompanhado, ou de onde ficou hospedado nos diferentes estados que

visitou, ou mesmo sobre quais cidades visitou em cada um deles. O que se

sabe com certeza é que, nesse período, esteve em Santa Catarina, no Rio

Grande do Sul e no Paraná.

Em fevereiro de 1965, voltando de Apiaí, João Antônio foi ao Rio de

Janeiro, onde passaria o Carnaval e visitaria os parentes por parte de mãe

que ainda lá residiam, em especial seu tio Otacílio.608

Novamente, nesse

caso, a intenção consciente de procurar uma nova cidade para residir é

controversa, ora afirmada ora negada pelo próprio João Antônio.609

Na

capital carioca, foi hospedado pelo amigo Mário Peixoto, jornalista e

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, em 19/07/64. 606

Documento em papel timbrado, datado de 12/05/72, assinado pelo então presidente da instituição, o

amigo Caio Porfírio Carneiro. Mas em carta a Marília de Andrade, então sua noiva, por exemplo, ele

menciona convite de Manoel Lobato, farmacêutico e escritor com quem se correspondia, que após uma

temporada em Vitória insta João Antônio a visitar a cidade onde voltara a residir, sua cidade natal, Belo

Horizonte (MG). É possível, portanto, que mesmo sem a intermediação institucional da UBE, as amizades e

as atividades literárias tenham pautado o roteiro dessas viagens. 607

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 18/02/65 foi escrita de Apiaí, interior de São Paulo, onde passeava

acompanhado de um amigo não identificado, embora ligado à UBE (possivelmente Herman José Reipert).

Diz ele: “Escrevo-lhe de Apiaí, a 350 kms de São Paulo e muito mais de 1.000 metros de altitude, num

clima magnífico, vendo grutas e furnas, coisas naturais e milenares, frutos tenros da terra (...)”. Nenhuma

atividade literária, portanto. 608

Entrevista a José Edson Gomes, para a revista Leitura, n.94, maio-junho de 1965, Rio de Janeiro, p.45:

“Então, resolvi ver o Carnaval carioca. E fiquei até hoje”. 609

Ao trecho citado na nota anterior, contraponha-se este de carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 14/04/65:

“Ilka, você ainda não entendeu a minha vinda para o Rio. Eu não desejo sair daqui para voltar a São Paulo.

Eu já saí com esta intenção.”

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308

escritor, autor de Chuva de Vento no Querosene — certamente não por acaso

também a ser publicado pela Civilização Brasileira —, que no momento

trabalhava no Banco do Brasil. Mário era casado com Dária, e juntos

moravam num quarto e sala, no primeiro andar de um edifício na rua São

Salvador, no Flamengo. Ao hóspede João Antônio estava reservado o sofá

da sala.610

São Paulo não era mais um lugar onde João Antônio se sentisse bem.

Inúmeros fatores contribuíram para tanto. Entre eles, as reclamações

clássicas: contra o crescimento que transformava a cidade, ressaltando novos

bairros e relegando outros à degradação. Sobre isso, na época, ele diz: “São

Paulo, para mim, jamais foi a cidade dos bairros jardins, com suas calmas e

friezas e futilidades e luxos. Era meu o São Paulo do povo-povo. Sou filho

de motorista de caminhão com doméstica, o que é que eu poderia dar?”611

,

ou “O misticismo da luz elétrica como existe em São Paulo não existe em

nenhum outro lugar. A poesia da luz elétrica é a marca da solidão que se

vive na cidade”612

—, e contra o ritmo de vida na cidade — “São Paulo é

uma cidade de pressas e sustos”.613

O que, a seu ver, piorava tudo, era o fato de que a modernização da

cidade não vinha acompanhada por uma modernização dos padrões de

comportamento: “Custa-me muito dizer que São Paulo é uma província.

Poderosa como arquitetura, geografia física, áreas urbanas, etc, no fundo

mantém uma odiosa mentalidade de cortiço”.614

610

Depoimento de Marília Andrade, colhido em 20/07/2003. O endereço completo de Mário Peixoto era:

Rua São Salvador, 30/ apto. 102, Flamengo. O livro de Mário Peixoto tinha publicação prevista para 1966. 611

Entrevista a José Edson Gomes, para a revista Leitura, n.94, maio-junho de 1965, Rio de Janeiro, p.45. 612

João Antônio - Literatura Comentada: volume organizado por João da Silva Ribeiro Neto, editora Abril,

SP, 1981, p. 5. 613

Entrevista a José Edson Gomes, para a revista Leitura, n.94, maio-junho de 1965, Rio de Janeiro, p.45. 614

Idem.

Page 309: João Antônio: Uma Biografia Literária

309

Mas João Antônio tinha também motivos bem pessoais para sair de

São Paulo. O mundo literário da cidade não lhe agradava, e nem os efeitos

do sucesso de seu livro em sua vida. O jovem de origem proletária, apesar

do “cartaz” junto à crítica, não se reconhecia na imagem que dele queriam

fazer, e não sentia pertencer ao mundo das letras tal como o via. De uma

hora para outra, julgou-se “Transformado em menininho gigante do talento,

quase obrigado a aceitar a minha mistificação, premiado e pobre, sem Boca

do Lixo, vivendo mal sem mar, liberdade, eu teria de fazer anúncios de

publicidade para viver, enquanto o dono da agência de propaganda diria a

seus clientes: ‘Olha, este aqui, meu redator, é um escritor premiado, etc.’; já

não mais fazendo a minha prosa e não podendo conviver com os meus

verdadeiros amigos, os malandros, ali eu me sentia como um homem

exilado”.615

Sua nova situação profissional parecia obrigá-lo a apagar sua

adolescência, juventude e, por que não dizê-lo, sua índole boêmias. A

identificação com São Paulo e suas coisas, tão marcante no primeiro livro, e

mais tarde em todos os seus textos autobiográficos, estava pela primeira vez

ameaçada. A cidade o estranhava, e ele a ela: “Estando dentro da cidade eu

já não enxergava São Paulo. Precisava ganhar visão do lado de fora, sei lá.

(...) Quiseram me transformar em entidade, ‘jovem ilustre escritor’ e outras

porcarias. Fui eleito diretor da União Brasileira de Escritores616

e já era

apontado para ser julgador de concursos de contos. O ‘jovem mestre’. Isso

tudo me incomoda e me toma um tempo que eu não tenho. Achavam que eu

devia viver a chamada ‘vida literária’”.617

Ele, do Rio, confessa à amiga Ilka

o quanto a repercussão do livro havia, ao contrário do que se poderia

esperar, contribuído para diminuir sua produção literária em São Paulo: “Eu

615

Idem. 616

Exerceu o cargo de diretor entre 1964 e 1965. 617

Entrevista a José Edson Gomes, para a revista Leitura, n.94, maio-junho de 1965, Rio de Janeiro, p.45.

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310

estava vivendo bem aí? Não. Eu estava escrevendo bem aí? Ultimamente

não. Eu amava aí? Não”.618

Mas não só a entrada no mundo literário o “desencaixara” na vida;

havia motivos mais profundos, cicatrizes antigas, que agora iam ficando

insuportáveis, velhos constrangimentos, que uma fase nova na vida

precisaria abolir: “A cidade de São Paulo me deu e me tirou uma porção de

coisas essenciais. Amei muito ali, me dei muito ali. Muitas coisas, pessoas,

ruas, esquinas, avenidas, viadutos já me doíam na alma quando eu os via,

que me lembravam uma porção de dores. Eu fui muito jovem em São Paulo,

um dia. E isso me custou porradas. Dei-me demais e isso também me custou.

Hoje as coisas me doem lá”.619

Ou: “São Paulo, com tudo o que me deu —

prêmios, dores, frustrações e algum nome — fique para lá. Já começo a

sentir o quanto São Paulo é província, é formalidade. Como e quanto São

Paulo prende a liberdade de um artista, de uma pessoa. A liberdade até de

andar nas ruas, conversar nos botequins, de passear. Eu não quero voltar

àquilo, Ilka. (...) Eu não quero mais. Aquelas criaturas complicadas,

retorcidas, difíceis, que, apesar de tudo, eu tanto respeitei e até (de minha

forma) amei. Mas chega. Que eu não sou o gerador de tanta complicação e

enrolamento, de tanta solidão, incomunicação humana e aflição de espírito.

Eu quero viver um pouco livre. Diabo!”.620

Ele parecia, mais do que nunca, confiante em suas virtudes, em sua

capacidade de levar uma vida menos atormentada, menos cheias de

oscilações vertiginosas de humor, que o levavam da euforia à depressão em

questão de horas. Mais do que nunca, João Antônio tinha a esperança de

equilibrar-se, fazendo conviver homogeneamente profissão e prazer. Ao

618

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 31/03/65. 619

Entrevista a José Edson Gomes, para a revista Leitura, n.94, maio-junho de 1965, Rio de Janeiro, p.45. 620

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 31/03/65.

Page 311: João Antônio: Uma Biografia Literária

311

“vencer”, ao ultrapassar sua condição proletária, parecia ter chegado a um

novo estágio da vida, que exigia novos hábitos e novos cenários.

Por fim, outro motivo que tornava uma vida longe de São Paulo mais

fácil para ele era seu difícil relacionamento com a família. Embora João

Antônio jamais tenha virado as costas a seu passado, muito pelo contrário,

chegando mesmo a, de certa forma, cultuá-lo, inclusive em sua literatura

(caracterizada, sobretudo e com destaque, por um avassalador sentido de

nostalgia), a distância cultural entre ele e seus pais, entre ele e sua família

em geral, crescera dia-a-dia ao longo dos anos, e o lançamento do livro e a

inserção no “mundo das letras” evidenciava-a de forma incontornável. Diz

Marília, sua futura esposa: “Ele se dava bem com a família, mas não

agüentava ficar muito tempo junto. O desnível cultural fazia-o sentir-se de

fora”.621

E ele próprio parece admitir isso: “Vou-lhe confessar. Meio duro,

mas vou. Estive em São Paulo já. Sabe o que fiz? Estranhei o frio, e

descendo na rodoviária, fui direto para a casa de minha mãe. Esperando que

me chegasse a saudade de São Paulo. Durante dois dias ela não chegou.

Ainda bem./ Dois dias de São Paulo. E não vi ninguém, não procurei

ninguém, não telefonei a ninguém. Não senti nada, absolutamente nada, em

termos de saudade./ Ingratidão? Ingratidão pela cidade, pelas pessoas? Sei

lá. (...)/ Simplesmente não senti saudade de nada de São Paulo, em São

Paulo”.622

Ou ao escrever: “Em São Paulo se desnorteava em erradas e vivia

como um exilado no próprio local onde nasceu”.623

O processo de distanciamento entre ele e o universo proletário,

paradoxalmente, aconteceu e não aconteceu ao longo de sua vida. Na

621

Depoimento de Marília Andrade, colhido em 20/07/2003. 622

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 04/05/65. 623

Carta a Marília de Andrade, de 26/07/65(b). Duas cartas foram escritas nesse mesmo dia; nas remissões

seguintes, como aqui, elas estão diferenciadas pelas letras a ou b, de acordo com a ordem com que foram

organizadas pela destinatária.

Page 312: João Antônio: Uma Biografia Literária

312

prática, é claro, aconteceu. Intelectualmente, culturalmente e, até certo

ponto, no nível da sensibilidade, aconteceu. Mas sua literatura jamais

abandonou seu tema essencial, como se representasse um esforço de negação

do distanciamento, ou de compensação contra o não-pertencimento pleno a

nenhum outro universo. Pois se sua nova condição o afastava do universo

social e cultural do proletariado puro, nem por isso o enquadrava

inteiramente nos ambientes social e intelectualmente tidos como mais

elevados.

Ele tinha consciência desse fenômeno de “desgarramento”, de

individuação extrema, e de isolamento. Fenômenos esse, aliás, irreversível e

eternamente progressivo. Anos mais tarde, João Antônio pôde explicitar seu

afastamento do mundo proletário num de seus melhores textos

autobiográficos.624

De outro lado, sobre as novas rodas que freqüentava, ele afirma: “De

mais a mais, como não me irritar com uma gente que tem hora e dia certos

até para os porres? Sexta-feira, se bebe, confiando-se na semana inglesa.

Sexta-feira, dia de bêbado amador, do papagaio enfeitado, do bobo-alegre.

Quem bebe na quarta ou na segunda — irresponsável, alcoólatra, raridade. É

isso que minha companheiragem, hoje cheirosa e lustrosa, engravatada e

bem-comportada, pensa, diz, imputa. E cobra dos parceiros”.625

Nos idos de 64/65, ele acreditava, a solução para esses problemas era

mudar de cidade. E a escolhida foi mesmo o Rio de Janeiro. Sua rápida

passagem pela cidade, onde deveria apenas visitar parentes e pular o

Carnaval, iria se prolongar por três, quase quatro, intensos anos.

624

Antônio, João: Abraçado ao Meu Rancor, Cosac & Naify, SP, 2001, pp. 76-77. 625

Idem, p.77.

Page 313: João Antônio: Uma Biografia Literária

313

Ao se falar da escolha pela cidade do Rio de Janeiro, um primeiro

motivo é obrigatório: a beleza natural. Diz João Antônio, falando do Rio nos

anos 60, quando lá chegou: “Esta cidade tinha uma sensualidade, vibração,

colorido, beleza, charme, borogodó, carisma, que vão desaparecendo à

medida que a vão destruindo. Beleza tropical é no Nordeste. Beleza sem

adjetivo é no Rio”.626

Mas a opção pelo Rio não modifica apenas a paisagem a sua volta. No

dia-a-dia, sua rotina se descontrai, e ele próprio sente-se menos “retorcido”,

“complicado”. “Aqui me descompliquei um pouco. Tenho amigos melhores.

Não necessito paletó, gravata, sapatinhos polidos. (...) Não há

provincianismo. Há liberdade e libertação, a gente se autodetermina nessa

cidade. É estranho e é mágico. A gente se ameniza um pouco”.627

São palavras dele, para a amiga Ilka Brunhilde Laurito: “Perdi um

pouco da tristeza. Mudei um pouco. Esta cidade me libertou um pouco

daquela carranca a que você estava acostumada a ver, as poucas vezes em

que me viu. Ganhei displicências úteis. A eterna ausência do paletó, é a

fundamental delas [grifo dele]”.628

E a cultura carioca, além de mais livre do ponto de vista conceitual,

também quantitativamente parecia-lhe mais rica e diversificada: “Além da

praia, há a cidade que não se esgota mesmo. (...) É muita coisa que ver,

andejar, amar e reter. Você entende. Além da praia e da cidade, há os

espetáculos: teatro, cinema, mostras de pintura, escultura. Sei lá. Um isto e

um aquilo que você nem faz idéia. Coisas não acabam mais”.629

626

João Antônio - Literatura Comentada: volume organizado por João da Silva Ribeiro Neto, editora Abril,

SP, 1981, p. 5. 627

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 31/03/65. 628

Idem, de 04/05/65. 629

Idem, ibidem.

Page 314: João Antônio: Uma Biografia Literária

314

Dessa mencionada liberdade, dessa leveza, faz parte importante o

fascínio de João Antônio por uma atitude diferente que ele percebia no povo

carioca, mais iconoclasta, no melhor sentido do termo, em relação aos

artistas. Isso era algo que, de saída, o impediria de se tornar um “bom-moço

das letras”, como temia estar acontecendo em São Paulo. “Ninguém vira

entidade ou mito in Rio./ Ah, aquele cara escreveu um grande livro, pintou

um bom quadro, fez um filme importante? É? Bom, não?/ E ninguém

mascara o cara. Ele fica como está. (...) A gente toma chope com o Vinícius

de Moraes, com o Paschoal Carlos Magno, com o Ênio Silveira. (...) Não há

ídolos ou verdades que resistam à ironia carioca, ao seu espírito natural de

esculhambação. (...) Eu amo isso, Ilka”.630

Tal “filosofia de vida” era a que aplicava a si mesmo: “Estou sendo

entrevistado pelo Correio da Manhã e pela revista Leitura. Todo mundo

sabe disso. E daí? Ninguém me enche. Ninguém me adula. Ninguém me

chama de ‘jovem escritor’. Sou o João Antônio, um sujeito que escreve

contos e, às vezes, novelas. Editado pelo Ênio, etc. Só. Ninguém me amola./

Pois. Em São Paulo, me amolariam, me chateariam com uma porção de

considerações. Seria um jovem escritor e um moço intelectual./ Veja a

diferença: aqui eu sou o João Antônio, um cara que escreve. E só./ E pra que

mais, Ilka? Já não chega? Já não é bom?/ Em São Paulo se assustariam

comigo. Aqui lêem meus escritos e não me amolam, não me enchem. E se eu

me mascarar, mandam-me plantar batatinhas. Ouviu?”.631

Como se vê, se a ida para o Rio era uma maneira de romper com um

passado sofrido, com um meio social em que ele não cabia mais, ela era

também, paradoxalmente, uma saída para que não precisasse mudar

630

Idem, ibidem. Paschoal Carlos Magno era poeta e dramaturgo de ascendência italiana, nascido em 1906,

trinta e um anos antes de João Antônio, e portanto um veterano consagrado aos olhos do jovem escritor. 631

Idem, ibidem.

Page 315: João Antônio: Uma Biografia Literária

315

inteiramente seu jeito de ser. O novo cenário permitia-lhe a ascensão, mas

sem roubar sua espontaneidade. Talvez, pela primeira vez na vida, João

Antônio estivesse próximo a equilibrar suas emoções num meio termo que

lhe facilitasse a vida.

Seu medo de ser entronado no posto de “jovem intelectual bem-

comportado” era tanto que ele, ao chegar ao Rio, tratou de construir novas

ligações pessoais. Mesmo os críticos que tanto lhe ajudaram durante sua fase

inédita, e por quem demonstrava sincera admiração, talvez por

representarem esse risco de “enquadramento” ao establishment literário, e

por terem em parte fabricado, em seus textos e resenhas, as comparações

com os escritores paulistanos do passado, jogando sobre o jovem autor o

peso das filiações e tradições literárias, foram deixados de lado. “Tudo isso

que é bom [a vida no Rio de Janeiro], envolve muito. Não sobra muito

tempo, não. Até certos amigos fundamentais, como Ricardo Ramos e Paulo

Rónai, eu ainda não encontrei jeito de procurar. E, serei franco, nem

vontade. (Ilka, não sei o que se passa comigo, mas estou mudando) ”.632

Do ponto de vista comportamental, tudo lhe parecia mais fácil no Rio:

“O carioca é um povo de cidade grande, Ilka. Arejado, liberto de muitas

frustrações. Desencolhido. Por isso, as mulheres e os homens são amoráveis,

dão-se mais, não complicam. Gostam, gostam. Não gostam... Azar da

segunda pessoa. Mas a tal segunda pessoa também faz uso de uma solução

extraordinária e fala: deixa pra lá.”633

A música popular “autêntica” [leia-se,

no entender de João Antônio, o samba da velha guarda e o choro] e as

mulatas, duas de suas maiores paixões, eram oferecidas com fartura na

cidade, o que era um compreensível motivo de comemoração. “[O Rio] Tem

632

Idem, ibidem. 633

Idem, ibidem.

Page 316: João Antônio: Uma Biografia Literária

316

mar, tem o espírito do povo, tem a beleza da cidade, tem o melhor que o

Brasil possui em termos culturais. E tem samba e ginga cariocas. Tem

gafieiras autênticas, mulatas, quase todas inconseqüentes, tem a Lapa (que já

não é o que foi), tem o Zicartola, a Estudantina, o Amarelinho, o Régio, a

Elite — bares, casas de samba e chope da noite”.634

O Rio de Janeiro atuava como um lugar onde lhe parecia ser possível

crescer sem perder a autenticidade, ou até mesmo se reinventar sem ter que

prestar contas à ninguém. Ele está mudando tudo em sua vida, abrindo-se

para outro mundo, outras pessoas e até, em pouco tempo, para o amor (ele

que antes defendia uma muralha protetora contra os males e as distrações do

coração).635

A confidente Ilka chega a repreendê-lo por sua injustiça para com São

Paulo, gerando nele um mea-culpa: “Agradeço-lhe de coração o acerto de

ponteiros. Nesses meus arroubos anti-paulistas, inda acabarei me perdendo

gratuitamente. A verdade é que São Paulo me proporcionou muita coisa boa

e muita coisa autêntica. Outra coisa: São Paulo, a cidade, as coisas, as

pessoas e os animais, as praças, as ruas, os cheiros, os jeitões não estão

errados não. Errado sou eu com o meu temperamento de explosões bestas e

alegres. (...) Ando vivendo numa alforria de liberdade vital e preciso andar

com a cabeça no lugar para que não desande a dizer besteiradas por aí”.636

Mas é um mea-culpa pouco convincente. Em meio a esse movimento

interior, é claro, novos projetos literários brotavam. “Por outro lado, coisas.

De literatura. Tenho uma porção de encomendas. Contos, novelas, uma

634

Idem, de 31/03/65. 635

Quanto a sua abertura para o amor, João Antônio diz: “E até de amar eu sinto vontade. Aqui [no Rio de

Janeiro] me sinto lavado, é a verdade. O carioca me deu amor e calor humano para sentir as coisas e tentar

levar alguma coisa de útil e bom, inteligente e exportável”. Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 04/05/65.

Quanto a sua tese de fechar-se para o amor em nome da total independência, ver o capítulo 2 deste trabalho. 636

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 10/07/65.

Page 317: João Antônio: Uma Biografia Literária

317

variedade que uma variedade de pessoas me pedem. Isso, principalmente,

consome tempo. Você bem sabe [Ilka] que sou simplesmente incapaz de

prejudicar a qualidade pela quantidade.”637

“Eu tenho vontade de escrever

tudo. De fazer tudo. Ver teatro, escrever sobre teatro, ler teatro. Eu quero e

tenho vontade de produzir. Escrever o romance [Jordão], os romances.”638

Além das encomendas, há seu projeto pessoal, o mais ambicioso de

sua vida: “O romance. Acertou em cheio. Nem vou falar. A única solução

minha (e que aceito com alegria) para a frente é o romance.”, diz ele numa

carta em que recebe da amiga Ilka Brunhilde Laurito suas consideracões

sobre a novela “Paulinho Perna Torta” e sobre o desdobramento de seu

projeto literário. “Apenas o seguinte, Ilka: no romance, ou antes, num

romance, não cabe fazer o que pretendo. Eu vou partir para a saga. Eu lhe

conto como./ Preciso contar tudo o que vi, vivi, sofri, conheci em São Paulo.

Bem. Tenho, sem exagero e de pronto, vinte personagens consumadas.

Homens, mulheres, crianças, velhos, botequins, curriolas, ambientes opostos

e contraditórios, um mundo. Todos vivendo, amando, sofrendo, vencendo e

sendo vencidos em São Paulo, cidade e arredores, subúrbios próximos e

distantes, bairros jardins e muquinfos. Então, a própria vivência, interpretada

e meditada, me trouxe a solução estética e técnica. A saga./ Título?

“Lamentação do Morro” ou “Lamento do Morro”. Vários romances. O

primeiro? A primeira lamentação do morro se chamará Jordão. Falta o quê

para começar? Pouco. Minha vinda para o Rio de Janeiro está, de certa

forma, me dando uma visão um tanto diferente do mundo ou mundos que vi

em São Paulo. Um sentir mais amadurecido e muitíssimo mais real, menos

637

Idem, de 04/05/65. 638

Idem, ibidem.

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318

lírico, menos paternal. Um paternalismo que apenas comecei a perder em

‘Paulinho Perna Torta’”. Você apanhou bem isso”.639

No mês seguinte, a expectativa em relação a sua produção literária por

vir estava ainda maior, ganhando cores mais radicais: “Preciso parar um

pouco de viver. Pelo menos para fazer Jordão e uns contos que me andam

atravessados na garganta. (...)/ Escrever, para mim, agora, é uma espécie de

desafio do auto-respeito. Viver deve ficar para lá. (...) Há um momento em

que o escritor deve abandonar as coisas da literatura, voltando as costas para

qualquer tipo de livros e partindo para a vida. Viver. Pegar a terra do chão e

sentir como é que é. Eu, entretanto, estou no lado inverso. Devo virar as

costas para a vida e agora escrever. Preciso botar para fora. É o parto. (...)

Ilka, também para a literatura mudei. Espero que consiga meter no papel os

resultados de progressos humanos que consegui fazer. E sei que não será

fácil. Nada bom é fácil”.640

Primeira redação de jornal, primeiro amor

Chegado ao Rio, logo João Antônio conseguiu seu primeiro emprego.

Foi no Jornal do Brasil, a oportunidade surgindo muito possivelmente por

intermédio do seu amigo, jornalista e escritor Esdras Passaes, que lá

trabalhava. Sobre esse trabalho, João Antônio diz, falando de si mesmo na

terceira pessoa: “Ele veio ao Rio para o Carnaval carioca. Deu uma sortinha,

catou um emprego que a bem dizer, não obstante seu nome literário, caiu foi

639

Idem, de 01/07/65. 640

Idem, de 11/08/65.

Page 319: João Antônio: Uma Biografia Literária

319

do céu”.641

Tendo chegado em fevereiro no Rio, em março já estava

empregado. E entusiasmado: “Ilka, a aventura profissional que estou

vivendo no JB nunca poderia ser realizada em jornal algum aí de São Paulo.

O nível aqui é outro. As exigências, maiores. A responsabilidade

acrescentada do fato de que eu sou ‘um escritor’. Matéria assinada, portanto.

E matéria sobre o Rio de Janeiro. Outra coisa: o “Caderno B” do Jornal do

Brasil, onde trabalho, é tido por todos aqui como a melhor coisa da imprensa

carioca. Nele colaboram José Carlos Oliveira, Ely Azeredo, Ziraldo, Fausto

Wolff, Rubem Braga... (...)/ Entretanto, apesar dos meus tropeções e

lerdezas e lentidões, foi bem visto e bem recebido o meu trabalho até

agora”.642

E a repercussão de seu bom desempenho no jornal, mesmo somada a

sua boa reputação como escritor, não o incomodava como acontecera em

São Paulo. Ele fala até com orgulho do destaque que vinha tendo. É o que

fica evidente nestre trecho: “Exemplo: comecei aqui como repórter-especial,

matéria assinada e outros tratamentos do “Caderno B”, do Jornal do Brasil.

Não me mostrei muito não. Leram o sair das minhas matérias. Gostaram. Fui

citado nas cúpulas. Nas reuniões de cúpula. Passei a ser o João Antônio aqui,

escritor muito antes de jornalista. Uma frase minha, sobre o pessoal que

frequenta a ópera no Rio, foi para uma coluna de O Jornal, coluna das frases

que ficaram. Se aqui ao Rio vierem Mao, Chaplin ou Neruda, serei eu o

homem para entrevistá-los”.643

E, numa carta ao amigo Caio Porfírio Carneiro, ele se vangloria do

acesso que o cargo de repórter-especial lhe dava às mulheres, agora falando

de um nível mais mundano de deslumbramento: “Ando, como você deve

641

Carta a Marília de Andrade, de 26/07/65 (b), 642

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 31/03/65. 643

Idem, de 04/05/65.

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320

saber por aí, ocupadíssimo com as starlets que compõem a beleza feminina

do Festival Internacional do Filme. Na qualidade de repórter-especial do

“Caderno B” do Jornal do Brasil, não posso deixar minhas irmãs

desamparadas. Vivo no Copacabana Palace, na areia da praia e nos arredores

do Cine Rian, Copacabana, Posto 5 e meio, pesquisando formas e pescando

novas. É de lascar, meu irmão. Falando claro: ando tonto diante de tanta

gatinha em flor. Taí, bom título pra livro — À Sombra das Gatinhas em

Flor. E o chato do Proust que vá lamber sabão!”.644

Em suma, por um breve período naquele primeiro semestre de 1965,

João Antônio encontrou satisfação profissional em algo que não era

propriamente a literatura. E algum motivo de orgulho, que ele chega mesmo

a ostentar, como se finalmente sua condição social tivesse deixado de

obrigá-lo à humildade proletária de suas primeiras cartas para escritores e

críticos literários. A agência Petinatti era uma lembrança ruim, graças à

literatura e, agora, ao jornalismo cultural. Malagueta, Perus e Bacanaço

promovera na escala social o filho do português (nesta época seu pai vivia de

fretes como caminhoneiro), alçando-o à condição de repórter diferenciado, e

promovera-o de forma tão rápida e insofismável que, mais tarde, o escritor

não pôde se conformar que a ascensão social exclusivamente via literatura, e

ainda que somada àquela permitida pelo jornalismo, tivesse novos limites

logo adiante, agora intransponíveis e ditados por leis de oferta e demanda na

indústria cultural brasileira. Mas a frustração viria um pouco mais tarde, já

no início dos anos 70. Em inícios de 65, houve momentos de alegria e

encheu-lhe o peito o sentimento de estar sendo, enfim, recompensado.

Tão bom era o emprego no JB que, além do prestígio, o trabalho lhe

parecia manso. Diz ele, novamente na terceira pessoa: “João Antônio vivia

644

Carta a Caio Porfírio Carneiro, de 20/07/65.

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bem economicamente. Um folgado sem horários e com um chefe camarada.

Redator categoria A do Jornal do Brasil, repórter-especial do “Caderno B” e

outros tratamentos, bicos de pato e cocorécos”.645

No próximo item deste capítulo, sua colaboração com o Jornal do

Brasil, que vai de março de 65 a junho de 66, será objeto de análise mais

detida. Agora, importa é mencionar que foi nesse ponto de sua vida, e como

enviado especial do “Caderno B”, que João Antônio conheceu aquela que

seria sua única esposa legalmente reconhecida, e a mãe de seu único filho:

Marília Mendonça de Andrade, futura Marília de Andrade Ferreira.

O encontro se deu na noite de 26 de maio de 1965. Data tão precisa é

presumível a partir da nota, escrita por João Antônio e publicada no Jornal

do Brasil do dia 27, em que se noticia a festa na qual os dois se viram pela

primeira vez. Celebrava-se, naquela noite, a despedida do espetáculo Rosa

de Ouro, estreado naquele mesmo ano no Teatro Jovem.646

O show havia

sido um sucesso, e marcaria época, reunindo nomes da música popular que

viriam a se tornar consagrados, como Clementina de Jesus, Paulinho da

Viola, Nélson Sargento, entre outros. E o cenário era digno da ocasião: o iate

Debret, oferecido por um dos produtores do espetáculo, e um cruzeiro pelas

praias de Botafogo, Urca e Flamengo, até a entrada da barra. A trilha sonora,

claro, sambas de primeira qualidade, jongos e lundus. Natural que um

repórter-especial do “Caderno B” fosse convidado, ainda mais que suas

ligações com os movimentos teatral e musical carioca viviam marcada

florescência. Assim como era natural que outros jornais, de um jeito ou de

outro, para lá mandassem repórteres e fotógrafos na cobertura do evento. E

foi enquanto estreava na profissão de jornalista, como “foca” do jornal

645

Carta a Marília de Andrade, de 26/07/65 (b). 646

“Rosa de Ouro despediu-se no mar”, in “Caderno B”, Jornal do Brasil, RJ, 27/05/65. O espetáculo Rosa

de Ouro foi concebido e dirigido por Hermínio Belo de Carvalho e Cléber Santos.

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322

Tribuna da Imprensa, acompanhada de um fotógrafo, que Marília teve a

oportunidade de participar de uma festa tão badalada.647

Sua missão era

entrevistar os músicos e voltar à redação do jornal ainda naquela noite, o que

lhe permitiria entregar a matéria ao editor do caderno em que trabalhava a

tempo de sair no dia seguinte.

Marília era de uma família mineira, tradicional nos costumes e

financeiramente ascendente. Seu avô paterno era um rico fazendeiro em

Muriaé (MG), dono de uma fazenda chamada O Vermelho. Sua avó, famosa

na família pela beleza, e mãe de três filhos, morrera muito jovem, de

tuberculose. O avô havia então contraído novas núpcias com uma mulher do

Rio de Janeiro, de sobrenome Ludolf, família que ganharia muito dinheiro

quando da construção do bairro do Leblon, onde era grande proprietária, e

que mesmo antes disso já era dona de considerável patrimônio.648

O pai de

Marília, Daniel dos Santos Andrade, nascido na virada do século, morto em

1999, não foi criado pelo pai fazendeiro, e sim pela avó materna, mãe de sua

falecida mãe, em São João del Rey, e cuja situação financeira estava longe

de ser tão próspera quanto à do outro lado da família. Por isso, apesar da

fortuna do avô paterno, pode-se dizer que o ramo a que Marília pertencia era

apenas ascendente do ponto de vista financeiro. Daniel dos Santos Andrade,

seu pai, formou-se em economia e chegou à condição de gerente de bancos,

trabalhando pelo interior dos estados do Sudeste. Tal situação profissional

era bastante prestigiada na época, sendo os então gerentes de banco pessoas

reconhecidas sobretudo em pequenas sociedades do interior, nas quais

chegavam a ocupar posições de destaque na vida comunitária, como por

exemplo o cargo de “presidente do Rotary Club”, que Daniel de fato ocupou.

647

Depoimento de Marília de Andrade, colhido em 20/07/2003. O prénome do fotógrafo era Jair. 648

Idem. Nas palavras de Marília, a noiva de seu avô “trouxe de dote quase metade do Leblon”.

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323

Já casado, com Maria Mendonça, nascida entre 1917 e 1918, ele e sua

família viajavam pela estrada de ferro Mogiana, mudando-se de cidade para

cidade, a cada vez que uma nova agência bancária era aberta e necessitava

de alguém que planejasse e implementasse sua dinâmica de funcionamento.

Assim a família chegou a Campina Verde (MG), onde nasceu Marília, em 26

de março de 1945, uma de nove filhos. Seu pai era então gerente do Banco

Hipotecário Agrícola do estado. Dali foram para Franca, e de lá para Jaú,

então a serviço do Banco Sudameris.

Educada em colégios religiosos, Marília, na juventude, era uma moça

de saúde frágil, muito magra (beirando os vinte anos, pesava apenas 38 kg) e

com sérios problemas respiratórios. Seu temperamento, porém, era forte, e

seu apetite de vida, grande. Prova disso é a trajetória que percorreu nos anos

que antecederam seu primeiro contato com João Antônio. Ela deixara Jaú

pela primeira vez aos 17 anos, em 1962, “gentilmente deportada” pelos pais

devido a um indesejado namoro com um moço austríaco, e judeu, da cidade.

Foi abrigada então por uma irmã que morava em João Pessoa, na Paraíba,

casada com um grande fazendeiro do estado. No liceu em que foi

matriculada, Marília tomou parte nas iniciativas de alfabetização rural no

Nordeste (fazendo uso do método Paulo Freire de alfabetização e

conscientização política simultâneas), promovidas pelas Ligas Camponesas,

organização identificada como subversiva e de propósito revolucionário pelo

status quo político da época.649

Nos meses seguintes ao golpe de 64, as

atividades das Ligas começaram a ser reprimidas por toda a região. Diante

da possibilidade de ser presa e enviada ao arquipélago de Fernando de

Noronha, para onde iam todos os envolvidos, Marília confessou à irmã e ao

649

De fato, Francisco Julião, chefe das Ligas Camponesas, anunciava que “a vontade do povo prevalecerá,

com Congresso ou sem Congresso”. Gaspari, Elio: A Ditadura Envergonhada, Cia. das Letras, SP, 2002,

p.76.

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324

cunhado suas atividades clandestinas e retornou ao Sudeste, agora à capital

do estado de São Paulo, onde residiu por alguns meses com outra de suas

irmãs. Em seguida radicou-se no Rio, de modo a terminar os estudos e cursar

a faculdade. Morou então na casa da irmã Gema, e foi sustentada à distância

pelas mesadas do pai.650

Gema, por sua vez, cursava Letras Clássicas e era

afiliada à União Nacional dos Estudantes, instituição que vivia no período

seus dias de mais intensa atuação no cenário político nacional. Marília, por

sua vez, matriculou-se na Faculdade Nacional de Filosofia, no Centro, visto

não existir ainda faculdades especificamente voltadas para a profissão

jornalística, já na época sua meta profissional. Daí para o estágio na Tribuna

da Imprensa foi um pulo, e para a festa no iate Debret, uma coincidência

verrossímil.

Naquela noite, enquanto colhia dados sobre o evento, entrevistava os

convidados e os artistas do Rosa de Ouro, Marília, a jovem politicamente tão

ousada, pela primeira vez exagerou na bebida. Serviram-lhe, em suas

palavras, “aqueles coquetéis com guarda-chuvas dentro”.651

João Antônio,

desde adolescente um boêmio de carteirinha, também não se fez de rogado.

Afinal, a bebida era de graça. E o cenário, mais do que romântico. Ao final

da noite, ambos, mais o fotógrafo que fora acompanhando-a, entraram na

Kombi da Tribuna e dirigiram-se à redação. Lá, por instrução de João

Antônio, Marília redigiu um esboço de sua matéria, enquanto ele próprio

encarregou-se de fazer o copy-desk e dar forma ao texto final. O plano era

botar tudo nas mãos do editor do caderno e continuarem a noite em algum

“fecha-nunca” (numa expressão típica do escritor). Mas a bebida pegara a

ambos desprevenidos; e eles saíram, literalmente, rolando as escadas que

650

Quanto à mesada, ver a carta a ela endereçada por João Antônio, em 26/07/65 (a). 651

Depoimento de Marília de Andrade, colhido em 20/07/2003.

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325

levavam à portaria do edifício. Diante disso, cancelaram a esticada e João

Antônio decidiu levá-la à casa de sua irmã.652

Segundo Marília, após essa primeira noite João Antônio começou a

visitá-la na faculdade, insistindo em namorá-la. Encontrava-a na hora da

saída e acompanhava-a até a Tribuna. Segundo ele, ao contrário, o assédio

partira dela: “Nós nos conhecemos quase por acaso. Você deu de dar em

cima de mim daquela maneira que não vou recapitular. Dezessete

telefonemas. Acabou, num deles, me encontrando. Ainda uma vez, me

chamou. Depois fez o que fez e fizemos o que foi feito”. 653

Porém pouco importa de quem partiu a iniciativa e quem se apaixonou

primeiro; o fato que resiste é a intensidade dramática que esse amor ganharia

nos meses seguintes, até o casamento em 11 de dezembro daquele mesmo

ano de 1965.

Problemas no amor e no jornalismo

“Há muito, desde junho, que estou para lhe contar um caso extremo de

minha vida, Ilka. Estava, como se diz na sinuca, escondendo o leite. No meu

caso, não estava escondendo uma jogada futura, nem me esquivando de um

assunto grave. Estava era experimentando a intensidade e a permanência dos

sentimentos./ Quatro meses depois do surgimento, lhe falo, com algum

sentido mais claro sobre o que está se passando entre mim e Marília./ Este

nome aí, Marília, significa talvez a maior loucura de minha vida feita até

então. Uma loucura equilibrada a meu modo, e que me deixa à vontade para

652

Idem. 653

Carta a Marília de Andrade, de 29/07/65.

Page 326: João Antônio: Uma Biografia Literária

326

não ter que dar satisfações a ninguém. (...)/ Houve o amor, Ilka. Inesperado e

aguardado, não planificado e livre, rebelde e intenso, sem horários ou

alianças, imperturbável na sua forma anárquica, espontânea, natural.

Cresceu, tomou conta de Marília e de mim. Vivermos um longe do outro

vem se tornando impossível (o que é viver, afinal?). Uma coisa doída./ O

amor arrebentou, Ilka. Numa menina de vinte anos, disposta a muitas coisas,

com ou sem aliança. Tenho vivido de tudo com essa menina. Desde a beleza

dolorida e alegria funda até mágoa, ciúme, saudade. De qualquer forma,

Ilka, uma coisa da realidade se fez presente, de pronto, em minha vida. Eu

não sou mais um”.654

Em carta endereçada à própria Marília, vê-se que o desejo de ter perto

de si a mulher por quem estava apaixonado já deixara o nível do mero

discurso amoroso e estava mesmo sendo posto em prática: “Sim. O

apartamento será pequeno, como você diz. Será no Flamengo, eu sinto que

será./ Não quero lhe passar pormenores. Para quê?/ Já falei até com o

proprietário. Esta semana fecho o negócio que apenas está na dependência

do meu ordenado aqui no Jornal do Brasil que sairá ali pelo último dia deste

mês”.655

“Agora você está aí no Nordeste [para onde ela voltara, agora, que

se saiba, a passeio656

] e em São Paulo eu resolvo umas coisas relativas,

654

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/10/65. 655

Carta a Marília de Andrade, de 26/07/65 (b). 656

Idem, ibidem. Diz ele: “É um homem de pé quebrado que espera a volta da mulher amada que foi ao

Nordeste ver Brasil”. Mas, há, entretanto, várias demonstrações de que a viagem ao Nordeste tenha

ocorrido num momento de sofrimento; talvez pela rejeição de sua família ao “caso” consumado com o

escritor? Ou por culpa? As linhas de João Antônio, nesse aspecto, não são conclusivas: “Sinto um pouco de

pena de você. Além de tudo o que me confessa: ‘Não me conformo de ser mulher’. Repita isso

mentalmente a todo o instante. Às vezes tortura. Você aprenderá a ser mulher com o tempo e com o gosto.

Você se sente chocada diante de uma realidade nova, nunca provada. Natural. Você vem de uma criação

imprópria, sobre a qual nem preciso dizer nada. A sociedade em que vivemos, Marília, simplesmente anula

a mulher como ser autônomo. Uma menina de quatro anos já tem dentro de si, marcado firmemente, um

sentimento de pudor ao nu. Para não falar de outras crueldades medievais. (...) Você não tem preparo algum

para a vida sexual. Simplesmente porque não lhe ensinaram. Mas com o tempo você descobrirá que o sexo

é uma realidade bela e sadia”. Em carta a Marília de Andrade, de 26/07/65 (a).

Page 327: João Antônio: Uma Biografia Literária

327

especialmente, de forma direta ou indireta, ao apartamento que alugarei no

Rio. Provavelmente daqui a uns vinte dias, ou menos, estaremos juntos,

provando o paraíso e o inferno que é a vida passional.”657

Mas como se deu esse processo tão rápido entre o primeiro contato e a

decisão de morarem juntos? Tudo parece, à primeira vista, um tanto

repentino. As evidências indicam que, de fato, os dois namorados desejavam

experimentar uma vida em comum. O que não significa que fosse este desejo

mútuo a única origem do que viria a se tornar um casamento de véu, grinalda

e papel passado. O seguinte trecho de uma carta de João Antônio dá uma

pista das pressões exteriores que podem ter se levantado na ocasião: “Você

estava no Rio e no Rio uma mulher é um ser já, mais ou menos, autônomo.

Ora, a virgindade atrapalha uma mulher no Rio. Você mesma, através de um

mecanismo consciente ou inconsciente, buscou e perseguiu a sua liberação

de uma porção de bobagens. Eu fui apenas um veículo”.658

É de se perguntar se a liberalização dos costumes — que tornou os

anos 60 uma fase célebre da nossa história social recente —, da qual João

Antônio e Marília se beneficiaram no Rio de Janeiro, já havia chegado a Jaú,

ou mesmo a Presidente Altino... A súbita retirada de Marília da “cena do

crime”, primeiro com uma viagem ao Nordeste, depois com uma temporada

longa em Jaú, já nos preparativos para o casamento, dá a entender que entre

Ipanema e o interior de São Paulo existia mais que uma distância meramente

geográfica. Em resumo: a família de Marília exigiu o casamento, a

formalização da união com todas as etiquetas e figurinos a que,

supostamente, tinha direito.

657

Carta a Marília de Andrade, de 29/07/65. O apartamento foi alugado no mesmo prédio em que morava

Mário Peixoto, no Flamengo, o de número 808. 658

Idem, ibidem.

Page 328: João Antônio: Uma Biografia Literária

328

A partir daí, a paixão consumada entre ele e a jovem donzela de uma

família mineira tradicional, de reputação e posição numa cidade do interior

de São Paulo, deu origem a três níveis de dificuldade na vida do jovem

escritor. No primeiro nível, e apesar do desejo de morar junto com a

namorada, a exigência dos pais de Marília causou verdadeiro horror a João

Antônio, que mais de uma vez afirmou estarem as formalidades de praxe

corrompendo a pureza dos sentimentos entre eles. Novamente, ao deparar-se

com a iminência de virar um “cidadão respeitável”, João Antônio entrou em

crise consigo mesmo, como fizera ao abandonar seu posto de menino-

prodígio das letras em São Paulo. No segundo nível, a formalização da união

exigia dele e de sua família gastos; de seu lado, na montagem do

apartamento do casal, do lado deles, em roupas e na viagem até Jaú, onde

celebrar-se-ia a cerimônia. E exigir gastos da família era mais do que exigir

sacrifício financeiro, o que em si já não era pouco, era necessitar também da

aprovação do pai e da mãe. Mas havia o terceiro nível, talvez o mais

irremediável de todos: a já mencionada ciclotimia emocional de João

Antônio, que, até há pouco adormecida, foi despertada e potencializada pelas

pressões familiares e financeiras que se acumularam nos meses seguintes.

Na primeira carta em que algum problema de Marília com a família é

mencionado, as coisas já estão em péssimos termos. Ele escreve: “Por favor,

Marília, vamos dar uma forma menos radical no nosso caso. Olhe, é um

homem com vinte e oito anos que lhe fala. Você não pode, não deve e não

vai romper com os seus por causa disso que sente por mim. Por favor. Pense.

Considere. Eles são seus parentes, que ajudam o que podem você a viver,

você deixando-os ficará só tendo a mim. (...)/ Compreenda que eu quero

viver com você e nunca na condição de homem casado. Você mesma

conduziu as coisas para esta solução. Nós dois não acreditamos no contrato

Page 329: João Antônio: Uma Biografia Literária

329

de casamento. Mas não quero ver você apartada completamente dos seus

parentes. Eles também lhe querem bem, Marília. Apenas a querem de

maneira diferente, porque são frutos de outra mentalidade, anterior à nossa e

que serve a uma falsa tabela de valores morais, cívicos e humanos. (...)/

Você pode voltar ao Rio de Janeiro. Viver comigo. Mas não abandonar

inteiramente o convívio com Ester, com sua irmã, com sua tia no Leblon,

com seus pais. Seu pai não lhe manda um cheque todos os meses? Então

Marília, essa também é sua realidade”.659

Ainda tentando contemporizar, João Antônio chega a propor que ela

esconda dos pais sua relação com ele. Ou que façam uma cerimônia simples,

no Rio, e não em Jaú, conforme exigência da família dela. Mas nem com

toda sabedoria e generosidade ele deixa de expressar a força de seus juízos.

Ao pai, de quem diz ter gostado e enquanto pede a ela calma e esforço pelo

não-rompimento com a família, chama de “carrancudo e moralista”. Diz

ainda: “Não pise em sua família, eles querem bem a você, embora

aparentemente sejam antiquados, retrógrados, amantes irrestritos da ordem

social e do sagrado casamento etc...”.660

Há uma certa sabedoria e generosidade no que diz a ela, tentando

expor melhor, aos olhos da namorada, os motivos de seus pais. E deveria

haver também um certo medo de, após vê-la romper com a família, sentir-se

demasiadamente preso àquela relação. Afinal, era ele o mais experiente nas

questões amorosas. E é ele quem diz: “Mas eu quero lhe explicar o seguinte:

se amanhã ou depois eu lhe faltar, por quaisquer motivos, como será,

Marília? (...)/ Faça o que seu coração mandar e pedir. Eu não quero mandar

em você. Nunca. Mas veja que não se prejudique por causa do amor. O amor

659

Carta a Marília de Andrade, de 26/07/65 (a). 660

Idem, ibidem.

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330

(a realidade é uma só) é efêmero e é falível. Ele nasce, vive e morre. Como

todo o resto no mundo. E não há nada mais triste do que o amor quando

acaba”.661

Nessa mesma linha de raciocínio, ele se colocava em relação a ela na

condição de “abridor de caminhos”, mostrando-se aberto à possibilidade

dela um dia não mais desejá-lo: “Primeiro, a sua libertação de Jaú, de sua

família, do provincianismo gasto e incompreensão geral daí, num meio

social inteiramente ultrapassado no tempo e no espaço. Bestinha e metido a

importante, alto burguês, aristocrático etc. (...)/ Segundo, a sua libertação de

mim mesmo. Para viver a sua vida, que você há de construir de acordo com

as suas forças, gostos e interesses”.662

Mas o tom de suas cartas vai se modificando ao longo das semanas;

ou melhor, se deteriorando. Primeiro em relação à família dela: “Sou franco

e digo o que sinto. Sem peias na língua. Gostei muito de seu pai e não gostei

de sua mãe. Sua mãe é protocolar, metida a aristocrata e matriarca. Não

gosto disso. Dia mais, dia menos, é ela capaz de aparecer aqui no Rio, para

fiscalizar as condições do apartamento em que nós iremos viver. E vai

encontrar um milhão de defeitos. Nesses comentários, a senhora sua mãe vai

encontrar um interlocutor firme, que sou eu. E que não demorarei muito em

abrir a porta do apartamento e lhe dizer calmamente: ‘Ponha-se daqui para

fora. E vá reclamar com o Papa.’ E fim”.663

“Sua mãe se assusta à toa. Desde

que não lhe digam coisas cristãs, bem comportadas, protocolares e formais.

Desde que se finja, para ela o fingidor vira ‘pessoa decente’. É uma

prisioneira do bom comportamento. Meus pêsames!”664

661

Idem, ibidem. 662

Idem, ibidem. 663

Idem, de 13/09/65. 664

Idem, de 23/09/65.

Page 331: João Antônio: Uma Biografia Literária

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Em outra oportunidade, com Marília já “alocada” em Jaú, ao lado dos

pais, para cuidar da cerimônia de casamento, ele escreve: “Segue a certidão

de nascimento. Assim, sua mãe sossega o espírito. E seu pai também. Fico

mais amarrado. [grifo dele] (...)/ Não, dificilmente irei a Jaú antes do

casamento./ Não quero adiantar uma nova experiência de minha vida que ou

me proporcionará rir de uma multidão inteira ou quebrará toda a minha

vida”.665

Porém, por maior que fosse sua revolta contra a pressão dos pais da

namorada, que se refletia, sobretudo, na atitude geral em relação ao

casamento que se aproximava, bem como nas coisas que escrevia à noiva, e

que transpiravam para as famílias de ambos os lados, João Antônio cede nos

pontos e momentos chaves — além, é claro, da capitulação fundamental que

fora aceitar o casamento nos termos exigidos. Embora tenha dito que não

iria, ele foi sim a Jaú antes do casamento, quem sabe para a troca das

alianças de noivado. Foi e se comportou: “Seu pai se engana comigo. Eu

representei em Jaú. Apenas um ator em Jaú. Eu não sou aquilo e você sabe

muito bem”.666

“A aliança no seu dedo é um símbolo e é mais do que isto. É a

realidade. Agora, você é uma mulher que tem um homem que se preocupa

por você. As suas amigas já sabem que você é uma mulher que tem um

homem e ele é seu protetor. Se soubessem que sou seu amante, ficariam

inteiramente boquiabertas, invejosas, mas diriam:

— São dois indecentes!

Entretanto, como entrou uma merda de aliança na história, sua mãe, e

as amigas de sua mãe, falarão que sou um moço decente./ Como se isso

665

Idem, de 20/09/65. 666

Idem, de 23/09/65.

Page 332: João Antônio: Uma Biografia Literária

332

estivesse me interessando.../ Para certos homens, a vida é para ser vivida.

Para pessoas bem comportadas, a vida é para ser obedecida”.667

Mas não apenas em Jaú ele estava cercado pela rede familiar de

Marília. Era a partir do Leblon, da casa da tia da noiva, que ele conseguia,

ou preferia (tendo em vista o custo das ligações de longa distância?), se

comunicar com Marília: “Venho chegando do Leblon, são meia-noite e meia

e me vejo diante do papel para mais uma carta inútil, após uma noite inútil

em que aturei a fala de sua tia, os gritos dos netos de sua tia, as esperas de

dois interurbanos para Jaú, a fala com seu pai e a fala com você”.668

Marília também era vítima disso tudo, ele sabia, admitindo que não

merecia ser culpada pelo que estava acontecendo: “Compreendo agora, uma

porção de coisas de sua vida aí em Jaú. Tenha um pouquinho mais da muita

paciência que você já tem tido. Com a cidade, com os mexericos, com as

fiscalizações e com sua família inteiramente ultrapassada. Confie num futuro

mais liberto, em que você poderá se comandar por você mesma, sem peias

ou facismos cristãos”.669

Os convites da lista do noivo atrasam, os pedidos para que ele sonde o

mercado de sapatos e bolsas femininos no Rio o irritam, a convivência com

os familiares do Leblon também — “Uma merda. Sua tia é uma chata. Gema

é uma criatura aproveitável. Seus sobrinhos são mal criados e andam

precisando muito de levar pancada para deixarem de ser bestas com os mais

velhos e desconhecidos”.670

Como se vê, a história de João e Marília é

curiosa e paradoxal. Eles casaram obrigados e se amando ao mesmo tempo.

667

Idem, ibidem. 668

Idem, de 19/11/65. 669

Idem, de 29/11/65. 670

Idem, ibidem.

Page 333: João Antônio: Uma Biografia Literária

333

O segundo nível de problemas que o casamento criou para João

Antônio, como dissemos, dizia respeito ao dinheiro e a sua própria família.

O escritor, apesar do emprego no Jornal do Brasil, que lhe dava algum

prestígio e uma certa projeção no meio cultural, e apesar de ser solteiro,

vivia sem nenhuma folga, ainda abrigado na sala do apartamento de Mário

Peixoto. “Eu não ganho tanto dinheiro assim como talvez possa aparentar.

Vou precisar fazer outras coisas e inclusive para pagar as dívidas que

fatalmente farei”671

, ele avisa à namorada.

Ele de fato sabia o que o esperava. De saída, precisou alugar o

apartamento em que moraria os primeiros anos de casado, e mobiliá-lo. A

cada passo, uma despesa acima de suas posses. “Estou ajeitando

apartamento, levantando dinheiros que não tenho, metendo-me em

complicações e dívidas. (...) João Antônio arruma o que tem e o que não

tem, dá quinhentos mil cruzeiros de depósito de aluguel de um apartamento

na Rua São Salvador, 30, ap.808. Mete-se numa dívida de mais de um

milhão com móveis.”672

“Tenho de levantar mais dinheiro, caso contrário,

com esse negócio de alugar apartamento, minha situação ficará negra no

Rio.”673

Uma das formas que encontra de obter dinheiros extras é voltar a falar

com os sócios do único negócio que tentara abrir antes de sair de São Paulo

da primeira vez, uma agência de publicidade: “Escrevo-lhe no papel desta

que, um dia, em São Paulo foi a minha agência de publicidade, dividida com

mais dois outros sócios. Um, excelente amigo, um dos poucos homens que

conheci, além de seu talento de pintor é ótimo profissional de desenho

publicitário. Outro, um infeliz dominado pela família rica, da qual jamais

671

Idem, de 26/07/65 (a). 672

Idem, de 26/07/65 (b). 673

Idem, de 30/07/65.

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334

passou da condição de mero apêndice. (...) chego finalmente à última

solução diante da sociedade que mantive durante dez meses de 1964. E a

custo arranquei minha derradeira vitória suada: um cheque de CR$

85.000,00, que me era devido desde os idos de janeiro./ Por aí você poderá

sentir o bem que lhe quero e a luta que desenvolvo em torno a todas as

fontes de minha vida, para que você chegue ao Rio de Janeiro e encontre um

apartamento em ordem para nele ficar se quiser. Ou não ficar — depende de

você”.674

Mas às dificuldades financeiras misturavam-se as dificuldades de

obter o consentimento da própria família, criando um imbróglio pessoal

complicado para o escritor. Naquela época, os Ferreira viviam novamente no

distrito de Osasco onde fizeram base, mas com extrema dificuldade: “(...)

minha presença em Presidente Altino tinha um objetivo antes de quaisquer

outras coisas: noticiar meu possível casamento em Jaú. Meu pai, onírico,

otimista, acreditando (apesar dos anos) numa porção de bobagens sem maior

sentido — constituição de família etc. (...)/ Minha mãe expressou-se mais

dentro da realidade. E essa, Marília, é sempre de doer na pele e na alma. Não

há dúvida de que esse casamento agora é o maior dos problemas que levo

para o seio de minha família nestes últimos dez anos. A situação, em casa,

embora ninguém esteja passando fome, todos estejam firmes (exceto minha

avó Nair, que anda doente, e seriamente) e otimistas, é das mais apertadas.

Será motivo de um grande sacrifício para todos as decorrências do meu

casamento. Não, não que as dificuldades decorram de presentes que vão me

dar, grandes gastos etc. Eles, mesmo que quisessem, não me poderiam dar

presente algum. O simples fato de comprarem roupas para irem a Jaú, isto já

é um grande problema para todos em casa. (...) Meu pai falou em vender o

674

Idem, de 31/07/65.

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335

seu caminhão para fazer uma presença para o meu casamento. A esta altura

nós dois quase brigamos. Mamãe me confessou claramente as duras

dificuldades que todos atravessam lá”.675

A mãe de João Antônio havia conhecido Marília por ocasião de uma

ida da jovem a São Paulo, na qual o escritor fê-la entregar um pacote para a

futura sogra, sem entretanto identificá-la como futura nora. Após a notícia

do possível casamento, a mãe do escritor expõe suas impressões sobre a

jovem Marília e sobre o projeto do casamento em si: “Mamãe gostou do

jeito seu, mas acha o seguinte:/ 1) Nosso casamento é por demais apressado./

2) Ela e meu pai não podem admitir que seus pais gastem todo o dinheiro

sozinhos. Querem dividir, meio a meio, as despesas./ 3) Achou você muito

fraca e nutrida inconvenientemente, além de lhe parecer que você, em três

meses [prazo até o casamento] não mudará muito. Ademais, acha

simplesmente que eu devo procurar, além de um segundo, um terceiro

emprego, pois parece-lhe que não vai dar: você é uma criatura doente e

sempre haverá fortes despesas com farmácia, médico etc./ 4) Se nós

casássemos aqui mesmo no Rio de Janeiro, em cerimônia simples, sem

nove-horas, seria muitíssimo melhor. Para nós dois. (Veja a que ponto vai a

lucidez e a objetividade de mamãe) ”.676

Como se vê, a dificuldades financeiras da família dificultam a

obtenção de uma aprovação consensual do casamento, sendo a mãe a

principal porta-voz das forças de resistência. Em uma carta, João Antônio

cita a mãe: “Meu filho, não tem nada que eu não gostasse na Marilda

(mamãe troca o seu nome de Marília para Marilda [que típico!]) mas acho

que você está tomando uma decisão muito rápida. Pode fazer o pedido ao pai

675

Idem, de 13/09/65. 676

Idem, ibidem.

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336

dela, mas pense um pouco mais. (...) Eu melhor que ninguém sei as

dificuldades que acabam vindo, logo com os encantos cor de rosa. Não

misture a pureza com o amor”.677

E João Antônio é franco com os pais, sem esconder as verdadeiras

circunstâncias por trás do casamento: “Falei, quando estive a última vez em

São Paulo, declaradamente a meu pai e a minha mãe, que nem eu e nem

você queríamos casar. Que por nossa vontade já estaríamos vivendo juntos e

fim. As famílias que fossem lamber sabão. Um sabão medieval,

ultrapassado, fedorento e cheio de mofo de séculos. Meu pai abaixou os

olhos e minha mãe ficou olhando a toalha de plástico que cobria a mesa da

sala de jantar”.678

Logo, infelizmente, as preocupações práticas da mãe começaram a

ganhar um sentido urgente e impiedoso. A situação econômica do país, e a

dele, pareciam piorar também, agravando as preocupações do noivo

relutante: “(...) o custo de vida vai aumentar e o João Antônio, este infeliz

que lhe escreve, não poderá aguentar o tranco aumentista”.679

Ele diz que sua

capacidade financeira já está exaurida: “O apartamento vai como você o

deixou. Nem mais coisas, nem menos coisas. Resolvi não comprar mais

nada: o meu orçamento já está suficientemente tenso com o que tenho de

pagar: aluguel, prestações destes móveis e da máquina de escrever. Preciso

viver na realidade e não posso me enfiar com novos compromissos, que

acabariam me comendo por uma perna. É. Quando arrumar outro emprego,

com entradas fixas de mais dinheiro, verei o negócio da compra da geladeira

e da estante de livros”.680

677

Idem, de 15/09/65. 678

Idem, de 27/09/65. 679

Idem, de 15/09/65. 680

Idem, de 21/09/65.

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Quanto mais apertada sua situação, mais ressentida sua atitude para os

pais dela e os seus próprios: “Cheguei de viagem e já comecei a verificar as

coisas. Estou me transformando em máquina de fazer dinheiro. Ou melhor:

dinheirinho (que o que tenho arranjado nos últimos meses não merece

classificação mais digna). O entusiasmo de meus pais e dos seus diante do

nosso casamento é um misto grotesco de ingenuidade, otimismo tôlo e

vaidade aos montes. São casamenteiros por convicção e estão cegos

completamente”.681

Entre a aprovação das famílias e o aumento insuportável das despesas,

a situação realmente se complicou. Um panorama, de próprio punho: “Mário

Peixoto prometeu-me arranjar uns quarenta mil cruzeiros para que eu

complete o total do pagamento do aluguel deste apartamento. Afinal, vou-

lhe passar o raio-x da situação presente do João Antônio: estamos no dia 9

de novembro e ele ainda não pagou o mês de outubro; pagando o

apartamento, além de ficar inteiramente sem dinheiro, fica também devendo

uns quarenta ou cinquenta mil cruzeiros. Que, por coincidência, também não

tenho. Hoje já dei um pulo na revista Reunião e tive a notícia de que tudo

está parado. (...) Se eu não conseguir vender a Erika portátil [sua máquina de

escrever nova, comprada para escrever “Paulinho Perna Torta”] até o dia 20

de novembro estarei estrepadinho. E para comer até lá. Não sei não. Alguém

ou alguns terão de me emprestar dinheiro. O que significa dizer que em

começando o mês de dezembro, eu já começo durinho. Durinho”.682

A ânsia por dinheiro, as necessidades prementes que o projeto

conjugal lhe colocava, fizeram com que João Antônio revelasse sua extrema

681

Idem, de 09/11/65. 682

Idem, ibidem. A revista Reunião vinculava-se à editora Civilização Brasileira, e também era dirigida por

Ênio Silveira. Mas João Antônio nunca receberia por esse trabalho. A revista fechou exatamente nessa

época.

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338

preocupação com seu sustento, a qual para muitos manifestava-se em suas

tendências “pão-duristas”: “O maior problema da minha vida, Marília, já foi

amoroso um dia, hoje não é mais. O meu maior problema é econômico. E é

o meu problema fundamental. Todo o resto é simples acessório. (...)/ Este

mês estou com um rombo de 150 mil Cr$ a 200 mil Cr$. Ora, eu sou um

homem que não precisa de amor, preciso de dinheiro. (...)/ Minha vida teve

várias fases. A do amor, a da criação, a da profissão. Hoje eu atingi a fase de

mim mesmo, isto é, a preocupação com o fundamental. E o fundamental,

Marília, como eu o entendo, não é prêmio literário, não é mulher amada, não

é lugar especial dentro de uma equipe especial de profissionais. O

fundamental é a conta bancária. E só”.683

“Não falarei dos outros ângulos do problema, porque eles não me

estão interessando: amor, solidão, futuro etc. Porque: amor já passou na

minha idade mental e o amor não resolve nada economicamente.”684

Entre mil dívidas, João Antônio não tem dinheiro sequer para comer

mais do que uma vez por dia,685

que dirá para comprar o terno do casamento.

Seu desespero é concebido na incompatibilidade entre sua renda e seus

projetos, entre sua revolta e as convenções sociais, enfim, entre sua vida

atual e a promessa de uma nova inserção na sociedade, agora como homem

casado e dono de responsabilidades. Aprovação familiar e dinheiro se

misturam num só problema, pois aquela era necessária, e consumar a união

no modelo das famílias exigia um dinheiro que nem ele nem ela tinham.

Ele diz: “E se as duas famílias pobres e metidas a besta querem

ostentar uma situação pequeno burguesa que não têm, através de casamento

683

Idem, de 13/11/65. 684

Idem, de 19/11/65. 685

Idem, de 21/11/65.

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paramentado, na igreja, nos trajes e nas fotografias, azar dessas duas

famílias”.686

Mas, na prática, a pressão das famílias venceu suas resistências.

Chega-se, então, ao terceiro nível dos problemas enfrentados pelo

escritor em relação ao casamento que lhe estava sendo imposto: suas

instabilidades pessoais. Ao longo dos meses que separaram a consumação do

amor com Marília e o casamento, João Antônio foi atacado por todas as

oscilações repentinas de humor possíveis e imagináveis, como quando ainda

em São Paulo, ainda “de menor”, ainda não um repórter-especial de jornal

importante. Insurgia-se contra as pressões, tivessem elas responsáveis

diretos ou não, muitas vezes com violência, agredindo a quem estava do

lado, inclusive à noiva, para depois cair em depressão e se acusar

amargamente.

É notável o contraste entre seus bons e maus momentos. Naqueles, as

cartas mostram-no carinhoso para com Marília, chamando-a de

“Gelsomina”, em referência à personagem de Federico Fellini687

, ícone da

pureza, e preocupado com o bem-estar dela, infeliz com sua ausência,

fazendo-lhe declarações de amor a sua maneira. Como esta: “Assim

assustado diante da precariedade dos homens sobre a terra, eu pergunto

insistentemente onde anda você, Marília? O que tem comido, bebido, feito,

encontrado? Se ainda sente dores? Se já me esqueceu? Se eu sou substituível

na sua vida? E principalmente gostaria de saber qual o papel verdadeiro que

represento na sua vida além do encantamento, dos beijos, das duas noites de

amor naquele hotel da Praça José de Alencar? Como eu gostaria de tê-la aqui

para não dormir sozinho e para não ruminar certas dúvidas de homem

686

Idem, ibidem. 687

Gelsomina é a atriz mambembe, entre a pureza absoluta e a inteligência limítrofe, do filme La Strada, de

1954.

Page 340: João Antônio: Uma Biografia Literária

340

sozinho!”.688

Ele vai ainda mais longe, dizendo: “Você me faz falta o tempo

todo. Durante a noite a sua falta aumenta. De manhã é ruim amanhecer só na

cama. Para dizer tudo: até o banho sem você é ruim”.689

Ao longo dos meses em que ficaram separados em 1965, muito

amorosamente, algumas vezes ele explicita sua preocupação com a saúde da

namorada. Além disso, comentando a difícil condição da mulher na

sociedade, e de Marília na vida, ele parece prometer que com ele seria

diferente: “Quero ajudar você. E quero que você me ajude a ajudá-la — é

inteligente e sobretudo, a seu favor, tem a vantagem de uma índole muito

boa. Eu sou seu amigo, não se esqueça. Mesmo que você se encante de outro

homem aí no Nordeste ou no Rio ou onde for, eu sou seu amigo. Não se

esqueça disso. Não vou abandonar você como se fosse uma camisa já usada

e rota. Eu lhe quero bem, não se esqueça. Quero-lhe como mulher, como

fêmea e como amiga. Eu lhe quero bem como as pessoas a quem quero bem.

Isto é, como aquelas criaturas cujas coisas, acontecimentos, dores, alegrias,

esperanças, anseios, lutas, mexem com as minhas entranhas. E me dói que

minha mãe sofra, que meu pai, meu irmão, minha avó-madrinha. Porque eu

os amo e os quero bem. Sabe? É assim com você também. Como se você

fosse carne minha e se tocam em você, em mim também me tocam. É assim

mesmo e não é um fingimento ou um galanteio ou um agrado que eu lhe

esteja querendo fazer através de uma carta. Eu não minto para você. Porque

respeito suas coisas e quero você, como você é”.690

Ele que, antes de encontrá-la, dizia-se “pan-sexual”691

, agora faz juras

de fidelidade: “E isto tudo, Gelsomina, é para que você não pense que ando

688

Carta a Marília de Andrade, de 16/07/65. 689

Idem, de 26/07/65. 690

Idem, ibidem. 691

Idem, ibidem.

Page 341: João Antônio: Uma Biografia Literária

341

vagabundeando à toa por aqui, em São Paulo [onde fora visitar a família]./

Aqui ainda teria, se quisesse, minhas mulheres. Porque aqui em São Paulo

eu fui muito jovem um dia e já tinha alguma fama, afinal ganhei meia dúzia

de prêmios literários aqui e até um jornal (Última Hora) chegou a dar o meu

retrato em primeira página. (...) Mas lhe escrevo para lhe confessar que não

procurei nenhuma das duas ou três mulheres que foram minhas amantes em

São Paulo e que, não tenho dúvidas em lhe afirmar, bem que aceitariam a

minha volta. E seria intenso renovar o ato de dormir uma nova noite com

qualquer uma delas. No entanto, vou dormir só./ Estou me guardando para

você”.692

E pede-lhe que volte do Nordeste: “Hoje a minha saudade lhe manda

um beijo. E que você me apareça logo aqui, o mais rápido possível que já

estou cheio de solidão. Nem que seja para ficar só uns dias”.693

E novamente, enquanto tenta impedi-la de romper com os pais, e ao

admitir suas carências, seu tom é de extremo carinho e devoção: “Eu não

estou querendo ‘tirar o corpo fora’. Seria um absurdo, já que a quero aqui,

perto de mim, que você me ajuda a viver e a lutar”.694

Ele, sem rodeios, admite estar totalmente apaixonado:

“Espiritualmente estou vivendo de uma sensação que há muito não sentia.

Há anos não sentia. É algo tão inexplicável que não adianta lhe escrever nem

apenas uma linha. É algo imponderável, fatal, totalizante. Creio que apenas

sinto a tal impressão sensorial de tempos em tempos e que, no fundo, é uma

marca de meu amadurecimento. Inútil lhe explicar. Posso lhe garantir que a

maioria dos homens chama a isto de estado de graça”.695

692

Idem, de 31/07/65. 693

Idem, de 27/09/65. 694

Idem, de 27/07/65. 695

Idem, de 20/09/65.

Page 342: João Antônio: Uma Biografia Literária

342

Mas, considerando-se o quadro psicológico de João Antônio já

esboçado até aqui, e imaginando-o submetido às pressões que se

acumulavam sobre ele, sociais, comportamentais, familiares e financeiras, e

a forma com que reagia à iminência de integrar o chamado “rol dos homens

casados”, pode-se imaginar que esse sentimento amoroso, embora puro, não

fosse estável e sofresse os efeitos da insurreição interior de que o escritor era

volta e meia acometido. A regra geral do amor, com sua alternância entre

sentimento de posse e de entrega, entre regozijo de dominação, alegre

submissão e revolta libertadora, manifestava-se em João Antônio — como

quase tudo, aliás — de forma exacerbada. Nessa fase, carinho e

agressividade alternam-se em quase todas as cartas endereçadas a Marília,

até que o conteúdo das cartas fica realmente duro e dilacerado. E, como se

verá, esse mal-estar estende-se gradativamente a todas as áreas de sua vida.

De início, retaliando a demora dela em escrever-lhe, ameaça a

namorada com seu passado de homem livre, “pan-sexual”: “E faz hoje uma

semana que você partiu. Eu tenho para você, uma notícia nada boa. Após

uma semana de sua partida, ainda não recebi uma só linha sua. Acontece...

Bem. ‘Acontece que tudo nesta vida acontece’, como diz o samba do

Cartola, com trinta anos de janela. Olhe aí, se você arranja outro motivo de

silêncio, qual seja, a distância, o correio, ou sei lá, não sei não. Bem, você

corre o risco de uma substituição./ Portanto, Marília, Gelsomina, duas

criaturas numa só, no caso de uma substituição, não fico obrigado a suportar

lamúrias. Sendo um monógamo circunstancial, de acordo com a simples

obediência a um impulso naturalíssimo e normalíssimo de minha natureza,

Page 343: João Antônio: Uma Biografia Literária

343

posso me tornar, ou retornar a um estado de poligamia. E você sabe muito

bem que costumo levar as coisas até suas últimas conseqüências”.696

É verdade, ele reconhece o fato de que ela também poderia traí-lo:

“Igual risco, estou correndo, dia a dia aí no Nordeste. E nem sei se você me

volta”.697

Mas no fundo não sente ser o risco igual, imaginando-se, ou talvez

de fato sendo, muito mais experiente que a namorada.

Afora as interferências familiares, num território exclusivo dos dois

namorados, noivos à força, fica evidente que os trunfos de cada um eram, do

lado de João Antônio, a experiência de quem já se aventurara, adolescente,

no meio em que se havia criado, e oito anos mais velho, para não falar do

emprego reluzente, ainda que pouco sonante, de repórter-especial; e, da parte

de Marília, a pureza e as delícias da juventude, que desarmavam o auto-

entitulado “homem do mundo”, e a força das atitudes que a jovem era capaz

de ter, sua coragem.

Para além do enfrentamento amoroso mais típico, João Antônio é não

raro francamente pessimista em relação a seu futuro juntos. Algumas vezes,

deprecia-se aos olhos dela: “Eu podia e devia esquecer você. É errado me

unir a você. Errado para mim e para você. Nós vamos passar dificuldades

juntos. Eu não ganho tanto dinheiro assim como possa talvez aparentar. (...)

Nunca poderei iludir você. Sou um temperamental, ranzinza, e até mesmo

cínico, às vêzes. Tenho a mania de arrostar certas coisas sacrossantas ou

tidas como. Sexualmente sou exigente, não admito nenhuma restrição”.698

“Marília, não adianta nada eu lhe falar claramente, rasgadamente,

abrindo-lhe o monte de defeitos que tenho e as minhas impossibilidades de

modificação de meu comportamento. Não adianta nada. Você não muda de

696

Idem, de 17/07/65. 697

Idem, ibidem. 698

Idem, de 26/07/65.

Page 344: João Antônio: Uma Biografia Literária

344

sentimentos em relação a mim. E eu, embora saiba que estou e estamos

fazendo uma besteira de quatrocentos cavalos [casando-se], tenho um

sentimento líquido: é doloroso estar neste apartamento sem você. (...) Eu lhe

quero bem e lhe digo, carta após carta, que você deveria repensar e arranjar

marido endinheirado. Seria melhor para você. Para mim. Para ambos. (...) Se

lhe digo que você deveria arranjar outro tipo de companheiro, naturalmente,

lhe indico uma solução diferente e mais cômoda para a sua vida. Mas se

você quer viver mal, o azar é de nós dois mesmos. Paciência. Você quer se

sacrificar, você quer viver com alguém de quem gosta. Você não quer se

prostituir. Você quer servir aos seus sonhos. Eu respeito isso tudo, Marília.

E, e o que mais? Meus pêsames!”699

Outras vezes, ainda depreciando-se, mas pela via contrária, dizia ser

ingênuo demais, uma vítima da sedução feminina, e chegou mesmo a

maldizer a noite em que a encontrou: “Afinal, eu não passo mesmo de um

sem-vergonha muito grande, que não aprende a viver nunca. Um

sentimentalão sem tamanho, um caso de otário sem remissão. Fique

tranqüila, menina. Este aqui, o João Antônio, só pode fazer mal a uma

pessoa no mundo. É a ele mesmo. (...)/ Deu azar indo a um iate chamado

Debret. Foi ver Rosa de Ouro no mar e caiu do burro. Serelepou você aí,

Marília-Gelsomina, na vida deste. Tempo de azar. Onda grossa. Quinze

telefonemas me procurando. (...)/ Ele sabe que está errado, que tudo está

errado, que está topando com uma pedra, e vai se estrepar todo.”700

Vale pensar na seguinte hipótese: para ele, que se dizia um homem

experiente, que vagloriava-se de conhecer e dominar o amor das putas da

Boca-do-Lixo, julgar-se “fisgado” por uma jovem donzela oito anos mais

699

Idem, de 01/10/65. 700

Idem, de 26/07/65.

Page 345: João Antônio: Uma Biografia Literária

345

jovem e de família tradicional era um humilhação pessoal considerável.

Talvez isso estivesse latente nos pedidos da mãe para que ele reconsiderasse

sua decisão de casar. Caso isso seja verdade, tal recriminação haveria de

latejar doloridamente em sua cabeça a cada dívida que contraía em função

do casamento.

Muitas vezes ele prevê o rompimento da relação partindo dela, o que

não deixa de ser uma forma de continuar depreciando-se, para em seguida,

como síntese de todas as suas reflexões sobre a condição amorosa, tratar o

fim do amor como algo que independe das intensões e das características de

duas pessoas: “Você, pela minha mão e pela sua mão, conhecerá a

intensidade do amor e seus êxtases. Através dele, se libertará de todo o medo

de viver, de toda angústia, de quaisquer pequenas dores. Há de se acordar

cantando em muitas manhãs porque foi amada e amou durante a noite. O

amor é descarga e especialmente é escape. Uma vez descarregadas as

criaturas tornam-se leves-leves. E calmas. Bem. Você gozará bastante o

amor que eu tiver para lhe dar, Gelsomina. Um dia, você se encantará de um

homem mais completo e mais conveniente do que eu. Eu serei um capítulo

passado. Assim é na vida. E desde já estou preparado. Assim é./ Você, lendo

isto que lhe escrevo, há de dizer com exclamações:/ — Não, não, nada disso!

Isso nunca acontecerá!/ E eu lhe respondo que nada, absolutamente nada é

eterno em termos humanos. e muito menos no amor. (...) Estejamos

preparados, Marília. E tenhamos, desde agora, a suficiente dignidade para

nos respeitarmos e quando o fim chegar, que chegue claro, sem subterfúgios

ou conversas moles, sem ciúme e sem queixa./ E enquanto o fim não chegar,

vivamos! Que já perdemos muito tempo com sua viagem ao Nordeste e com

Page 346: João Antônio: Uma Biografia Literária

346

minha viagem ao fundo das coisas./ Tchau! A cama é de solteiro e vou

dormir só”.701

Coroando funestamente todos essas hesitações, pessimismos e mau-

augúrios, a faceta mais difícil do ainda jovem João Antônio era, como ele

mesmo dizia, um certo cinismo. A revolta contra as pressões das

circunstâncias transformava-se em agressividade, que se antes já atingira aos

pais de Marília, e depois aos seus pais, agora voltava-se contra a própria

noiva Já com os preparativos para a união em andamento, ele lhe passa frias

instruções, e com tal dureza que há de se imaginar o efeito em Marília do

que o noivo era capaz de lhe dizer. Ele não apenas exigia que ela aprendesse

a gastar melhor o dinheiro, que aprendesse a escolher melhor os utensílios de

casa, mas também que lhe enviasse de Jaú mercadorias que pudesse vender

no Rio, e, por fim, que se responsabilizasse por operações mais arriscadas,

que envolviam, por intermédio do pai, sem dúvida, a obtenção de créditos e

a abertura de financiamentos a longo prazo: “Mas o lado prático das coisas é

o seguinte, e que você, estando todo esse tempo aí em Jaú, deve começar a

providenciar imediatamente:

1) Aprender a comprar coisas, que você não sabe comprar nada.

Comprou um tapete que é uma imunda porcaria, toalhas que são umas belas

inutilidades e uma colcha de cama que já está se desfiando toda. Como

compradora, seu fracasso até então é um dos mais legítimos de que já tenho

notícia. A deduzir pelo que você comprou para este apartamento, estou

falido desde já.

2) A situação econômica brasileira está prestes a começar a piorar

vertiginosamente. (...) Portanto, dona Marília, trate da saúde o mais que você

701

Idem, de 29/07/65.

Page 347: João Antônio: Uma Biografia Literária

347

puder e de descansar também. Quando você chegar vai precisar trabalhar

imediatamente. Caso contrário, nós dois ficaremos falando sozinhos. (...)

3) Aprenda a cozinhar, lavar, tratar de uma casa etc. Você não entende

nada disso e não terei dinheiro para a empregada. Estando sozinho, eu

mesmo me viro. Veja lá, o que é que você vai me aprontar.

4) Arrume a maior quantidade de cabelo que você puder aí em Jaú e

redondezas. Preciso de muito cabelo para o José. Procure entre os pobres,

que têm filhas menores cheias de tranças. Preciso de cabelo. Compre ou

arrume a maior quantidade possível.

5) Duas outras coisas que você pode providenciar aí: um jeito de

financiamento do apartamento próprio e de um automóvel. Lembro-me de

que seu pai me falou num plano para automóvel que se faz aí em Jaú.

Procure entrar num deles e tire o carro em seu nome, sei lá. Aprenda a dirigir

um auto e tire a carta, que isto é muitíssimo importante e você terá aí em

Jaú, uma maneira útil de aproveitamento de tempo.

Não sei não, Marília. Você não me conhece bem, não. Só me conhece

enternecido etc. Em todo caso, acho muito bom você providenciar as coisas

aí acima e não me aparecer no Rio sem elas./ Caso contrário, não viveremos

juntos nem uma semana”.

E ele ainda termina com o amantíssimo PS: “Veja móveis antigos aí

em Jaú e redondezas. Móveis e não penduricalhos inúteis”.702

702

Idem, de 15/09/65. Aparentemente, ele pede que ela arranje em Jaú, muitas vezes por intermédio da

família, artigos que pudesse vender no Rio. Só isso explica o pedido de cabelo aqui mencionado. Novos

exemplos disso aparecerão a seguir. Em outra carta a Marília, de 20/09/65, ele volta ao tema da

racionalização das compras: “O tapete que você comprou e a colcha desfiam. A vassoura de pêlos continua

a deslocar o cabo, o filtro também encrencou e vaza água, necessário que eu vá reclamar. Tudo errado.

Você, além de péssima compradora é também azarada. Dá um azar dos capetas. Não se amofine, todavia,

por causa disso. Napoleão, Machado de Assis e Dostoiévski eram epiléticos. E nem por isso deixaram de

ser geniais”. Ele, numa terceira carta a Marília, de 23/09/65, pede-lhe inclusive que explore a sabedoria e o

impulso consumista da própria mãe: “(Mas já que ela [a futura sogra] é uma compradora por vocação, não

se esqueça de que o apartamento do João Antônio está pelado como o seu ocupante quando nasceu. Precisa

de mesa, cadeira, geladeira, estante, cortinas, tapetes e o resto todo)”.

Page 348: João Antônio: Uma Biografia Literária

348

Em outra carta, o tom é semelhante: “Mas isso já é outra história e

você é tão infantil que talvez me responda qualquer coisa mais ou menos

assim: ‘Mas um canalha também ama’. Influência do cinema, da literatura e

de outras inspirações importadas./ Voltando aos assuntos práticos:

1) envie os convites (...)

2) Vá despachando coisas de Jaú. Se o número ou quantidade de

coisas for muito grande como será depois?

3) Reestude com seu pai essa cooperativa onde se compram carros.

Veja a marca e as condições de pagamento e entrada etc. Talvez eu me meta

numa coisa assim para arranjar dinheiro com a venda do carro. Verifique.

4) Não se esqueça que uísque é dinheiro em caixa, desde que seja

escocês autêntico. Havendo algum dando sopa por aí, vá mandando já. É

muito fácil colocá-lo em qualquer cidade civilizada do mundo, até no Rio de

Janeiro.

5) Veja se consegue reaver as jóias suas emprestadas (ou dadas?) à

sua mãe. Jóia não é dinheiro em caixa, mas ajuda. (...)”.703

Essa alternância de humores e disposições em relação ao casamento,

acontecimento central de sua vida no ano de 65, prejudicou seriamente seus

sentimentos em relação à noiva. Às vésreas da data marcada para as uniões

religiosa e civil, seu estado de espírito era o pior possível. “Não haverá

dúvida nenhuma de que estou vivendo uma das temporadas mais aziagas de

minha vida, esta do pré-casamento ou algo que o valha. A minha péssima

situação profissional unida à completa falta de perspectiva, num estado geral

de depressão, gera um estado de espírito onde só vejo o negativo do

negativo. E o negativo do positivo”.704

703

Idem, de 13/09/65. 704

Idem, de 09/11/65.

Page 349: João Antônio: Uma Biografia Literária

349

Ele se diz arrependido de sequer haver pensado em se casar: “Eu estou

arrependido de haver pedido você em casamento. E se não volto atrás é

apenas por uma questão de... de pena. (...) Quando lhe disse uma vez, num

bar aqui do Rio, que eu não sou homem que devesse ter mulher fixa, não

menti, nem fiz uma frase. Assim eu sou.”705

E clama para que ela veja as coisas como ele: “Você tomou o bonde

mais errado que poderia ter tomado entrando em minha vida. Eu,

pessoalmente, duvido que chegue até o meio da linha. Veja bem se deseja

continuar. É tão fácil agora evitar complicações futuras. Pense e repense. Se

você tivesse a minha experiência, já teria saltado do bonde errado”.706

A pressão financeira, em parte, servia para explicar a mudança do

amante dedicado para o noivo relutante e inconveniente: “Nosso casamento

está fadado ao fracasso redondo, mesmo por que eu constato que não ganho

dinheiro nem para mim sozinho. (...)/ Se a minha vida está ruim agora, com

a sua vinda piorará muito. Portanto, se eu pudesse voltar atrás, voltaria.

Tranqüilamente. Para me ver livre de problemas econômicos. (...) Eu me

arrependo de tudo o que fiz com você. Definitivamente não é mais minha

hora de amor. É minha hora de dinheiro. O amor, a profissão, a literatura são

coisas findas. As circunstâncias me ensinaram a encarar tudo isso sem

vibração: apenas o dinheiro me faz vibrar. Não conheço o valor das coisas,

apenas o preço me basta. (...) Se você se casa ou se une por amor a mim, eu

o faço por pena de duas famílias idiotas e sentimentalóides, burguesas e

ultrapassadas, sonhadoras e bem mesquinhas dentro da limitação com que

olham tudo. Eu sou sovina e dinheirista, franca e abertamente. O resto não

me diz respeito, o dinheiro sim. Portanto, mulher fixa ou filhos, desde que

705

Idem, de 13/11/65. 706

Idem, ibidem.

Page 350: João Antônio: Uma Biografia Literária

350

não me dêem dinheiro claro e evidente, só comparecem à minha vida para

atrapalhar. Essa, a única realidade. (...)/ E eu quero dinheiro, muito dinheiro

para me libertar de tudo, inclusive do meu casamento, para cair no mundo e

na vida como um vagabundo”.707

“E quero uma economia privilegiada, daqui há uns cinco anos, sabe

para quê? PARA MANDAR TUDO À MERDA. Inclusive este casamento,

que não terá filhos (nem sonhe com isso), a minha profissão, a literatura, a

arte, tudo. E cair no mundo sem nenhum destino e nenhuma intenção. Viver

como um vagabundo. E viver só para mim. Nem você e nem ninguém. Se

possível nem as lembranças. (Não havendo filhos não haverá

lembranças)”.708

O tema “filhos” volta em outra carta, com ele sendo igualmente

enfático: “Compre uma provisão de anti-concepcionais aí em Jaú e informe-

se CLA-RA-MEN-TE com o médico [sobre] suas condições para a

maternidade. EU NÃO QUERO FILHOS!”.709

Ele, ao mesmo tempo em que toma providências para viabilizar o

casamento, ameaça desfazê-las em seguida: “Estou tratando de passar para

outra pessoa interessada este apartamento e os móveis todos. Talvez eu saia

do Rio de Janeiro”.710

Mas, se evitar o casamento era difícil, devido ao envolvimento das

famílias, ele procura então outra saída radical, desesperada, que expõe à

noiva, cristalinamente, num momento exponencial do que chamava de seu

“cinismo”: “Estive pensando e uma solução me vem através de nossa

separação logo após o casamento. Anular dentro de dez dias. Inventando

707

Idem, ibidem. 708

Idem, de 19/11/65. 709

Idem, de 21/11/65. 710

Idem, de 19/11/65. Em carta de 21/11/65, ele repete a ameaça de desfazer-se do apartamento alugado e

parcialmente mobiliado.

Page 351: João Antônio: Uma Biografia Literária

351

uma coisa qualquer. Você vai para a casa de sua tia ou para onde bem

entender. Eu passo imediatamente os móveis e vou morar numa pensão.

Depois se cuida imediatamente da anulação em Cartório aqui do Rio”.711

Claro que, como costumava lhe acontecer, todas essas frases ácidas

compunham um outro lado da moeda, que se alternava com um lado

positivo. Na manhã seguinte a uma carta de fúria anti-matrimonial, ele diz:

“Você aí acima, Marília, vê o retrato de metade de um homem. Prestes a ser

engolido pela pressão econômica. Não lhe exagerei em nenhum dos números

e quantias. (...)/ Mas seria uma estupidez agredir você com isso. Você não

tem nada com isso. Você não encomendou essa situação, ela é minha. É uma

burrice acabar com as coisas entre nós. O meu lado sentimental — que ainda

existe, apesar de tudo — me diz claramente que você serve como

companheira. (...) Eu maltrato você e depois fico magoado comigo mesmo.

Não adianta nada. Acabo me estraçalhando nessa luta entre o homem cínico

e o sentimental que moram dentro de mim. Nem sei qual dos dois vencerá.

Ambos são fortes e terríveis. Enquanto um dos dois não se declara vencedor,

eu vou sendo isto, Marília: uma briga danada comigo mesmo. Nessa briga,

sempre resta uma porrada para você”.712

Logicamente que, às vésperas do casamento, a alternância de humores

do noivo pôs o compromisso à beira do rompimento. Marília, em novembro

daquele ano, responde-lhe duramente, com frases do tipo “Joguei toda a

minha vida no lixo”, ou “Depois dessa carta não sei mais se suportaria viver

a seu lado”. E até ameaçando se matar.713

E ele acusa o golpe: “Se é assim

como você me escreve, se a náusea chegou e já está nesse pé, agora é que

nosso casamento não vai significar nada mesmo. Nem o contrato oficial,

711

Idem, ibidem. 712

Idem, de 20/11/65. 713

Idem, de 24/11/65.

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352

nem a ligação humana que nos prendia. Se tudo é morto, muito

provavelmente pouco demorará a apodrecer. Como acontece com as coisas

mortas”.714

Talvez, se tais coisas fossem ditas por um amante ao longo de um

processo de desgaste do amor, desdobradas ao longo do tempo em fases

distintas, em que a felicidade vai pouco a pouco se rendendo ao cotidiano,

elas não chamariam tanto a atenção. Mas o fato de as declarações de amor,

as demonstrações de carinho, as preocupações com a saúde de Marília, o

relato dos esforços em nome do bem-estar do casal pós-cerimônia e lua-de-

mel, estarem embaralhados a sentimentos os mais contraditórios, de raiva,

revolta, humilhação e de pessimismo, mostra o quanto o relativo sucesso

literário e a relativa ascensão social não havia mudado a essência do

temperamento instável do jovem escritor. Se de um lado dizia-se apaixonado

como nunca, de outro sentia estar perdendo o controle sobre sua vida, e

debatia-se contra isso. Ainda que uma pessoa apaixonada esteja mesmo

sujeita a variações súbitas de sentimento, da realização física e espiritual

mais plena à crise de auto-estima mais profunda, por menos justificadas na

prática que sejam umas e outra, em João Antônio espanta, no mínimo, a

distância entre esses pólos. Um caso maníaco-depressivo, como

diagnosticou o amigo e farmacêutico Manoel Lobato?

E num estalo a insatisfação com a mudança estrutural que aconteceria

em sua vida, e de certa forma contra sua vontade, transbordava para os

demais os planos da vida do escritor, respingando, por exemplo, também nos

pais: “Você, meu pai, minha mãe, meu irmão. Talvez eu não tenha

conseguido amá-los. Caso contrário, não os teria deixado nunca, nem pelo

Rio de Janeiro e nem por cidade e por coisa nenhuma deste mundo. Se

714

Idem, ibidem.

Page 353: João Antônio: Uma Biografia Literária

353

houver minha independência econômica, eu cairei no mundo. E sozinho.

Bem sozinho. Não se iluda”.715

E, somada à crise financeira pessoal e nacional, essa insatisfação

atingia em cheio a profissão de jornalista, que do entusiasmo orgulhoso

passaria à descrença completa em poucos meses. Já em julho de 65, sua

relação com aquela primeira experiência jornalística estava cindida: “E o

emprego no Jornal do Brasil, embora não seja nenhuma conquista em

termos de jornalismo, não é coisa que se encontre a qualquer hora e a todo

dia. De certa forma, estou preso ao Rio de Janeiro”.716

Ou até mais do que

isso: “Eu detesto o jornalismo que faço para o ‘Caderno B’ do Jornal do

Brasil. Gostaria de poder escrever outras coisas, noutra linguagem, para

outros leitores. Mas não posso: porque minha realidade também é o salário

mensal do Jornal do Brasil. Você entendeu? Então, me cumpre

contemporizar certas coisas. Custa-me, mas eu contemporizo”.717

Ele de fato não consegue se entusiasmar, e as tarefas diárias do

emprego, por mais glamourosas, lhe parecem um fardo: “E que maiores

considerações poderia lhe fazer? Sairia tudo negativo, embora eu esteja

passando a viver a partir de hoje, no Rio de Janeiro, como se vivesse em

Cannes, em Punta del Este ou em Berlim ou em Mar del Plata. Com este

Festival Internacional do Filme, que se iniciou hoje em Copacabana, Cine

Rian, é um tal de mexer com coisas internacionais e pessoas de nomeada,

que não se acaba mais. E para mim, queira ou não, na qualidade de repórter-

especial do Jornal do Brasil, tenho de me virar nos corredores do

Copacabana Palace Hotel. A partir de amanhã, o Paulo Afonso Grisolli [o

715

Idem, de 13/11/65. 716

Idem, de 17/07/65. 717

Idem, de 27/07/65.

Page 354: João Antônio: Uma Biografia Literária

354

editor do ‘Caderno B’] espera matéria todos os dias até as onze da matina.

É”.718

E, à medida que o casamento vai se confirmando e aproximando, o

salário insuficiente também pesa, obrigando-o a acumular serviços:

“Profissionalmente continuo no Jornal do Brasil e [em] trabalhos avulsos

para a Civilização Brasileira. Ainda não consegui intensificar os contatos

para a obtenção de um segundo ou terceiro emprego, pois, o atual Festival

Internacional do Filme, me leva o tempo quase todo. E ainda tenho os

avulsos compromissados com a Civilização Brasileira. É fogo”.719

Mas estava ficando difícil disfarçar para si mesmo o quanto o glamour

do “Caderno B” já o havia saturado: “O trabalho intenso, aquele em que não

acredito e que detesto, aquele aliterário e até mesmo o pára-literário, o

jornalístico, o editorial, me serve como uma ferramenta nojenta com que

tapeio os meus dias e a minha realidade mais imediata./ É uma espécie de

veneno tão imoral ou amoral como a cocaína, o ópio ou a maconha. Há

pouca diferença. Enquanto o infeliz está tomado do que fazer, estando a

lutar, sem dúvida alguma, se esquece das outras solicitações essenciais do

homem. Aquelas necessidades mais intensas e profundas, porque afinal,

quem vai dormir bem cansado e com coisas metidas na cabeça para o dia

seguinte, não tem vontade de sonhar, nem de mulher na cama, nem de

cafuné e nem do resto. Também não é dormir. É morrer./ A pior desgraça,

Marília, é quando um homem tem imaginação demais ou lucidez demais.

Eu, otário impenitente, ora fico num caso, ora noutro. Só não consigo ser um

ser normal. Também eu não me esforço. Como não acredito no trabalho em

série, posso fazer trabalho em série muito sossegadamente. Ele não me dói,

718

Idem, de 15/09/65. 719

Idem, de 20/09/65.

Page 355: João Antônio: Uma Biografia Literária

355

porque não acredito nele. O pior é ficar nessa porcaria de vida como um ser

pensante, isto é, como um homem que faz algo além de comer, beber,

trabalhar e dormir sozinho”.720

“Calorão no Rio, e é bom: diminui a fome da gente. Engana-se o

estômago apenas uma vez por dia. O Jornal do Brasil continua o mesmo

ramerrão da mesma droga. Mas os donos do Jornal do Brasil devem estar a

multiplicar seus lucros: sorte deles. Azar dos empregados.”721

A partir de uma certa hora, desaparece qualquer interesse pelo

trabalho no JB, e prevalece a já citada sensação de estar numa “péssima

situação profissional”. Mesmo os frilas que descolava em outras

publicações, além de tomarem seu tempo, muitas vezes sequer lhe

pagavam.722

E foi assim, pressionado pela extrema falta de dinheiro, literalmente

passando fome, acossado pela família da namorada, pelo amor que sentia por

ela, pela solidão quando Marília lhe faltava, que João Antônio atravessou o

ano de 1965, seu primeiro como escritor reconhecido, jornalista profissional,

e residindo na cidade que escolhera. O deslumbramento com a vida nova

durou pouco, e logo a realidade tratou de provocar novamente sua oscilação

emocional. Só um quadro geral de deterioração pessoal explica a dura

constatação que faz numa das cartas da época:

“Eu venho me matando aos poucos e matando todas as pessoas que

me amam. Isso é há muito tempo, desde quando não sei”.723

720

Idem, de 27/09/65. 721

Idem, de 10/11/65. 722

Idem, de 21/11/65. 723

Idem, de 24/11/65.

Page 356: João Antônio: Uma Biografia Literária

356

Jornalismo e projeto literário: a experiência no Jornal do Brasil

Este capítulo, não obstante ter sido até aqui eminentemente

biográfico, tem como objetivo central — visto que nisso reside sua

articulação com os dois primeiros capítulos do trabalho e com a tese mesmo

aqui proposta — demonstrar o impacto estilístico que a experiência de João

Antônio no jornalismo teve em sua formação como escritor. De todos os

ingredientes que compuseram o estilo de João Antônio, o jornalismo foi o

último a entrar na panela, e, uma vez ele homogeneamente integrado aos

demais, pode-se considerar que o período de formação de João Antônio

como escritor estava terminado. Como aqui procurarão mostrar os

documentos reunidos, as versões dos textos contrapostas e as análises

sugeridas, este impacto é triplo: afeta sua temática, pois a gama de assuntos

cobertos por seu universo literário aumenta consideravelmente; implica um

reequilíbrio entre suas experimentações ficcionais e os textos que fazia para

viver, antes restritos à publicidade mas agora dignificados por um ideal

estético e ideológico de lítero-jornalismo; provoca uma “explosão dos

gêneros”, que torna maleável a natureza dos textos do escritor, agora de fato

apenas “textos”, diluindofronteiras entre as categorias ficção, não ficção e

textos jornalísticos.

Lá atrás, o estilo do aprendiz, e mesmo o do jovem escritor, montou

um universo particular de referências composto por duas vertentes: a secura

máscula de Graciliano Ramos e dos escritores da assim chamada “literatura

de homem”, como Hemingway, Gorki e Dostoiésvski, pelos seus soldados,

criminosos, boxeadores e toureiros, homens ora rudes, ora atormentados, ora

cruéis, mas sempre densos emocionalmente; e, de outro lado, vindos dos

Page 357: João Antônio: Uma Biografia Literária

357

modernistas, o interesse pelas cidades grandes, pela variedade e força da

cultura popular e pelo enriquecimento simbólico do cotidiano. Mário de

Andrade, Antônio de Alcântara Machado e Carlos Drummond são

referências recorrentes no conjunto da documentação. Naquele primeiro

momento, a partir dessas “afinidades eletivas”, João Antônio procurava

combinar dureza e lirismo com uma espécie de tristeza engolida, ao mesmo

tempo orgulhosa, tocante e viril. Tudo isso numa linguagem correta

gramatical e sintaticamente, sem coloquialismo excessivo, mas também

despojada de grandiloqüências e parnasianismos; econômica e, por isso

mesmo, contundente.

Ao momento seguinte de João Antônio como escritor deram forma:

um, a aventura lingüística do regionalismo áureo, a que se lançaram

Guimarães Rosa, figura de maior destaque entre todos, e os escritores,

amigos ou não de João Antônio, reunidos em torno da coleção Terra Forte,

da editora Francisco Alves, dirigida por Paulo Dantas, de que são exemplo o

próprio Dantas, Caio Porfírio Carneiro e Osório Alves de Castro, entre

outros; dois, o “regionalismo urbano” de uma Carolina Maria de Jesus, em

seu famoso livro Quarto de Despejo, variante da mesma corrente

regionalista — afinal, para além da oposição campo x cidade, ambos

valorizavam o discurso, a dicção e a visão que os humildes têm do mundo e

das pessoas.

Tais leituras e convivências apresentaram-lhe um novo horizonte,

mais livre, menos bem-comportado estilisticamente, e que lhe permitia

incorporar a sua literatura um material que conhecia muito bem: a fala das

ruas.

Só então viria o jornalismo, que aos poucos se confunde com a

literatura de maneira inseparável. É interessante ver como o escritor, ao

Page 358: João Antônio: Uma Biografia Literária

358

longo dos anos, ao invés de tentar uma convivência pacífica entre suas duas

profissões (escritor/jornalista), reservando a cada uma seu espaço e

respeitando suas particularidades, busca obstinadamente fundir sua atividade

literária à de jornalista no próprio nível do texto. Razões para tanto não lhe

faltavam. Era, em parte, uma estratégia para impedir que o trabalho

jornalístico, imprescindível para seu desesperado sustento, roubasse-lhe o

tempo necessário para escrever literatura. Era, também, uma maneira de

profissionalizar a atividade literária, remunerando-a não com base em

magros e incertos pagamentos de direitos autorais (pelos quais lutaria

também), mas a partir de um salário mensal, que permitisse ao escritor viver

de maneira estável com sua atividade “lítero-jornalística”. Além disso, tal

fusão combinava bem com sua tendência a transformar suas experiências

pessoais – ou seus testemunhos, pois também são experiências pessoais,

afinal – em literatura de forma bastante direta e imediata. Para não dizer que

se beneficiava em larga dose de sua total naturalidade em descer aos níveis

mais baixos da sociedade brasileira. Por fim, este era de fato um caminho

promissor para seu projeto estilístico, cuja meta, como foi visto no capítulo

2, era a composição de um gênero híbrido entre o regionalismo e a literatura

urbana. O jornalismo, tal como ele o idealizava e o praticava, permitia-lhe

um contato diário tanto com a força poética da linguagem inculta quanto

com o dia-a-dia na cidade. As regras de composição do texto jornalístico, os

gêneros nele trabalhados, a princípio tão diferentes dos de seus textos

literários, logo se amalgamam ao estilo anterior de João Antônio.

Ele não foi o único escritor da geração a trazer elementos jornalísticos

para sua literatura. Afinal, como antes mencionado, o jornalismo e a

publicidade eram os territórios que se abriam a novos “profissionais do

texto”, os quais, devido às circunstâncias políticas do momento (anos 60 e

Page 359: João Antônio: Uma Biografia Literária

359

70), não mais se identificavam com a ligação tradicional entre vocação

literária e funcionalismo público.

O jornalismo, apesar do dirigismo criativo até certo ponto inevitável, e

das exigências profissionais elementares (ter um chefe, horários, cumprir

prazos, elaborar métodos de trabalho etc), possibilitava, nas brechas, um

espaço para a exposição de idéias, para uma benfazeja política cultural, no

nível macro, e, no nível micro, para aproximações de alcance meramente

pessoal com figuras de destaque no cenário das letras e das artes.724

Já a

publicidade era vista como uma área em que, apesar das habilidades de

escrita serem importantes, elas estavam ainda muito mais submetidas a

exigências mercadológicas do que no jornalismo, e as “pautas” publicitárias

eram muito mais distantes do homem, de seus atos e das realidades política e

cotidiana; ou seja, exatamente dos pontos de contato entre jornalismo e

literatura. A publicidade pagava mais, porém desafiava a consciência ética

da geração. Para João Antônio, que abandonara a linguagem econômica dos

contos iniciais em favor de uma prosa mais livre, à base da reelaboração

literária da linguagem oral, e que, em outro plano, procurava a todo custo

transformar sua atividade artística em sua fonte de renda, render-se à

publicidade seria pecado mortal.

Já se viu o que ele achava de seu trabalho na agência Petinatti. Para

evidenciar o quanto o ponto de honra ético era comum à boa parte da

geração, veja-se agora este depoimento enfático que colheu de Ignácio

Loyola Brandão: “O bicho de sete cabeças que engole talentos: a

724

Cruzando-se os artistas que foram tema de matérias assinadas por João Antônio com sua lista de

relações no meio – parcialmente levantada junto a tantas fontes, mas com destaque para o depoimento de

Marília Andrade, colhido em 20/07/2003 –, vê-se que era comum ele escrever sobre seus amigos ou fazer

amizade com pessoas sobre quem escrevera. Paulo Dantas é um exemplo (“Nas águas do açude e do Rio”,

in JB, RJ, 22/08/65), João do Valle (Poesia de João nasce do canto”, in JB, RJ, 22/08/65), Esdras do

Nascimento (“Um escritor, seu ofício e seu sucesso”, in JB, RJ, 05/05/65), Ignácio Loyola Brandão (“Um

filme e um livro contra a engrenagem”, in JB, RJ, 14/12/65) etc. Há muitos outros.

Page 360: João Antônio: Uma Biografia Literária

360

publicidade. A todo momento, se a pessoa é um redator de capacidade e

talento, o monstro ameaça cair sobre sua cabeça. Devora mansinho e com

jeitinho. Na base dos salários altíssimos. Uma agência de publicidade paga

cinco, seis, dez vezes mais que um jornal. Sujeito bom, de talento, pega fácil

de milhão e meio para cima. (...) A publicidade compra os disponíveis, os

apertados, os cansados de se bater contra os moinhos de vento”.725

Como se não bastasse essa descrição apocalíptica, João Antônio

arremata: “Naturalmente, o que Loyola quer dizer é que redator de

publicidade é aquele homem que ganha muito para escrever bem e

brilhantemente sobre as vantagens do sabonete produzido por A. E,

especialmente, que o sabonete A é bem melhor que o sabonete produzido

por B. Quando na realidade o redator sabe que tanto A quanto B são

sabonetes que não valem absolutamente nada”.

Embora representasse uma opção de maior segurança profissional do

que a pura dedicação à arte, muitas vezes, para não dizer quase sempre, o

jornalismo por si só propiciava receitas insuficientes para a estabilidade

financeira dos escritores. Simplesmente porque não pagava bem. As agruras

pecuniárias por que vimos passar João Antônio às vésperas de seu

casamento, na condição de repórter-especial do JB, nos anos áureos do JB,

comprovam isso. Ou seja, os escritores precisavam combinar os rendimentos

obtidos no jornalismo com os dos “frilas” editoriais e, pior, publicitários,

que executavam “torcendo o nariz”. Mesmo assim, trocar as redações pelas

agências significava uma opção de vida, não uma simples troca de emprego.

Reforçando em outro nível essa vinculação entre literatura e

jornalismo, vinham do exterior os ares do New Journalism, movimento

surgido nos Estados Unidos e que, grosso modo, propunha um texto híbrido,

725

“A revolta que vem do silêncio”, in JB, RJ, 15/12/65.

Page 361: João Antônio: Uma Biografia Literária

361

com estruturas narrativas e pontos de vista tradicionalmente da ficção usados

em matérias de jornais e revistas.726

A realidade jornalística caminhava em direção à literatura, renovando-

se, expandindo seus limites formais. E a literatura ia em direção à realidade,

de um lado à procura de uma dramaticidade enfatizada pelo caráter factual,

de outro em busca da realização das funções sociais que os escritores da

época (os artistas em geral) acreditavam ter, da eficácia engajada do espírito

coletivista do momento, tornadas possíveis graças à expansão do universo de

leitores atingido pelos grandes jornais.

A combinação jornalismo e literatura, repita-se, portanto, é uma marca

da geração. O livro de Ignácio de Loyola Brandão, Zero, talvez seja o

exemplo máximo produzido na época, com suas manchetes, com sua

maneira de fazer a trama avançar reproduzindo matérias de jornal, enfim,

com os experimentalismos formais que justamente diluíam as fronteiras

entre as duas áreas.727

Mas em um número da revista Extra, organizado pelo

próprio João Antônio, cujo mote era a reunião de contos dos chamados

escritores “malditos”, o ideal de uma literatura decalcada da realidade

aparece de forma bastante nítida como algo comum a todo o grupo

selecionado: “Eles não se emendam: sempre falando no miserê geral, no

desemprego e no emprego da força; no feijão, na carne dos amantes, futebol,

homossexualismo, cadeia; sempre falando no coração, fígado e intestinos da

realidade brasileira”.728

E, claro, inserido em texto específico do organizador

726

Wolfe, Tom (org.). The New Journalism, Picador, London, 1973. 727

Brandão, Ignácio Loyola de. Zero, São Paulo, Clube do Livro, 1986. 728

Antônio, João (org.). Extra: Realidade Brasileira – Coleção Livro-Reportagem, no 4, São Paulo, 1977.

Deste número faziam parte ainda: Tânia Faillace, Chico Buarque, Antônio Torres, Marcos Rey, Wander

Piroli, Plínio Marcos, Márcio Souza e Aguinaldo Silva.

Page 362: João Antônio: Uma Biografia Literária

362

do número: “Literatura? Mas minha querida senhora, a literatura não existe.

O que há é a vida, de que a política e a arte participam”.729

Curiosamente, no Brasil, embora a estrada aberta pelo New

Journalism tenha sido percorrida, e embora ela fosse, tanto quanto nos EUA,

uma via de mão dupla, comunicando jornalismo e literatura, o trânsito por

aqui parece ter tido maior fluxo na direção do jornalismo para a literatura.

Houve momentos de exceção, como ficará demonstrado na análise da revista

Realidade, ao longo deste capítulo, mas, na maioria das vezes, os grandes

grupos jornalísticos absorveram bem mais lentamente os aportes literários

nos textos de seus profissionais, do que os livros destes últimos aos recursos

provenientes do jornalismo. E, diante da conjuntura política nacional, tais

novidades foram ficando cada vez menos recomendáveis.

Esse fluxo maior no sentido jornalismo-literatura vale também para

João Antônio. Mas é curioso que, nele, a produção jornalística logo absorveu

elementos do estilo literário, espelhando também nessa direção o processo

dos new journalists americanos. Em João Antônio, os universos jornalístico

e literário parecem fundir-se ao longo dos anos, e as linhas divisórias

desaparecem por completo, o que se verifica inclusive no caráter multi-uso

de seus textos, que passam a ser livremente encaixados nas categorias ficção,

não-ficção literária e texto jornalístico.730

João Antônio fez dessa fusão sua

profissão de fé, chegando mesmo, como se verá, a invocar para si a invenção

de um novo gênero literário, o “conto-reportagem”.

729

João Antônio credita esta citação a Balzac, 730

Sobre isso ver Lacerda, Rodrigo. “De princesinha a cadela desdentada”, in Ô, Copacabana!, Cosac &

Naify, SP, 2001, p. 6. “O livro insere-se no gênero do conto-reportagem, uma das especialidades do

escritor, que lhe permitia a ponte entre a observação realista e o estilo literário. (...) Poder-se-ia dizer que Ô,

Copacabana! Margeia também a crônica, desde que não se tenha em mente a postura contemplativa e

nostálgica em geral predominante nesse território.”.

Page 363: João Antônio: Uma Biografia Literária

363

A seguir, três acervos da primeira fase de sua carreira jornalística

serão analisados: Jornal do Brasil, Cláudia e Realidade. O período por eles

coberto vai de 1965 a 1969, aproximadamente. Durante esses anos, seu

encantamento com o jornalismo como via de profissionalização do escritor

brasileiro nasce, cresce, e morre. Mas o jornalismo como elemento

detonador de sua criatividade, como feira livre de temas e personagens

utilizáveis em sua ficção, e como reforço factual à dramaticidade e ao

lirismo de sua literatura, nunca mais perderia espaço em sua obra. Na

segunda metade dos anos 70, fase áurea do escritor do ponto de vista da

projeção no meio literário e até mesmo comercialmente falando, ele publica

cinco livros, e todos eles, de um jeito ou de outro, marcados pela fusão entre

jornalismo e literatura.731

O Jornal do Brasil

Dos acervos a serem discutidos aqui, o do Jornal do Brasil é o mais

difícil de ser trabalhado. Em parte, a dificuldade é prática: é o maior de

todos, sendo composto por nada menos que 63 matérias assinadas, sobre os

mais diferentes assuntos e nos mais diferentes gêneros jornalísticos: perfis,

matérias, críticas de espetáculos, entrevistas. É difícil enxergar, diante de

tantas variantes, as permanências. Além disso, por ter o JB sido sua primeira

experiência, neste acervo seus textos estão ainda distantes da fusão com a

literatura. Por conseqüência, avança-se tateando, num terreno ainda incerto.

Por fim, se no JB for identificado o texto puramente jornalístico de João

731

Leão-de-chácara (1975); Malhação do Judas Carioca (1975); Casa de Loucos (1976); Ô, Copacabana!

(1977); Calvário e Porres do Pingente Afonso Henriques de Lima Barreto (1978).

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364

Antônio, vê-se que na verdade esse nunca foi bom. A redação parece

descuidada, com repetições freqüentes de informações, de palavras, um

método subjetivo de apuração, opiniões pessoais se evidenciando a cada

parágrafo.732

Portanto, no plano estilístico, no âmbito estritamente do texto, a

análise do acervo do JB não permite que se vá muito longe no rastreamento

da combinação entre o jornalismo e a literatura.

Não obstante, em que pese a ausência de interesse do ponto de vista

estilístico, este acervo traz muitas informações importantes, e de abordagens

sintomáticas a determinados assuntos, que não só moldam o projeto literário

de João Antônio, como também reaparecerão nas etapas subseqüentes de seu

envolvimento com o jornalismo. Por tudo isso, tais informações justificam

alguns comentários. No Jornal do Brasil, a plataforma ideológica da fusão

que viria foi esquematizada.

Logo em seguida à mudança para o Rio de Janeiro, como vimos nas

suas cartas para Ilka e para a noiva, João Antônio fica deslumbrado com a

liberdade de comportamento que encontra na cidade. Era o momento áureo

da liberação sexual, a cena artística vivia um momento bastante rico e

variado; o Rio era ainda a capital cultural do país. A rebeldia sem causa dos

anos 50, que se contentava em ajeitar o topete no espelho, sair com o carro

do pai cantando pneu, pegar a namorada e ir ao baile havia perdido seus

adeptos, e a triste realidade política dos anos 70 ainda não tinha chegado.

Havia uma nova rebeldia no ar, mais ambiciosa, com causa e disposta

realmente a mudar o mundo. Na família, no trabalho, no plano político e,

como não poderia deixar de ser, nas artes. Os conflitos de geração

produziam novos equilíbrios, e confrontos. Inclusive no Distrito Federal.

129

Ver, por exemplo, no que se refere às deficiências de estilo, as matérias dos dias 06/06/65, 17/06/65, s/d

agosto de 65 e 22/08/65.

Page 365: João Antônio: Uma Biografia Literária

365

Um trabalhista acabara de ser derrubado do governo. O Rio que João

Antônio encontrou se dividia em dois: no plano político, como o resto do

país, começava uma caminhada para a direita; no plano social e de

comportamento, era a maior zona livre que o jovem escritor já conhecera em

toda a sua vida. Uma boêmia intelectualizada de classe média e classe média

alta ganhava espaço. Os experimentalismos estéticos não tardaram a

aparecer: peças de Shakespeare eram modernizadas, traduções do grego

incorporavam um registro mais coloquial, sambistas tradicionais

apresentavam-se, e competiam, com novas estrelas da bossa-nova, formas

mais cristalizadas de arte, a ópera, por exemplo, eram vistas como

ultrapassadas, certos preceitos éticos da geração misturavam-se de maneira

difusa a requisitos ideológicos essenciais. A atitude geral dos meios

artísticos era ou de contestação ou de “desbunde”.

Ganha-se mais, ao se analisar os textos de João Antônio no Jornal do

Brasil, não tanto preocupando-se com questões estilísticas, mas entendendo-

se o repertório de temas e a forma com que eles se articulavam, compondo o

leque de debates atuando sobre a juventude artística da época.

Há vários temas a abordar. Para que o quadro se monte de forma

minimamente concatenada, é necessário abrir mão primeiro de uma análise

em ordem cronológica dos textos. Em segundo lugar, de um esquematismo

temático do tipo: literatura, teatro, cinema, música etc. Estes blocos

temáticos, embora existam e sirvam, num primeiro momento, de alicerces

para análise, não nos permitiriam ver de forma compreensiva as concepções

de arte e da função do artista tais como João Antônio as entendia. As bases

estético-ideológicas do escritor estão disseminadas ao longo das 63 matérias.

Afinal, aqueles não eram textos de estética, muito menos políticos, eram

matérias que, por mais assinadas que fossem, implicavam foco em assuntos

Page 366: João Antônio: Uma Biografia Literária

366

que, do ponto de vista desse trabalho, muitas vezes não têm qualquer

interesse. São os comentários e as edições de João Antônio que nos

interessam, como expressões diretas ou indiretas de suas próprias opiniões.

Para quem lê o acervo de sua colaboração no JB, um primeiro

elemento a ser destacado é a recorrente ênfase na função, ou nas funções

sociais da arte. Como já foi dito, João Antônio endossava a idéia de que a

arte deveria refletir, o mais diretamente possível, a realidade que cerca o

artista e a sociedade em que ele vive. E, sendo essa sociedade injusta,

caberia a arte a missão de fazer esta denúncia.

Seguindo esse raciocínio, por exemplo, João Antônio valoriza a

produção contida num festival de cinema amador: “(...) os jovens cineastas

revelam uma grande preocupação pelo social. Assim, a maioria dos filmes

retrata as gentes pobres do Rio de Janeiro, sempre abarcando elementos de

ruas, calçadas e natureza e retratando seus homens, mulheres e crianças,

como expressões vivas do povo-povo carioca.”733

Ou, em um elogiosíssimo

perfil sobre o escritor Hélio Pólvora, então lançando o livro Estranhos e

Assustados, João Antônio põe a seguinte fala na boca de seu escritor:

“Literatura é um compromisso com a vida e com a arte, implica em conhecer

bem o nossos semelhante. (...) Somente com os olhos postos na nossa

realidade, na nossa gente, nos nossos costumes e nas ânsias que nos marcam,

o escritor brasileiro poderá respeitar o compromisso e, através da cultura do

povo, chegar à plena realização estética”.734

733

“Um cinema novo vem das ruas”, in JB, RJ, 18/08/65. 734

“Um contista maior”, ”, in JB, RJ, 08/05/66. Não será a única vez que tomarei as palavras dos

entrevistados como sendo as do próprio João Antônio. Tal procedimento deve ser entendido não como

“forçação” metodológica, mas como parte da hipótese exposta neste capítulo. Segundo ela, na condição de

repórter-especial, João Antônio tinha amplas margens de negociação em relação às suas pautas.

Considerando-se que, em 63 matérias, entre perfis, resenhas, críticas e outras formas de texto jornalístico, o

escritor jamais falou mal de algum espetáculo, não é ir muito longe dizer que ele escolhia os temas de suas

matérias. Nem é preciso invocar uma análise mais minuciosa do discurso, para ressaltar a completa adesão

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367

Essa atitude crítica torna corriqueira, em seus textos, a idéia do bom

artista como um indivíduo “zangado”, como se, por meio de suas denúncias

sociais, o artista tivesse poderes de corrigir e repreender a sociedade por seus

desequilíbrios e injustiças.735

É o que ele expressa em uma pequena série de

três reportagens chamada “Os jovens zangados de São Paulo”.736

E, citando

Ignácio Loyola Brandão, um dos “zangados”: “A função do escritor, a meu

ver, é viver e retratar com algum sentido crítico”.737

Essa idéia do artista com o dedo apontado na cara da sociedade

aparece e reaparece mil vezes e em mil contextos ao longo de sua

participação no Jornal do Brasil. Quando escreve sobre o espetáculo de

teatro Sabiá-66, montado no Teatro do Rio: “De resto, o Sabiá-66 é

inteiramente zangado [grifo meu] e a anti-hipocrisia diante do social, do

ético, do moral e até do estético é a permanente mais louvável como grito e

como saúde artística”.738

De novo na já citada série de reportagens sobre os “jovens zangados

de São Paulo”, diz João Antônio: “(...) pela primeira vez, e declaradamente

em termos de arte, São Paulo investe contra si mesmo, num movimento

desmistificador, zangado [grifo meu] e disposto à revisão e furiosa

derrubada de ídolos, a principiar pelos ingredientes dos slogans da própria

cidade ‘que mais cresce no mundo’, ‘maior parque industrial da América

Latina’ etc.”.739

no tom, por exemplo, desta citação de Hélio Pólvora. 735

O equivalente aos beatniks, na Inglaterra, auto-denominavam-se “angry young men”. Tenha ou não

recebido essa influência, a expressão “zangado” certamente é uma gíria de época, que se tornou uma

categoria importante na visão de João Antônio da conjuntura das artes no Brasil. 736

Publicada em 14/12/65, 15/12/65 e 16/12/65. 737

“A ronda anônima, depois do sol”, JB, RJ, 16/12/65. 738

“Por quem canta o Sabiá-66”, in JB, RJ, 24/05/66. 739

“Um filme e um livro contra a engrenagem”, JB, RJ, 14/12/65.

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368

Esta “zanga”, em geral, é entendida como consciência da coletividade

encarnada no artista. Mas é também algo que diz respeito à postura ética

individual do artista diante do mundo. É o que diferencia o verdadeiro artista

daquele que adota uma atitude servil em relação ao mercado.

É essa mesma atitude denunciativa, confrontadora, essa “zanga”, que,

numa das matérias mais “forçadas” de todo o acervo do JB, faz João

Antônio enxergar as maiores virtudes numa farsa encenada na época,

evidentemente despretensiosa, que contava a história de uma cidadezinha do

interior onde o pároco e as prostitutas entram em guerra declarada. Escreve

ele: “(...) se por um lado o cenário é do mais pálido e sonolento

provincianismo, por outro – e é o que interessa – surge um problema de

natureza fundamentalmente universal: a moral e a liberdade em guerra,

tendo no meio delas a política a contornar situações, a ajeitar acordos e a

colher seus interesses”.740

Esse papel de “zangado” funcionava em vários planos: político,

econômico, dos costumes, estéticos etc. No que se refere aos costumes,

especificamente, chega a ser pitoresca a obrigatoriedade da vinculação entre

a vida de artista e um comportamento não convencional. Durante o festival

internacional de cinema, ocorrido em 65, por exemplo, João Antônio

estranha demais a “irreverência tranqüila” e o “incompreensível bom

comportamento” dos artistas e convidados do festival.741

No perfil que fez de João Antônio, o crítico e romancista José Castello

sugere que o temperamento do escritor combinava perfeitamente com a

postura “zangada”: “Em poucos minutos, entendi que João Antônio era um

homem para quem as palavras, mesmo as suas, eram sempre movediças,

740

“Singela é a graça da guerra”, JB, RJ, 25/04/65. 741

“O festival e a irreverência tranqüila”, JB, RJ, 20/09/65.

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369

valendo mais pela serventia que pelo significado, devendo ser vistas,

primeiro, como instrumentos de luta. Na boca de João, a palavra

transbordava para estrangular seus interlocutores (...) João desandou a falar,

emendando histórias irrelevantes a comentários furiosos, casos antigos a

vaticínios pessimistas a respeito do futuro brasileiro”.742

Artistas como ele, dotados de visão crítica da realidade, de capacidade

de auto-análise, de liberdade interior suficiente para romper com os padrões

de bom-comportamento, deveriam unir-se com o intuito de potencializar o

impacto de sua crítica, e, ao mesmo tempo, de alargar o seu raio de alcance.

Daí o grande entusiasmo de João Antônio em todas as iniciativas que

possibilitassem a integração de diferentes formas de arte e dos indivíduos

nelas atuantes. Por isso merece elogios a iniciativa da editora Brasiliense de

montar uma coleção de autores latino-americanos, “uma ponte de

aproximação cultural”, então tornada possível porque “Nos últimos anos de

vida da América Latina, principalmente nos últimos cinco, uma atribulada

atualidade política e social, conseqüente de um subdesenvolvimento crônico,

criou uma situação objetiva, ‘uma consciência continental que não mais se

desentende de nosso comum destino americano’”.743

Nessa mesma linha, ele destacara, meses antes, o intercâmbio cultural

Brasil-Venezuela, iniciado com a vinda de um maestro e uma pianista às

festividades do IV Centenário do Rio de Janeiro.744

Foi esse ideal de união também que o levou a endossar, em matéria

sobre o grupo Teatro Universitário Carioca (TUCA), sua plataforma de

atuação: “[o TUCA] propõe simultaneamente se constituir em ponto de

encontro e união, tribuna de debates, movimento cultural identificado com o

742

Castello, José. O inventário das sombras, Record, RJ, 1999. 743

“As outras vozes da América”, in JB, RJ, 08/06/66. 744

“Venezuelanos no IV Centenário”, in JB, RJ, 03/09/65.

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370

tempo e o espaço em que vivemos e tentativa de fornecer aos universitários a

formação de cultura artística ausente nos cursos oficiais”. E que o levou a

endossar também a visão de uma das organizadoras do grupo sobre a função

do teatro na conjuntura da época. Diz ela: “Para nós o teatro significa a mais

coletiva das expressões literárias, aquela em que não se diz algo de um autor

para um leitor, e sim de um grupo – autor, diretores, atores –, para outro

grupo, a platéia. A mais genuína então para épocas coletivas, em que o gesto

individual perde contexto e o homem, pressionado pela evolução dos

tempos, se vê forçado a modelar uma nova face histórica”.745

Um festival de artes na vila de Arcozelo, no estado do Rio, parece

ecoar a perfeição este ideal: “[a vila] Tentará ser não somente um recanto de

repouso para artistas de todas as artes, escritores, jornalistas, professores e

público em geral. Será estabelecido por estas bandas um endereço para

festivais de natureza artística, um local ideal para congressos, uns e outros,

longe da conspiração dos grandes centros urbanos”.746

Há também uma matéria sobre o chamado Círculo, um grupo que se

dedicava à “integração de artistas de várias artes, envolvendo música,

arquitetura, literatura, teatro. A correspondência das artes, enfim,

estabelecendo aquela inevitável familiaridade entre uma sonata, um poema,

um quadro”.747

Há, portanto, um ideal coletivista de atuação artística. Outra função

social importante da arte é, por conseqüência, não apenas refletir

criticamente as injustiças sociais, mas democratizar-se de forma a que, pelo

menos nesse ângulo, a sociedade se nivele. Numa entrevista com o tradutor

Mário da Gama Koury, João Antônio faz questão de destacar, ao falar da

745

“Vozes primeiras do TUCA Rio”, in JB, RJ, 07/04/66. 746

“Julho festivo em Arcozelo”, in JB, RJ, 22/06/66. 747

“Convite apelo e poesia no Círculo”, in JB, RJ, 13/04/65.

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371

montagem de uma tragédia grega: “Operários e gente do povo,

aparentemente rude e desprovida de sensibilidade para o teatro clássico,

sentiram da maneira mais natural possível, aceitando todos os problemas da

peça como modernos, atuais, como coisa de hoje, enfim. Prova disso é que

saíram do espetáculo comentando e apoiando Electra e zangados com seus

inimigos”.748

Por tudo que se lê nessas 63 matérias do JB, a arte tinha mesmo o

poder de categorizar os indivíduos, constituindo-se como um instrumento de

classificação social, pois a ela as pessoas reagiam e tal reação em si

identificava-as ideologicamente. O artista atento é capaz de ler essas

nuanças. Lógico que seria impossível acreditar nisso sem, de vez em

quando, cair em alguns estereótipos e preconceitos. É o que vemos

acontecer, por exemplo, na matéria de estréia do escritor, sobre uma récita

da ópera Fosca, de Carlos Gomes, no Teatro Municipal. Naquela noite, João

Antônio faz uma radiografia sociológica na platéia, identificando “Velhos

freqüentadores (...) os que mais lêem os programas e os que mais discutem

nos intervalos, como são também os que mais aplaudem, os que se

apaixonam durante o espetáculo e cujo ardor vai até o aplauso em pé (...)”, e

também “os grupos de estrangeiros, sós ou acompanhados, que parecem

mais movidos pela curiosidade de conhecer o teatro como instalação (...) são

educados e tímidos”, para terminar com verdadeiros alvos de sua acidez, “os

que ocupam as frisas e camarotes e as poltronas principais formam uma

maioria bem vestida, falante, elegante. (...) Formal e impertigada, mantém

uma espécie de finesse no olhar e nos comentários, faz escapar observações

sobre o guarda-roupa do soprano e o fino gosto de tal penteado”.749

748

“O homem que aprendeu grego sozinho”, in JB, RJ, s/d. 749

“A Fosca se vê ou se mostra”, JB, RJ, 23/04/65.

Page 372: João Antônio: Uma Biografia Literária

372

É o tal olhar “zangado” que lhe inspira tamanho desprezo pelos tipos

mais enfatiotados no teatro e pela forma operística em si, tida por ele como

passadista, uma modalidade de arte ultrapassada e cujo poder expressivo era

por demais formalizado, característica que ele também identifica na platéia.

Era também para ir contra artes desse tipo que a união dos artistas

“zangados” tornava-se vital, bem como a difusão das novas formas de arte.

Nisso parece querer chegar Ignácio Loyola Brandão, e por tabela João

Antônio, numa das matérias do JB. Diz o entrevistado: “O interior tem sido

descuidado, porque essa turma que anda escrevendo é esnobe demais e não

tem a humildade de carregar os livros debaixo do braço e vendê-los de

cidade em cidade, de porta em porta, de faculdade em faculdade”.750

E as

viagens foram, de fato, uma marca da carreira de vários escritores da

geração. Elas permitiam que se levasse o interesse pela nova literatura às

várias regiões do país, participando-se de debates com o público em geral,

mas em especial com estudantes universitários, difundindo a produção da

nova geração de escritores etc; tudo isso fazia parte. Outros militantes

contumazes da geração no esforço de difusão da literatura brasileira foram

Antônio Torres, Sérgio Santanna e Wander Pirolli. Todos eles prontificaram-

se a correr o Brasil divulgando seus livros e a literatura em geral, numa onda

que, com o espírito idealista inicial, durou da segunda metade dos anos 60

até quase os anos 80. Lembra Antônio Torres, dizendo ser incrível que, de

um debate sobre literatura, organizado por ele e João Antônio, “(...) ia sair

um trio de estradeiros e não sei bem o porquê da escolha. João Antônio,

Ignácio de Loyola Brandão e eu passamos a ser convidados para palestras

em praticamente todo o país. Dependendo da agenda de cada um,

viajávamos os três, às vezes dois, e daí a pouco, enquanto um estava no

750

“Um filme e um livro contra a engrenagem”, in JB, RJ, 14/12/65.

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373

Maranhão, os outros dois se dividiam entre Manaus e Ijuí, lá no extremo Sul.

Juntos mapeamos o interior de São Paulo: Bauru, Assis, Marília, Campinas,

Americana. João Antônio e eu fomos um dia a Juiz de Fora, com o reforço

de Wander Piroli. A moda pegou e muitos outros passaram a ser chamados.

De repente havia escritor em tudo quanto era canto”.751

Por fim, essa forma de democratização não se daria somente de um

determinado circuito artístico para fora, mas também internamente, por meio

de iniciativas de fomento a jovens talentos. Um esforço de reprodutibilidade

deste próprio meio. É com isso em mente que João Antônio tanto elogia

iniciativas como a do movimento Menestrel752

e dos espetáculos Safra ’65753

e Semente754

, que promoviam novos talentos na música.

Em todo esse ideário relativo ao papel da arte, e às obrigações dos

artistas para que ela de fato pudesse ser efetiva, transparece um certo espírito

de devoção, de entrega, pelo qual o escritor, ou o artista em geral, torna-se o

abnegado porta-voz de um ideal ético, estético e de novas e mais sábias

formas de sociabilidade.

No mínimo, o verdadeiro escritor é um heróico sobrevivente, nas

palavras de Hélio Pólvora, cujo entrevistador ecoaria sem pestanejar: “O

escritor brasileiro vive o drama do país subdesenvolvido, onde tudo está por

fazer e é difícil, inclusive, arranjar tempo para pensar. Trabalhando oito, dez

ou doze horas diárias, em geral sentado ante uma máquina de escrever, ele

consegue sobrenadar a inflação, pagar o aluguel, almoçar e jantar

decentemente. Mas aí nem sempre lhe sobra tempo para estabelecer convívio

social, observar a vida, ler os livros que nele deflagrariam idéias-força;

751

Torres, Antônio. “Nosso destino viajava de ônibus”, in Muito mais, ano VII, no 28, SP, dez 99/ jan 2000.

752 “Um violão e um gênio de mãos dadas”, in JB, RJ, 04/05/65, e “Glória a Turíbio em Paris”, in JB, RJ,

06/06/65 753

“As jovens sementes da safra ‘65”, in JB, RJ, 17/06/65. 754

“A semente da Rosa”, in JB, RJ, 31/08/65.

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374

escrever suas próprias coisas sem a marca da encomenda. A literatura que

produz é fruto da estafa, traz a marca do superesforço descontínuo”.755

Mais ainda: o escritor, o artista em geral, deveria ser uma espécie de

cidadão sem fronteiras, circulando livremente pelas mais várias camadas

sociais e, por conseqüência, transitando com igual liberdade pelas diversas

formas de arte. A arte poderia promover a integração social que a

distribuição desigual de riqueza dificultava. Nasce dessa concepção, por

exemplo, o entusiasmo com que João Antônio saúda o show do violonista

Turíbio Santos, por formação ligado à música erudita, com Aracy de

Almeida, uma grande dama do samba carioca.756

Não por acaso, também, há uma ênfase disseminada na valorização do

artista que dominou seu métier por meio de um processo não formal de

aprendizado, que o levou a romper laços anteriores e dedicar-se somente à

arte. Essa não formalização do desenvolvimento da sensibilidade, e ou da

intelectualidade, enfim, da vocação, segundo João Antônio faz parecer, teria

dois efeitos positivos: de um lado geraria para cada artista um repertório

mais variado e menos regrado; de outro, criaria uma índole mais sociável,

sem hierarquias ou distanciamentos, do artista em relação aos diversos

grupos sociais e a seus colegas. Muitas vezes esta filosofia se manifesta em

um elogio ao auto-didatismo. O auto-didatismo pressupõe, em geral, a

superação de obstáculos concretos ao aprendizado formal, na maioria das

vezes obstáculos financeiros e/ou sociais, e o indivíduo, ao superá-los e

dominar seu métier, automaticamente já passa por um processo de

deslocamento na hierarquia social. Eis um dos elogios ao auto-didatismo

feitos pelo escritor em suas matérias do JB: “O homem que aprendeu grego

755

“Estranhos e assustados no purgatório”, in JB, RJ, 08/05/66. 756

“Um violão e um gênio de mãos dadas”, in JB, RJ, 04/05/65.

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375

sozinho”, louva a manchete do perfil sobre o tradutor Mário da Gama

Koury757

, mas há novas ocorrências, como numa matéria sobre um pintor

favelado758

, que “aprendeu sem se ensinar”, ou sobre o compositor João do

Vale759

, sobre a pintora Cidinha Pereira, “um exemplo típico, na pintura, de

artista ‘sem nenhuma ligação com escolas ou professores’ e que ‘aprendeu

fazendo’”760

, e quando fala de um espetáculo como Safra ‘65, somente de

jovens intérpretes, João Antônio se esbalda; todos têm o perfil que ele

imaginava mais nobre. Sobretudo a cantora Tânia Maria, cuja biografia

guarda traços parecidos com a dele: “Criada em Volta Redonda, é filha de

um operário especializado da Usina, técnico da fabricação de aço e, nas

horas de folga, instrumentista amador de cordas. Tocava banjo nos tempos

dos chorinhos e viu ‘que a menina pegava bem’ no aprendizado musical.”761

Ao falar de um repertório mais variado e sem hierarquias muito

precisas, é inevitável chamar atenção para o tipo de erudição caótica que o

jovem escritor ia construindo para si mesmo. Nela, referências as mais

eruditas combinavam-se diretamente com outras genuinamente populares.

Matérias sobre livros e documentos históricos combinam-se a matérias sobre

sambistas, críticos intelectualizados de cinema somam-se a pintores

favelados de arte naif, matérias sobre o concurso Garota de Ipanema

alternam-se com outras sobre a Paixão de Bach, passando pela feira de

temas portugueses, pela palestra do papa da logosofia, pelo perfil de cantoras

e atrizes, pelas movimentações do teatro amador etc, tudo isso ia compondo

um universo de referências multifacetado do qual o jovem escritor, recém-

chegado de Presidente Altino, tirou vários proveitos. Afinal, ele também era

757

In, JB, RJ, s/d. 758

“Sossego dá pintura também”, in JB, RJ, 09/12/65. 759

“Poesia de João nasce do canto”, in JB, RJ, agosto de ’65. 760

“Pureza de Cidinha reabriu a Goeldi”, in JB, RJ, 02/03/66. 761

“As jovens sementes da safra 65”, in JB, RJ, 17/06/65.

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376

um autodidata. E, intelectualmente, sentia necessidade de fazer conviver o

universo popular, o seu de origem, com o erudito, o plano de sua afirmação

como “intelectual”, escritor e jornalista diferenciado.

É muito sintomática essa frase que diz “sem escolas ou professores”.

Parece evidente que, para João Antônio, a vocação desenvolvida

isoladamente, num processo “puro” do indivíduo com ele mesmo, permitia

uma arte livre de influências dogmáticas e formais.

E é curioso notar que, apesar de em vários momentos João Antônio

ecoar posições estéticas ou ideológicas em geral identificadas com a

esquerda, ele mantinha uma considerável independência em ambos os

planos, e valorizava isso também em seus entrevistados. João Antônio

defendia uma arte ideológica e politicamente independente.

É o que destaca, por exemplo, no espetáculo Reação: “É

simplesmente um musical de um grupo – 3D Trio – que faz música popular

sem a preocupação de pertencer a esta ou aquela divisão política [grifo

meu], em que se encontram os atuais shows. (...)/ Reação é um libelo contra

aqueles que querem impingir idéias pessoais, ou de poucos, aos outros e é

contra qualquer tentativa de fazer política em arte, sendo que nós cantaremos

o amor, a flor, o morro ou a fome, mas com consciência da nossa liberdade

diante de tais elementos e sem aplicação de quaisquer objetivos políticos.

(...) Achando que ambas as tendências são bitoladas no atual show

musicado, e que tanto os pertencentes à esquerda-festiva-lítero-perfumada-

intelectual com seus cabeludos de Copacabana, como os chamados meninos

de Ipanema apenas-de-praia, estão se perdendo nos exageros de uma briga

sem proveito para a música popular brasileira (...).”762

762

“De Opinião a Reação todos cantam o povo”, JB, RJ, 23/05/65. A expressão esquerda-festiva-lítero-

perfumada-intelectual não é do diretor do espetáculo, mas do próprio João Antônio e de seu uso corrente,

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377

Essa mesma independência João Antônio enaltece no crítico de

cinema Maurício Rittner: “Rittner permanece numa posição de grande

coragem e dignidade diante do chamado Cinema Novo, achando que embora

os nomes de Nélson Pereira dos Santos, Khouri, Roberto Santos, Rui Guerra,

Saraceni (entre os principais, claro) hajam elevado o cinema nacional a um

nível estilístico, evoluindo como tema e inteligência ‘com admiráveis

explosões de talento’, depois se transformou em rótulo, dando origens até a:/

[diz Rittner] – O Cinema Novo tem-se transformado numa molecagem, em

que se confundem atrevimento e coragem com uma zanga sem sentido

contra tudo e contra todos e, ainda que isto reflita, de certa forma, o

inconformismo de nossos cineastas moços, o que é um bom sinal, o fato é

que já se está fazendo um cinema zangado e preconcebido, partindo para

uma espécie de comodismo e essa coisa detestável que é estar na moda.

Falar mal de tudo e de todos é uma posição muito cômoda e desonesta”.763

Curioso, aqui, é a uso pejorativo que Rittner faz do termo “zangado”,

tão caro ao escritor. Como se vê, estava na moda falar mal de tudo e de

todos. Mesmo assim, a força moral do jovem crítico de cinema, vindo a

público desmistificar uma geração cultuada de cineastas, evidentemente

agrada ao jornalista João Antônio.

Mas havia valores positivos a serem defendidos, havia, afinal, alguma

hierarquia em sua concepção estética, ou pelo menos em seu coração, e que

aparece no conjunto das matérias do JB. Um deles é um ideal nacionalista,

que a todo momento invoca a maior ou menor “autenticidade” das formas de

arte, analisada a partir do caráter “verdadeiramente brasileiro”, seja de um

samba, seja de um espetáculo de mímica, de um espetáculo sobre o carnaval

conforme depoimento de Marília de Andrade, colhido em 20/07/2003. 763

“Rittner e o cinema passado a limpo”, JB, RJ, 11/07/65.

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carioca, da literatura de Hélio Pólvora ou do festival de cultura em Arcozelo.

Num comentário sobre o show de Aracy de Almeida cantando Noel Rosa,

por exemplo, João Antônio não hesita em classificar o repertório como “a

nossa música mais verdadeira”, ou os músicos especialmente convidados

como “outros valores da música popular autêntica”.764

Em outra matéria

bastante curiosa, sobre o show Primeiro tempo 5 x 0, dirigido pela dupla de

produtores Luiz Carlos Miele e Ronaldo Bôscoli, e que fazia uma defesa

explícita da Bossa Nova, contra aqueles que a acusavam de ser uma “filha de

pais desconhecidos” na música popular brasileira, de influência estrangeira e

sem raízes autenticamente nacionais, João Antônio em nenhum momento

endossa explicitamente a “autenticidade” do novo gênero musical. Ao

contrário, embora elogiando a execução, condena as caricaturas musicais

feitas em cena de Miltinho e Isaurinha Garcia, por ferir “uma das intenções

do espetáculo quando, no início, Taiguara [o cantor] diz que, antes de tudo, é

necessário muito amor, respeito alheio e, principalmente, muito bem para

dar”.765

Mas ele é bem mais franco na matéria extremamente elogiosa sobre o

escritor Hélio Pólvora: “Fiel à terra, achando que a literatura brasileira será

mais nacional à medida em que se afastar dos modismos importados, Hélio

Pólvora reafirma a sua vocação brasileira de escritor, e capta no próprio

meio do sul da Bahia os recursos de linguagem para recriar no plano da

ficção os seus compromissos com a terra e com a própria prosa artística”. E

reproduz declarações do próprio Hélio, que vão na mesma direção: “Num

país como o nosso, que ainda não esgotou a geografia literária, ela [a

literatura] deverá revestir-se de aspectos marcadamente locais, sob pena de

764

“Canto e memória do samba”, in JB, RJ, 12/11/65. 765

“A bossa e os gols”, in JB, RJ, 07/06/66.

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estiolar-se em manifestações falsamente universais; descobrindo o nosso

povo, denunciando situações dolorosas, a literatura contribuirá à formação

de um quadro cultural próprio, que nos definirá como portadores de cultura

própria.”766

E esse tema reaparece quando João Antônio dá voz a Ignácio Loyola

Brandão: “É ainda o autor de Depois do sol quem situa a natureza dos

escritores de outra linha, no dizer de Loyola, esnobes: – Escrevem em São

Paulo, mas poderiam escrever em Nova Iorque, Paris, Londres, Istambul.

Entende? Eles ainda não se entrosaram no grande movimento da literatura

urbana paulistana, que é a coisa mais importante, e que até as outras artes,

como o cinema, já sentiram. E essa coisa importante não é regional, pois a

temática aqui contida é universal”.767

Ambos os projetos, o de Hélio Pólvora e o de Ignácio Loyola, têm

procedimentos de composição comuns aos que vimos João Antônio almejar

em suas cartas a Ilka Brunhilde Laurito.

Em negativo, vemos esta mesma valorização de uma estética

nacionalista em uma matéria sobre a montagem teatral da história da noviça

rebelde, aqui intitulada Música, divina música. Numa primeira matéria, ele

fizera um perfil distante mas positivo da atriz escolhida para o papel de

Maria von Trapp, a protagonista da história, elencando suas experiências

profissionais, as academias de artes dramáticas por onde havia passado, e

relatando a maneira como conseguiria o papel após testes massacrantes. Mas

a segunda matéria é, evidentemente, feita de má vontade. Ele passa todo o

tempo listando informações que mais parecem tiradas de um release

promocional (número de técnicos envolvidos na produção, quantos músicos,

766

“Estranhos e assustados no purgatório”, in JB, RJ, 08/05/66. 767

“A revolta que vem do silêncio”, in JB, RJ, 15/12/65.

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380

quantos dias de ensaios, qual o comprimento do carpete usado no cenário e

quantos homens foram necessários para carregá-lo, como funciona o sistema

de interfones etc). E o fecho da matéria é de uma ironia evidente: “O mais

curioso decorreu do apito utilizado pelo capitão Von Trapp, que necessitou

da aprovação do Ministério da Marinha. O contra-regra, por sua vez,

selecionou durante cinco dias o apito que mais se identificasse ao original

utilizado na Broadway”.768

Outro valor positivo a ser defendido é a profissionalização da carreira

artística. Alguns cantores tocam no assunto. A então jovem atriz Fernanda

Montenegro, por sua vez, louva a regulamentação da profissão de ator,

mostrando que esse desejo de reconhecimento oficial era comum a mais de

um meio artístico. Em sua entrevista com Esdras do Nascimento,

sintomaticamente intitulada “Um escritor, seu ofício e seu sucesso”769

, João

Antônio registra: “– Começa a existir a profissão de escritor. E existirá, de

fato, inclusive com suas decorrências de ordem econômica, com a

possibilidade de o autor viver única e exclusivamente da renda de seus

livros, no dia em que o escritor se apresentar ao editor pura e simplesmente,

oferecendo um negócio e não implorando um favor. (...)/ Esdras do

Nascimento representa, de certa maneira, uma mentalidade nova de encarar

o fenômeno literário no Brasil e para expressá-la, não escolhe palavras:/ – O

jovem autor brasileiro sofre inútil e solitariamente o seu drama de escritor

inédito. Por não encarar profissionalmente o seu ofício, vive amedrontado.

Tem pavor de conversar com o editor em termos de negócio, e não apenas de

literatura”.

768

“A fábula da divina música”, in JB, RJ, 14/10/65. 769

In JB, RJ, 05/05/65.

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Também o colega Osman Lins vivia essa nova consciência de classe:

“Osman Lins (...) forma entre uma pequena faixa de autores nacionais que

demonstram um sentido claro de consciência profissional. Tanto no

momento de criar como na ocasião da reivindicar seus direitos autorais, o

que, entre nós, ainda é insolente e perigoso, além de péssima política

editorial e publicitária”.770

Hélio Pólvora também pensava no assunto: “O problema da

profissionalização do escritor, que vem sendo, dentro de uma área de

escritores atuais, uma preocupação e até motivo de debates e de um recente e

vasto inquérito que uma revista especializada publicará é, no entender de

Hélio Pólvora, não um problema isolado, e sim uma falha que faz parte do

todo da estrutura que envolve o Brasil”.771

São muitos os temas que aparecem na produção jornalística inicial de

João Antônio. Espera-se que o levantamento feito aqui, embora pretendesse

sobretudo elencá-los, tenha entretanto conseguido fornecer um breve painel

dos assuntos então discutidos num dos veículos de cultura mais influentes da

época. Muitos deles reaparecerão adiante, quando o texto jornalístico do

escritor se liberta do texto bem-comportado do Jornal do Brasil, do tom

sempre respeitoso que o Caderno B exigia.

Mas há, entre as 63 matérias daqueles primeiros dois anos de

jornalismo, uma especial. Nela, uma nova fórmula de jornalismo aparece, e

nela vemos alguns procedimentos de ordem literária. Entre as outras 62

matérias publicadas no JB, ela é um fato isolado, uma experimentação única,

770

“Os interesses criados”, in JB, RJ, 08/09/65. 771

“Estranhos e assustados no purgatório”, in JB, RJ, 08/05/66.

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mas que guarda muitas semelhanças com a natureza das matérias que faria

mais tarde, no momento da fusão entre literatura e jornalismo.

Em primeiro lugar, o texto não tem “gancho”, isto é, não há notícia a

ser divulgada. Em segundo, não se trata da crítica de um espetáculo, do

perfil de um intelectual ou artista, da cobertura de um evento. É um episódio

de vida. A matéria, chamada “Uma lição de abismo”, com fotos de Brás

Bezerra, narra um quase acidente com um páraquedista.772

Ela tem uma abertura nitidamente diversa das usuais no JB: “Quando

se lança, queixo baixo contra o peito, os punhos se cruzam firmes quase

como se estivesse orando, as pernas juntas completam o encolhimento à

espera da queda. O contra-guerrilheiro Severino, Severino do Nascimento,

está prestes a cair”.

É um belo começo, de tom fortemente literário. Os punhos cruzados,

“como se estivesse orando”, uma imagem forte e a escolha do verbo menos

usual “orar” em vez de “rezar”, é sintoma de liberdade na redação.

Curioso que, na primeira matéria mais livre de João Antônio, o tema

escolhido tenha sido o exercício de um regimento de pára-quedistas da Força

Aérea Brasileira, no centro de manobras simuladas de capturas de

guerrilheiros, em Resende (RJ), e, mais especificamente, o episódio ocorrido

com um contra-guerrilheiro. Mais um traço da independência político-

ideológica da arte?

Assim como a abertura e a imagem da reza, há várias outras

formulações de índole eminentemente literária. Há, por exemplo, efeitos de

estilo, como quando, com frases curtas, sincopadas, ele parece transformar

cada nova informação em uma revelação impactante sobre seu

“personagem”: “O último homem da ala direita. Além do nome, ou antes,

772

“Uma lição de abismo”, in JB, RJ, 27/10/65.

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383

um número. 1.309.” Ou imagens explicitamente literárias, às vezes no mau

sentido da palavra: “No momento em que acionou o pára-quedas de

emergência e ganhou o vôo solitário, (...) o alívio, a terra lá embaixo era

azul”, ou “embora balance em redor da cauda da nave e não haja

amortecedor para seu flutuar desesperado [grifo meu]”, ou ainda “pássaro

sem asas”.

Há, também momento de suspense criados ora por meio de repetições,

de frases que ecoam umas nas outras, ora por meio de parágrafos nos quais

as informações são dadas antes de se dizer sobre o que ou quem se está

falando, e ainda num estilo dissimuladamente, mas propositalmente,

enigmático. No primeiro caso, o das repetições, logo se destacam duas

seqüências. A primeira começa com a frase “A vida se lança no ar e o pára-

quedas não se abre”, que abre o terceiro parágrafo e termina com a abertura

do parágrafo seguinte: “A vida balança no ar em seis minutos de desespero.”

A segunda seqüência, logo adiante: “A vida de Severino depende de

Severino. E apenas.”, que fecha o quinto parágrafo, e a frase: “Sua vida só

depende dele”, que fecha o seguinte.

No segundo caso, o daqueles parágrafos que constróem o suspense

sendo propositalmente obscuros até a revelação final, podemos citar:

“Durante todo o trâmite dramático, também suportando 25 quilos às costas,

o pára-quedas, um outro tipo de homem operava irmanado um trabalho

diferente, a lhe exigir igualmente calma e como todos ali participantes,

nervos acima da emoção. E era muito necessário que, como os outros,

fundamentalmente, não atrapalhasse. O fotógrafo”.

Ou ainda: “A mão esquerda à cabeça não é para o fotógrafo,

tampouco gesto de mão que evite a fuga desvairada do capacete. É que

Severino do Nascimento, o 1.309, ainda não desmaiou, embora balance em

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384

redor da cauda da nave e não haja amortecedor para seu flutuar desesperado,

pássaro sem asas, preso ao cordão. O 1.309 está lúcido e a mão esquerda à

cabeça é o sinal convencionado”.

O uso do jargão específico do universo retratado e seus personagens

ainda é tímido, verificando-se uma ou duas ocorrências, o que para João

Antônio, como se verá, é bem pouco. Mas, como vimos nas cartas e nos

textos de ficção, João Antônio rompe com a sintaxe cartesiana do jornalismo

clássico e adiciona aqui os seus “breques” tão característicos. São partículas

de frases, cujo contexto e cuja emenda com as que vêm antes torna

inteligíveis. Um parágrafo, por exemplo, se abre com “A certeza líquida.”,

outro com “Uma dúvida.” Uma outra frase é somente “E apenas.”, outra “E

lúcido”.

Essa matéria está longe do brilho das que viria a publicar na revista

Realidade. Porém, comparada ao formato conservador de suas outras

matérias no JB, ainda que os temas fossem palpitantes instantâneos da cena

artística carioca, isto é, nacional, e a “zanga” pulsasse nas entrelinhas, esta

pequena matéria sobre os pára-quedistas contra-guerrilheiros tem muito mais

a ver com o projeto literário que o escritor iria desenvolver dali em diante.

São combinações como essa, feita à base de recursos como esses, que

lhe permitiram cristalizar um jeito muito próprio de escrever, no qual as

fronteiras entre ficção e não-ficção se perdem quase completamente. Para o

bem e para o mal. O crítico José Castello foi o primeiro a enxergar o que

chamou de a explosão de gêneros na obra de João Antônio.773

Algum outro

menos generoso poderia chamar da diluição dos gêneros. Mas, antes de se

tomar uma posição, vale a pena se acompanhar a segunda etapa na gestação

desse projeto: a revista Cláudia.

773

Em palestra proferida na Unesp de Assis, nunca publicada em livro.

Page 385: João Antônio: Uma Biografia Literária

385

Revista Cláudia

Em abril de 1967, mais exatamente no dia 4, às 3:40 h da madrugada,

nasceu Daniel Pedro de Andrade Ferreira, filho de João Antônio e Marília.

Diante das dificuldades financeiras que sofriam enquanto ele

trabalhava no JB, talvez tenha sido esta nova condição de pai que o fez

aceitar, nesse mesmo ano, o convite do jornalista Celso Kinjô para escrever

uma coluna regular para o jornal Última Hora, de São Paulo. E, logo em

seguida, João Antônio acumulou a coluna do UH com outro emprego, o de

jornalista da revista Cláudia, também em São Paulo.

Assim mudou-se ele de volta, trazendo a família para sua cidade natal.

Segundo sua esposa, ele teria voltado por questões de trabalho, mas também

por sentir-se atraído pelo movimento jornalístico paulistano. Eles

permaneceriam na capital paulista algo em torno de dois anos, tendo tido,

nesse período, duas residências: a primeira na rua Vitória, na Boca do Lixo,

e a segunda na Lapa, de onde mudaram-se de volta para o Rio, em 1969.774

Na revista Cláudia, cuja redação funcionava na rua João Adolfo 102,

João Antônio dá alguns passos rumo a sua combinação muito particular de

literatura com jornalismo, embora ainda não tenha sido lá que atingiu o

ponto de fusão. Mas, segundo Marília, ele tinha na revista uma posição de

destaque, como repórter diferenciado e com regalias na escolha de suas

pautas, o que lhe permitiu alguns avanços.

Olhando o conjunto, algo interessante que ganha forma mais nítida é

uma certa divisão das matérias por gêneros. Talvez essas categorias já

estivessem esboçadas em seus trabalhos no JB, mas em Cláudia esses

gêneros tornam-se bem mais evidentes. Como essa análise irá demonstrar,

774

Depoimento de Marília Andrade, colhido em 20/07/2003.

Page 386: João Antônio: Uma Biografia Literária

386

nessa primeira revista os gêneros presentes são: o retrato, as matérias

“quebra-tabu”, e as de variedades.

Sua primeira matéria saiu em agosto de 1967. É um retrato do poeta e

pioneiro modernista Menotti del Picchia.775

Nela o conceito do artista como

um cidadão circular, que não respeita as fronteiras sociais, de que já se falou,

aparece com clareza. Nenhum retrato de João Antônio foge a isso. Assim

como ele, por meio da literatura, pôde deixar o universo estritamente

proletário e participar simultaneamente de outros universos sociais, aos

demais artistas as mesmas exigências eram impostas. Diz o escritor, listando

as atividades outras de Menotti: “deputado estadual algumas vezes e federal

outras tantas, jornalista e fundador de jornais e revistas, industrial do cinema

na aurora heróica do falado entre nós, fabricante fracassado de relógios sem

ponteiros e sem rubis nos idos dos anos 20, fazendeiro de pálidos sucessos a

vida inteira e a vida toda, principalmente, poeta”. Em outra passagem ele

diz: “advogado e fazendeiro”, para depois elencar as amizades de Menotti na

alta roda paulista, como Chiquinho Matarazzo, Gianino Carta e Fábio Prado.

Colocando na devida perspectiva a relação entre modismos da época e

o legado das gerações anteriores – “a onda modernosa atual de se procurar

na arte popular fontes para uma nova poesia, já não era novidade alguma em

1917” –, e desfilando uma erudição específica quanto à bibliografia sobre o

autor, que combinava escritores, pintores e críticos – ele cita, entre outros,

Mário de Andrade, Villa-Lobos, Osvald de Andrade, Graça Aranha, Tarsila

do Amaral, Alberto Rovai e Antonio Candido – ele fazia um balanço da

contribuição do poeta para o modernismo especificamente e para a literatura

brasileira em geral.

775

“Como é que o caboclo Juca Mulato viveu 50 anos e ainda está forte”, in Cláudia, Ano VII, n. 71, ago.

67.

Page 387: João Antônio: Uma Biografia Literária

387

A abertura foge um pouco dos padrões estritamente jornalísticos, na

medida em que prolonga um efeito de suspense quanto à identidade do

retratado (que não é esclarecida no título, e a matéria não tem olho). Ela

introduz o retratado a partir das opiniões sobre ele de outros nomes das letras

brasileiras, entre os quais Mário de Andrade, Paulo Rónai, Cassiano

Ricardo, Gilberto Freire e Álvaro Lins. Apenas na 36a linha o nome Menotti

del Picchia aparece. Até então, a única pista era o nome de seu mais famoso

livro, o Juca Mulato.

E há, aqui e ali, certos fraseados distintamente não jornalísticos, como

por exemplo: “Vítor Brecheret (...) cuja feia figura (...) lhe acorda uma

memória comovida e encharcada de simpatia.”. O verbo, “acordar”, com

este sentido, é um tanto precioso, assim como o adjetivo “encharcada”.

Não obstante estas pequenas liberdades em relação à receita

jornalística, e o fato de este retrato ser bem mais compreensivo do que a

maioria dos escritos para o Jornal do Brasil, muitos mais restritos a algum

lançamento ou a algum fato concreto, o tom geral da matéria é ainda

predominantemente jornalístico, alternando parágrafos informativos com

falas do retratado, que em geral corroboram o que já foi dito.

O segundo texto publicado na revista Cláudia, intitulado “A cegonha

morreu de parto”, inaugura o gênero das matérias contestadoras, feitas sobre

e para a quebra de tabus, quase sempre na área de comportamento.776

Afinal,

esta era uma das funções sociais do artista. A matéria versa sobre dois livros,

É natural e Sempre foi assim, lançados um ano antes, pela médica Sabá

Gervásio, com ilustrações do artista Flávio Império. Comenta assim a nova

776

“A cegonha morreu de parto”, in Cláudia, Ano VII, n.74, nov. 67.

Page 388: João Antônio: Uma Biografia Literária

388

abordagem que o livro propõe ao assunto da concepção junto às crianças e as

reações pró e contra que os livros despertaram desde seu lançamento.

A abertura da matéria é inteiramente literária, embora aparentemente

constitua trecho de um dos livros que fazem o “gancho”. João Antônio

reproduz um diálogo entre uma criança e um adulto, no qual a verdade sobre

o nascimento dos bebês é naturalmente revelada. Só após o primeiro

“chapéu”, isto é, da primeira interrupção no texto, marcada por uma frase em

destaque, ele instaura o registro jornalístico.

Há, porém, dois elementos que distinguem essa matéria do ponto de

vista formal; algumas frases longas além das convenções jornalísticas,

comprimento este que exige uma sintaxe menos direta e óbvia, e uma

marcada tendência à enumeração, à composição de seqüências de palavras.

Das frases longas, e de sintaxe menos direta, pode-se dar o seguinte

exemplo: “Falando do funcionamento do corpo e do homem e da mulher, em

forma de história e dispostos a enfrentar e derrubar os preconceitos, pois na

luta de sua aceitação ‘a criança não é o problema, e sim o adulto’, os

livrinhos vinham nas pegadas da experiência dos contos infantis da autora”.

Aqui, como se vê, a estrutura sintática vai além da ordem direta tipicamente

jornalística e informativa. São pequenos passos como este que o foram

levando ao ponto exato de sua fusão.

No que se refere às chamadas enumerações, temos muitos exemplos,

como quando cita os países cujas publicações na área foram analisadas

durante o processo de composição dos livros em pauta – “(...) mandou vir

publicações de educação sexual infantil da Alemanha, França, Itália, Suécia,

Estados Unidos, Inglaterra, Holanda e outras europas” – ou ao falar dos

problemas de produção dos livros – “Apareceram problemas quanto à

natureza da capa, do formato, da composição dos textos, das ilustrações e do

Page 389: João Antônio: Uma Biografia Literária

389

aspecto gráfico geral” –, ou simplesmente ao comentar as reações dos pais

aos livros – “Nem todos tiveram o respeito e a hombridade de responder

humildemente à criança ‘não sei’, ao invés de bater, gritar, agredir, xingar ou

advertir”. Aqui ainda de forma tênue, essa mania de listar palavras já se faz

presente. Seja enumerando substantivos próprios, comuns, verbos, gírias etc,

esse traço enumerativo e enfático torna-se característico da composição do

escritor. Seguindo a lógica do bom malandro, talvez um eventual pagamento

por lauda de texto também contribuísse para isso...

A terceira matéria de Cláudia se encaixa no gênero variedades. Fala

de Iemanjá, das várias formas de culto à deusa do mar.777

Nela, apesar do tom jornalístico geral, há pelo menos dois elementos

que distinguem o tratamento por ele dado à língua. Um é a já mencionada

tendência à enumeração. A matéria já começa listando os nomes dados a

Iemanjá pela cultura popular: “Dona de muitos nomes, Janaína, Dona

Janaína, Princesa do Mar, Sereia do Mar, Oloxum, Dona Maria, Rainha do

Mar, Sereia Mucuña, Inaê, Princesa do Aioká ou Dandalunda (...)”. Para em

seguida enumerar os pretendentes da deusa: “Muitos pintores, compositores,

poetas, homens inteligentes, pescadores, doqueiros, boêmios já quiseram se

casar com Janaína (...)”, e seus apaixonados: “Iemanjá tem muitos

apaixonados. Entre os seus maiores – Dorival Caymmi, Jorge Amado,

Odorico Tavares, Caribé, Edu Lobo, Vinícius de Moraes, Édison Carneiro,

Luís da Câmara Cascudo e o poeta de Pasárgada”.

Há um certo fascínio pelas palavras quando postas numa seqüência,

qualquer que seja a lógica por trás dessa seqüência. Como se houvesse, para

além do caráter informativo, normalmente menos dado a essas

777

“Todos querem se casar com Iemanjá”, in Cláudia, Ano VII, n.75, dez. 67.

Page 390: João Antônio: Uma Biografia Literária

390

prodigalidades, mais enxuto e direto, um efeito literário, que dá no leitor um

banho de sonoridades. Este recurso possui, ainda, uma índole nitidamente

circular, pois sinônimos extraídos das mais diversas fontes, entre cultas e

populares, estão colocados lado a lado. Uma democracia léxica.

Nota-se ainda nesta matéria o “ouvido” apurado do escritor para o

jargão popular em torno da entidade. Ele cita: “filhos de fé”, no sentido de

pais, mães e filhos de santo, “guias”, intermediários entre os deuses da

umbanda e os pais de santo, as “encomendas”, os ex-votos. Eis uma

estratégia literária nitidamente usada no jornalismo, que ele já fazia em

“Malagueta, Perus e Bacanaço” e “Paulinho Perna Torta”.

A próxima matéria veio em fevereiro de 1968, sendo ela também do

gênero variedades. Trata-se de uma “Pequena história marota do

Carnaval”.778

A primeira coisa que chama atenção é o fato dela não ter

propriamente uma notícia a dar. Ela se aproveita das proximidades do

Carnaval para levantar a história dessa festa até que se tornasse a mais

famosa do Brasil, “Passando em revista os gregos, os egípcios, os romanos,

os teutos, os espanhóis, os portugueses, os papas e altas autoridades e

recorrendo principalmente ao povo-povo da cidade do Rio de Janeiro”. É,

portanto, uma matéria de oportunidade, de interesse geral, mas sem um fato

jornalístico específico a noticiar.

O pequeno trecho de abertura acima reproduzido, o chamado “olho”,

porém, aponta para a segunda característica geral da matéria, e que tanto

caracteriza a produção jornalística madura de João Antônio: a busca por um

modelo cultural que integre os valores eruditos aos populares. E chama

atenção também para o lugar de onde João Antônio procurava fazer essa

778

“Pequena história marota do Carnaval”, in Cláudia, ano VIII, n.77, fev. 68.

Page 391: João Antônio: Uma Biografia Literária

391

aproximação. Ele é o intelectual que tem acesso a várias fontes eruditas, e

sabe nomes e títulos e é capaz de remontar a tradições culturais que nada

têm a ver com a cultura popular brasileira, mas é do ponto de vista do não-

especialista, do não-acadêmico, que ele fala, procurando diluir-se no “povo-

povo”, para não adquirir um tom professoral. E ele tem estratégias de

redação para fazê-lo. Um dos trechos da matéria no qual a erudição surge

explicitada em citações de obras famosas, é aquele no qual ele discorre sobre

a etimologia da palavra Carnaval. Para introduzir um dado trecho, no qual

ele se apropriará da bibliografia citada por Câmara Cascudo (Adolfo Coelho,

Frei Domingos Vieira, Littré), citando de passagem latim e italiano, é

preparada uma frase que procura “quebrar” qualquer distância entre ele e o

leitor: “Outro assunto que tem esquentado orelhas de estudiosos é a palavra

carnaval”. Logo em seguida, ao final de toda as citações, ele arremata:

“Como se vê, isso da explicação da palavra Carnaval é assunto para sábios”.

Há muitos elementos estilísticos que diferenciam esta matéria das que

fazia para o JB e aproxima-as de seus escritos jornalístico-literários

posteriores. Há, no texto, uma forma menos direta de comunicar, com frases

ora mais longas e virguladas, ora de sintaxe fragmentada, como se vê em:

“Segundo a crônica bisbilhoteira de alguns autores, o próprio Napoleão era

homem de cair na gandaia. E integralmente. Mascarou-se mais de uma vez e

claramente demonstrava apreciar não especificamente os alegres prazeres

carnavalescos, mas os imprevistos e surpresas que se escondiam por detrás

das alegres mascaradas”. Há também longuíssimas citações. E há palavras e

expressões pouco usuais em textos jornalísticos, como “atilados” ou “Davam

ao abandono os cuidados” e, claro, as enumerações. Os exemplos são

inúmeros: “E de seu palácio era fácil e provavelmente agradável assistir aos

desfiles de carros alegóricos, às corridas de cavalos, às batalhas de confete, à

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392

famosa corrida dos corcundas, ao lançamento de ovos” ou “Havaianas,

gregas, melindrosas, romanas, tirolesas, gitanas. As fantasias ganham o

Carnaval” ou ainda ao listar inúmeros nomes de blocos “Mamãe Lá Vou eu,

Flor do Abacate, Mimosas Cravinas, Cananga do Japão, Recreio das Flores,

Paladinos da Cidade Nova, Gualemadas, Só Pra Moer, União da Floresta,

Reino das Magnólias, Papoulas do Oriente, Caprichos da Estopa, Arrepiados

e outros” ou ainda “Davam ao abandono os cuidados, as mesuras, os bons

modos, as hierarquias, as obediências, e podiam comer, beber, xingar,

desacatar, ridicularizar”. Como se vê, as enumerações proliferam, tanto de

substantivos comuns quanto próprios e mesmo de verbos. Há um evidente

encanto com o efeito que a sonoridade das palavras listadas parece criar;

talvez a mais nítida cicatriz de uma vocação musical reprimida.

A última matéria publicada em Cláudia fala de um seminário sobre

prostituição, ocorrido em Ribeirão Preto. Como se vê, enquadra-se por sua

vez na categoria “quebra-tabu”. Nesta, há algumas novidades formais. O

“olho” da matéria, por exemplo, não é composto por um texto redigido de

forma a captar o interesse do leitor pelo assunto; trata-se, isto sim, de uma

lista de estatísticas ou frases cortantes, que torna esse primeiro contato mais

seco e mais impactante: “90% das prostitutas são alcoólatras / 77,2%

provêm da zona rural / 65,5% são analfabetas / Mais de 60 % não tem

capacidade nem para ser empregada doméstica / A penicilina está perdendo

a guerra contra a sífilis, que continua aumentando em todo o mundo”.

Logo em seguida, vê-se um texto em itálico, que dá o contexto do

seminário e resume suas conclusões sobre o quadro da prostituição na

sociedade brasileira. É a primeira abertura da matéria. Vem um chapéu,

criando intervalo. Então vem a segunda abertura, já não italicizada,

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393

nitidamente fora dos padrões jornalísticos tradicionais: “Afinal, ia se dar

início a algo inédito na história brasileira. O visitante, desconfiado, penetrou

num salão com capacidade para 500 pessoas. Viu o retrato do patrono,

Dante, no alto da parede e, no auditório, uma assistência praticamente só de

mulheres – aproximadamente nove em cada grupo de dez participantes. Na

platéia, os jovens de menos de 25 anos dominavam. E esperavam. Sobrava

muita gente de pé. Mas ele continuava desconfiado e, por via das dúvidas,

conferiu – eram oito horas da noite, mês de agosto, dia 7. Não, não havia

nenhum equívoco. Era o dia e a hora em que começava, na cidade de

Ribeirão Preto, o 1o Seminário Regional Estadual de Estudos Sobre a

Prostituição.” Com aberturas como essa, João Antônio procura criar um

suspense até que, apenas na última frase, esclarece a situação e dá o tom

jornalístico. Mas este suspense específico, criado de forma tão esquemática,

chega a ser engraçado.

A matéria, daí em diante, perde sua relevância na questão que importa

a essa pesquisa, limitando-se a fazer uma descrição excessivamente

minuciosa e tediosa de uma noite de palestras, resumindo-as em seqüência,

com estatísticas e resumos de certos aspectos do problema na base de

tópicos enumerados. Claro que, deixe-se registrado, de maneira nitidamente

partidária de uma compreensão social do tema, não condenatória ou

simplesmente moralista. Uma observação de João Antônio, ainda que

levemente irônica, é eloqüente do partido do qual a matéria está impregnada:

“(...) imprimia coragem e franqueza diante da ‘situação’ da prostituição

(durante todo o Seminário se evitou terminantemente a expressão

‘problema’)”. A se destacar, apenas, a constante das enumerações e,

sobretudo, o largo uso do “jargão”, ou se se preferir, do “dialeto” ligado à

prostituição. João Antônio cita com fartura expressões como, entre outras,

Page 394: João Antônio: Uma Biografia Literária

394

livre-atiradoras, trottoir, inferninhos, casas bonitas, nome de guerra, azeite

(que significa “bolinha”, ele explica !?!).

A Realidade

A redação de Cláudia funcionava no mesmo prédio da redação de

outra revista da editora Abril, a Realidade, na av. Otaviano Alves de Lima

800. Esta, fundada em 1966, sob a direção do experiente jornalista Paulo

Patarra, com uma proposta bastante moderna e ousada para a época, reunia

uma elite de jornalistas, donos de um texto diferenciado, que iam sendo

impressos, encadernados e distribuídos com identidade gráfica muito mais

moderna que a média das demais revistas, e vitaminados com uma pauta

bem mais contundente que a da média das revistas, sobretudo no âmbito do

comportamento. A Realidade, em seus primeiros anos, era um

acontecimento no mercado. Na época, os grandes grupos Abril e Globo

estavam se formando, e a Realidade era uma espécie de jóia da coroa da

Abril. Entre seu elenco de profissionais estavam nomes que impunham

respeito em seu tempo: Jorge Andrade, Walter Firmo, Narciso Kalili, José

Hamilton Ribeiro, Cláudia Andujar, José Carlos Marão, Paulo Henrique

Amorim, Luigi Mamprin, com destaque para Mylton Severiano da Silva, que

viria a se tornar o melhor amigo de João Antônio e seu biógrafo.779

Como já foi dito, a vinda da família para São Paulo decorrera do

convite para que João Antônio trabalhasse no jornal Última Hora mas,

779

Na data da redação deste capítulo, 11 de maio de 2004, esta biografia ainda estava em processo de

composição.

Page 395: João Antônio: Uma Biografia Literária

395

também, de seu interesse pelo “movimento jornalístico” de São Paulo.780

A

Realidade era, sem dúvida, a expressão do que esse “movimento” poderia ter

de mais moderno e avançado. E ele sabia disso.

Não foi difícil aproximar-se do grupo de jornalistas da revista. Mylton

Severiano, o Myltainho, inclusive, era vizinho de João Antônio e Marília na

Boca do Lixo. Já em 1967, uma primeira matéria assinada por ele aparece

nas páginas de Realidade, embora, a julgar pelas datas de publicação das

matérias seguintes, foi a partir de meados de 68 que João Antônio viu-se

oficialmente incorporado à equipe, vindo a publicar regularmente até março

de 69.

Foi quando se deu o acirramento das discordâncias entre Paulo Patarra

e os donos os grupo Abril sobre a compatibilidade entre o projeto editorial e

empresarial da Realidade e as exigências da lógica de mercado. Processo

este que culminou com a saída de Patarra, divisora de águas na história da

revista. Isso porque peças-chave do corpo de jornalistas, solidárias ao colega

diretor de redação, e principal defensor do projeto jornalístico alternativo

junto aos sócios da empresa, pedem demissão de seus empregos. João

Antônio está entre elas. Sua maior e mais fértil experiência profissional é

interrompida precocemente, não apenas pela perda do emprego, mas pelo

próprio fim do projeto editorial da revista em sua origem. Realidade

continuou a circular até 1974, mas desde 69 tinha outro sabor.

Ao se demitir, João Antônio vai trabalhar numa publicação

patrocinada pelo grupo Pão de Açúcar, a revista Bondinho, distribuída

gratuitamente, e de lá passa rapidamente pela editora Três, então sendo

montada pelo mesmo grupo que fazia a Bondinho. Em seguida, porém, a

convite do grupo Bloch, do Rio, João Antônio decide novamente deixar São

780

Depoimento de Marília Andrade, colhido em 20/07/2003.

Page 396: João Antônio: Uma Biografia Literária

396

Paulo para ir trabalhar na revista Manchete e, mais tarde, na Fatos e Fotos.

Data dessa segunda ida para o Rio o aluguel da pequena cobertura onde o

escritor moraria até a sua morte, com vista para a praça Serzedelo Correia,

no coração de Copacabana. A volta para São Paulo, sua cidade natal, dura

não mais que quatro anos. E a passagem pela Realidade, como jornalista

efetivado na equipe, apenas alguns meses.

Porém, por breves que tenham sido, esses meses marcaram-no

decisivamente, dando-lhe a chance de atingir o ponto máximo de sua

almejada fusão entre jornalismo e literatura.

De um ponto de vista mais prosaico e imediato, a revista deu-lhe

também uma projeção profissional ainda maior do que a que tivera como

repórter-especial do JB. É o que se deduz, por exemplo, do relato feito pelo

escritor Wander Pirolli, sobre a organização hierárquica do trabalho em uma

das matérias coordenadas por João Antônio para a revista: “João Antônio

fora encarregado pela revista Realidade, da editora Abril, para comandar

uma grande matéria sobre o clássico Cruzeiro e Atlético, então um

fenômeno nacional. A revista Realidade, mensal, e que costumava entrar

fundo em todos os assuntos, queria fazer uma reportagem histórica sobre o

acontecimento. (...) João Antônio e Alberico [Souza Cruz, mais tarde diretor

de jornalismo da Globo] explicaram como seria a jogada. E quem iria

participar dela. Roberto Drummond faria uma retranca sobre a interpretação

econômica do futebol. Fábio Lucas, escritor e crítico, ficaria encarregado de

sua sociologia. Os vestiários dos dois times estariam a cargo da competência

de Tião Martins”. Wander Pirolli e seu amigo Bley teriam ainda a missão de

“fazer as retrancas sobre as torcidas do Atlético e do Cruzeiro. “Não sei por

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397

que cargas d’água, me coube a parte do Atlético, sua charanga, sua gente,

desde o mais pobre e desdentado até um sizudo político de alto coturno.”781

Como se vê, enviado por Realidade para cobrir o evento, João

Antônio mobilizou a seu serviço boa parte da elite intelectual de Belo

Horizonte, e mais, pagando bem:

“– E vai ter pagamento?

– Na boca do caixa. Assistimos o jogo, entregamos a nossa parte, e

pronto.

Como o Bley não perguntasse qual seria nosso cachê, falei da

importância.

– Você está brincando.

– É a pura verdade.

– Mas eles vão pagar isso tudo por uma lauda e meia?

E pagaram. Por uma lauda e meia, receberíamos muito mais do que

dando duro durante o mês inteiro no Sol”.782

Era natural que, sendo a revista um posto avançado da elite

jornalística nacional, a projeção de João Antônio como jornalista

aumentasse. O sucesso chegava, e sem que concessões fossem exigidas de

volta. O artista encontrara o seu lugar no mundo real, no mundo produtivo.

O autor de um ensaio sobre a história da revista define-a da seguinte forma:

“A revista Realidade representaria um exemplo destacado do momento

inicial de implantação e consolidação de uma indústria cultural no país. (...)

apesar de fazer parte de um projeto editorial marcado pelas ligações e

contratos internacionais da Editora Abril, a execução da revista esteve a

cargo de um grupo de jornalistas sensível às necessidades da época,

781

Crônica de Wander Pirolli, escrita em 1992. Arquivo do autor. 782

Idem.

Page 398: João Antônio: Uma Biografia Literária

398

refletindo a inquietação cultural daquele momento. (...) Sem dúvida não se

tratava de um veículo da contra-cultura, que era representada por

publicações como O Pasquim, Movimento, Opinião. Realidade estava

perfeitamente inserida no establishment, mas soube aproveitar-se do espaço

(mercado) que era atraente, veiculando os temas polêmicos da época (que

eram tabus e hoje não são mais). Levantou esses temas polêmicos (aborto,

pílula [anticoncepcional], drogas, juventude, rebeldia etc) na área do

comportamento. E nisto ela foi importante, como porta-voz do espírito do

tempo. Mas não falava de política brasileira. (...) Donde uma composição

possível entre a direção da revista e seus interesses empresariais e uma

redação de melhor qualidade, extraída do contexto pré-64, poder explicar a

posição singular e excepcional de Realidade na história da imprensa

brasileira”.

Por fim, ele caracteriza o período em que João Antônio participou da

revista como “sua grande fase”, que chega ao fim a partir de 68 com o

endurecimento do regime militar e, conseqüentemente, da censura, bem

como devido ao desenvolvimento acelerado da indústria cultural, que

“precisa de velocidade, essa é uma característica sua, e Realidade era uma

revista mensal”.783

Marília, então sua esposa, é categórica ao relembrar a época: “A

Realidade foi a única fase da vida dele que eu o vi feliz”.784

Não era para menos. Estava praticando um tipo de jornalismo que

encaixava como uma luva em seu processo de maturação estilística,

trabalhava com alguns dos melhores profissionais do país, tinha uma

projeção pessoal e institucional inédita no meio jornalístico e literário,

783

Moreira, Roberto S.C. “A revista Realidade e o processo cultural brasileiro dos anos 60”, in Estudos de

Sociologia da Cultura, www.sol.unb.br/roberto/texto2.htm, 2000. 784

Depoimento de Marília Andrade, colhido em 20/07/2003.

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399

trabalhando numa revista que era ao mesmo tempo de esquerda e financiada

por um grande grupo editorial, o melhor dos dois mundos, ganhando melhor

do que nunca e, de quebra, morando perto do amigo Mylton Severiano da

Silva, na sua querida Boca do Lixo, onde desde a adolescência sentia-se em

casa. Com a família devidamente instalada, o filho pequeno, João Antônio

ainda encontrava tempo para freqüentar os taxi-dancings da região; com

Marília, quando a avó de Presidente Altino se encarregava do neto, ou, mais

freqüentemente, sem Marília.

Data do período em Realidade não apenas o ponto de fusão

“joãoantoniano” entre literatura e jornalismo, mas também a consolidação

do leque de gêneros com os quais o escritor trabalhava para a imprensa e

que, depois, viria a compor grande parte de sua obra publicada em livro.

Com base nos eixos programáticos levantados no período JB, esse leque de

gêneros se esboçou durante a passagem pela revista Cláudia, conforme

demonstrado, e ganhou forma definitiva em Realidade.

Divide-se nos seguintes tipos de matéria:

Variedades: temas desligados das artes e da vida cultural estrito senso.

No JB, produziu talvez apenas um espécime, a citada matéria sobre o quase

acidente de pára-quedas. Em Cláudia, a matéria sobre o Carnaval e a sobre

Iemanjá.

Comportamento: temas que, embora também desligados do mundo

das artes, diferem das variedades porque tratam de temas “tabu”. Têm uma

evidente e proposital índole contestadora, manifestação lítero-jornalística da

“vocação para o conflito” do temperamento do escritor. No conjunto do JB

não há qualquer uma digna deste nome, o tom geral é elogiativo e de adesão.

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400

Paisagens: matérias sobre lugares e seus personagens. No JB,

antecipando a consolidação do gênero, João Antônio estréia com uma

paisagem atípica para ele, a do Teatro Municipal do rio de Janeiro na estréia

da ópera Fosca, e faz ainda uma sobre o Embu das Artes, município

alternativo da grande São Paulo. Mas o gênero ainda não estava consolidado.

Em Cláudia, não o pratica nenhuma vez. Mas em Realidade, volta a ele com

matérias sobre o porto de Santos, sobre gafieiras, sobre os salões de sinuca,

sobre um estádio de futebol e um hipódromo. Com alguma freqüência, está

presente aqui a idéia de resgate de uma “cultura brasileira autêntica”, valor

estético-ideológico explicitado nos tempos de JB.

Retratos: perfis, com maior incidência de artistas e intelectuais, mas

que também compreende perfis de anônimos, a quem o escritor procura

conferir humanidade (nestes casos, costuma combinar elementos do gênero

paisagem). Os preceitos estético-ideológicos manifestos em suas matérias do

JB aqui desempenham um papel central na seleção das pessoas a serem

retratadas: a valorização da cultura popular como “a autêntica cultura

nacional”, por exemplo, explica a idolatria a cantores e músicos da velha

guarda; a idéia do artista como um “cidadão sem fronteiras”, de sua parte,

manifesta-se no elogio de figuras capazes de circular pelos diversos níveis

da pirâmide social e cultural, na erudição livre e sem área de especialização,

sem método, na combinação entre cultura popular e erudita, e na valorização

do auto-didatismo; a arte como missão, politicamente independente mas

socialmente comprometida etc.

Claro que esses gêneros podem se combinar, e uma única matéria

eventualmente trazer elementos de mais de um deles. É o caso, talvez, da

matéria sobre a récita da Fosca, na qual o gênero predominante da paisagem

recebe a gota de veneno do gênero de comportamento. Ou de uma matéria

Page 401: João Antônio: Uma Biografia Literária

401

da Realidade sobre os alcagüetes da polícia junto ao baixo clero da

criminalidade, que é predominantemente do gênero retrato, mas que, por

lidar com um retratado anônimo, não artista conhecido ou intelectual,

também traz elementos do gênero paisagem.

Esse leque de gêneros é a chave para compreendermos o mecanismo

de organização interna da produção de João Antônio na imprensa e, a partir

de 1975, de toda a sua produção em livro. Para compreendermos as

fronteiras muito particulares de um território que foi, gradativamente, sendo

despojado das fronteiras aceitas pela maioria. Sim, pois a verdadeira fusão,

como já foi dito, é entre ficção e jornalismo; conto e crônica, conto e

reportagem.

Leão-de-chácara785

, o primeiro livro depois de Malagueta, Perus e

Bacanaço, lançado em 1975, portanto doze anos após a estréia, é o último

volume onde a ficção predomina. Mesmo assim, quase metade do livro,

ocupada pela novela “Paulinho Perna-Torta”, fora portanto escrita em 1964,

antes da entrada do jornalismo na vida, e no estilo, do escritor. Mas em

seguida ele publica Malhação do Judas Carioca786

, que sem nenhum tipo de

aviso ao leitor “de ficção pura”, do leitor de Malagueta, Perus e Bacanaço,

por exemplo, reúne textos tipicamente de imprensa, alguns deles extraídos

da própria Realidade, outros d’ O Pasquim787

. Mais tarde, na biografia

autorizada do escritor, fica dito que Malhação “reúne, num só livro, alguns

785

Antônio, João. Leão-de-chácara, Record, RJ, 1975. 786

Antônio, João. Malhação do Judas Carioca, Record, RJ, 1975. 787

João Antônio foi convidado a escrever n’ O Pasquim pelo cartunista Jaguar, que leu um retrato do

jogador de futebol Almir, escrito por João Antônio e publicado no suplemento literário do jornal Minas

Gerais. Mais tarde, o texto seria republicado no próprio O Pasquim (Ano VI, n. 267, 1974), provavelmente

com poucas modificações, e no livro Casa de Loucos (Record, RJ, 1976), provavelmente com muitas

modificações. Sua colaboração no tablóide começou em 1974 e foi até 1976. A atuação de João Antônio na

imprensa alternativa como um todo foi intensa e notável, tendo ele escrito também para Movimento,

Opinião, Cultura Contemporânea, Protótipo, entre outros; mereceria um capítulo à parte. Destaca-se, no

caso d’ O Pasquim, o texto “Aviso aos nanicos” (Ano VII, n.318, 1975), do qual gaba-se, entre outros

motivos, por nele haver cunhado a expressão “imprensa nanica”.

Page 402: João Antônio: Uma Biografia Literária

402

de seus melhores textos publicados em jornais e revistas”.788

Mas essa

admissão ocorre a posteriori, seis anos depois. E ainda vale notar que há

uma certa ambigüidade na terminologia “textos”, estes não são

explicitamente denominados reportagens, ou matérias, embora também não

sejam chamados de contos.

E em seguida é lançado Casa de Loucos789

, que também reúne textos

jornalísticos tratados e embalados como sendo de prosa literária, um deles

vindo de Realidade; e depois Calvário e Porres do Pingente Afonso

Henriques de Lima Barreto790

, que, com técnicas evidentemente extraídas da

prática jornalística, entrelaça o depoimento de um contemporâneo de Lima

Barreto a trechos de seus romances e de sua fortuna crítica; e ainda Ô,

Copacabana!791

, um texto longo sobre o bairro onde morava, com seus

cenários e tipos; e por fim (não precisamos ir mais longe, por enquanto)

Dedo-duro792

, onde o próprio conto-título brota diretamente de um texto

jornalístico publicado na Realidade.

Das matérias em Realidade, apenas duas, entre oito, não foram

localizadas em nenhum dos livros subseqüentes do autor. Das seis restantes,

quatro são republicadas em livros praticamente sem qualquer mudança, ou

com mudanças mínimas, mantendo até mesmo os chapéus característicos do

texto jornalístico, e duas passam por modificações, numa delas modificações

que implicam em opções de voz narrativa diferente e a outra simplesmente é

encurtada, tem seus parágrafos reorganizados e combinados a outras

reportagens sobre o mesmo tema.

788

Neto, João da Silva Ribeiro. João Antônio – Literatura Comentada, Abril, SP, 1981. 789

Antônio, João. Casa de Loucos, Record, RJ, 1976. 790

Antônio, João. Calvário e Porres do Pingente Afonso Henriques de Lima Barreto, Record, RJ, 1977. 791

Antônio, João. Ô, Copacabana!, Record, RJ, 1978. 792

Antônio, João. Dedo-duro, Record, RJ, 1982.

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403

As publicadas identicamente, ou quase, são: “Este homem não brinca

em serviço”, “Um dia no cais”, “A morte”, “É uma revolução”.793

Um exemplo, da matéria sobre o cais de Santos, na revista:

“De longe em longe, uma locomotiva a óleo diesel apita, modorrenta,

e vem furando para as luzes na zona do cais.

– Êpa!

– Um menino branco se esforça, sobe do selim para o cano, mete os

peitos contra o guidão, se enverga, equilibra a sacola na bicicleta e corta de

fininho o cais. Vai que vai embora. Está quase sozinho com as luzes no

comprimento de paralelepípedos, gozando nas curvas. O menino mais o seu

calção e a sua japona, seu cabelo cortado rente, sua campainha, trim-trim nas

esquinas que atravessa.”

E no livro:

“De longe em longe, uma locomotiva a óleo diesel apita, modorrenta,

e vem furando para as luzes na zona do cais.

– Êpa!

– Um menino branco se esforça, sobe do selim para o cano, mete os

peitos contra o guidão, que se enverga [grifo meu], equilibra a sacola na

bicicleta e corta de fininho o cais. Vai que vai embora. Está quase sozinho

com as luzes no comprimento de paralelepípedos, gozando nas curvas. O

menino mais o seu calção e a sua japona, seu cabelo cortado rente, sua

campainha, trim-trim nas esquinas que atravessa.”

Há uma única diferença, como se vê. Há também, chapéus que foram

refeitos, como por exemplo “Noitão. O trabalho continua duro”, substituído

por “Noitão, a hora é de expandir”. Mas, admita-se, nada que altere o caráter

793

In Realidade, Ano I, n.19, Abril, SP, 1967; Ano II, n.30, Abril, SP, 1968; Ano II, n.30, Abril, SP, 1968;

Ano II, n.32, Abril, SP, 1968, respectivamente.

Page 404: João Antônio: Uma Biografia Literária

404

de um texto. “Um dia no cais”, inclusive, sempre foi apontada por João

Antônio como o texto que inaugura um novo gênero na literatura nacional, o

“conto-reportagem”. É também, um texto tipicamente da categoria

paisagem.

Nas outras três, o nível de semelhança é o mesmo, seria perda de

tempo esmiúça-lo aqui. Já os dois textos publicados em Realidade e depois,

com modificações, em livros, merecem análise mais detida. Sobretudo para

mostrar o quanto essas modificações são também relativas e, desta forma,

sustentar a tese de que, após a passagem pelas redações de Realidade, João

Antônio desfaz as fronteiras tradicionais entre literatura e jornalismo,

criando o seu próprio leque de gêneros. E, se ainda preciso for, como

atenuante à existência destas modificações, pode-se invocar o fato de serem

as duas com maior intervalo de tempo entre as publicações na imprensa e no

âmbito do mercado editorial de livros.

Uma delas, “Ela é o samba”794

, foi publicada na Realidade em outubro

de 1968 e depois apareceu no livro Dama do Encantado795

, de 1996, ano da

morte do escritor. A outra, “Quem é o dedo-duro?”796

saiu na Realidade em

julho de 68 e em livro quase homônimo, somente no ano de 1982. As quatro

matérias publicadas de forma idêntica foram veiculadas em livros que

saíram até 1976, ou seja, no calor do momento, e portanto menos

retrabalhadas, esforço que ao longo de tanto tempo mais diz respeito a um

processo natural de todo escritor que à negação de sua subversão pessoal dos

gêneros literários.

“Ela é o samba” faz um perfil de Aracy de Almeida, a intérprete mais

identificada com um grande ídolo de João Antônio: Noel Rosa. Embora

794

In Realidade, Ano II, n.31, Abril, SP, 1968. 795

Antônio, João. Dama do Encantado, Nova Alexandria, SP, 1996. 796

In Realidade, Ano II, n.28, Abril, SP,1968.

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apresente modificações entre um tipo de veiculação e outra, a essência deste

retrato literário é constante, e mais, dos 57 parágrafos que compõem o texto

em sua versão em livro, 43 são extraídos da matéria de Realidade, e mais

dois de uma das duas matérias do Jornal do Brasil em que ela é

mencionada.797

É curioso ver como, para os livros que irão compor sua obra

literária, João Antônio partia muitas vezes de reportagens e ia refundindo-as.

Afora a ordem dos parágrafos, que está completamente alterada, há

alguns que vêm simplesmente idênticos. Outros, mais ou menos

modificados. Alguns exemplos das modificações.

Na revista:

“No terreno do diz-que-não-diz tem sido mais atacada do que ataca.

Os seus shows, de scripts livres, em boates e teatros, acabam levantando

críticas azedas, pois Aracy, em matéria de franqueza, não fala a meia

verdade. Depois desabafa, jamais em tom de resposta ou desforra, mas

apenas usando, na integridade, o seu direito de falar. A sambista reclama:”.

E no livro:

“Enquanto cantou e gravou, sua vida virou terreno do diz-que-não-diz

em que era mais atacada do que atacava. As suas apresentações de scripts

livres, em boates e teatros, acabavam levantando críticas azedas, pois Aracy,

em matéria de franqueza, não falava a meia verdade. Depois desabafava,

jamais em tom de resposta ou desforra, mas usando inteiramente o seu

direito de falar”.

Como se vê, afora alguns cortes e rearrumações sutis, a única

diferença notável é a mudança do tempo verbal. Ele simplesmente bota tudo

no passado, pois sua entrevista com Aracy fora feita quase vinte anos antes.

797

“Um violão e um gênio de mãos dadas”, in JB, RJ, 04/05/65.

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406

Vejamos o outro caso de matéria da Realidade que foi publicado em

livro com modificações, a intitulada “Quem é o Dedo-duro?”. Veiculada em

julho de 1968, ela ressurge em forma de conto quatorze anos depois. Mas,

uma primeira coisa a se notar, ao contrário tanto do usual nas matérias do JB

como nas de Cláudia, é o quanto o texto dessa reportagem se aproxima da

literatura mais radical do escritor, por exemplo de um “Paulinho Perna-

Torta”798

, caso eloqüente de ficção pré-jornalismo, de 1963-4, e marco de

seu regionalismo-urbano. Eis um trecho de “Paulinho”:

“Mataram o trouxa a soco inglês. O cara, filho de família, na zona

fazia papel de lorde, teimando em fazer presenças e aprontando marotagens.

Largava aqui, numa noite, um tufo de dinheiro, esbagaçando cervejas,

conhaques, traficâncias da roda das mulheres que lhe tomavam até o último,

ou entre as curriolas da sinuca do Burruga e aqui mesmo na boca do

Arrudão, entre partidas de carteado”.

E um da reportagem “Quem é o dedo-Duro”:

“Era uma curriola de homens fortes, calejados em assaltos. Peteleco

fazia o seu papel com medo. No fundo, ele estava a perigo. O cigarro de

maconha, o baseado, começou a circular na roda, passando de mão em mão.

Os homens sugavam, aspiravam fortemente a erva, repetindo, nervosos, o

movimento de sucção da fumaça, querendo que ela corresse pelas veias.

Veio a vez de Zé Peteleco. Ele deu bola ao fuminho, fingiu tragar

profundamente. E começou, dissimuladamente, a arrotar vantagens:”.

Há não apenas um universo, mas um tom geral, um léxico, um ritmo,

que são inegavelmente comuns à novela e à matéria.

798

Antônio, João (entre outros). “Paulinho Perna Torta”, in Os Dez Mandamentos, Record, RJ, 1965. Este

foi o ano em que a novela apareceu publicada, mas sua redação, claro, o antecede. Os manuscritos de

“Paulinho Perna Torta” existem e há muitas referências, como viu-se no capítulo 2, sobre o processo de

redação da novela.

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407

Nos momentos das falas dos personagens, a proximidade é ainda

maior. Eis alguns trechos de “Paulinho Perna Torta”: “– Vai um brilho,

moço? (...) – Você dá no couro? (...) Pede, meu. Ela dá a grana. Mulher

gamada dá tudo. Parte pra qualquer negócio. (...) Se você fizer isso com

outra, te corto. Te apago. (...) Um valente ponta firme”.

E alguns da reportagem sobre o dedo-duro: “Olá, meus compadres!

Estamos a bordo. Como é que é? Trouxeram o bagulho? (...) Vem cá, meu

considerado. Fique sabendo que malandragem nunca deu camisa a ninguém,

não. (...) O negócio é com o Tição mesmo. Ele está ‘gordo’ e ainda não

queimou nem metade da grana afanada”.

Anos depois, ao publicar esta matéria em livro, João Antônio

refundiu-a, fazendo duas mudanças gerais e uma infinidade de outras

meramente estilísticas. Porém, mesmo as mudanças estruturais, embora

curiosas, levada em conta a distância usual entre um texto de ficção e outro

jornalístico, não parecem invalidar o argumento da fusão entre jornalismo e

ficção. Uma delas foi transformar o discurso indireto em direto, ou seja, o

jornalista deixou de descrever um tipo, o dedo-duro, e seu ambiente, e esse

próprio tipo passou a descrever a si mesmo e a seu mundo. Além disso, em

vários momentos na matéria, sem critério firme, João Antônio incluía, entre

parênteses, um sinônimo que esclarecesse ao leitor o significado de

determinada gíria ou palavra desconhecida.

Um exemplo da mudança na voz narrativa. Na reportagem:

“Zé Peteleco nunca foi homem forte. Nem corajoso. Não era bom

jogador, não havia aprendido a roubar, nem sabia, pelo próprio esforço, onde

arranjar maconha, bolinhas ou cocaína. Não era um taco no bilhar, não era

um linha-de-frente no jogo do carteado, não conseguia fazer dos

entorpecentes meio de vida.”

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408

E no conto:

“Olhem aí, se eu disser que sou homem forte ou essas coisas, estarei

mentindo. E em historiada de mulher, aqui miúdo, a sensação me vem,

várias vezes, de ser pouco homem diante de certos mulherões que vejo

passar.

Nem sou bom jogador, não aprendi furto e nem soube, pelo esforço

certeiro – e meu – descolar uma maconha, uma bolinha, um brilho de

cocaína. Não me dei bem no trato com as coloridas na sinuca, não fui um

linha-de-frente no jogo do carteado, nem bom escrevedor de jogo do bicho,

pego mal nas corridas de cavalo, não consegui fazer meio de vida nos

entorpecentes.”

Quanto aos parênteses explicativos das gírias, são mudanças ainda

mais sutis. Na publicação em livro, quando o texto é apresentado como um

conto “puro”, ora a explicação da gíria é, entre vírgulas, agregada ao texto,

ora é eliminada. Em ambos os casos, desfaz-se o caráter explicativo

puramente jornalístico. Exemplo na reportagem:

“Era fracote, mas estava no ambiente. Com o tempo, arranjou uma

moleza, um mingau, uma otária (mulher da vida, fácil de dar dinheiro a seu

homem, fácil de dobrar) ”.

E no conto:

“Isso. Fracote, pequeno, mas no ambiente. E com o tempo, até o mais

morto, arranja uma moleza, um mingau, uma otária fácil de dobrar”.

Como se vê, mudanças que, teoricamente, poderiam resultar em algo

crucial, que diferenciaria de maneira radical os dois textos, na verdade nada

mais são que ajustes destinados a afiar e enfatizar o tom marginal, o

linguajar da malandragem, e a intensificar a verossimilhança e a adesão

entre leitor e personagem.

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409

Na matéria sobre a vida dos dedo-duros, a abertura também é

ficcional, embora narrada em terceira pessoa e, no arcabouço estilístico

geral, temos as mesmas características: o ouvido para o jargão específico das

ruas e de seus tipos, a enumeração, as orações fragmentadas, algumas

palavras de função conectiva suprimidas, compondo uma sintaxe também

“inculta”, fora das normas.

Nos trechos em que essas diferenças não estão em primeiro plano, a

proximidade é quase total.

Um exemplo, na reportagem:

“Às cinco da manhã, o resto da cidade parece dormir e até os dancings

e os últimos restaurantes e botequins baixaram as portas para descanso. O

salão de bilhares vai seguindo na madrugada, agüentando o seu ritmo como

um olho aceso na noite, muito movimento nas mesas, quase todas tomadas.

Pelos cantos e no balcão, tipos conversam, bebericam, fazem apostas neste

ou naquele taco. É uma variedade de peças (tipos), desde os parceirinhos,

jogadores de sinuca, curiosos, desocupados, gente da noite, até homens de

outras áreas de malandragem, como chorros (batedores de carteira) e algum

marginal da pesada. Esses, de hábito, não jogam nem apostam, ficam ali

batendo papo, malbaratando o tempo, tomando um e outro trago.”

E no conto:

“Às cinco da matina, o resto da cidade parece dormir e até os

dancings e os últimos restaurantes e botequins baixaram as portas para

descanso. O salão de sinuca vai seguindo na madrugada, agüentando o seu

ritmo ladrão como um olho aceso na noite, vivo movimento pelas mesas,

quase tomadas por inteiro. Pelos bancos laterais, nos cantos e no balcão,

sujeitos conversam, bebericam, fazem apostas neste ou naquele taco. É uma

variedade de peças; dos parceirinhos, jogadores, patrões e cavalos, curiosos,

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remandioleiros, velhos estrepados e sós, desocupados, famintos, gente da

noite, fumetas, aos pintas de outros campos, chorros, lanceiros e roupeiros,

tudo gente que bate carteira, pisa macio e se alivia de qualquer maneira.

Baixa também algum malandreco da pesada. Aí é comigo. Essas aves, de

comum, nem jogam nem apostam, ficam ali papeando, mariolando o tempo,

tomando um e outro para molhar as palavras.”

Não parece que um é reportagem e o outro texto de ficção, parece que

o mesmo conto foi retrabalhado, como qualquer obra de ficção costuma ser.

A explosão dos gêneros

Ficou claro o quanto as matérias da Realidade tinham, na cabeça do

escritor, o estatuto de textos literários, tão altos e tão nobres quanto contos

“puro-sangue”.

Se ficção e memorialismo já nasceram fundidos na obra do escritor799

,

agora a realidade, apreendida muitas vezes a partir de procedimentos

jornalísticos, e tendo o texto um viés jornalístico, junta-se aos dois. Foi mais

um passo no que João Antônio, ao falar da atitude correta de um escritor,

chamou de “Corpo-a-corpo com a vida”. Mais do que nunca, o processo de

composição livre de vínculos diretos com a vida real estava afastado. Diz

ele, nesse texto, profissão de fé, que encerra o livro Malhação do Judas

Carioca: “Não será absolutamente necessário, para compreender – uma

palavra superada; leia-se, por favor, enfrentar – o marginalismo individual

dos que se debatem no futebol ou na polícia, alguém que assuma o mesmo

gangsterismo, um semelhante (mas com visão crítica) individualismo? Um

799

Como veremos no capítulo 3, a ser escrito até o final deste ano.

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411

gansterismo, um individualismo, um individualismo ao menos experimental.

Que, ao escrever, dê a mesma porrada, como repórter, escritor, etc., que o

bandido, o jogador, o traficante, o bicheiro e, especialmente, e isso tudo –

herói – dão para sobreviver. Assim, uma literatura de murro e porrada. Um

corpo-a-corpo com a vida”.

E diz mais: “Literatura de dentro para fora. Isso é pouco. Realismo

crítico. É pouco. Romance-reportagem-depoimento. Ainda pouco. Pode ser

tudo isso, trançado, misturado, dosado, conluiado, argamassado uma coisa

da outra. E será bom. Perto da mosca. A mosca – é quase certo – está no

corpo-a-corpo com a vida”.

Ricardo Ramos, em sua apresentação ao livro Zicartola e que tudo

mais vá para o inferno!800

, também parece ter dificuldade para qualificar a

natureza dos textos que compõem o livro: “Temos aqui o nosso grande

contista popular. Dando uma de cronista, o que é ótimo. Porque alia à ficção

suas idéias, opiniões, a posição pessoal do escritor. Um João Antônio livre e

solto, em plenitude. Admirável”.

“Livre e solto” das classificações tradicionais para seus textos, ele

parece querer dizer, unindo a sua ficção a atitude opiniática do tipo de

jornalismo e de crônica que João Antônio praticava.

Uma coisa não mudou em toda a carreira dele como escritor. Seu

processo criativo sempre partiu de um contato com algum “personagem

real”, alguém de carne e osso, cujo perfil se adequasse a sua linha de

trabalho, isto é, ao recorte social que pretendia iluminar, o das classes

baixas, com suas mil e uma ramificações (prostitutas, leões-de-chácara,

dedo-duros, sinuqueiros, traficantes, ladrões, garçons, pivetes, guardadores

800

Antônio, João. Zicartola e que tudo mais vá para o inferno!, Scipione, SP, 1991; apresentação de

Ricardo Ramos, p.3.

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412

de automóveis, “merdunchos” em geral, como ele os apelidara). Esse hábito

do testemunho direto, num primeiro momento, veio pela origem proletária,

pela condição social e convívio obrigatório com esses personagens. Depois,

quando o jovem escritor torna-se um jornalista conhecido e morador de um

bairro de classe média, permaneceu o hábito do testemunho direto, agora

tornado possível graças à opção individual e à profissão de jornalista. Esse

trabalho de campo é, entre escritores, uma preferência sujeita a

idiossincrasias pessoais, inclusive de temperamento; no universo jornalístico

é uma virtude obrigatória. Isso não era problema para João Antônio.

É ele quem diz, por exemplo, do conto “Leão-de-chácara”: “Agora,

para fazer ‘Leão-de-chácara’, eu analisei muito, conversei muito,

principalmente com um garçom que já é morto (...) Era o Garotinho. (...) a

profissão, que é servir a todos, dá ao sujeito uma sabedoria muito grande, ele

aprende, ele procura saber onde tá pisando, com quem tá lidando. Então, a

humildade do garçom, do bom garçom, aprendi através da conversa, (...)

Então foi conversando com ele, observando outros leões-de-chácara, vendo

aquela figura aparentemente pitoresca, engraçada, que não tem nada disso, é

um pingente urbano (...) a figura do leão começou a sair da aparência pra

mim, começou a se aproximar da realidade, da essência./ Tenho amigos

Leões-de-chácara, encontro-os na praia, na porta da boate. (...) Então foi

assim, vivenciando, sentindo os caras, conversando muito com eles”.

Não que João Antônio fizesse pesquisa, no mau sentido, para

alimentar sua ficção, ele tinha inclusive horror a essa palavra. Embora

tivesse cacoetes de pesquisador, sua abordagem era outra.801

A palavra

801

Entre esses cacoetes, vale mencionar sua mania de fazer listas de palavras em papéis de cigarro, dos

quais tirava o laminado. Como a que aparece na reportagem sobre o dedo-duro: “Chacal, alcagüeta,

cagüete, cachorrinho, delator, informante, reservado, federal, engessador, falador, boca mole, boca de litro,

dedo duro, são a mesma coisa”. E em Ô, Copacabana: “picardo (aquele quem tem picardia, o bom, o

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pesquisa de fato coloca uma distância entre o olhar e o objeto maior que a

mantida por ele. Ele não se imaginava como um mero pesquisador, pois

convivia com esses “personagens reais”. E essa mesma necessidade

testemunhal, para ele, permanecia constante, fosse no jornalismo, na ficção e

num texto de caráter memorialístico. E o resultado, freqüentemente,

encaixava-se em todos esses domínios ao mesmo tempo, tornando difícil

classificar a natureza de seus “textos”.

Um bom exemplo disso é o livro Ô, Copacabana!. Ele é ao mesmo

tempo uma colcha de retalhos, compostas por partes inéditas e coisas que ele

já publicara antes, na imprensa e em forma de livro, e uma fonte de textos

usados por João Antônio em ocasiões futuras, na imprensa e, recortadas, em

seus livros subseqüentes.

Mas é curioso observar que tanto os retalhos que dão forma ao livro,

quanto os subprodutos que ele rendeu, são usados por João Antônio como se

tivessem naturezas múltiplas – crônica, texto de intervenção, memorialismo,

reportagem ou ficção –, que, como numa reação química, reagiriam ao

contexto em que fossem veiculadas. Mas, no que se refere ao aspecto

estilístico, pouco variam. Assim, o próprio livro Ô, Copacabana! é um livro

indefinível. O que ele é? Depende, do momento e do ponto de vista.

Algumas das fontes de Ô, Copacabana:

1) matérias d’ O Pasquim, uma delas, tomada ao acaso, intitulada “O

festival do osso”, e outra “Tome vergonha na cara: Mexa-se”, que se

encaixam, por exemplo, na sub-categoria comportamento.802

quente, o sabido, o malandreco, o moita). / Estar ruço (estar mal de vida, estar em situação nebulosa, feia,

difícil, enrolada e quase fatídica). / ratatuia (patuléia, igrejinha, canalha, patota, curriola, grupo fechado,

súcia, cambada, turma, bando, gangue, a boa gente)”. 802

In O Pasquim, Ano VII, n.350, 1975; Ano VII, n. 328, 1975, respectivamente.

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414

Ambas, n’ O Pasquim, eram textos de intervenção, em resposta a fatos

correntes, um comentário ridicularizando um festival de desfile de moda

para cachorro e uma campanha governamental que procurava incentivar a

prática de exercícios físicos entre os brasileiros.

No primeiro caso, vale a pena reparar como um texto de intervenção,

um comentário jornalístico porém opinativo, de acordo com os critérios da

imprensa alternativa da época, é entretanto capaz de adquirir um caráter

amplo o suficiente para fazer uma crônica da vida na cidade e, até, de seu

tempo:

“Ah, como antigamente, o Rio civiliza-se!

Já temos um emissário submarino, telefone automático para as

principais partes do mundo, entramos na era supersônica do Concorde (vôos

a 18 mil metros de altura e velocidade duas vezes maior que o som) e, povo

disciplinado, a rede de cadernetas de poupança vai muito bem.

É verdade que o café aumentou de preço, os cigarros subiram na razão

de 40% numa porrada só, o preço do pão e da luz pulou e do gás também

(...) E o carioca, neste Rio que civiliza-se, já está inaugurando o pagamento

de dois novos impostos: o lixo da rua e, como a cidade está sendo

maravilhosamente iluminada a ponto de nossas noites até parecerem dias,

pagaremos também a taxa de iluminação das ruas. (...) Mas o Rio civiliza-se.

E, como a cidade não é mais aquela dos festivais de música, cinema, teatro,

artes plásticas, encontros literários e culturais e, tampouco, está cumprindo a

sua vocação de capital do lazer e do turismo (...)”

Veja-se, agora, a segunda matéria, sobre a campanha “Mexa-se!”:

“A campanha promocional foi clara, limpidez acima de dúvidas. No

entanto, uma recapitulação ainda cabe – tem sua utilidade e oportunidade

para os distraídos, desatenciosos e turrões. E, principalmente, os

Page 415: João Antônio: Uma Biografia Literária

415

recalcitrantes, essas criaturas incômodas que só sobrevivem para apoquentar

a boa ordem vigente. (...) / Ouça com os dois ouvidos, seu pedaço de

bucéfalo: MEXA-SE! Saia de dentro de casa, egoísta, e olhe ao seu redor e

MEXA-SE! (...) O Brasil está entre os grandes exportadores de soja do

mundo. E você, seu relapso comodista: em que contribuiu para isso?

MEXA-SE! Se a sua cidade é recordista nacional dos buracos, se é roída

pelas frentes e lados, ruas, praças, becos, vielas e avenidas, agüentando todas

as enfiadas das CELURBs, LIGHTs, CEDAGs, CETEBs, METRÔs (ah, seu

canalha, como é longo o capítulo da ficção carioca!) e SURSANs e se o Rio

é a mais esburacada das vítimas da indústria dos buracos, a culpa é sua, seu

comodista! MEXA-SE!”.

O trecho acima, quando encaixado no livro Ô, Copacabana!, mais ou

menos vinte páginas depois do início, entre tantos assuntos, deixa de ser um

texto de intervenção e se torna uma crônica azeda do cotidiano da cidade e

da vida das pessoas. Aproximadamente três anos depois de sua primeira

aparição, também, o contexto é outro.

2) Dois “textos” incluídos em Malhação do Judas Carioca, mas,

segundo a já mencionada definição deste livro, anteriormente “publicados na

imprensa”: “Mariazinha Tiro a Esmo” e “Galeria Alaska”.

Mariazinha enquadra-se na categoria retrato, de anônimos, e como

costuma acontecer neste sub-gênero, a paisagem joga um papel importante

no texto. Assim como ela podemos citar “Dedo-duro”, “Leão-de-chácara”,

“Joãozinho da Babilônia”, “Dois Raimundos, um Lourival”, “Merdunchos”

etc.

Mariazinha Tiro a Esmo é mais um desses personagens de rua,

“olheira da indústria de pedintes”, a quem ele deve ter encontrado pelas ruas

Page 416: João Antônio: Uma Biografia Literária

416

de Copacabana, com quem deve ter conversado e “entrevistado”, colhendo

material e arranjando inspiração. O texto não varia muito da publicação em

Malhação, três anos antes, para a versão de Ô, Copacabana!.

Também não varia muito o texto sobre a Galeria Alaska, alguns

cortes, outros acréscimos.

Em ambos os casos, o interessante é ver como textos provenientes de

sua colaboração com a imprensa são perfeitamente utilizáveis como crônica

e, mais tarde, como uma peça de ficção, um conto. “Mariazinha Tiro a

Esmo” aparece, por exemplo, no livro Os Melhores Contos de João Antônio,

organizado por Antônio Hohlfeldt.803

3) Uma terceira matéria originalmente publicada n’ O Pasquim,

“Iemanjá a Perigo”, enquadrada na categoria variedades, também serviu de

fonte a Ô, Copacabana!. Com ligeiras modificações, a imensa colagem que

é este livro foi ganhando corpo. Vejamos este caso, na matéria:

“Mais uma vez, reportando a festa da orla marítima, a grande

imprensa jogou o joguinho larápio da omissão e do ufanismo utópico. E as

legendas correram, otimistas, debaixo das fotos, provavelmente redigidas

por mãos distantes da realidade das águas do 1o do ano: ‘Passos difíceis não

impediram homenagem à Rainha do Mar’ ou, fazendo uma fantasia: ‘Muitos

delimitaram as áreas para as preces com as garrafas’. Falaram também em

grandes contingentes de garis com suas pás e suas caçambas, em bares que

haviam até descido as portas por falta de bebidas e em alegria fenomenal.”

E no livro:

803

Hohlfeldt, Antônio (org.). “Mariazinha tiro a Esmo”, in Os Melhores Contos de João Antônio, Global,

SP, 1986.

Page 417: João Antônio: Uma Biografia Literária

417

“Acresce que há coisas debaixo da remandiola. E no bairro, como na

nossa cidade, só cantamos as glórias. Do fiasco, ninguém fala. Assim, mais

uma vez reportando a festa da orla marítima, as notícias saíram uma

gracinha engambelando. Êta joguinho larápio da omissão e do ufanismo! E

as legendas correram, otimistas, debaixo das fotos, provavelmente redigidas

por mãos distantes da crueza, do vexame e da rata das águas do Primeiro do

Ano: ‘Passos difíceis não impediram homenagem à Rainha do Mar’ ou,

fazendo uma fantasia: ‘Muitos delimitaram as áreas para as preces com as

garrafas’. Falaram também em grandes contingentes de garis com suas pás e

suas caçambas, em bares que haviam até descido as portas por falta de

bebidas e empolgados pela alegria geral. Fenomenal.”

Como se vê, há pequenos acréscimos, pequenas variantes, mas a

sintonia geral do texto é a mesma, um comentário ácido sobre determinada

passagem do ano nas areias e na orla de Copacabana. Acontece que um foi

publicado como crônica, num jornal alternativo, e Ô, Copacabana! é um

livro de intenção bem mais literária. Mas, nos novos “textos” de João

Antônio, essa variação de “ambiente” poucos efeitos estilísticos provoca, se

algum. Para se reforçar essa tese, vejamos um trecho da matéria publicada

em Cláudia também sobre Iemanjá, assim expondo esse registro textual

polivalente a um terceiro ambiente, o de uma revista feminina em que ele

possuía relativa liberdade para escrever como bem quisesse:

“Assim, a festa das praias urbanas parece estar atualmente de mãos

dadas com os hippies. O fato de atirar flores aos orixás ganhou duplo

sentido: aderência ao sincretismo religioso e sua aceitação plena, pelo menos

como espetáculo pitoresco, e elevação do poder da flor com exaltação da

pureza, do amor e da beleza.

Page 418: João Antônio: Uma Biografia Literária

418

Durante algum tempo era bem para essa faixa de nossa população

urbana freqüentar determinadas casas de samba no Rio de Janeiro. Depois,

era muito chique esticar até alguma gafieira típica. O surgimento mais

incisivo da nova música popular brasileira, que também virou moda, apagou

aquelas idas e vindas noturnas àqueles redutos populares. A presença maciça

dessa faixa de população às areias no último dia do ano para a consagração

de Iemanjá e outros orixás parece se ligar sutilmente ao movimento dos

hippies.

É bem atirar flores e ainda fica mais harmonioso quando se pode unir

essa atitude à ocasião de uma festa folclórica”.

Novamente, o tom de crônica ácida se mantém. Não varia conforme o

veículo. Para o autor, não havia diferença. Apenas um certo estatuto externo

ao texto varia, reagindo à química convencionada pela recepção,

transferindo-o do patamar jornalístico para o literário quando da publicação

em livro.

Mas agora convém falar não das fontes, mas dos subprodutos desse

livro símbolo do processo de fusão entre jornalismo e literatura que é Ô,

Copacabana!.

E o caso mais interessante é o de um trecho publicado, a que se saiba,

originalmente no livro, e depois reaparecido despojado de qualquer intenção

literária evidente na coluna assinada pelo escritor durante a Copa do Mundo

de 1990804

, e, seis anos depois, em seu livro Dama do Encantado805

,

novamente revestindo-se de caráter literário.

Vejamos como o trecho aparece no primeiro livro, de 1978:

804

O nome da coluna era “Histórias de Torcedor”, e ela foi publicada n’ O Estado de São Paulo, entre

17/06/90 e 10/07/90. 805

Antônio, João. Dama do Encantado, Nova Alexandria, São Paulo, 1996.

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419

“Uma da manhã. Ou mais. No comecinho da Ladeira dos Tabajaras,

para quem vem do morro e pega a rua Siqueira Campos, um crioulo na

madrugada carregando ao ombro uma bandeira enrolada do Flamengo ia que

ia quieto, cabeça pendida, canseira nas pernas, mariolando.

O meu Mengo havia batido o Fluminense. À tarde e à noite, estes

lados da cidade estiveram em festa, movimento e tropel. À uma da manhã, o

crioulo de cabeça arriada e bandeira ao ombro, ia bem cansado. Mas feito

um guerreiro.

A iluminação fraca da rua o pegava mal e mal, tudo deserto e ele ia

muito sozinho lá com seu sonho. O queixo no peito. De repente, deve ter

suspirado fundo antes, e rasgou. Ele largou para ninguém um grito arrastado,

vindo de dentro e que demorou, meio tristeza e desespero. Rindo, forrando,

doendo, para ninguém:

– Mengo!”.

Este mesmo trecho, doze anos depois, aparece numa coluna esportiva:

“Uma da manhã. Ou mais. No comecinho da Rua Silveira Martins, no

Catete, para quem vem do Aterro do Flamengo, um crioulo na madrugada

carregando ao ombro uma bandeira enrolada do Flamengo ia que ia quieto,

cabeça pendida, canseira nas pernas, seguia. O seu Mengo havia batido o

Fluminense e, a tarde e a noite, aqueles lados da cidade estiveram em festa e

movimento. A uma da manhã, o crioulo de cabeça pendida e bandeira ao

ombro, ia bem cansado. Mas feito guerreiro.

A iluminação fraca da rua o pegava mal e mal, tudo deserto e ele ia

muito sozinho lá com seu sonho. O queixo no peito. De repente, deve ter

suspirado fundo antes e rasgou. Ele largou para ninguém um grito arrastado,

vindo de dentro e que demorou, meio tristeza e desespero. Rindo, forrando,

doendo:

Page 420: João Antônio: Uma Biografia Literária

420

– Mengo!”.

De uma versão para a outra, como se pode verificar, embora a cena

tenha sido deslocada de Copacabana para o bairro do Flamengo, e os

ambientes a que o texto foi exposto em cada uma das suas veiculações sejam

muito diversos, não há uma alteração de registro, de estilo equivalente. São

mudanças leves (supressão de vírgulas, pequenos acréscimos descritivos

etc), apenas. E um enxugamento, o texto está mais sintético e rápido, mas,

não é descabido imaginar, sobretudo por uma questão de espaço na sua

coluna de jornal, e não por transformações estilísticas.

Em sua terceira aparição, o texto está idêntico à primeira versão

publicada em Ô, Copacabana!, mas longe de significar um tratamento

estilístico específico para a versão literária, diferenciando-a da versão

jornalística. Não é necessário aqui reproduzi-lo, apenas deixar registrada a

polivalência, pois se não há propriamente diferenças formais entre os dois

livros, há entretanto diferenças grandes na índole de ambos. Ô, Copacabana!

é um texto longo e único, que funde crônica, jornalismo e ficção, lastreado

sobretudo na categoria paisagem, a qual compreende, como sempre, os tipos

anônimos a ela pertencentes, como é o caso de Mariazinha Tiro a Esmo. Já

Dama do Encantado, seu último livro publicado em vida, é um livro

composto de textos não-inéditos, curtos, e em sua maioria calcados em

retratos (Nélson Rodrigues, Garrincha, Mário Quintana, Joubert de Andrade,

Dalton Trevisan, João do Rio, Lima Barreto, Aracy de Almeida). É

eloqüente dessa condição múltipla dos “textos”, que um deles apareça em

dois livros tão diferentes.

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421

Outro caso de cruzamento interessante acontece em “Lapa acordada

para morrer”, conto-paisagem que teve uma versão anterior publicada em O

Pasquim.806

Os textos são bastante diferentes, sendo o “conto”, publicado em

livro, bem maior que a “matéria”, publicada na imprensa alternativa. Mas há

trechos de uma reutilizados no outro. E, acima das diferenças entre essas

categorias externas à obra de João Antônio, paira o gênero comum, de tipo

paisagem. E o tom é o mesmo. Vejamos dois trechos em que não há

reutilização de material, onde somente o “tom” comum é um dado a ser

comprovado.

Na matéria:

“Já o Bar e Café Indígena, que até 1965 era um dos pontos mais

movimentados e, conforme o gerente, chegou a vender de vinte a trinta mil

cafés por dia, nos últimos tempos se manteve com um comportamento

irreconhecível. O desrespeito desceu a lances deprimentes”.

No conto:

“Foi no bojo dos cabarés da Lapa, de seus cafés-concerto,

restaurantes, leiterias, que se viveram as melhores noitadas do bairro; o Siri,

da rua da Lapa, tão cantado por Mário de Andrade, na sua fase carioca (...)”.

Como se vê, o tom de um texto e de outro é idêntico. Agora veja-se

uma passagem de fato retrabalhada.

Na matéria:

“A Lapa, como os seus saudosos e suas viúvas, não tem salvação:

– Quem vai à Lapa deixa a alma em casa.

806

Hohlfeldt, Antônio (org.). “A Lapa Acordada Para Morrer”, in Os Melhores Contos de João Antônio,

Global, SP, 1986; e “Última Memória da Lapa”, in O Pasquim, Ano VI, n.271, 1974).

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Mais do que uma frase, era um código nas noites do passado do bairro

que tinha em seu corpo, além dos malandros conhecidos e que acabaram

virando lenda – Nélson Naval, Meia-Noite, Camisa Preta, Miguelzinho da

Lapa e uma figura maldita, Madame Satã – um rosário de cabarés, cafés-

concerto, restaurantes, leiterias e bares”.

E no conto:

“– Quem vai à Lapa, deixa a alma em casa.

Balela. Esse antigo código da noite tentou ainda se sustentar na boca

dos cronistas e guias anônimos, arremedando o apogeu valente e malandro

de uma Lapa que não existe mais e, quando muito, imita a si mesma, olhos

compridos no passado”.

Novamente o tom do texto e a alma nostálgica do escritor são

idênticos.

Os exemplos se multiplicam: poderíamos citar muitos, entre os quais

o texto “Zicartola, recordações de uma casa de samba”, publicado n’ O

Pasquim, em 75807

, e num livro da década de 90, Zicartola e que tudo mais

vá para o inferno! 808

; ou os textos “Carlinhos, Marquinhos e a indústria do

pânico”809

e “Carlinhos, o inconveniente”810

, publicados n’ O Pasquim e em

livro contemporâneo do tablóide. Os casos de “multi-ação” dos textos

“joãoantonianos” – que começam a acontecer a partir da fusão entre

literatura e jornalismo – citados por essa pesquisa são, com certeza, uma

gota d’água num oceano de refacções, republicações, auto-rechupinhações.

A dificuldade do próprio João Antônio em classificar seus textos

transparece, por exemplo, na forma como, nos anos 70, organiza seus livros

807

In O Pasquim, Ano VIII, n.332, 1975. 808

Antônio, João. Zicartola e que tudo mais vá para o inferno!, Scipione, SP, 1991. 809

In O Pasquim, Ano VII, n.322, 1975. 810

Antônio, João. Malhação do Judas Carioca, Record, RJ, 1975.

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423

e dá nomes a cada uma das seções que os compõem. Em Leão-de-chácara,

último suspiro da “ficção pura” – nunca é demais frisar: entenda-se aqui a

expressão “ficção pura” como desvinculada do olhar jornalístico, embora

inteiramente emaranhada no memorialismo e na autobiografia – há duas

categorias: Três contos do Rio (que engloba os contos “Leão-de-chácara”,

“Três cunhadas – Natal 1960” e “Joãozinho da Babilônia”) e Um Conto da

Boca do Lixo (que traz a novela “Paulinho Perna Torta”). Essa divisão,

como é evidente, inaugura a presença do Rio de Janeiro na obra do escritor

em livro, já que Malagueta, Perus e Bacanaço tinha seu universo restrito a

São Paulo. Mas não fala realmente da natureza dos textos, o viés ficcional

clássico ainda era um fator preponderante, dispensando novas categorias.

Mas já em Malhação do Judas Carioca, lançado no mesmo ano, o

sumário é dividido em sete partes: Problema (que traz “Mariazinha Tiro a

Esmo”, antes desse retrato/conto aparecer fundido a Ô, Copacabana!;

“Galeria Alaska”, paisagem/conto que teve o mesmo destino, e “Pingentes”,

retrato de anônimos/paisagem que reapareceu refundido em Dama do

Encantado); Polícia (que traz “Carlinhos, o inconveniente”, d’ O Pasquim);

Conto-reportagem (com “Cais”, que vem da Realidade); Especial (com “A

Lapa acordada para morrer”, também d’ O Pasquim); Gente (com um retrato

de Paulo Gracindo, de origem desconhecida); Costumes (que reúne

“Pequena história matreira da fila carioca”, “Sinuca” e “Malhação do Judas

carioca”) e Futebol (com “É uma revolução”, da Realidade). E o livro ainda

é fechado pelo manifesto “Corpo-a-corpo com a vida”, diferenciado de todo

o restante não pelo nome de uma nova subdivisão, mas por haver sido

diagramado do início ao fim em itálico. Já se vê, por aí, que há um esforço,

mais provavelmente inconsciente, de conter um processo de

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424

embaralhamento das fronteiras, ainda que esse esforço já não lançasse mão

das categorias clássicas de ficção, não-ficção literária e jornalismo.

Em Casa de Loucos, de 76, há uma tentativa semelhante. Há nove

categorias, todas com apenas um ou dois textos, tamanho era o esforço de

particularizar. São elas: Protesto (com “Olá, professor, há quanto tempo!”,

um retrato de Darcy Ribeiro; Comportamento (com “55 anos de casados”,

típica reportagem-literária, onde terá sido publicada antes?); Música Popular

(com um retrato de Nélson Cavaquinho e um de Noel Rosa); Costumes (com

os textos “Merdunchos”, um retrato de anônimos, e “As virgens blindadas

do footing”, caracterização maldosa de uma sociedade interiorana); Futebol

(com “Raul, meu amor”, trecho da matéria de Realidade, e “Uma banana

para os valentes”, texto de variedades que reaproveita trechos de pelo menos

um anterior, retratando o jogador de futebol Almir); Gente (com retrato de

Sérgio Milliet); Habitação (com um texto sobre o conjunto habitacional

Cidade de Deus, típica paisagem/retrato de anônimos); Vida (“A morte”, de

Realidade); e Drama (o texto-título, que conta da temporada que o escritor

passou no sanatório da Muda, no Rio de Janeiro, nos anos 70, episódio que

foi ao mesmo tempo um laboratório literário, uma reportagem-de-campo e

uma internação real811

).

Mas esse esforço de categorização, no entender dessa pesquisa, não

era um esforço consciente de interromper a fusão entre as naturezas de seus

textos e suas linguagens. Era antes um último suspiro da idéia de separação,

uma contra-corrente logo desaparecida. Basta dizer que desaparece nos

811

Marília, então esposa de João Antônio, conta que se assustou quando ouviu-o pedindo a ela que o

levasse ao sanatório e inventasse mil atos e sintomas que justificassem sua internação. Dostoievski, talvez,

que também havia escrito sobre o tema e era um dos leitores de cabeceira do escritor na sua “primeira

dentição” literária, o tenha inspirado. Mas certamente também Lima Barreto, outro escritor que flertava

com a fronteira entre sanidade e loucura. Susto maior, porém, veio depois. Ela, recusando-se a mentir para

o médico, simplesmente relatou o comportamento boêmio e o temperamento explosivo do escritor, e só isso

já bastou. O médico recomendou a internação na hora!

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425

livros subseqüentes, não se manifestando, por exemplo, em Dedo-duro,

Abraçado ao meu rancor e Guardador.812

Sintoma eloqüente de que também

a crítica abandonou, em relação à obra de joão Antônio, a expectativa de

separação entre uma coisa e outra, é que na já citada antologia de seus

“contos”, organizada por Antônio Hohlfeldt, vêem-se, caracterizados como

“contos”, textos que nasceram para jornais e que não são ficção.

Entre 1969, ano em que deixou as redações da revista Realidade, e

1975, ano em que a fusão entre literatura e jornalismo se concretiza pela

primeira vez em forma de livro, muitas coisas haviam acontecido na vida do

escritor. Como foi dito, após Realidade e mais algumas experiências bem

menos estimulantes de trabalho em São Paulo, João Antônio volta com a

família para o Rio de Janeiro. Vem já contratado pelo grupo Bloch, para

trabalhar na revista Manchete e, logo depois, na Fatos e Fotos. Instalam-se

na cobertura da praça Serzedelo Correia, seu mirante para a rotina de

Copacabana e sua fauna “merduncha”.

Nesse meio tempo, seu casamento com Marília termina. Os motivos

foram vários: a vida desregrada do escritor, que chegava a desaparecer por

alguns dias, aventurando-se em boêmias líquidas e noutras mais sólidas.

Marília decide então ir morar na França, com o filho Daniel ainda pequeno.

Isso foi por volta de 1973. Coincidindo mais ou menos com a separação, e

talvez por estar desobrigado de sustentar mulher e filho, João Antônio toma

uma decisão radical: nunca mais ter um vínculo empregatício estável.

Já é difícil ter uma visão geral do leque de veículos para os quais o

escritor colaborava nesses primeiros anos da década de 70, pois os “frilas”

iam se multiplicando à medida que ele ia se tornando um escritor conhecido.

812

Antônio, João. Dedo-duro, Record, RJ, 1982; Abraçado ao meu rancor, Guanabara, RJ, 1986;

Guardador, Record, RJ, 1992.

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426

Nunca é demais lembrar que, em 1975, João Antônio lançou dois livros de

sucesso – Leão-de-chácara chegou a ter sua edição esgotada em

pouquíssimo tempo – e relançou, com pompa e circunstância Malagueta,

Perus e Bacanaço. No ano seguinte, Casa de Loucos chega a ter duas

reimpressões no ano de seu lançamento. Tudo isso ao mesmo tempo em que

ele colaborava em órgãos da imprensa alternativa e não.

Mas, após a decisão de não ter mais vínculos empregatícios, fica

praticamente impossível mapear, com um mínimo de abrangência, sua

colaboração em jornais e revistas – o que significa, como se viu, mapear boa

parte da produção que depois reaparecerá em seus livros “de literatura”.

Fazer este mapa completo possibilitaria, contudo, poder cruzar –

talvez infinitamente – textos que saem daqui e reaparecem ali, que são

refeitos e reescritos até que ganhem uma natureza polimorfa e um caráter

múltiplo. Rastreando, assim, o destino de cada fragmento espalhado pela

explosão dos gêneros.

Espera-se ter conseguido uma amostra suficiente de exemplos e

comprovações das teses proposta neste capítulo: 1) fusão entre jornalismo e

literatura; 2) manutenção de um viés regionalista urbano em seu estilo; 3)

surgimento de gêneros internos em sua obra, que não obedecem

necessariamente a formulações clássicas e que espelham um determinado

ideário estético-ideológico.

O poder de persuasão dessas premissas será, também, o da tese

principal deste trabalho: a de que o processo de formação de João Antônio

como escritor – que compreende as duas “dentições literárias” mencionadas

no capítulo 1, a inflexão rumo ao regionalismo da segunda geração

modernista agora aplicado ao ambiente urbano, como visto nos capítulos 2 e

3, e a fusão de nascença entre ficção e memorialismo – ainda não estava

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427

terminado antes de o jornalismo homogeneizar-se a esta argamassa anterior,

embora seus dois textos mais célebres – “Malagueta, Perus e Bacanaço” e

“Paulinho Perna Torta” – tenham sido escritos antes dele jamais exercer

qualquer função jornalística.

É curioso que, como provam as tiragens de seus livros, data deste

momento pós entrada do jornalismo a fase de maior sucesso comercial do

escritor. Mais curioso ainda é entender por que, já no início dos anos 80,

João Antônio percebe não soprarem a seu favor “os ventos literários”. E

chega a ser impressionante que, em 1996, quando de sua morte, ele tivesse

se tornado um escritor completamente fora de circulação: quase todos os

seus livros estavam esgotados (não se levando em conta pequenas edições

para-didáticas, que se limitavam a compilar “textos” já publicados); a crítica

o havia posto de lado; uma nova geração de leitores sequer o conhecia.

Se a verdadeira intenção deste trabalho é identificar os elementos

essenciais de seu projeto literário, o que procurou fazer ao longo de seus

quatro capítulos, ele entretanto não pode fugir à obrigação de, no mínimo,

esboçar algumas hipóteses para explicar o porquê desta decadência tão

radical. A conclusão a seguir, portanto, não terá um caráter de fechamento

dos assuntos tratados até aqui, de resumo e organização das idéias. Terá, isto

sim, uma índole mais ensaística, menos preocupada em corroborar suas

suposições por meio de citações de documentos ou análises específicas deste

ou daquele texto, deste ou daquele livro. E lançará um olhar mais solto no

tempo, capaz de viajar do início dos anos 80 até a morte do escritor.

Page 428: João Antônio: Uma Biografia Literária

428

Para Nunca Mais

1995, apenas um ano e alguns meses antes da morte de João

Antônio. No Jornal da Tarde, foi elogiosamente resenhada uma noveleta

de título curioso O Mistério do Leão Rampante.813

Sua publicação marcava

a estréia de um jovem escritor, de apenas 26 anos. Que ficou contente com

os elogios, claro, embora estranhasse os comentários suscitados pela

bendita crítica. Coisas do tipo: “Que resenha… E do João Antônio!”. Na

verdade, o que o jovem escritor estranhava, o que ele não entendia, era a

ênfase.

“João Antônio?”

Com medo de passar recibo de sua ignorância, o feliz alvo dos

elogios preferiu esconder a dúvida e desenvolver uma hipótese sua — a de

que João Antônio seria uma figura conhecida na imprensa paulistana, nada

mais. Esta resposta o satisfez. Mas, logo depois, a resenha tornou a

aparecer, ampliada, na capa do caderno cultural de A Tribuna da Imprensa,

no Rio de Janeiro.814

E também lá, em sua cidade natal, o autor estreante

ouviu tratamento semelhante dado ao resenhista misterioso, como se fosse

personalidade digna de reconhecimento por qualquer escritor, ainda que

estreante e muito jovem.

813

“Um Sedutor na Arte de Narrar”, in Jornal da Tarde, 24/06/95. 814

“Popular e Sofisticado a um só Tempo”, in Tribuna da Imprensa, 29 e 30/07/95.

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429

Caiu por terra, claro, a hipótese esboçada: a reputação latente do tal

João Antônio não se restringia ao meio jornalístico paulistano. Rendido, e

mordido de curiosidade, o aprendiz de escritor decidiu admitir sua

ignorância. Soube então que João Antônio era jornalista, sim, mas era,

sobretudo, escritor. Um expoente da Geração 70.

E isso chamou sua atenção. Afinal, um homem que conhecera o

sucesso literário (autor de livros premiados, jornalista de veículos que

marcaram época, nos quais era remunerado para fazer aquilo que mais

amava, colaborador atuante da glamourosa imprensa alternativa durante a

ditadura, personalidade cultural etc), estar agora fazendo resenhas

justamente para dois jornais que poderiam ser considerados como os

terceiros de suas respectivas cidades – a Tribuna, no Rio, perdendo para O

Globo e o Jornal do Brasil, e o Jornal da Tarde, da capital paulista,

perdendo para O Estado e a Folha de São Paulo? E resenhas sobre livros

como a sua noveleta? Sobre autores como ele? E outra coisa lhe chamou a

atenção. Sintomaticamente, todos que o conheciam como escritor

lembravam-se de apenas um livro: Malagueta, Perus e Bacanaço. Teria

outros? O que teria acontecido com eles? Por que ninguém os lia mais, e

nem deles se lembrava? Por que o nome de João Antônio estava tão fora

do repertório das gerações seguintes, do repertório, por exemplo, da

geração a que ele próprio, autor estreante, pertencia? Como nunca ouvira

falar desse homem? Por que essa mistura de reputação e ostracismo?

Nessa época, o escritor novato telefonou ao escritor veterano.

Sentia-se obrigado a agradecer o apoio ao seu livro de estréia; encabulado,

como sempre, por estar falando com alguém “famoso”; e ainda

secretamente culpado, por não ter jamais lido uma única linha escrita por

aquela misteriosa celebridade, que tantos elogios públicos lhe fizera. Entre

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430

maio de 1995 e outubro de 1996, os dois tiveram poucos contatos

telefônicos. O jovem escritor, humildemente, convidou João Antônio a um,

talvez dois dos lançamentos de livros promovidos pela editora em que

trabalhava. Mas o escritor veterano, sempre simpático e agradecendo

muito a lembrança, nunca apareceu em nenhum deles. Em 1996, o jovem

escritor lançou um segundo livro, cujo estilo, sempre por telefone, João

Antônio elogiou, mas fazendo uma ressalva quanto à estrutura, que tinha

“problemas”, os quais prometeu apontar numa resenha, que nunca chegou

a ser publicada, mas cujo esboço deixou pronto em seu acervo. Este

esboço praticamente comprova, pela vagueza absoluta de seus

comentários, que João Antônio jamais chegou a ler o livro.

Em carta a um conhecido comum, numa breve referência a esse

contato mínimo, João Antônio resume a impressão que um causou no

outro: “Não o conheço [ao escritor estreante] em pessoa, ele é

desnecessariamente tímido comigo. A gente é assim quando bastante moço

e, tenho para mim, é sinal de caráter e de índole íntegra”.815

Foi quando o jovem escritor leu “Malagueta, Perus e Bacanaço” pela

primeira vez.

Foi quando João Antônio morreu antes que eles se encontrassem.

Estava recolocada, agora em outro plano, a velha pergunta: “Quem

era João Antônio?”.

*

A identidade do escritor estreante, quero crer, eu conhecia, e

conheço, melhor que ninguém. Afinal, ele era eu.

815

Carta de João Antônio a Heitor Ferraz, de 13/04/96.

Page 431: João Antônio: Uma Biografia Literária

431

Já o porquê da fama empoeirada de João Antônio era mais difícil de

eu explicar. Embora fosse evidentemente empoeirada. Como foi dito na

apresentação deste trabalho, desde o início dos anos 80, lá se iam treze

para quatorze anos, o escritor auto-avaliava-se como “um autor para quem

os ventos da moda literária não ventavam lá muito a favor, e que chegava a

receber alguns tratamentos reticentes, não direi caricaturais, mas

esvaziantes, como: Rabelais da Boca do Lixo, Astro da Literatura

Amassada, Clássico Velhaco, e outros. Afinal, vivemos num país em que a

estrela passa a carne de vaca com uma rapidez meteórica”.816

Quatro anos depois das resenhas que publicou sobre meu livro de

estréia, em 1999, quando esta pesquisa teve início, a obra literária “de

direito” de João Antônio estava praticamente fora de circulação. Quase

todos os seus livros, esgotados. Suas melhores editoras, falidas ou

esquecidas de sua importância. Disponíveis nas livrarias havia seu último

livro, Dama do Encantado, e uma única antologia relevante, porque

organizada com critério e acompanhada de um estudo crítico.817

Afora

esses dois volumes, havia a obra “de fato”. Dois de seus livros haviam sido

estripados, com as editoras separando dos respectivos volumes de origem

as novelas “Malagueta, Perus e Bacanaço” e “Paulinho Perna Torta”, e

descartando todos os outros contos. Pior: não havia sequer uma nota

mencionando o fato. O leitor desavisado, por exemplo ao ler o livrinho de

oitenta e poucas páginas, chamado Malagueta, Perus e Bacanaço, não

saberia que com o mesmo título havia um outro livro com oito contos a

mais. Além dessas duas “separatas”, pululava pelas prateleiras, publicada

816

Antônio, João, “Meus Respeitos” in D’Incao, Maria Ângela e Scarabotolo, Eloísa (orgs.), Dentro do

Texto, Dentro da Vida – Ensaios sobre Antonio Candido, Instituto Moreira Salles, Cia. Das Letras, SP, s/d. 817

Dama do Encantado, Nova Alexandria, SP, 1996; e Hohnfeldt, Antônio (org.). Os Melhores Contos de

João Antônio, Globo, SP, 1986.

Page 432: João Antônio: Uma Biografia Literária

432

por editoras as mais díspares, uma triste série de antologias mal costuradas,

com fins para-didáticos, que requentavam textos publicados anteriormente

em outros lugares.

Em outubro de 1996, como todos os que acompanharam o noticiário, fiquei

chocado com as circunstâncias da morte do escritor: abandonado em sua

cobertura decadente no mais decadente dos bairros da Zona Sul carioca

(sendo o Rio talvez a capital mais decadente do país), apodrecendo durante

semanas até que as moscas denunciassem a “presença do cadáver”. Os

detalhes triste e mórbidos, a meu ver, pareciam de fato comprovar que um

“vento ruim” batera forte sobre João Antônio nos últimos anos, mas que os

prejuízos causados pelo vendaval não se limitaram a sua reputação como

escritor. Também o homem João Antônio encontrava-se na situação de

alguém “esquecido”, ou, no mínimo, isolado, cuja permanência neste mundo

não repercutia imediatamente na vida de ninguém.

Amarguei a frustração de não tê-lo conhecido pessoalmente.

Essa tese, em forma de biografia intelectual, dando igual destaque

aos fatos biográficos e a questões internas da obra de João Antônio,

explica-se, portanto: como uma retribuição, ainda que póstuma, aos dois

tipos de incentivos que ele me deu (o literário, manifesto nas duas resenhas

sobre meu livro, e o moral, expresso no bom juízo que fez de mim,

cabotinamente citado acima); como um desejo de alertar para o quanto se

enganam todos da minha e de outras gerações que imaginam conhecer a

obra de João Antônio apenas a partir de Malagueta, Perus e Bacanaço; e,

ainda, talvez mais que tudo, como um desejo, ambivalente e encoberto sob

o pretexto acadêmico, de entender um homem que caminha

voluntariamente em direção ao total isolamento.

Page 433: João Antônio: Uma Biografia Literária

433

*

Todos temos medo da solidão. Os que dizem gostar de ficar

sozinhos, os que realmente gostam, mas não ficam, e os que realmente

ficam, gostando ou não.

João Antônio era dos que realmente ficam sozinhos. Irene, a mãe, e

Nair, a avó, antes de todas, e mais Ivete, a prostituta e primeira amante

regular, “Fujie”, a namorada do melhor amigo, que inspirou um de seus

mais belos contos, certamente Ilka Brunhilde Laurito, a colega de pena,

mais velha, confidente e melhor amiga, paixão platônica, ou praticamente,

Marília, a única esposa de papel passado e a mãe do filho, e ainda as

namoradas posteriores, Tereza, que até hoje, ainda aos 60 anos, faz

qualquer um entender a paixão de João Antônio pelas mulatas, encarnação

da elegância popular que o escritor tanto prezava, e Solange, com quem foi

para a Alemanha e morou por um tempo na sua pequena cobertura de

Copacabana —; todas essas foram mulheres que marcaram a vida do

escritor, e com elas, desde sempre, teve relações conflituosas. Ele impôs

limites estritos a tais vínculos, propondo-se a ficar, tanto quanto possível,

livre de compromissos estáveis e das obrigações de toda sorte que

pudessem trazer, sobretudo financeiras. Sua dedicação à literatura

precisava ser preservada. Para tanto, ele sabotou as relações mais

profundas que teve. O ímpeto de se libertar da necessidade econômica, o

sofrimento diuturno de não poder ser apenas escritor, que o moveu desde

sempre, bem como os dramáticos tempos do começo do casamento,

quando a já conhecida e profunda falta de dinheiro somara-se à

responsabilidade de ser “arrimo de família”, tinham deixado cicatrizes.

Page 434: João Antônio: Uma Biografia Literária

434

Nas cartas para Ilka, na espécie de plataforma ideológica que se

depreende das matérias no Jornal do Brasil, e em muitos de seus textos,

fica explícito o ideal de uma entrega absoluta à vocação literária, em seu

nome sacrificando tudo o mais.

Em relação a sua família de origem, como vimos, tanto Marília, a

ex-esposa, quanto ele próprio, no seu texto “Abraçado ao Meu Rancor”,

reconhecem que se criara uma distância.

A própria mãe parece empurrá-lo ao isolamento da condição de

“intelectual da família”. Certa vez, no Morro da Geada, em 1986, em plena

fase cinza, dez anos antes de sua morte, e portanto antes das coisas ficarem

pretas de vez, João Antônio, aos 49 anos, chegou em casa tarde da noite:

“Mamãe fica tímida, depois do beijo. Não querendo contrariar, só

pergunta, jeitosa, como estou e se volto. E se é para ficar. Não vou

responder, no começo. Eu vou engolir café. Puxar um cigarro, andar para a

janela. Como se ouvisse os grilos.

Faço a tenção de me explicar, que cheguei tarde da noite. Mas ela é

minha mãe:

– A sua arte não permite dois amores”.818

O irmão, Virgínio, misto de amigo e sócio nas casas e terrenos

deixados pelo pai em Presidente Altino, que aqui e ali serviram de base

financeira para pequenos empreendimentos dos dois (um bar, uma oficina

mecânica, compra e venda de terrenos e imóveis bastante modestos, coisas

do gênero), acompanhava-o sim, porém só de longe, desde a mudança para

o Rio de Janeiro, mais ocupado com sua própria família e nutrindo pelo

irmão escritor uma mistura de admiração e sentimento de diferença, com

todos os subprodutos emocionais que essa mistura pode gerar: inveja,

818

Antônio, João. Dama do Encantado, Nova Alexandria, SP, 1996..

Page 435: João Antônio: Uma Biografia Literária

435

recalques, cobiça, dependência etc. Também este irmão o ajudou a se

colocar na posição de isolamento que ele, por sua vez, cavou para si

mesmo.

O desnível cultural, a imensa distância entre as respectivas bagagens

biográficas, passaram a atrapalhar o contato entre ele e seus mais

próximos. Não deixa de ser irônico, para um homem que tanto valorizava a

simplicidade e a facilidade no trato com as pessoas mais humildes, o fato

de, na sua família, ele sentir em si mesmo exatamente o contrário disso

tudo.

Talvez as prostitutas e os leões-de-chácara e os traficantes e os

guardadores de carro e os trombadinhas, e os surfistas ferroviários e tantos

outros merdunchos conciliassem a pureza da alma popular com a dose

indispensável de malícia para que João Antônio pudesse tratá-los de igual

para igual. Enquanto, de um lado, os pais eram também pessoas simples,

mas excessivamente ingênuas e moralistas, de outro, na classe média e daí

para cima na pirâmide social, ele não era capaz de sentir simplicidade e

espontaneidade alguma. Talvez, na faixa social em cujo retrato se

especializou, João Antônio estivesse, ao mesmo tempo, sendo o intelectual

e o homem exposto ao risco e toureando a vida. Na família não havia

desafio algum. Os membros da família eram os perfeitos “humilhados e

ofendidos”, os malandros/marginais não; de alguma forma, davam um

troco.

Em relação a sua segunda família, na qual era pai e não filho, a ex-

mulher Marília acredita que João Antônio não pôde conciliar seu universo

real com seu universo ficional. A família, e sua posição nela, não cabia na

vida de um escritor que – acreditando ser o assim chamado “corpo-a-corpo

com a vida” algo crucial para a autenticidade da literatura, e tendo

Page 436: João Antônio: Uma Biografia Literária

436

escolhido um recorte específico da sociedade para retratar em seus textos,

o universo da sub-cultura urbana – se considerava obrigado a viver nas

franjas da sociedade, em meio àqueles que as habitavam. “A mulher de um

escritor como ele não podia ser branca, de boa família, universitária; tinha

que ser mulata, de preferência prostituta.”819

Aqueles anos casado foram ainda, de certa forma, a maior

humilhação que ele jamais vivera. Eis como João Antônio devia se ver: o

menino-malandro, ovelha-negra da família, que recebeu desde cedo as

lições da Boca do Lixo, diretamente de seus amigos e amigas gigolôs e

prostitutas, logo de saída com uma visão desencantada do sexo, e, por que

não?, do amor, que publicou um livro e descolou uma outra “boca”, na

Cidade Maravilhosa, de repórter-especial, enfim, um malandro bem-

sucedido, mas que, de uma hora para outra, comportara-se como o mais

completo e perfeito “otário”. Pegou amor, fez mal a moça donzela de

família, de menor, foi obrigado a casar, mas jurando que filho “Jamais!”, e

logo depois foi pai. O script do “coió” perfeito. Ah, e tudo isso dizendo-se

pan-sexual!

Para combater, dentro dele mesmo, tanta “ingenuidade”, só partindo

para o extremo oposto...

O vazio das “comoções”, a impermeabilidade a vínculos afetivos

mais profundos, deveriam ser substituídos pela embriaguez da criação

literária. E esta, a partir de uma certa hora, pela embriaguez pura e simples.

Um imenso número de amigos regulares ou mesmo antigos conhecidos de

João Antônio, do Rio ou de São Paulo, a partir de uma certa fase – fim dos

anos 80 e anos 90 até sua morte –, contam que ao saírem com ele à noite

819

Depoimento de Marília de Andrade, colhido em setembro de 2000.

Page 437: João Antônio: Uma Biografia Literária

437

terminavam obrigados a levá-lo em casa, totalmente bêbado. Há relatos

dramáticos de humilhações públicas.

E o próprio João Antônio diz, referindo-se, ambigüamente, tanto à

profissão de escritor como à de jornalista, e sua relação com a bebida:

“Esta profissão não presta. Com o tempo, você vai empurrando a coisa

com a barriga, meio pesadão. Sem qualquer alegria, garra ou crença,

cutucado pela necessidade da sobrevivência. (...) A bebida, alguma

esbórnia, outros empurrões que se tenta dar nessa consciência, só fazem

afundar mais o poço”.820

Tanto sacrifício em nome da literatura, no entanto, ainda não bastou.

Sua fama foi arrastada pelo “vento ruim”. João Antônio, por exemplo, não

tem, entre as gerações subseqüentes de escritores, nenhum, nem um único,

que se possa apontar como herdeiro de sua linhagem, de seu estilo.

Ninguém mais escreve como João Antônio. E já não escreviam antes de

ele morrer.

*

“Vilela chegou perto do corpo caído. Na testa negra havia um

orifício avermelhado; a parte de trás da cabeça tinha desaparecido: em seu

lugar havia um buraco onde se viam restos de miolos, lascas de ossos

misturados com cabelos, coágulos de sangue escuro cheio de moscas.

Sangue empapava a camisa, no peito e nas costas.”821

O escritor Rubem Fonseca, autor do trecho acima, estreou no mesmo

ano de João Antônio, 1963. Não é raro encontrarmos quem o classifique

820

Antônio, João. Abraçado ao Meu Rancor, Cosac & Naify, SP, 2001. 821

Fonseca, Rubem. A coleira do cão, Edições GDR, RJ, 1965.

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438

também como um autor eminentemente dedicado ao submundo. De fato,

desde então, ele se especializou, sobretudo em seus romances, no gênero

policial, o que o aproxima, em linhas gerais, desse universo. No entanto,

vê-se logo que o caminho de Rubem Fonseca não é o mesmo de João

Antônio, e que a atitude do escritor para com os personagens deste

“submundo” é também completamente diferente.

O submundo de João Antônio é, sobretudo, um recorte social,

define-se como um grupo à margem. Os seus retratos de personalidades da

cultura brasileira, uma variação interessante em seu repertório, perdem

feio, em força dramática e densidade psicológica, para seus personagens de

maior elaboração ficcional e estilística. Os protagonistas predominantes da

obra de João Antônio são mesmo os anti-heróis, jogadores, rufiões,

merdunchos e prostitutas. Sua principal novidade, desde o primeiro livro, é

a valorização da “humanidade” em tais personagens. Por certos momentos,

de tão “humanos” chegam a ser idealizados e romantizados. Empresta-se a

eles um lirismo que transcende sua vida corrompida e os dignifica.

Na obra de Rubem Fonseca, de saída, já não se tem um recorte

social tão nítido. Não há, programaticamente, como em João Antônio, a

opção de “dar voz” a uma classe específica, ou mesmo a uma categoria,

como a dos “marginalizados”, fossem de que classe fossem. Seus

protagonistas não são necessariamente malandros ou expoentes da cultura

que transcendem as fronteiras de classe. No mais típico Rubem Fonseca, o

submundo se esconde dentro de cada um, e explode em violência. É,

portanto, uma violência disseminada. Não há, em princípio, muito espaço

para a idealização ou estilização dos códigos. Em seus livros, uma força

oculta borbulha no interior da sociedade. E a desmistificação que a

violência sofre a partir da concretude das descrições acaba por se

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439

transformar num novo estilo de idealização, agora não excessivamente

humana, como o lirismo de João Antônio, mas anti-humana, como se as

mortes que se sucedem não provocassem nos personagens culpa, dor,

sofrimento, problemas morais, existenciais, nada. Não há lirismo, a

violência é crua, uma instância superior que interfere na vida dos homens

mas que está acima dos desprezíveis, porque humanos, sentimentos que

causa. Vem apresentada sem rebuscamentos, como no trecho acima. Não

há qualquer valorização dos agentes que porventura escolhe para exercê-la,

nem apiedamento das vítimas que faz, por isso ninguém sai dignificado

dos livros de Rubem Fonseca.

Também estilisticamente os dois escritores são diferentes. João

Antônio, sem abandonar nunca o ambiente da cidade, parte da prosa

urbana “clássica” – racional, de observação e comentário, na qual a força

daquilo que se vê prepondera, de linguagem ordenada e contida, mais

“seca e enxuta”, como se costuma dizer –, para experimentações usando as

técnicas regionalistas – em que o elemento visual perde espaço, e cede a

predominância à música do texto, aos arranjos sonoros, à riqueza da

pesquisa vocabular e à maior irregularidade nas combinações sintáticas –,

inebriado pela música das palavras, e depois incorpora a isso seus

hibridismos jornalísticos.

A sonoridade das palavras, em João Antônio, têm um valor

expressivo em si, independente, que não é tão explorado em Rubem

Fonseca. Por isso João Antônio insiste em enumerar dezenas de sinônimos

numa frase, siderado pelos ecos de cada um. Um exemplo singelo, mas que

diz tudo, desta forma de enxergar as palavras. Quando perguntado sobre o

porquê do título Patuléia para uma de suas antologias pára-didáticas, João

Antônio respondeu: “Patuléia é o nome mais sonoro e saboroso que

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440

encontrei como sinônimo de patota, curriola, ratatuia. Mais alegre e

carregando picardia e música. Há mais juventude nele do que em ratatuia,

por exemplo, de que gosto muito”.822

Rubem Fonseca também nasce na prosa urbana, mas é muito mais

fiel a ela . E com o tempo a radicaliza, ocultando a profundidade

psicológica dos personagens sob uma descrição ainda mais crua de seus

atos e do mundo a sua volta. O realismo visual de sua literatura é tão forte,

desde a origem, que já nos primeiros livros alguns dos contos vêm sob a

forma de roteiros, textos dramáticos prontos para serem filmados. O passar

dos anos apenas reforçou a ligação entre sua literatura e o cinema,

enquanto que a única experiência de transportar a literatura de João

Antônio para as telas – o filme O Jogo da Vida, de Maurice Capovilla,

versão de “Malagueta, Perus e Bacanaço” – é simplesmente desastrosa.

O futuro, parece, afinou-se melhor ao projeto literário de Rubem

Fonseca. A disseminação da violência na sociedade brasileira, a

banalização dos horrores em nossas cidades, grandes, médias e até nas

pequenas, o potencial dramático da violência quando vista e descrita, curta

e grossa, sem maiores elaborações expressivas, tudo isso contribuiu. O

realismo visual, historicamente, provou-se mais duradouro que a

preocupação de João Antônio com a essência por trás da sonoridade das

palavras. O regionalismo, a linhagem escolhida por João Antônio para

expressar, numa fusão com a prosa urbana tradicional, a linguagem da sub-

cultura urbana, vinha se esgotando até chegar ao último estágio em

Guimarães Rosa, antes mesmo de João Antônio publicar seu livro de

estréia, e a fusão por ele pretendida, ao longo dos anos, não conseguiu se

firmar diante da ditadura do realismo visual, sem a força do apogeu

822

Antônio, João. Patuléia, Ática, SP, 1996.

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441

regionalista como retaguarda indireta, e diante da crueza da realidade em

nossas cidades, da separação radical e irrecuperável entre boemia e

marginalidade.

Não por acaso, a literatura de João Antônio, que já nasce marcada

pela nostalgia da infância, pela tristeza leve do passado, das memórias,

sejam elas boas ou más, depois ganha um sentimento nostálgico

generalizado. O escritor lamenta a perda da ambiência rural que, no Morro

da Geada, convivia com o entorno industrial – de certa forma, a opção

pelos merdunchos (sejam eles sinuqueiros, gigolôs, prostitutas,

guardadores de carro, surfistas ferroviários etc etc), é uma tentativa de

preservação de códigos de grupo, por incrível que possa parecer, de um

certo espírito comunitário, já descartado pelas pontas-de-lança do processo

de individualização, as camadas mais “altas” da sociedade, por

conseqüência natural do fato delas estarem mais à frente do processo de

modernização. E João Antônio lamenta também o fim do tipo de marginal

passível de humanização, com seus códigos, inclusive éticos, e do

submundo passível de romantização; lamenta as mudanças ocorridas nas

paisagens urbanas, lamenta o apagamento gradativo da “autêntica” cultura

brasileira, lamenta a perda de seu idealismo profissional, seja em relação

ao jornalismo ou à literatura. A “muralha” para proteger sua vocação

literária, construída começa a se fechar. A solidão, afinal, começa a doer.

“Na verdade, o que chora o vagamundo da pole inchada e absurda?”

– pergunta, referindo-se a João Antônio, o crítico e amigo Alfredo Bosi, e

ele mesmo responde – “Chora um tempo em que era fácil misturar

espontaneamente arte, boêmia e vida popular. Chora aquela onda de

gratuidade lúdica onde os pobres ainda podiam mergulhar dando-se ao

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luxo divino de não ter pressa. O dom infinitamente caro de brincar no

tempo sem hora do jogo e da música.”823

O próprio João Antônio, por exemplo ao falar da Lapa de

antigamente, parece descrever um mundo outro, quase mítico, em seu

mundanismo saudavelmente pervertido, algo como uma idade de ouro da

decadência: “Famosa pela sua boêmia, vida livre, rosário de cabarés,

clubes de jogo, blitzen policiais, império, reinado e república da

malandragem carioca, paraíso dos sabidos e calvário dos otários,

mostruário de mulheres famosas, centro da vida política do país em certa

faixa da idade republicana, moradia de um poeta bem-comportado

(Manuel Bandeira, ao lado do Beco das Carmelitas) e de um pintor famoso

(Portinari, do atelier da Rua Teotônio Regadas), palco dos tempos heróicos

de vários figurões do presente e de homens de valor em diversos setores

(...)”824

Anos depois dele haver escrito essas palavras, numa reportagem

intitulada “Mudou o mundo...”, personalidades brasileiras procuraram

mapear as principais mudanças pelas quais a sociedade havia passado no

intervalo que ia da década de 70 ao ano 2000.825

Entre elas estava Ignácio

de Loyola Brandão, um dos principais companheiros literários de João

Antônio na fase áurea de sua carreira. Alguns consensos foram

alinhavados:

823

Bosi, Alfredo. “Um boêmio entre duas cidades”, in Antônio, João. Abraçado ao Meu Rancor, Cosac &

Naify, SP, 2001. 824

Antônio, João. “A Lapa Acordada Para Morrer”, in Os Melhores Contos de João Antônio, Global, SP,

1986. 825

“Mudou o mundo...”, in Vogue, no 260, SP, 2000. Além de Ignácio Loyola, os demais participantes da

matéria eram: Joyce Pascowitch, colunista social; José Zaragoza, publicitário; David Zingg, jornalista;

Érika Palomino, jornalista de moda e costumes; José Hugo Celidônio, dono de restaurantes; Wesley Duke

Lee, artista plástico; Andréa Carta, editor da revista; Washington Olivetto, publicitário; Carlos Heitor

Cony, escritor e jornalista; Flávio Marinho, autor e diretor teatral; Millôr Fernandes, escritor e desenhista.

A matéria foi escrita quatro anos depois da morte de João Antônio.

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443

“Neste período, o Brasil atingiu a democracia, tecnocratas e

economistas assumiram o poder e passamos a viver o regime dos números

e índices, combate à inflação, manutenção da estabilidade. As teorias

neoliberais ocuparam o centro das discussões, interferiram em nosso

cotidiano e a globalização é um fato. (...) O Brasil conseguiu a

estabilização financeira, porém o custo social é grande: desemprego,

falências, salários congelados, jovens se formando e sem perspectivas de

trabalho. A marginalidade é crescente, a impunidade favorece a corrupção

e o crescente desdém pela Justiça”.

“Neste início do ano 2000, algumas características marcam a

sociedade: o individualismo exacerbado, a descrença absoluta nos poderes

constituídos, a desconfiança nas instituições e o medo da violência. A

sociedade, hoje, tem outra configuração. Nos 70 e 80, impelido pelas

mutações econômicas, o dinheiro começou a mudar de mãos. (...) O poder

do dinheiro fala mais alto. Essa foi a mudança radical.”

“Uma das tônicas de nossos dias, dogma mesmo, é ser celebridade,

não importa como, nem por quanto tempo. Essa ânsia gerou o fim da

privacidade.”

“Mudou a forma de consumir, ampliaram-se os templos de

consumo.”

“O individualismo e o medo empurraram as pessoas para dentro de

casa”

“O culto do corpo atingiu o paroxismo, multiplicaram-se as

academias e as lojas de artigos e equipamentos esportivos.”

A obra de João Antônio documenta essas transformações, em vários

níveis, mas seu vetor emocional vai sempre na direcão oposta. Fiel à

observação de “seu” recorte social, ao final da vida, ele descreve o que vê

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em uma de suas últimas cartas, e o que se tem é um subproduto de todas

essas transformações: “Quando em quando, este miserê Rio-São Paulo-

Belo Horizonte-Salvador, esta televisão que vai transformando os

ignorantes em idiotas, como diz o meu amigo Cassiano Nunes, me enfada.

(…) É o Brasil das periferias esquálidas. São os sem-terra que chegam e

ficam. Um Brasil sem praia, mas de tanga”.826

Ou quando perguntado como ia a vida dos marginalizados, em 1992:

“Piorando. A marginalização hoje atinge até trabalhadores com carteira

assinada. Saio às ruas e vejo que o Rio se transformou num grande mafuá,

com muita gente morando em barraquinhas. Eles não são marginais, foram

marginalizados, Não tiveram opção nenhuma. É o caos”.827

Mas os “dias de sushi e vinho branco”, cardápio obrigatório dos

yuppies de Wall Street, e dos que os imitavam desfilando nas avenidas Rio

Branco e Paulista, não tinham nada a ver com a obra de João Antônio.

Esvaíra-se a aliança entre a militância e a intelectualidade de esquerda,

provenientes da classe média, e o chamado “povo”, esmagada primeiro

pelos militares, e depois pelas transformações da conjuntura histórico-

ideológica, entre elas o colapso do modelo socialista de inspiração

soviética. E João Antônio, embora nunca tivesse publicamente se

declarado socialista, embora parecesse mesmo desconfiar de todos os

“ismos” ideológicos, era a encarnação desta aliança; natural que a roda dos

tempos o esmagasse junto. O escritor Moacyr Scliar, quando da morte do

colega, sintetizou bem: “Ninguém soube como ele combinar a gíria, o

linguajar do malandro com um texto rigorosamente literário. (...) Depois

do sucesso inicial [de Malagueta, Perus e Bacanaço, nos anos 60], o livro

826

Carta a Mylton Severiano da Silva, de 10/10/96. A carta foi escrita às vésperas de sua morte. 827

“Copacabana é um termômetro”, entrevista a Cláudio Uchoa, in O Globo, RJ, 1992.

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foi redescoberto [em 1975], a meu ver em função do próprio clima da

repressão: lê-lo era uma forma de protesto”.828

Uma resenha sobre Leão-de-chácara, dos anos 70, reforça a ligação

entre os processos da história nacional e a literatura do escritor: “E um

milagre [sua literatura] que dignifica o volumétrico ‘milagre econômico’.

É uma oposição à rudeza mecânica do Produto Bruto Nacional em

crescimento que a cada porcentagem de aumento material acrescenta

páginas que crescem entre as torres das comunicações, das eclusas das

hidrelétricas e se espalham por entre o arame farpado das cercas da

censura prévia, esse anticoncepcional da inteligência e esse Diu colocado à

força na faculdade de pensar da cavidade craniana brasileira./ Ao PNB ele

traz um vivificante PSA, um Produto da Sensibilidade e da Autenticidade

tangido das nossas editoras por uma geada de comodismo e de

irresponsabilidade. São taxas de crescimento do PSA nacional difíceis de

aquilatar as que este livro bárbaro e garnizé nos traz. Pela sua hombridade,

pela sua força, pelo seu talento é uma tomada, bunueliana quase, em prol

dos olvidados, os esquecidos formigueiros de gente miúda. Ele já tem seu

lugar seguro na nossa gratidão e no processo social constitui um corpo de

delito e uma peça incriminatória cuja exemplaridade não pode deixar de

falar – eloqüentemente – por todos os que temporariamente não podem ou

não sabem falar”.829

Por isso os anos 70 foram os anos áureos da carreira do escritor. O

menino pobre que virou escritor e tirou da oralidade popular a força de sua

literatura; ele era o homem certo para gerar, num processo de reprodução

natural, espécimes sociais que a maioria dos outros escritores, provenientes

828

“João Antônio: retrato de um escritor brasileiro”, de Moacyr Scliar, in Folha de São Paulo, SP, 02/11/96 829

“João Antônio”, resenha de Leo Gilson Ribeiro, in Jornal da Tarde, SP, 23/8/1975.

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da classe média, precisavam “clonar”. Enquanto ele ascendia socialmente,

o mainstream cultural-ideológico da época voltava-se justamente para os

que estavam embaixo, e em algum ponto do trajeto o jovem que “subia”

foi acolhido pelos que “desciam”. E eram estes homens de baixo os

espécimes sociais que, além de em seus livros, estavam em todos os

cartazes ideológicos da época. Por isso a partir dos anos 80, quando a

maioria dos profissionais do texto de sua geração foram se “enquadrando”,

sendo “cooptados” pelo “sistema”, quando a mobilização política

progressista foi, juntamente com a ditadura conservadora, se

desarticulando, João Antônio foi ficando para trás e sua literatura foi sendo

esquecida. Sua literatura tinha a “vocação para o conflito”, afinal. Não se

adaptava a tempos de anista, a tempos de banho-maria ideológico. A

infinita capacidade de se indignar e de deblaterar, que tanto pregara a

democracia, não se coadunava com tempos de democracia tal qual ela

realmente é, quase sempre lenta, muitas vezes burra. Sua literatura, antes

nostálgica, torna-se ressentida, antes engajada, torna-se amarga.

“Ser marginal em tempos de capitalismo avançado é problemático”

– dizia Alfredo Bosi – “(...) Acho preferível considerar a obra de João

Antônio sob o ângulo da estética do grotesco, que aparece em tempos de

crises e convulsões sociais. É comum nessa estética a articulação do

processo criador, sua estrutura propriamente dita, com o efeito da

recepção. O autor do grotesco procura, consciente ou inconscientemente,

atingir o público, mobilizando-o; o que resulta muitas vezes numa

literatura de edificação e moralismo. Pois, ao incitar a um novo olhar, o

impacto provoca uma postura diante do apresentado, sempre radical, de

aceitação ou de repúdio, raramente de reflexão, porque essa narrativa é por

Page 447: João Antônio: Uma Biografia Literária

447

si só empática e esbofeteante”.830

Atuando de tal forma sobre o leitor, a

obra de João Antônio viveu seu momento áureo nos anos 70, quando o

panorama ideológico era propício. Mas dez, quinze anos depois, essa

índole militante não podia ser mais ultrapassada, mesmo com as terríveis

crises econômica e social. O Brasil vivia o seu “fim da história”, com o

centro conservador usufruindo sua vitória, material e ideológica, e o

capitalismo tornando-se a única opção no mundo pós-comunista. A classe

média brasileira, fosse subservientemente seduzida pelos valores da classe

alta, como o escritor acreditava que era, fosse preocupada com suas

crescentes dificuldades financeiras, virara as costas ao “povo”, seu antigo

aliado.

Diante da deterioração social que, ao final da vida, os olhos de João

Antônio enxergavam por todos os lados, nem ele conseguia mais dignificar

os merdunchos. A globalização transformara os camelôs em “empregados

dos contrabandistas”. A degradação moral finalmente atingira os espíritos

espontâneos. Foi então que, marcado pelos rótulos literários que havia

cultivado, sem nunca ter reconhecido humanidade fora do recorte social

em que se especializara, arcaico num mundo “desideologizado”, João

Antônio tornou-se um prisioneiro de sua própria arte esvaziada.

*

“Sabe quando você vê, em algum lugar público, uma mãe batendo

no filho? E você sabe que não deve interferir, sabe que não adianta, sabe

que vai apenas se desgastar, mas fica tão revoltado com o que está vendo

que vai lá e se mete mesmo sabendo de tudo isso? Pois é. A minha geração

830

“Estética do rancor”, matéria assinada por Sonia Salomão Khéde, in Jornal do Brasil, RJ, 03/08/86.

Page 448: João Antônio: Uma Biografia Literária

448

foi assim com a literatura. A gente sabia que devia estar escrevendo outras

coisas, mas não conseguíamos fazer diferente.”

Essa era a imagem e o juízo que o escritor Ivan Ângelo tinha da

Geração 70, da qual foi um dos expoentes, quando foi entrevistado por esta

pesquisa.831

A seu modo confrontado com a situação descrita por Ivan Ângelo,

João Antônio tenta proteger os “filhos” maltratados pela sorte,

envolvendo-os em lirismo, muitas vezes num lirismo nostálgico, outras

numa revolta opiniática e estéril. Mas ele, já em 1963/64, pressentia que

sua obra, para ser realmente grande, precisaria transcender os limites

estreitos, por mais ricos em potencial dramático, que tinham as vidas dos

merdunchos. “Vou-lhe fazer uma confissão, Ilka. Cá entre nós, fique claro.

Eu não sou o escritor dos malandros. Já estou cansado desse slogan que

certos jornais, revistas e repórteres andaram pespegando por aí. (...) Meu

futuro literário, a meu ver e sentir de agora, é continuar a linha iniciada

pelos contos mais universais e de análise de certas essências do homem,

como ‘Busca’ e ‘Afinação da arte de chutar tampinhas’. Lembra-se?

Aquela me parece agora ser a minha verdadeira rota. Um corte vertical na

alma dos personagens, botando-os para fora sem prosas moles, porém, não

exagerando nunca o tamanho de seus vazios interiores.”832

E dizia mais:

“Quero ver se parto já para o universal, seja ele em ambiente malandro ou

não. Todo e qualquer sinal de pitoresco ou regional deverá ser evitado,

todas as facilidades em me deter em exteriores e superfícies, extraindo daí

efeitos estéticos, plásticos, psicológicos, são perigosos (assim penso eu) na

831

Depoimento colhido em junho de 2000. 832

Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 08/06/64.

Page 449: João Antônio: Uma Biografia Literária

449

nova fase de minha literatura”.833

O romance Jordão daria este salto, o

projeto literário mais ambicioso que jamais concebeu. Só que ele nunca o

terminou. E o regionalismo urbano o engolfou. Sua literatura também tinha

amantes que exigiam exclusividade. Ela possui, no conjunto, um certo

maniqueísmo, segundo o qual só o drama dos menos-favorecidos era

dramático. E esse não era o melhor caminho para o “universal”.

Décadas depois desta fracassada redefinição literária, os próprios

“merdunchos” não eram mais os mesmos, figuras densas de vida e de uma

sabedoria encantadoramente simples. E, claro, havia uma contradição

básica em seu projeto: ele condena a existência de marginalizados, mas só

neles enxerga a dignidade da experiência humana. Se a justiça social

porventura chegasse ao Brasil, e virássemos todos classe média, que seria

da literatura sem eles, então?

João Antônio viu-se um homem traído pelos dois mundos que tinha,

o seu de origem, do qual seu auto-didatismo, entre outros elementos de sua

personalidade, e seu novo status o distanciavam; e o mundo literário, que o

tirou da vida proletária mas não lhe deu a tão sonhada chance de viver

exclusivamente de sua literatura, e, a partir de um certo momento, cassou o

trânsito fácil e prestigiado de seus textos, e ainda lhe roubou a força

literária. Despontar para a fama como escritor durante os anos 60 e 70,

época de intensa modernização não apenas dos valores na sociedade, mas

também da indústria cultural, campo específico de sua atuação, deu-lhe a

impressão de que a sociedade iria permitir a “muralha positiva”, ou seja, a

obtenção de uma vida ganha exclusivamente como escritor, a dedicação

completa a sua arte, àquele amor que, como sua mãe mesmo disse, não

admitia concorrentes. Daí sua defesa tão contundente da profissionalização

833

Idem.

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450

do escritor, sua guerra santa em nome do pagamento dos direitos do autor

no Brasil, cujo respeito, estranho que seja, não era a norma no mercado

editorial da época (até hoje, mais raramente). Daí as brigas que teve com

quase todos os seus editores. Daí, em parte, o gradual desaparecimento de

seus livros das prateleiras das livrarias. Daí suas desilusões com a

televisão, ele que sonhava em ver os escritores ocupando lugar de destaque

na tele-dramaturgia e na programação como um todo. Daí suas desilusões

com o jornalismo, que, após um espasmo renovador, retrocedeu e

abandonou as experimentações e a convivência com a literatura. Nunca

João Antônio se libertou da necessidade de ganhar dinheiro para

sobreviver. Ele se livrou das obrigações familiares, dos vínculos

sentimentais, obstáculos para sua vida integralmente literária, mas nenhum

sacrifício foi suficiente.

Quando lançou o primeiro livro, em 1963, ele reclamou que todo o

dinheiro das vendas, apesar da boa recepção, não dava para nada. Em

1996, mais de trinta anos depois, a situação era a mesma: “O mínimo que

posso dizer, Myltainho, é que a distribuição e a comercialização dos livros

no Brasil é grotesca e raquítica”.834

Nas décadas seguintes, a indústria

cultural o traiu, deixando os escritores de fora de seus principais postos.

Para ele, ascender à classe média significou perder a pureza de

antigamente. Mas, sem o prêmio prometido, tornava-se uma traição inútil.

Foi, deste ponto de vista, não uma promoção, mas uma degradação: “Pior

é, no país, o sujeito que, escritor, se mete a também jornalista. Aí, perderá

potencial maior – o tempo, a vergonha, o talento e o estilo. Além, claro, de

correr outros riscos sérios da dor inútil. Bate-lhe o envelhecimento

precoce, a velhice íntima, baixa-lhe a impotência, medo, mais as

834

Carta a Mylton Severiano da Silva, de 10/10/96.

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deformações e vícios pequenos da classe média. Por que esse tipo de

infeliz será sempre um animal bufo da classe média. (...) Mas da classe

média você não vai escapar, seu. A armadilha é inteiriça, arapuca blindada,

depois que você caiu. Tem anos e anos de aperfeiçoamento, sofisticação,

tecnologia, ah o cartão de crédito, o cheque especial, o financiamento do

telefone, da casa própria e do resto da merdalhada que for moda e, meu,

sem ela você não vive. Não respira, é ninguém. Ou melhor, é nada: você já

virou coisa no sistema. E não pessoa. Dane-se!”.835

*

Ainda tem mais. As contradições ideológicas de seu projeto literário,

o fato de ele se alimentar do que combatia, ou seja, da existência de

marginalizados, eram secundadas, ou manifestas, por certos desvios

estilísticos, por certas excrecências formais que nascem da sua própria

sensibilidade peculiar, e dos pontos fracos de suas experimentações

lingüísticas.

Leão-de-chácara, na mesma resenha já citada, por mais elogiosa que

ela seja, revela esses limites: “Não se espere dela [da literatura de João

Antônio] um tratado de elucubrações sociológicas ou intelectuais nem um

desfiar de arranjos estéticos maravilhosamente ajustados e harmoniosos no

seu teorema artístico-intelectual”, ou “Ele prova que a literatura se faz

também mas não somente com os requintes intelectuais, a grandeza e os

labirintos deslumbrantes de novelistas complexos como Tolstói, Svevo,

Musil, Proust, Virginia Woolf, Joyce. A literatura popular no sentido

menos conspurcado do termo não é para gourmets de paladar cosmopolita.

835

Antônio, João. Abraçado ao Meu Rancor, Cosac & Naify, SP, 2001.

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452

É de veio grosso mesmo, de bitola estreita, diamante bruto garimpado com

as próprias unhas, cheias de cortes, de ferimentos de garra, facão e

teimosia de durar”.836

Então o projeto pode até ter sido adequado a um dado momento

histórico, e tinha qualidades, mas tinha também limitações de concepção. E

de execução. O uso exaustivo de dados recolhidos através da pesquisa de

linguagem na oralidade fortemente estetizada vai saindo de moda, sua

literatura vai pelo mesmo caminho. Sua sintaxe parece tosca.

Outro resenhista, em 1982, acusa: “Seu último livro, Dedo-Duro,

revela um João Antônio diante de uma bifurcação provavelmente decisiva

para o seu futuro como escritor. Ele enveredará por uma literatura do tipo

bandeira ideológica da ‘ditadura do proletariado’ ou verá mais lucidamente

outras opções para a solução das distorções sociais violentas que o Brasil

apresenta? Porque, tudo indica, este seu livro recém-publicado denota, sem

dúvida, um afrouxamento da maravilhosa auto-análise que impedia seus

textos de se confundirem com robôs da militância política. Mais ainda: este

livro revela que João Antônio se encontra em um momento de interrogação

de si mesmo e, sobretudo – defeito mais grave – preso num cipoal de

palavras que quase sufoca o relato Em vários pontos do volume ele confessa

o que o leitor já decifrou desde as primeiras páginas: seu fascínio, hoje

asfixiante, pelas palavras, pela sua cor, sabor, cheiro, música, ritmo,

sensualidade, valor expressivo novo, poder encantatório, quase mágico e

sacral. (...) Ora, esse deslumbramento pelas palavras tem, evidentemente, no

mínimo, dois lados. Por um deles o autor cria palavras ou cata as que o povo

forjou, como ensinava Mário de Andrade, para exprimir outras realidades

que não são as de Portugal; por outro lado, João Antônio sucumbe ao êxtase

836

“João Antônio”, resenha de Leo Gilson Ribeiro, in Jornal da Tarde, SP, 23/8/1975.

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indiscriminado perante as palavras e se torna um autor em grande parte

incompreensível para quem não dispuzer de um glossário volumoso (...)

[João Antônio] neste momento de pausa indefinida, acumula de modo

excessivo centenas de palavras que, se têm a expressividade que deseja,

paralelamente, tornam o mundo que elas querem descrever hermético,

barroco, no sentido pejorativo do termo, palavroso demais, obtendo não a

comunhão do leitor com os propósitos evidentemente nobres e idealistas do

autor, mas sim a incompreensão e, no pior dos casos, o seu enfado e

desinteresse pela obra”.837

Quanto a sua opção por focalizar determinada faixa social, não se

atendo aos dramas das demais, o resenhista aponta que: “Mas, ao contrário,

por exemplo, de um autor que lhe está próximo, Rubem Fonseca, João

Antônio é incapaz, neste livro, de vencer um maniqueísmo binário (senão

primário) e apontar um policial decente ou um malandro monstruoso de

crueldade. (...) Este [a violência policial] e outros temas profundos, atinentes

à democracia e ao binômio justiça e liberdade, são abordados por João

Antônio. Até, em alguns momentos, breves, com extrema precisão, força de

convicção e autenticidade artística. Noutros, enredado pelo canto de sereia

das palavras em demasia, que o cegam para o valor de uma escrita enxuta

como a do escritor que justamente ele preza, Graciliano Ramos”.838

Não é difícil imaginar o próprio João Antônio dizendo: “Lambendo e

brincando, uma a uma as palavras, atento, embalado, amante – do jeito, do

sestro, do desenho, sonoridade, sensualidade, doçura, porrada, murro,

cipoada e suor particular de cada uma das palavras”.839

837

“João Antônio, fascinado pelas palavras. É um perigo?”, resenha de Leo Gilson Ribeiro, in Jornal da

Tarde, SP, 13/11/82. 838

Idem. 839

“Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralho”, in Dedo-Duro, Record, RJ, 1982.

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454

Há, de fato, uma perda considerável de densidade psicológica entre os

personagens que reúne nos contos de Malagueta, Perus e Bacanaço e sua

literatura a partir de meados dos anos 70, mas sobretudo dos anos 80 em

diante. A acusação de hermetismo talvez soe mal colocada, mas o excesso de

palavras é evidente, há um efeito reiterativo intencional, mas que por vezes

soa enciclopédico, artificial, palavroso. Enfim, um efeito vazio, talvez a

disfarçar as contradições ideológicas por trás do texto. Por um tempo, a

experimentação, a fusão entre língua falada e carpintaria estilística, de tão

bem-feitas, ou recriam ou até mesmo reforçam a densidade psicológica dos

protagonistas, como acontece em “Paulinho Perna-Torta”, e também no

conto “Leão-de-chácara”. Para muitos críticos, esse é o momento áureo do

escritor. Mas, já no início dos anos 80, sua mão parece pesar, e os volteios

formais começam a sufocar as maiores virtudes de sua narrativa.

Ele, pessoalmente, torna-se um narrador sufocante. Como conta um

antigo “foca” seu nas redações cariocas, o jornalista José Castello: “Na boca

de João, a palavra transbordava para estrangular seus interlocutores, que,

como eu ali, eram sempre obrigados a se debater naquele emaranhado de

frases, sentenças que se costuravam sabe-se lá através de que mistérios,

frases enroladas em outras frases, um novelo de palavras. João desandou a

falar, emendando histórias irrelevantes a comentários furiosos, casos antigos

a vaticínios pessimistas a respeito do futuro brasileiro (...)”.840

A índole militante, ultrapassada pela realidade, também é evocada

pelo crítico: “Ele viveu num mundo de dicotomias, repartido entre o bem,

em geral do lado dos marginais, esquecidos e excluídos, e o mal, que estava

sempre com os ricaços, poderosos e bem-sucedidos, e embora não visse o

mundo de modo simplista, pois aceitava e até se entusiasmava com as

840

Castello, José, in O Inventário das Sombras, Record, RJ, 1999.

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455

contradições que todos carregamos, jamais admitiria a possibilidade de um

mundo unificado e igual como o de hoje. (...) E se falava sem parar,

derramando seu verbo como sangue, é porque se sentia sufocado, asfixiado

mesmo por um mundo que se organizava cada vez mais no sentido contrário

dos seus sonhos, e que o deixava para trás, tão para trás que teve que morrer

(...)”.841

Deixando para trás os “embelecos”, como dizia, propondo uma

literatura “de murro e de porrada”, sem sutilezas, deixando pesar a mão ao

exprimir seu amor pelas palavras, talvez a única dimensão na qual podiam

conviver, dentro dele, o erudito e o popular, e em nome do exagero, que

chegou a aproximá-lo do grotesco, perdendo o apuro psicológico de suas

maiores criações, João Antônio caiu na segunda armadilha da solidão. Após

a solidão pessoal, a literária.

*

“João Antônio tinham um alter ego para uso íntimo, o Truman

Capote que escreveu A sangue-frio, e repetia tanto essa referência que

parecia mais querer se livrar dela, esvaziá-la de qualquer sentido, do que

perpetuá-la. De qualquer forma, ela denota esse gosto pela escrita

fronteiriça, que fica a meio caminho entre a invenção e a realidade, à borda

dos gêneros instituídos, e que era sempre um pouco suja, apressada,

exibindo um desleixo proposital que ele jamais permitiu que se petrificasse

em estilo.”842

841

Idem. 842

Idem.

Page 456: João Antônio: Uma Biografia Literária

456

O jornalismo, que o escritor, em sua obra, amalgamou

definitivamente à literatura, também mudou ao redor de João Antônio. O

jornalismo literário perdeu voz na grande imprensa, para não dizer que

desapareceu quase completamente, restrito a mínimos espaços. (Por

estranho que possa parecer, talvez sua melhor contribuição seja hoje

desempenhada por um certo tipo de literatura, obsessivamente direto e

realista.) Esse amálgama, que se tornara necessário – pois foi a única

forma que ele encontrou de viver tendo como fonte primordial de renda

“sua literatura”, ou seja, tirando seu sustento das poucas oportunidades que

lhe abria a indústria cultural –, e que num determinado momento estético-

ideológico foi desejável – pois dava função social direta à arte – a partir de

uma certa época foi sendo praticado de maneira mais e mais solitária. O

jornalismo em geral preferiu desvincular-se do apuro literário, e procurar

qualidades outras, como a extrema agilidade, a preocupação mais em

transmitir as sensações diretas provocadas por um fato, por exemplo com

as coberturas ao vivo, do que em oferecer reflexões emotivas sobre o

mesmo fato, ou personalidade, ou paisagem, como João Antônio

especializou-se em fazer. As redações idealistas, como a do Jornal do

Brasil, mas sobretudo a de Realidade etc, foram sendo desfeitas, primeiro

pela repressão e, depois, porque os idealistas foram deixando de existir.

E os vícios estilísticos citados, de uma forma ou de outra, podem

muito bem estar ligados à fusão entre literatura e jornalismo. Afinal, a

repetição de palavras era, em grande parte, também justificada por uma

reiteração explicativa do significado de alguma gíria. Como se a pesquisa

de linguagem, antes voltada ao aperfeiçoamento da caracterização de um

personagem, agora devesse explicações ao leitor. Se em literatura o

hermetismo pode até não ser defeito – em alguns casos chega a ser

Page 457: João Antônio: Uma Biografia Literária

457

considerado mérito –, no jornalismo não há tanta margem de manobra. E a

pressa – característica do tempo jornalístico – é inimiga da perfeição.

Como vimos, muitas vezes textos aos quais ele confere valor literário, são

resultado de uma colagem de pedaços de reportagens-literárias anteriores,

feita provavelmente às carreiras para se desencumbir de uma encomenda

ou faturar um dinheiro extra, rápido e fácil. Um texto sobre a Lapa poderia

render uma matéria sobre o Rio antigo, outra sobre a degradação do

cenário urbano e um retrato de Noel Rosa, apenas na base do recorta e

cola. E todos eles com status de “conto”, ou seja, passíveis de incorporação

à sua obra em livro. Só que em livro o efeito é outro. Há uma permanência

que revela as costuras eventualmente imperfeitas. Isso para não falar dos

possíveis constrangimentos mentais que, ao escrever um texto ele pudesse

se impor, ao pensar que sem uma certa contenção jamais poderia

aproveitar aquele texto em algum jornal ou revista. O que limitaria a

invenção artística de saída.

Mas, de todos os problemas possivelmente acarretados pelo

jornalismo a sua literatura, o maior de todos é a gradual subordinação da

fabulação ficcional ao testeunho do observador. Seria injustiça falar de um

novo olhar exclusivamente jornalístico, mas é evidente que o laboratório

pessoal do escritor, flanando pelas ruas e colhendo pela observação e pelos

encontros casuais com os tipos que lhe interessavam, nele inibe a invenção

mais livre, típica e definidora do ficionista. Aqui faz sentido o comentário

de um amigo e colega escritor, Caio Porfírio Carneiro: “Daí porque ele

fazia literatura (…) voltada ao jornalismo, ele não fazia ficção pura. Ele

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458

fazia o narrativo junto com o descritivo, agora, com muito poder narrativo,

porque ele tinha um ‘como dizer’ único”.843

Após uma primeira fase, em que sua ficção está plasmada com o

real, mas onde o real é de uma visceralidade completa, porque

autobiográfico, ele passara por uma segunda fase em que a fabulação se

libertou, tomou conta da sua produção e deu origem a seus melhores

contos; mas, a partir da entrada do jornalismo em sua alquimia criativa, ele

volta a subordinar sua fabulação ao real, porém um real mais frio, que, por

mais vivido que seja, o foi como observador, não é mais de uma

autenticidade e de uma identidade completas. João Antônio vai se

tornando, com o passar dos anos, testemunha da existência “merduncha”,

mas ele próprio já não pode mais ser considerado um deles.

O primeiro sintoma deste processo é o fim da trama. A partir de uma

certa hora, os personagens retratados por João Antônio muitas vezes

deixam de estar envolvidos em uma história, como em “Malagueta, Perus e

Bacanaço” e “Paulinho Perna Torta”. Claro que esse é o caso dos retratos

literários em si, estáticos e descritivos quase que por definição, mas é

também o caso de vários dos personagens colhidos nas ruas. Sem trama,

muitas vezes, os personagens viram tipos, tratados na maior parte do

tempo de forma puramente expositiva, ainda que muito elaborada do ponto

de vista estilístico. Novamente vale a pena ouvir as palavras do amigo e

colega escritor: “‘João’, eu dizia, ‘você é muito mais ficcionista do que

escritor’, e ele perguntava, ‘O que você quer dizer com isso?’, e eu

explicava, ‘É porque teus personagens não têm alma. Você só não é

maniqueísta porque tem muito talento. Mas quem é aquele cara daquela

boate, cadê a alma daquele cara, cadê o mundo interior dele?’. Eu dizia pra

843

Depoimento de Caio Porfírio Carneiro, colhido em maio de 2000.

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459

ele. ‘Isso é caricatura’”.844

O que se cria, portanto é uma empatia entre

leitor e autor bastante diferente da que se monta no texto ficional,

geralmente fortalecida por uma trama, na qual o protagonista não é apenas

descrito numa fotografia mais ou menos estática, mas evolui visivelmente

à medida que os acontecimentos se sucedem. Aqui eles já entram como

terminarão, são descritos em imagem ao mesmo tempo exemplar e

singular.

Sem o fio narrativo principal delimitado, seu estilo, em muitos

momentos, tornou-se pesado, volteando em falso, sem rumo, imitando a si

próprio, e sua obra resvalou na irregularidade, quase sempre melhorando

quando reencontrada com a veia autobiográfica, como é o caso de textos

dos anos 80, como “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralho” e

“Abraçado ao Meu Rancor”.845

Mas não só a relação leitor x livro saiu prejudicada. O fato de seus

personagens brotarem agora das ruas, quase aleatoriamente — numa

atitude menos do escritor “de mergulho” para dentro de suas criaturas,

criadas a partir de sua própria experiência, e mais na de jornalista capaz de

observação descentralizada, registrando literariamente os tipos com que

esbarrava, as situações que meros passeios por Copacabana o faziam

testemunhar —, somado ao gradual desligamento mental-social entre João

Antônio e seu mundo de origem, o da mentalidade proletária, afastaram-no

de seus próprios personagens. Há textos, escritos a partir do fim dos anos

70 e começo do 80, nos quais nitidamente se percebe uma diluição. Não se

cria maior vínculo entre leitor e personagem exatamente porque se desfez

o elo visceral entre autor e personagem.

844

Idem. 845

Respectivamente, in Dedo-duro, Record, RJ, 1982 e in Abraçado ao Meu Rancor, Guanabara, RJ, 1986.

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460

Para culminar, aquilo que no Cap. 4 foi chamado de a “explosão dos

gêneros” – o apagamento das fronteiras entre ficção, reportagem, crônica

literária – pode, dependendo do ponto de vista, ser chamado de “diluição

dos gêneros”. Afinal, essa indefinição de gênero faz com que ele produza

textos de natureza totalmente pessoal, quase idiossincráticos em sua

constituição, e isso muitas vezes provoca nos leitores um certo sentimento

de rejeição. A elaboração formal carregada parece tomar a frente de tudo,

como se disfarçasse a falta de rumo e coerência interna de alguns de seus

textos.

*

Seu último livro, Dama do Encantado, é uma tentativa de resolver

alguns desses dilemas, desatando vários dos nós que impediam sua obra de

atingir uma excelência indiscutível. Mas chegou tarde.

João Antônio morreu só.

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461

Bibliografia Selecionada:

Obras de João Antônio:

Malagueta, Perus e Bacanaço: editora Civilização Brasileira, RJ,

1963. A partir da 7ª edição, editora Record, RJ, 1980. 8a edição pela Cosac

Naify, SP, 2004.

Vários autores: Os Dez Mandamentos, Civilização Brasileira, RJ,

1965.

Leão-de-Chácara: editora Civilização Brasileira, Rio, 1975. 6ª edição

pela editora Record, RJ, 1980 e 7ª pela editora Estação Liberdade, SP, 1989.

8a edição pela Cosac Naify, SP, 2002.

Malhação do Judas Carioca: editora Civilização Brasileira, RJ, 1975.

3ª edição pela Record, RJ, 1980.

Casa de Loucos: editora Civilização Brasileira, RJ, 1976.

Calvário e Porres do Pingente Afonso Henriques de Lima Barreto:

editora Civilização Brasileira, RJ, 1977.

Lambões da Caçarola: LPM Editores, Porto Alegre, 1977.

Ô, Copacabana: editora Civilização Brasileira, RJ, 1978. 2a edição

pela Cosac Naify, SP, 2001.

Noel Rosa: Literatura Comentada: Nova Cultural, SP, 1981.

Dedo-Duro: editora Record, RJ, 1982. 2a edição pela Cosac Naify, SP,

2003.

Meninão do Caixote: editora Record, RJ, 1983.

Paulinho Perna-Torta: editora Mercado Aberto, Porto Alegre, s/d.

10 Contos Escolhidos: Horizonte Editora, INL, DF, 1983.

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462

Abraçado ao Meu Rancor: editora Guanabara, RJ, 1986. 2a edição

pela Cosac Naify, SP, 2001.

Os Melhores Contos: Global Editora, SP, 1986.

Zicartola e Que Tudo Mais Vá Para o Inferno: editora Scipione, SP,

1991.

Um Herói Sem Paradeiro: Atual Editora, SP, 1993.

Guardador: editora Civilização Brasileira, RJ, 1994.

Patuléia: editora Ática, SP, 1996.

Sete Vezes Rua: editora Scipione,SP, 1996.

Dama do Encantado: editora Nova Alexandria, SP, 1996.

Foram catalogados ainda alguns textos literários do escritor que

permanecem inéditos em livro, ou inéditos inteiramente. São eles:

1 – Choros - Para Pintagol e Cuíca (poema longo)

2 – Pentecostes Rubro (conto)

3 – Ao Barulho do Natal (conto)

4 – Viva o Bicho (conto-reportagem)

5 – Os Contos da Prostituta Loira – Morcego Seco (conto)

6 – Em Janeiro Sonhamos (crônica)

7 – Olhar Baço da Literatura Engambelada (crônica)

8 – Antônio, O Bom Maria (perfil)

9 – Viva a Sereia (conto)

10 – Comprados e Vendidos (novela)

11 – Contos Inéditos (textos reunidos no acervo do escritor em Assis)

12 – Morro (conto)

13 – Morrer de Fome (crônica)

Page 463: João Antônio: Uma Biografia Literária

463

14 – Largo do Café: das Sete às Sete (conto)

15 – O Pícaro e o Malandro em Berlim (crônica)

16 – No País dos Enjeitados (crônicas)

17 – Meu Poeta Evaristo (crônica)

18 – Berlim, Banda Ocidental (conto)

19 – Restos de um Inverno em Berlim (crônica)

20 – Escapada (crônica)

21 – Índios (conto)

22 – Primeira Água Forte do Morro (conto)

23 – Balada de Amsterdam (conto)

24 – Durante a Repressão (crônica)

25 – Burro, Paulistano Não É (crônica)

26 – Cor de Cinza (antiga versão de Abraçado ao Meu Rancor)

27 – Biu (conto)

Obs: No acervo do escritor, que se encontra na Unesp de Assis, há

ainda muitos textos inéditos a serem catalogados.

Contos em Antologias Estrangeiras:

(Frio) Frio: Revista de Cultura Brasileira, Madri, Espanha, 1964.

(Busca) Busca: Jorge Álvares Editor, Buenos Aires, Argentina, 1965.

(Meninão do Caixote) Der Grosse Kleine mit der Kleinen Kiste: Horst

Erdmann Verlag, Herrenalb, Alemanha, 1967.

(Paulinho Perna-Torta) Aniz Posadas Staktu Jeho: Revista Svetorá

Literatura, Praga, Tchecoslováquia, 1967.

Page 464: João Antônio: Uma Biografia Literária

464

(Meninão do Caixote) El Muchacho del Cajón: Monte Ávila Editores,

Venezuela, 1969.

(Joãozinho da Babilônia) Janek ze Wzgórza Babilónia: Cracóvia,

Polônia, 1997.

(Afinação da Arte de Chutar Tampinhas) Doskonalenie Ssssztuki

Kopania Kapsli: Cracóvia, Polônia, 1977.

(Meninão do Caixote) Le Garçon à la Caisse: Derivés, Montreal,

Canadá, s/d.

(Malagueta, Perus e Bacanaço) Paprika, Perus e Hezoun: ed. Odeon,

Praga, Tchecoslováquia, 1981.

(Afinação da Arte de Chutar Tampinhas) Afinación del Arte de Patear

Tapitas: Brasil Cultura, Buenos Aires, Argentina, 1982.

(Casa de Loucos) Irrenhaus: Verlag Keysenheuer & Witsch, Colônia,

Alemanha, 1982.

Eguns: Colóquio/Letras, nº76, Lisboa, Portugal, 1983.

(Joãozinho da Babilônia) Babylon Johnny: The Literary Review. New

Jersey, USA, 1984.

(Afinação da Arte de Chutar Tampinhas) Versfijning van de Kunst

van het Dopjes Trappen: Maatsaf, nº3, Amsterdam, Holanda, 1985.

(Milagre Chué) Milagro Arapiento: Revista Casa de Las américas,

nº159, Havana, Cuba, 1986.

(Joãozinho da Babilônia) Joãozinho da Babilônia: Verlag Volk und

Welt Berlin, Alemanha, 1988.

(Eguns) Eguns: R. Piper GmbH & Co., Munique, Alemanha, 1988.

(Afinação da Arte de Chutar Tampinhas) Perfeccionamento del Arte

de Chutar Chapitas: Editorial Arte y Literatura, Havana, Cuba, 1991.

Page 465: João Antônio: Uma Biografia Literária

465

(Virgens Blindadas do Footing) Die eisernem Jungfrauen des Footing:

Edition Diá, Berlim, Alemanha, 1991.

Entrevistas e Textos Avulsos:

entrevista publicada em Patuléia, SP, Ática, 1996.

entrevista publicada em Malagueta, Perus e Bacanaço, SP, Ática,

1996.

Escrever, Origem, Manutenção e Ideologia, série de entrevistas

coletadas por Giovanni Ricciardi, Libreria Universitaria de Bari,

1988.

“Meus Respeitos”, homenagem a Antonio Candido, 1995.

Sobre João Antônio:

Bedate, Pilar Gomes – “João Antônio y la Picaresca Paulista”, in

Cuadernos Hispanoamericanos, nº181, jan.1965.

Barbosa, João Alexandre – “Malagueta, Perus e Bacanaço”, in Jornal

do Comércio, Recife, 17/11/63.

Barbosa, João Alexandre – “A Prosa de Uma Consciência”, prefácio

ao livro Dama do Encantado, editora Nova Alexandria, SP, 1996.

Barbosa, Rolmes – “A Semana e os Livros”, in O Estado de São

Paulo, SP, 29/6/63.

Bosi, Alfredo – “Moderno e Modernista na Literatura Brasileira”, in

Céu, Inferno, editora Ática, SP, 1988.

Page 466: João Antônio: Uma Biografia Literária

466

Candido, Antonio - Prefácio ao livro Dedo-Duro, editora Record,

1982.

Candido, Antonio – “A Nova Narrativa”, in Educação da Noite,

editora Ática, s/d.

Cunha, Fausto - Situações da Ficção Brasileira, Editora Paz e Terra,

RJ, 1970.

Drigan, Jesus Antônio – “Sobre João Antônio”, in Os Pobres na

Literatura Brasileira, org, Roberto Schwarcz, editora Brasiliense, 1983.

Hollanda, Heloísa Buarque et allii - Anos 70: Literatura, Edição

Europa-Funarte, RJ, 1979.

Hohlfeldt, Antônio – “O Atual Conto Brasileiro”, in Caderno de

Sábado do Correio do Povo, Porto Alegre, 6/12/1975.

Milliet, Sérgio – “Alguns Malandros”, in O Estado de São Paulo, SP,

23/7/63.

Martins, Wilson - Prefácio ao livro Casa de Loucos, editora Rocco, 4ª

edição, RJ, 1994.

Nunes, Cassiano – “Releitura de João Antônio”, in 10 Contos

Escolhidos, Horizonte Editora-INL, DF, 1983.

Nunes, Cassiano – “Nota Sobre JA”, in Breves Estudos de Literatura

Brasileira, editora Saraiva, SP, 1969.

Pedroso, Bráulio – “São Paulo Tem Seu Romancista”, in O Estado de

São Paulo, SP, 13/8/64.

Lombardo, Edison Luiz – O Malandro nos Textos de João Antônio,

tese defendida em Araraquara, inédita em livro.

Lombardo, Edison Luiz – “A Desmistificação do Malandro em

Contos de João Antônio”, in Revista Itinerários, publicação da Faculdade de

Ciências e Letras da Unesp de Araraquara, SP, 1991, p.213.

Page 467: João Antônio: Uma Biografia Literária

467

Neto, João da Silva Ribeiro – João Antônio: Literatura Comentada,

SP, Abril, 1980.

Castello, José – “A Arte de Ser João”, in Inventário de Sombras, RJ,

Record, 1999.

Vários autores – “Três Anos Sem João Antônio”, número do tablóide

Muito Mais especialmente dedicado a João Antônio. Entre os autores estão:

Álvaro Caldas, Antônio Torres, Caio Porfírio Carneiro, Ignácio de Loyola

Brandão, Léo Gilson Ribeiro, Manoel Lobato, Mylton Severiano da Silva,

Roberto Drummond, Wander Piroli, Valdomiro Santana.

Polinésio, Júlia Marchetti – “O Conto Sócio-Documental: João

Antônio”, in O Conto e as Classes Populares, SP, Annablume, 1994.

Bruno, Haroldo – “João Antônio e Sua Estética da Porrada”, in Novos

Estudos de Literatura Brasileira, RJ, José Olympio, s/d.

Nascimento, Esdras – três artigos sem título, publicados na coluna

Livros, do jornal A Tribuna da Imprensa, RJ, 24/3/1963.

Netto, Xerxes Gusmão – entrevista com João Antônio, A Gazeta,

Vitória, 1964.

Brasil, Assis – “Romancista de Véspera”, in Jornal do Brasil, RJ, 26/6/63.

Cunha, Fausto – “Um Estreante”, in Correio da Manhã, RJ, 12/10/63.

Caldas, Imanoel – “João Antônio: Contista da Malandragem

Paulistana”, in Jornal de Alagoas, 29/11/64.

Coelho, Nelly Novaes – Resenha do livro Malagueta, Perus e

Bacanaço, in Minas Gerais, 5/10/68.

Nader, Waldyr – “João Antônio Lançará Quatro Livros em 1975”, in

Folha de São Paulo, 27/12/74.

Ribeiro, Léo Gilson – “João Antônio”, in Jornal da Tarde, SP,

23/8/75.

Page 468: João Antônio: Uma Biografia Literária

468

Sant’Anna, Affonso Romano de – “Um Sambão”, in Revista Veja, SP,

15/10/75.

Fabiano, Ruy – Entrevista com João Antônio, publicada no Diário de

Notícias, RJ, 14 /02/76.

Steen, Edla Van – Entrevista com João Antônio, in Escreviver, Porto

Alegre, LP&M, 1981.

Léo Gílson Ribeiro – “João Antônio, Fascinado Pelas Palavras. É um

Perigo?”, in Jornal da Tarde, SP, 13/11/82.

Filho, Domício Proença – “João Antônio: A Narrativa Articulada”, in

O Estado de São Paulo, 07/07/85.

Lafetá, João Luiz – “João Antônio e Sua Estética do Rancor”, in

Folha de São Paulo, 05/10/86.

Anais do Congresso Brasil: País do Passado?, organização de Lígia

Chiappini e Berthold Zilly, Berlim, 23-25 de junho de 1998. Textos de:

Flávio Aguiar, Lígia Chiappini, Berthold Zilly, David Schidlowsky, Carlos

Azevedo, Fernando Bonassi. (inédito)

Lacerda, Rodrigo: "A Mais Cega Sinceridade", in Folha de São Paulo,

14/6/97. (Jornal de Resenhas)

Lacerda, Rodrigo: Resenha Sobre No19 da Revista Remate de Males,

dedicado a João Antônio, in Ficções, Setteletras, RJ, 2000.

Lacerda, Rodrigo: “De princesinha a cadela desdentada”, in Ô,

Copacabana!, 2a edição, Cosac Naify, SP, 2001.

Lacerda, Rodrigo: orelha e encarte para a 7a edição de Malagueta,

Perus e Bacanaço, Cosac Naify, SP, 2004

Revista Remate de Males, no 19, Unicamp, Campinas, 1999,

organização: Antonio Arnoni Prado, Maria Eugenia Boaventura, Orna

Messer Levin. Textos de:Caio Porfírio Carneiro, Ilka Brunhilde Laurito,

Page 469: João Antônio: Uma Biografia Literária

469

Lourenço Diaféria, Fernando Paixão, Ellen Spielman, Antonio Candido,

Fábio Lucas, Flávio Aguiar, Vilma Arêas, Wania Majadas, Antonio Arnoni

Prado.

Bibliografia Geral:

Vários autores: Antologia do Novo Conto Brasileiro, (2 vols., org.

Esdras do Nascimento), Júpiter, RJ, 1964.

Dantas, Paulo: Capitão Jagunço, Global, SP, 1982.

Franco, Renato: Itinerário Político do Romance Pós-64: A Festa,

Unesp, 1998.

Hollanda, Heloísa Buarque de: Impressões de Viagem – CPC,

Vanguarda e Desbunde: 1960/70, Rocco, 3a edição, RJ, 1992.

Carneiro, Caio Porfírio: Trapiá, Cátedra-INL-MEC, RJ e Brasília, 3a

edição, 1980.

Carneiro, Caio Porfírio: O Sal da Terra, Ática, SP, s/d. Com prefácio

de João Antônio.

Castro, Osório Alves de: Porto Calendário, Francisco Alves, SP,

1961.

Rosa, João Guimarães - Grande Sertão: Veredas, editora Nova

Aguilar, RJ, 1994.

Braga, Antonio M.C.: Profissão Escritor – Escritores, Trajetória

Social, Indústria Cultural, Campo e Ação Literária no Brasil dos Anos 70,

tese defendida no departamento de Sociologia da FFLCH, 2000. (inédita).

Menezes, Raimundo de: Dicionário Literário Brasileiro, LTC, RJ, 2a

edição, 1978.

Page 470: João Antônio: Uma Biografia Literária

470

Jesus, Maria Carolina de: Quarto de Despejo, Francisco Alves, SP,

1960.

Bibliografia teórica:

Bakhtin, Mikhail:L A Cultura Popular na Idade Média e no

Renascimento, Hucitec, SP, 4a edição, 1999.

Williams, Raymond: O Campo e a Cidade, Cia. Das Letras, SP, 2000.

Lukács, Georg: Ensaios Sobre Literatura, Civilização Brasileira, RJ,

1965.

Gotlib, Nádia Battella: Teoria do Conto, Ática, SP, 2001.

Cortázar, Julio: Valise de Cronópio, Perspectiva, SP, 2a edição, 2000.

Sartre, Jean-Paul: Que é a Literatura?, Ática, SP, 3a edição, 1999.

Schwarz, Roberto: Que Horas São?, Cia. Das Letras, SP, 1997.

Goldmann, Lucien: A Sociologia do Romance, Paz e Terra, SP, 3a

edição, 1990.

Frye, Northrop: O Caminho Crítico, Perspectiva, SP, 1973.

Vários Autores: A Personagem de Ficção, Perspectiva, SP, 10a

edição, 2000.

Candido, Antonio: Literatura e Sociedade, TR.A. Queiroz Editor, SP,

8a edição, 2000.

Arrigucci, Davi: O Cacto e as Ruínas, 34, SP, 2a edição, 2000.

Forster, E. M.: Aspects of The Novel, Harvest, NY, s/d.

Lukács, Georg: A Teoria do Romance, 34, SP, 2000.

Leite, Ligia Chiiappini Moraes: O Foco Narrativo, Ática, SP, 10a

edição, 2001.

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471

Candido, Antonio: A Educação Pela Pedra e Outros Ensaios, Ática,

SP, 2a edição, 1989.

Vários Autores: Poesia Jovem – Anos 70, Abril, SP, 1982.